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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Ciências Sociais


Faculdade de Serviço Social

Juliana Fiuza Cislaghi

Elementos para a crítica da economia política da saúde no Brasil:


parcerias público-privadas e valorização do capital

Rio de Janeiro
2015
Juliana Fiuza Cislaghi

Elementos para a crítica da economia política da saúde no Brasil: parcerias


público-privadas e valorização do capital

Tese apresentada, como requisito parcial


para obtenção do título de Doutor, ao
Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social, da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. Área de concentração:
Trabalho e Política Social.

Orientadora: Prof.ª Dra. Elaine Rossetti Behring

Rio de Janeiro
2015
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/ BIBLIOTECA CCS/A

C579 Cislaghi, Juliana Fiuza.


Elementos para a crítica da economia política da saúde no Brasil:
parcerias público-privadas e valorização do capital / Juliana Fiuza
Cislaghi. – 2015.
193 f.

Orientadora: Eliane Rosseti Behring


Tese (doutorado) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Faculdade de Serviço Social.
Bibliografia.

1. Política de saúde – Brasil – Teses. 2. Sistema Único de Saúde


(Brasil) – Teses. 3. Saúde pública – Brasil - História – Teses. I.
Behring, Eliane Rosseti. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Faculdade de Serviço Social. III. Título.

CDU 614.2(81)

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese, desde
que citada a fonte.

___________________________ ___________________________

Assinatura Data
Juliana Fiuza Cislaghi

Elementos para a crítica da economia política da saúde no Brasil: parcerias


público-privadas e valorização do capital

Tese apresentada, como requisito parcial


para obtenção do título de Doutor, ao
Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. Área de concentração: Política
Social

Aprovada em 29 de abril de 2015.


Banca examinadora:
_______________________________________
Prof.a Dra. Elaine Rossetti Behring (Orientadora)
Faculdade de Serviço Social – UERJ
_______________________________________
Prof.a Dra. Marilda Villela Iamamoto
Faculdade de Serviço Social – UERJ
_______________________________________
Prof.a Dra. Maria Inês Souza Bravo
Faculdade de Serviço Social – UERJ
_______________________________________
Prof.a Dra. Sara Granemann
Universidade Federal do Rio de Janeiro
_______________________________________
Prof.a Dra. Maria de Fatima Siliansky Andreazzi
Universidade Federal do Rio de Janeiro
______________________________________
Prof.a Dra. Ivanete Salete Boschetti
Universidade de Brasília

Rio de Janeiro
2015
DEDICATÓRIA

Aos militantes da Reforma Sanitária que não se “flexibilizaram” e seguem


cotidianamente lutando contra o capital pelo direito dos trabalhadores à saúde e à
vida.
AGRADECIMENTOS

Foi com minha mãe e meu pai que aprendi a ser gauche. Saí de casa uma
militante anticapitalista impenitente desta vida.E é assim que agradeço minha
família: meu pai, minha mãe, meus avós, meu padrasto, meus irmãos, minha
madrinha, meus primos – que até hoje me ligam para perguntar o que eu acho da
conjuntura.
Por minha sorte encontrei na minha militância estudantil muita gente bacana e
generosa, que me salvou de certa mesquinhez inevitável nesses tempos do capital.
À isso queria agradecer a Mira – que me ensinou muito a entender a vida, ao Tom –
um cara elegante e sincero, ao Matheus – um grande parceiro, a Taty - na sua
dureza e ternura, ao Xandão – sempre meu dirigente, e ao povo do MESS: Dani,
Flávia. Andrea, Silvia, Elaine, Rose, e são muitos mais, com certeza. Ali entendi o
quão alegre podia ser a confiança no coletivo.
Mais sorte ainda tive em estudar na Faculdade de Serviço Social da
Uerj.Desde minha graduação conto com Elaine como amiga, parceira e orientadora.
É certamente o centro de toda minha formação acadêmica, a quem guardo infinita
gratidão e companheirismo. Com Marilda, além de todas as leituras, tive a chance de
assistir alguns cursos sobre marxismo e sobre Serviço Social. Difícil encontrar, para
o resto da vida,debates mais generosos e sofisticados. Maria Inês é mestra de
qualquer sujeito militante que cruzou com ela um dia. Ensina todo dia que lutar é
sempre, ensina a ser imprescindível e me ensinou tudo sobre política de saúde,
também.
Agora, professora da Faculdade que me formou, ficaria muitas páginas
agradecendo um pouquinho de tudo que como aluna e professora essa unidade me
ofereceu sempre. Agradeço aos meus professores, colegas e alunos e espero
retribuir com meu trabalho docentetudo que essa Faculdade me proporcionou.
Agradeço ainda à todos os meus companheiros de militância, nos partidos
partidos e no sindicalismo docente. Com tantos desencontros acabei ficando, de
algum jeito, como Pasin, com o Zé, com o Agnaldo, com a Marina, com a Cris, com a
Sônia, com a Elisa, com a Dani. A Sônia me ensinou um dia que a felicidade não é
um bem individual, mas, só pode ser um projeto coletivo: nunca esqueci.
Aos diretores e funcionários da Asduerj e todos militantes da Uerj que estão
todos os dias lutando pela democracia, pela solidariedade e pelos nossos direitos:
vamos juntos, vamos de mãos dadas. Preciso registrar um agradecimento especial a
Cleier, que é um pouco responsável por essa história de militância docente na Uerj,
além de ter sido minha professora.
Aos professores, alunos e pesquisadores do Gopss, interlocutores
fundamentais e grandes amigos de pesquisas e risadas.
Aos companheiros do gabinete do vereador Renato Cinco, em particular à
Talita que me ajudou muito com fontes de dados sobre o orçamento da cidade do
Rio de Janeiro. Sigamos abrindo as caixas pretas.
Agradeço, ainda, à minha banca, feminina e feminista,e de grandes
pesquisadoras e militantes sociais. Fora as já agradecidas Maria Inês, Marilda e
Elaine quero registrar a importância de Sara e Fátima na qualificação. À Sara minha
profunda admiração como pesquisadora e companheira de militância. Devo à
Fátima todo o debate sobre a categoria “subsunção”, fundamental nessa tese, e que
ainda pretendo perseguir por um tempo. Registro, ainda, o orgulho e alegria de
contar com a participação de Ivanete na banca final e o apoio dado pelos colegas do
GESST, Evilásio e Sandra, sempre disponíveis para o debate. Fico devendo um
Meia Porta para a turma de Brasília.
Agradeço, por fim, aos meus amigos, porque só isso salva: Grazi, Tainá,
Aline, Elídio, Manu, Guilherme, Babi, Priscila, Bel, Verônica, Maieiro, Felipe, Lia,
Bruno e tanta gente bacana, que torna nossa vida mais leve.
E ao Hilde meu amor e companheiro da vida que debate, facilita, me joga
para cima, ouve, consola: muita sorte encontrar isso nesse mundo.
RESUMO

CISLAGHI, Juliana Fiuza. Elementos para a crítica da economia política da saúde no


Brasil: parcerias público privadas e valorização do capital. 2015. 193 f. Tese
(Doutorado em Serviço Social) - Faculdade de Serviço Social, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

A construção do SUS se dá no momento da “contrarrevolução monetarista”,


em curso desde a década de 1970 em vários países, que alcança o Brasil na década
de 1990 e rapidamente se torna hegemônica em todo o mundo. A relação histórica
entre público e privado no setor de saúde brasileiro, intercedida pelo papel do
Estado e do fundo público na sua regulação e financiamento, irá, então, ganhar
novos formatos e novas determinações. A proposta do trabalho foi investigar, por
meio dos dados do orçamento público brasileiro e de três municípios, os
mecanismos atualmente utilizados pelo capital no setor saúde para se apropriar do
fundo público como mecanismo essencial para sua permanente valorização. Essa
apropriação de fundo público dá suporte ao processo de subsunção real do conjunto
de atividades do setor saúde ao capital no Brasil, no qual se incluem os serviços,
processo que ainda está em curso.

Palavras chave: Política de saúde. SUS. Privatização. Fundo público


ABSTRACT

CISLAGHI, Juliana Fiuza. Elements for the critique of the political economy of health
in Brazil: public-private partner ships and capital appreciation. 2015. 193 f. Tese
(Doutorado em Serviço Social) - Faculdade de Serviço Social, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

The construction of the SUS occurs when "monetarist counter revolution", in


place since the 1970s in several countries, reaching Brazil in the 1990s and quickly
become she gemonic worldwide. The historical relations hip between public and
private in the Brazilian health sector, intermediated by the state and public funds in
their regulation and financing, will then gain new shapes and new determinations.
The purpose of this study was to investigate, using data from the public budget and
three municipalities, the mechanisms currently used by capital in the health sector to
appropriate the public fund as a key mechanism for permanent recovery. This
appropriation of public fund supports real sub sumption process of health sector
activities set the capital in Brazil, which include services, a process that is still
ongoing.

Keywords: Health policy. SUS. Privatization. Public funds.


LISTA DE SIGLAS

Abrafarma Associação Brasileira de Redes de Farmácia e Drogarias


Abrasco Associação Brasileira de Saúde Coletiva
Adin Ação Direta de Inconstitucionalidade
AIH Autorização de Internação Hospitalar
AIS Ações Integradas de Saúde
ANS Agência Nacional de Saúde Suplementar
Anvisa Agência Nacional de Vigilância Sanitária
Apae Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais
Asergh Associação de Servidores do Grupo Hospitalar Conceição
BM Banco Mundial
BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
BPC Benefício de Prestação Continuada
Cebes Centro Brasileiro de Estudos em Saúde
Ceme Central de Medicamentos
CLT Confederação das Leis do Trabalho
CMB Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e
Entidades Filantrópicas
CNS Conselho Nacional de Saúde
CNTSS Confederação Nacional dos Trabalhadores em Seguridade Social
COAPS Contrato Organizativo de Ação Pública de Saúde
COFINS Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social
CPMF Contribuição Provisória sobrea Movimentação ou Transmissão de Valores,
de Crédito e de Direitos de Natureza Financeira
CSLL Contribuição sobre o Lucro Líquido
DEM Partido Democratas
Dires Diretorias Regionais de Saúde
DRU Desvinculação das Receitas da União
EBSERH Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares
EC Emenda Constitucional
ENSP Escola Nacional de Saúde Pública
ESFL Entidades Sem Fins Lucrativos
FAS Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social
Fesf Fundação Estatal Saúde da Família
Fifa Federação Internacional de Futebol
Fiocruz Fundação Oswaldo Cruz
FMI Fundo Monetário Internacional
Funasa Fundação Nacional de Saúde
GHC Grupo Hospitalar Conceição
HCPA Hospital de Clínicas de Porto Alegre
HU Hospital Universitário
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IDHM Índice de Desenvolvimento Humano dos Municípios
IGP-DI Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna
Inamps Instituto nacional de Assistência Médica da Previdência Social
INCA Instituto Nacional do Câncer
INPS Instituto Nacional de Previdência Social
INSS Instituto Nacional de Seguridade Social
IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
IPTU Imposto Predial e Territorial Urbano
ISS Imposto sobre os Serviços
ITBI Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis
LDO Lei de Diretrizes Orçamentárias
LFO Laboratórios Farmacêuticos Oficiais
LOA Lei Orçamentária Anual
LOAS Lei Orgânica de Assistência Social
LRF Lei de Responsabilidade Fiscal
MEC Ministério da Educação
MP Medida Provisória
MPOG Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão
MS Ministério da Saúde
NHS Serviço Nacional de Saúde Britânico
OCDE Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômicos
OMS Organização Mundial de Saúde
ONG Organização Não-Governamental
ONU Organização das Nações Unidas
OS Organização Social
OSCIP Organização da Sociedade Civil de Interesse Público
PAC Plano de Aceleração do Crescimento
PAD Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de
Semicondutores
PAS Programa de Assistência à Saúde
Pasep Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público
PATVD Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de
Equipamentos da TV Digital
PCB Partido Comunista Brasileiro
PDT Partido Democrático dos Trabalhadores
PDP Programa de Desenvolvimento Produtivo
PDS Partido Democrático Social
P&D Pesquisa e Desenvolvimento
PFL Partido da Frente Liberal
PIB Produto Interno Bruto
PIS Programa de Integração Nacional
PL Projeto de Lei
PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PNAD Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios
PNE Plano Nacional de Educação
PNUD Plano para o Desenvolvimento
PPA Plano Plurianual
PPP Parceria Público-Privada
Procis Programa de Desenvolvimento do Complexo Industrial de Saúde
Profarma Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Complexo Industrial de
Saúde
Pronas Programa Nacional de Apoio à Atenção da Saúde da Pessoa com
Deficiência
Pronon Programa Nacional de Apoio à Atenção Oncológica
Prouca Programa Especial de Incentivo a Computadores de Uso Educacional
Prouni Programa Universidade para Todos
PSB Partido Socialista Brasileiro
PSD Partido Social Democrático
PSDB Partido Social-Democrata Brasileiro
PT Partido dos Trabalhadores
PTB Partido Trabalhista Brasileiro
RBPPM Rede Brasileira de Produção Pública de Medicamentos
Recine Regime Especial de Tributação para o Desenvolvimento de Atividade de
Exibição Cinematográfica
Recopa Regime Especial de Tributação para a Ampliação, Reforma ou
Modernização de Estádios de Futebol
Reforsus Projeto de Reforço a Reorganização do SUS
Reid Regime Especial de Incentivo para o Desenvolvimento de Infraestrutura
Reif Regime especial de Incentivo ao Desenvolvimento da Infraestrutura da
Indústria de Fertilizantes
Rehuf Programa de Reestruturação dos Hospitais Universitários Federais
Rename Relação Nacional de Medicamentos
Retaero Regime Especial de Tributação para a Indústria Aeroespacial
RJU Regime Jurídico Único
SA Sociedade Anônima
SAI Sistema de Informações Ambulatoriais
Sims Sistema Integrado Municipal de Saúde
Siops Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde
SMS Secretaria Municipal de Saúde
STN Secretaria do Tesouro Nacional
STF Superior Tribunal Federal
SUDS Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde
SUS Sistema Único de Saúde
TCL Taxa de Coleta de Lixo
TCM Tribunal de Contas dos Municípios
TCU Tribunal de Contas da União
TIS Taxa de Inspeção Sanitária
TLE Taxa de Licenciamento dos Estabelecimentos
UBS Unidade Básica de Saúde
UFAL Universidade Federal de Alagoas
UFES Universidade Federal do Espírito Santo
UFMA Universidade Federal do Mato Grosso
UFPI Universidade Federal do Piauí
UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFS Universidade Federal de Sergipe
UFTM Universidade Federal do Triângulo Mineiro
UNB Universidade de Brasília
UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância
Unifesp Universidade Federal de São Paulo
UNIVASF Universidade Federal do Vale do São Francisco
UO Unidade Orçamentária
UPAS Unidades de Pronto Atendimento
LISTA DE TABELAS

Tabela 1 Percentual de gastos públicos na composição da despesa com


saúde........................................................................................... 91
Tabela 2 Natureza jurídica dos estabelecimentos de saúde no Brasil........ 98
Tabela 3 Laboratórios Públicos participantes do Procis e seus modelos
de gestão...................................................................................... 114
Tabela 4 Indicadores sócio econômicos municipais................................. 124
Tabela 5 Natureza Jurídica dos Estabelecimentos de Saúde dos
Municípios ................................................................................... 125
Tabela 6 Governadores e Prefeitos nos Municípios.................................... 126
Tabela 7 Leitos por 1000 habitantes por nível federativo............................ 129
Tabela 8 Autorizações de Internação Hospitalar (AIH/SUS) –2012............ 142
Tabela 9 Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA/SUS)– 2012........... 143
Tabela 10 Gasto federal com o setor privado de medicamentos e
equipamentos em 2012................................................................ 145
Tabela 11 Participação das Funções nos Gastos Tributários Federais........ 147
Tabela 12 Desonerações federais da Função Saúde entre 2008 e 2012..... 148
Tabela 13 Desonerações federais sobre as contribuições que financiam a
saúde.......................................................................................... 150
Tabela 14 Relação entre a Função Saúde e os Gastos Tributários com a
Cofins e a CSLL........................................................................... 151
Tabela 15 Gastos Tributários do Município do Rio de Janeiro – Receita
Tributária....................................................................................... 152
Tabela 16 Participação da Modalidade 50 e dos Gastos de Pessoal no
total do orçamento da Função Saúde nos municípios................. 158
Tabela 17 Arrecadação própria e participação no orçamento total dos
HUFs............................................................................................. 161
Tabela 18 Número de leitos e vinculação dos leitos ao SUS........................ 162
Tabela 19 Orçamento Executado do Grupo Hospitalar Conceição............... 163
Tabela 20 Percentual de arrecadação própria do Orçamento...................... 164
Tabela 21 Orçamento da UO EBSERH em 2012.......................................... 165
LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 Gastos públicos e privados em saúde em relação ao PIB............ 90

Gráfico 2 Gastos Federais na Função Saúde 2008 – 2012.......................... 137

Gráfico 3 Gastos municipais executados na função saúde.......................... 138

Gráfico 4 Repasses federais na modalidade 50........................................... 154

Gráfico 5 Transferências para entidades sem fins lucrativos (ESFL) por


nível de governo – 2002 a 2009.................................................... 155
Gráfico 6 Repasses a entidades sem fins lucrativos por função –2011....... 156

Gráfico 7 Gastos com pessoal e repasses a entidades sem fins lucrativos


nos municípios – 2008 a 2012....................................................... 157
Gráfico 8 Orçamento Federal em 2012 – por grupo de despesa e
modalidade de aplicação............................................................... 167
Gráfico 9 Orçamento do município de SP em 2012 – por grupo de
despesa e modalidade de aplicação............................................. 169
Gráfico 10 Orçamento do município do RJ em 2012 – por grupo de
despesa e modalidade de aplicação............................................. 169
Gráfico 11 Orçamento do município de Salvador em 2012 – por grupo de
despesa e modalidade de aplicação............................................. 170
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................... 2
1 POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇOS: EM BUSCA DE UMA
INTERPRETAÇÃO MARXISTA......................................................... 9
1.1 A questão dos serviços no capitalismo tardio.............................. 18
1.2 Subsunção real dos serviços ao capital: o caso da
saúde................................................................................................. 24
2 O CAPITALISMO E SUAS CRISES.................................................. 31
2.1 O Estado de Bem Estar Social na fase de ascensão do
capitalismo tardio............................................................................. 36
2.2 Neoliberalismo: a fase de estagnação do capitalismo
tardio.................................................................................................. 41
2.3 A ideologia gerencialista e a contrarreforma neoliberal do
Estado............................................................................................... 51
2.4 Crise do capital e ofensiva sobre o fundo público: o caso
brasileiro............................................................................................. 58
2.5 O significado dos governos do PT na conjuntura
neoliberal........................................................................................... 71
3 A SAÚDE NO CAPITALISMO TARDIO: ELEMENTOS GERAIS E
A PARTICULARIDADE DO CASO BRASILEIRO............................ 80
3.1 Marcos históricos da política de saúde no Brasil ........................ 82
3.2 O papel dos organismos internacionais na contrarreforma da
saúde no Brasil................................................................................. 91
3.3 Saúde pública no Brasil: o avanço na privatização da
gestão................................................................................................ 96
3.4 O setor privado de saúde no Brasil hoje....................................... 111
4 MECANISMOS DE PRIVATIZAÇÃO DO FUNDO PÚBLICO NO
CAPITALISMO TARDIO: ANÁLISE DO SETOR SAÚDE NO
BRASIL.............................................................................................. 121
4.1 O orçamento federal e dos municípios de 2008 à 2012................ 130
4.2 O Estado como consumidor de medicamentos, equipamentos
e serviço de saúde........................................................................... 138
4.3 O gasto tributário com o setor saúde............................................. 144
4.4 O repasse do orçamento para entidades sem fins
lucrativos........................................................................................... 151
4.5 O caso peculiar das empresas públicas e sociedades de
economia mista no setor saúde...................................................... 158
4.6 Síntese da análise dos dados: o quadro geral de repasse de
fundo público ao setor privado na função saúde......................... 164
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................... 171
REFERÊNCIAS................................................................................. 174
17

INTRODUÇÃO

“Grandes multinacionais que atuam no segmento de saúde têm investido


forte no Brasil ou estão pensando em investir. O que as atrai? Mercado.
Temos o maior sistema nacional público universal e gratuito do mundo. (...)”
(Entrevista do Ministro da Saúde Alexandre Padilha ao Jornal Valor
Econômico em outubro de 2012)

A afirmação do Ministro pode parecer paradoxal, sob uma ingênua primeira


vista. A tese que ora apresentamos vem, exatamente, buscar entender porque não
é. O setor saúde no Brasil sempre foi, ainda antes da Constituição de 1988,
majoritariamente privado com subsídios do fundo público. Com a Constituição de
1988 e a construção do Sistema Único de Saúde (SUS), vivemos uma ampliação do
sistema público, porém a conservaçãodo setor privado como complementar manteve
as contradições na relação entre setor público e privado, e a disputa aberta, e mais
acirrada, pelo fundo público.
A construção do SUS se dá no momento da “contrarrevolução monetarista”,
em curso desde a década de 1970 em vários países, que alcança o Brasil na década
de 1990 e rapidamente se torna hegemônica em todo o mundo. Resposta à crise do
capital, na busca pela retomada das taxas de lucro, o período que se convencionou
chamar de neoliberal, traz profundas implicações para o Estado e as políticas
sociais, colocados, cada vez mais, a serviço do capital, ainda que, residualmente,
mantenham seu papel de garantir a reprodução da classe trabalhadora e a coesão
social. Essa relação histórica entre público e privado no setor de saúde brasileiro,
intercedida pelo papel do Estado e do fundo público na sua regulação e
financiamento, irá, então, ganhar novos formatos e novas determinações. A proposta
do trabalho foi investigar os mecanismos atualmente utilizados pelo capital no setor
saúde para se apropriar do fundo público como mecanismo essencial para sua
permanente valorização.
Utilizamos como marco teórico-metodológico na análise dos dados levantados
nesse trabalho a teoria crítico-dialética da tradição marxista. Essa é uma opção de
ordem teórica, mas, mais do que isso, de ordem ético-política. Acreditamos que a
filiação teórica não decorre apenas de uma apreensão lógica, mas sociológica da
18

teoria, onde o conhecimento dos fatos leva a opções políticas e valorativas ligadas a
uma visão de mundo vinculada a algum interesse de classe (Lowy, 1992, 52). Nesse
sentido, não é subtraível do método de Marx a perspectiva histórica de passagem
“para além do capital” bem como a lei do valor, como pilar fundamental no
funcionamento do capitalismo, numa perspectiva ortodoxa conforme enunciada por
Behring (2008).1
Nossa busca é, com o auxílio de referências na tradição marxista, resgatar a
dialética como método que permite conpreender a realidade: a. não como soma de
fatos, mas, como combinação de processos e b. como uma totalidade em
movimento onde nenhuma das partes pode ser compreendida isoladamente, fora de
suas conexões e no qual esse movimento é um resultado das contradições internas
dessa realidade. Associa-se a isso uma compreensão do materialismo histórico
baseada nas seguintes constatações: a. a realidade material é anterior ao
pensamento, b. o real está em constante transformação e cabe ao pensamento
aproximar-se cada vez mais da realidade na qual o critério final da verdade é a
prática, c. o modo de viver e pensar dos homens é determinado pelas condições
concretas do momento histórico em que vivem e d. a emancipação dos homens é
um processo progressivo, histórico e não-linear, tendo a luta de classes como motor
desse desenvolvimento (Mandel, 2001, p.21).
A partir desse aporte fundamental, recorreremos à sociologia crítica brasileira,
sobretudo Francisco de Oliveira, Octavio Ianni e os autores da Escola de Sociologia
da Universidade de São Paulo(USP) para compreender a especificidade nacional. A
ideia de dependência enquanto país periférico dentro do capitalismo mundial apóia-
se no princípio de Florestan Fernandes de que a “particularidade Brasil pertence à
generalidade capitalismo por meio da especificidade capitalismo dependente”
(LIMOEIRO, 2005, p.11).
É com o conceito de desenvolvimento desigual e combinado, originalmente
desenvolvido por Trotsky, mas presente como concepção em Fernandes, Ianni e
Oliveira, que analisaremos as relações entre o Estado e os setores privados na
saúde, pensando numa relação de amálgama entre eles dentro de uma totalidade.
Nessa relação tem papel fundamental a categoria “fundo público”.
Entendemos como fundo público o conjunto de impostos, taxas, contribuições e etc

1
Behring (2003) considera a “ortodoxia” marxista, da qual não é possível abrir mão, o método, a lei
do valor e a perspectiva de superação do mundo do capital.
19

que serão apropriados compulsoriamente pelo Estado. Esse fundo é composto pelo
trabalho necessário (na forma de salários) e pelo trabalho excedente (na forma de
lucro, juros ou renda da terra) do conjunto da sociedade, tendo um lugar estrutural
na sociedade capitalista. Sobretudo em momentos de crise, o fundo público atua
como “contratendência à queda das taxas de lucro, atuando permanentemente e
visceralmente na reprodução ampliada do capital” (BEHRING, 2010, p.32). As
formas históricas dessa atuação, dentro da particularidade da saúde no Brasil, foram
objeto central da nossa investigação.
O Estado, e consequentemente o fundo público, é compreendido não como
um “ator”, como querem teorias que justificam as teses neoliberais assim
equalizando o Estado aos agentes privados, mas como uma arena de disputa. Ainda
que a investigação, e a observação do cotidiano, nos levem a concluir que nesse
momento as formas financeirizadas de capital são as maiores beneficiárias do fundo
público, em detrimento de outras formas do capital e mais ainda dos trabalhadores,
isso não significa que a disputa de interesses deixe de existir.
A luta de classes atua sobre e no Estado, o que o leva, em conjunturas mais
favoráveis aos trabalhadores, a algumas concessões e escolhas políticas que
podem pender para o lado do trabalho. É o caso da construção do sistema público
de saúde no Brasil, processo que evidentemente tem muitas contradições e que
permanece historicamente em disputa entre os interesses do trabalho e do capital, e
entre interessesintraclasses distintos. Na complexidade de sua estrutura atual, o
Estado também é composto por trabalhadores que, nos marcos de sua autonomia
relativa, podem atuar contra os interesses dominantes.
É nesse sentido que a disputa por um sistema de saúde que atenda aos
interesses dos trabalhadores, dentro dos limites da ordem capitalista, mas, com o
horizonte da sua superação, passa pela compreensão das formas de alocação do
fundo público, e não das aparências afirmadas por termos como “público não estatal”
ou “público de direito privado”, ou outras representações estanques que defendem a
neutralidade do Estado sobre os interesses de classe. O objetivo da pesquisa é
superar as aparências fenomênicas, imediatas e empíricas que alimentam discursos
favoráveis a ordem capitalista apreendendo a essência, ou seja, a estrutura e a
dinâmica do objeto em suas múltiplas determinações (Netto, 2011).
Sendo nosso objeto o setor saúde, parte da sociedade atual, a relação entre o
objeto e o pesquisador não tem como ser externa, como se dá em ciências da
20

natureza. Isso bloqueia qualquer intenção de neutralidade na pesquisa, o que não


exclui a objetividade do conhecimento, ou seja, a necessidade de mobilizar um
máximo de conhecimentos, criticá-los e revisá-los (Netto, 2011). É nesse sentido que
esse trabalho posiciona-se ao lado dos interesses dos trabalhadores, fortalecendo-
os no processo de luta de classes por meio do aprofundamento do conhecimento da
realidade sobre a qual se intervém politicamente, fundamentando sua ação prática.
Em síntese, sob essa ótica da totalidade, baseada na teoria de autores
marxistas, pretendemos fugir da aparência dicotômica, buscando uma interpretação
da política de saúde hoje, sendo aqui enunciados os seguintes determinantes que
esmiuçamos nesse trabalho:

1. Que as políticas sociais são, pelas mesmas ações, garantias de reprodução da


força de trabalho e de acumulação do capital, mediadas pela luta de classe;
2. Que vivemos um momento de crise do capital, ciclo de estagnação do
capitalismo tardio, caracterizado pela hegemonia das finanças, o que vai alterar
o sentido e a abrangência das políticas sociais constituídas pelo espírito
welferiano, entendendo o Estado de Bem-Estar como momento histórico da
sociedade capitalista, com determinações geográficas, sociais e culturais
distintas.
3. Que nesse momento histórico mantém-se e repõem-se em novas configurações
as relações desiguais entre países centrais e periféricos, permanecendo o
Brasil no segundo caso. Essas relações desiguais têm nas diferenças
tecnológicas, expressas nas patentes, e na centralização dos mercados
financeiros em alguns países e regiões algumas de suas principais
determinações. Reafirma-se, assim, o desenvolvimento desigual e combinado
entre nações e no interior das nações, como é especialmente contundente no
caso brasileiro.
4. Que o Estado não deixou de interferir no conjunto da vida social, pelo contrário,
tem um papel central na garantia da reprodução ampliada do capital, que passa
a ter a apropriação do fundo público como necessidade estrutural.
5. Que é a luta de classes determinante na configuração das políticas do Estado,
ainda que, por múltiplas causas, a classe trabalhadora esteja em desvantagem,
sobretudo após o fim do socialismo real.
21

Nossa pesquisa propriamente dita foi realizada com a análise de dados


primários acerca da legislação, dos contratos e orçamentos da saúde federal e de
três cidades – São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador - que consideramos
paradigmáticas dos novos modelos de privatização da gestão e centrais na
produção privada da saúde no Brasil. A análise de orçamentos municipais foi
fundamental na medida em que, em decorrência da legislação do SUS, a política de
saúde é executada pelos municípios por meio de recursos descentralizados de
outras esferas além dos recursos próprios. Alguns processos de privatização de
recursos só puderam ser melhor observados, portanto, nesse nível de gestão.
Escolhemos o período de cinco anos, entre 2008 e 2012, para perceber
tendências. O que buscamos nessa análise são as formas e proporções de
apropriação do fundo público.
Nossas fontes foram as peças orçamentárias (Plano Plurianual -PPA, Lei de
Diretrizes Orçamentárias -LDO, Lei Orçamentária Anual - LOA, as prestações de
contas e análises dos tribunais de contas da União e dos municípios), bancos de
dados da Câmara de Deputados, do Senado Federal, do Ministério da Saúde e das
Secretarias Municipais de Saúde e do DataSUS, dados que tem sido
progressivamente mais divulgados dadas as leis de transparência pública aprovadas
no período mais recente. Consultamos, ainda, inúmeros sites das instituições
pesquisadas e da imprensa, em particular do jornal Valor Econômico 2, uma
conceituada publicação na área de economia e finanças que tem a burguesia como
público alvo.
No primeiro capítulo realizamos uma breve digressão teórica que recupera
análises no campo marxista acerca do papel das políticas sociais e dos serviços na
produção de valor e mais valor. Na medida em que são temas polêmicos
entendemos que era necessário, com base em Marx e outros autores clássicos
dessa tradição teórica, expor nossa compreensão desse debate. Além disso, é
inevitável que a discussão sobre saúde passe centralmente pela sua relação com o

2
Concordamos com Ladeira na justificativa da opção por essa fonte: “Criado pelas Organizações
Globo e Folha de São Paulo, apresenta como missão “auxiliar a tomada de decisões dos agentes
econômicos e servir de orientação ao público”. A escolha também está relacionada ao perfil dos
leitores, definido em apresentação do próprio jornal, formado por líderes empresariais,
governamentais, da área jurídica e empreendedores. Sendo ainda identificados como 90%
pertencentes às classes A e B, sendo 54% sócios de empresas (Apresentação..., 2014).
Direcionado à elite econômica do país, conforma seus discurso e conteúdo em consonância com as
identidades social e política dos leitores” (LADEIRA, 2014).
22

capital privado como política social pública e pela grande participação de atividades
de produção de serviços nesse campo.
No segundo capítulo fazemos um percurso histórico-analítico que se inicia
pelas características universais do capitalismo contemporâneo, marcado pela crise
estrutural. Debatemos a dinâmica do Estado e da sociedade a partir do período
chamado neoliberal, entendendo esse período, conforme as teses de Mandel, como
fase de estagnação do capitalismo tardio. Passamos, então, às particularidades na
relação entre países centrais e periféricos chegando à análise do caso brasileiro.
No terceiro capítulo tratamos da situação histórica do setor saúde no Brasil,
sua dinâmica e características nas esferas pública e privada. Analisamos como os
determinantes do período atual de desenvolvimento do capitalismo influenciam o
setor, em particular no nosso país, compreendendo os processos de privatização e
contrarreforma em curso, após os avanços trazidos pela Constituição de 1988 e pela
construção do SUS.
No quarto e último capítulo analisamos os principais mecanismos de
privatização do fundo público na política atual de saúde no Brasil no nível federal e
nos municípios de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. Com isso comprovamos a
significativa transferência para setores privados do orçamento público da função
saúde.
Nosso objetivo foi construir uma crítica da economia política da saúde no
Brasil partindo da hipótese de que os mecanismos de apropriação privada de fundo
público vêm dando suporte para a subsunção real ao capital do setor saúde,
processo ainda em curso na atualidade. No caso dos serviços públicos, os
mecanismos de aumento de produtividade objetivam reduzir o gasto de fundo
público sobretudo com força de trabalho, permitindo que o fundo público seja
desviado para o capital.
Esperamos com os resultados desse trabalho reforçar as iniciativas de
resistência protagonizadas por inúmeros sujeitos políticos, trabalhadores e usuários
do SUS à, muitas vezes insidiosa, privatização da saúde no Brasil. Com
Iamamoto(2007, p.452), acreditamos que“a investigação quando compromissada em
libertar a verdade de seu confinamento ideológico, é certamente um espaço de
resistência e luta”
23

1 POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇOS: EM BUSCA DE UMA INTERPRETAÇÃO


MARXISTA

De forma, em geral, fragmentada e setorializada, as políticas sociais se


apresentam como respostas às múltiplas expressões da questão social, que tem
como fundamento a contradição entre trabalho e capital. Sua ascensão depende das
condições históricas da luta de classes e do desenvolvimento da intervenção estatal.
É na passagem do capitalismo concorrencial para o capitalismo monopolista, no
período pós II Guerra Mundial, que as políticas sociais vão se generalizar (Behring e
Boschetti, 2007).
Behring (2002, p.21) alerta que a análise do significado histórico-social das
políticas sociais deve fugir de alguns equívocos metodológicos. Em primeiro lugar o
politicismo, que autonomiza a política social do processo de produção tornando-a
exclusivamente fruto da vontade dos sujeitos, portanto resultado único e exclusivo
da luta dos trabalhadores por melhorias nas suas condições de vida.
Outra leitura equivocada é a redistributivista que atribui às políticas sociais a
possibilidade de solucionar as desigualdades. Essa leitura leva a uma perspectiva
política reformista, que separa a esfera da produção da esfera da circulação. Na
medida em que os sistemas estatais de produção apenas em situações excepcionais
foram financiados por impostos progressivos sobre o lucro, na maior parte dos casos
nem mesmo uma limitada redistribuição pode ser implementada por essa via,
fazendo com que, pela constituição regressiva do fundo público, as políticas sociais
tenham historicamente sido auto-financiadas pelos trabalhadores.
Uma terceira leitura é a eclética, que se afirma marxista, mas, acaba caindo
nas armadilhas do distributivismo, do keynesianismo, se utilizando de forma
imprecisa do termo cidadania.
E a última, uma leitura estatista que atribui exclusivamente ao Estado a
implantação das políticas, excluindo as instituições privadas, leitura que acaba
obnubilando o campo da sociedade civil na oferta de serviços sociais.
24

Acrescentaríamos, ainda, uma quinta leitura unilateral, e, portanto,


3
equivocada da política social , que a apresenta apenas como espaço de cooptação
dos trabalhadores e amortecedor da luta social. Essa perspectiva tem sido retomada
na literatura do Serviço Social contemporâneo. Lessa (2007) é um dos expoentes
dessa tese. Afirma que “hoje é incabível propor uma emancipação política da
emancipação política. Isto é, ao fim e ao cabo, o que significam as propostas de
reforma – e não superação – do Estado político” (p.10). Sendo assim, a luta pela
emancipação humana – seu horizonte histórico sem qualquer mediação com a
sociedade atual – é uma “luta necessariamente por fora e contra o Estado „político‟”
(p.11) o que leva a crer que se deve abandonar qualquer reivindicação de políticas
sociais ao Estado. O que essa perspectiva desconsidera é que as promessas do
Estado capitalista de bem estar comum levam a contradições que devem ser
exploradas como mecanismo de elevação na consciência dos trabalhadores e
denúncia do caráter de classe real do Estado. Em relação ao papel das
reivindicações transitórias diz Bensaid (2010) sobre a Revolução Russa:

A questão (...) é a das reivindicações capazes de mobilizar na maior


unidade possível, de elevar na ação o nível de consciência e de criar a
melhor correlação de forças na perspectiva do confronto inelutável com as
classes dominantes. Foi o que fizeram os bolcheviques em 1917, em torno
de questões vitais: o pão, a paz, a terra. Tratava-se de sair de uma
discussão abstrata sobre a virtude intrínseca das reivindicações, umas
qualificadas de reformistas por natureza (compatíveis com a ordem
estabelecida), as outras revolucionárias por natureza (não integráveis nessa
ordem). O sentido das palavras de ordem depende do seu valor mobilizador
relativamente a uma situação concreta e do seu valor educativo para
aqueles que entram na luta. Esta problemática das „palavras de ordem
transitórias‟ ultrapassa as antinomias estéreis entre um reformismo
gradualista que crê que pode mudar a sociedade sem a revolucionar, e um
fetichismo da grande noite que reduz a revolução ao seu momento
paroxístico, em detrimento do paciente trabalho de organização e de
educação (2010, p.27).

Em síntese, sem ilusões da possibilidade de uma acumulação linear e gradual


das políticas sociais que leve naturalmente a um processo de ruptura, sua
reivindicação está sempre na ordem do dia e torna-se mais irruptiva quanto menos
viável para o capital, auxiliando na retomada da correlação de forças para os
trabalhadores.
Behring (2002; e Boschetti, 2007) nos chama a fazer uma análise da política
social na sua múltipla causalidade – histórica, econômica, política, cultural –

3
Segundo Behring, essa leitura, que originalmente tinha vieses estruturalistas, parecia superada mas
retomou fôlego, por outras perspectivas teóricas, recentemente.
25

elementos que constituem a totalidade da vida social. Assim, a configuração das


políticas sociais tem caráter histórico- estrutural. Depende da forma como se
apresentam as expressões da questão social, das questões estruturais da economia
e seus efeitos na produção e reprodução da classe trabalhadora, da relação entre as
classes e do papel do Estado em cada lugar e momento histórico. A autora nega a
“hipótese da conquista” e a “hipótese do engodo” no papel das políticas sociais para
a classe trabalhadora, analisando-as no marco da contradição: por uma mesma
ação beneficiam-se os trabalhadores, mas também tem ganhos o capital. É a política
social, ao mesmo tempo, melhores condições objetivas para a classe trabalhadora
lutar e ideologia do capital para conquistar o consenso. Granemann (2012, p.243)
chega a afirmar que as políticas sociais “nos dias presentes, constituem-se na
mediação central – talvez prioritária – de transferência da riqueza social para o
capital”. Diríamos que talvez não seja a prioritária, papel que deve ser atribuído aos
mecanismos da dívida pública, mas é certo que as políticas sociais em nenhum
outro momento histórico foram tão importantes como formas de transferência de
riqueza social para o capital. O que, no entanto, não elimina suas contradições na
medida em que, ainda que a título de “gestão da miséria”, seguem sendo as formas
precárias de sobrevivência de amplos setores da classe trabalhadora. Essa
contradição foge do reformismo (deixa de ser fim em si mesmo), e das análises
estruturalistas estanques, quando remetida a uma lógica de transição.
As políticas sociais são financiadas pela produção social da riqueza seja
trabalho necessário, seja a mais valia social com o intermédio direto do Estado na
organização dessas políticas 4. Costumam ser chamadas de salário indireto, porque
não mercantilizados diretamente. Quando financiadas além do trabalho necessário
pela mais-valia social, essas políticas podem significar uma redução indireta da taxa
de exploração, na medida em que a mais valia é devolvida parcialmente ao
trabalhador em forma de bens e serviços.
Seguindo esse raciocínio a retirada, de direitos não é um processo de
expropriação de condições de subsistência 5, que já não existiam, ou uma reedição

4
No caso da saúde no Brasil, após a Constituição de 1988, o Estado passou a ter o dever de gerir e
financiar o SUS, sistema público e universal, sendo, portanto, o fundo público a fonte fundamental
de recursos da saúde como direito.
5
Se pensarmos no caso da saúde, por exemplo, o processo de expropriação dos trabalhadores é
concomitante com a expropriação da terra, de onde se retiravam medicamentos naturais e se
construía o conhecimento empírico sobre o funcionamento do próprio corpo. A institucionalização da
26

da acumulação primitiva como querem alguns autores, mas uma ampliação da


exploração por meios extra-econômicos, pois permite a apropriação do trabalho
necessário pelo capital, por intermédio do Estado, além da mais valia apropriada na
produção. Discordamos, portanto, do que afirma Fontes quando diz: “Onde houver
direitos, há espaço para expropriações promovidas pelo capital” (2010, p.203) por
entender que a garantia estatal do direito não significa que seu conteúdo já não foi
expropriado como bem coletivo.
As primeiras expropriações necessárias nas protoformas do capitalismo para
seu ulterior desenvolvimento foram a retirada dos meios de produção das mãos dos
camponeses, constituindo os trabalhadores livres. Livres, segundo Marx (2009,
p.828) em dois sentidos “porque não são parte direta dos meios de produção, como
os escravos e os servos, e porque não são donos dos meios de produção, como os
camponeses autônomos”. Esse processo transformou os produtores diretos em
assalariados, donos apenas de sua força de trabalho.
Essa acumulação primitiva é, nas palavras de Marx, “anterior à acumulação
capitalista (...) uma acumulação que não decorre do modo capitalista de produção,
mas é seu ponto de partida” (2009, p.827), e “é considerada primitiva porque
constitui a pré-história do capital e do modo de produção capitalista” (2009, 828). A
população, ao perder todas as garantias do mundo feudal e das corporações passa
a ficar sem ter outra coisa para vender “além da própria pele” (2009, p.827).
Alguns autores como Oliveira (2003) defendem que nos países periféricos
como o Brasil “a acumulação primitiva não se dá apenas na gênese do capitalismo:
em certas condições específicas, principalmente quando esse capitalismo cresce por
elaboração de periferias, a acumulação primitiva é estrutural e não apenas genética”
(Oliveira, 2003, p.43).
Essa aparente “acumulação primitiva” é fruto, a nosso ver, do efeito da lei do
desenvolvimento desigual e combinado nas periferias do capital. A idéia do
desenvolvimento desigual, utilizada por Marx e Lenin, foi estendida por Trotsky para
abranger um fenômeno mais complexo. Se na fase do capitalismo concorrencial
países mais atrasados podiam passar pelas mesmas fases de desenvolvimento e
até ultrapassar os países mais desenvolvidos isso não seria mais possível sob o
imperialismo, dada a concentração e centralização crescentes do capital. Nos países

medicina, a patentização dos ativos naturais para uso terapêutico, a privatização dos espaços da
natureza, já significaram a expropriação da saúde enquanto bem coletivo.
27

atrasados, então, passariam a conviver setores atrasados e modernos,


desenvolvidos e subdesenvolvidos (Bottomore, 2011, p.99). Esses países “assimilam
as conquistas materiais e ideológicas dos países avançados”, seu desenvolvimento
“conduz, necessariamente, a uma combinação original das diversas fases do
processus histórico” (TROTSKY, 1977, p.30).
A questão é que a combinação entre moderno e arcaico que leva a distintas
formas de expropriação em um mesmo país não compõem uma dualidade, um lado
de fora do capitalismo que justificasse a ideia de uma acumulação primitiva
permanente. O próprio Oliveira (2008, p.47) é um crítico das teorias duais afirmando
que “por detrás dessa aparente dualidade, existe uma integração dialética”. Ianni
(1989, p.75) afirma também a lógica de totalidade do modo de produção capitalista
mesmo nas suas descontinuidades:

(...) as descontinuidades e desigualdades não significam ausência de


integração global nem a existência de uma totalidade mecânica, que se
supera ou se resolve em antinomias sucessivas, como quer a teoria das
dualidades. O que há é uma sucessividade, no âmbito do processo de
incorporação e reintegração contínua da nação ao modo capitalista de
produção. Nessa sequência, as flutuações e desarticulações são produtos
necessários do tipo de racionalidade possível no sistema.

Fontes (2010, p.45) caminha na mesma direção dual de Oliveira afirmando


que “a suposição de que a „acumulação primitiva‟ tenha sido algo de „prévio‟,
„anterior‟, ao pleno capitalismo leva a suposição de que no seu amadurecimento,
desapareceriam as expropriações bárbaras de sua origem (...)”. O chamado da
autora é para que não se incorra numa análise ingênua de que o capitalismo
contemporâneo estaria “organizado” e “civilizado” por meio de uma sociedade
juridicamente regulada que excluiria formas “primitivas” de expropriação. Mas se é
verdade que a expropriação continua existindo sob o capitalismo sua forma seria da
mesma qualidade do que chama Marx de “acumulação primitiva”?
A autora aponta duas distintas formas de expropriação no mundo atual. A
primeira é a expropriação primária que incide sobre os trabalhadores da terra dando
continuidade a um processo crescente de urbanização. Assim, os dados de
migração de trabalhadores do campo para a cidade representariam a expropriação
de recursos sociais de produção dos trabalhadores rurais.
No entanto, o período de expansão do capitalismo tardio no pós-guerra trouxe
uma “conversão cada vez mais pronunciada dos empreendimentos agrícolas em
28

empreendimentos capitalistas” (Mandel, 1982, p.266), ou seja, uma centralização do


capital no campo, subsumindo a atividade agrícola, que reduziu os pequenos
empreendimentos de camponeses produzindo valores de uso para sua subsistência,
em síntese, uma industrialização crescente da agricultura. Ou seja, a urbanização
recente não explica em que medida esses trabalhadores rurais já se encontravam
expropriados no meio rural, trabalhando como “proletários agrícolas”, sem recursos
sociais para a produção de sua subsistência, mas assalariados do agronegócio.
Haveria ainda uma segunda forma de expropriação para a autora, a
expropriação secundária. Essa não é uma perda de propriedade dos meios de
produção, pois a maioria dos trabalhadores urbanos não mais os dispõem. Seria
uma expropriação de direitos trabalhistas e sociais historicamente conquistados que
impõe novas condições e abre novos setores para a extração de mais-valor. Fontes
(2010, p.58) atenta ainda para a expropriação contratual – exploração do trabalho
desprovido de vínculos, para a expropriação sobre os conhecimentos, bens coletivos
de várias ordens, e sobre o próprio corpo humano e a natureza com a patentização
do DNA e de diversas formas biológicas.
Essa dualidade na dinâmica da expropriação no capitalismo contemporâneo
também está presente na obra de Harvey (2009). Para o autor a tendência de
expansão permanente do capitalismo, necessária para que o capital encontre novos
espaços para se aplicar produtivamente e manter sua acumulação ampliada, pode
se dar geograficamente, pela inclusão de formações não-capitalistas, ou pela
expansão para novos setores que ainda não estejam completamente
mercantilizados como a educação ou a saúde. O autor localiza a acumulação
primitiva ou original como algo que já ocorreu e hoje seu processo se daria por
reprodução expandida, isto é, mediante a exploração de trabalho vivo em condições
de “paz, propriedade e igualdade”, ou seja, em certas condições de “normalidade” do
modo de produção capitalista. Ele não nega, porém, que exista uma expropriação de
características violentas, que se apropria desses “lados de fora” não mercantilizados
dentro de um mundo capitalista. Para não chamar primitivas ou originais essas
formas predatórias de acumulação, o autor passa a caracterizá-las como
acumulação por espoliação em contraposição a acumulação originada na
reprodução expandida.
29

O que a acumulação por espoliação faz é liberar um conjunto de ativos


(incluindo força de trabalho) a custo muito baixo (em alguns casos, zero). O
capital sobreacumulado pode apossar-se desses ativos e dar-lhes
imediatamente um uso lucrativo (HARVEY, 2009, p.124)

Ou seja, a reprodução expandida geraria um excedente de capital que


necessita novos espaços para se valorizar, sejam geográficos, sejam bens coletivos
não-mercantilizados. Mas essa acumulação por espoliação seria qualitativamente
diferente da acumulação primitiva na medida em que esta abre um caminho para a
reprodução expandida enquanto a primeira “faz ruir e destrói um caminho já aberto”
(HARVEY, 2009, p.135).
Enquanto Fontes (2010) constrói sua dualidade em termos de uma
expropriação primária que mantém a acumulação primitiva em curso na História e
uma expropriação secundária que avançaria sobre novos espaços para a
mercantilização, a dualidade de Harvey tem na acumulação por espoliação algo
semelhante a expropriação secundária mas uma reprodução expandida não como
sequência da acumulação primitiva mas como uma herdeira desta, qualitativamente
distinta, oriunda da exploração do trabalho pelo capital, do capitalismo em seus
espaços já mercantis.
Concordamos com Fontes que a forma como Harvey vai construir sua
dualidade leva existência de um espaço de normalidade, de um capitalismo
supostamente organizado, o que nos remete à tese de Offe, por onde se daria a
reprodução ampliada.
Por outro lado, a dualidade construída pela tese de Fontes (2010) também
não nos parece a melhor explicação de como se constitui a expropriação, e por
conseguinte, movimentos de retirada de direitos e precarização das condições de
vida da classe trabalhadora. Em primeiro lugar porque o texto de Marx coloca sim,
como já citado, a acumulação primitiva como momento da constituição histórica do
modo de produção capitalista, ainda que o desenvolvimento do mesmo se dê não de
forma total, mas, desigual e combinada. Outro questionamento necessário é se a
retirada de direitos se constituiria como um processo de expropriação, entendendo a
expropriação como retirada de condições de subsistência autônomas, não
mercantilizadas. Ou seja, para afirmar que a perda de direitos, na forma de serviços
públicos, que ocorre atualmente, é um processo de expropriação, deve-se supor que
30

no período anterior esses direitos eram esferas socializadas da riqueza socialmente


produzida, lados de fora do circuito do valor.
Adotaremos a ideia de aumento brutal da subsunção do trabalho ao capital,
levando a uma situação de subsunção total, nos termos de Arantes (2014), que
associa modos de apropriação de excedente econômico propriamente capitalistas
com formas de apropriação não-capitalistas ou extraeconômicas. Essa
superlativização da apropriação extraeconômica, que atualiza mecanismos pré-
capitalistas de apropriação de excedente, como a “exploração tributária”, nos
profícuos termos de O´Connor (1977)6, não significa, porém, sinal de fraqueza ou
ausência de capitalismo. Como sinaliza Wood (2014) essa apropriação
extraeconômica responde, ao contrário, às necessidades de um capitalismo maduro
e, acrescentaríamos, em crise.
Nossa tese sobre a privatização dos serviços garantidos pelo Estado como
direito social pressupõe que, ainda que o salário indireto possa devolver parte da
mais valia aos trabalhadores, o serviço de saúde, como os demais serviços sociais
públicos, já é parte do circuito do valor e não um bem coletivo socializado ou um
antivalor como quer Oliveira (1998).
Acreditar que a mercantilização só ocorre quando o Estado deixa de prover
esses serviços pode levar ao raciocínio de Oliveira, de que o Estado seria um
espaço de desmercantilização. Em “O surgimento do anti-valor” o autor defende que
no Estado de Bem Estar, do momento de ascenso do capitalismo tardio na
concepção de Mandel, a lei do valor não opera na medida em que o fundo público
passa a atuar, na concessão do salário indireto, como anti-mercadoria e anti-valor. A
crítica a essa análise foi feita por Behring (2008). Para a autora o fundo público
participa “de forma direta e indireta do ciclo de produção e reprodução ampliada do
valor” por meio de “subsídios, negociação de títulos públicos, de garantias de
condições, de financiamento, e de reprodução mesma da força de trabalho como
fonte de criação de valor” (Behring, 2008, p.54). O que o capitalismo tardio traz,
então, de novo é a necessidade do fundo público para o crescimento das forças
produtivas, na medida em que estão esgotadas as possibilidades de auto-
reprodução do capital, algo como uma participação in flux do fundo público em todo
o circuito do valor.

6
Essa referência a O‟Connor também foi citada por Behring (2010).
31

Paulani (2010) afirma que momentos de predominância do capitalismo


financeiro, como o atual, estreitam as relações entre poder e dinheiro. O capitalismo
rentista é, segundo a autora, avesso ao mercado, à concorrência, ao risco capitalista
e à ausência do Estado. Então, o Estado, com negócios e recursos volumosos, é
atrelado ao rentismo, por ser a “forma mais segura de aliar retorno elevado e liquidez
a segurança” (PAULANI, 2010, p. 131).
No caso da saúde, mesmo um sistema público universal, gerenciado e
financiado pelo Estado, compra do setor privado equipamentos e medicamentos e o
contrata para obras de reforma e ampliação da rede de serviços. Estimula, ainda, o
consumo individual de mercadorias relacionadas à saúde.
Por essa perspectiva, ainda que os serviços oferecidos pelo Estado a título de
direito cumpram um importante papel educativo para a luta dos trabalhadores na
negação da mercantilização da vida, objetivamente só podem funcionar como uma
redução indireta na extração de mais valia, ou seja, redução da taxa de exploração,
e mesmo assim mediante uma estrutura tributária (mecanismo de formação do fundo
público) progressiva, isto é, que taxa o lucro e a propriedade mais do que os
salários. Se não for dessa forma, e no capitalismo atual a regressividade é traço
marcante dos sistemas tributários (Salvador, 2010), o salário indireto é financiado
pelo salário direto, ou seja, o serviço público é auto-financiado pelos trabalhadores
por meio do trabalho necessário, impossibilitando mesmo uma restrita redistribuição
da riqueza entre capital e trabalho. No máximo se opera uma distribuição da renda
de forma horizontal, entre vários segmentos da própria classe trabalhadora.
A discussão realista do papel da política social é fundamental para que não se
ressuscite, com ou sem consciência, uma perspectiva de que a ampliação do serviço
público enquanto direito possa em si significar um caminho para a socialização da
riqueza na sociedade, tornando os ativistas e teóricos em “viúvas” de um Estado
supostamente de Bem Estar Social.
Mesmo quando oferecidos gratuitamente os serviços sociais participam da
valorização do capital indiretamente, e quando oferecidos pelo capital, uma forma
direta de mercantilização, passam esses serviços a produzir mais valia, como
discutiremos na próxima sessão.
32

1.1 A questão dos serviços no capitalismo tardio

Debater a possibilidade de serviços produtivos no capitalismo, à luz da teoria


marxiana e das polêmicas na tradição marxista, pressupõe a compreensão do que é
serviço e do que é trabalho produtivo em Marx. Para Marx, o que caracteriza o
serviço é que

o efeito útil só pode ser usufruído durante o processo de produção; não


existe como objeto de uso diverso desse processo, objeto que funcionasse
depois de ser produzido, como artigo de comércio, que circulasse como
mercadoria (2011, p.65).

Iamamoto (2007, p.420) descreve o produto como mercadoria “dotada de


realidade corpórea” ou serviço “que não assume uma configuração objetiva e uma
existência separada do seu prestador” determinações que se referem ao valor de
uso, sendo indiferente para o valor a forma em que os produtos se apresentam. Para
Dúmenil, a diferença entre serviços e mercadorias é, apenas, que os primeiros têm
seu uso simultâneo à produção, enquanto a mercadoria tem materialidade, “o que
não muda nada de fundamental, exceto que os serviços não podem se acumular,
como as mercadorias” (2011, p.233). Wood (2014, p.132) também concorda que “o
trabalho pode produzir mais-valor para o capital não apenas na produção de bens
materiais, mas também na prestação de serviços, e isso significa que, mesmo no
capitalismo industrial, o trabalho “produtivo” não está necessariamente confinado na
produção industrial”.
Nesse sentido, do ponto de vista do valor, não existe algo como “setor de
serviços”. Trabalhos que produzem, do ponto de vista concreto, resultados objetivos
caracterizados como serviços podem ser parte, indistintamente, do capital comercial,
produtivo, bancário, financiados pelo fundo público ou por meio da renda para
atividades pessoais.
Mesmo partindo desse pressuposto, permanece polêmico entre os autores da
tradição marxista se serviços podem ser produtivos, isto é, se podem gerar mais-
valia. Inicialmente porque a própria definição de trabalho produtivo “está tão cheia de
desacordos e confusão conceitual (...) tanto entre marxistas como entre estes e seus
adversários” (RUBIN, 1980, p.277).
33

Para alguns autores como Mandel a determinação material do produto é


essencial para caracterizar o trabalho como produtivo (Cotrim, 2012). Segundo o
autor “a definição de trabalho produtivo como trabalho produtor de mercadorias, que
combina trabalho concreto e trabalho abstrato exclui logicamente os bens não
materiais da esfera da produção de valor” (MANDEL apud COTRIM, p.19).
Rubin (1980) aponta que, ao definir o trabalho como produtivo, Marx abstrai
seu conteúdo, caráter e resultado concreto, tratando o trabalho apenas do ponto de
vista de sua forma social. Não diferencia, portanto, se a necessidade atendida é
material ou espiritual, se o trabalho é físico ou intelectual, se gera uma mercadoria
material ou se é consumido no momento de sua produção, como serviço.
Segundo Rubin (1980), o que determina se um trabalho gera ou não mais
valia depende de ser organizado sobre princípios capitalistas. Nos termos de Cotrim
(2012, p.194), “conquanto o trabalho esteja subsumido ao capital, mesmo que esta
subordinação seja apenas formal, este trabalho é produtivo”. Essa ideia fica clara no
famoso exemplo dado por Marx no primeiro livro d‟ O Capital (2009, l.1, v.2, p.578):

Utilizando um exemplo fora da esfera da produção material: um mestre-


escola é um trabalhador produtivo quando trabalha não só para desenvolver
a mente das crianças, mas também para enriquecer o dono da escola. Que
este invista seu capital numa fábrica de ensinar ou numa fábrica de
salsichas em nada modifica a situação. O conceito de trabalho produtivo
não compreende apenas uma relação entre atividade e efeito útil, entre
trabalhador e produto do trabalho, mas também uma relação de produção
especificamente social, de origem histórica, que faz do trabalhador o
instrumento de criar mais-valia.

Marx vai ainda aprofundar esse debate no capítulo IV – inédito d‟ O Capital.


Fica evidente que não é a qualidade, ou valor de uso, do trabalho que determina se
este pode ou não gerar mais-valia, mas a forma como esse trabalho é explorado.

Um trabalho de idêntico conteúdo pode ser, portanto, produtivo e


improdutivo (...) os trabalhos que só se desfrutam como serviços, não se
transformam em produtos separáveis dos trabalhadores – e, portanto,
existentes independentemente deles como mercadorias autônomas – ainda
que se os possa explorar de maneira diretamente capitalista (...). O mesmo
trabalho, por exemplo, jardinagem, alfaiataria, etc, pode ser realizado pelo
mesmo trabalhador a serviço de um capitalista industrial ou de um
consumidor direto. Em ambos os casos estamos ante um assalariado ou
diarista, mas, num caso trata-se de trabalhador produtivo, e noutro
improdutivo, porque no primeiro caso esse trabalhador produz capital, e no
outro não; porque num caso seu trabalho constitui um momento do
processo de autovalorização do capital, e no outro não (MARX, 1978, p.75 e
76).
34

Seguindo o mesmo raciocínio servidores públicos não são trabalhadores


produtivos, pois, seu trabalho “está organizado sobre os princípios de direito público,
e não sob a forma de empresas capitalistas privadas” (RUBIN, 1980, p.283). São,
ainda, improdutivos serviços ou mercadorias compradas diretamente do produtor
pelo consumidor, com sua renda, como o caso, em geral de serviços domésticos ou
feiras de artesanato.
Porém, pode-se argumentar que, mesmo se organizado pelo capital, há uma
diferença entre o trabalho na esfera da produção, que gera mais valia, e o trabalho
na esfera da circulação, improdutivo para o capital. Essa formulação aparece no livro
II d‟O capital, quando Marx vai tratar do processo de circulação de mercadorias.
Marx argumenta que o dinheiro transmutado nas mercadorias força de trabalho e
meios de produção passa a esfera da produção na forma de capital produtivo (P)
voltando a circulação na forma de mercadoria, conservando o capital adiantado
acrescido de mais valor. Segundo Marx:

o produto de P é considerado coisa material diversa dos elementos do


capital produtivo, objeto que tem existência destacada do processo de
produção e possui forma de uso diversa da dos elementos da produção. É o
que se dá sempre que o processo de produção é um objeto. (...) Há,
entretanto, ramos industriais autônomos, em que o resultado do processo
de produção não é nenhum produto, nenhuma mercadoria. (2011, p.64,
grifo nosso)

Nessa passagem, Marx deixa claro que não é necessária a materialidade do


produto para a efetivação de processo de produção capitalista. Segue afirmando, no
entanto, que nesses casos “o único setor importante, do ponto de vista econômico, é
o de transportes e o de comunicações” (2011, p.64). Ao fazer essa afirmação, Marx
não atribui a possibilidade do transporte e da comunicação serem serviços
produtivos nenhuma característica inerente ao seu valor de uso, mas aponta que
naquele momento histórico, só são relevantes economicamente esses setores.
Assim, fica claro, que o autor não localiza o conjunto de serviços
necessariamente na esfera da circulação. Expõe inclusive uma fórmula para essa
“indústria” de serviços expressa em D- M <FMp...P- D‟, no qual desaparece entre P e
D´ a forma mercadoria do capital.
Assim, não é porque não produz modificações materiais no produto que o
trabalho é improdutivo, mas se é empregado pelo capital, e se isso se dá na fase de
produção ou na fase de circulação, como o caso do comércio e dos bancos. Na
35

circulação, a função do trabalho se resume a transferir o direito de propriedade de


uma pessoa para a outra, “é apenas uma transformação do valor sob a forma-
mercadoria para a forma-dinheiro, ou inversamente, apenas uma realização do valor
produzido” (RUBIN, 1980, p.288).
A concepção de trabalho produtivo, excluindo qualquer tipo de serviço,
aparece de forma clara em Mandel quando elabora a ideia de supercapitalização,
trazendo conseqüências para essa categoria (1982, p.272)

Enquanto o capital era relativamente escasso, concentrava-se normalmente


na produção direta de mais-valia nos domínios tradicionais de produção de
mercadorias. Mas se o capital gradualmente se acumula em quantidades
cada vez maiores, e uma parcela considerável do capital social não
consegue nenhuma valorização, as novas massas de capital penetrarão
cada vez mais em áreas não produtivas, no sentido de que não criam
mais-valia, onde tomarão o lugar do trabalho privado e da pequena
empresa (...). (grifo nosso)

Essas áreas são, para Mandel, a esfera da circulação, dos serviços e da


reprodução que não criariam valor, mas, poderiam levar a um aumento da massa de
mais-valia das seguintes formas: a- assumindo parcialmente funções produtivas do
capital industrial como o transporte das mercadorias; b- acelerando a rotação do
capital produtivo circulante por meio do crédito e do comércio; c- reduzindo os custos
indiretos de produção no caso da infra-estrutura; d- substituindo serviços privados
para rendimento individual pela venda de mercadorias (ex. substituição do trabalho
de empregados domésticos por aspiradores de pó, máquinas de lavar e etc).
Para Mandel, o capital monopolista não se opõe a entrada de capital no setor
de serviços, porque este auxilia o capital produtivo, abre espaço para novos
produtos e evita o excesso de capital na disputa por superlucros na esfera produtiva.
Mas por esse raciocínio, em última análise, não seria possível uma mercantilização
de fato dos serviços, que nunca produziriam lucros, mas, pelo contrário
“incontestavelmente reduzem a taxa média de lucros, porque uma massa maior de
mais-valia deve somar-se a massa de capital social investido, que aumentou ainda
mais do que a quantidade de mais-valia” (MANDEL, 1982, p.272).
Assim, o crescimento dos serviços produtivos, não corresponde ao que
Mandel descreve no seu debate sobre a supercapitalização, que, para o autor,
ocorre na passagem de capital de setores produtivos para não-produtivos,
reduzindo, com isso, o volume de capital presente no processo de valorização, o que
36

corresponde, portanto, na nossa interpretação, ao crescimento do capital comercial e


bancário. A própria ideia de industrialização dos serviços, não corresponde, para o
autor, ao crescimento dos serviços como esfera de valorização do capital, mas à
substituição de serviços por “coisas”.

A industrialização da esfera da reprodução constitui o ápice desse processo.


(...) A televisão mecaniza a escola, isto é, a reprodução da mercadoria força
de trabalho. (...) A faxineira, a cozinheira e o alfaiate particulares não
produzem mais-valia; mas a produção de aspiradores de pós, sistemas de
aquecimento central, eletricidade para consumo privado e refeições pré-
cozidas de produção industrial são uma forma de produção capitalista direta
de mercadorias e mais-valia, como qualquer outro tipo de produção
capitalista (Mandel, 1982, p.272).

Netto amplia as possibilidades da supercapitalização em relação a


perspectiva de Mandel. Além da passagem de capital para setores improdutivos
(com a complexificação de mecanismos de distribuição, propaganda e etc e sem
dúvida a esfera financeira no período mais recente) acrescenta a emergência da
indústria bélica e a “migração de excedentes por cima dos marcos estatais e
nacionais” (p.22), ou seja, o avanço geográfico do capital para novos mercados e
para novas áreas de produção. À indústria bélica, acrescentaríamos a esfera dos
serviços produtivos relacionados aos direitos sociais, que eram no período anterior,
sobretudo na Europa, eminentemente públicos e não diretamente mercantis.
Partindo desses pressupostos e dialogando com as polêmicas, a produção de
serviços como direito, portanto improdutivo ou como serviço produtivo, produtor de
valor e mais valia, no qual a saúde está incluída, se modifica de forma histórica e por
algumas mediações. Em primeiro lugar é pela correlação de forças na luta de classe,
pela capacidade de reivindicação e mobilização dos trabalhadores, que essas
necessidades sociais se afirmam como direitos, combinada com as condições
objetivas do capitalismo, em seus momentos de ascenso ou de crise, que essas
políticas irão tomar forma e amplitude.
Mesmo assim, sendo oferecidos pelo Estado, os serviços de saúde ainda se
manteriam dentro do circuito do capital, aí sim nos termos de Mandel (1982):
acelerando a rotação do capital por meio da compra de materiais do capital privado
pelo Estado (medicamentos, equipamentos etc), abrindo espaço para novos
produtos, reduzindo os custos da produção como salário indireto. Mas em outros
momentos, quando o excedente de capital necessita de novos espaços de
37

valorização e os trabalhadores não conseguem reagir evitando a retirada ou redução


desses direitos, e o neoliberalismo é momento exemplar, os serviços passam de
auxiliares indiretos para diretamente espaços de valorização do capital.
Hoje, no momento de crise do capitalismo tardio, muitos outros setores, além
dos transportes e da comunicação, no campo dos serviços produtivos, tornam-se
economicamente relevantes. Setores historicamente improdutivos como a medicina,
exercida em outros momentos hegemonicamente como profissão liberal numa
relação direta entre o trabalhador médico e o consumidor de seus serviços, passam
ao domínio do capital, parte do fenômeno de supercapitalização (Mandel 1982), nos
termos ampliados de Netto (2007).
Vejamos o exemplo concreto de um hospital privado. Essa não é uma
instituição de comércio, na esfera da circulação, ainda que possa comercializar e
consumir alguns produtos. O consumidor vai a essa instituição não para comprar
equipamentos e medicamentos, o que faria numa farmácia, mas para comprar
“cuidados de saúde”: consultas, exames, diagnósticos, intervenções cirúrgicas. O
consumidor paga por esse serviço não diretamente aos profissionais de saúde, mas,
à empresa capitalista, que se apropria de parte desse valor, na forma de mais valia.
Os profissionais recebem da empresa parte do valor que produzem, na forma de
salário. O mesmo ocorre numa escola privada, onde o consumidor não vai comprar
livros, o que faria numa livraria, mas aulas, que são consumidas imediatamente no
momento de sua produção pelo professor.
Dessa forma, ficariam fora da esfera do trabalho produtivo, ou seja, da
produção de mais-valia, produtos e serviços produzidos por indivíduos para sua
subsistência e pagos diretamente pelo consumidor com sua renda e os produtos e
serviços produzidos pelo Estado, financiados pelo fundo público que não tem como
objetivo o lucro, independentemente de seu conteúdo como trabalho concreto.
Assim, fazem parte do setor saúde que pode ser produtivo, gerando mais
valia, mercadorias como medicamentos e equipamentos, mas também serviços
médicos, de enfermagem, nutrição, serviço social entre outros, consumidos no
momento que são produzidos, o que os caracteriza como serviços, mas, não
necessariamente como improdutivos. Os cuidados de saúde (bem como a
educação) tornam-se, assim, serviços produtivos, valores de troca que contém mais
valia.
38

Em síntese, afirmamos que no capitalismo quando oferecidos pelo Estado os


serviços sociais participam indiretamente da valorização do capital. Quando
oferecidos diretamente pelo capital, os serviços sociais tornam-se fontes diretas de
mais valia, muitas vezes subsidiados pelo fundo público.

1.2 Subsunção real dos serviços ao capital: o caso da saúde

Nossa hipótese de trabalho é que aquilo que vem sendo chamado de forma
genérica de empresariamento dos serviços de saúde e educação corresponde ao
que Marx chama de subsunção real, como desenvolvimento histórico da sociedade
capitalista. Isso se materializa no controle dos processos de trabalho, reduzindo a
autonomia dos trabalhadores, com o objetivo de ampliar a mais valia relativa por
meio do aumento da produtividade do trabalho nos serviços. No caso do Estado, o
aumento da produtividade corresponde à economia de fundo público, que pode ser
utilizado em esferas que ajudam na valorização do capital, como quando o Estado
atua como consumidor de produtos do setor privado.
Investigaremos a proficuidade da hipótese a partir do caso dos serviços de
saúde, por ser o objeto do nosso trabalho 7. Cordeiro (1984, p.15) analisa o que ele
chama de “penetração das relações capitalistas de produção na prática médica” ou
“processo de capitalização da medicina”, como passagem da medicina liberal,
conduzida por profissionais autônomos, ao assalariamento dos profissionais. Apesar
de centrado no trabalho dos médicos, cremos ser possível trabalhar com suas ideias
estendendo-as, com algumas mediações, para o conjunto dos trabalhadores de
saúde, precisando um pouco mais as categorias do autor.
Para Marx, existem três formas de subsunção do trabalho ao capital que
representam o desenvolvimento histórico do capitalismo mas seguem se
reproduzindo dentro desse modo de produção, ainda que os dois primeiros de forma
secundária. A primeira forma é a transitória “o capital já existe desempenhando
determinadas funções subordinadas, mas ainda não em sua função dominante”.

7
Na minha dissertação de mestrado intitulada “Análise do REUNI: uma nova expressão da
contrarreforma universitária brasileira” já havia realizado um estudo no mesmo sentido sobre o
ensino superior no Brasil. Parte da dissertação está publicada em Cislaghi (2012).
39

Nesse caso não há relação direta de assalariamento, “o produtor direto mantém-se


como vendedor de mercadorias” ainda que seja extorquido trabalho excedente pelo
capital (1978, p.54).
Podemos associar a remuneração a trabalhadores de serviços de saúde por
planos de saúde, medicina de grupo e outras formas de empresas de pré-
pagamento a essas formas transitórias. O profissional mantém seu consultório e
suas formas tradicionais de organização do trabalho mas o capital compra seus
serviços extraindo trabalho não pago. O que permitia a independência dos
produtores de serviços de saúde eram o domínio do conhecimento, os recursos
materiais necessários e a captação de seus clientes. Além da perda da capacidade
de possuir seus instrumentos de trabalho, a incapacidade de compra direta dos
consumidores dos serviços limita essa independência (Donnangelo, 1975, p.76)
A segunda forma de subsunção é chamada de formal. Nesse caso há
exploração direta do trabalho alheio, com o capitalista enquadrado como dirigente,
condutor. O trabalhador vende sua força de trabalho ao capitalista numa relação de
assalariamento. Na subsunção formal, porém, não há mudança no processo de
trabalho preexistente. O capital pode prolongar a jornada de trabalho para aumentar
a extração de mais-valia absoluta, mas apenas isso. A subsunção formal do trabalho
nos serviços de saúde se intensifica no Brasil com a organização do Instituto
Nacional de Previdência Social (INPS) durante a ditadura civil-militar8 (Cordeiro,
1978, p. 113). Com o suporte do Estado, o crescimento das instituições hospitalares
privadas amplia o assalariamento dos médicos e profissionais de saúde e a
subsunção formal do seu trabalho. No início da década de 1970, 82% dos médicos
já trabalhavam com alguma forma de assalariamento, mesmo que associadas a
consultórios autônomos (Donnangelo, 1975, p.83).
Mas a forma de subsunção especificamente capitalista é chamada de
subsunção real do trabalho ao capital. As forças sociais do trabalho por meio da
cooperação, divisão sociotécnica, aplicação da maquinaria, transformação do
processo produtivo pela aplicação consciente da ciência, bem como a ampliação da
escala de produção são apropriados pelo capital como formas de ampliação da
produtividade do trabalho e expropriação de mais valia relativa (1978, p.55). Esse é
o processo em curso nos serviços de saúde no nosso país.

8
Aprofundaremos o debate histórico sobre a política de saúde no Brasil no terceiro capítulo desse
trabalho.
40

Duas das principais formas de aumento da produtividade nos serviços de


saúde são a ampliação do uso de equipamentos para exames e medicamentos 9. O
exame e o medicamento substituem um diagnóstico elaborado reduzindo o tempo
das consultas (Cordeiro, 1980). Percebe-se nesses mecanismos a ampliação do uso
de maquinaria e a apropriação da ciência, o que além de aumentar a produtividade
nos serviços ainda favorece as indústrias produtoras de equipamentos e
medicamentos. Leys (2004), em trabalho que descreve o processo de privatização e
subsunção real dos serviços no Serviço Nacional de Saúde Britânico (NHS), na
década de 1980, afirma que os serviços podem ser racionalizados segundo
princípios tayloristas das seguintes formas: utilização de trabalhadores mais baratos
e menos capacitados para ações menos especializadas e introdução de máquinas
para aumentar a produtividade de trabalhadores especializados (como cirurgias por
controle remoto) e permitir que trabalhadores capacitados sejam substituídos por
trabalhadores sem capacitação.
Outra forma de aumentar a produtividade nos serviços de saúde é a
crescente divisão sociotécnica do trabalho, ampliando a cooperação entre diversos
profissionais, sobretudo nas grandes unidades hospitalares. Essa divisão também se
deu pela ampliação das especialidades médicas. Donnangelo (1975, p.70) afirma
que os hospitais são fenômenos muito antigos mas não limitavam a independência
dos médicos na medida em que era um prolongamento e não uma alternativa aos
consultórios privados. Seu sentido se altera quando a utilização dos meios de
trabalho ali concentrados torna-se uma imposição, dada a complexificação das
técnicas o que caracteriza a perda dos meios de produção pelos trabalhadores de
saúde.

Em outros termos: a complexidade pelo aprofundamento da informação, a


consequente introdução de novas formas de diagnóstico e terapêutica, a
necessidade de cooperação entre especialistas para a realização da
totalidade de uma ação médica, a qualidade científica e o custo do
equipamento têm acarretado o trabalho em organizações amplas, das quais
o hospital constitui a melhor expressão (DONNANGELO, 1975, p.55)

Essa descrição de Donnangelo data da década de 1970, quando, segundo


Cordeiro (1978), iniciava-se o processo de subsunção do trabalho ao capital na

9
Para Cordeiro (1978, p.198) “os medicamentos ocupam lugar de símbolos e representações que
obscurecem os determinantes sociais das doenças, iludem os indivíduos com a aparência eficácia
científica e, como mercadoria, realizam o valor e garantem acumulação de um dos segmentos mais
lucrativos do capital industrial”.
41

saúde. Vejamos então exemplos atuais desse aprofundamento da subsunção real


do trabalho em serviços de saúde pelo capital nas grandes instituições hospitalares.
O Hospital Albert Einstein 10 prevê em 2014 um faturamento de 2 bilhões de
reais. Nos últimos 5 anos cresceu 15% em média, alcançando 24% em 2011. Seu
principal objetivo atual é reduzir a permanência dos pacientes. Segundo reportagem
da revista Época Negócios (2014, “reduzir o tempo de permanência é uma obsessão
em hospitais modernos (...) é isso que aumenta a rentabilidade do negócio”. Além de
reduzir o tempo de tratamento o hospital ainda reduz o tempo entre a alta médica e
a saída do paciente do quarto. Esse intervalo no último ano caiu de 1 hora e 15
minutos para 41 minutos pela aceleração do tempo de higienização dos leitos e
localização dos trabalhadores responsáveis pelo deslocamento dos pacientes por
meio de sinais de rádio. “Quase todas as ações no Einstein são medidas, no melhor
estilo de Taylor (...)” (Época Negócios, 2014, p.44). Em contrapartida, os médicos
denunciam que a taxa de ocupação do hospital vive à beira do recomendado pelas
organizações internacionais, o que favorece o estresse dos trabalhadores e o
surgimento de erros. Para garantir essa velocidade o hospital investe em
equipamentos de alta tecnologia11, sistemas de gestão hospitalar desenvolvidos por
empresas americanas e remunera seus trabalhadores por produção. O hospital
ainda compensa setores deficitários como a maternidade e o pronto-socorro com
outros lucrativos como a oncologia (Época Negócios, 2014).
Já a Rede D‟Or, de hospitais privados, implantou um projeto nas suas
unidades de pronto-atendimento chamada Smart Track 12. A rede de hospitais se
orgulha de comparar o sistema à Fórmula 1:

10
Existem várias complexidades na análise de instituições hospitalares no Brasil hoje. O Albert
Einstein, por exemplo, é considerado instituição filantrópica e sem fins lucrativos, além de atuar
como gestor de unidades públicas. Aprofundaremos o debate sobre essas formas jurídicas no
quarto capítulo desse trabalho. Nesse momento nosso foco são as formas de aumento da
produtividade do trabalho, o que não é afetado pelas duvidosas formas jurídicas adotadas por essas
instituições.
11
“Constante investimento em tecnologia: o Einstein possuía, já na década de 1970, os dois primeiros
equipamentos de ressonância magnética da América Latina. E continua na liderança, tendo
adquirido, em julho de 2007, o Da Vinci Sirurgical System – um sistema que traduz, em tempo real,
os movimentos das mãos de um cirurgião, em movimentos milimetricamente precisos, em tempo
real”. Em: http://www.einstein.br/Hospital/Paginas/sobre-o-hospital.aspx. Consulta em 20/06/2014.
12
“O conceito do Smart Track foi baseado no modelo lean manufacturing, utilizado por muitas
fábricas com objetivo de reduzir sete tipos de desperdícios: superprodução, tempo de espera,
transporte, excesso de processamento, inventário, movimento e defeitos”. Em:
http://saudeweb.com.br/32095/rede-d-or-implanta-modelo-smart-track-nos-32-hospitais/. Consulta
em: 20/06/2014.
42

Olho no monitor, alguém acaba de chegar. A equipe está a postos, cada um


sabe exatamente o que fazer. A primeira etapa é cumprida à risca.
Imediatamente, são acionados os responsáveis pela etapa seguinte. Todo o
processo é monitorado com o maior cuidado possível, nada pode sair
errado. Finalmente, o último procedimento é realizado sem maiores
problemas, e nosso personagem pode seguir em frente. Parece até um
boxe de Fórmula 1, mas não é. Trata-se da atual rotina dos prontos-
socorros dos hospitais da Rede D‟Or São Luiz que adotaram um novo
sistema de atendimento ao paciente não grave, batizado de Smart Track. As
semelhanças com a rotina de um autódromo em dia de grande prêmio são
evidentes. Coincidência? Nem tanto. (Em:
http://www.saoluiz.com.br/sobre_o_sao_luiz/paginas/Revista_DNA/materia/
Revista_SuaSa%C3%BAde_05/Smart_Track_Corrida_pela_efici%C3%AAn
cia.aspx. Consulta em: 20/06/2014)

Ainda segundo a Rede D‟Or todos os procedimentos são rigidamente


padronizados, a equipe trabalha de forma integrada e uma pessoa (um gerente) é
responsável por designar a função de cada médico. Nada a dever à organização de
uma grande unidade fabril. Com isso reduz-se de uma hora e meia para vinte
minutos o tempo de espera de pacientes não graves, aumentando, portanto, a
quantidade de atendimentos por dia.
No caso da enfermagem outros exemplos têm sido implementados para
acelerar seu trabalho como a utilização de tablets nos leitos no Hospital Samaritano.
“Antigamente as enfermeiras dedicavam um maior tempo à realização de trabalhos
administrativos. Agora, como as solicitações são feitas junto ao leito, quando ela
volta para o posto não precisa se dedicar a essa atividade” 13. As prescrições são
repassadas imediatamente ao setor de farmácia e podem ser consultadas pelas
pulseiras dos pacientes que possuem códigos de barra.
É claro que a introdução de novas tecnologias a serviço da intensificação do
trabalho não podem eliminar por completo o trabalho vivo 14, nem no caso dos
serviços nem na produção material de mercadorias. Mas os exemplos que
apontamos acima demonstram o empenho do grande capital no setor de saúde em
ampliar a mais valia relativa, reduzindo paulatinamente o trabalho necessário pela

13
Em: http://saudeweb.com.br/27712/samaritano-aumenta-produtividade-com-uso-de-tablets/.
Consulta em: 20/06/2014.
14
O fetiche da mecanização completa na saúde é bem retratado no filme estadunidense Elysium
(2013, dirigido por Neill Blomkamp), no qual uma única máquina é responsável por todo o processo
de diagnóstico e cura de todas as doenças! Não é difícil imaginar que apenas a classe dominante,
mesmo na ficção, tem acesso a essa tecnologia o que justifica todos os conflitos desenvolvidos no
filme.
43

sua substituição tanto pelo trabalho morto dos equipamentos e medicamentos como
pela reorganização de processos de trabalho coletivo.
Não significa, também, que ao lado dessas formas de subsunção real do
trabalho nos serviços de saúde não sigam existindo formas transitórias e formais de
subsunção que mantém, de forma cada vez mais residual, a prática liberal das
profissões da saúde.
Reafirmamos ainda que é apenas nas instituições privadas, que tem como
objetivo a acumulação de capital, que a mais valia relativa é o objetivo da
intensificação do trabalho. Quando essa intensificação é reproduzida em instituições
públicas o objetivo central é a economia no gasto com fundo público, sobretudo com
força de trabalho, o que permite que esses recursos possam, entre outras coisas,
serem apropriados pelo capital, por exemplo, na compra de serviços, equipamentos
e medicamentos.
Uma última observação importante é que mesmo em hospitais privados seus
lucros não derivam apenas de extração de mais valia na produção de serviços mas
também da comercialização de medicamentos e materiais como órteses e próteses,
no qual os ganhos são de origem comercial.
No próximo capítulo analisaremos as características centrais do capitalismo
atual e as particularidades brasileiras nesse processo. No terceiro capítulo
retomaremos o debate do setor saúde à luz dos pressupostos teóricos e dos
determinantes econômicos, políticos e sociais discutidos nesses dois capítulos
iniciais.
44

1 O CAPITALISMO E SUAS CRISES

Nesse capítulo iremos analisar a dinâmica do capitalismo contemporâneo,


mergulhado, como é próprio ao seu metabolismo, em mais uma crise. Para essa
compreensão utilizaremos a noção de capitalismo tardio, conforme desenvolvida por
Mandel (1982) dialogando com outros autores do campo marxista. Para o autor o
desenvolvimento do capitalismo pode ser explicado na ação de 6 variáveis,
parcialmente independentes que se expressam na alteração das taxas de lucro.
Essas variáveis são: a composição orgânica do capital, a distribuição do capital
constante entre capital fixo (máquinas) e capital circulante (matérias-primas), o
desenvolvimento da taxa de mais-valia, o desenvolvimento da taxa de acumulação
(diferença entre mais-valia consumida produtiva e improdutivamente),
desenvolvimento da rotação do capital e as relações de troca entre os dois
departamentos 15. Todas essas variáveis sofrem o efeito da luta de classes sobre
suas tendências gerais 16 (Mandel, 1982, p.26).
Sob o efeito pluricausal dessas variáveis, o capitalismo desenvolve-se numa
sucessão de ciclos de crescimento e estagnação denominado, em Mandel, “ondas
longas”. Nas suas fases ascendentes, a aceleração da acumulação gera um
aumento da taxa de lucro que, com o passar do tempo, tornará mais difícil a
valorização do capital total. Surge a crise de superacumulação, isto é, o capital
existe relativamente em demasia e não consegue atingir a taxa média social de lucro
esperada. A superacumulação de capitais está associada a uma superprodução
relativa de mercadorias, ou seja, “não havia poder de compra disponível para
adquiri-las ao preço de produção, isto é, a um preço que fornecesse a seus
proprietários o lucro médio esperado” (MANDEL, 1990, p.212) o que decorre do
subconsumo das massas, consequência da sua pauperização. As crises capitalistas,
portanto, não se relacionam à escassez absoluta da produção de valores de uso,
15
Mandel refere-se ao departamento produtor de meios de produção e o produtor de meios de
consumo.
16
“Se a taxa de mais-valia vai efetivamente aumentar ou não dependerá, entre outros fatores, do
grau de resistência revelado pela classe operária aos esforços do capital para ampliá-la” (MANDEL,
1982, 26). O autor aponta ainda como fatores a situação histórica do exército industrial de reserva.
45

mas à incapacidade de realização da mais valia: “a crise é uma manifestação da


queda da taxa de lucros, ao mesmo tempo em que revela a superprodução de
mercadorias” (MANDEL, 1990, p.213).
Nessa fase de crise o capital é desvalorizado, parcialmente destruído e
subinvestido. “Assim, a totalidade do ciclo econômico capitalista aparece como o
encadeamento da acumulação acelerada do capital, da superacumulação, da
acumulação desacelerada de capital, e do subinvestimento” (MANDEL, 1982, 76).
No período de ascensão, a tecnologia passa por uma revolução. O capital
ocioso no período anterior volta a investir na produção. Aumentam a taxa de lucro e
a composição orgânica do capital. Contraditoriamente, a generalização dessa
tecnologia e da composição orgânica levará num período mais ou menos longo à
queda da taxa média de lucros e ao período de estagnação. Esses momentos de
recessão e fases de depressão “de retomada hesitante, desigual e não-cumulativa”
não são causados pelo acaso ou por causas exógenas, como o aumento do preço
do petróleo, “elas correspondem, ao contrário, à lógica imanente do sistema”
(MANDEL, 1990, p.7).
Mandel aponta quatro ondas longas na história do capitalismo. A primeira do
fim do século XVIII à crise de 1847, a onda longa da Revolução Industrial, marcada
pela difusão da máquina a vapor de fabricação artesanal ou manufatureira; a
segunda entre a crise de 1847 e o início da década de 90 do século XIX, onda longa
da primeira revolução tecnológica, caracterizada pela máquina a vapor de fabricação
mecânica; a terceira do início de 1890 à Segunda Guerra Mundial, a onda longa da
segunda revolução tecnológica, caracterizada pela generalização dos motores
elétricos e a combustão e a quarta e última iniciada na década de 40 do século XX,
onda longa da terceira revolução tecnológica, caracterizada pelo uso de
aparelhagem eletrônica e introdução gradual da energia nuclear. É esse último
período, que Mandel chama de capitalismo tardio, que teria entrado em sua fase
com tendência à estagnação no fim da década de 60 do século XX. Não significa
que nessa fase não possa haver momentos de recuperação, porém “menos febris e
mais passageiros” enquanto as crises cíclicas de superprodução são “mais longas e
profundas” (MANDEL, 1982, p.85).
A fase do capitalismo tardio sucede o imperialismo clássico, conforme descrito
por Lênin (2008). A virada do capitalismo para seu período imperialista/ monopolista
é dada pela intensa industrialização do período anterior, que levou à concentração
46

do capital em empresas cada vez maiores, centralizadas cada vez em menos mãos.
Essa concentração trouxe a necessidade de cada vez maiores montantes de capital
para a reprodução ampliada de capitais particulares, colocando a concorrência
intracapitais em outro patamar. Dessa concentração crescente do capital surgem os
monopólios. Segundo Lênin (2008, p. 21) “o aparecimento do monopólio devido à
concentração da produção é uma lei geral e fundamental da presente fase do
desenvolvimento capitalista”.
Segundo Netto (2001, p.20), a idade do monopólio “potencia as contradições
fundamentais do capitalismo (...) e as combina com novas contradições e
antagonismos”. As organizações monopólicas introduzem na lógica capitalista os
seguintes fenômenos, sumariados pelo autor: a. o preço das mercadorias e serviços
produzidos pelos monopólios tende a crescer; b. as taxas de lucro tendem a ser
mais altas nos setores monopolizados; c. a taxa de acumulação se eleva,
acentuando a tendência de queda da taxa média de lucro; d. o investimento se
concentra nos setores de maior concorrência, pelas dificuldade de investimento em
espaços com grande concentração de capital; e. a introdução de novas tecnologias
amplia a tendência à redução de trabalho vivo; f. os custos de venda sobem, pela
hipertrofia de setores de distribuição, ampliando espaços improdutivos.
Quando a concorrência absorve as determinações da monopolização, a
produção socializa-se entre seus poucos donos. Esses passam a monopolizar a
força de trabalho qualificada, as vias de transporte e a comunicação. Com isso
monopolizam-se também os inventos, o progresso técnico e as patentes. A
monopolização e a cartelização, controlando preços, organizando a produção e
distribuindo os lucros, passam a ser a base da vida econômica.
O imperialismo, chamado por Lênin a fase superior do capitalismo, modifica
também o papel dos bancos e do sistema creditício. De meros intermediários dos
pagamentos, os bancos têm suas operações ampliadas, dada a grande necessidade
de crédito dos monopólios. Essas operações também se concentram num reduzido
número de instituições financeiras. Poucos bancos passam a dispor de todo capital-
dinheiro dos monopólios, pequenos patrões e do salário dos trabalhadores.
O superdimensionamento do momento financeiro da economia com a fusão
do capital industrial com o capital bancário, por meio da posse de ações, torna o
primeiro cada vez mais dependente do segundo, o que também é característica
central do período monopolista. Em uma relação dialética os bancos também são
47

responsáveis pela aceleração da concentração do capital e da formação dos


monopólios, ao interferir ativamente no desenvolvimento da indústria, na inovação
tecnológica.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial e o advento da terceira revolução
tecnológica, o imperialismo clássico, descrito por Lênin, ganha novas determinações,
nos marcos de uma nova onda longa de expansão. Para Wood (2014) existe no
século XX, e mais precisamente após as duas grandes guerras um “novo
imperialismo” decorrente da universalização dos imperativos capitalistas –
concorrência, acumulação e produtividade crescente do trabalho. Os EUA
comandam esse imperialismo efetivamente capitalista, que deixaria de ser uma
relação entre “senhores imperiais e súditos coloniais” mas “uma interação complexa
de Estados mais ou menos soberanos”, em uma relação que, sem prescindir de
dominação política e militar, tem nos imperativos econômicos seu principal
mecanismo de dominação.

(...) Os Estados Unidos foram o primeiro império capitalista do mundo e


ainda estão para ser substituídos. Dizer que eles foram o primeiro império
capitalista não significa que tenham sido a primeira potência capitalista a
possuir um império. A questão é, pelo contrário, o fato de os Estados Unidos
terem dominado o mundo não pela colonização direta, mas em grande parte
pela manipulação dos mecanismos econômicos do capitalismo (WOOD,
2012, p.10)

Fontes (2010) chama o período atual, posterior ao imperialismo clássico, que


para a autora, assim como para Mandel e Wood, ganha novas determinações após a
Segunda Guerra Mundial, de período do capital-imperialismo. O imperialismo toma
novas e mais contundentes formas. A “união íntima” entre capitais do período
anterior “perderia o formato de uma união evidente entre „espécies‟ diversas de
capitalistas, aproximando-se mais da formulação marxiana de concentração de
capital sob a pura forma monetária do capital portador de juros” (FONTES, 2010,
155), uma relação entre capitais que a autora chamará de “pornográfica”.A autora
não adota a teoria das ondas longas de Mandel, e em suas palavras

O período pós-Segunda Guerra Mundial abriu espaço para uma intensa


expansão do imperialismo, nos termos leninianos, realizada, porém, sob
condições diversas do período anterior e cujas dimensões rapidamente
trariam, por sua própria magnitude, modificações significativas que somente
seriam mais visíveis a partir da década de 1980, no chamado neoliberalismo
(FONTES, 2010, 156).
48

Entre essas novas condições de desenvolvimento do imperialismo destacam-


se a Guerra Fria, dentro da luta contra o comunismo e as novas formas de
dominação imperialista “com um desmantelamento quase completo da dominação
colonial direta” (FONTES, 2010, 161) ou um “sistema mais aberto de colonialismo
sem colônias” (HARVEY, 2005, p.36), o que é para Wood (2014) umas das
especificidades do que chama de império do capital.
Harvey (2003) vai dividir o período monopolista/imperialista em três fases. A
primeira, de 1870 a 1945, é precedida pela primeira crise de superacumulação
capitalista entre 1846 e 1850 na Europa, que teve como saída o investimento
infraestrutural de longo prazo e as expansões geográficas. Em meados de 1860,
esse meio de absorver excedentes se esgotou pelas tensões internas na Europa e
nos Estados Unidos (que iniciava uma guerra civil).

Suas características essenciais envolveram a divisão forçosa do globo em


terrenos definidos de posse colonial ou de influência exclusivista [...], a
pilhagem de boa parte dos recursos do mundo pelas potências imperiais e a
instauração disseminada de virulentas doutrinas de superioridade racial –
ações que se fizeram acompanhar de um fracasso total e previsível em
resolver o problema do capital excedente [...] (HARVEY, 2003, p. 46).

A Grande Depressão de 1929 é o ápice desse fracasso que culmina na II


Guerra Mundial entre as potências imperialistas de 1939 a 1945, período de ascenso
dos Estados Unidos como grande potência imperialista mundial.
Após a II Guerra Mundial o imperialismo chega a sua segunda fase que irá de
1945 a 1970, marcado pela hegemonia norte-americana. Dominantes
economicamente, os EUA passam a liderar a tecnologia e a produção e a possuir
um aparato militar apenas comparável ao da União Soviética (que saía da guerra
com bastantes debilidades).
Assim como Fontes, Harvey vai dar maior ênfase para os aspectos políticos
que marcam as fases do imperialismo. O que é comum às interpretações de Fontes,
Harvey, Wood e Mandel é a concordância sobre uma virada qualitativa no
capitalismo pós-Segunda Guerra Mundial, que ganha novos contornos, recessivos,
entre a segunda metade dos anos 1960 e o início da década de 1970.
49

2.1 O Estado de Bem Estar Social na fase de ascensão do capitalismo tardio

Mandel (1982) aponta como fatores que tornaram possível a retomada das
taxas de lucro, o que levou à onda longa de expansão ocorrida entre a década de 40
e meados de 60 do século XX, o rearmamento e a Segunda Guerra Mundial que
permitiram a reintrodução de capital excedente na produção de mais valia.
Associava-se a isso o acréscimo de mais valia ocorrido devido a grandes derrotas
sofridas pela classe trabalhadora para o fascismo e para a guerra em países como a
Alemanha, Japão, Itália, França e Espanha e depois nos Estados Unidos, onde os
pactos sociais e a política macarthista contra o comunismo durante a Guerra Fria
reduziram gradativamente a combatividade operária. Soma-se a isso, ainda, as
ditaduras do grande capital instituídas por golpes militares a partir da década de
1960 na América Latina, que com o apoio dos países imperialistas, permitiram a
superexploração da força de trabalho sob uma bárbara repressão aos movimentos
de resistência da classe trabalhadora.
Esse incremento na taxa de mais valia e de lucros facilitou o início da
Revolução Tecnológica, fundada nos esforços de guerra, ampliando a produtividade
do trabalho, tendência que só se reverteu quando a própria dinâmica expansionista
levou as condições do mercado de trabalho a favorecerem a classe trabalhadora
pela redução do exército industrial de reserva 17 (Mandel, 1982, p.125).
A fase ascendente do capitalismo tardio tem, ainda, como uma de suas
características centrais a introdução do modelo fordista de acumulação. Ainda que o
modelo de Ford tenha se iniciado em suas fábricas em 1914 foi apenas após a II
Guerra Mundial, com a vitória sobre o nacional-socialismo, que o fordismo se
consolidou como regime de acumulação imposto diretamente em países ocupados e
indiretamente por meio do Plano Marshall e do investimento direto norte-americano.
Mais do que apenas uma aplicação da divisão do trabalho taylorista e de inovações
tecnológicas e organizacionais, o fordismo caracterizava-se por ser um novo modelo
baseado na produção e no consumo em massa, com “um novo sistema de

17
“(...) assim que a expansão conduziu a desmobilização e desaparecimento do exército industrial de
reserva, e, simultaneamente a entrada em cena de novas gerações, começou a diminuir o ceticismo
subjetivo e a resignação nas fileiras operárias, os anos dourados do capitalismo chegaram ao fim
numa escala internacional. (...) Mais uma vez se avivou a luta em torno da taxa de mais-valia
(MANDEL, 1982, 126).
50

reprodução da força de trabalho, uma nova política de controle e gerência do


trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia, em suma, um novo tipo de
sociedade democrática, racionalizada, modernista e populista” (HARVEY, 2006,
p.121). Associado ao keynesianismo, que pregou a maior participação do Estado na
implementação de políticas anticíclicas, o fordismo foi hegemônico até a década de
1970. No entanto, sua aplicação diferenciava-se em cada país. Mundialmente ele
significou a formação de um mercado de massa global permitindo a exportação da
capacidade produtiva excedente dos Estados Unidos.
Nesse período também o Estado sofre mudanças nas suas funções. O
Estado não é uma invenção do capital. Ele está intrinsecamente relacionado aos
interesses da propriedade privada e no capitalismo passa a ter características
específicas para garantir o interesse dos proprietários de capital e mercadoria,
assegurando parte das funções superestruturais que “podem ser genericamente
resumidas como a proteção e a reprodução da estrutura social (as relações de
produção fundamentais) à medida que não se consegue isso com processos
automáticos da economia” (MANDEL, 1982, p. 333). Mandel inclui entre as funções
do Estado capitalista já estudadas amplamente pelos autores marxistas - a função
repressiva e a função integradora - uma terceira: a de providenciar as condições
gerais de produção.

Esse domínio funcional do Estado inclui essencialmente: assegurar os pré-


requisitos gerais e técnicos do processo de produção efetivo [...]
providenciar os pré-requisitos gerais e sociais do mesmo processo de
produção [...] e a reprodução continuada daquelas formas de trabalho
intelectual que são indispensáveis à produção econômica, embora elas
mesmas não façam parte do processo de trabalho imediato (...) (MANDEL,
1982, p.334).

Essa função amplia-se no capitalismo em sua fase tardia. As dificuldades


crescentes de valorização do capital, geram as crises de superacumulação e levam
o Estado, por meio do fundo público, a funcionar “como esteio do capital privado (e
em particular, do capital monopolista)” (MANDEL, 1982, 340) ao criar oportunidades
para investimentos lucrativos, subvencionar o capital privado, ampliar seu papel na
administração das crises e socializar custos e riscos.
Quando o capitalismo passou da fase concorrencial para a fase monopolista a
configuração do Estado já havia sofrido inflexões. Primeiro porque a centralização do
51

capital coincidiu com o fortalecimento dos partidos da classe trabalhadora e a


necessária concessão de direitos políticos como o sufrágio universal. O Estado
media, então, conflitos de classe no seu interior, o que obrigou uma maior
centralização de poder dentro dos espaços institucionais. Esse crescimento do poder
político das organizações de trabalhadores levou também o Estado a avançar numa
legislação social com uma dupla função: reduzir a pressão dos trabalhadores por
meio da concessão de direitos, e garantir a reprodução ampliada do modo de
produção por intermédio da reprodução da força de trabalho com salários indiretos
(Mandel, 1982; Oliveira,1988).
Netto (2001, p.25) concorda que o Estado é, no capitalismo, o representante
do capitalista coletivo, mas, até sua fase monopólica, seu papel central era guardar
“as condições externas da produção capitalista”. Suas intervenções, para além de
assegurar a propriedade privada dos meios de produção, eram pontuais. No
capitalismo monopolista as funções políticas do Estado imbricam-se com suas
funções econômicas. Suas funções passam a ser, para o autor, diretas, indiretas e
estratégicas, nas quais se combinam as duas formas anteriores. Entre as diretas cita
a inserção do Estado como empresário em setores não-rentáveis, a assunção do
controle de empresas capitalistas em dificuldade, a entrega aos monopólios de
complexos construídos com fundo público, subsídios imediatos e garantias de lucro
aos monopólios. Entre as funções indiretas estão o consumo do Estado de produtos
dos monopólios, investimentos públicos em infra-estrutura, a preparação e
manutenção da força de trabalho e gastos com pesquisa e desenvolvimento. Nas
funções estratégicas o Estado funciona como planejador de médio e longo prazo,
atuando como administrador das crises.
Após a II Guerra, o capital teve que dar um passo atrás nos países centrais
por meio de uma partilha maior dos fundos públicos entre capital e trabalho, não só
para neutralizar a luta de classes, mas como estratégia para a ampliação dos
mercados. Os grandes lucros monopolistas poderiam “subornar as classes inferiores
para conseguir sua aquiescência” (LÊNIN, 2008, 104). Isso significa que exportar a
superexploração da força de trabalho para os países dependentes, por meio de
políticas de colonização e dominação típicas do imperialismo, reconfiguradas no
pós-guerra, com novas formas de dominação e uma nova partilha do mundo entre os
vencedores, tornou possível num determinado momento histórico elevar as
condições de vida de parte do proletariado dos países centrais com políticas de
52

benefícios das empresas e políticas sociais do Estado que reduziram os custos da


reprodução.
Essa ampliação da legislação social que ganhou novo fôlego no pós-guerra
criou a “ilusão de um Estado Social” uma “falsa crença em uma redistribuição
crescente da renda nacional que tiraria do capital para dar ao trabalho” (MANDEL,
1982, p.339). Essa suposta redistribuição criou as bases para o reformismo que
anunciava a possibilidade de socialização por meio da distribuição mediada pelo
Estado. Ilusão social-democrata que levou até autores importantes do pensamento
crítico como Oliveira (1988), a acreditarem no Estado como um anti-valor,
fundamentando um modo de produção social-democrata. Para Mandel (1982, p.346)
“imaginar que o aparelho do Estado burguês pode ser usado para uma
transformação socialista da sociedade capitalista é tão ilusório quanto supor que
seria possível dissolver um exército com a ajuda de generais pacifistas”.
Essa autonomia e hipertrofia do Estado em suas múltiplas funções refletem,
para Mandel, as dificuldades crescentes de valorização do capital e realização da
mais valia de forma regular. “Quanto maior a intervenção do Estado no sistema
econômico capitalista, tanto mais claro torna-se o fato de que esse sistema sofre de
uma doença incurável” (MANDEL, 1982, p.341). Para Ianni (1989) é nos períodos de
crise que o Estado surge de forma mais visível e ampla, construindo novos
equilíbrios no sistema que preservem o status quo, já que o mesmo não suporta
“comoções violentas” (p.50).
Para Gough (1979) o Estado de Bem Estar se caracteriza pela utilização do
poder estatal para modificar a reprodução da força de trabalho e para manter a
população não trabalhadora nas sociedades capitalistas no pós-guerra. Os meios
mais importantes para isso seriam: a concessão direta de benefícios e serviços e a
utilização do sistema de impostos e a regulação estatal sobre as atividades privadas
dos indivíduos e da sociedade. A saúde pública seria, assim, um dos serviços diretos
prestados pelo Estado para interferir na reprodução da força de trabalho.
Esse modelo de intervenção do Estado tem, porém, origem histórica
determinada. Seu surgimento faz parte de um acordo pós-guerra entre capital e
trabalho, sobretudo na Inglaterra (Gough, 1979, 150). Nesse país os gastos com
serviços sociais se elevaram de 4% do Produto Interno Bruto(PIB) antes da I Guerra
Mundial para 29% do PIB em 1975, chegando à metade dos gastos estatais (Gough,
1979, 159). Em todos os países centrais, ainda segundo Gough, essa tendência de
53

ampliação dos gastos públicos em relação ao PIB e dos gastos sociais em relação
aos gastos públicos pode ser verificada. A pressão da classe trabalhadora nesse
período, fortalecida pela presença da URSS, que mesmo burocratizada era ainda um
Estado socialista, foi elemento central para que os Estados e a burguesia “cedessem
seus anéis” nos países centrais.
O fim dos anos de ouro do capitalismo já se fazia sentir, segundo Mandel
(1982), na crise do sistema monetário internacional em 1967 e nas manifestações
populares conhecidas como Maio de 68 na França, a Primavera de Praga, entre
outras em diversos países. Mas é mais consensual entre diversos autores que a
crise de superacumulação tem como detonador a crise do petróleo entre 1972/73 18.
A capacidade interna de absorver excedentes nos Estados Unidos começa a
se estagnar no final dos anos 1960, acirrando a competição econômica, chegando o
Japão e a Alemanha a afetarem e até superarem os Estados Unidos em algumas
áreas. Os altos custos com a guerra do Vietnã, pressão de uma economia de guerra
permanente do complexo industrial-militar e o consumo doméstico excessivo
levaram a uma crise fiscal do Estado intervencionista keynesiano. Para resolver a
crise, os Estados Unidos passam a imprimir mais dólares o que resulta numa
elevação inflacionária mundial, uma explosão da quantidade de capital fictício e o
colapso das estruturas internacionais fixas forjadas no período anterior, acabando
com toda a estrutura do sistema de Bretton Woods 19. Além disso, a organização do
trabalho, sob o regime fordista do período, levou à pressão por crescentes gastos
sociais do Estado e dispêndio com salários nos centros mais dinâmicos do capital,
que significaram uma redução dos lucros a longo prazo.
Sob todos esses efeitos, o capitalismo passa à estagflação, isto é, entra em
uma longa onda de estagnação com tendência à queda das taxas de lucro, que dura
até os dias de hoje.

18
“O acontecimento detonador que precipita as crises de superprodução distingue as suas formas de
aparição. Este pode ser um escândalo financeiro, um brusco pânico bancário, a bancarrota de uma
grande empresa, como poder ser simplesmente a mudança da conjuntura (venda insuficiente
generalizada) em um setor chave do mercado mundial. (...) Mas o detonador não é a causa da crise.
Apenas precipita no sentido em que desencadeia o movimento cumulativo (...)” (MANDEL, 1990,
p.212).
19
O acordo de Bretton Woods, de 1944, transformou o dólar na moeda-reserva mundial e vinculou
com firmeza o desenvolvimento econômico do mundo à política fiscal e monetária norte-americana”
(HARVEY, 2006, p.131).
54

2.1. Neoliberalismo: a fase de estagnação do capitalismo tardio

Nesses marcos, chega-se à fase caracterizada pela hegemonia “neoliberal”. A


resposta neoliberal articulada ocorre nos anos 1990 com o Consenso de
Washington 20, apesar das iniciativas que preparam essa hegemonia já datarem do
final dos anos 1970 inicialmente com os governos Thatcher na Inglaterra, Reagan
nos EUA e Pinochet na periferia do capital. 21
A teoria de Harvey (2005) também defendida por Chesnais (2005) e Dumenil
e Levy (2005) determina o sentido fundamental da virada neoliberal: a retomada da
hegemonia da burguesia. Durante o período do Estado de Bem-Estar no pós-guerra,
a burguesia permitiu uma maior distribuição do fundo público 22, claro que também
devido a uma correlação de forças de avanço dos trabalhadores organizados
quando se chegou próximo ao pleno emprego. Essa situação foi tolerada enquanto
havia crescimento econômico estável.
A crise dos anos 1970 alterou esses fatores e trouxe perdas importantes para
a classe burguesa. As políticas neoliberais surgem assim como “um projeto político
de restabelecimento das condições de acumulação do capital e de restauração do
poder das elites econômicas” (HARVEY, 2005, p.27). Apesar de não ter sido muito
eficaz no primeiro objetivo, no que tange a retomada de um crescimento econômico

20
[...] o Consenso de Washington é um modelo de desenvolvimento de cunho neoclássico, elaborado
pelo Banco Mundial, pelo Fundo Monetário Internacional e pelos think tanks de Washington e que,
agora, passa como sendo a única interpretação racional possível dos problemas de estabilização e
crescimento” (NUN apud MOTA, 2008, p.79). Compreende as seguintes medidas: disciplina fiscal,
redução dos gastos públicos, reforma tributária, juros de mercado, câmbio de mercado, abertura
comercial, eliminação das restrições ao investimento estrangeiro direto, privatização das estatais,
desregulamentação econômica e trabalhista, defesa do direito à propriedade intelectual
(MARQUES, 2010, p.7).
21
Para Harvey o esmagamento da greve dos mineiros na Inglaterra e dos controladores de vôo nos
EUA pelos governos de Thatcher e de Reagan, no final dos anos de 1970 e início dos anos de
1980, são o marco de uma nova relação da burguesia, através do Estado, com os trabalhadores,
que abre caminho para a retirada de direitos do neoliberalismo. Podemos fazer paralelo com a
greve dos petroleiros, nos anos 1990 no Brasil, derrotada pelo governo Cardoso, nosso marco no
avanço da neoliberalização.
22
Segundo Harvey (2005) o 1% da população mais rica dos EUA concentrava 16% da renda nacional
antes da Segunda Guerra passando a 8% no pós-guerra e sofrendo acentuada queda nos anos
1970. Com a neoliberalização o 1% mais rico volta a deter 15% da renda nacional no fim do século.
55

estável, teve sucesso no segundo ampliando expressivamente a desigualdade social


no mundo todo23 (Anderson, 1994; Harvey, 2005).
Significa dizer que o neoliberalismo enquanto teoria econômica foi na prática
vencido pelo pragmatismo político da classe dominante. Se havia entre os teóricos
neoliberais alguma utopia de reorganização mundial do capitalismo essa foi
derrotada pelo projeto burguês. Isso justifica a aplicação da receita neoliberal ter se
dado de forma tão desigual entre os países e nas diversas conjunturas, chegando a
perder todos os seus pressupostos básicos se fosse de interesse da classe
dominante.
A “contrarrevolução monetarista” (Nunes, 2007) foi cunhada por seus críticos
como neoliberalismo. O termo, no entanto, reforça a falsa ideia, sustentada
ideologicamente por seus formuladores como Hayek e Friedman, de que o Estado
teria, nesse período, deixado de intervir na economia e na sociedade, retomando o
liberalismo clássico do século XIX. Segundo Rancière (2014, p.105):

O mesmo Estado que combate as instituições do welfare state mobiliza-se


para que o tubo de alimentação de uma mulher em estado vegetativo
prolongado seja religado. A liquidação do pretenso Estado- providência não
é o recuo do Estado. É a redistribuição, entre a lógica capitalista do seguro
e a gestão estatal direta, de instituições e funcionamentos que se
interpunham entre as duas.

Netto elaborou uma afirmativa um pouco mais precisa, que se tornou popular
entre os teóricos brasileiros críticos ao neoliberalismo: um Estado mínimo para os
trabalhadores e máximo para o capital. As intervenções violentas do Estado
brasileiro em ocupações de terra, nas favelas e subúrbios das grandes cidades,
contra greves e sindicatos demonstram, porém, que o Estado também só é mínimo
para os trabalhadores quando se trata de políticas sociais.
O Estado se impõe enquanto agente dos interesses das classes dominantes
na retomada das taxas de lucro. Segundo Dumenil e Levy (2005, p.87) “não se pode
deduzir que o Estado tenha perdido toda a função. O neoliberalismo se impôs sob a
proteção do Estado”. Como aponta Fontes (2010, p.17) é um “Estado pitbull”, forte
para defender o capital das ameaças dos trabalhadores, mas sem gorduras, ou seja,
sem políticas sociais. É o Estado que vai cumprir o papel de administrar as crises

23
A relação da renda entre os 20% da população dos países mais ricos e os 20% da população dos
países mais pobres do globo era de 30 para 1 em 1960 chegando a 74 para 1 em 1977 (HARVEY,
2005, p.27).
56

com políticas anticíclicas, “estimular” os negócios e ao mesmo tempo controlar a


classe trabalhadora, assolada pelo desemprego estrutural e pela redução da
proteção social, através do superdimensionamento da sua face penal (Wacquant,
2003). Concordamos com Granemann 24 que o fundo público nesse período se torna
uma das mais importantes contratendências à queda das taxas de lucro por meio de
sua apropriação pelo capital. Apropriação que é possível pela ação consciente e
sistemática do Estado.
Chesnais (1996) denomina essa fase por mundialização do capital25. Nesse
período, o sentido e o conteúdo da acumulação do capital se alteram em relação ao
imperialismo clássico e ao fordismo, apesar de algumas características desses
períodos se manterem, como a extrema centralização e concentração do capital e o
papel do Estado, que segue sendo aquele descrito por Netto e Mandel em referência
ao capitalismo monopolista. No entanto, Chesnais sublinha que o estilo de
acumulação se altera, passando a ser dado pelas “novas formas de centralização de
gigantescos capitais financeiros (os fundos mútuos e fundos de pensão), cuja função
é frutificar principalmente no interior da esfera financeira” (1996, p.14). É evidente
que apenas na produção se criam riquezas, mas nesse período é a esfera financeira
que comanda sua repartição e destinação. São dois os principais mecanismos que
alimentam as finanças: a inflação do valor de ativos financeiros, isto é, a formação
de capital fictício e a transferência direta de riquezas, por meio, sobretudo, da
transferência de fundo público a título de pagamento da dívida pública dos Estados,
que ficam aprisionados pelos interesses de seus credores: “os grandes fundos de
aplicação privados (os “mercados”)” (CHESNAIS, 1996, p.15).
Dumenil e Levy (2005, p.87) classificam o neoliberalismo como o segundo
período do capitalismo hegemonizado pela finança, sendo o primeiro o período entre
o fim do século XIX e a crise de 29. Esse novo período de hegemonia das finanças
iniciado na década de 1970 tira partido da crise estrutural do período. Para Dumenil
e Levy:

24
Notas de aula da disciplina ministrada na Pós Graduação em Serviço Social da UFRJ em 2012.2.
25
“A expressão “mundialização do capital” é a que corresponde mais exatamente à substância do
termo inglês „globalização”, que traduz a capacidade estratégica de todo grupo oligopolista, voltado
para a produção manufatureira ou para as principais atividades de serviços, de adotar, por conta
própria, um enfoque e condutas „globais‟” (CHESNAIS, 1996, p. 17).
57

A forte desaceleração do crescimento, o aumento da instabilidade


macroeconômica (...), o crescimento do desemprego e da inflação
acumulativa não puderam ser vencidas pelas políticas keynesianas de
reativação da economia, que foram provadas ao longo da década anterior.
O problema era de outra natureza: a crise estrutural resultava de uma queda
gradual da taxa de lucro nos principais países capitalistas desenvolvidos,
mais ou menos desde os anos 60 (2005, p.89).

Antunes (1999, p.30) concorda que o deslocamento do capital para as


finanças foi conseqüência da redução das taxas de lucro geradas pela produção, por
sua vez decorrentes da crise do período. Se o objetivo da financeirização era a
busca por lucros suas origens estruturais estão na acumulação industrial obtida no
período de expansão anterior, quando famílias com maiores rendas começaram a
aplicar suas poupanças em títulos de seguro de vida, bem como a obrigação dos
assalariados abrirem contas em bancos (Chesnais, 1999, p.37).
Comungamos da tese de que a financeirização é elemento básico do
capitalismo neoliberal, marcando um “novo imperialismo” nos termos de Harvey ou
uma “mundialização financeira” nos termos de Chesnais, do qual se originam as
características societárias contemporâneas.
As crises do padrão de acumulação fordista e do Estado keynesiano são,
portanto, apenas expressões fenomênicas da crise estrutural, fruto da sua
incapacidade de reverter a retração do consumo, resposta ao início do desemprego
estrutural. A reação burguesa iniciada no fim dos anos 70 vai impor, então, uma
nova forma de estruturação da produção com conseqüências para a regulação do
trabalho e para a reprodução social, que recoloca o capital em uma nova ofensiva na
busca por superlucros.
Outras marcas da ofensiva do capital na crise atual são a corrida tecnológica,
uma nova divisão do trabalho e da relação entre centro e periferia do capital e o
ajuste neoliberal, “especialmente com um novo perfil das políticas econômicas e
industriais desenvolvidas pelos Estados Nacionais, bem como um novo padrão de
relação Estado/sociedade civil, com fortes implicações para o desenvolvimento de
políticas públicas, para a democracia e para o ambiente intelectual e moral”
(BEHRING, 2003, p.34).
Iamamoto (2007) aponta a retomada da financeirização do capitalismo na
contemporaneidade, como o eixo estruturante da configuração atual das relações
sociais. Chesnais (2005) parte do mesmo pressuposto, de que na configuração atual
58

específica do capitalismo o capital financeiro encontra-se no centro das relações


econômicas e sociais. A reestruturação produtiva, com a marca da flexibilização nas
relações entre trabalho e capital, a captura do fundo público por meio dos
mecanismos da dívida justificando a redução do gasto público para os trabalhadores
e as mudanças na esfera cultural, fundamentadas no ethos pós-moderno, são
dimensões do fenômeno que tem por objetivo alimentar a engenharia do mercado
financeiro, reproduzindo de forma ampliada o capital.
Para Chesnais (2005), o lugar que hoje ocupa o capital financeiro se afirmou
a partir da intervenção dos Estados imperialistas quando liberaram e
desregulamentaram a movimentação dos capitais, desbloqueando seus mercados
financeiros, além de implementarem políticas que estimulassem e facilitassem a
centralização das poupanças das famílias e dos lucros não-reinvestidos do capital.
Com isso expande-se a acumulação financeira26 através de novos organismos como
fundos de pensão, fundos coletivos de aplicação, sociedades de seguros e bancos
que administram sociedades de investimento.
Para Dumenil e Levy (2005) a finança caracteriza-se por uma nova forma de
propriedade que evolui historicamente da propriedade familiar e individual das
empresas, gestadas por seus proprietários até a propriedade financeira, constituída
por meio da posse de títulos, e caracterizada pelo poder concentrado nas
instituições financeiras. Cria-se uma nova classe de administradores, o que explica a
complexidade das estruturas de classe contemporâneas.
Esses novos proprietários situam-se em exterioridade à produção, mesmo
quando estão no cerne dos grupos industriais. Chesnais (2005) não nega a
interpenetração entre o capital industrial e o capital portador de juros, porém
acrescenta um elemento. A aparente exterioridade do capital portador de juros em
relação à produção é, segundo o autor, “um dos traços mais originais da
contrarrevolução social contemporânea” (CHESNAIS, 2005, p.54). O administrador-
financeiro moldado pelos interesses das finanças substitui o administrador-industrial
e difere dele pelos seus objetivos, criando novas normas de rentabilidade. “A taxa de
lucro necessária para a realização das normas do „valor por acionista‟ conduz a

26
Entende-se por acumulação financeira, segundo Chesnais (2005, p.37) “a centralização em
instituições especializadas de lucros industriais não reinvestidos e de rendas não consumidas, que
tem por encargo valorizá-los sob a forma de aplicação em ativos financeiros – divisas, obrigações e
ações- mantendo-os fora da produção de bens e serviços.”
59

rejeição de todos os projetos de investimento que não garantirão a taxa exigida”


(CHESNAIS, 2005, p. 58).
Segundo Chesnais (2005), a redução da parte dos lucros voltada para o setor
produtivo tem duas consequências: a redução da capacidade de consumo dos
assalariados e a reduzida propensão em investimentos. A lógica financeira é
contraditória com investimentos de longo prazo como as inovações tecnológicas, o
que acaba tornando-a um obstáculo ao aumento da produtividade. Daí o fracasso do
neoliberalismo na reversão das baixas taxas de crescimento.
Dumenil e Levy (2005) reforçam essa tese ao afirmar que a lógica do modelo
neoliberal é desfavorável ao crescimento, lógica que se caracteriza pela primazia do
pagamento de juros e dividendos a acionistas e credores, em prejuízo do
investimento produtivo.
Essa aparente exterioridade do capital portador de juros em relação a
produção “tende também a modelar a sociedade contemporânea no conjunto de
suas determinações” (DUMENIL E LEVY, 2005, p.61) e gera uma propensão a
“demandar da economia mais do que ela pode dar” o que é uma das forças motrizes
da desregulamentação do trabalho e das privatizações.
O superdimensionamento da esfera financeira do capital também reproduz as
relações de dependência entre o capitalismo central e periférico. Isso porque as
finanças de mercado são mais excludentes e concentradas que em períodos
anteriores, ou seja, “a ideia de uma irradiação planetária pelos capitais não
corresponde à realidade do mundo contemporâneo” (DUMENIL E LEVY, 2005,
p.13). Como o essencial das ações emitidas pelas empresas é aplicado em suas
próprias bolsas, os países periféricos ficam em desvantagem, pois não possuem
nem mercados emergentes que possam ser integrados nem empresas capazes de
atuar nos mercados dos grandes países industrializados.
Os Estados nacionais, por sua vez, além de não deterem mais o controle e a
supervisão da esfera financeira, são os responsáveis pelo principal mecanismo de
captação dos mercados financeiros: os impostos diretos e indiretos pagos ao Estado
e transferidos ao setor financeiro a título de pagamento de juros ou da própria dívida
pública. Está aberto, assim, o canal que vai redirecionar o fundo público. Ao invés de
investido, pelo menos parcialmente, em políticas públicas universais, como no
período do pós-guerra, ele agora em grande parte é aplicado diretamente no
mercado financeiro. São os países periféricos os maiores afetados por esse
60

mecanismo, não necessariamenteporque são os maiores portadores de dívidas 27,


mas porque comprometem mais seus orçamentos com juros e encargos detendo
menos soberania sobre as mesmas (Behring, 2013). Outros mecanismos
transformam o Estado no neoliberalismo num “Robin Hood às avessas” dentro dos
territórios nacionais, como a revisão das leis tributárias, cada vez mais regressivas, e
o oferecimento de subsídios e isenções fiscais às pessoas jurídicas. (Harvey, 2005,
p.177).
Além de alterar o fluxo do fundo público nacional em favor das finanças, a
dívida pública aprofunda a relação de dominação entre os países centrais e
periféricos. Os países periféricos foram chantageados 28 para adequarem-se às
políticas de ajuste estrutural ditadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI),
Banco Mundial (BM) e pelos demais organismos internacionais, pela força de suas
dívidas.
Nos anos 80, a dívida pública permitiu a expansão dos mercados
financeiros ou a sua ressurreição em outros países [...] Ela é o pilar das
instituições que centralizam o capital portador de juros. Em seguida, a dívida
pública gera pressões fiscais fortes sobre as rendas menores e com menor
mobilidade, austeridade orçamentária e paralisia das despesas públicas. [...]
foi ela que facilitou a implantação das políticas de privatização nos países
chamados “em desenvolvimento” (CHESNAIS, 2005, p.42).

A retomada das taxas de lucro carrega, necessariamente, uma maior


exploração dos trabalhadores, extraindo deles maior taxa de mais valia. Ainda que a
financeirização do período tenha inchado esse setor da economia, é no mundo da
produção que o valor se cria por meio do trabalho. Era necessário, portanto, na
estratégia da burguesia, reestruturar a produção e o trabalho para responder a crise
estrutural do capital que, como já apontamos, tinha no esgotamento do modelo
fordista/keynesiano uma expressão de aparência do fenômeno.

27
Segundo Harvey (2005, p.175) “calcula-se que, a partir de 1980, mais de 50 Planos Marshall (..)
foram remetidos pelos povos da periferia aos seus credores no centro”. Porém, a dívida dos países
centrais e semi-periféricos vem crescendo culminando na crise aguda do capital em curso desde a
primeira década dos anos 2000. “O crescimento extraordinário das finanças antes da crise ao
mesmo tempo impulsionou e se alimentou do rápido aumento da dívida dos países ricos, no qual os
ativos bancários subiram de 50% do PIB nos anos 1960 para em torno de 200% do PIB no fim da
década de 2000” (Carta Capital, 2013). Behring (2013) demonstra como a relação entre dívida e PIB
é maior na França do que no Brasil que, no entanto, compromete apenas 5,6% do seu orçamento
com seu pagamento.
28
Os argumentos de chantagem têm sido bastante eficazes ideologicamente para obter
consentimento da população sobre as contrarreformas e os cortes orçamentários o que não significa
que não contam com a cumplicidade das burguesias locais.
61

A tese de Antunes (1999, p.47) é de que a reestruturação produtiva decorre


da concorrência intercapitalista, na qual, em momentos de crise intensificam-se as
disputas entre os grupos transnacionais e monopolistas, e da necessidade de
responder à luta de classes, controlando a resistência dos trabalhadores. Para o
autor o ressurgimento de ações ofensivas da classe trabalhadora, após o período
mais consensuado do Estado de Bem-Estar Social, é elemento central na crise do
fordismo. O objetivo da reestruturação era o aumento da produtividade e da extração
da mais-valia relativa, pela intensificação do trabalho, sem abdicar da ampliação da
mais-valia absoluta, com o aumento das jornadas. 29
Emerge, então, uma nova forma de produção, em muitas características
importada ou inspirada no modelo japonês 30 que por isso passa a ser chamada de
modelo toyotista, inaugurando o período da acumulação flexível.
Vários teóricos interpretam distintamente esse fenômeno. Antunes (1999,
p.48) expõem três interpretações diversas. A primeira tem uma visão positiva das
mudanças, a tese da especialização flexível. Autores como Sabel e Piore acreditam
que a acumulação flexível, ao possibilitar o aproveitamento das qualidades criativas
dos trabalhadores, reduz a alienação característica do período fordista, sendo mais
favorável ao trabalho.
A segunda tese, de autores como Tomaney, defende que as mudanças não
alteram as configurações existentes no trabalho fordista, mas intensificam as
tendências existentes.
Outros autores acreditam que o toyotismo traz elementos de ruptura e
continuidade com o modelo anterior, mantendo intactos, porém, o caráter e os
pilares fundamentais do modo de produção capitalista, tese a qual se filia Antunes
(1999) e que adotaremos nesse trabalho. Em suma: o padrão de acumulação flexível
articula um conjunto de elementos de continuidade e descontinuidade que acabam

29
Segundo Antunes (1999, p. 33) “apesar do significativo avanço tecnológico encontrado (que
poderia possibilitar, em escala mundial, uma real redução das jornadas ou do tempo de trabalho),
pode-se presenciar em vários países, como a Inglaterra e o Japão, para citar países do centro do
sistema, uma política de prolongamento da jornada de trabalho.”
30
Em relação à proporção em que as características do modelo japonês são incorporadas nas
diferentes empresas e países: “claro que sua adaptabilidade em maior ou menor escala, estava
necessariamente condicionada às singularidades e particularidades de cada país, no que diz
respeito tanto às suas condições econômicas, sociais, políticas, ideológicas, quanto como à
inserção desses países na divisão internacional do trabalho” (ANTUNES, 1999, p.57).
62

por conformar algo relativamente distinto do padrão taylorista/fordista de


acumulação” (ANTUNES, 1999, p.52).
Esse modelo fundamenta-se num padrão de produção, organização e
tecnologia avançado. Introduz novas técnicas de gestão da força de trabalho que se
baseiam no trabalho em equipes que passa a “requerer, ao menos no plano
discursivo, o „envolvimento participativo‟ dos trabalhadores, em verdade uma
participação manipuladora e que preserva, na essência, as condições do trabalho
alienado e estranhado” (ANTUNES, 1999, p.52). Ao contrário do fordismo, onde o
trabalho organizava-se apenas para explorar a capacidade física dos trabalhadores,
no toyotismo o capital passa a se apropriar também da capacidade criativa, de
cooperação, da organização dos trabalhadores. Entra em cena o trabalhador
polivalente, multifuncional. Segundo Bihr (1998):

Um trabalhador que raciocina no ato de trabalho e conhece mais dos


processos tecnológicos e econômicos do que os aspectos estritos do seu
trabalho imediato é um trabalhador que pode ser tornado polivalente. [...]
Cada trabalhador pode realizar um maior número de operações, substituir
outras e coadjuvá-las.

A polivalência combinada com a horizontalização da estrutura das empresas


está a serviço do capital, reduzindo o tempo de trabalho e intensificando a
exploração num modelo distinto do fordismo. Segundo Antunes (1999, p.56):

A apropriação das atividades intelectuais do trabalho, que advém da


introdução da maquinaria automatizada e informatizada, aliada a
intensificação do ritmo do processo de trabalho, configuraram um quadro
extremamente positivo para o capital, na retomada dos ciclos de
acumulação e na recuperação de sua rentabilidade.

A isso se associa um modelo de disciplinamento que busca a adesão do


trabalhador numa relação de confiabilidade na qual o trabalhador “veste a camisa”
da empresa entregando sua subjetividade ao capital. Ao mesmo tempo, uma
característica central da reestruturação produtiva é a desregulamentação e a retirada
de direitos dos trabalhadores.
Enquanto os trabalhadores do centro da produção, mais qualificados, ainda
conseguem melhores remunerações, amplia-se o número de trabalhadores sem
63

cobertura de direitos e de estabilidade. O processo de liofilização organizacional 31


significou um enxugamento das unidades produtivas através da terceirização de
tudo que não é central em sua especialidade. Os métodos e procedimentos das
empresas centrais se expandem para seus fornecedores e quanto mais o trabalho
distancia-se das empresas centrais mais ele se precariza.
Antunes, ao analisar a reestruturação do mercado, classifica a força de
trabalho em intelectualizados e subproletários. Para ele, ao mesmo tempo em que o
capitalismo necessita de mais trabalhadores altamente qualificados, requisição dos
avanços tecnológicos, por outro lado empurra a maioria dos trabalhadores para a
subproletarização, vagas sem regulamentação, sem acesso a direitos, e sem
necessidade de qualificação especializada. Ainda que esses últimos estejam fora do
centro do processo de criação de valores de troca “é este conjunto de segmentos,
que dependem da venda da sua força de trabalho, que configura a totalidade do
trabalho social, a classe trabalhadora e o mundo do trabalho” (ANTUNES, 1999,
p.52). Continuam, portanto, apesar da aparência imensamente fragmentada, todos
aqueles despossuídos dos meios de produção, fazendo parte da mesma classe
trabalhadora, contribuindo para a produção e reprodução do valor.
Harvey (2006) divide essa “nova” classe trabalhadora em centrais e
periféricos. Enquanto os trabalhadores centrais possuem ainda contratos estáveis
com possibilidades de promoção e bons salários, para os trabalhadores periféricos
surgem duas categorias: os empregados em tempo integral, sujeitos à alta
rotatividade, baixa qualificação e salários instáveis e os subcontratados,
trabalhadores em tempo parcial, sem contrato ou com contratos temporários e sem
direitos trabalhistas.
Tal divisão tem significado para os trabalhadores uma redução da sua
consciência de classe e, conseqüentemente, redução de seus instrumentos de
organização. Esse tem sido um fator objetivo fundamental para a construção de uma
nova ideologia do capital, adequada a este novo modelo de acumulação, que
possibilita a construção de um novo consenso e dominação sobre os explorados.
Associa-se a isso o desemprego chamado estrutural, conseqüência do pouco
investimento produtivo que gera baixas taxas de crescimento, o que amplia o
exército industrial de reserva dificultando ainda mais sua organização e a

31
Categoria batizada por Castillo (1996) e utilizada por Antunes (1999).
64

reivindicação por direitos já que o trabalhador empregado torna-se um “privilegiado”,


apenas por essa condição.
Esse elemento ideológico é central para entender como os avanços da
política neoliberal sobre os direitos historicamente conquistados pelos trabalhadores
foi bem sucedido.

2.2 A ideologia gerencialista e a contrarreforma neoliberal do Estado

O autor francês Gaulejac (2007), no livro com o curioso título “Gestão como
doença social”, defende que o gerencialismo é a ideologia correspondente desse
período.

Nascida na esfera do privado, ela tende a se espalhar nos setores público e


no mundo não comercial – as cidades, as administrações, as instituições,
mas também a família, as relações amorosas, a sexualidade, até os
sentimentos e as emoções. Todos os registros da vida social são atingidos.
Cada indivíduo é convidado a se tornar o empreendedor de sua própria
vida. O humano se torna um capital que convém ser produtivo (2007, p.28).

Gaulejac caracteriza a ideologia gerencialista como um pensamento


objetivista, utilitarista, funcionalista e positivista que “traduz as atividades humanas
em indicadores de desempenhos, e esses desempenhos em custos e benefícios” (p.
36), mobilizando a psique dos indivíduos para atender as necessidades da
produção. O gerencialismo apresenta a gestão como uma série de técnicas “neutras”
a serviço da produtividade. Ele associa a isso valores como o gosto de empreender,
o desejo de progredir, a celebração do mérito e o culto a qualidade, “valores
positivos que vêm de encontro às aspirações humanas profundas e dificilmente
contestáveis” (p.81).
O autor defende de forma veemente que os instrumentos de gestão não são
neutros, mas assim se apresentam para contornar conflitos e negar qualquer debate
sobre sua pertinência.
Apesar do autor não ter referência no pensamento marxiano, pensamos que é
possível atribuir ao que chama de ideologia gerencialista, a escalada da subsunção
65

real de todo trabalho ao capital, da busca por mais valia relativa, num período de
superexploração do trabalho posto a serviço de remunerar as finanças.
O autor ainda acrescenta que a mesma lógica do gerencialismo entra na
política e na organização do Estado, que passa a ser visto negativamente, não mais
considerado elemento de “regulação”, mas como um aparelho não-rentável que
precisa se “modernizar”. O que importam são “os modelos de gestão supostos como
eficazes, sem que a reflexão de fundo tenha sido realizada sobre sua pertinência”
(p.269). Essa lógica significa para alguns a privatização generalizada e para outros a
adoção de técnicas de gestão privada no setor público.

Os funcionamentos atuais são desvalorizados, considerados como


arcaicos e burocráticos. Os funcionários são estigmatizados por seu
corporativismo e por sua improdutividade. Cúmulo do inaceitável, eles se
beneficiam da segurança do emprego, como se a segurança fosse um
privilégio que conviria combater e como se a insegurança do emprego fosse
obrigatoriamente um fator de dinamismo, de motivação e de progresso. (...)
Quando a sociedade é concebida como uma empresa que é preciso
gerenciar, quando os critérios de gestão são mais importantes que a análise
política, assistimos a uma inversão entre os meios e os fins, entre o peso
das normas financeiras e as missões políticas das instituições (p. 270).

Pensamos que essa ideologia a serviço do aumento da produtividade do


trabalho no setor público objetiva reduzir o gasto de fundo público com o pagamento
de trabalhadores. Com isso, amplia-se o uso de fundo público para o capital, seja
através da dívida pública ou de gastos de investimento e consumo
do Estado com o setor privado. Esses mecanismos de gestão, que introduzem
remunerações desiguais por mérito e por produtividade e querem reduzir a
estabilidade dos servidores públicos, o que significa a ameaça de desemprego seja
por reestruturações organizacionais ou razões diretamente políticas, reduzem as
possibilidades da organização sindical. Gaulejac (2007) dá uma série de exemplos
dos reveses sofridos pelo movimento sindical francês sob a lógica do gerencialismo
nas empresas.

A des-sindicalização, no seio da empresa gerencial, é o sintoma de uma


situação na qual o empregado está mais preocupado em melhorar sua
situação pessoal, ou salvar seu lugar, do que em desenvolver
solidariedades coletivas contra um poder inatingível (p.140).

Em suma, a ideologia gerencialista, quando aplicada no serviço público, serve


à contrarreforma implementada no período neoliberal que submete o Estado, o
fundo público e até as políticas sociais ao capital, seja pelo seu sucateamento e
66

redução, abrindo novos espaços para o mercado e “economizando”, ao mesmo


tempo, fundo público, seja pela sua apropriação direta, como por exemplo por meio
de chamados “novos modelos de gestão” que entregam a gestão do Estado
diretamente para a iniciativa privada.
Para os elaboradores da contrarreforma do Estado, a crise do capital no final
do século XX, não é estrutural, mas uma crise do Estado, considerado hipertrofiado
e perdulário, um verdadeiro elefante branco.
Souza Filho (2011) atribui a lógica da contrarreforma neoliberal do Estado às
teorias da “escolha pública”, desenvolvidas por Buchanan e Niskanem na passagem
da década de 1960 para 1970. Essas teses têm clara conexão com as teses
neoliberais da Escola de Chicago. Reproduzem a noção liberal de que a ação
egoísta dos indivíduos na busca pela maximização dos lucros e de seus interesses
pessoais leva ao equilíbrio e à eficiência. O comportamento dos governantes e
agentes do Estado também é orientado por esses princípios utilitários e não por
altruísmo ou interesse público (Borges apud Souza Filho, 2011, p.181). Assim,
orientados por interesses pessoais ampliam os déficits públicos o que leva ao
raciocínio que todos os burocratas públicos são inerentemente manipuladores e até
mesmo corruptos. Para evitar esses comportamentos a teoria da escolha pública
propõe

uma estrutura burocrática reduzida, sob comando político centralizado e,


dialeticamente, aponta para sua flexibilização, via mecanismos gerenciais,
através da descentralização, da transferência de atividades estatais para o
mercado e da incorporação de mecanismos de concorrência na
administração pública, na medida em que não se pretende expandir o
Estado para a área social (SOUZA FILHO, 2011, p.185).

O autor defende que apesar dessa perspectiva constituir-se como uma crítica
da administração burocrática, na organização e direção dos centros de decisão do
capitalismo, as características determinantes da burocracia se mantêm intactas. É
na periferia dos centros de decisão das empresas e dos Estados que são
implementadas as propostas de enfraquecimento da administração burocrática.
Assim, o modelo gerencialista não é pós-burocrático, mas combina “burocracia
monocrática” nos centros de decisão e “flexibilização burocrática” via
descentralização na periferia administrativa (2011, p.9).
Para o autor a racionalidade burocrática possibilita construções contra-
hegemônicas, se associada a mecanismos de controle social democrático sobre sua
67

burocracia. Isso porque essa racionalidade permite “servidores livres”, com funções
contraditórias que, se comprometidos com projetos de ampliação de direitos e da
democracia, podem disputar o Estado para os interesses da classe trabalhadora. A
estrutura burocrática teria, então, uma autonomia relativa associada à existência de
regras, leis e regulamentos fixos e um poder de mando e obediência vinculado a
regras impessoais (Souza Filho, 2011, p.67).
É claro que na prática essa estrutura legal apresenta contradições
decorrentes da luta de classes e da formação histórica nacional. É amplamente
pesquisado e difundido por diversos autores os elementos patrimonialistas do
Estado brasileiro, herdados de uma formação histórica escravista, autoritária e
clientelista. Mas a flexibilização da burocracia pode assumir e reforçar, apesar do
seu discurso de “modernização”, características da “burocracia patrimonial”, em
termos weberianos. A ausência da seleção impessoal de funcionários, por meio de
concurso público, retrocede a uma “dominação tradicional” com um quadro funcional
de “servidores pessoais”, isto é, que precisam, decisivamente, ser fiéis aos seus
superiores.
Souza Filho (2011, p.188) conclui, então, que essa proposta de organização
da administração pública é necessária para a expansão do capitalismo nos seus
termos atuais. Por um lado uma burocracia com hiper concentração de poder nos
centros decisórios, aproveitando-se da redução da contra-hegemonia, e garantindo,
de forma autoritária, o Estado para o capital e, de outro lado, o retorno ao
patrimonialismo tradicional nas esferas intermediárias visando “impedir/diminuir as
possibilidades de intervenções administrativas contestatórias” e “movimentos de
resistência ao projeto dominante” partindo de dentro de espaços do Estado por sua
própria burocracia (p.189).
No Brasil, a contrarreforma do Estado, elaborada, e inicialmente
implementada no governo Cardoso, acompanha esses pressupostos. Está
sistematizada no documento “Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado”,
elaborado pelo Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado,
capitaneado por Bresser Pereira, e aprovado pela Câmara da Reforma do Estado
em 1995 e posteriormente pelo governo da República.
No documento, mantém-se o diagnóstico de que a crise da década de 1980 é
uma crise do Estado que no período anterior desviou-se de suas funções para atuar
no setor produtivo, razão da crise fiscal e da deterioração dos serviços públicos. O
68

aparelho do Estado seria composto, dentro da sua lógica, por quatro setores. O
primeiro o núcleo estratégico onde estão o poder executivo strictu sensu, o poder
legislativo, judiciário e o Ministério Público, espaços que se mantém burocratizados e
com concentração de poder, pensando nos termos de Souza Filho (2011).
O segundo, o setor de atividades exclusivas onde o Estado exerce seu poder
de “regulamentar, fiscalizar e fomentar” tendo como exemplo: a cobrança de
impostos, a polícia, o serviço de trânsito, emissão de passaportes. Ao lado desses,
três exemplos que envolvem políticas sociais, tendo como característica a restrição
ao básico e a limitação no papel de execução, qual sejam: previdência social
básica, compra de serviços de saúde pelo Estado, subsídio à educação básica,
seguro desemprego,ou seja, nesse setor já se introduz a ideia de participação do
mercado, concorrência e descentralização.
O terceiro setor é de serviços não-exclusivos. Estes se caracterizam por um
setor no qual o Estado atua ao lado das “organizações públicas não-estatais e
privadas”. Esse setor seria idealmente ocupado por propriedades públicas não-
estatais, que se tratariam de organizações sem fins lucrativos que, segundo o
documento, apesar de não exercerem o poder de Estado estariam diretamente
orientadas para o interesse público. A presença do Estado só se justifica porque
envolve a garantia de direitos humanos fundamentais e ganhos sociais que não
podem ter retorno direto ao mercado, mas representam muito para a sociedade.
Nesse setor estão colocadas as universidades, os hospitais e os centros de
pesquisa.
O quarto e último setor é a área de atuação das empresas que “ainda
permanecem no aparelho do Estado” como infraestrutura. Essas atividades só estão
no âmbito estatal ou por falta de investimentos privados para supri-las ou por sua
natureza monopolística. Nesse caso o documento adverte que a privatização precisa
ser acompanhada de regulamentação rígida.
Enquanto para o setor de produção para o mercado o caminho traçado é o da
privatização, nos serviços não-exclusivos o documento propunha um processo de
“publicização”, o que transformaria as fundações e organizações públicas então
existentes em entidades de direito privado, passando a ter sua dotação orçamentária
atrelada à celebração de contratos de gestão com o Estado. Como consequência, os
serviços teriam maior autonomia, o controle social seria exercido por conselhos de
administração e a sociedade participaria do seu financiamento por meios “da compra
69

de serviços e doações”. O objetivo seria o aumento da eficiência e da qualidade dos


serviços a um custo menor.
A suposta publicização significa exatamente seu oposto. Na verdade um
processo de privatização que autonomizaria a gestão e prestação de serviços
sociais do âmbito dos mecanismos de controle democrático possibilitando
contratação temporária, inexistência de concursos públicos, inexistência de licitações
públicas, de controle social democrático sobre gastos e recursos e de garantia da
continuidade dos serviços entre outras coisas. Uma estratégia que orienta-se numa
perspectiva “desuniversalizante, contributivista e não constitutiva de direito das
políticas sociais” (MONTAÑO, 2008, p46), diretamente relacionada a “flexibilização
burocrática” com todas as suas conseqüências já expostas.
Em curto prazo, o objetivo traçado pelo documento era a elaboração e
aprovação de uma lei que transformasse as organizações executoras dos ditos
“serviços não-exclusivos” do Estado em organizações sociais 32 (OSs). O objetivo é
retirar desse setor o poder de Estado partindo do pressuposto de que serão mais
eficientes se financiados pelo Estado e geridos de forma “pública não-estatal”. Seu
financiamento é estatal, mas pode, e deve, ser complementado através de prestação
de serviços, doações e etc no qual “se busca uma maior parceria com a sociedade
que deverá financiar uma parte menor, mas significativa, dos custos dos serviços
prestados” (1995, p.60). Essa parceria, um dos conceitos chave da “publicização”
segundo Montaño (2008, p.47), significa, na prática, uma desresponsabilização do
Estado das políticas sociais, transferindo-as para o setor privado seja para fins
privados, isto é, visando lucro, seja para fins públicos 33.

32
“Entende-se por „organizações sociais‟ as entidades de direito privado que, por iniciativa do Poder
Executivo,obtêm autorização legislativa para celebrar contratos de gestão com esse poder, e assim
ter direito à dotação orçamentária” (BRASIL,1995, p. 60).
33
Montaño (2008) critica os teóricos e defensores da perspectiva do “terceiro setor”, “um novo setor
público porém privado” por dividirem a sociedade em três setores compartimentalizados,
desmontando a relação dialética existente entre a sociedade civil, Estado e mercado. A própria
noção de sociedade civil é emprestada por esses autores de Gramsci, porém numa leitura liberal
que tira da sociedade civil um inerente caráter classista, permeado por conflitos e disputas de
interesse. O próprio conceito de “terceiro setor” tem para o autor incontá veis debilidades teóricas,
quais sejam: o terceiro setor seria na verdade o primeiro, pois é a sociedade civil é anterior ao
Estado; não há definição sobre quais são as entidades que o compõem tornando-se um conceito
que reúne em si múltiplas organizações de finalidades diferentes e até opostas. Em suma, “(...) Mais
do que uma categoria ontologicamente constatável na realidade, representa um constructo ideal
que, antes de esclarecer sobre um „setor‟ da sociedade, mescla diversos sujeitos com aparentes
igualdades nas atividades, porém, com interesses, espaços e significados sociais diversos,
contrários e até contraditórios” (MONTAÑO,2008, p.57).
70

Os objetivos do país envolveriam, portanto, um novo modelo de


desenvolvimento e uma reforma administrativa do Estado pautada por
“fortalecimento de sua ação reguladora” voltada não para os meios e processos,
mas, para a eficiência dos resultados, o que o documento assume ser uma
administração gerencial. Para Behring (2003), no entanto, a reforma administrativa é
apenas um elemento desse processo. O Plano Diretor é muito mais amplo, revê o
conceito de Estado e refunda a relação Estado-sociedade.
Seus objetivos “inadiáveis” eram: o ajustamento fiscal, reformas econômicas
orientadas para o mercado garantindo concorrência interna e condições de
competição internacional, reforma da Previdência Social, inovação nas políticas
sociais visando aumentar sua abrangência e qualidade, reforma do aparelho do
Estado com o objetivo de aumentar sua eficiência na implementação de políticas
públicas.
Foi cumprindo esses objetivos que durante os dois mandatos do governo
Cardoso, no decorrer de oito anos, a política econômica brasileira passou
definitivamente a se subordinar aos ditames neoliberais respondendo aos interesses
dos credores internacionais e do capital financeiro em geral (Marques, 2010, p.7). O
governo efetivamente promoveu estabilização monetária, aprofundou a abertura
comercial e financeira, acelerou o processo de privatização das estatais, avançou na
desregulamentação do mercado de trabalho, “reformou” a Previdência Social e
desmontou o aparelho de Estado (Nakatani e Oliveira, 2010, p.27). Na próxima
sessão aprofundaremos a análise das questões específicas da crise do capital no
Brasil e as respostas políticas no último período.

2.2 Crise do capital e ofensiva sobre o fundo público: o caso brasileiro

Apesar da Constituição de 1988 tender à ampliação do Estado no campo social,


já em 1989 a vitória de Collor para presidente do país na primeira eleição direta pós-
ditadura, marca o início da adoção do pensamento neoliberal na política econômica
brasileira. Até então, a força da organização e as expectativas dos trabalhadores no
processo de democratização, no plano político, e a explosão da dívida externa e da
inflação, no plano econômico, não permitiram a adoção das políticas propostas pelo
71

FMI e pelo Consenso de Washington (Marques, 2010, p.7). Do seu curto governo,
encerrado pelo processo de impeachment motivado por inúmeras denúncias de
corrupção, ficaram como herança a abertura do comércio exterior e a ideologia
crescente de defesa da redução do setor público através das privatizações, não
tendo sido bem sucedido no combate à inflação.
Assume então a presidência seu vice, Itamar Franco. Durante seu governo, o
Ministério da Fazenda, capitaneado por Fernando Henrique Cardoso, implanta o
Plano Real. O Plano consistia numa conversão da moeda de cruzeiro para o real
acompanhado pela âncora cambial, o que impediu a retomada da inflação. O
sucesso do Plano Real no combate à inflação leva a vitória de Cardoso nas eleições,
assumindo a presidência em 1995. Sua vitória permite uma “rearticulação das forças
do capital no Brasil”, promovendo uma virada na correlação de forças entre as
classes (Behring, 2003, p.156).
Em todos os seus aspectos o governo Cardoso representou uma violenta
adequação do país aos princípios do Consenso de Washington. Não é coincidência
ter sido Bresser Pereira, representante brasileiro na reunião que determinou os
passos para a implantação do Consenso na América Latina 34, o ministro responsável
no governo Cardoso pela “Reforma do Aparelho do Estado”.
A sobrevalorização do câmbio e a excessiva abertura comercial, com a
consequente necessidade de altos juros para atrair capitais – especulativos, todavia
- inauguraram uma política econômica na qual o crescimento da produção e da
demanda ao invés de metas passaram a ser encarados como obstáculos à
estabilização (Behring, 2003, p.158). Os juros altos, por sua vez, associados a
sucessivos déficits na balança comercial brasileira ampliaram significativamente a
dívida pública “o que transformou a economia brasileira em uma economia de
„endividamento‟” (Nakatani e Oliveira, 2010, p.30) aprofundando a vulnerabilidade
interna e externa do país. Também fez migrar os capitais dos investimentos
produtivos para o mercado financeiro ampliando o desemprego e minando o
crescimento econômico.

34
Em 1993 especialistas se reuniram mais uma vez em Washington para definir um plano de ajuste
para a América Latina. O plano ocorreria em três fases: a. dirigida ao superávit fiscal, redução do
déficit na balança comercial e desmonte da previdência pública; b. dedicada a reformas estruturais,
liberalização financeira e comercial, desregulamentação dos mercados e privatização das estatais; e
c. retomada de investimentos e crescimento econômico (MONTAÑO, 2008, p.30).
72

No segundo governo de Cardoso a política de sobrevalorização do câmbio se


esgota, e a crise de saída de capitais em 1998/99 35, que teve como estopim uma
aguda crise internacional do capital, leva o governo a adotar uma taxa de câmbio
flutuante. Essa mudança, entretanto, não diminuiu a vulnerabilidade externa nem
interrompeu o agravamento do déficit público, dada a manutenção de exorbitantes
taxas de juros. Esse endividamento levou o governo a busca de superávits
primários, conforme a imposição do acordo com o FMI, redução de investimentos e
mais ataques às políticas sociais. Para garantir os superávits a política econômica
apoiou-se em dois instrumentos: a elevação da carga tributária e o corte de
despesas discricionárias, principalmente de investimento (Nakatani e Oliveira, 2010,
p.35).
Em relação ao aumento da carga tributária, Salvador (2007) defende que durante
o governo Cardoso esteve em curso uma verdadeira contrarreforma tributária. No
que tange ao imposto de renda, o tributo mais potencialmente progressivo dentro da
estrutura tributária extremamente regressiva do país, o congelamento da tabela
entre 1996 e 2001 associado à redução de treze para duas faixas de contribuição,
significaram uma ampliação enorme dos trabalhadores descontados na fonte além
de perda de progressividade. Se em 1995 a isenção era para até 10,48 mínimos,
em 2005 passou a ser para até 3,9 mínimos. A alíquota mínima triplicou de 5% para
15% enquanto a máxima foi reduzida pela metade, de 60% para 27,5%. Além
dessas medidas, em relação ao imposto de renda, houve mudanças na legislação
da Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS) e do
Programa de Integração Social (PIS) e medidas de desoneração do capital como
isenção de imposto de renda para remessas ao exterior e redução a zero de
alíquotas de imposto de renda e da Contribuição Provisória sobre Movimentação ou
Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira (CPMF)
para investidores estrangeiros no Brasil. Tudo isso aumentou a arrecadação de
impostos em 101,62% no país entre 1996 e 2005, mas com aumento da

35
O governo tentou estimular a entrada de capitais, no início da crise em agosto de 1999,
aumentando a taxa básica de juros de 29,75% para 49,75% anunciando, ainda, um novo ajuste
fiscal e aumento de receita tributária. No entanto o governo continuou a perder suas reservas e a
acumular déficits. Em dezembro de 1998, após a vitória eleitoral de Cardoso que garantia seu
segundo mandato, o governo faz um empréstimo de 41,5 bilhões de dólares ao FMI e outros
organismos internacionais. Em troca promete a manutenção de superávits primários de 3,5% do PIB
(Nakatani e Oliveira, 2010, p.32).
73

regressividade, ou seja, fazendo recair ainda mais os impostos sobre os


trabalhadores 36.
Do lado dos gastos, a partir do acordo com o FMI em 1999, as metas de
superávit fixadas levaram a contenção em todas as áreas, menos no pagamento dos
serviços da dívida e de pessoal. Em 2000 o superávit primário alcançado foi de
3,56% do PIB, mais que a meta do FMI que era de 3,4%37, penalizando os
investimentos produtivos e a área social, exatamente aqueles setores que deveriam
ser beneficiados pelo ajuste e pela “reforma” do Estado. Para tanto, medidas como o
Fundo Social de Emergências (1994), o Fundo de Estabilização Fiscal (1997) e, por
fim, a Desvinculação das Receitas da União (DRU)38 foram fundamentais, pois
retiraram recursos da área social de forma “indireta e escamoteada” que deveriam
constitucionalmente estar a elas vinculados (Behring, 2000).
Além dos golpes dados ao seu financiamento público, para as políticas sociais
o ambiente ideológico individualista associado à fragmentação das organizações da
classe trabalhadora e as necessidades do capital de privatizar setores anteriormente
públicos como a saúde e a educação, que passam a ser espaços de valorização,
levam a uma tendência geral de perda de direitos, reduzindo sua amplitude e
alterando o seu caráter. O trinômio do ideário neoliberal para as políticas sociais é,
segundo Behring (2003), privatização, focalização e descentralização, sendo este
último o mero repasse de responsabilidades para outros entes da federação ou para
o chamado setor público não-estatal, no melhor espírito da publicização bresseriana.
A privatização, por sua vez, abriu espaços para o capital. Já a focalização passa a
reduzir a política social a programas para pobres e indigentes, perspectiva
recomendada pelos organismos internacionais.
A política econômica aplicada, associada às reformas estruturais deste
período conformam o que Behring (2003) caracterizou como uma contrarreforma,

36
A incidência de tributos indiretos sobre bens e serviços saiu de 17,2% do PIB em 1996 para 20,8%
do PIB em 2005. O aumento da regressividade na estrutura tributária associado a desonerações ao
capital através de isenções fiscais fez com que os trabalhadores pagassem entre 1999 e 2005
quase cinco vezes mais impostos que o setor financeiro da economia (Salvador, 2007).
37
Em: http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,superavit-primario-em-2000-superou-meta-com-
fmi,20010130p9568. Consulta em 21/03/2015.
38
A DRU garante que 20% das receitas vinculadas a Seguridade Social e à educação passem a ficar
a disposição do governo para outros gastos. A medida foi mantida durante do governo Lula e
apenas em 2009 a educação deixou de ser penalizada por esse mecanismo que, entretanto,
continua em curso nas políticas da Seguridade.
74

isto é, uma “opção que implicou, por exemplo, uma forte destruição dos avanços,
mesmo que limitados, sobretudo se vistos da ótica do trabalho, dos processos de
modernização conservadora que marcaram a história do Brasil” (BEHRING, 2003,
p.198). Assim, ao contrário de outros períodos históricos quando, apesar da
condução conservadora, a modernização deu saltos a frente, no governo Cardoso o
componente destrutivo e antinacional fez retroceder as parcas conquistas e avanços
anteriores.
A principal incongruência desse modelo, apontada pela autora, é a relação entre
o discurso da reforma e a política econômica. Ao mesmo tempo em que se afirma a
necessidade de refuncionalizar o Estado para aumentar sua eficiência e reduzir
custos, a política econômica adotada faz escoar monumentais somas de recursos
para pagamento de juros e amortizações da dívida pública.
Outra contradição foi a privatização das empresas públicas no Brasil. Anunciada
como meio para sanar as contas públicas e combater a crise fiscal, a privatização
significou entrega de patrimônio nacional para o capital estrangeiro, desemprego e
desequilíbrio da balança comercial (Behring, 2003, p.201).
Essa aparente incongruência entre o discurso da reforma e a política econômica,
contudo, é apenas aparência: “a prática da „reforma‟ é perfeitamente compatível com
a política econômica, o que reforça a ideia de que seu discurso é pura ideologia e
mistificação, no sentido de falsa consciência, num explícito cinismo intencional de
classe” (BEHRING, 2003, p.202). Assim como o projeto neoliberal no mundo
desenvolvido, a burguesia brasileira também se inseriu durante o governo Cardoso,
sobretudo, na dinâmica mundial marcada por um neoliberalismo pragmático a
serviço da retomada dos lucros e do poder da classe dominante que volta à
ofensiva. O que fica claro, na prática, é que o chamado ajuste fiscal não significou
uma redução de gastos do Estado, mas, uma reorientação desses gastos a favor do
capital financeiro.
Ferreira (2010), em interessante trabalho sobre a execução orçamentária da
União39 entre 1990 e 2007, aponta como traços do período a priorização dos
compromissos financeiros com os serviços e amortizações da dívida pública,
levando à crescente financeirização da economia e à redução do papel do Estado

39
Para Ferreira (2010, p.53) “(...) a execução do orçamento é uma representação acabada das
prioridades existentes nas ações do Estado e como isso pode revelar as mudanças que afetaram a
atuação de tal instituição ao longo das últimas décadas”, tese que coadunamos.
75

como fomentador do crescimento econômico, com o forte marco da redução de


gastos em investimento e da política fiscal vinculada aos interesses financeiros e
não em prol do crescimento.
Para referendar sua hipótese, Ferreira (2010) levanta dados 40 agrupados por tipo
de despesa e por função. Em relação aos grupos de despesa, os dados apontam
para uma queda em gastos de capital de 25,5%, em 1994, para 11% em 2007, o que
representa nominalmente uma passagem de 185,6 bilhões para 104,4 bilhões.
Dentro desse grupo, os responsáveis fundamentais pela redução foram os gastos
com investimentos que caíram de 1,56% de participação em 1990 para 0,9% em
2007. Apenas em 1991, com a moratória do pagamento da dívida implementada
pelo governo Collor, houve um gasto maior com investimentos em relação aos juros
chegando à marca de 4,32% na participação total. Entretanto, desde 1990, excluindo
1991 como exceção, os gastos com investimentos são extremamente baixos
comparados aos padrões de décadas anteriores. Em 1982, por exemplo, Ferreira
(2010, p.64) encontra 16,02% de gastos de investimento no orçamento total, o
quádruplo de 1991, considerado ano excepcional na década de 1990.
O grupo de “Pessoal e Encargos Sociais” apesar de passar por oscilações
manteve-se ao final em patamar similar na casa dos 10%. As transferências para
Estados e municípios e os benefícios previdenciários elevaram-se principalmente em
função das mudanças decorrentes da Constituição de 1988. As “Demais Despesas
Correntes”, que representam gastos de consumo no custeio do governo e
pagamento de terceirizados tiveram uma queda na sua participação no orçamento
de 11% em 1990 para 7,4% em 2007.
Por outro lado, a maior parte da elevação da execução orçamentária ocorreu pelo
aumento da “Amortização da Dívida – Refinanciamento” que passou de 178 bilhões
de reais em 1994 para 576 bilhões de reais em 2005, uma elevação de 223%,
resultando num aumento dessa rubrica de 24,5% em 1994 para 45,16% em 2005 e
32,2% em 2007 na sua participação no orçamento. Isto é “o comprometimento do
Estado com a dívida manteve-se elevado, sem que o pagamento de juros e
amortizações permitisse reduzir o montante destinado para o refinanciamento da
dívida” (FERREIRA, 2010, p.59). Mesmo com tudo isso, o pagamento de juros

40
A fonte dos dados é o banco da Secretaria do Tesouro Nacional e foram deflacionados pelo Índice
Geral de Preços – Disponibilidade Interna (IGP-DI) para valores de março de 2008. Os dados vão
até 2007, já no segundo mandato de Lula da Silva e, apesar de estarmos tratando do governo
Cardoso, já corroboram para a tese de continuidade entre ambos que trataremos mais a frente.
76

também se elevou nesse período passando de uma participação de 4,14% no


orçamento em 1990 para 12,02% em 2007.
No total, o peso dos encargos financeiros da União (soma de juros e encargos
da dívida mais amortização e refinanciamento) representou 50,2% do total de gastos
em 1994, chegando a ultrapassar 60% em 2000 e 2003, só apresentando uma
redução para 52,5% em 2007, graças a uma queda nos gastos com
refinanciamento.
Em relação às funções, o que a autora observou foi uma redução significativa
na função de “Administração” que se explica dada a separação dos “Encargos
Especiais” referentes à dívida que antes a compunham. Nas funções ligadas à
administração – executivo, legislativo, judiciário - há certa manutenção nos
patamares de participação dos gastos. Já as despesas referentes à Segurança
Pública reduziram sua participação de 2,23% em 1990 para 1,83% em 2007.
Na política de saúde observou-se um significativo aumento absoluto de
gastos, passando de 8,9 bilhões em 1990 para 49 bilhões em 1997, valores que têm
permanecido estáveis desde então. Sua participação no orçamento, no entanto,
depois de ter aumentado com a Constituição de 1988 e suas regulamentações de
0,78% em 1990 para 5,5% a 6% entre 1991 e 1997, voltaram a se retrair chegando a
3,4% em 2007. Isso porque o aumento da arrecadação não tem sido repassado para
essa política. No campo, ainda, da Seguridade Social, a Previdência e Assistência
elevaram sua participação após a Constituição de 11,5% em 1990 para 19% em
1991 chegando a 22,19% em 1996 caindo a partir de então, só retomando este
patamar em 200741.
Nas funções que a autora chama de infraestruturais, já que propulsoras do
crescimento e do desenvolvimento nacional, como Habitação, Agricultura,
Transporte, Energia Elétrica, Comércio, Indústria e Desenvolvimento Regional nota-
se uma redução da participação no orçamento em todos os casos. Atenta, ainda,
para a redução significativa nos gastos com Transporte, Energia e Comunicações

41
Ferreira (2010), porém, ao agrupar os dados das duas políticas deixa passar o crescimento da
assistência dentro da Seguridade Social nos últimos anos, com a priorização de políticas d e
transferência de renda associadas à perda de direitos previdenciários e ampliação da informalização
do trabalho, o que alguns autores têm chamado de assistencialização da política social. Para
aprofundar esse debate consultar Mota (2008) e Salvador, Boschetti e Teixeira (CBAS, 2013).
77

mesmo antes de serem privatizados, o que teve o sucateamento de suas estruturas


como conseqüência, induzindo à ineficiência e à privatização.
Assim como no estudo pautado pelos grupos de despesa, é a função
“Encargos Especiais” relacionada ao pagamento da dívida pública a que mais tem
crescido proporcionalmente no orçamento e a que tem maior participação passando
de 21,7%, em 2000, para 34,2%, em 2006, e 31,94% em 2007.
A conclusão, destarte, trazida pelo estudo de Ferreira (2010) é que, a partir da
década de 1990, num padrão que segue posteriormente ao governo Cardoso, há, de
fato, uma mudança do modelo de Estado, que passa a sacrificar os gastos com
investimentos em benefício do mercado financeiro. Tudo isso, porém, sem reduzir o
ônus da dívida pública no orçamento, um dos elementos importantes apontados por
Bresser Pereira no diagnóstico da crise fiscal, que, apesar dos sucessivos superávits
primários, tem aumentado sua relação com o PIB.

O que se tem, na realidade, é que o Estado retraiu sua função como


propulsor do crescimento econômico – o que realizava principalmente
mediante investimentos – e manteve sua participação ativa como
“garantidor” da preservação de interesses financeiros e rentistas. A forma
como os pagamentos dos juros e encargos da dívida, assim como sua
amortização, se sobressaem nos dispêndios do governo é evidência disso
(FERREIRA, 2010, p.72).

Todos esses elementos referendam a tese de que o ajuste fiscal proposto na


década de 1990, que se transformou na única alternativa “técnica” para o
enfrentamento da crise da década de 1980, foi uma falácia. A maior parte de sua
argumentação é meramente ideológica, a serviço da transferência do fundo público
para o capital, com destaque para as finanças, revertendo um padrão anterior de
maior participação das políticas sociais e de investimentos produtivos no orçamento
público, situação que ocorreu mesmo em países como o Brasil onde um Estado de
Bem Estar nunca de fato se efetivou.
Não foi, porém, sem a resistência de setores organizados da classe
trabalhadora brasileira que as propostas neoliberais de Cardoso foram
implementadas. Essa resistência, que contava com a oposição do Partido dos
Trabalhadores (PT) ao governo, apesar de insuficiente para, por exemplo, impedir as
privatizações, impediu que algumas contrarreformas estruturais, na qual se inclui,
por exemplo, a contrarreforma universitária, fossem implantadas na totalidade de
sua proposta. Da mesma forma, o governo não conseguiu transformar hospitais,
78

universidades e demais órgãos públicos em organizações sociais, apesar do


fortalecimento do papel Organizações não governamentais (ONGs), Fundações e
demais organizações do terceiro setor na execução de políticas sociais nesse
período.
Foi nesse contexto que, depois de três eleições perdidas (em 1989, 1994 e
1998), na eleição presidencial de 2002, Lula da Silva, ex-metalúrgico e símbolo do
PT, sagrou-se Presidente da República. Sua vitória pode ser atribuída em larga
medida ao sentimento oposicionista de grande parte da população às medidas
regressivas, de retirada de direitos, implementadas pelo governo de Cardoso no
período anterior, associadas aos reflexos da crise econômica que atravessou seu
segundo mandato. Seria a expressão, no Brasil, de um avanço da esquerda na
América Latina, resposta à crise do neoliberalismo, que provocou aumento das
desigualdades, redução do crescimento e crises econômicas em toda região, sendo
uma das mais agudas a que ocorreu na Argentina em 2001. A partir desse momento
“o posicionamento com respeito às reformas neoliberais tornou-se obrigatório para
qualquer perspectiva que se proponha alternativa na região” tendo “a própria
ortodoxia necessidade de reformular suas ideias – sem alteração do conteúdo- em
virtude do fracasso das reformas neoliberais” (CARCANHOLO, 2010, p.122).
Mesmo representando um sentimento anti-neoliberal, ainda na campanha
eleitoral, Lula da Silva fez questão de desmentir que seu governo fosse representar
ruptura com a política do governo anterior. O episódio mais importante foi a
divulgação da “Carta ao Povo Brasileiro”. O documento respondia à preocupação do
capital com uma possível mudança de rumo, que poderia ser implementada por Lula.
Ainda que falasse muitas vezes de mudança e justiça social, eram os credores,
empresários e proprietários em geral seu público alvo. No meio das promessas,
comuns a qualquer candidato ou governo, de crescimento econômico e melhoria na
distribuição de renda, afirmava-se: “o respeito aos contratos e obrigações do país”, a
compreensão de que “a margem de manobra da política econômica no curto prazo é
pequena”, o compromisso de “preservar o superávit primário o quanto for
necessário”, realizar reformas tributária, previdenciária e trabalhista “desonerando a
produção”, além de “valorizar o agronegócio”. Assim, o documento tranqüilizava o
capital de que os principais alicerces do governo Cardoso seriam garantidos e que
qualquer defesa do socialismo ficaria para os dias de festa. Somou-se a isso a
aliança com partidos de centro-direita e a aproximação com setores das elites
79

tradicionais como José Sarney e Antônio Carlos Magalhães, caracterizando um


governo policlassista desde sua origem.
Mas, apesar da política continuísta neoliberal, os indicadores econômicos e
sociais demonstraram alguns avanços no governo Lula. A que se devem esses
avanços?
Na área econômica o governo pôde contar com um cenário internacional
favorável desde 2004. Durante o primeiro mandato de Lula a economia mundial
cresceu em média 5% ao ano, o que possibilitou ao país o crescimento de 3,4% do
PIB ao ano em média nesse período, chegando a 5,7% em 2004, maior alta desde
1994, primeiro ano do Plano Real. O governo também manteve o saldo da balança
comercial positivo, o que vinha ocorrendo desde 2001 com as políticas de incentivo
à exportação, e se beneficiou ainda mais do aumento do preço de commodities no
mercado internacional observado entre 2003 e 2006. Esse período favorável só
pôde ser aproveitado pelo governo, porém, a partir de 2005 na recomposição de
suas reservas internacionais, quando conseguiu saldar a maior parte de sua dívida
com o FMI. Esses ventos favoráveis internacionais só se modificam a partir de 2008.
A crise econômica mundial, que começava a ser sentida nos países centrais, fez cair
o preço das commodities reduzindo os superávits na balança e tornando o saldo da
conta corrente deficitário em 2008 (Nakatani e Oliveira, 2010). Apesar do otimismo
de que a crise não aportou por aqui permanecer no país, Sampaio Jr. (2010, p.48)
defende que o hiato de tempo entre o impacto da crise nos países centrais e
periféricos se deve ao diferente encadeamento da relação crédito-gasto-renda, onde
na periferia “os efeitos multiplicadores da renda das exportações, ao ampliar o
mercado interno, dão uma sobrevida ao crescimento econômico”. Para o autor,
analisando a América Latina, a crise mundial do capitalismo tende a ampliar a
dependência dos países, retraindo o crescimento econômico:

Elo mais fraco do sistema capitalista mundial e zona de influência dos


Estados Unidos a região será duramente pressionada a dar a sua
contribuição no processo de socialização dos prejuízos do grande capital.
Como a crise impõe a eliminação do parque produtivo redundante, é de se
esperar uma aceleração e uma maior intensidade na tendência à
desindustrialização e à especialização regressiva que têm caracterizado o
ajuste estrutural das economias latino-americanas aos ditames da ordem
global (SAMPAIO JR., 2010, p.52).
80

Mesmo com o cenário positivo na maior parte do período, o governo manteve


as medidas neoliberais de seu antecessor. Manteve a taxa Selic, mesmo com
pequenas alterações, a posição de taxa de juros real mais alta do mundo, um
superávit primário superior ao acordado com o FMI, uma relação desfavorável entre
a dívida e o PIB que continuava na casa dos 40% em 2006. Outro destaque foi a
conversão da dívida externa em dívida interna a partir de 2006, com os benefícios
de isenção fiscal garantidos pela lei 11.312/06. A medida permitiu um aumento de
reservas, mas ampliou a fragilidade fiscal do país, pois os juros internos que
passaram a incidir sobre a maior parte da dívida pública,mantiveram-se bem maiores
que os externos (Nakatani e Oliveira, 2010).
Além disso, o governo aprofundou a “reforma” bresseriana do Estado, diluindo
as fronteiras entre o público e o privado, com a privatização da gestão pública.
Exemplo central disso foi a Lei das Parcerias Público - Privadas de dezembro de
2004. Com essa lei o governo regulamentou a licitação e contratação de parceria
público privada (PPP) por órgãos da administração pública direta e indireta, através
de contrato administrativo de concessão.
No início de seu segundo mandato o governo anunciou o Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC) que levou o governo a reivindicar mais
claramente sua face “novo- desenvolvimentista”42.
Trabalho elaborado pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Orçamento
Público e Seguridade Social (Behring et al, 2007) demonstra as contradições
colocadas pelo programa desde sua elaboração.
Primeiro é apresentado no PAC um longo capítulo de desonerações
tributárias, um grande golpe no financiamento das políticas sociais, prevendo uma
perda de arrecadação de R$ 6,6 bilhões que deveria chegar a R$11,5 bilhões em
2008. Para isso foram implementadas as seguintes medidas:

recuperação acelerada dos créditos de PIS e COFINS em edificações (de


25 anos para 24 meses), deixando de arrecadar cerca de R$ 3,45 bilhões

42
Não por coincidência a sucessora de Lula nas próximas eleições presidenciais foi coordenadora do
programa. Em reportagem do Estado de São Paulo de 26 de dezembro de 2009 afirma-se: “O
presidente Luiz Inácio Lula da Silva quer colar em Dilma o carimbo do "novo desenvolvimentismo”
[...] Na prática, a volta da retórica à esquerda na seara do petismo é reflexo da vitória, dentro do
governo, do grupo desenvolvimentista, que no primeiro mandato de Lula travou forte queda de
braço com os monetaristas. "Nós interrompemos a visão neoliberal do Estado mínimo e
recuperamos não só os bancos públicos, como estatais do porte da Petrobrás", argumentou o líder
do PT no Senado, Aloizio Mercadante (SP), integrante da comissão escalada pelo partido para
preparar o programa de Dilma. "Estamos, sim, construindo um novo desenvolvimentismo."”
81

em 2007/2008; desoneração de obras de infra-estrutura (suspensão da


cobrança de PIS/COFINS nas aquisições de insumos e serviços vinculados
a novos projetos); programa de incentivos ao setor da TV Digital que prevê
redução a 0% de PIS/COFINS; programa de incentivo ao setor de semi-
condutores que prevê redução a 0% de PIS/COFINS; ampliação do
benefício tributário para micro-computadores, com alíquota 0% de
PIS/COFINS para computadores até R$ 4.000,00; prorrogação por dois
anos do benefício que permite a contabilização fiscal da depreciação de
novos investimentos na metade do prazo normal, reduzindo a contribuição
social sobre o lucro (CSLL) devido pelas empresas; prorrogação do prazo
de permanência da construção civil no regime de cumulatividade do PIS e
da COFINS até 31 de dezembro de 2008; criação da Receita Federal do
Brasil, diluindo os recursos da previdência social, agora sob gestão do
Tesouro Nacional (BEHRING et al, 2008).

Essas isenções promoveram fortes perdas nas fontes de financiamento da


Seguridade Social, com isenções parciais e em alguns casos totais, de tributos que
compõem a estrutura central de realização das políticas de previdência, saúde e
assistência social, aprofundando a transferência do fundo público para o capital
privado43.
Tudo isso porque grande parte do capital necessário para a viabilização do
PAC deveria sair da iniciativa privada – cerca de R$ 390,1 bilhões do setor privado e
R$ 113,8 bilhões do setor público – levando o governo a criar uma legislação que
estimulasse esses investimentos. Ainda assim ele não consegue criar condições
para que estes se concretizem. Isso porque o investimento público permanece muito
baixo e o privado deve fazer investimentos longos e de baixa rentabilidade, não
necessariamente atrativos, o que coloca em questão a efetividade do programa. O
setor público tendeu a não cumprir sua meta de investimentos devido ao ajuste fiscal
voltado para o pagamento da dívida pública, e a iniciativa privada, por sua vez,
tendeu a seguir a lógica contemporânea do capital que pressiona por um maior
investimento no mercado financeiro do que no setor produtivo, por ter maiores
vantagens no primeiro.
Na área social o governo também manteve e aprofundou a lógica neoliberal
do governo Cardoso, dando continuidade às contrarreformas estruturais, em acordo
com o recomendado pelos organismos internacionais.
O primeiro projeto importante do governo foi a segunda etapa da
contrarreforma da previdência. Se o governo anterior tinha iniciado a contrarreforma
pelo setor privado o governo Lula a implementa no setor público. Para Paulani

43
Aprofundaremos o debate sobre as isenções, também chamadas gastos tributários, e suas
consequências para a política de saúde e para a Seguridade Social como um todo, nas análises
orçamentárias do capítulo quatro.
82

(2008, p.43) o principal efeito da contrarreforma é a substituição do regime de


repartição pelo de capitalização já que a instituição de tetos para os benefícios
levará os trabalhadores a adotar fundos complementares de previdência 44,
beneficiando mais uma vez o capital financeiro. Além disso, elevou contribuições,
idade e tempo de trabalho para a obtenção de benefícios, taxou os inativos,
contribuindo com o ajuste fiscal pró-pagamento da dívida através da retirada de
direitos dos trabalhadores.
Mas o carro-chefe do governo, que tem sido propagandeado como
responsável pela redução dos índices de pobreza no Brasil 45, foi certamente o
Programa Bolsa-Família. O Programa foi instituído por Medida Provisória em 2003,
sancionado por lei e regulamentado por decreto em 2004. Seu objetivo era unificar a
gestão e a execução das ações de transferência de renda com condicionalidades
existentes desde o governo Cardoso como o Programa Bolsa-Escola, Bolsa-
Alimentação e Auxílio Gás. Integrava uma estratégia de combate à fome e à
pobreza, o Fome Zero, transferindo renda com condicionalidades na saúde e na
educação. Famílias com renda mensal per capita entre o equivalente a 30,7 e 61
dólares 46 e abaixo de 30,7 dólares em outra faixa, nos valores de 2007, teriam direito
ao benefício se cadastradas no Cadastro Único para Programas Sociais (Stein,
2008). Ao contrário do Benefício de Prestação Continuada (BPC), um direito
constitucional que garante um salário mínimo de transferência de renda para idosos
e portadores de deficiências incapacitantes para o trabalho, o Programa Bolsa-
Família depende dos recursos liberados pelo governo para a inserção dos usuários.
Não se constitui, portanto, enquanto direito garantido a todos aqueles incluídos em
seus critérios, que por si só já são extremamente rebaixados, limitando o programa
àqueles que se encontram em extrema pobreza.

44
“Os fundos de pensão (que agora serão ainda mais numerosos e volumosos) funcionam como
braço auxiliar da dívida pública, no papel de retirar da esfera da acumulação produtiva parcelas
substantivas da renda real” (PAULANI, 2008, 46), alimentando assim a esfera financeira da
economia.
45
Segundo o Plano para o Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas (PNUD -ONU) de
2007, o Brasil apresentou: crescimento da renda per capita dos 10% mais pobres a taxa de 8% ao
ano; crescimento da renda per capita geral de 0,9% ao ano; redução de 3,8% de brasileiros abaixo
da linha de pobreza; redução de 5,6% de brasileiros abaixo da linha de extrema pobreza; e redução
da desigualdade em 5% segundo o coeficiente Gini. Ainda assim o Brasil apresentava a oitava pior
posição de desigualdade de renda entre os países acompanhados pelo PNUD, à frente apenas de
sete países africanos.
46
O equivalente a respectivamente 83,1 e 165,31 reais pelo câmbio de 05 de janeiro de 2015.
83

Em síntese, concluímos nossa análise identificando que o governo Lula teve


como marca a continuidade e não a ruptura, a partir de uma escolha política
consciente. As contrarreformas neoliberais foram mantidas e aprofundadas, bem
como os principais sustentáculos da política econômica de Cardoso: liberalização
econômica, favorecimento do capital financeiro por meio da dívida pública, juros
altos, superávits primários. No que tange às políticas sociais aprofundou-se a
perspectiva focalista e manteve-se a privatização, por meio da lógica público-privada
e pública não-estatal.
Mas, desde a histórica chegada do PT à presidência da República, vários
analistas vêm desenvolvendo teorias sobre o significado do governo petista. Mesmo
tendo mantido a política econômica conservadora, de tonalidade neoliberal e em
benefício dos rentistas, semelhante ao governo pessedebista de Cardoso, o governo
Lula alcançou 80% de apoio da população, se reelegendo em 2006. Mantendo
esses altos índices de popularidade, Lula elegeu em 2010 e relegeu em 2014
Roussef como sua sucessora, mantendo seu projeto original, chamado por alguns
autores de lulismo. Há certo consenso na centralidade de políticas compensatórias
como o Bolsa Família, associado à ampliação do crédito e ao aumento real do valor
do salário mínimo como causas do bom desempenho do “lulismo” junto a população
brasileira. Alguns autores apontam, ainda, o crescimento de vagas nas
universidades com benefício de setores mais pauperizados, por meio das cotas, e o
crescimento do emprego formal 47 como razões do bom desempenho de Lula (Braga,
2010). Outro programa, o “Luz para todos” que, segundo o governo, levou luz
elétrica para 15,3 milhões de pessoas, também impactou significativamente a
população no interior o país. Desenvolveremos esses argumentos na próxima
sessão.

47
Ainda que Braga (2010) aponte que a “reformalização” do mercado de trabalho está a serviço de
uma maior arrecadação fiscal que tem como objetivo ampliar os recursos para pagar aos rentistas
juros da dívida pública.
84

2.2 O significado dos governos no PT na conjuntura neoliberal

Do ponto de vista analítico segue polêmico o significado do governo Lula,


seguido de Roussef como continuidade da “era PT”, para a classe trabalhadora
brasileira, seja no que tange aos possíveis ganhos objetivos, revertidos em redução
da pobreza e /ou desigualdade, seja em ganhos subjetivos, como o fortalecimento
da classe em sua organização política. Singer consolida em “Os sentidos do lulismo”
de 2012, sua tese sobre o governo, que já vinha sendo construída em inúmeros
artigos 48, atualizados para o livro. Tendo participado do primeiro escalão do primeiro
mandato de Lula e fazendo parte do quadro de filiados do PT, as ideias de Singer
têm cariz declaradamente mais favorável ao governo, ainda que apresente críticas.
Também é declarada a polêmica aberta com Oliveira (2010) e sua tese da
“hegemonia às avessas”. Seu objetivo é apresentar, ao contrário do autor, uma visão
progressista do governo Lula.
Sua tese, já desenvolvida no artigo de 2009, se inicia pela afirmação de que
na eleição de 2006 há um deslocamento de classe na base de apoio de Lula. Se é a
classe média quem dá a vitória a Lula em 2002, em 2006 essa parcela se afasta
frente ao transformismo no discurso de esquerda e às denúncias de corrupção que
estouram com o “mensalão” em 2005. O centro do governo no “combate à pobreza”
traz para a base de Lula o subproletariado, por meio, segundo o autor, da ativação
do mercado interno, melhorando o padrão de consumo nas regiões mais pobres do
Norte e do Nordeste, sem, no entanto, confrontar os interesses do capital. Essa
configuração leva o autor a comparar, tendo cuidado com as particularidades
históricas e locais, o governo Lula à política de massa descrita por Marx no “18
brumário”, na qual a dificuldade de organização estrutural de uma fração de classe a
leva a projetar seus anseios em um líder constituído de cima para baixo.
Essa relação entre Lula e o subproletariado, que instituirá o que o autor vai
chamar de lulismo, se funda a partir de um projeto caracterizado por Singer de
reformismo fraco, que seria um “semitransformismo”. Para o autor “o reformismo
lulista é lento e desmobilizador, mas é reformismo” (2012, p. 45). O reformismo fraco

48
Raízes sociais e ideológicas do lulismo. Novos Estudos, n.85, Nov. 2009; O lulismo e seu futuro,
Piauí, n.49, out.2010; Realinhamento, ciclo longo e coalizões de classe. Revista de Economia da
PUC-SP, ano 2, n.4, jul/dez 2010.
85

não seria o contrário de reformismo forte, base original do programa do PT, mas sua
diluição. Inaugura um ciclo de redução da pobreza e da desigualdade, ainda que
com a contradição do seu ritmo lento, insuficiente para as imensas necessidades
brasileiras. Esse ritmo ao mesmo tempo não se enfrenta com o capital, pois “para a
burguesia, o reformismo fraco representa um caminho possível, embora não o de
sua predileção, para o desenvolvimento do capitalismo no país, sem que sua
posição esteja ameaçada” (2012, p.207).
Ao mesmo tempo, para o subproletariado, o reformismo fraco permite a
integração à ordem capitalista e nela prosperar por meio das políticas de crédito,
valorização do salário mínimo, aumento do emprego formal e transferência de renda.
Este seria o “pulo do gato” de Lula: segundo Singer, esse segmento da classe teme
rupturas com a ordem, pela sua enorme vulnerabilidade em momentos de crise,
almejando um projeto de “ordem e mudança”, que passa a ser a tônica do governo
Lula “paz e amor”.
Singer nega, assim qualquer caráter neoliberal do governo Lula,
transformando a crítica ao governo em um problema de ritmo. Primeiro porque uma
característica do neoliberalismo é favorecer o aumento da desigualdade, o que viria
se reduzindo no Brasil ainda que lentamente 49. Em segundo lugar o autor refuta a
tese de que teria um viés neoliberal as propostas de transferência de renda 50 e
afirma, de forma bastante questionável 51, que

(...) grosso modo, a presença do PT no governo federal organizou-se ao


redor de dar materialidade aos preceitos da Constituição de 1988. Em última
análise, o partido tem sido o instrumento de avanços na direção de um
Estado de bem-estar social com aumento do emprego, transferência de
renda para os mais pobres e progresso na construção de sistemas públicos
de saúde e educação (p.122).

49
O autor cita no trabalho diferenças na interpretação de dados de redução de desigualdade e
pobreza com Leda Paulani no que se refere a redução funcional da desigualdade, isto é, na
distribuição da riqueza entre trabalho e capital, que segundo Paulani, vem pendendo para o último
nas últimas séries das Contas Nacionais.
50
“Se for verdade que as propostas de transferência de renda têm viés neoliberal, o que me parece
duvidoso, deve-se convir que esse viés está incorporado ao programa do PT desde pelo menos os
anos 1990” (2012, 189).
51
O autor se refere às aparências, desconsiderando mudanças significativas como a ruptura com a
universalização e a privatização da gestão das políticas via organizações sociais que não se
iniciaram, mas, se mantiveram e aprofundaram no governo Lula.
86

A ascensão do subproletariado seria, então, uma mudança estrutural. A


proletarização dessa fração da classe levaria a uma redução do exército de reserva,
induzindo, a longo prazo, ao fim das condições de superexploração que dificultam a
organização dos trabalhadores no país. O reformismo fraco “ainda que tênue, (...)
poderá colocar as contradições brasileiras em degrau superior àquele que conteve a
história do país até o início do século XXI” (2012, p.267) desde que dure tempo
suficiente, levando em conta sua lentidão.
Em certa medida é como se o Estado realizasse o sonho nacional-popular da
esquerda desenvolvimentista: ampliasse o mercado interno, incluindo a classe
trabalhadora brasileira nos ganhos oriundos do capitalismo, superando nossos
traços históricos do atraso, abrindo, então, espaço para organização dos
trabalhadores rumo a um projeto de superação dessa ordem.
Mas como isso seria possível agradando simultaneamente o capital
financeiro? Singer discorda da tese de que o único elemento viabilizador do lulismo
seja uma conjuntura externa favorável à exportação de commodities. Para o autor
esse bom cenário externo só foi aproveitado graças a uma política de equilíbrio entre
os interesses da coalizão rentista - formada pela classe média, pelo capital
financeiro e pelo agronegócio que se favorece com os juros altos e a valorização do
real, e da coalizão produtivista – formada por empresários e empregados industriais,
por meio de uma política de arbitragem dentro do Estado, que ampliou o consumo
interno e, ao mesmo tempo, manteve os altos ganhos do capital financeiro. Ainda
assim, admite que “em certa medida, a durabilidade do modelo depende de o boom
das commodities ter prosseguimento” (p.162) já que “o capital financeiro pôde ser
atendido numa conjuntura de crescimento mais alto, mesmo com o incremento do
gasto público, uma vez que a receita aumentou” (p. 150).
Parte, portanto, de que houve avanços materiais significativos, ainda que
lentos, apesar da baixa mobilização e organização da classe, cooptada pelos
mecanismos estatais de arbitragem que deslocaram a oposição entre classes para
uma oposição entre ricos e pobres, que não significaria, para o autor, um
esvaziamento da polarização, mas seu deslocamento.
Desse pressuposto conclui que está em curso um projeto inédito e
progressista, no qual o reformismo (ainda que fraco) teria ganhado a parcela mais
pauperizada do subproletariado brasileiro, sem perder o apoio do grande capital,
segmentos que eram historicamente a base de apoio da direita tradicional brasileira.
87

Para que essa inversão da base social de Lula, e posteriormente do PT, não
signifique uma “hegemonia às avessas”, nos termos de Oliveira, é preciso acreditar,
como faz Singer, que houve mudanças substantivas no projeto político de Cardoso
para Lula, não decorrentes apenas da conjuntura, que convenceram essas duas
frações de classe. Que, apesar da manutenção de traços conservadores, há também
rupturas com a lógica neoliberal, desde o projeto dos organismos internacionais,
levando o autor, sem qualquer argumentação, a negar o viés neoliberal dos
programas de transferência de renda. Vejamos como outros autores refutarão essa
tese, que se destaca por ser a mais sofisticada defesa do governo Lula apresentada
até então.
Oliveira (2010) defende que o que inicia seu curso com o governo Lula é um
tipo de dominação típica do capitalismo mundializado: a hegemonia às avessas. O
autor afirma que provavelmente foi a África do Sul, pós-apartheid, que inaugura essa
forma de hegemonia na qual ao passo em que “as classes dominadas tomam a
„direção moral‟ da sociedade, a dominação burguesa se faz mais descarada” (2010,
p.24). Esse tipo de dominação seria diferente de todas as outras exercidas
historicamente no Brasil: não é patrimonialista, pois gere capital-dinheiro; não é
patriarcalista, pois nenhum patriarca exerce o mando e a economia não é doméstica;
não é populista, pois sua forma não é autoritária. Para Oliveira, por trás de uma
aparência de que os dominados dominam “são os dominantes (...) que consentem
em ser politicamente conduzidos pelos dominados, com a condição de que a
„direção moral‟ não questione a forma de exploração capitalista” (2010, p.27).
Coutinho (2010), dialogando com Oliveira, mas, se apropriando de Gramsci
de forma mais rigorosa, apresenta a caracterização do governo como hegemonia da
pequena política52. A grande política da era neoliberal seria exatamente reduzir toda
disputa à pequena política, fazendo predominar no senso comum valores como o
individualismo, o privatismo e a naturalização das relações sociais. Essa hegemonia
é alcançada pelo consenso passivo das massas, que aceitam resignadas que a
política “não passa da disputa do poder entre suas diferentes elites, que convergem
52
O autor explica o significado de pequena política com uma citação de Gramsci: “A grande política
compreende as questões ligadas à fundação de novos Estados, à luta pela destruição, pela defesa,
pela conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais. A pequena política
compreende as questões parciais e cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura já
estabelecida em decorrência de lutas pela predominância entre diversas frações de uma mesma
classe política (política do dia a dia, política parlamentar, de corredor, de intrigas). Portanto, é
grande política tentar excluir a grande política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo à
pequena política” (Gramsci apud Coutinho, 2010).
88

na aceitação do existente como algo „natural‟” (2010, p.31) negando qualquer


possibilidade de ação das maiorias.
Esse período não se caracteriza pela revolução passiva, um reformismo “pelo
alto” que mantém aspectos de “restauração e renovação”. Assim como Behring
(2003), Coutinho usa a ideia gramsciana de contrarreforma. As contrarreformas
também se caracterizam por uma combinação entre o velho e o novo, mas, com o
predomínio do velho, da restauração53. A luta de classes, portanto, não é marcada
pela conquista de novos direitos, mas pela defesa daqueles já conquistados no
passado. Associado às contrarreformas, ocorre o fenômeno do transformismo, ou
seja, a cooptação das lideranças dos trabalhadores para o projeto neoliberal.
A tese de Coutinho (2010) precisa os termos de Oliveira (2010) negando
qualquer hipótese de reformismo positivo, ainda que lento, conforme defendido por
Singer. É na hegemonia da pequena política que entram em cena os discursos
gerenciais e técnicos, não como um debate de projeto societário, mas, como mera
“administração do existente”, para qual não há alternativas.
Paulani (2008), assim como tantos outros autores, sustenta que a política de
Lula desde o início do seu governo tem “uma inclinação inequivocamente liberal” e
afirma existirem dois elos argumentativos que sustentam a política neoliberal no
governo Lula. O primeiro é a ideia, já debatida neste trabalho, de que não existem
alternativas na política econômica e que as escolhas são fundamentadas em
critérios técnicos e não políticos ou ideológicos. O neoliberalismo, ainda que com
outros nomes, nesses marcos, é inevitável e não uma opção do governo.
O segundo elo argumentativo é a ideia da necessidade de retomar a
“credibilidade” do país. Esse argumento, segundo Paulani, sugere que recuperada a
credibilidade abre-se espaço para a alteração da política. Porém não é o que
acontece já que “uma vez conquistada, a „credibilidade‟ cobra um preço alto pela
fidelidade: a manutenção de todos os mimos que permitiram sua conquista (...)”
(PAULANI, 2008, 18).
Dessa forma a política neoliberal, semelhante a do governo Cardoso,
implementada pelo governo Lula estava longe de ser uma política de transição. Era,
isso sim, o modelo adotado, no qual o crescimento econômico e a redução do

53
“O que caracteriza um processo de contrarreforma não é a completa ausência do novo, mas a
enorme preponderância da conservação (ou mesmo restauração) em face das eventuais e tímidas
novidades” (COUTINHO, 2010, p.38).
89

desemprego seriam o permitido, dentro desses limites. “Em poucas palavras, se for
possível obter também esses resultados, por pífios que sejam, ótimo. Se
não...paciência. Mas, sendo assim, de que serve a tão buscada credibilidade?”
(PAULANI, 2008, p. 18).
A resposta que a autora dá a sua própria pergunta é que a “credibilidade”, em
nome da qual são exigidos severos sacrifícios aos trabalhadores, na prática é
necessária não para manter a estabilidade e sustentabilidade do crescimento, mas
sim a vulnerabilidade do país. Vulnerabilidade necessária, por sua vez, para
valorizar os capitais especulativos que dominam o processo de acumulação.
Em análise mais recente, a autora coloca a necessidade de credibilidade
como um “estado de exceção econômica” 54 ou “estado de emergência econômico”
que se torna permanente, justificando que se faça “tábula rasa da lei sempre que os
interesses materiais, embrulhados no discurso da necessidade posta pela
emergência, mostram-se mais poderosos que ela” (2010, p.122). Movido por essa
“ideologia da urgência” o governo pode fazer “qualquer barbaridade em nome da
necessidade de salvar o país, ora do retorno da inflação, ora da perda da
credibilidade, ora da perda do bonde da história” (p.123). Para a autora, o estado de
emergência combina-se à hegemonia às avessas de Oliveira55.
Paulani sustenta que essa lógica da emergência é necessária ao capitalismo
hegemonizado pelas finanças do nosso tempo. Isso porque o rentismo é o contrário
do espírito empreendedor que defende a ideologia liberal. O rentismo quer o máximo
de retorno, no menor tempo possível e com o menor risco tornando o jogo capitalista
cada vez mais em um “jogo de cartas marcadas”.

Acesso privilegiado a informações sobre papéis públicos, concorrências


públicas, fundos públicos e vendas de ativos públicos tornam-se então
fundamentais. O poder público maneja negócios e recursos sempre
volumosos, de modo que atrelar o rentismo ao poder do Estado parece a
forma mais segura de aliar retorno elevado e liquidez a segurança (poder e
dinheiro cada vez mais juntos). O capitalismo rentista é, portanto, o avesso
do mercado, da concorrência, do risco capitalista, da ausência do Estado
(PAULANI, 2010, p.131).

54 A autora trabalha com o conceito “estado de exceção” de AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção.
São Paulo: Boitempo, 2004.

55 “(...) hegemonia às avessas e estado de emergência econômico funcionam de modo conjunto e


sincrônico, e funcionam admiravelmente bem” (PAULANI, 2010, p.127)
90

Assim, o estado de emergência é a forma de compatibilizar essa lógica de


privilegiamento do capitalismo rentista com a ideologia neoliberal, o discurso
meritocrático e do livre mercado, veiculado pelos governos e pela mídia. “Quando se
trata de salvar a sociedade é preciso ter flexibilidade para que as normas não
atrapalhem” (2010, p.133).
Essa tese de Paulani é fecunda na medida em que explica um governo
conduzido por decretos, a contrarreforma do Estado como retrocesso patrimonialista
que se justifica pelo fim das normas “burocráticas” de licitação, concurso, controle
social, as leis inconstitucionais aprovadas a toque de caixa sem debate com a
sociedade. É essa emergência permanente que justifica a redução da democracia
em nome da eficiência, contra um Estado “lento”.
Outros autores vão caracterizar o governo Lula dentro do espectro teórico e
político do “novo-desenvolvimentismo”56, ao lado dos Kirchner na Argentina, de
Bachelet no Chile e Vasquéz no Uruguai, que seria uma espécie de terceira via
latino americana. Essa tese cresce no governo de Roussef, que segue e continua o
de Lula a partir de 2011.
Katz (2010) afirma que a perspectiva novo-desenvolvimentista retoma a ideia
de oposição entre setores da burguesia financeira e da burguesia produtiva,
devendo estabelecer uma política que favoreça os últimos. Essa distinção entre “um
capitalismo benfazejo, do bem-estar” e um “capitalismo malfazejo e neoliberal”,
como afirma Fontes (2010), nega a relação de continuidade entre eles e a relação
íntima entre capital industrial, bancário, comercial e fictício, típico do período do
imperialismo. Ainda assim, “Lula um líder natural do pelotão novo-
desenvolvimentista, mostrou (...) maior afinidade com o capital financeiro do que
com os setores industriais” (KATZ, 2010, p.65).
Para Prado e Meirelles (2010) essa volta ao passado do novo-
desenvolvimentismo, ao contrário do desenvolvimentismo original, limita-se à análise
econômica tradicional, não retomando grandes questões políticas e sociais
colocadas por seus predecessores. Ficando no meio caminho entre a crítica ao
neoliberalismo e ao arcaísmo da esquerda socialista, o novo-desenvolvimentismo é,
sobretudo, uma corrente ideológica que não rompe com a lógica central do
neoliberalismo e retoma a “ilusão do desenvolvimento” (PRADO E MEIRELLES,

56
Para aprofundar esse debate consultar os textos do livro organizado por Castelo (2010) e a Revista
Serviço Social e Sociedade nº112 (2012).
91

2010, p.186) dentro de uma realidade capitalista e heterônoma. Reacende, com


isso, as antigas perspectivas etapistas 57 de parte da esquerda latino-americana, que
mais uma vez vai defender a inevitabilidade de etapas anteriores à ruptura com o
capitalismo para o combate dois “inimigos principais”: a direita oligárquica e a
especulação financeira (Katz, 2010, p.64).
Apesar da retórica novo desenvolvimentista, que se fortalece no governo
petista de Roussef58, iniciado em 2011, em linhas gerais se mantém o mesmo
padrão neoliberal desde o governo Cardoso. No governo Roussef, o crescimento
econômico, que tinha tido um curto aumento no governo Lula, retoma os patamares
do governo Cardoso, o que não tem sido revertido pelas parcas medidas anticíclicas
de investimento (ex: Minha Casa, Minha Vida; Plano Piloto de Investimentos) e
consumo (transferência de renda) implantadas. Mantém-se, também, o mesmo
padrão de financiamento da Seguridade Social, que apenas tem certo crescimento
vegetativo, interditando a possibilidade de universalização dessas políticas (Behring
et al, 2013). Aprofundaremos esse debate, com o recorte da política de saúde, no
terceiro capítulo.
Discutir o significado do PT no poder no Brasil, no entanto, é um debate
inacabado, realizado no calor dos acontecimentos. Uma semana antes de encerrar
essa tese algumas centenas de milhares de pessoas foram às ruas, em sua maioria
pedindo o impeachment de Roussef como resposta às inúmeras denúncias de
corrupção em curso59. Assim, certamente, ainda teremos que aprofundar pesquisas
e análises e lidar com as consequências dessa experiência inédita e peculiar no
Brasil por um longo período60.

57
A origem da tese da revolução por etapas encontra-se nas elaborações dos Partidos Comunistas no
período estalinista, que defendiam que os países do terceiro mundo encontravam-se em estágios
feudais ou semi-feudais necessitando, portanto, de uma etapa capitalista. Para isso seria necessária
uma aliança dos trabalhadores com a burguesia industrial para implementar a fase da revolução
burguesa, anterior a da revolução socialista.
58
Essa retórica sofre grande reverso com a nomeação de Joaquim Levy, conhecido “Chicago Boy”,
para Ministro da Fazenda no início de seu segundo governo, afirmando compromisso com novo
ajuste fiscal.
59
Para aprofundar a análise desses acontecimentos consultar: Demier (2014) em
http://blogconvergencia.org/blogconvergencia/?p=3041 e Arcary (2014) em
http://www.diarioliberdade.org/opiniom/opiniom-propia/54864-tr%C3%AAs-perguntas-e-tr%C3%AAs-
respostas-breves-sobre-um-domingo-triste.html. Consulta em 21/03/2015.
60
Durante o XIV Encontro de Pesquisadores em Serviço Social (Enpess) os grupos de pesquisa
GESST/UNB e GOPSS/Uerj apresentaram duas mesas coordenadas onde inúmeros dados sobre o
governo foram analisados sob a ótica da crítica à economia política. Na ocasião apresentei parte
92

3 A SAÚDE NO CAPITALISMO TARDIO: ELEMENTOS GERAIS E A


PARTICULARIDADE DO CASO BRASILEIRO

O setor de saúde, público e privado, mobiliza grandes somas de recursos,


alcançando 9,7% do PIB mundial em 2007, segundo dados da Organização Mundial
de Saúde (OMS)61. Pode ser compreendido por meio de três subsetores: o de base
química e tecnológica, onde está a indústria farmacêutica; o de base mecânica,
eletrônica e de materiais, responsável por equipamentos e instrumentos mecânicos
e eletrônicos, órteses e próteses e materiais de consumo em geral; e o de serviços
em saúde, o de maior peso econômico, apresentando capacidade de gerar lucro,
pela apropriação de mais valia de seus trabalhadores no caso do setor privado, e ao
mesmo tempo ser o principal mercado consumidor para os dois outros subsetores
(Gadelha et al, 2012). Intermediando o subsetor de serviços privados e seus
consumidores diretos, está o mercado de planos de saúde no qual atuam
seguradoras de saúde, empresas de medicina de grupo, cooperativas médicas e
entidades de autogestão62. Atuam vendendo planos de pré-pagamento, “protegendo
os segurados do risco associado ao custo de adoecer” (OCKÉ-REIS, 2012, p.65).
São as diversas formas de empresas de planos de saúde, as empresas, os
consumidores individuais e o Estado que formam o mercado consumidor dos
serviços privados de saúde composto por profissionais de saúde liberais, hospitais e
clínicas.

dos dados sobre os gastos tributários do governo contidos no quarto capítulo dessa tese. Esses
trabalhos podem ser consultados nos anais do encontro.
61
Em: http://www.cartacapital.com.br/saude/saude-e-desenvolvimento/. Consulta em 18/04/2013.
62
São formas jurídico-institucionais distintas que compõem a chamada saúde suplementar. As
empresas de medicina de grupo surgiram na década de 1950 e se desenvolveram na década
seguinte associados diretamente à assistência médica empresarial. A modalidade de autogestão
ocorre quando a própria empresa administra a assistência médica a seus empregados. As
cooperativas médicas surgem na década de 1960 em oposição à medicina de grupo pelo seu
caráter mercantil. São consideradas sem fins lucrativos, contando com vantagens legais e isenções
tributárias, ainda que hoje se aproximem cada vez mais da lógica empresarial. Já as seguradoras
iniciaram sua comercialização na década de 1970, crescendo apenas na década de 1990, e
funcionam por reembolso de despesas (Menicuccci, 2007).
93

Uma das características do setor é de ser uma importante frente de inovações


tecnológicas, respondendo por 20% do gasto mundial em Pesquisa e
Desenvolvimento (P&D), ficando ao lado da área militar em quantidade de
investimentos públicos de P&D (Gadelha et al, p.17).
Mandel (1982), em O capitalismo tardio, reserva um capítulo para a discussão
sobre a aceleração da inovação tecnológica, ou seja, colocar as invenções
desenvolvidas pelos homens a serviço da valorização do capital. “O capital investido
na esfera da pesquisa e desenvolvimento que segue ou precede a produção efetiva
só consegue a valorização na medida em que o trabalho ali realizado seja produtivo”
(MANDEL,1982, p.178), isto é, que o conhecimento produza novas mercadorias. A
atividade científica só é força produtiva quando incorporada imediatamente na
produção, senão se limita a uma força potencial que tende a refluir por restrições ou
dificuldades afetadas pela necessidade de valorização do capital.
Ainda que Marx já tivesse apontado essa necessidade do capital, segundo
Mandel, a organização plena e sistemática da pesquisa e do desenvolvimento como
um negócio específico sob bases capitalistas só se manifesta na sua plenitude no
capitalismo tardio. Para tanto é necessária a aceleração da própria invenção,
desenvolvendo o trabalho intelectual, e a rápida aplicação dessas invenções às
mercadorias para que assim se tornem inovações tecnológicas. Foi na segunda
revolução científica, graças ao crescimento de investimento em pesquisas
demandado pela II Guerra Mundial, que se garantiram as condições objetivas
institucionais que possibilitaram esses avanços. Isso se manifestou no aumento dos
setores de pesquisa das companhias bem como na expansão de empresas
especializadas que vendem suas pesquisas, como, por exemplo, alguns
laboratórios.
No caso de países dependentes, como o Brasil, é o Estado a principal fonte
de investimentos em P&D63. Mas a concentração de P&D está nos países centrais:
só os EUA concentram 50% dos gastos de P&D em saúde do mundo, seguido por
Japão (10%), Inglaterra (7%), Alemanha (6%) e França (5%) (Gadelha et al, 2012,
p.39).

63
Segundo Gadelha et al (2012, p.34) “nos países de alta renda, o setor empresarial responde por
cerca de 60% do dispêndio, enquanto o setor público representa cerca de 40%, ocorrendo o inverso
nos países de baixa e média renda”.
94

São essas rendas tecnológicas, segundo Mandel, uma das principais fontes
de superlucros, ou seja, lucros acima do lucro médio. Entretanto, os riscos desses
investimentos em pesquisa são altos, na medida em que nem todas as invenções
poderão ser aplicadas. Outro risco do investimento é a possibilidade de que a
empresa concorrente desenvolva inovação simultânea.
Esses riscos só podem ser assumidos, portanto, por aqueles que dispõem de
grande capital. Considerando que os monopólios não estão livres da concorrência
de produtos mais desenvolvidos que os seus, se tornam eles, ao lado dos Estados
nacionais, os grandes investidores em pesquisa e desenvolvimento. A contradição,
segundo Mandel, é que ao mesmo tempo os monopólios tolhem o progresso técnico
ao estreitar e diversificar o desenvolvimento das pesquisas, já que é necessário para
seus lucros acelerar a valorização.
Isso leva à segunda característica do setor saúde: a crescente concentração
e centralização de capital em todos os seus subsetores, com privilégio para o grande
capital dos países centrais (Ladeira, 2014). Esse fenômeno é chamado por
Andreazzi (2012, p.30) de corporatização, isto é, “a dominação dos mercados de
saúde por corporações, ou seja, pelo grande capital oligopolista em suas diversas
configurações, de acordo com as conjunturas do modo de produção capitalista”, no
caso atual, sobretudo, o capital financeiro.

3.1 Marcos históricos da política de saúde no Brasil

Foi na ditadura militar, ditadura do grande capital 64, que o Brasil entrou
definitivamente numa fase de ampliação da concentração e centralização do capital,
com a superioridade do capital imperialista: passamos ao predomínio dos
monopólios e do capital financeiro, com o favorecimento e o impulso do Estado
(Ianni, 1981).

64
“Uma coisa é a ditadura militar, que é mais visível na época; outra é a ditadura da grande
burguesia, do grande capital, que determina as principais características do Estado ditatorial. N em
sempre as classes dominantes exercem diretamente o governo. Não precisam; não é conveniente”
(IANNI, 1981, p.1).
95

No campo da saúde, a ditadura significou, em primeiro lugar, uma inversão


de prioridade da saúde pública, organizada pelo Ministério da Saúde, para a saúde
curativa, individual.
A medicalização da vida social foi imposta, tanto na saúde pública quanto
na previdência social. O setor saúde precisava assumir as características
capitalistas, com a incorporação das modificações tecnológicas ocorridas no
exterior. A saúde pública teve, no período, um declínio maior que aquele
ocorrido no início dos anos 60, e a medicina previdenciária cresceu,
principalmente, após a reestruturação do setor em 1966 (BRAVO, 2010, p.
42).

No que se refere ao subsetor de serviços, é no período da ditadura, que a


cobertura, antes restrita aos segmentos assalariados formais, se expande para
quase a totalidade da população. Durante todo o período ditatorial, o Estado interviu
sobre a Questão Social por meio do binômio repressão-assistência, ampliando o
acesso a inúmeras políticas sociais, dentre elas a saúde (Bravo, 2010, p.41). Mas
essa ampliação se deu pela compra de serviços do setor privado. Sem o Estado, o
setor privado não teria como forjar autonomamente um mercado consumidor, dada a
pauperização da população (Bravo, 2010; Menicucci, 2007).
Desde o INPS até a formação do Instituto Nacional de Assistência Médica da
Previdência Social (Inamps) em 1977, a prestação dos serviços de saúde era
organizada pelo Estado por três subsistemas: o próprio, o contratado e o
conveniado.
O subsistema próprio caracterizava-se por cobrir os serviços ambulatoriais
(70% da cobertura na década de 70) e minoritariamente os serviços de internação
vinculados aos hospitais (20%). No que tangia aos serviços hospitalares cabia ao
Estado garantir os procedimentos mais caros e complexos, pouco lucrativos para o
setor privado, o que se perpetua até hoje (Menicucci, 2007).
O subsistema contratado era formado pela rede de serviços privados, para
suprir a suposta insuficiência do setor público. Esse subsistema era responsável por
80% dos serviços de internação, sendo remunerados com base em uma tabela de
preços por ato médico, chamada unidade de serviço (US). Assim, quanto mais
intervenções, e quanto mais complexas e com maior densidade tecnológica, maiores
eram os ganhos do setor privado contratado, estimulando, ainda, a corrupção e o
superfaturamento (Menicucci, 2007). Além de representarem a maior parte das
internações cobertas pelo INPS, era esse instituto o responsável pelo pagamento de
90% do total de internações realizadas no país durante a década de 1970,
96

comprovando a centralidade do fundo público no crescimento dos serviços


hospitalares privados de saúde no Brasil. Além da compra de serviços, foi por meio
do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS), uma espécie de PAC criado
pela lei 6168 de 9/12/1974, que se ampliou a construção de hospitais da rede
privada. Apesar de a lei prever que os empréstimos a juros baixos concedidos para
financiamento de infraestrutura deveriam ser no limite de 30% para o setor privado e
70% para o público, no caso da saúde 20,5% foi para o setor público e 79,5% foi
para o setor privado (Oliveira e Teixeira, 1985).
O terceiro subsistema era o conveniado, onde o INPS garantia subsídios para
que as empresas arcassem com a atenção médica a seus empregados. Poucas
empresas tinham serviços próprios. A maioria comprava serviços de empresas
médicas, que são remuneradas por um sistema de pré-pagamento per capita,
independente do uso de serviços. Essas empresas médicas são a gênese das
empresas de planos de saúde, e a lógica dos planos por empresas com subsídios
estatais 65, hoje o principal mercado para essa atividade, tem nos convênios com o
INPS sua origem e um estímulo fundamental para seu crescimento (Menecucci,
2007; Ocké-Reis, 2012). Ocké-Reis (2012, p.157) aponta que desde a década de
1960 os principais incentivos do governo para os planos privados de saúde foram:
a. Diretos: financiamento a juros negativos para a construção de instalações
hospitalares e para a compra de equipamentos médicos; atribuição de caráter
filantrópico para alguns planos lucrativos que se beneficiaram de vantagens
fiscais e previdenciárias.
b. Indiretos: devolução ou desconto na contribuição previdenciária das empresas
nos casos de convênio-empresa do Inamps, que atribuíam os atendimentos
mais caros ao setor público; estabelecimento de normas no campo jurídico
que favoreceram sua expansão.

Ainda assim, os convênios não cobriam atendimentos mais complexos, que


ficavam por conta da rede pública do INPS.
Em 1968, foi elaborado o Plano Nacional de Saúde. Ainda que tenha sofrido
resistências, sendo apenas parcial e experimentalmente implantado, seus eixos são

65
Em 1979 os convênios entre empresas e o INPS são extintos, mas desde 1974 a legislação
garantia dedução do imposto de renda dos gastos de saúde das empresas com seus empregados
que são integralmente considerados gastos operacionais, modelo vigente até hoje (Meneccuci,
2007).
97

paradigmáticos no privilegiamento do setor privado e semelhantes às propostas


privatistas que disputam as ações do Estado até hoje. O Plano atribuía ao Estado as
atividades de assistência à saúde, mas preferencialmente pela compra de serviços
privados, o que garante a livre escolha pelo médico e pela instituição, co-pagamento
dos usuários e, até mesmo, arrendamento de hospitais públicos para o setor privado,
proposta semelhante aos novos modelos de gestão atuais (Oliveira e Teixeira,
1985).
Os subsetores de medicamentos e equipamentos também cresceram no
período da ditadura. Em 1971 foi criada a Central de Medicamentos (CEME), com a
proposta de ampliar a capacidade competitiva da indústria nacional frente às
transnacionais, o que efetivamente não ocorreu. A CEME se limitou a ser uma
distribuidora de medicamentos para a rede oficial. No subsetor de equipamentos o
crescimento, vinculado ao da rede hospitalar, também se deu com privilégio para o
capital imperialista: entre 1961 e 1970 houve uma ampliação de 599,9% das
importações desses produtos. Criava-se, assim, o complexo médico-industrial66
“responsável pelas elevadas taxas de acumulação de capital das grandes empresas
monopolistas internacionais na área de produção de medicamentos e equipamentos
médicos” (Bravo, 2010, p.44).
A partir de meados da década de 1970 se fortalece um movimento contra
hegemônico que incidirá na Constituinte, na década seguinte, liderando a proposta
de reforma da política de saúde. O movimento sanitário, como ficou conhecido,
contava com profissionais de saúde, intelectuais – muitos ligados ao Partido
Comunista Brasileiro (PCB) – e movimentos populares, notadamente associações de
moradores e de favelas. Para veicular essas novas elaborações foram criadas a
Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), em 1979 e o Centro Brasileiro
de Estudos em Saúde (Cebes), em 1976. Ainda que muito heterogêneo, o
movimento sanitário capitaneou as propostas publicistas no campo da saúde. As
perspectivas centrais se dividiam em propostas racionalizadoras oriundas da
burocracia estatal e propostas mais amplas,política e ideologicamente, que visavam

66
Andreazzi (2012) utiliza o termo “complexo médico-industrial-financeiro” para se referir à crescente
financeirização do capital no setor, que vem se acelerando sobretudo pela integração de seguros e
serviços privados, envolvendo investimentos de fundos mútuos e fundos de pensão. Já Gadelha
(2012) utiliza o termo “complexo econômico-industrial de saúde” para caracterizar que, além das
atividades industriais, os serviços também fazem parte do setor produtivo de saúde. Concordamos
com os dois autores e utilizaremos esses termos, bem como o mais popular “complexo médico-
industrial” de acordo com o que formos enfatizar.
98

a democratização da saúde como caminho para a transformação da sociedade,


associando a prática da saúde à estrutura de classes, determinada estrutural e
conjunturalmente (Bravo 2012; Menicucci, 2007). A saúde é considerada campo
político e a elevação da consciência sanitária da população estaria articulada à
construção do socialismo, à elevação da consciência da classe trabalhadora para si.
Apesar disso, a década de 1980 será marcada pelo crescimento do setor
privado de saúde, ainda que se reduza nesse período a transferência de fundo
público para esse setor. Os gastos da Previdência com o setor privado de saúde
passaram de 71,3% do total, em 1981, para 45,9% em 1987, incluindo pagamentos
de prestadores de serviços e repasses para entidades conveniadas. Passou-se,
ainda, a priorizar as entidades filantrópicas que cresceram cerca de 76% entre 1981
e 1987, alcançando 10% da despesa com prestadores privados. Já os convênios
com empresas e sindicatos deixaram de serem feitos e renovados, reduzindo em
86,6% os gastos com essa modalidade no mesmo período (Menicucci, 2007). A crise
da Previdência Social levou à redução do valor pago pela Previdência aos
prestadores privados e aos convênios, levando ao desligamento de entidades
privadas lucrativas. A proporção de conveniados ao INAMPS passa de 64,6% para
52,8% entre 1980 e 1984. Assim, o setor privado lucrativo “deixa de ser
complementar à assistência pública e se torna suplementar (...). Em reação às
decisões públicas, mudaram as estratégias dos atores – hospitais e empresas”
(MENICUCCI, 2007, p.124).
Assim, crescem os planos de saúde, sobretudo os planos coletivos,
vinculados aos contratos de trabalho, substituindo os convênios-empresa e
mantendo certa continuidade com a lógica de segmentação existente desde as
caixas de aposentadoria e pensão no Brasil. Para Ocké-Reis (2012), os convênios-
empresa seriam o princípio da “privatização do seguro social” que, com o
crescimento do mercado de planos, vai interditar o projeto da reforma sanitária. Mas,
ao contrário dos convênios-empresa, não há subsídio direto do Estado, o que leva
Meniccuci (2007) e Ocké-Reis (2012) a apontarem certa autonomização do
crescimento do setor privado em relação ao Estado. Essa autonomização é,
entretanto, apenas relativa na medida em que seguem existindo incentivos
tributários para adesão aos planos além de “estratégias agressivas de
comercialização de planos privados em um mercado, até o final da década de 90,
sem qualquer regulamentação” (OCKÉ-REIS, 2012, p. 158).
99

A expansão da saúde privada também se beneficiou da crise da Previdência


Social, que piorou a qualidade dos serviços de saúde. Ampliava-se a base de
usuários dos serviços de saúde, tendendo à universalização, sem o
acompanhamento do financiamento da política, que seguia vinculado às
contribuições dos trabalhadores. (Oliveira e Teixeira, 1986; Bravo, 2010).
A crise da previdência está inserida na conjuntura de crise mundial do capital,
que leva o Brasil a uma grave crise econômica caracterizada pelo baixo crescimento
econômico, aumento da recessão, do desemprego e da inflação, agravado pela
subordinação do país às exigências do capital financeiro internacional. A década de
1980 representou, assim, uma derrota econômica para os trabalhadores, apesar das
vitórias conquistadas no campo organizativo que levaram a ganhos nas políticas
sociais no fim da década (Mota, 2008).
A crise específica nas políticas de previdência e saúde se inicia no início da
década de 1980. No caso da saúde, as reformas implantadas até então não
conseguem dar respostas às principais questões como a unificação da saúde
preventiva e curativa (Bravo, 2010). Para Mota (2008) e Oliveira e Teixeira (1985) a
chamada “crise da previdência” não se resume aos aspectos financeiros, mas tem
como seu fator deflagrador, eminentemente aspectos políticos e ideológicos. Mota
(2008) chama de “cultura da crise” uma ideologia que tem como tese central que a
crise afeta toda a sociedade, que a recuperação econômica beneficiará igualmente a
todos, e que, portanto, são necessários sacrifícios de todos. Essa cultura favorecerá
a dissolução de solidariedades classistas influenciando, no início da década de
1990, na emergência de movimentos sociais policlassistas e na proliferação de
organizações não-governamentais, abrindo caminho para ofensiva neoliberal da
burguesia.
Com a Constituição de 198867, ao final de uma década de crise, e a posterior
regulamentação do SUS pelas leis 8080/90 e 8142/90, institucionalizam-se as
principais propostas do movimento sanitário. Para Bravo (2010, p.93) o texto “atende
em grande parte às reivindicações do movimento sanitário, prejudica os interesses
empresariais do setor hospitalar e não altera a situação da indústria farmacêutica”. A
saúde passa a ser direito universal e dever do Estado, organizado por um sistema

67
O texto constitucional aprovado vai refletir a disputa de projetos hegemônicos avançando em aspectos
como os direitos sociais, humanos e políticos, mas, mantendo, por outro lado traços conservadores,
somando o novo e o velho, tão ao gosto da lógica nacional. “Uma Constituição programática e eclética,
que em muitas ocasiões foi deixada ao sabor das legislações complementares” (BEHRING, 2003, p.143).
100

único, numa rede com atendimento integral, hierarquizada, regionalizada,


descentralizada e com participação da comunidade. Contraditoriamente, entretanto,
a participação do setor privado segue sendo possível como complementar 68, ainda
que sendo vedada a subvenção direta ao setor lucrativo, priorizando-se o setor
filantrópico. Essa complementariedade trará muitas contradições ao SUS, chegando
ao que hoje alguns autores têm chamado de “complementariedade às avessas”.
Para Ocké-Reis (2012, p.25), na prática não se instituiu um sistema único,
mas, “um modelo duplicado, em que o mercado oferece cobertura duplicada a quase
todos os serviços já oferecidos pelo setor público, mas a clientela da medicina
privada continua a contribuir para o sistema público e a usufruir dele”, sobretudo nos
serviços de alta complexidade, pouco lucrativos para o setor privado pelos seus altos
custos.
A partir da Constituição de 1988, a saúde passa a fazer parte da Seguridade
Social junto com as políticas de assistência e previdência social. Ao contrário da
situação anterior, a base de financiamento da seguridade se amplia para além dos
recursos vinculados à folha salarial. Passa-se a tributar o faturamento e o lucro, em
contribuições vinculadas a um orçamento próprio específico para esse fim. A saúde,
a princípio, receberia 30% dos recursos do orçamento da seguridade social,
segundo as disposições transitórias da Constituição. Esse dispositivo cessou em
1990, quando o SUS foi regulamentado, reduzindo para 20,95% os recursos da
saúde já no ano seguinte. Apenas em 2000, com a Emenda Constitucional nº 29 (EC
29) regulamenta-se quanto a União, os estados e municípios devem aplicar em
saúde anualmente.
A EC 29 definia que os estados e municípios deveriam, inicialmente, alocar no
mínimo 7% das suas receitas na área da saúde e, até o ano de 2004, atingir o
mínimo de 12% no caso dos estados, e 15% no caso dos municípios. A União
deveria no primeiro ano ampliar em 5% o orçamento do ano anterior e, a partir daí,
corrigir todos os anos o orçamento da saúde pela variação do PIB. Nenhuma das
esferas governamentais, porém, cumpriu a regulamentação conforme previsto. No
caso dos municípios, a aplicação mínima não se amplia, fazendo com que o piso
tenha virado teto, independente das necessidades sociais. Além disso, muitas ações

68
Segundo Ocké-Reis (2012) para a Organização para a Cooperação de Desenvolvimento
Econômico (OCDE) é considerada complementar a cobertura de serviços diferenciados, mas
incluídos no sistema público.
101

como merenda escolar e saneamento básico passaram a ser computadas como


ações de saúde, reduzindo assim os recursos do setor (Cislaghi et al, 2012).
A regulamentação da EC 29, que deveria ter acontecido em 2004, só foi
votada em 2011. Nessa ocasião, a insuficiência de recursos para o SUS, na forma
como fixado em lei, já era clara. Apesar de ter um sistema universal, o padrão de
financiamento da saúde no Brasil só pode ser comparado a países com modelos
majoritariamente empresariais como os EUA.

Gráfico 01 – Gastos públicos e privados em saúde em relação ao PIB.

Fonte: Saúde 2012 – Valor Econômico. Elaboração Própria.

Tabela 01 – Percentual de gastos públicos na composição da despesa com saúde


Percentual de gastos públicos
na composição da despesa
Brasil 46%
EUA 49%
Argentina 67%
Cuba 93%
França 77%
Reino Unido 84%
Fonte:Saúde 2012 – Valor Econômico. Elaboração Própria.
102

A tardia regulamentação, porém, não significou efetivos avanços. A proposta


de elevar os gastos federais para 10% da receita bruta da União foi considerada
pela presidenta Roussef “inadmissível”, não sendo aprovada. O único avanço foi a
regulamentação do que são ações de saúde, evitando o desvio de recursos para
outros fins (Cislaghi et al, 2012).
O principal argumento do governo para a racionalização de recursos é a falta
de indicação de novas fontes de receita. A proposta do governo era a criação da
Contribuição Social para a Saúde (CSS). Esse imposto ressuscitaria a CPMF. Criada
em 1996 e extinta em 2007, a CPMF era criticada por ser um imposto regressivo, já
que mantinha o mesmo percentual sobre operações bancárias de qualquer volume.
A CPMF, porém, ao invés de ser uma nova fonte de recursos, tornou-se substitutiva
de recursos que passaram a ser desviados para a DRU que permite a retirada de
20% dos recursos vinculados da seguridade para o orçamento fiscal. Estima-se que,
entre 2000 e 2007, foram desvinculados R$ 278,4 bilhões de reais da Seguridade
Social, tornando esse mecanismo fundamental na composição do superávit primário,
principal meio responsável pelos recursos para o pagamento da dívida pública. Em
2010, 44,93% do orçamento brasileiro foi utilizado para juros, amortizações e
refinanciamento da dívida, enquanto a saúde correspondia a apenas 3,91% (Cislaghi
et al, 2012).

3.2 O papel dos organismos internacionais na contrarreforma da saúde no


Brasil

A aprovação da Constituição em 1988 e as leis que regulamentaram o SUS


no início dos anos 1990 ocorreram na ante sala da virada neoliberal no Brasil,
sendo, na prática, afetadas pela contrarreforma do Estado antes de sua
consolidação. Não só no subfinanciamento, como já exposto acima, mas em um
conjunto de políticas que acompanharam essa “racionalização” dos recursos, num
processo que Soares (1999) chamou de descentralização destrutiva e
universalização interrompida. Não só esses princípios do SUS como todos os outros
– a equidade, a integralidade, a participação popular – foram apropriados pelas
propostas neoliberais de forma transformista, no sentido gramsciano.
103

Os documentos do Banco Mundial de 1990 orientaram as contrarreformas das


políticas sociais implantadas em diversos graus em todos os países do mundo, em
particular nos países periféricos. Segundo Correia, a partir de meados dos anos
1980 o Banco Mundial assumiu a liderança do desenvolvimento global da agenda
para as políticas de saúde, apoiando projetos que fortaleçam o ajuste estrutural na
virada para o neoliberalismo.
O setor saúde só tornou-se interesse do Banco Mundial na década de 1960,
na gestão de McNamara, relacionada ao combate à pobreza. No entanto, sua
“cruzada” contra a pobreza era de viés neomalthusiano, priorizando o planejamento
familiar e o controle populacional. Assim, as ações de saúde preventiva eram
restritas, já que McNamara temia que a ampliação de serviços de saúde levasse a
uma explosão populacional (Pereira, 2010, p. 197). No final de 1979, o BM criou o
Departamento de População, Saúde e Nutrição, o que permitiu empréstimos
exclusivos para a saúde, que antes eram restritos ao desenvolvimento rural e urbano
e ao planejamento familiar, “abrindo um campo novo e amplíssimo de atuação”
(Pereira, 2010, p.221). Para Rizzoto (2000), a entrada da saúde na pauta de
financiamento do BM ocorre para que o Banco possa interferir de forma mais direta e
sistemática nas políticas desse setor. Para Pereira (2010, p.29)

Ao longo de sua história, o Banco sempre explorou a sinergia entre dinheiro,


prescrições políticas e conhecimento econômico para ampliar sua influência
e institucionalizar sua pauta de políticas em âmbito nacional, tanto por meio
de coerção (influência e constrangimento junto a outros financiadores e
bloqueio de empréstimos) como de persuasão (diálogo com governos e
assistência técnica).

O primeiro documento produzido para o setor foi publicado em 1975 com o


nome “Salud: documento de política setorial”. Neste documento, o BM apontava,
ainda, para tímidas iniciativas em relação ao setor, sempre ancoradas em projetos
de desenvolvimento mais amplos. A influência que desejavam na área poderia ser
obtida, segundo o documento, através da OMS, também ligada a Organização das
Nações Unidas - ONU como o BM, por meio de cooperação. Foi apenas na década
de 1990 que as propostas iniciais do BM para o setor se aprofundaram, ainda que
tenham mantido certo grau de continuidade (Rizzotto, 2000).
Soares (1999) faz referência ao documento “Financiamiento de los servicios
de salud em los países en desarollo. Programa de Reformas”, de 1990. O
documento tem como orientação: a cobrança seletiva aos usuários, programas
104

governamentais de seguro de saúde, a utilização eficaz dos recursos privados


reduzindo supostos privilégios, e a descentralização dos serviços públicos no que
tange ao planejamento, ao orçamento e às compras.
O pagamento seletivo, ou chamado co-pagamento, é atribuído a uma suposta
equidade, na qual apenas os mais pobres seriam poupados. Mas ao mesmo tempo
aqueles que têm como pagar fariam jus a serviços melhores.
O conceito de equidade não se articula com o de universalidade, mas o
substitui. Stotz e Araújo (2004) afirmam que o BM vai adotar a inevitabilidade da
focalização. Toma-se a equidade como referência, sem pensar no conjunto das
políticas públicas e nas necessidades de saúde da população
A redução de gastos na saúde está associada a mudança no tipo de
assistência prestada: da assistência médica curativa para preventiva, de serviços
médicos complexos para a assistência primária, de hospitais para ambulatórios e
postos de saúde, e de pessoal médico para paramédico (Soares, 1999). Dessa
forma, a reivindicação por integralidade, que significa abarcar desde a atenção
primária e a prevenção até os serviços complexos, e uma concepção ampliada de
saúde, que significa ampliar as equipes tornando-as multiprofissionais, foram
apropriadas pelo Banco Mundial num sentido simplista, e mais barato, de “saúde
pobre para pobres”.

O sistema público que o Banco Mundial idealizou para os países “em


desenvolvimento”, prega o abandono do tratamento clínico, dos avanços
científicos e tecnológicos alcançados na área médica, hospitalar e
farmacológica, ao mesmo tempo em que propõe a criação de serviços de
saúde pública que se limitam a atenção básica, com utilização de
procedimentos simples e baratos, realizados por profissionais pouco
qualificados, que segundo o Banco „dariam conta de resolver os problemas
de saúde mais gerais, de caráter familiar e comunitário‟” (...) Junto a esta
alternativa, o Banco propõe também um sistema de serviços privados,
destinados ao restante da população (RIZZOTTO, 2000, p.s/i).

Além disso, desde aí, propõe mudanças gerenciais na saúde pública,


impondo um padrão gerencial empresarial privado que reduza a relação custo-
benefício. Desde o Relatório Anual de 1989, o Banco já apresentava a tese de que a
eficácia da gestão pública depende da articulação entre agências estatais e
organizações sociais. Em 1996 publicou o primeiro guia para a “Reforma do Estado”
na América Latina (Pereira, 2010).
105

A descentralização significou, na prática, não a ampliação do controle social,


mas o que Soares (1999) chamou de descentralização destrutiva, na medida que
apesar da municipalização do centro das ações de saúde, no caso do modelo
brasileiro, não houve proporcional descentralização de recursos do nível federal, que
continuou concentrando a arrecadação.
Por último a participação popular, que deveria ocorrer como movimento de
fiscalização, politização e controle social, passou a ser entendida como
desresponsabilização do Estado, substituindo, para os pobres, a universalização da
saúde por precários mecanismos de auto-ajuda comunitária, seja por meio de
organizações não-governamentais ou pela precarização dos agentes comunitários
de saúde, contratados na comunidade, mas, sem preparo suficiente69 e em troca de
baixos salários, substituindo profissionais da saúde, como os assistentes sociais, em
visitas domiciliares.
Já Rizzotto cita o Relatório Anual de 1993, que tem como temática central o
setor saúde. Para a autora, esse documento

além de apresentar um diagnóstico genérico sobre aspectos da saúde em


nível mundial, com ênfase na situação dos países „em desenvolvimento‟,
propõe um projeto detalhado para a reforma dos sistemas de saúde destes
países, sinalizando o interesse em financiar projetos específicos,
especialmente aqueles destinados às reformas das políticas desse setor
(2000, p.s/i).

Nesse relatório, além de desenvolver as propostas dos seus documentos


anteriores, o Banco questiona uma premissa consensual entre os organismos que
tratavam a questão saúde: o papel dos governos na melhoria da saúde da
população, consenso consolidado na Conferência de Alma-Ata, organizada pela
OMS e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em 1978 (Correia,
s/i). Aponta, ainda, não ser necessário nem recomendado o investimento de países
periféricos em pesquisa científica no setor saúde, que deveriam se concentrar em
países ricos, na medida em que posteriormente por meio de “colaboração
internacional” os benefícios se estenderiam a todos os países. Rizzotto (2000)
aponta que esse argumento desconsidera o quanto o domínio da ciência, e,

69
“Nas propostas do Banco, os recursos humanos que atuariam nos serviços públicos deveriam
originar-se da própria comunidade o que, segundo eles, facilitaria a permanência e o maior
conhecimento da população. Tais trabalhadores receberiam um tipo de formação elementar e
simplificado, suficiente para executarem atividades de prevenção, cuidados materno-infantil,
planejamento familiar e orientações voltadas para o meio ambiente” (RIZZOTTO, 2000).
106

portanto, da maioria das patentes, têm sido o grande diferencial entre países
centrais e periféricos e que tal “cooperação” não se dá num sentido de
solidariedade70.
Ainda segundo hipótese de Rizzotto (2000), a ampliação da participação do
BM no setor saúde se dá no momento de fortalecimento do discurso contra a
participação do Estado nas políticas sociais, ares favoráveis às intenções do BM.
Este setor passa, então, a ser essencial para a difusão do discurso humanitarista ao
qual Banco pretende se associar, assim como algumas ações concretas de combate
à pobreza absoluta, retórica retomada pelo Banco nessa década. Mas a mais
importante razão seria o crescente mercado a ser explorado pelo capital no setor.
Assim, as propostas do Banco Mundial para os países periféricos nos anos 90
pretendem reconfigurar seus sistemas de saúde redefinindo o papel do Estado nas
políticas sociais, e serão base para as políticas de saúde implantadas no Brasil na
década de 1990. Vários documentos específicos sobre a saúde no Brasil serão
produzidos pelo BM nesse período, como: Brasil: Projeto de controle de doenças
endêmicas no nordeste (1988), Políticas de reforma da saúde, nutrição e seguridade
social no Brasil (1988), A saúde reprodutiva da mulher no Brasil (1989), A saúde do
adulto no Brasil: ajustes para mudanças (1989), Problemas na política de saúde do
governo federal no Brasil (1991), Organização, acesso e financiamento da saúde no
Brasil: agenda para os anos 90 (1993) (Rizzotto, 2000, tradução nossa). Além disso,
vários projetos foram financiados com a participação do Banco Interamericano de
Desenvolvimento - Bird como o Projeto de Vigilância e controle de doenças, Projetos
de controle e prevenção de DST/AIDS e, mais importante para nós, o Reforço à
Reorganização do Sistema Único de Saúde (Reforsus) “ou como o Banco prefere
denominar no acordo de empréstimo assinado com o Brasil de „Projeto de Reforma
do Setor Saúde” (RIZZOTTO, 2000).
Para Rizzotto, as orientações do BM foram muito mais importantes do que
efetivamente os empréstimos realizados, que significaram menos de 1% da despesa
nacional em saúde. Essas orientações contribuíram com a tendência de anular ou
reduzir a ampliação do direito à saúde promovido pela Constituição de 1988.
70
Velásquez (2013) aponta que a falta de intervenção pública levou a indústria farmacêutica a
negligenciar pesquisas para doenças que acometem a população mais pobre de países periféricos.
Segundo ele, a Assembleia Mundial de Saúde de 2012 propôs “redefinir o financiamento e a
coordenação de P&D farmacêuticos de modo a responder às necessidades dos países do Sul. Sua
recomendação principal é a negociação de uma convenção internacional, comprometendo todos os
países a promover P&D, coisa que o mercado sozinho não basta para estimular”.
107

Centralmente orientavam os países a: a) reduzir a municipalização ampliando o


papel dos estados; b) conter custos por meio da restrição do acesso; c) retomar a
experiência das Ações Integradas de Saúde (AIS) e do Sistemas Unificados e
Descentralizados de Saúde (SUDS) para reformas futuras; d) examinar com mais
cuidado os papéis do setor público e privado de saúde no Brasil. Nesse ponto o BM
defende a participação ampliada do setor privado e critica a prioridade dada às
instituições filantrópicas e sem fins lucrativos. Para o BM:
O setor público é o responsável quase exclusivo pelas tarefas essenciais de
regulamentação, promoção e educação, e tem importante papel a cumprir
em matéria de financiamento. A prestação de serviços deve ser feita por
toda e qualquer entidade capaz de prestá-los mais eficientemente dentro da
política geral estabelecida pelo setor público (BANCO MUNDIAL, 1991,
p.117 APUD RIZZOTTO, 2000).

No final dos anos 90, o documento “Governança do Sistema Único de Saúde


no Brasil – aumentando a qualidade do gasto público e da administração de
recursos” foi base para a elaboração das Fundações Públicas de Direito Privado,
modelo de privatização da gestão lançado pelo governo Lula (Granemann, 2011;
Correia, s/i). Esse documento aponta seis ações para aprimorar a governança e o
uso de recursos públicos: autonomia organizacional; fortalecimento da capacidade
gerencial; contratos de gestão; simplificação dos repasses federais; monitoramento e
avaliação de impacto; e alinhamento dos processos de planejamento, orçamento e
monitoramento (Correia, s/i).
Para Correia (s/i, p.12) “o tecnicismo dos argumentos (...) omite a pungente
questão política que está posta, a „busca de desempenho‟ é a chave, não
importando se implica em privatização”. Esse documento aponta princípios
norteadores para o SUS que reforçam a desresponsabilização do Estado como a
gestão autônoma e descentralizada em modelos de gestão como as organizações
sociais.
Também foi o Banco Mundial que organizou os debates e orientou a
contrarreforma dos hospitais universitários que gerou a Empresa Brasileira de
Serviços Hospitalares (EBSERH). Sua influência se iniciou por meio de empréstimos
para o Programa de Reestruturação dos Hospitais Universitários Federais (REHUF),
que foram acompanhados de inúmeros seminários para elaborar “novos modelos de
gestão” (Cislaghi, 2011).
108

3.3 Saúde pública no Brasil: o avanço na privatização da gestão

Historicamente podemos observar diversos mecanismos de privatização da


política de saúde. De um lado o capital privado, oferecendo serviços para consumo
individual e medicamentos e equipamentos. Ainda que, imediatamente privado, este
setor nunca prescindiu do estímulo do Estado e de formas indiretas de apropriação
do fundo público para sua valorização.
De outro lado, há o setor privado “sem fins lucrativos”. Hoje, segundo dados
do Datasus, a divisão dos estabelecimentos de saúde se dá conforme a tabela 2.
Nota-se que, no caso dos serviços, o setor privado com fins lucrativos é o mais
importante com 68,41% dos estabelecimentos de saúde seguido da administração
pública direta 27,33%. Muito distante, em terceiro lugar, estão as entidades
beneficentes sem fins lucrativos com 1,54%. No entanto, pela observação empírica,
é possível que haja uma subnotificação de estabelecimentos dirigidos por
organizações sociais e fundações, apesar desses serem os dados oficiais do
Ministério da Saúde.
109

Tabela 02 - Natureza jurídica dos estabelecimentos de saúde no Brasil

Natureza da Organização Quantidade de Estabelecimentos % Total


Administração Direta 74.545 27,33%
Administração Indireta (autarquias) 322 0,12%
Administração Indireta (empresa
484 0,18%
pública)
Administração Indireta (fundação
595 0,22%
pública)
Administração Indireta (organização
229 0,08%
social pública)
Administração Outros (MEC, Exército,
517 0,19%
etc)
Cooperativa 743 0,27%
Economia Mista 200 0,07%
Empresa Privada 186.594 68,41%
Entidades Beneficentes sem fins
4.193 1,54%
lucrativos
Fundação privada 1.521 0,56%
Serviço Social Autônomo 2.357 0,86%
Sindicato 477 0,17%
Total 272.777
Fonte: Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde – CNES Datasus.
Consulta em 18/08/2014. Elaboração Própria.

As entidades do setor sem fins lucrativos são consideradas pela legislação


“entidades beneficentes de assistência social”. Podem ser entidades beneficentes de
assistência social aquelas com finalidade de prestar serviços nas áreas de
educação, saúde ou assistência social. Para terem esse status as instituições
deviam, até 2006, se inscrever nos seus respectivos Conselhos Municipais de
Assistência Social, segundo a Lei Orgânica de Assistência Social – Loas (lei
8742/93), e comprovar o cumprimento de certos requisitos. Como requisitos gerais
para todas as áreas de atuação constam a não distribuição de lucros e a não
remuneração de seus diretores, conselheiros, instituidores, benfeitores e
congêneres. São concedidas à todas as entidades certificadas como beneficentes a
isenção no pagamento de Cofins, CSLL, PIS/Pasep sobre a receita bruta e
contribuições patronais à Previdência Social.
No caso da saúde as entidades beneficentes sem fins lucrativos têm
prioridade sobre a iniciativa privada com fins lucrativos para participar do SUS de
110

forma complementar aos serviços públicos, por meio de convênio ou contrato.


Podem também, cumprindo as regras determinadas por essa legislação específica,
serem capacitadas como OSs e Organizações da Sociedade Civil de Interesse
Público (Oscips) para assumir a gestão de unidades públicas.
É o poder público que determina quais são os critérios que classificam as
instituições como “entidades beneficentes de assistência social” e a legislação que
regulamenta essa concessão vem sofrendo muitas alterações ao longo dos anos.
Desde o decreto 752/93, anterior a Lei Orgânica da Assistência Social - Loas,
na saúde as instituições devem garantir 60% de atendimentos ao SUS ou 20% da
sua receita bruta em serviços gratuitos como contrapartida às isenções fiscais
recebidas. Nesse decreto as Santas Casas e demais hospitais filantrópicos filiados a
Confederação das Misericórdias do Brasil (CMB) bem como as instituições
vinculadas as Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apaes) não
precisavam comprovar esse percentual de atendimentos efetivos, mas apenas
oferecer 60% de sua capacidade instalada ao SUS.
O decreto de 1993 foi substituído pelo decreto 2536/98. Esse obriga a
comprovação de 60% de atendimento ao SUS, inclusive para as instituições da CMB
e da Apae. No entanto, ele sofreu ação de inconstitucionalidade acatada
preventivamente pelo Superior Tribunal Federal (STF), exatamente devido a essa
obrigatoriedade (Gerschman et al, 2003). Em 2002 mais um decreto adenda a
legislação de 1998, flexibilizando as exigências para a concessão de certificado.
Além da aplicação de 20% da receita bruta em gratuidade ou de 60% de
atendimento pelo SUS a lei passa a permitir que hospitais considerados estratégicos
passem a receber o certificado, fazendo jus às isenções fiscais. Além disso, caso o
gestor local não solicite a contratação dos serviços, para o cumprimento dos 60% de
atendimentos, a entidade poderia complementar com percentuais menores de
gratuidade desvinculada ao SUS. São definidos como hospitais estratégicos pelo
decreto 4481/2002 aqueles que garantam 30% de internação no SUS em áreas de
média e alta complexidade, urgência e emergência ou serviços de referência,
associados a existência de programas de ensino de pós-graduação.
Já no governo Lula, pelo decreto 5895/06, também passam a fazer jus ao
certificado de beneficentes instituições que ofereçam projetos de apoio ao
desenvolvimento institucional do SUS nas áreas de incorporação de tecnologias,
capacitação de recursos humanos, pesquisas de interesse público em saúde,
111

desenvolvimento de técnicas e operação de gestão em serviços de saúde. Essa


prerrogativa vai substituir os hospitais estratégicos no decreto 7237/10, que
substituirá a legislação de 1998. Além de incorporar as mudanças de 2006, esse
decreto passa a certificação do Conselho Nacional de Assistência Social para o
Ministério da Saúde. Durante o governo Roussef haverá mais uma substituição da
legislação que regulamenta a concessão de certificados por meio do decreto
8242/14 que associado a lei 12101/09 determina as regras atualmente vigentes.
A legislação atual mantém as mudanças implementadas desde o governo
Lula e acrescenta a possibilidade de comunidades terapêuticas para usuários de
drogas e entidades que atuam na promoção da saúde receberem certificados, essas
últimas sem a contraprestação de serviços ao SUS. A lei de 2009 permite, ainda,
que os atendimentos ao SUS possam ser cumpridos em estabelecimentos
vinculados a essa instituição por contrato de gestão. Isto é, se a instituição atuar
como uma organização social ela pode contabilizar os 60% dos serviços nas
instituições públicas que ela administra! Além disso, se a instituição atuar em
programa estratégico do SUS essa obrigatoriedade de oferta de serviços cai para
50%.
Percebe-se, portanto, que as mudanças legais ampliaram as possibilidades
de certificação. Para além da complementaridade na prestação de serviços ao SUS
o governo vem subsidiando instituições de pesquisa e promoção da saúde,
flexibilizando as contrapartidas exigidas.
É dessas prerrogativas que se beneficia, por exemplo, o Hospital Albert
Einstein. A estimativa é de que, só em 2013, o hospital deixou de pagar 220 milhões
em tributos, participando de 45 projetos do Ministério da Saúde. Para a reportagem
da Época Negócios (2014), essa é uma vantagem do hospital sobre outras
empresas.
Apesar da lei definir essas instituições como “sem fins lucrativos”, nada
impede que elas lucrem e acumulem. O que a lei determina é que seus lucros sejam
reinvestidos em suas próprias atividades. Os lucros não podem ser distribuídos, pelo
menos sob essa forma. Mas podem ser repassados sob a forma de salários, basta
que seus diretores estabeleçam vínculos empregatícios com a instituição.
Além disso, apesar da lei dizer que em caso de dissolução ou extinção seu
patrimônio deva ser destinado a entidades sem fim lucrativo congêneres ou
entidades públicas, a condição de “sem fins lucrativos”, beneficente, filantrópica,
112

pode cessar a qualquer momento71. É como se o Estado subsidiasse essas


empresas em um momento inicial de acumulação até que o seu lucro se estabilize e
se consolide. A legislação que torna as instituições “sem fins lucrativos”, assim, não
faz com que essas deixem de ser empresas capitalistas.
Veremos no próximo capítulo que além dos subsídios fiscais essas entidades
recebem pagamento por serviços para o SUS, transferência direta de recursos do
orçamento, o que não é permitido para entidades com fins lucrativos e mais
transferências de recursos e patrimônio público quando se habilitam como OSs e
Oscips.
Há ainda outra forma jurídica importante, mesmo que com pouco impacto em
relação ao total: o Serviço Social autônomo. Criados por lei específica para compor
o sistema S na década de 1950, essa forma jurídica ganha respaldo no processo
atual de contrarreforma do Estado (Carrera, 2012). O mais famoso Serviço Social
autônomo é a Fundação das Pioneiras Sociais, criada pela lei 8246 de 1922, atual
administradora da Rede Sarah de hospitais, considerada entidade paraestatal sem
fins lucrativos. Segundo Vecina Neto (2006), essa fundação torna-se Serviço Social
autônomo após a Constituição de 1988 para evitar tornar-se uma autarquia. O
objetivo de seus idealizadores, com isso, era manter a força de trabalho “celetista e
demissível”. Assim, em outubro de 1991 passou a administrar a Rede Sarah por
contrato de gestão, o primeiro na saúde brasileira, sendo seus recursos
exclusivamente oriundos do orçamento da União.
Nesses casos, trata-se de parte do setor privado que se alimenta não da
extração de mais valia dos serviços produtivos, mas, da apropriação de fundo
público. Não lucram, mas engordam. Destes, o Estado compra diretamente serviços,
a título de complementariedade do sistema público, que são gratuitamente prestados
a população. É claro que esses dois setores privados, com e sem fins lucrativos,
podem se misturar, atuando ao mesmo tempo nas duas frentes, isto é,
transformando o fundo público que apropriam em capital.

71
Isso aconteceu com as universidades privadas. Quando o governo lançou o Programa
Universidade para Todos, de subsídio de bolsas em instituições privadas, permitiu isenções fiscais
para entidades privadas com fins lucrativos o que levou várias instituições, como a Universidade
Estácio de Sá, a abandonarem a condição de filantrópicas, tornando-se, inclusive, uma sociedade
por ações, com seu capital aberto na bolsa de valores. Em:
http://noticias.universia.com.br/destaque/noticia/2004/09/29/497717/estcio-sa-deixa-ser-
filantropica.htmle e
http://www.mzweb.com.br/estacio2010/web/arquivos/Estacio_DF_20080404_port.pdf. Consulta em:
02/07/2014.
113

Com o advento do neoliberalismo, a lógica de contrarreforma do Estado


trouxe uma nova modalidade de apropriação do fundo público para entidades sem
fins lucrativos, os chamados “novos modelos de gestão”. Nesse caso, o Estado
repassa a essas entidades a administração de patrimônio público, terceiriza a
contratação de força de trabalho e em troca repassa fundo público para o
financiamento das ações. Mais uma vez não é pela produção de mais valia, mas,
pela apropriação de fundo público, que cobre os custos e remunera as entidades
privadas, a fonte de seu financiamento.
Granemann (2011) caracteriza esse mecanismo de privatização da gestão
como “privatizações não clássicas” “porque não se realizam pelo mecanismo da
venda típica” constituindo-se como formas de privatização mais difíceis de serem
desveladas, inclusive do ponto de vista ideológico.
Soares (2000) chama esse modelo de privatização “por dentro”, com a
introdução de um modelo de gerenciamento de lógica mercantil no serviço público. O
Estado transfere apenas o gerenciamento dos serviços para o setor privado, mas, se
mantém como financiador dos mesmos perdendo, assim, o controle da qualidade
dos serviços prestados.
A primeira lei federal no Brasil que regulamenta essa prática dos “novos
modelos de gestão”, determinando como qualificar entidades como organizações
sociais e instituindo o Programa Nacional de Publicização, é a lei nº 9637, de 1998.
Podem ser organizações sociais as entidades de direito privado sem fins lucrativos
para atuar nas áreas de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico,
proteção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde. Essas organizações
sociais se relacionam com o Poder Público para fomento e execução de atividades
relativas a sua área por meio de contrato de gestão. O contrato de gestão deve
conter as metas, o prazo de execução e os critérios de avaliação de desempenho a
serem utilizados. Para cumprir o contrato de gestão é prevista a destinação de
recursos orçamentários e bens públicos, mas para fazer compras e contratos com
terceiros a organização social não é obrigada a observar as regras do direito público
não precisando, portanto, fazer licitações nem concursos públicos para contrato de
servidores, que têm seus contratos geridos pela Consolidação das Leis do
Trabalho(CLT), regime dos servidores de serviços privados. São regulamentos
próprios definidos pelas OSs que definem os salários de seus servidores e a forma
de realização de compras.
114

Apesar da lei prever que, no caso da saúde, deve ser observada a legislação
do SUS, na medida em que são entidades de direito privado fiscalizadas por um
Conselho de Administração e pelo Ministério da Saúde, a forma de controle social
prevista pelo SUS composto por Conselhos paritários e deliberativos, não alcança o
acompanhamento da execução desses contratos de gestão, não tendo como
interferir depois de assinados.
Essa lei foi contestada pela Ação de Inconstitucionalidade (ADIN) 1923/98,
movida pelo PT (na época contrário à privatização da gestão) e pelo Partido
Democrático dos Trabalhadores (PDT). A ADIN até hoje não foi votada no seu mérito
e, apesar do abandono dos requerentes originais, foi incorporada pelas entidades da
Frente Nacional contra a Privatização da Saúde, que organizou um abaixo assinado
público, e por entidades de outras áreas que vêem fazendo pressão junto aos
Ministros do STF pela procedência da ADIN 72.
Uma outra forma de privatização da gestão, por meio de “novos modelos”, foi
definida pelo Projeto de Lei (PL) 92/2007, são as fundações estatais de direito
privado. Elaborada com base nas idéias publicadas pelo Banco Mundial, a lei é
apresentada pelo documento do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão
(MPOG)intitulado Projeto Fundação Estatal – Principais Aspectos. Na análise de
Granemann (2011), a proposta que será o carro-chefe da privatização da gestão no
governo Lula é uma complementação da contrarreforma do Estado de Cardoso, num
estágio aprofundado. Esse projeto foi referendado no PAC Saúde, ou Programa
Mais Saúde, lançado pelo governo em dezembro de 2007 (Correia, s/i).
A proposta amplia a área onde a privatização da gestão pode se dar. Além
das já previstas pela lei das OSs, as fundações podem atuar na assistência social,
desporto, turismo, comunicação e previdência complementar do servidor público.
Para Granemann (2011, p.54), todos esses “novos modelos de gestão” “embora
diversos na aparência e na forma são, em tudo, símiles no conteúdo e na essência”.
Também a jurista Salete Macalóz (Correia, 2011) afirma que

72
O relator, Ministro Ayres Brito, julgou parcialmente procedente a ação, mas seu julgamento não
modifica as questões centrais da privatização da gestão, apenas considera necessário que os
contratos de gestão sejam estipulados em processos públicos, assim como o contrato de servidores
por essas organizações, defendendo, ainda,a participação do Tribunal de Contas da União (TCU)
na aprovação de suas contas. O julgamento foi finalizado.no dia 16 de abril de 2015 e considerou
procedente na ADIN apenas o que se refere a lei das licitações.
Em:http://www.andes.org.br/andes/print-ultimas-noticias.andes?id=7439. Consulta em: 13/05/2015.
115

o governo mente ao afirmar que a implantação das fundações estatais de


direito privado não traz a privatização do serviço público (...). Ou é público
ou é privado, não tem como ser os dois ao mesmo tempo, como estão
querendo nos fazer acreditar.

A proposta, no entanto, partindo de um governo do PT e com a assessoria de


pesquisadores de instituições expoentes da reforma sanitária como a Escola
Nacional de Saúde Pública (ENSP/ Fiocruz), dividiu os defensores do SUS. Entidade
como o Cebes (2010) e diversos pesquisadores historicamente identificados com o
movimento sanitário (Nogueira, 2010; Carvalho, 2007; Santos, 2010) passaram a
defender as fundações como alternativa às OSs. As Fundações, para esses autores,
não representariam privatização, o que ocorre no caso das OSs, e ao mesmo tempo
seriam uma saída para a crise do SUS.
É contra os argumentos desse setor que debate Batista Júnior (2011),
representante da Confederação Nacional de Trabalhadores da Seguridade Social
(CNTSS) no Conselho Nacional de Saúde (CNS). Batista Júnior concorda que as
Fundações são, tão somente, uma nova forma da privatização do serviço público por
uma via não-clássica, que se apresenta como modernização, mas, na prática,
retrocede à administração patrimonialista permitindo o aprofundamento do
clientelismo e da espoliação política do patrimônio público com o argumento da
“autonomia da gestão” (Santos, 2010). Autonomia que é, na verdade, ausência da
possibilidade de controle social, e retrocesso a um servidor pessoal, indicado e sem
autonomia com a perda de sua estabilidade. O fim do Regime Jurídico Único(RJU)
aparece, então, como questão central em todos esses novos modelos, o que leva
Carvalho (2007) a acusar seus críticos de “corporativos”.
Para Carvalho (2007), a proposta das Fundações, de remunerar os
trabalhadores de forma diferente e com plano de carreira próprio em cada uma sob o
regime da CLT, não causaria nenhum dano ao serviço público. Um de seus
argumentos é de que não é o atendimento à saúde uma função exclusiva do Estado,
argumento semelhante ao de Bresser Pereira na sua proposta de contrarreforma. Ou
seja, ao invés de termos no horizonte a ampliação da saúde pública,
pragmaticamente passa-se a reivindicar como inevitável a privatização, rebaixando o
SUS aos critérios empresariais 73. Concordamos com Batista Junior (2011, p.41) que

73
Sem nenhuma consistência, esse é o argumento básico de Lenir Santos (2010) uma das
assessoras do governo federal para elaboração das fundações privadas. Com uma retórica
superficial que lembra Hayek e Fukuyama, Santos (2010) afirma que “(...) os modelos juridícos
tradicionais não são capazes de dar conta de atuar em uma administração pública crescente na
116

Quem trabalha com a vida das pessoas não pode e não deve ser submetido
à “lógica do mercado”, que em se tratando da saúde e da vida das pessoas,
é um conceito absolutamente anacrônico e incompatível com a reforma
sanitária e com os princípios da ética e do humanismo.

Ao contrário das OSs, que não são formadas diretamente por iniciativa do
Estado, os ocupantes dos cargos dirigentes nas Fundações são indicados pelo
governo. Ainda que concordemos que o sentido das fundações é idêntico ao das
OSs, nossa hipótese é que, por ingenuidade ou má fé, alguns acreditam que sendo
os espaços de gestão da fundação ocupados por pessoas relacionadas ao PT e ao
movimento sanitário seria possível reverter seu sentido privatizante, fortalecendo o
SUS. Algo como “as fundações somos nós”, como se isso descaracterizasse o
sentido do projeto. Ou como se os generais pacifistas pudessem dissolver o exército,
como já citado de Mandel.
Discordamos da hipótese a que se remete Andreazzi (2012) de que os
gestores dessas instituições do terceiro setor assemelham-se a uma burguesia e
que estas instituições fomentariam um “capital burocrático”. Nossa hipótese, com
base na crítica da economia política marxiana, é que, sem dúvida, há formação de
uma burocracia parasita do fundo público que pode, recebendo fartas
remunerações, passar para a classe burguesa por meio, por exemplo, da compra de
ações de grandes empresas. O processo, porém, de privatização da gestão em si,
não forma capital, pois, apenas “gasta” fundo público, ao menos no que tange às
organizações sociais e fundações, e enquanto não se generaliza a venda de
serviços para o setor privado por meio das chamadas “duplas portas”, permitindo, aí
sim, a existência de um setor produtivo, se voltado para a lógica do lucro e da
valorização. Esse é o caso das empresas estatais, e esse é exatamente o mais novo
modelo de gestão proposto pelo governo federal, que analisaremos a frente.
Concordamos com Mandel (1982, p.364) para quem:

O fato de não ser possível descrever as despesas estatais in toto como


capital (e não certamente, como capital estatal) é evidente por si mesmo. Se
o Estado cobre as perdas dos empresários privados ou lhe concede
subsídios (...) nesse caso não valorizou nenhum „capital estatal‟, apenas
gastou parte de suas rendas com a valorização do capital privado.

medida do tamanho da população – 190 milhões de cidadãos” (sic), assim “a realidade é que o
binômio Estado-sociedade, público-privado não podem mais ser vistos como coisas antagônicas; é
necessário repensar esse binômio diante da realidade de que o Estado não pode prescindir do
privado, da sociedade, do administrado, do cidadão como parte desse todo” (grifo nosso).
117

Apesar de terem sido aprovadas leis em alguns Estados, e algumas


fundações terem sido implantadas, a legislação federal nunca foi aprovada,
seguindo em trâmite no Congresso Nacional. Mesmo que siga sendo o “modelo
favorito” de vários setores oriundos do movimento sanitário,

A proposta de fundação estatal de direito privado está na verdade tão


desmoralizada, que até estados que a criaram através de leis, ou não
implementaram como são os casos do Rio de Janeiro e Pernambuco, ou
simplesmente aderiram às organizações sociais, como são os casos
exemplares dos próprios Rio de Janeiro e Pernambuco e, surpresa para
nós, a Bahia. Isso é, no mínimo, estranho enquanto seus defensores faziam
apologia como alternativa concreta às organizações sociais, até então por
eles consideradas ilegais e „desconstrutoras‟ do SUS (Batista Junior, 2011).

A referência do autor ao governo da Bahia é porque se trata de uma gestão


do PT. Ainda assim, o governo baiano não tem se limitado ao modelo das fundações
e das organizações sociais. Pelo contrário, foi em Salvador que saiu do papel a
única experiência de parceria público privada na saúde que se estende à gestão da
totalidade dos serviços, regida pela lei nº11079, privatizando o patrimônio público
por meio de contrato administrativo de concessão com entidades privadas com fins
lucrativos. O governo do Estado gastou R$54 milhões na construção do Hospital do
Subúrbio, de média e alta complexidade e realizou licitação ganha pela Prodal
Saúde SA, parceria entre a empresa francesa especializada em “eficiência
energética” (sic)74 e a empresa brasileira Promédica75, empresa de planos de saúde
que possui rede própria de hospitais privados. A Prodal alega ter investido R$ 36
milhões em equipamentos e tem seus serviços remunerados pelo governo mediante
cumprimento de metas. A concessão é pelos próximos 10 anos sendo renovável por
mais 10 (Valor Econômico, 2012).

74
“Como parceira estratégica, a Dalkia opera e controla o fornecimento de todas as utilidades
necessárias às atividades hospitalares (como frio, vapor e vácuo), à prevenção de riscos sanitários
e à gestão global dos empreendimentos. A Dalkia também oferece serviços de hotelaria hospitalar,
que garantem aos pacientes, visitantes e funcionários conforto, segurança e bem -estar”. Em:
http://www.dalkia.com.br/pt/segmentos/saude/. Consulta em: 09/05/2013.
75
Em: http://www.promedica.com.br/br/emp_apresentacao.html. Consulta em: 09/05/2013.
118

Diante do “sucesso” 76 da iniciativa, o governo do PT na Bahia está elaborando


nova PPP para construir, equipar e prestar serviços médicos e não médicos para um
novo hospital, por 20 anos.
Mas é no Estado do Rio de Janeiro que se localiza o maior projeto de PPP em
elaboração. O consórcio que está encaminhando essa PPP é formado pelas
empresas de construção Odebrecht, Carioca Christiani-Nielsen e FW
empreendimentos e está orçada em R$669 milhões (Valor econômico, 2012). Os
hospitais previstos também serão de média e alta complexidade, não por
coincidência os serviços mais caros de saúde, pouco lucrativos para o setor privado.
Sua amplitude é impressionante. Está prevista a construção de: um centro de trauma
e queimadura no Hospital Adão Pereira, um centro de trauma no Hospital Albert
Schweitzer, um novo hospital em Campo Grande, um hospital para trauma e
tratamento de câncer em Nova Iguaçu e um Centro de Pesquisa e Inovação com
cursos de pós graduação. Mas, no caso do Rio de Janeiro, a gestão não se dará
por PPP, mas por OS. Isso porque, por lei, apenas 5% da receita corrente do Estado
pode ser usada em PPPs, o que tem limitado o uso desse modelo na gestão direta
dos serviços. Também em São Paulo, Manaus e Brasília 77 há previsão de PPPs
para a construção de novos hospitais (Valor Econômico, 2012). Em Belo Horizonte a
proposta de PPP na saúde tem o apoio do BNDES, do BID e da International
Financial Corporation, instituição ligada ao BM que tem como objetivo fortalecer o
setor privado em países periféricos 78. Na Europa, a saúde já é o terceiro maior setor
de emprego de PPPs, totalizando 4% do total de projetos nesse modelo (Carrera,
2012).
Há, ainda, uma proposta de privatização do fundo público na gestão dos
serviços de saúde que ocorre por meio da financeirização. Construindo mecanismos
de centralização do fundo público em entidades jurídicas de direito privado com fins
lucrativos (no caso uma empresa pública ou sociedade de economia mista), o

76
A iniciativa ganhou prêmio do Banco Mundial em 2013 como uma das 10 melhores PPPs na
América Latina. Em: http://www.dalkia.com.br/pt/imprensa/Noticias/2013-04-
19,News_Dalkia_19042013.htm. Consulta em: 09/05/2013.
77
Em: http://www.governo.df.gov.br/link-projetos/381-ppp-da-area-de-saude.html,
http://ppp.manaus.am.gov.br/ppp-da-saude/. Consulta em: 09/05/2013.
78
Em:
http://www1.ifc.org/wps/wcm/connect/Multilingual_Ext_Content/IFC_External_Corporate_Site/Home_
PT Consulta em: 09/05/2013
119

Estado cria, por intermédio de uma estrutura do próprio Estado, uma forma de
transformar recursos da saúde em ações no mercado. O Estado por meio dessa
entidade, que também passa a “administrar” os serviços de saúde, constrói sua
própria “dupla porta” que, pelo seu lado produtivo, garante lucro, proveniente da
extração de mais valia dos trabalhadores dos serviços comprados por consumidores
privados. Então, por meio das ações, o capital portador de juros pode se apropriar
do fundo público e do lucro produzido.
A face do direito não se extingue, na medida em que o fundo público segue
garantindo serviços gratuitos residuais, mas esse mesmo fundo público passa,
criativamente, a dar suporte ao capital durante todo seu processo de valorização.
Esse modelo está sendo inaugurado79 pela Empresa Brasileira de Serviços
Hospitalares (EBSERH). Ela foi autorizada, num primeiro momento, pela MP 520, no
último dia do governo Lula, ligada ao Ministério da Educação (MEC) para administrar
os hospitais universitários. Posteriormente a medida provisória (MP) não foi
aprovada pelo Congresso, mas, voltou à cena por meio da lei de nº 12550 de 2011.
Muitos debates têm se realizado nas universidades, pois, a adesão a EBSERH vem
passando pela decisão dos Conselhos Universitários 80. Em 2014, 23 dos 47
hospitais universitários federais haviam aderido à EBSERH que tinha ainda 24
concursos em andamento em diversos estados com o objetivo de contratar 3,5 mil
trabalhadores (Valor Econômico, 2014). Segundo dados da Frente Nacional contra a
Privatização da Saúde, inúmeras irregularidades vêm sendo apontadas nesse
concurso e, de forma geral, na gestão dos hospitais pela EBSERH, que geraram,
inclusive, paralisações de seus servidores na UNB e na UFPI durante 2014.
A justificativa para a criação da EBSERH foi a necessidade de dar resposta
ao acórdão nº 1520 do TCU, de 2006, que declarava ilegal a situação de 26 mil
contratos precários nos hospitais universitários. Mas ao invés de fazer concursos

79
Na verdade generalizado como modelo nacional, pois já há um hospital administrado dessa forma
desde de 1970. Criado pela lei 5.604, durante a ditadura, o Hospital de Clínicas de Porto Alegre é
atualmente o hospital universitário da UFRGS. O HCPA segue servindo de exem plo para esse novo
modelo de gestão. Em: http://www.hcpa.ufrgs.br/content/view/13/97/ . Consulta em 09/05/2013.
Outra empresa pública na área da saúde é a Rede Conceição. Aprofundaremos o debate sobre o
funcionamento dessas instituições no quarto capítulo da tese.
80
A adesão a EBSERH deveria ser aprovada pelos Conselhos Universitários o que não ocorreu no
caso da UFMA, UFAL, UFTM, UFES, UFS e UNIVASF. Os demais casos também foram marcados
por processo autoritários como denuncia o documento da Frente Nacional contra a Privatização da
Saúde em https://drive.google.com/file/d/0B3SRQLv1tEAVYzlXbC1UaGFYYlE/edit?pli=1 .Consulta
em: 24/02/2015.
120

públicos o governo decide por um modelo de gestão que oficializa a contratação por
fora do RJU (Cislaghi, 2011).
Sendo empresa, esse “modelo de gestão” passa a ter fins lucrativos. Apesar
da alegação de que os serviços assistenciais serão oferecidos exclusivamente para
o SUS recoloca-se no seu estatuto a prerrogativa da lei nº 9656 de 1998, que
regulamenta os planos de saúde, de que estes devem ressarcir o SUS quando seus
clientes fizerem uso desses serviços. Nossa hipótese é de que na prática, a
aplicação dessa lei pode potencializar as duplas portas, já existentes em hospitais
universitários, tornando-se uma reserva de leitos exatamente nos hospitais de alta
complexidade, caros e, portanto, pouco lucrativos para o setor privado. Mais ainda,
as atividades de pesquisa e extensão não se incluem nessa exclusividade do
atendimento público possibilitando a venda de serviços como estágios para o setor
privado, ou a redução dessas atividades, que garantem a indissociabilidade entre
ensino, pesquisa e extensão nessas instituições universitárias. Na prática, se a
EBSERH tiver sucesso, haverá a descaracterização dos hospitais universitários
como tais, já que sua relação com as universidades será, no futuro, apenas formal
pelos contratos de gestão; todos os trabalhadores serão da empresa e não da
universidade e o controle social não se dará pelos espaços da universidade, ou
pelos conselhos de saúde, mas, pelos Conselhos Consultivos da empresa (Cislaghi,
2011). A lei também permite que, no futuro, não só os hospitais universitários
federais, mas, outras unidades de saúde, chamadas “congêneres” pela legislação,
possam ser administradas pela empresa ou por suas subsidiárias, previstas na lei 81.
Além disso, há um elemento diferencial no modelo da empresa pública, que
permite que a consideremos um modelo de gestão de “segunda geração” que
aprofunda e sofistica a privatização da saúde: a possibilidade da abertura de capital
por ações, quando seu modelo jurídico é a sociedade de economia mista. Colocadas
no mercado, essas ações podem ser compradas por planos de saúde ou pelos
fundos de aplicação, que, assim, podem dirigir as ações das unidades de saúde
geridas pela empresa para seus interesses.
No caso da EBSERH a proposta original do governo é de que ela se
constituísse como sociedade anônima (SA) - (juridicamente uma sociedade de
economia mista). A votação na Câmara e no Senado, porém, aprovou a empresa

81
Já existe a proposta chamada “Saúde Brasil” que passa a gestão dos hospitais federais e institutos
do Rio de Janeiro para a EBSERH (Frente Nacional contra a Privatização, 2014)
121

como unipessoal, isto é, com a totalidade de suas ações em posse do governo. Essa
condição, entretanto, é facilmente flexibilizada, retornando à condição de SA, já que
toda a legislação das empresas públicas no Brasil garante essa modalidade. A
intenção original do governo, afinal, previa que a empresa fosse uma SA. Na nossa
opinião, o recuo ocorre para garantir a correlação de forças na aprovação da
EBSERH nas universidades. Exatamente como no caso das fundações, o argumento
do governo é que nada descaracteriza a gestão pública por meio da empresa.
Esse modelo não se limitou à EBSERH. Discutido pelo Congresso do
Conselho Nacional dos Secretários de Administração como “empresas públicas
sociais” o modelo é apresentado como substituto “viável” das fundações privadas,
que estão sob ADIN no STF82. Rapidamente outras esferas de governo o adotaram,
como a prefeitura do Rio de Janeiro que colocou em votação na Câmara de
Vereadores a Rio Saúde SA para administrar a saúde municipal 83.
O que é comum em todos os chamados “novos modelos de gestão” é a
substituição dos concursos públicos e dos empregos com estabilidade por contratos
por CLT, podendo ser, inclusive, por tempo determinado. Nesse regime de trabalho
reduz-se a autonomia dos profissionais, que retornam à condição de servidores
pessoais, e limita-se sua capacidade de organização e reivindicação, na medida em
que os contratos podem ser rompidos se os trabalhadores não corresponderem ao
projeto do empregador, que não é mais o Estado diretamente. Os serviços
oferecidos como políticas públicas passam a estabelecer o mesmo regime de
trabalho dos serviços privados e, como vimos, em alguns casos, podem passar a
extrair mais-valia nessas instituições quando os serviços estão a serviço do lucro e
da acumulação.
Aos empregadores interessa o aumento da produtividade do trabalho, seja na
extração direta da mais-valia, seja para cumprirem as metas estipuladas em contrato
com o Estado, gastando menos recursos com o trabalho, o que aumenta sua
apropriação de fundo público.
A qualidade do serviço passa a ser medida pela produtividade: quanto se
produz, em quanto tempo se produz e com que custo se produz, o que irá definir os
82
Em: http://www.escoladegoverno.rn.gov.br/content/aplicacao/searh_eg/imprensa/pdf/172.pdf.
Consulta em 08/05/2013.
83
O projeto foi aprovado pela Câmara de Vereadores do RJ em maio de 2013 sob protestos dos
movimentos sociais ligados à saúde organizados no Fórum de Saúde do Rio de Janeiro. Não há até
o momento, no entanto, nenhum recurso ou estrutura institucional previstos para essa empresa.
122

contratos de gestão. A qualidade é, na verdade, medida pela quantidade não


importando mais o que se produz, como se produz e para que (ou quem) se produz
(Chauí, 1999). Obedece-se, inclusive nos serviços públicos, às prerrogativas da
subsunção real dos serviços ao capital, conforme exposto no capítulo 1 desse
trabalho.
Outro fator comum a todos os modelos é que reduz-se as possibilidades de
controle social, um dos principais ganhos da saúde na Constituição. Ao invés de
espaços eleitos pela comunidade, gestores eleitos pela comunidade, conselhos
deliberativos e paritários, o controle passa a se dar em Conselhos Administrativos,
consultivos, que possuem um representante de usuários e trabalhadores, quando
muito. É verdade que o Estado, há muito tempo, vem se recusando a reconhecer o
papel dos Conselhos de Saúde. O Conselho Nacional de Saúde e a Conferência
Nacional de Saúde, por exemplo, votaram, ambos, contra esses modelos de gestão
privatizantes, o que vem sendo desrespeitado pelos governos. No entanto, agora
esses espaços se esvaziam institucionalmente.
São muitos os escândalos que vêm sendo denunciados pela mídia na saúde
pública: fraudes em licitações, fechamento de serviços para privilegiar o setor
privado e até assassinato de pacientes do SUS para esvaziar os leitos 84. A proposta
do governo, no entanto, resolve a doença do paciente desligando as máquinas, ou
seja, acaba com a fraude nas licitações acabando com as licitações, acaba com o
privilegiamento de entidades privadas privatizando as públicas. Do mesmo modo, ao
invés de fortalecer a carreira e contratar mais trabalhadores por RJU, fortalecendo o
controle da população sobre a qualidade dos serviços, institui um regime que reduz
o compromisso dos profissionais, aumenta a rotatividade o que não leva,
certamente, à ampliação da qualidade, ou ao combate a práticas corporativistas que
prejudicam a população com a redução da impessoalidade na contratação. Não é à
toa que, no caso das OSs, modelo mais antigo e mais difundido, já vieram à tona
inúmeras ilegalidades, denúncias de assédio moral aos trabalhadores, estando
todas as OSs sob investigação do Ministério Público 85. Também cada vez mais se

84
Em:http://noticias.terra.com.br/brasil/policia/pr-policia-investiga-se-medicos-usaram-anestesico-para-
matar-pacientes,45f41b361561d310VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html,
http://noticias.terra.com.br/brasil/policia/pf-abre-inquerito-para-apurar-fraude-em-licitacoes-em-
hospital,49dadc840f0da310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html. Consulta em: 08/05/2013.
85
Denúncias que constam no documento da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde: “Contra
fatos não há argumentos que sustentem as organizações sociais no Brasil”. Em:
123

fortalecem movimentos de resistência a esses modelos com o surgimento no último


período de inúmeros Fóruns de Saúde estaduais e municipais vinculados à Frente
Nacional contra a Privatização da Saúde.
Ao mesmo tempo, essas propostas não resolvem os graves problemas de
financiamento da saúde no Brasil. Tirando a possibilidade de venda de serviços para
os planos de saúde, prejudicando a absoluta maioria da população que depende
exclusivamente do SUS, não há nenhuma proposta de ampliação do insuficiente
financiamento da saúde. Continua sendo o fundo público o financiador das
instituições públicas sob gestão privada. Então por que privatizá-las?

3.4 O setor privado de saúde no Brasil hoje

O setor saúde no Brasil em 2009 movimentou 283,6 bilhões de reais, o


equivalente a 8,8% do PIB, mas, como já exposto, um gasto majoritariamente
privado: 56,3% do total oriundo das famílias, em contradição com um sistema que
deveria ser público e universal. Segundo dados do Conselho de Secretários de
Saúde o orçamento do SUS, previsto para 79,3 bilhões em 2013, deveria ser de 120
bilhões para chegar aos patamares de investimento que existiam em 2000. O gasto
público per capita por ano é de baixíssimos US$ 335 no Brasil, enquanto na
Argentina é de US$ 485 e no Reino Unido de US$ 3,4 mil (Valor econômico, 2012).
No subsetor de equipamentos e medicamentos, chama atenção o déficit na
balança comercial, que se estima ter sido em 2012 de US$ 12 bilhões. O governo
tem tomado medidas para reverter essa situação entre empréstimos para ampliação
da indústria no país e benefícios na compra de produtos produzidos no Brasil pelo
SUS, medida que tem impacto, pois, o setor público é o principal mercado
consumidor do setor, chegando a 20% do total. No entanto, o déficit ocorre, pois o
Brasil precisa importar equipamentos de alta tecnologia e exporta materiais de baixa
tecnologia, como materiais de consumo. A lógica tributária também contribui, pois o
governo dá isenção tributária para importações de hospitais públicos e filantrópicos,
prejudicando a concorrência de produtores nacionais, que reivindicam o mesmo

http://pelasaude.blogspot.com.br/p/contra-fatos-nao-ha-argumentos-que.html Consulta em:


08/05/2013.
124

tratamento. Para contrarrestar essa tendência, o governo tem oferecido vantagens a


quem produz no Brasil como desonerações na folha de pagamentos e ágio de até
25% nas licitações (Valor Econômico, 2012).
Alguns programas foram criados para estimular a indústria. O Programa de
Investimentos no Complexo Industrial da Saúde (Procis) foi lançado pelo Ministério
da Saúde no início de 2012 e prevê R$ 2 bilhões de orçamento até 2014, entre
recursos da União e de governos estaduais para a produção de vacinas,
medicamentos e equipamentos, o que significaria cinco vezes mais investimentos do
que no período anterior. O programa será executado em parcerias público-privadas
entre 34 laboratórios, com transferências de tecnologia do setor privado para o
público – as Parceira para Desenvolvimento Produtivo (PDP)86, segundo o governo
(Valor econômico, 2012). O Complexo Industrial da Saúde é considerado na portaria
506/2012, que institui o programa,

área estratégica da Política Industrial do País, conforme o Plano Brasil


Maior, instituído pelo Decreto nº 7.540, de 2 de agosto de 2011, e como tal,
propõe a adoção de diretrizes e iniciativas que permitam o fortalecimento da
indústria nacional com o aumento de capacidade produtiva, inovadora e a
competitividade internacional, com a consequente ampliação do mercado
interno e externo dos insumos da saúde.

A legislação aponta o fortalecimento dos produtores públicos como seu


principal objetivo. Para que a instituição possa participar do programa, porém, a
portaria destaca “a implantação de um sistema eficiente de gestão”, tendo o
programa como um de seus objetivos apoiar “a modernização da estrutura produtiva
e gerencial”. Conforme a tabela 3 podemos observar que a maioria dos laboratórios
participantes do programa já são geridos por estruturas de direito privado. Em alguns
casos as empresas públicas têm capital aberto como a Iquego/Go e o Instituto Vital
Brazil/RJ. No caso da Bio-Manguinhos a mudança na forma de gestão foi
imediatamente posterior ao lançamento do Procis.

86
As PDP foram regulamentadas pelo Ministério da Saúde por meio da portaria 837 de 2012.
125

Tabela 03 - Laboratórios Públicos participantes do Procis e seus modelos de gestão.


Ano de implementação
Laboratórios Públicos Modelo de Gestão
do modelo
Insituto Butantan Fundação Pública de Direito Privado 1998
Bio Manguinhos Empresa Pública Aprovado em 2012
LIFAL/AL Sociedade de Economia Mista Fechada 2005
IQUEGO/GO Sociedade de Economia Mista Aberta 1962
FUNED/MG Fundação de Direito Público 1970
LAFEP/PE Sociedade de Economia Mista 1966
87
LFM/RJ Organização Militar Prestadora de Serviço Decreto 3011/99
LQFA/RJ Organização Militar Prestadora de Serviço Decreto 3011/99
LQFEX/RJ Organização Militar Prestadora de Serviço Decreto 3011/99
Farmanguinhos/RJ Fundação de Direito Público 1970
IVB/Rj Sociedade de Economia Mista Aberta 1956
NUPLAM/RN Vinculada a UFRN – autarquia 1991
FURP/SP Fundação Pública de Direito Privado 1974
BahiaFarma Fundação Pública de Direito Privado 2011
FAP/RJ Fundação Privada Filantrópica 1924
TECPAR/PR Empresa Pública 1940
LAFERGS/RS Fundação de Direito Público 1994
HEMOBRÁS/PE Empresa Pública 2004
Fonte: www.lifal.al.gov.br/,www.adusp.org.br/files/revistas/48/r48a06.pdf,www.iquego.com.br/,
funed.mg.gov.br,portal.fiocruz.br/ptbr/content/home,www.nuplam.ufrn.br/historico.php,
www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/7561959/mandado-de-seguranca-ms-7219995-sp-00072-1999-5-trt-
2,www2.saude.ba.gov.br,www.bcgfap.com.br/web/,portal.tecpar.br/,
www.fepps.rs.gov.br,www.hemobras.gov.br,portalsaude.saude.gov.br/portalsaude/noticia/4544/162/investimentos
-em-laboratorios-publicos-aumentam-cinco-vezes.html. Elaboração Própria.

O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) também


promove uma linha de crédito para o subsetor farmacêutico e de equipamentos, o
Profarma, que está sendo reformulado para focar em biotecnologia, que é o
segmento mais avançado tecnologicamente e que o Brasil mais importa. O Profarma
existe desde 2004 e em dez anos já haviam sido gastos R$ 4,6 bilhões (Valor
Econômico, 2014). Todas essas medidas estimulam o consumo de medicamentos,
tendo a indústria farmacêutica ampliado seu faturamento em 19% entre 2010 e 2012
(Valor econômico, 2012).
Esse movimento também é estimulado pelo Programa Farmácia Popular, uma
estratégia implantada no início do governo Lula que visava a ampliação do acesso
da população mais pobre a medicamentos. O Programa, no entanto, foi muito

87
As Organizações Militares Prestadoras de Serviços foram criadas pela lei nº 9734 de 1998, dando
autonomia gerencial a organizações militares de atividades industriais, de pesquisa, ensino, saúde,
cultura, no espírito da contrarreforma do Estado, num modelo semelhante ao das organizações
sociais.
126

questionado pelos Conselhos de Saúde, pois, estabelece um co-pagamento entre o


Estado e os usuários, onde o primeiro arca com 90% do valor dos medicamentos e o
segundo 10%, colidindo com as diretrizes do SUS que prevêem a assistência
farmacêutica gratuita como parte da integralidade das ações. Além disso,
inicialmente pensada para estabelecimentos estatais, a partir de 2006 o Programa
foi ampliado para farmácias privadas, que passam a se favorecer desse mecanismo
de transferência de fundo público (Bravo e Menezes, 2011). Em 2014 as farmácias
ligadas à Associação Brasileira de Redes de Farmácia e Drogarias (Abrafarma)
registraram um aumento de 13,69% das suas vendas. Dessa alta, 10,94%, o
equivalente a 272,2 milhões de reais, referem-se ao Programa Farmácia Popular. A
expectativa das farmácias é de manterem um crescimento acima de 10% por ano já
que as projeções apontam que o mercado de medicamentos no Brasil vai dobrar de
tamanho em cinco anos. (Valor Econômico, 2014)
Independente de produzido ou não no Brasil, o movimento nos subsetores
industriais de produtos farmacêuticos e de equipamentos é de múltiplas fusões e
aquisições, sobretudo de empresas brasileiras por grandes empresas estrangeiras
(Valor econômico, 2012), tendência de monopolização já apontada nesse trabalho.
O Brasil é apontado como o terceiro país com mais fusões e aquisições no setor
saúde. Os pontos considerados positivos pelos investidores são: o ritmo acelerado
do crescimento de medicamentos genéricos, o potencial de expansão do mercado
de medicamentos patenteados para a classe média, a falta de restrição para
investimento do capital estrangeiro no setor de medicamentos, o crescimento dos
planos de saúde e o aumento de incidência de doenças como diabetes e
hipertensão (sic). Essas fusões e aquisições tem contado com a participação
acentuada de fundos de investimento como private equities88 (Valor econômico,
2012), o que demonstra o processo avançado de financeirização do setor.
Mas é o subsetor de serviços de saúde (hospitais, laboratórios de análises
clínicas e centros de diagnósticos) “a menina dos olhos dos investidores dispostos a
injetar recursos em fusões e aquisições de empresas no ramo de saúde” (Valor
econômico, 2012, p.62). Os hospitais privados lucrativos têm se beneficiado de
recursos do fundo público por meio de empréstimos com condições favoráveis do

88
Segundo Enrico Vetori, sócio da área de ciência da vida e cuidados com a saúde da Deloitte,
empresa de consultoria de mercado do Reino Unido: “A saúde é a bola da vez para o investidor.
Instituições de private equity e capital de risco buscam oportunidades” (Valor econômico, 2012,
p.67).
127

BNDES. Para os hospitais filantrópicos, o BNDES possui o programa BNDES


Saúde, que previa investir R$ 730 milhões em 2012. O banco financia a construção,
modernização e ampliação de empreendimentos em saúde. Estima-se que o
desembolso do banco com o setor privado de saúde tenha passado nos últimos
cinco anos de R$ 94,5 milhões para R$ 578 milhões, um aumento de 511%. Nos
primeiros meses de 2014 já haviam sido liberados R$ 201 milhões para o setor.No
Brasil hoje 68% da rede hospitalar é privada com fins lucrativos (Valor econômico,
2012 e 2014).
No entanto, a legislação brasileira vetava, até 2014, a participação direta e
indireta de capital estrangeiro na assistência à saúde 89, que só poderia aplicar
recursos em planos de saúde e medicina diagnóstica. Assim, o capital estrangeiro
comprou planos de saúde que possuiam redes próprias, burlando esse veto
constitucional. Esse é o caso da Amil, uma das maiores empresas de planos de
saúde do Brasil, que foi, no último ano, comprada pela empresa americana United
Health Group por R$ 9,8 bilhões de reais.
Cerca de 26,3% da população brasileira, segundo a Pesquisa Nacional Por
Amostra de Domicílios(PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) de 200890, é conveniada a empresas de planos de saúde, sendo que 70%
dos planos são empresariais, isto é, estão vinculados a contratos formais de trabalho
(Bahia e Scheffer, 2010). Em 1998, pela primeira vez os planos de saúde foram
regulamentados no Brasil por meio da lei 9.656/98, com exceção dos planos
coletivos, empresariais ou não, justamente a maior parte do mercado. Essa
legislação definiu padrões mínimos de cobertura e o funcionamento das empresas
do setor. A disputa entre os interessados nos direitos dos clientes e os defensores
do lucro das empresas levaram a uma legislação confusa que estimulou desde seu

89
Já existiam projetos em trâmite na Câmara de Deputados para alterar essa restrição como o PL
259/2009 do senador Flexa Ribeiro (PSDB). Em:
http://www.diagnosticoweb.com.br/noticias/carreira/senador-critica-lentidao-na-tramitacao-do-pl-que-
permite-investimento-estrangeiro-em-hospitais-brasileiros.html Consulta em: 27/04/2013. Há
também propostas, como a PL 4542/12 do deputado Eleuses Paiva (PSD) que, ao contrário, limitam
a participação do capital estrangeiro em planos de saúde. Em:
http://www.clicabrasilia.com.br/site/noticia.php?proposta-limita-capital-estrangeiro-em-planos-de-
saude&id=445870 Consulta em: 27/04/2013. Em dezembro de 2014, no entanto, foi aprovada a MP
656/14, sem nenhum debate público, permitindo a entrada de capital estrangeiro em todos os
subsetores da saúde. A medida vem sendo duramente contestada pelos movimentos sociais. Em:
http://www.contraprivatizacao.com.br/2015/01/0968.html#more Consulta em 25/02/2015.
90
Além da pesquisa básica realizada anualmente na PNAD, em 2008 foi realizada uma pesquisa
adicional sobre saúde. Essa pesquisa já havia sido realizada em 1998 e 2003. Em:
http://www.fsp.usp.br/marciafurquim/Inqueritos.pdf. Consulta em: 21/03/2015.
128

surgimento a edição de sucessivas medidas provisórias, resoluções do órgão


regulador e a adoção de recursos judiciais de parte a parte (Bahia e Scheffer, 2010,
p.37).
Em 1999, foi criada pela MP nº1928, convertida na lei nº 9961/2000, a
Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), uma autarquia especial ligada ao
Ministério da Saúde com autonomia administrativa, financeira, patrimonial e de
gestão de recursos humanos, responsável pela regulação dos planos de saúde
individuais.A ANS é parte da lógica de contrarreforma do Estado implantada no
governo Cardoso, expressando a prioridade da intervenção do Estado na regulação
e não na intervenção direta, como no modelo do Estado de Bem Estar Social.
Apesar de chamada suplementar, o sistema regulado é, de fato, substitutivo,
isto é, para quem pode pagar são oferecidos um nível de tratamento, uma
possibilidade de escolha e rapidez no acesso superior ao sistema público, mas os
usuários continuam usando o sistema público para procedimentos não cobertos, em
geral os mais complexos e caros (Bahia e Scheffer, 2010, p.54).
Ocké-Reis (2012) aponta mudanças substantivas no mercado de planos de
saúde após sua regulamentação, dentre elas a concentração das empresas 91, fator
que, pela monopolização que acarreta, pode reduzir a qualidade e aumentar o preço
dos serviços, contraditoriamente ao que é apresentado como objetivo da regulação.
Além disso, a concentração cria maiores chances de “captura da ANS” pelas
empresas 92, levando ao privilégio do lucro sobre as necessidades sociais.
Bahia e Scheffer (2010) apontam algumas lacunas na regulamentação e
práticas abusivas recorrentes:
a. Exclusões de cobertura: principalmente procedimentos de alto custo e
complexidade, doenças preexistentes, transplantes, urgência e
emergências, órteses e próteses.

91
Segundo Bahia e Scheffer (2010), em 2010 um quinto dos usuários de planos estão vinculados às 6
maiores operadoras, metade dos usuários em 38 operadoras e 10% da população estava
pulverizada em 750 operadoras. Dados do Valor Econômico (2012) apontam que os 40 maiores
grupos já concentram 70% da população. Estima-se, ainda, que após a regulamentação da ANS
cerca de mil empresas de plano de saúde saíram do mercado.
92
Elio Gaspari, em coluna no Jornal O Globo de 26 de maio de 2013, denunciou o que o jornalista
chama de “porta giratória da ANS, isto é, a ida de executivos dos planos de saúde para a direção da
ANS e vice versa. Mauricio Ceschin, que presidiu a ANS entre 2009 e 2012, vinha da empresa
Qualicorp. “Um diretor que veio dos quadros da Amil a eles retornou. Outro, saiu da Amil, passou
pela agência e hoje está na Unimed. Um quadro da Hapvida que litigava contra a ANS tornou-se
seu diretor-adjunto”.
129

b. Barreiras de acesso: triagens, necessidade de autorizações prévias,


transferências de pacientes, exigência de cheque caução, falta de vagas
na rede conveniada.
c. Descredenciamentos da rede conveniada: sem aviso aos usuários ou à
ANS.
d. Interferência na ação de médicos e prestadores: negação de consultas,
internações, exames, limitação do tempo de internação. Além disso os
pagamentos por procedimento médico são baixos e são estipuladas metas
individuais de quantidade máxima de procedimentos pedidos que, se
ultrapassada reduz os valores pagos e se não atingida pode gerar
bonificações.
e. “Expulsão dos idosos”: aumentos abusivos por idade inviabilizam a
permanência dos idosos no momento de maior necessidade de
atendimento.
f. Ausência de assistência farmacêutica

Todos esses mecanismos servem para garantir os enormes lucros das


empresas de planos de saúde, em geral sociedades por ações, vinculadas ao setor
financeiro da economia. Segundo dados de setembro de 2012, existem no Brasil
1245 operadoras de planos médico-odontológicos 93, com uma clientela de 47,6
milhões de pessoas. O faturamento global dessas operadoras foi, em 2011, de 85,5
bilhões de reais. Estima-se que em 2012 alcançou 100 bilhões de reais, mais do que
o orçamento da União para a saúde no mesmo ano (Carvalho, 2013).
Além disso, outros mecanismos garantem a transferência direta de fundo
público para as empresas de planos de saúde. Isso ocorre, primeiro, por meio do
pagamento de planos de saúde privados para o funcionalismo público.
Outro mecanismo é a chamada “dupla porta”, isto é, a reserva de vagas para
usuários de planos de saúde que passam na fila a frente dos usuários do SUS. Esse
mecanismo foi formalizado na década de 1990 em hospitais especializados e
universitários sob o pretexto de resolver déficits devido ao subfinanciamento. Mas tal

93
Essas operadoras atuam na esfera da circulação, oferecendo seguros que garantem acesso a
certos serviços hospitalares e de médicos autônomos. A extensão da cobertura depende dos
valores das apólices. Assim, parte dos lucros de hospitais, clínicas e serviços de saúde é dividido
com as operadoras em questão, como representantes do capital comercial. Algumas operadoras
também oferecem sua própria rede de serviços, associando, assim, capital comercial e produtivo.
130

prática não tem respaldo jurídico, sendo contestada inúmeras vezes, o que não
reverteu a situação. Segundo Bahia e Scheffer (2010, p.115) o Instituto do Coração
da USP atende 83 empresas de planos de saúde além dos servidores estaduais em
regime de “dupla porta”. O Hospital das Clínicas, da mesma instituição, atende
conveniados de 66 planos privados. O Hospital de São Paulo, ligado a UNIFESP,
atende a 63 planos. O Hospital de Clínicas de Porto Alegre, gerido como empresa
pública e ligado a UFRGS, considerado modelo para a criação da EBSERH, atende
a 35 empresas além do Instituto de Servidores Estaduais do Rio Grande do Sul. Nas
universidades federais de MG e do RJ o atendimento em “dupla porta” é realizado
em internações e para servidores vinculados a caixas de assistência da própria
instituição.
Apesar dos valores pagos pelos planos para os procedimentos serem
superiores à tabela do SUS, esses recursos não cobrem os gastos fixos, de custeio
e de investimentos requeridos, “ou seja, carece de substrato real a idéia de que o
atendimento diferenciado aos pacientes de planos e seguros se converte na
sobrevivência e na sustentabilidade de unidades do SUS” (BAHIA e SCHEFFER,
2010, p.117).
Os planos também, ao não arcar com procedimentos caros e complexos,
passam ao SUS seus usuários. Entre 2005 e 2010 a internação de usuários de
planos de saúde cresceu 59,7% no SUS94. Esse mecanismo tentou ser corrigido
com a lei de planos de saúde que previa o ressarcimento das ações ao SUS nesses
casos. Apesar disso, essa arrecadação é muito baixa, pois os planos entram com
recursos administrativos e ações judiciais contestando a cobrança. Segundo o TCU,
em 2009 o SUS já havia deixado de receber R$ 3,8 bilhões, declarando que a ANS é
ineficiente na cobrança e desconsidera procedimentos ambulatoriais para fins de
ressarcimento (Bahia e Scheffer, 2010, p.120). Com isso a ANS, que deveria ser
auto-sustentável como órgão regulador, arrecada muito pouco, dependendo, assim,
de recursos da União para se manter. Entre 2012 e 2013, a ANS conseguiu um
aumento de 158% na arrecadação de ressarcimentos, alcançando R$ 183,24
milhões no ano. Esses valores, no entanto, representam apenas 0,5% do
atendimento do SUS e 4% do gasto com internações (Valor Econômico, 2014). Só
em 2010, segundo reportagem do Globo, a ANS estimava um gasto anual de R$ 537

94
Em: http://oglobo.globo.com/economia/internacao-de-pacientes-de-planos-na-rede-publica-cresce-
60-8366688.Consulta em 13/05/2013.
131

milhões com internações de usuários de planos de saúde no SUS, o que demonstra


que o aumento dos ressarcimentos ainda está muito longe da realidade dos gastos.
Todo o crescimento dos subsetores privados da saúde, também não
prescinde de benefícios fiscais oferecidos pelo Estado. A renúncia fiscal da União,
com saúde, para 2013, é da ordem de 20,9 bilhões de reais, segundo dados da
Receita Federal. Em relação ao imposto de renda, 13,3 bilhões de reais (pessoas
físicas, 9,9 bilhões de reais; e pessoas jurídicas, R$3,4 bilhões de reais); para
medicamentos e produtos químicos e farmacêuticos; 4,2 bilhões de reais e para as
organizações filantrópicas; 2,6 bilhões de reais. Dois outros programas, para
oncologia e deficientes, tem uma desoneração esperada de mais de 8 milhões de
reais (Carvalho, 2013). No caso dos planos de saúde as cooperativas médicas e os
planos relacionados a entidades filantrópicas têm inúmeras isenções tributárias,
incluindo sobre a Cofins e a CSLL, fontes de financiamento da saúde pública.
No caso da assistência suplementar, esses mecanismos de transferência de
fundo público levam Bahia e Scheffer (2010) a concluir que

torna[m] equivocada a afirmação de que os planos e seguros de saúde


„aliviam‟ ou desoneram o SUS. É plausível a assertiva inversa: são os
serviços públicos que subsidiam e atuam como retaguarda para a
assistência suplementar (p.131).

Ou seja, o cenário da saúde no Brasil hoje comprova a tese da necessidade


estrutural do fundo público para a valorização do capital. Com isso os recursos
disponíveis para o financiamento da saúde pública se reduzem, sucateando os
serviços e reforçando a ideologia de que o setor privado é mais eficiente apenas por
sua capacidade de gestão de recursos. Efetivamente, o setor privado recebe mais
financiamento, o que, no caso do subsetor de serviços, é destinado a um público
muito inferior ao que precisa ser atendido exclusivamente pelo SUS, cerca de 75%
da população, com repercussões na qualidade desses serviços. Também demonstra
que o Estado tem um papel ativo na garantia de vantagens legais para determinados
grupos privados, favorecendo a concentração e a internacionalização do capital no
setor saúde brasileiro.
No próximo capítulo analisaremos essa situação a partir de dados empíricos
do orçamento público.
132

3 MECANISMOS DE PRIVATIZAÇÃO DO FUNDO PÚBLICO NO CAPITALISMO


TARDIO: ANÁLISE DOSETOR SAÚDE NO BRASIL

O objetivo desse capítulo é demonstrar, a partir dos dados levantados com a


pesquisa empírica do orçamento brasileiro, os mecanismos de apropriação do fundo
público que privatizam a política de saúde e como essa apropriação pode auxiliar a
valorização do capital neste setor, visando a elaboração de uma crítica da economia
política da saúde.
Consideramos fundamental, a princípio, deixar muito clara nossa
compreensão do que significa a privatização da política de saúde. Como já exposto
no capítulo anterior, novos modelos de privatização – não clássicos, por dentro,
“brancos”, conforme analisam diversos autores – têm sido criados e defendidos
pelos diversos governos. Para o senso comum, a privatização da política só ocorre
quando os serviços, equipamentos e medicamentos passam a ser pagos
diretamente pelos consumidores. Essa interpretação é correntemente utilizada por
governos e defensores da privatização reforçando, capciosamente, que enquanto
não há comércio e pagamento direto a política segue sendo pública, ainda que não
estatal, no espírito da contrarreforma do Estado.
A privatização dos serviços de saúde, na interpretação desta tese, ocorre
quando esses são organizados não mais pela esfera do Estado, por seus
representantes eleitos, seus funcionários concursados, por mecanismos
constitucionais e Conselhos de Saúde com representantes eleitos entre a
população, mas por grupos privados. Nesses casos, os grupos privados se
apropriam de fundo público, mesmo que sigam garantindo serviços gratuitos.
Existem diversas formas de apropriação privada de fundo público. Mediante a
análise do orçamento sumariamos as principais formas de apropriação privada de
fundo público identificadas no setor saúde que serão aprofundadas nesse capítulo:
1. Estado consumidor: o fundo público é repassado ao setor privado na
compra de medicamentos e equipamentos e na compra de serviços
privados de saúde tanto na lógica de complementariedade do SUS como
pelo pagamento de planos de saúde para servidores públicos. No caso da
133

compra de serviços complementares não importa se são instituições com


ou sem fins lucrativos.
2. Gasto tributário: o Estado repassa indiretamente recursos públicos ao
setor privado por meio de renúncia de impostos e contribuições. Inclui-se,
nesse caso, a isenção de imposto de renda concedida a pessoas físicas e
jurídicas por gastos com saúde.
3. Transferência direta de fundo público: o Estado repassa orçamento da
função saúde diretamente a instituições privadas. Essa modalidade só é
permitida para entidades com status jurídico de“sem fins lucrativos”.
4. Transferência direta de fundo público e patrimônio público: o Estado
repassa não só fundo público mas também seu patrimônio por meio de
contratos de gestão com grupos privados sem fins lucrativos, autorizados
pelo Estado para esses fins, como o caso de OSs e OSCIPs, bem como
de fundações de direito privado que passam a organizar e gerir os
serviços, inclusive seus trabalhadores. Também incluem-se nesse caso as
parcerias público-privadas, semelhantes às anteriores mas que permitem
a participação de entidades com fins lucrativos.
5. Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista: apesar de fazerem
parte do Estado são reguladas por direito privado tendo patrimônio próprio
e recebendo recursos do fundo público. Ao contrário de empresas públicas
que exploram recursos naturais, como o caso da Petrobrás, repassando
seus lucros, pelo menos em parte, ao Estado, demonstraremos que seus
recursos são eminentemente públicos e funcionam como agentes da
privatização de fundo público vendendo serviços e podendo transformar
seu capital em ações negociáveis com grupos privados.

Além do estudo do orçamento federal analisaremos os dados de três


municípios brasileiros: São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. Isso porque com a
municipalização da saúde determinada pelas leis de regulamentação do SUS e
efetivada na década de 1990, são esses entes federativos os responsáveis diretos
pela garantia dos serviços de saúde. Assim, principalmente a transferência de
134

gestão da saúde para organizações sociais e fundações de direito privado ocorre


nesse nível, e não na União95.
A escolha desses municípios se dá pela sua importância como capitais de
grandes estados, pela diversidade de modelos de gestão adotados e seu
protagonismo nesse processo.

96
Tabela 04 – Indicadores sócio econômicos municipais :
Fundações
Privadas e
Entidades 97 98
População (2014) PIB (2011) Gini (2003) IDHM (2010)
Sem Fins
Lucrativos na
Saúde (2010)
SP 11.800.000 590 R$ 386.500.000.000,00 0,45 0,805
RJ 6.450.000 220 R$ 163.600.000.000,00 0,48 0,799
Salvador 2.900.000 79 R$ 32.400.000.000,00 0,49 0,759
Fonte: IBGE. Em: www.cidades.ibge.gov.br. Consulta em 26/09/2014. Elaboração Própria.

São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador são, em sequência, os três municípios


mais populosos do Brasil. Os três têm seu PIB composto principalmente por
serviços, seguido da indústria e da agricultura. Em relação ao PIB per capita São
Paulo tem o 160º maior entre os municípios brasileiros (42,1 mil), o Rio de Janeiro o
295º (32,9 mil) e Salvador o 1967º maior (14,4 mil) segundo dados de 2013. Nota-
se, portanto, que Salvador se destaca por produzir menos riqueza e possuir piores
indicadores sociais e de distribuição de renda. No que se refere ao IDHM, São Paulo

95
Segundo estudo de Kishima (2012) modelos de gestão baseados em OSs e Oscips foram adotados
principalmente por governos estaduais e municipais sem grande impacto no governo federal, que
tem optado pela terceirização da sua força de trabalho como mecanismo de flexibilização das
contratações, sobretudo em postos menos qualificados. Pelo menos até o momento.
96
Utilizamos os dados mais recentes do IBGE nas categorias que achamos mais pertinentes para o
objetivo desse trabalho. Acreditamos que o fato de serem de anos diferentes é irrelevante, nesse
caso, para uma comparação genérica entre os municípios estudados.
97
Índice de Gini é um instrumento para medir a concentração de renda em determinado grupo. Varia
de zero a um, sendo que a concentração é maior quanto mais se aproxima de um. Apesar de sua
metodologia ser controversa entre pesquisadores (questionada por exemplo na pesquisa de
Marcelo Medeiros, professor da UNB, divulgada pelo jornal O Globo em
http://oglobo.globo.com/economia/renda-se-manteve-desigual-entre-2006-2012-aponta-novo-
estudo-14028195) é a medida mais usada pelos governos, com base nos relatórios do Plano das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) cuja mensuração é feita segundo dados da
Pesquisa por Amostragem de Domicílios (PNAD) do IBGE. Em:
http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&id=2048:catid=28&Itemid=23 .
Consulta em: 29/09/2014.
98
IDHM é o índice de desenvolvimento humano dos municípios. Elaborado pela ONU, se baseia nas
condições de longevidade, educação e renda para classificar os municípios de forma ascendente
(entre zero e um).
135

possui o 28º maior entre os 5565 municípios brasileiros, o Rio de Janeiro o 45º e
Salvador apenas o 383º, ainda que em relação ao total esteja mais próximo do topo
do que do fim do ranking.

Tabela 05 - Natureza Jurídica dos Estabelecimentos de Saúde nos Municípios


Quantidade de
% Total
Natureza da Organização Estabelecimentos
SP RJ Salvador SP RJ Salvador
Administração Direta 1.144 476 284 6,99% 8,84% 9,23%
Administração Indireta
40 6 2 0,24% 0,11% 0,06%
(autarquias)
Administração Indireta
5 0 1 0,03% 0,00% 0,03%
(empresa pública)
Administração Indireta
3 14 2 0,02% 0,26% 0,06%
(Fundação Pública)
Administração Indireta
13 5 6 0,08% 0,09% 0,19%
(Organização Social Pública)
Administração Outros (MEC,
13 56 5 0,08% 1,04% 0,16%
Exército, etc)
Cooperativa 13 3 17 0,08% 0,06% 0,55%
Economia Mista 15 6 0 0,09% 0,11% 0,00%
Empresa Privada 14.795 4.671 2.690 90,45% 86,79% 87,42%
Entidades Beneficentes sem
155 71 50 0,95% 1,32% 1,62%
fins lucrativos
Fundação privada 79 33 19 0,48% 0,61% 0,62%
Serviço Social Autônomo 77 37 1 0,47% 0,69% 0,03%
Sindicato 5 4 0 0,03% 0,07% 0,00%
Total 16.357 5.382 3.077 100,00% 100,00% 100,00%
Fonte: Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde - CNES Datasus. Consulta em 29/09/2014.
Elaboração Própria.

A tabela 05 demonstra que, em relação ao total, os estados mais ricos


apresentam maior proporção de empresas privadas de saúde e menor proporção de
entidades sem fins lucrativos e entidades de administração direta. No entanto, assim
como o caso federal, é o setor privado lucrativo significativamente o mais importante
nos três casos.
Para entendermos a situação atual de saúde nos três municípios é importante
resgatar o processo histórico de constituição do SUS, que tem inúmeras
particularidades que levaram a diferentes processos de descentralização e de
medidas privatizantes em cada um.
136

Tabela 06– Governadores e Prefeitos nos Municípios


Gestões São Paulo - SPRio de Janeiro – RJ Salvador – BA
Brizola - PDT/ Magalhães - PFL
1991/1994 Fleury - PMDB
Batista – PDT (Dem)
1995/1998 Covas - PSDB Allencar – PSDB Souto - PFL (Dem)
Covas - Garotinho - PDT/ Borges - PFL (Dem)/
1999/2002
PSDB/Alckmin – PSDB Silva – PT Alencar – PL
Governadores Alckmin - PSDB/
2003/2006 R. Garotinho – PSB Souto - PFL (Dem)
Lembo - Dem
Serra -
2007/2010 PSDB/Goldman – Cabral – PMDB Wagner –PT
PSDB
Cabral - PMDB/
2011/2014 Alckmin - PSDB Wagner –PT
Pezão – PMDB
1993/1996 Maluf - PDS Maia – PMDB Da Mata – PSDB
Imbassahy - PFL
1997/2000 Pitta – PTB Conde - PFL (Dem)
(Dem)
Imbassahy - PFL
Prefeitos 2001/2004 Suplicy – PT Maia – PTB
(Dem)
Serra - PSDB/Kassab -
2005/2008 Maia – Dem Carneiro – PMDB
Dem/PSD
2009/2012 Kassab - PSD Paes – PMDB Carneiro – PMDB
Fonte: Wickipédia. Elaboração Própria

O estado de São Paulo foi um dos primeiros entes da federação a propor a


utilização de organizações sociais para gerir a área da saúde, agricultura e cultura
ainda em 1996/1997, antes mesmo da legislação federal sobre o tema. Na ocasião,
já sob o processo de descentralização da saúde o estado incorporou 10 hospitais
federais geridos na modalidade de contratos de gestão com OSs (Ibanez et al,
2001), o que não surpreende na medida em que seu governador na época era um
importante quadro do PSDB – como pode ser observado na tabela 06, partido que
elaborou inicialmente o processo de contrarreforma do Estado no Brasil.
No entanto, no município de São Paulo nas gestões de Maluf e Pitta, políticos
aliados, a privatização tomou outros caminhos. O município desde 1981, previa a
gestão privada de saúde e construiu um convênio em 1984 com o Banco Mundial
para apoio a essa iniciativa (Ibanez et al, 2001). Herdeiro dessa proposta, o governo
Maluf elabora o Plano de Atendimento à Saúde do Município de SP (PAS), um
sistema de administração privada da saúde por meio de cooperativas. Essas
cooperativas poderiam contratar força de trabalho por meio de outras instituições
num processo que poderíamos caracterizar como uma espécie de “quarteirização”
137

das contratações, além de gerir as unidades municipais. A Secretaria Municipal de


Saúde de SP passa a cumprir o papel de mera repassadora de recursos para essas
cooperativas. Como o PAS estava totalmente desvinculado dos princípios do SUS, o
governo federal pára de fazer repasses aos prestadores do SUS criando, na prática,
dois sistemas paralelos: o SUS e o sistema municipal gerido por cooperativas. A
falta de controle nos repasses gerou desvio de dinheiro, investigações de corrupção
e processos judiciais relacionados ao PAS (Kishima, 2012).
A indignação da população com as denúncias de corrupção fez com que as
cooperativas perdessem espaço ainda no governo Pitta, que as transforma, em
1999, em módulos para gerir hospitais e contratar força de trabalho de forma mais
semelhante à das OSs, e muda o nome do PAS para Sistema Integrado Municipal
de Saúde (SIMS).
Mas, apenas com a eleição do PT na prefeitura em 2001 é que a lógica do
PAS será extinta e a saúde definitivamente municipalizada e integrada ao SUS
tardiamente99. Em função dessa trajetória, que gerou muitos momentos de aguda
crise na saúde paulistana, o município de SP atrasa sua adesão às OSs, que só
terão uma regulamentação na gestão do PSDB em 2006, pela lei 1431/06,
específica para a área de saúde, em linhas gerais semelhante à legislação federal,
mas com a particularidade do estado não ter assento nos Conselhos que
administram as OSs.
A adesão do município do Rio de Janeiro à gestão da saúde por OSs também
é tardia em relação à legislação federal. Apenas em 2009, na gestão de Paes, do
PMDB, a lei 5026/09 é aprovada, em caráter de urgência, após apenas 4 meses de
governo, o que demonstra a centralidade desse modelo para essa gestão, apesar da
rejeição da proposta na Conferência Municipal de Saúde do RJ. Os motivos desse
atraso, segundo hipótese de Cardoso (2012) que corroboramos, são as sucessivas
crises por que passa a saúde do município nas gestões de Maia. A mais importante
delas culmina com a perda da gestão plena da saúde, um retrocesso para o
processo de municipalização, que ocorreu em 2005 e só se reverteu em 2007 100. Na
ocasião, o governo federal interviu nos 28 hospitais que tinham sido municipalizados

99
Em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/2001-caos-sao_paulo-crise_pas.shtml e
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff101020.htm Consulta em: 08/10/2014.
100
Em: http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2005-10-28/comissao-que-acompanha-crise-
na-saude-no-rio-diz-que-unidades-continuam-com-problemas.
138

em 2000, os quais a prefeitura alegava não ter recursos para manter. Por ter sido
capital colonial, imperial e republicana entre 1763 e 1960, a cidade possuía várias
unidades federais (Cardoso, 2012) que, segundo a prefeitura, sobrecarregaram o
orçamento municipal quando passados para sua administração. É nesse sentido que
Maia, prefeito na ocasião, não se opõem a intervenção101. Mesmo com a retomada
da gestão plena, alguns hospitais voltaram a ser geridos pelo governo federal.
Além das crises, é importante ressaltar também, que, mesmo sem recorrer às
OSs, desde as gestões de Maia muitas unidades já vinham sendo geridas por ONGs
como as unidades do Programa Saúde da Família (PSF), demonstrando que, assim
como São Paulo, houve experiências próprias de privatização da gestão, mesmo
que não integradas ao projeto de contrarreforma proveniente do governo federal.
Outro traço comum aos dois municípios foi a resistência em incorporar os princípios
do SUS na organização do seu sistema de saúde o que leva São Paulo a só
descentralizar suas unidades e adquirir sua gestão plena em 2002 e o Rio de
Janeiro a passar por um processo de intervenção e “devolver” hospitais para a
gestão federal em 2007.
A adesão do município de Salvador é ainda mais tardia: só em 2014, pela lei
8631 o município regulamenta a atuação das OSs não só na área da saúde mas
para ensino, pesquisa, desenvolvimento tecnológico e institucional, proteção ao
meio ambiente, ação social e cultura, sendo que, ao contrário da lei paulistana, o
governo participa do Conselho Deliberativo das OSs. Assim como nos outros
municípios isso não significa que não havia privatização prévia na gestão da força
de trabalho, que no caso soteropolitano se dava por meio deempresas que
terceirizavam a contratação de pessoal (Soares e Paim, 2011). O Tribunal de Contas
do Município (TCM) questionou sistematicamente essa situação que foi uma das
razões para a rejeição das contas da Prefeitura de 2009 a 2012. A terceirização em
Salvador equivalia em 2011 a 40,79% do gasto com pessoal efetivo. Como o

101
"Acho que é uma decisão positiva, que o governo federal volta a controlar seus próprios hospitais.
Esses sim, produziram a crise na Saúde do Rio de Janeiro. Esses sim produziram a crise que a
gente vive , esses sim contaminaram uma rede da prefeitura que funcionava muito bem.
Independentemente das declarações políticas que um ou outro possa fazer, eu acho que foi uma
medida correta, bem-vinda, acho que a saúde pública na Região Metropolitana do Rio de Janeiro
vai ser beneficiada com essa medida. E a questão do Souza Aguiar e do Miguel Couto é um
pouquinho de paciência porque nos devemos entender que de outra maneira seria o governo
federal declarando que a calamidade pública era nele mesmo", acredita César Maia. Em:
http://jornalnacional.globo.com/Telejornais/JN/0,,MUL559260-10406,00-
NOVAS+MEDIDAS+NA+SAUDE+DO+RIO.html. Consulta em: 08/10/2014.
139

governo nada fez para reverter essa situação o TCM ofereceu denúncia ao
Ministério Público Estadual em 2011 que levou a um concurso público para
servidores efetivos com 3647 vagas para a área da saúde nesse mesmo ano 102.
A organização da saúde na Bahia possui, no entanto, particularidades que
podem explicar essa adesão tardia ao modelo das OSs. Das 20 maiores capitais do
país Salvador é a única que não possui hospital municipal (Carrera, 2012), como
demonstramos na tabela 07.

Tabela 07 – Leitos por 1000 habitantes por nível federativo


Leitos por 1000 habitantes
SP RJ Salvador
Existentes 0 0,92 0,2
Federais SUS 0 0,62 0,19
% SUS do total 0 67% 94,50%
existentes 0,85 0,61 1,14
Estaduais SUS 0,74 0,51 1,11
% SUS do total 86% 84% 96%
Existentes 0,32 0,76 0,01
Municipais SUS 0,29 0,68 0,01
%SUS do total 89% 90% 100%
Existentes 1,17 2,29 1,35
Total Público SUS 1,03 1,81 1,31
%SUS do total 87% 79,50% 96%
Existentes 1,89 2,45 2,14
Privados SUS 0,5 0,24 0,96
% SUS do total 26,50% 10% 44%
Existentes 3,07 4,74 3,49
Total SUS 1,53 2,06 2,27
%SUS do total 50% 43,50% 64%
Fonte: CNES. Elaboração Própria.

Nota-se como na Bahia o processo de descentralização da saúde não chegou


a municipalizá-la plenamente, mas, manteve o estado como ente federativo mais
importante para organização dos serviços hospitalares. Isso pode ter como
explicação, por hipótese, o fato da Bahia ter sido o primeiro estado a assinar
convênio com o SUDS nos anos 1980, e criado também de forma inédita, distritos

102
Em: http://www.mpba.mp.br/atuacao/saude/informes.asp e
http://www.bocaonews.com.br/noticias/principal/geral/20684,justica-mantem-concurso-da-secretaria-
municipal-de-saude.html. Consulta em: 11/12/2014.
140

sanitários 103, acima das divisões municipais, para organizar seu sistema de saúde
(Teixeira e al, 1993). Isso levou a um papel historicamente centrado no estado e não
nos municípios, o que não foi revertido pelo estímulo federal à municipalização na
década de 1990. Até hoje o estado mantém uma estrutura de Diretorias Regionais
de Saúde (Dires), para organizar a oferta de serviços 104.Mesmo assim, o município
de Salvador possui gestão plena do sistema de saúde, recebendo as transferências
federais para a atenção básica e para a média e alta complexidade.
No caso do estado da Bahia, a lei de regulamentação das OSs é a 8647 de
2003. As administrações petistas a partir de 2007, porém, levaram o estado a
priorizar outros modelos de gestão como as fundações estatais de direito privado,
regulamentadas em dezembro de 2007 e as parcerias público privadas, cuja
implementação, num hospital estadual no município de Salvador, ficou marcada
como a primeira experiência de gestão da totalidade dos serviços por meio dessa
modalidade na área da saúde. A única fundação foi criada pelo estado em 2009: a
Fundação Estatal Saúde da Família (FESF) que atua em 69 municípios, não
incluindo a capital Salvador, por meio de contratos de gestão para diversos serviços
não só da atenção básica105.Isso não significa que o estado tenha prescindido das
OSs, que têm como especificidade no caso baiano a contratação por meio de
licitação.
Assim, apresentado o objeto de nossa análise passaremos aos dados
orçamentários. Separamos os múltiplos mecanismos de privatização do fundo
público segundo o sumário apresentado no início desse capítulo. Utilizamosalguns
bancos de dados: a plataforma de acompanhamento da execução orçamentária dos
gastos federais do Senado – Siga Brasil, o Sistema de Informações sobre
Orçamento Público em Saúde (Siops), do Ministério da Saúde, melhor fonte
encontrada para o acompanhamento da execução orçamentária dos municípios, os
relatórios de Tribunais de Contas Municipais e a plataforma do governo federal

103
Distritos Sanitários são unidades de planejamento e gestão local dos serviços de saúde. Em
Salvador o projeto original dividia a cidade em três distritos (Teixeira et al, 2003).
104
Salvador também segue organizando seu sistema de saúde por 12 distritos sanitários que dividem
a cidade. Em:
http://www.saude.salvador.ba.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=234&Itemid=6
0 Consulta em: 18/10/2014.
105
Em: http://www.fesfsus.ba.gov.br/a-fundacao/legislacao/. Consulta em: 18/10/2014. Para
aprofundar o debate sobre a FESF ver Cardoso e Campos, 2013.
141

Transparência Brasil que permite observar o repasse do governo para o setor


privado na compra de produtos e serviços. Em alguns casos, para obter maiores
detalhamentos sobre o objetivo dos gastos utilizamos as Leis Orgânicas Anuais.
Nesse caso só é possível ter dados sobre a previsão orçamentária. Além disso,
utilizamos dados secundários de pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA) e do IBGE, da imprensa e de outros trabalhos acadêmicos. Ainda
assim, nota-se que há uma falta de organização comum dos dados orçamentários e
de divulgação sistemática dos documentos, no caso dos municípios, o que dificultou
comparações entre eles além de impedir, em alguns casos, que obtivéssemos as
séries históricas completas entre 2008 e 2012. Explicitaremos as dificuldades
encontradas em cada caso, sempre que necessário.
Iniciaremos apresentando as características gerais do orçamento da União e
dos municípios pesquisados passando então para o estudo sobre a apropriação
privada desses orçamentos.

4.1 O orçamento federal e dos municípios de 2008 à 2012

Nessa sessão retomamos as linhas gerais da política de saúde no período


entre 2008 e 2012, para então analisar os dados da privatização de fundo público,
segundo a categorização já exposta. Para tanto, analisaremos os Planos Plurianuais
da União e os relatórios dos tribunais de contas da União e dos municípios para o
período estudado.
Planos Plurianuais (PPA) são peças orçamentárias criadas pela Constituição
de 1988. Seu objetivo é sintetizar o planejamento da administração pública e servir
de orientação para os demais planos e programas do governo, bem como para a
elaboração das leis orçamentárias anuais. Sua vigência é de quatro anos, iniciando
no segundo ano de governo, em todos os níveis da federação (Giacomoni, 2012).
Para cobrir o período da pesquisa em curso, analisaremos, o PPA do
segundo governo Lula (2008/2011) e o PPA do primeiro governo Roussef
(2012/2015) dando ênfase ao conteúdo geral expresso nas peças, e suas diretrizes
específicas para a função saúde.
142

a) Desenvolvimento com inclusão social e educação de qualidade: o PPA


2008/2011
O PPA referente ao segundo governo Lula apresenta como seus desafios
centrais acelerar o crescimento econômico, promover a inclusão social e reduzir as
desigualdades regionais. Para tanto, suas ações são apresentadas pelos eixos:
crescimento econômico, agenda social e educação de qualidade. Dentro dessa
lógica têm papel de destaque o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) e o
Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). No eixo referente a agenda social, o
governo destaca as ações voltadas para os “setores mais vulneráveis da
população”, em especial as ações de transferência de renda com condicionalidades,
reafirmando, assim, a lógica de focalização e financeirização das políticas sociais
em curso. Cita ainda ações no campo dos direitos humanos, na cidadania
(apresentada de forma genérica), cultura e segurança pública.
A princípio, portanto, a Seguridade Social tem pouco destaque. A primeira e
única menção ao SUS no eixo da agenda social refere-se ao reforço no atendimento
de reabilitação e concessão de órteses e próteses para deficientes físicos. Entre as
metas para saúde estão a ampliação de equipes de saúde da família e saúde bucal.
A previsão de gastos com a função saúde no período é de 217,93 bilhões, o
equivalente a 6,18% do orçamento total, menor apenas que as funções Previdência
Social (33,1%), Comércio e Serviços (19,48%) e Energia (8,18%). Não são
mencionados no PPA os gastos com juros e amortizações da dívida pública.
Entre os 10 objetivos do plano, a Seguridade Social aparece como o décimo
destacando “a promoção do acesso com qualidade, sob a perspectiva da
universalidade e da equidade, assegurando-se seu caráter democrático e a
descentralização”. Entre os demais objetivos, a saúde aparece inúmeras vezes mas
sempre de forma genérica e associada a grupos focalizados da população: como
condicionalidade para quem recebe Bolsa Família e nas políticas para mulheres,
deficientes, idosos, quilombolas e homossexuais. No objetivo específico da
Seguridade Social, o PPA destaca os avanços trazidos pelo SUS, em particular a
Estratégia Saúde da Família (ESF), considerada uma substituição do modelo
hospitalocêntrico.
O desafio central apontado é a continuidade na ampliação do acesso com
qualidade e integralidade. Para isso destaca como obstáculo a desigualdade na
distribuição regional de recursos. Outro programa mencionado pelo PPA é o
143

Programa Farmácia Popular do Brasil que, junto com o credenciamento de


farmácias privadas, teria ampliado o acesso a medicamentos essenciais básicos.
Por fim, o documento destaca a realidade epidemiológica brasileira enfatizando a
necessidade de reforço da atenção básica e a necessidade de ações intersetoriais
que reduzam mortes por violência e acidentes de trânsito.
Em linhas gerais, o PPA 2008/2011 não altera estruturalmente o modelo
econômico de viés neoliberal do primeiro governo Lula, mantém a retórica do
crescimento econômico com desenvolvimento social e a necessidade da
estabilidade fiscal. Contraditoriamente, são esses pilares da política econômica que
interditam os avanços na área social, que se mantém sob a lógica focalizada e
seletiva (Behring e al, 2012). Não é diferente na área da saúde, na qual destaca-se a
ênfase na atenção básica e na separação das ações em grupos focalizados da
população. Todas essas críticas se estendem ao PPA 2013/2015, do primeiro
governo Roussef, terceiro governo do PT, como veremos a seguir.

b) Plano Mais Brasil: o PPA 2012/2015


O Plano Mais Brasil reivindica, já na sua apresentação, a trajetória do governo
anterior, ou seja, a tese do crescimento econômico associado a redução de
desigualdades sociais e regionais. Para tanto, aponta a necessidade de um Estado
“indutor e promotor de mudanças” que garante a “modernização” necessária ao país.
A importância da ação do Estado é reiterada inúmeras vezes no documento.
Sua centralidade seria o contraponto ao neoliberalismo em crise. No entanto, fica
claro que não se trata de uma ruptura mas uma adequação, aos moldes do social-
liberalismo, na sua face novo-desenvolvimentista, cuja crítica já fizemos em
capítulos anteriores. No mesmo patamar, como parceiros, são colocados o governo,
as empresas e a população brasileira. Esse ecletismo (mal resolvido) fica evidente
na afirmação de que

As forças de mercado impulsionam e dinamizam o desenvolvimento, mas o


papel orientador da “mão visível” do Estado é fundamental, apontando o
futuro desejado e a conjugação dos diversos meios e recursos de governo,
setor privado e sociedade (Brasil, 2012, p.17, grifo nosso).

São considerados os valores centrais do governo, nessa ordem: soberania,


democracia, justiça social, sustentabilidade, diversidade cultural e identidade
nacional, participação social e excelência na gestão. Os desafios apontados para a
144

conjuntura são: a compatibilização das taxas de juros e câmbio com os objetivos de


crescimento e estabilidade macroeconômica, ampliação das fontes de financiamento
de longo prazo, aperfeiçoamento do sistema tributário, redução das desigualdades,
erradicação da pobreza extrema e dinamização do mercado interno, elevação do
investimento, ampliação da oferta e eficiência da rede de infraestrutura,
aproveitamento das oportunidades do pré-sal e fomento à inovação. Nota-se que a
estabilidade da economia segue sendo o eixo estrutural da política econômica desde
o governo Cardoso, mas, principalmente nesse PPA, busca-se a aparência de
inflexões ao modelo neoliberal. O documento ainda destaca como desafio a
necessidade de ampliação do investimento privado ressaltando que até o momento
o BNDES, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal são fundamentais como
fontes de crédito para os investimentos no país, o que reafirma a privatização dos
recursos públicos.
No campo da política social, a focalização na extrema pobreza segue como
centro. As principais ações para alcançar esse objetivo continuam sendo as
transferências de renda, associadas à política de valorização do salário mínimo, à
previdência social, à ampliação da qualificação e ao aumento dos postos de
trabalho. Nenhuma política de saúde é citada como parte da redução de
desigualdades.
As políticas de saúde vão aparecer no plano como um dos 11 macrodesafios.
São eles em ordem: projeto nacional de desenvolvimento; erradicação da pobreza
extrema; ciência, tecnologia e inovação; conhecimento, educação e cultura; saúde,
previdência e assistência social; cidadania; infraestrutura; democracia e participação
social; integridade e soberania nacional; segurança pública; e gestão pública. No
desafio correspondente a Seguridade Social pouco ou nada se acrescenta ao plano
anterior: o desafio é garantir o acesso universal às três políticas, assegurando
equidade e qualidade de vida. No campo específico da saúde destacam-se a
ampliação das portas de entrada com investimento nas Unidades de Pronto
Atendimento (UPAS), Unidades Básicas de Saúde (UBS), a expansão da saúde da
família e dos transplantes de órgãos. Destaca-se, ainda, a política de combate ao
crack, a Rede Cegonha, para atendimento a gestantes e crianças, a expansão da
Farmácia Popular e a construção do Plano Nacional para o Controle de Doenças
Crônicas Não-Transmissíveis. O documento cita também os Contratos Organizativos
145

de Ação Pública da Saúde (COAPS)106 como uma política de fortalecimento da


regionalização.
A saúde volta a ser mencionada nas políticas para grupos focais específicos –
mulheres, crianças, negros, indígenas, homossexuais –, na construção de
equipamentos públicos de infraestrutura na segunda fase do PAC, nas políticas de
segurança pública no que se refere ao combate ao uso de drogas, em particular o
crack, nas políticas de inovação por meio do complexo produtivo-industrial da saúde.
Apesar de toda a retórica, o que podemos observar na prática é que apesar
do pequeno crescimento real de recursos para a saúde de 28% entre 2008 e 2012,
não há transformaçãona situação histórica de financiamento da saúde após a
Constituição de 1988 e os governos de Cardoso. Mesmo autores simpáticos ao
governo de Lula e Roussef como Ana Maria Costa (2013), presidenta do Cebes,
constatam que não houve qualquer reversão no padrão de financiamento da saúde
nesse período, inviabilizando na prática a consolidação de um sistema universal
como o SUS. O mesmo balanço faz Carvalho (2013). Segundo os dados do autor,
no período dos governos do PT se reduziu mais ainda a aplicação da receita
corrente bruta da União na função saúde que era de 11,72% em 1995 e passou para
7,3% em 2011. A participação de recursos federais na saúde também se reduziu de
56% do total em 2001 para 47% em 2011, assim como também se reduziu o gasto
federal anual per capita. Segundo Carvalho (2013):

Não existe milagre na saúde. A proposta dos governos progressistas dos


últimos anos nada mais é que reforçar a proposta neoliberal, usando
exatamente o discurso contrário, ao invés de garantir cada vez mais
recursos e eficiência ao setor público. Trabalha-se em sentido contrário. A
meta é diminuir a universalidade da clientela. Levar as pessoas a cada vez
mais se utilizarem de planos privados de saúde pagando sobre o que já
pagam. Enfiando a mão no bolso para suprir o que lhes falta e que já está
garantido por impostos e contribuições.

Os relatórios do Tribunal de Contas da União também apresentam dados que


corroboram com o diagnóstico de que foram parcos os avanços no financiamento da
saúde nos últimos anos. Em primeiro lugar apontam que, ainda que o governo venha

106
“O contrato organizativo da ação pública, como um instrumento da gestão compartilhada, tem a
função de definir entre os entes federativos as suas responsabilidades no SUS, permitindo, a partir
de uma região de saúde, uma organização dotada de unicidade conceitual, com diretrizes, metas e
indicadores, todos claramente explicitados e que devem ser cumpridos dentro de prazos
estabelecidos. Tudo isso pactuado com clareza e dentro das práticas federativas que devem ser
adotadas num Estado Federativo”. Em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/contrato_organizativo_acao_publica_saude.pdf. Consulta
em: 25/02/2015.
146

formalmente cumprindo os mínimos constitucionais definidos pela EC 29, na prática


o cancelamento de restos a pagar 107pode levar a déficits orçamentários na função.
Isso ocorreu, por exemplo em 2008. Havia, então, um excedente de 118 milhões de
reais em relação ao valor mínimo constitucional, no entanto, R$ 476 milhões que
tinham se tornado restos a pagar foram cancelados, o que levou, na prática, a uma
aplicação de R$ 358 milhões a menos que o mínimo naquele ano. A lei
complementar 141/2012 tentou reverter essa possibilidade obrigando o governo a
aplicar em ações de saúde valor equivalente aos restos a pagar cancelados no ano
de exercício vigente, sem prejuízo da aplicação dos mínimos constitucionais naquele
exercício. No entanto, até 2012, o TCU afirma que seguem divergências sobre esse
tema, incluindo polêmicas sobre o que pode ser considerada ação de saúde.
O TCU demonstra, ainda, que apesar do crescimento nominal do gasto em
saúde ser considerado significativo pelo governo, ele é bastante irrisório em relação
ao PIB. Em 2008 os gastos em saúde decorrentes do orçamento federal alcançavam
apenas 1,47% do PIB, menos do que os 1,54% obtidos em 2006. Em 2012 esse
percentual subiu para 1,63% do PIB, um aumento de míseros 0,16% na participação
da função saúde.

Gráfico 02- Gastos Federais na Função Saúde 2008 - 2012

Gastos Federais na Função Saúde


R$120.000.000.000,00

R$100.000.000.000,00

R$80.000.000.000,00

R$60.000.000.000,00

R$40.000.000.000,00

R$20.000.000.000,00

R$-
2008 2009 2010 2011 2012

Dotação Inicial Empenhado Pago

Fonte: Siga Brasil. Elaboração Própria. Deflacionado pelo IGP-DI.

107
Restos a pagar são “resíduos passivos do exercício” isto é, despesas empenhadas e não pagas
até dia 31 de dezembro. A inscrição de despesas em restos a pagar é válida até 31 de dezembro do
ano subsequente, quando ocorre cancelamento de compromissos não pagos (Giacomoni, 2012).
147

No caso dos municípios, o gráfico 03 demonstra que Rio de Janeiro e São


Paulo tiveram aumentos reais no orçamento da saúde nos últimos anos. No Rio de
Janeiro esse aumento ocorre exatamente após a aprovação da lei de
regulamentação das OSs no município em 2009. Salvador, no entanto, não tem
nenhum aumento real nos gastos executados na função saúde nesse período.

Gráfico 03 - Gastos municipais executados na função saúde

Gastos Municipais na Função Saúde - Executado


R$8.000.000.000,00
R$7.000.000.000,00
R$6.000.000.000,00
R$5.000.000.000,00
R$4.000.000.000,00
R$3.000.000.000,00
R$2.000.000.000,00
R$1.000.000.000,00
R$-
2008 2009 2010 2011 2012

São Paulo Rio de Janeiro Salvador

Fonte: Siops. Elaboração Própria. Deflacionado pelo IGP-DI

Em Salvador o mínimo constitucional de 15% do orçamento aplicado na


função saúde só tem sido alcançado com a inclusão dos restos a pagar do ano
anterior, o que foi rejeitado pelo TCM em 2009 na medida em que sequer haviam
recursos previstos para pagamento dos restos a pagar. Pouco menos da metade
dos recursos da função saúde são oriundos das receitas próprias do município
enquanto o restante é oriundo de transferência do estado e da União.
Essa irregularidade somada a dispensas ilegais de licitações, terceirização
inconstitucional da força de trabalho, realização de despesas com contratos
expirados, não recolhimento da contribuição ao INSS de prestadores de serviço,
indícios de superfaturamento, injustificados e exagerados gastos com publicidade,
inexistência de conta única para os fundos de saúde e educação, não apresentação
de parecer do Conselho de Saúde, desconsiderando os mecanismos legais de
controle social, levaram o TCM a rejeitar as contas do município de Salvador de
2009 a 2012 com aplicação de multas e exigência de ressarcimentos ao Prefeito.
148

Em São Pauloem média 75% do orçamento da saúde vem de receitas do


município e apenas 25% é oriundo de transferências. Assim como o Rio de Janeiro,
o município de São Paulo vem aplicando acima do mínimo constitucional de 15% na
função saúde, alcançando em 2009 19,8% do seu orçamento nessa função.
No município do Rio de Janeiro pouco mais da metade dos recursos da
função saúde são provenientes do tesouro municipal enquanto o restante é oriundo
de transferências federais e estaduais. No total, nesse município, 17,4% do
orçamento em 2008, 17,6% em 2010 e 18,6% em 2012 foram aplicados na função
saúde, um pouco acima do mínimo de 15% do orçamento municipal preconizado
pela regulamentação da EC 29.
É possível levantarmos como hipótese preliminar que a privatização da
gestão da saúde nos municípios por meio de OSs não significou redução mas, ao
contrário, foi acompanhada de um incremento no orçamento da saúde,
desmistificando a ideia de que uma de suas principais vantagens seria a
racionalização e a economia de recursos.
Nos PPAs municipais e nos Planos de Saúde 108 são poucas as menções às
organizações sociais ou a contratos de gestão. Em geral, o debate sobre a gestão
aparece referido como “modernização”, sem maior detalhamento. Apenas o Plano
Municipal de Saúde de São Paulo cita a necessidade de melhorar os mecanismos
de monitoramento e fiscalização dos contratos de gestão mas não faz nenhum
balanço ou análise da eficiência desse modelo na gestão das unidades de saúde.
Em linhas gerais, as ações municipais se concentram na expansão e
fortalecimento da atenção básica por meio da Estratégia Saúde da Família, onde
estão aplicados a maior parte dos recursos, e seguem a lógica e as prioridades da
esfera federal.
Passaremos nas próximas sessões a analisar os mecanismos pelos quais o
orçamento da saúde é apropriado pelo setor privado. Assim, pretendemos
demonstrar que não basta a ampliação do financiamento da saúde se este não é
gerido e controlado pelo Estado por meio de seus representantes eleitos e pela
sociedade organizada, única forma de garantir que a política esteja voltada a
interesses públicos e não a serviço da acumulação de capital de pequenos grupos.

108
Nem todos os documentos entre 2008 e 2012 estão disponibilizados nos sites das Prefeituras e
Secretarias de Saúde. Foram consultados: os PPAs 2006 – 2009 e 2010 – 2013 do Rio de Janeiro,
o Plano Municipal de Saúde 2010 – 2013 de São Paulo e a PPA e o Plano Municipal de Saúde 2010
– 2013 de Salvador.
149

4.2 O Estado como consumidor de medicamentos, equipamentos e serviços


de saúde

A Constituição de 1988, no artigo 199, determina que é livre a participação da


iniciativa privada na política de saúde. Essa foi uma das principais polêmicas na
construção do SUS dividindo os militantes da Reforma Sanitária entre os que
defendiam a estatização completa e imediata do sistema e os que acreditavam que
esse processo deveria ser progressivo. A participação privada foi não somente
garantida como passou a fazer parte do SUS complementarmente, ou seja, por meio
da prestação de serviços pagos pelo fundo público acertados por contratos ou
convênios, com preferência às entidades sem fins lucrativos.
Essa situação, longe de significar um processo paulatino de estatização do
sistema, fortaleceu o setor de serviços privados que cresceu em 81,03% no número
de estabelecimentos entre 1999 e 2009 enquanto o setor público só cresceu 57,89%
aumentando a diferença entre estabelecimentos públicos e privados de 5,1% para
20,5% no período (IBGE, 2009; Carvalho et al, 2012).
A histórica presença significativa do setor privado na saúde brasileira fez com
que a lógica da complementariedade tenha sido implementada sob sua pressão. O
Estado tornou-se o principal consumidor de serviços privados de saúde acarretando
numa interdependência entre o Estado e o setor privado, principalmente nos
serviços hospitalares. Segundo dados de 2009 do IBGE, 66,5% do total de
internações ocorrem em estabelecimentos privados e destes 74,5% são custeados
pelo SUS. No total, 78,66% dos leitos privados e 40% dos serviços de diagnósticos
privados foram utilizados pelo SUS no período da pesquisa (IBGE, 2009; Carvalho et
al, 2012).
Matos e Pompeu (2003) caracterizam essa situação como um monopsônio,
isto é, uma situação de mercado onde só existe um comprador para muitos
ofertantes. Para os autores essa situação, em tese, deveria gerar vantagem para o
comprador, o Estado, que teria como impor suas condições de compra. No entanto,
a compra de serviços de saúde no Brasil tem ocorrido de maneira acrítica, não
planejada, não avaliada e distorcida, regida pela lógica e pelos interesses dos
ofertantes e não da população. Ao invés de primeiro esgotar a capacidade pública
para depois contratar serviços privados muitas vezes ocorre o contrário, o que gera
150

situações de sobreoferta de leitos em determinadas regiões para determinadas


especialidades (Matos e Pompeu, 2003).
Conforme discutido na sessão anterior, a política de descentralização do SUS
levou o pagamento dos serviços a ser realizado por estados e municípios (no caso
de municípios que tem gestão plena do sistema) com recursos transferidos pela
União.
Esse pagamento tem os valores fixados por serviço pela tabela SUS. Existem
muitas polêmicas e embates entre o governo e o setor privado sobre os valores
fixados pela tabela. O setor privado alega que os valores pagos pelo SUS são
insuficientes para cobrir os procedimentos. Mas isso depende do tipo de
procedimento realizado. Segundo Couttolenc (2010), para atendimentos de baixa
complexidade a tabela cobre cerca de 25% dos custos, para a média complexidade
esse percentual chega a 30% enquanto para a alta complexidade a remuneração é
25% acima do custo médio. Isso explica porque o setor privado privilegia a relação
com o SUS no âmbito hospitalar. Em Porto Alegre e Curitiba estão sendo
construídos hospitais privados com o fim específico de atender pacientes do SUS
que exigem intervenções de alta complexidade. Isso porque o SUS paga para esses
procedimentos mais que os planos de saúde e em menos tempo. Segundo um de
seus gestores: “é difícil sobreviver atendendo o SUS em internações de baixa e
média complexidade. Mas, em alta complexidade, o SUS é um excepcional pagador”
(Valor Econômico, 2014).
Nas tabelas abaixo podemos observar a relação entre a participação pública e
privada nas internações hospitalares e no atendimento ambulatorial.
151

Tabela 08 – Autorizações de Internação Hospitalar (AIH/SUS) – 2012


Com fins % %
Federal Estadual Municipal Filantrópico Sindicato
lucrativos Público Privado
São Paulo -
0 726.813 463.871 44.621 1.229.845 0 48% 52%
Estado
São Paulo -
0 0 160.853 0 88.751 0 64% 36%
Município
Rio de
Janeiro - 92.028 63.546 252.943 128.332 151.729 0 59% 41%
Estado
Rio de
Janeiro - 86.775 40.154 114.110 10.422 13.651 0 91% 9%
Município
Bahia 18.845 209.412 443.291 111.969 253.806 849 65% 35%
Salvador 12.550 0 0 6.589 46.816 0 19% 81% Fonte:
Datasus. Elaboração Própria.

Nas internações hospitalares nota-se a importante participação do setor


privado que realiza a maioria das internações no Estado de São Paulo e no
município de Salvador onde essa maioria é muito significativa. A menor participação
privada se dá no município do Rio de Janeiro onde, como já apontamos, há uma
grande rede pública decorrente do passado da cidade como capital federal. Em
Salvador, a ausência de hospitais municipais e estaduais faz com que a
complementariedade se dê às avessas, ou seja, o setor privado é o elemento
central, e não complementar, no atendimento hospitalar.
Dentro do setor privado são as unidades sem fins lucrativos, as chamadas
filantrópicas, as que mais vendem serviços ao SUS, conforme preconizado na
legislação. É importante recordarmos que, nesse caso, a prestação de serviços ao
SUS é contrapartida para a isenção fiscal, não sendo, portanto, a remuneração por
serviço sua única apropriação de fundo público, a qual ainda se somam repasses
diretos do orçamento por meio da modalidade de aplicação 50 109.

109
Modalidade de aplicação 50 são despesas orçamentárias realizadas mediante transferências a
instituições privadas sem fins lucrativos. As modalidades de aplicação podem ser ainda
transferências para outros níveis de governo ou aplicações diretas pela unidade orçamentária
(Giacomoni, 2012).
152

Tabela 09 - Sistema de Informações Ambulatoriais(SIA/SUS) - 2012

Com fins % %
Federal Estadual Municipal Filantrópico Sindicato
lucrativos Público Privado

São Paulo -
3.148.047 378.797.593 490.339.480 22.301.792 162.603.736 10.843 83% 17%
Estado
São Paulo -
0 61.887 110.769.095 2.814.516 18.730.557 0 84% 16%
Município
Rio de
Janeiro - 17.392.430 46.668.729 157.391.236 27.506.674 10.687.081 146.587 85% 15%
Estado
Rio de
Janeiro - 3.916.817 3.050.544 37.818.768 1.282.088 2.467.471 0 92% 8%
Município
Bahia 34.744.523 70.530.226 115.302.261 16.463.955 12.408.301 57.430 88% 12%
Salvador 1.858.802 0 9.739.574 6.186.349 5.035.672 0 51% 49%
Fonte: Datasus. Elaboração Própria.

Nos atendimentos ambulatoriais, nos quais os repasses do SUS são


menores, como já mencionado, a tabela demonstra que a participação privada é
bem menos significativa, não alcançando nem 20% do total na maioria dos casos
estudados. Apenas Salvador segue sendo amplamente dependente do setor privado
que é responsável pela metade dos atendimentos ambulatoriais do município. Nota-
se, ainda, que no Estado do Rio de Janeiro e da Bahia as unidades com fins
lucrativos oferecem mais atendimentos que o setor filantrópico sem fins lucrativos.
Além da compra de serviços de saúde o Estado também é um importante
consumidor de medicamentos e equipamentos. Ele é responsável pelo consumo de
20% de todos os medicamentos produzidos no país (Valor Econômico, 2012)
Segundo a lei de regulamentação do SUS, lei 8080/90, está incluída no
campo de atuação do SUS a assistência terapêutica integral, inclusive a
farmacêutica, na qual cabe ao Estado a formulação da política de medicamentos,
equipamentos, imunobiológicos e outros insumos além de sua participação na
produção. A lei 12401/11 complementou a definição de assistência farmacêutica
integral que consiste na dispensação de medicamentos e produtos de interesse para
a saúde da população como órteses, próteses, bolsas coletoras e equipamentos
médicos.
Ainda que numa sociedade capitalista seja improvável, e bastante inviável
devido às leis de patentes, que o Estado produza a totalidade de medicamentos e
equipamentos de saúde, a importância estratégica da saúde como necessidade
coletiva é uma justificativa fundamental para a participação do Estado na sua
153

produção. Para Magalhães e al (2011) laboratórios farmacêuticos oficiais 110 são


estratégicos como indutores de políticas, desenvolvimento e formulação de novos
fármacos, além de reguladores de preços no mercado nacional. Apenas como
exemplo, em 2005 quando o Ministério da Saúde anunciou que detinha competência
tecnológica para produzir os antirretrovirais Efavirenz, Nelfinavir e Lopinavir os
preços desses medicamentos em laboratórios privados caíram respectivamente
59%, 40% e 46%. Assim, as políticas governamentais e a prioridade dada ao
investimento em laboratórios públicos determinam qual será a necessidade e o
volume de repasses do fundo público para os produtores privados.
O Brasil possui 22 laboratórios que compõem a Rede Brasileira de Produção
Pública de Medicamentos (RBPPM), e há mais 7 laboratórios em fase de
implantação. Porém, a produção é muito concentrada: 80% do total de
medicamentos é produzido por apenas 5 desses laboratórios. Segundo Magalhães e
al (2011), apesar dos aportes financeiros repassados aos laboratórios farmacêuticos
oficiais (LFO) nos últimos anos, eles se mantêm defasados em relação ao setor
privado tanto na área tecnológica quanto nos processos e produtos. Assim, os LFOs
não são capazes de atender sequer a Relação Nacional de Medicamentos
(Rename), responsável pelas necessidades do SUS. Devido à falta de diversidade
de medicamentos e a existência de patentes da indústria privada em muitos casos,
apenas 20% dos gastos do SUS com medicamentos é realizada nos LFOs sendo
80% dos gastos realizados no setor privado (Magalhães et al, 2011).
É importante destacar, como já mencionado no capítulo 3, que os LFOs
também têm passado por processos de privatização da sua gestão como o caso de
Biomanguinhos, um dos mais importantes LFOs do Brasil, que aprovou a criação da
Empresa Companhia Brasileira de Biotecnologia em Saúde Biomanguinhos e
subsidiárias para a gestão, pelo modelo de empresa pública, de todo conglomerado
de produção de fármacos da Fiocruz (Ladeira, 2014).
Apesar dos supostos incentivos à indústria nacional, a compra de
medicamentos e equipamentos do setor privado se mostra bastante concentrada em
poucos laboratórios de matriz estrangeira, na maioria absoluta dos casos, como
pode ser observado na tabela 10

110
Segundo o artigo 4º da lei 5991/73, laboratório oficial é o laboratório do Ministério da Saúde ou
congênere da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos territórios, com competência delegada
através de convênio ou credenciamento, destinado à análise de drogas, medicamentos, insumos
farmacêuticos e correlatos;
154

Tabela 10 - Gasto federal com o setor privado de medicamentos e equipamentos em 2012


Favorecido Área de atuação Valor Pago % Total
Abbot laboratórios do Brasil LTDA Medicamentos R$ 583.415.048,41 13%
Glaxo-Smithkline Medicamentos R$ 478.008.370,73 11%
Novartis Medicamentos R$ 420.668.403,28 9%
Wieth Medicamentos R$ 395.522.523,09 9%
Octapharma Medicamentos R$ 235.685.003,74 5%
Janssen- Cilag Medicamentos R$ 232.294.418,48 5%
Uno Healthcare Medicamentos R$ 225.675.771,42 5%
Roche Medicamentos R$ 196.777.557,48 4%
Drogarias Pacheco Farmácia Popular R$ 93.961.040,72 2%
Merck Medicamentos R$ 181.087.034,91 4%
Libbs Medicamentos R$ 91.318.200,00 2%
Fonte: Transparência Brasil. Elaboração Própria.

Dos 10 maiores fornecedores, 9 fazem parte da indústria farmacêutica.


Desses um é de matriz inglesa, três são suíços equatro estadunidenses, todos com
filiais no Brasil. Há ainda um laboratório de capital nacional, o Libbs, em décimo
lugar no volume de repasses e uma farmácia de capital nacional. A presença de
farmácias privadas se explica pela ampliação do Programa Farmácia Popular para o
setor privado em 2006, dois anos após sua criação quando apenas unidades
públicas participavam da distribuição de medicamentos pelo programa.
O consumo de medicamentos pelo Estado é bastante centralizado como pode
ser observado na tabela. Os 10 maiores fornecedores recebem 67% do total de
recursos. O restante dos recursos, que alcançaram no total 4,5 bilhões em 2012, é
dividido por 36 fornecedores, entre eles 7 fabricantes de equipamentos que juntos
receberam apenas 3,36% do total, o que denota a falta de investimentos no setor.
Todo esse setor privado, que fornece serviços e produtos para o SUS, recebe
também recursos públicos indiretamente, por meio de renúncias do governo a
inúmeros tributos. É o que veremos na próxima sessão.
155

4.3 O gasto tributário com o setor saúde

Gastos tributários são, segundo o governo:


gastos indiretos do governo realizados por intermédio do sistema
tributário, visando atender objetivos econômicos e sociais. (...)Têm
caráter compensatório, quando o governo não atende
adequadamente a população dos serviços de sua responsabilidade,
ou têm caráter incentivador, quando o governo tem a intenção de
desenvolver determinado setor ou região (BRASIL, 2012).

São consideradas desonerações que compõe os gastos tributários todas as


presunções creditícias, isenções, anistias, reduções de alíquotas, deduções ou
abatimentos e adiamentos de obrigações de natureza tributária (Brasil, 2008).
Segundo dados do Ipea (2011b), o gasto tributário federal alcançou 2,81% do
PIB em 2011. Se somadas as renúncias previdenciárias esse gasto representou
3,53% do PIB em 2011, o equivalente a mais de 10% da carga tributária bruta.
Apesar da justificativa dos gastos falar de uma compensação a serviços não
atendidos adequadamente pelo governo, ao reduzir as contribuições que deveriam
financiar esses mesmos serviços o governo inviabiliza ainda mais seu atendimento
adequado e favorece o setor privado. É isso que ocorre na saúde.
156

Tabela 11 – Participação das Funções nos Gastos Tributários Federais


2008 2009 2010 2011
Comércio e
29,77% 26,59% 27,24% 29,58%
Serviços
Indústria 19,33% 15,92% 15,98% 14,18%
Saúde 11,81% 14,24% 13,56% 10,82%
Agricultura 9,90% 8,56% 8,32% 8,88%
Trabalho 6,83% 11,51% 11,50% 9,66%
Ciência e
5,44% 3,94% 3,89% 5,66%
Tecnologia
Assistência
5,12% 4,76% 4,73% 8,93%
Social
Educação 4,16% 4,92% 4,81% 3,97%
Habitação 3,60% 5,43% 5,74% 4,74%
Transporte 1,41% 1,24% 1,10% 1,04%
Cultura 1,27% 1,43% 1,36% 0,89%
Direitos de
0,74% 0,40% 0,79% 0,33%
Cidadania
Desporto e
0,30% 0,28% 0,27% 0,26%
Lazer
Energia 0,17% 0,63% 0,65% 1,02%
Comunicação 0,13% 0,13% 0,04% 0,03%
Organização
0,03% 0,03% 0,02% 0,02%
Agrária
Fonte: Receita Federal do Brasil. Demonstrativo dos Gastos Tributários (2008, 2009, 2010, 2011)
Elaboração Própria

A tabela 11demonstra que a função saúde é a terceira que mais recebe


incentivos por meio de desonerações tributárias. Essas desonerações ocorrem nas
despesas médicas de pessoas físicas e gastos de empresas com serviços médicos
odontológicos e farmacêuticos, ambos abatidos do imposto de renda. Nesse caso o
governo claramente subsidia os planos de saúde, garantindo a população maior
capacidade de compra e incentivando as empresas a fazerem convênios para seus
empregados. A tabela 2 demonstra que houve um importante aumento nessas
desonerações entre 2008 e 2012 alcançando 119% no caso de pessoas físicas e
22% para pessoas jurídicas.
Andreazzi e Ócké-Reis (2007) apontam a iniquidade desse tipo de renúncia,
na medida em que apenas os indivíduos no mercado formal e sem isenção de
imposto de renda podem acessá-la, não alcançando exatamente os setores mais
pobres da população. As pessoas físicas que abatem seus gastos com saúde do
imposto de renda recebem mais recursos per capita do Estado que os demais que
157

só utilizam serviços do SUS, ou que, por não terem renda suficiente para declarar
imposto de renda, não podem ter subsidiada sua utilização de serviços privados. Os
autores alertam, porém, que o fim imediato dessa renúncia não necessariamente se
reverteria como mais recursos para a setor público podendo, dado a lógica
macroeconômica atual, acabar servindo ao pagamento da dívida pública.

Tabela 12 - Desonerações federais da Função Saúde entre 2008 e 2012


Em milhões de reais
% Fonte da
2008 2009 2010 2011 2012
aumento desoneração

Despesas médicas 4.563,41 8.926,76 10.404,86 9.240,73 9.986,70 119% IRPF

Assistência médica,
odontológica e 3.126,80 2.991,44 3.438,91 3.517,43 3.815,25 22% IRPJ
farmacêutica a
empregados
Produtos Químicos e
1.128,89 1.028,25 1.026,15 815,46 772,88 -32% PIS/COFINS
Farmacêuticos
Medicamentos 3.302,68 3.512,08 3.790,55 3.467,69 4.003,85 21% PIS/COFINS

Entidades sem fins PIS, COFINS,


2.527,60 2.432,16 2.795,97 2.704,33 3.073,78 22%
lucrativos CSLL
Água Mineral - - - - 14,95 0% PIS/COFINS
Pronas/PCD - - - - 3,51 0% IRPF
Pronon - - - - 4,63 0% IRPF

Total 14.649,40 18.890,71 21.456,46 19.745,66 21.675,41 48%


Fonte: Receita Federal do Brasil. Demonstrativo dos Gastos Tributários (2008, 2009, 2010, 2011)
Elaboração Própria. Valores relativos a 2012, corrigidos pelo IGP-DI.

As desonerações também são direcionadas para subsidiar a indústria de


medicamentos, que aumentou em 21%, e de produtos químicos e farmacêuticos, a
única desoneração que se reduziu em 32% no período.
Outra importante desoneração, que cresceu 22%, é concedida a instituições
sem fins lucrativos. A partir de 2012, novas leis passam a permitir três novas formas
de desoneração consideradas parte da função saúde. A primeira é uma curiosa
desoneração para a produção de água mineral que passa a ser isenta do
pagamento de contribuição para o PIS/PASEP e de Cofins. São, ainda, incluídos
dois programas que permitem a isenção de até 1% do imposto de renda de pessoas
físicas que façam patrocínios ou doação para ações e serviços para deficientes
físicos, o Programa Nacional de Apoio à Atenção da Saúde da Pessoa com
158

Deficiência (Pronas/PCD), e para a oncologia, o Programa Nacional de Apoio a


Atenção Oncológica (Pronon).
Esse grande número de desonerações na função saúde pode ser interpretado
como um incentivo do governo ao setor. No entanto, a principal desoneração
oferecida, que incentiva a indústria de medicamentos e as entidades sem fins
lucrativos, incide exatamente sobre a principal fonte de financiamento da saúde, a
Cofins. O imposto de renda também poderia ser utilizado para a saúde, já que a
legislação prevê que recursos do Orçamento Fiscal sejam repassados para o
Orçamento da Seguridade Social, o que não tem acontecido historicamente. Mas no
caso das desonerações sobre a Cofins, retira-se recursos daquela que hoje tem sido
quase exclusivamente a fonte de financiamento da função saúde.
A tabela 13 demonstra a desoneração que incide sobre as principais fontes de
financiamento da saúde: a Cofins e a CSLL. Não se incluem só gastos tributários de
instituições e empresas do setor saúde. No caso da Cofins são isentos de seu
pagamento a indústria de produção, importação e venda de medicamentos,
embarcações, aeronaves, construção de estaleiros, o setor automotivo instalado no
Norte, Nordeste e Centro Oeste, a agricultura e a agroindústria na produção de
alimentos da cesta básica, a indústria de água mineral, o transporte coletivo, o
transporte escolar, as termoelétricas, o desenvolvimento do trem de alta velocidade,
importadores de álcool, o comércio de biodiesel, de cadeiras de rodas e
equipamentos assistivos, a construção civil, eventos desportivos culturais e
científicos, toda a atividade da Fifa no Brasil durante a Copa das Confederações e a
Copa do Mundo e seu período de preparação, todas as atividades relacionadas as
Olimpíadas, a indústria petroquímica, a impressão de jornais e periódicos, a indústria
cinematográfica e de radiofusão, a importação, produção e venda de livros, a
importação de gás natural e materiais para a pesquisa científica, todos os produtos
comercializados na Zona Franca de Manaus, além das entidades sem fins lucrativos
em todas as áreas e microempresas inscritas no sistema Simples de tributação.
Além desses setores são isentas também organizações que atuam nas áreas dos
seguintes programas: Programa Universidade Para Todos (Prouni), Programa de
Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Semicondutores (PAD),
Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Equipamentos
da TV Digital (PATVD), Programa Especial de Incentivo a Computadores de Uso
Educacional (Prouca), Regime Especial de Tributação para o Desenvolvimento de
159

Atividade de Exibição Cinematográfica (Recine), Regime Especial de Tributação


para a Ampliação, Reforma ou Modernização de Estádios de Futebol (Recopa),
Regime Especial de Incentivo para o Desenvolvimento de Infraestrutura (Reid),
Regime especial de Incentivo ao Desenvolvimento da Infraestrutura da Indústria de
Fertilizantes (Reif), Regime Especial de Tributação para a Indústria Aeroespacial
(Retaero). Ainda recebem desconto no pagamento da Cofins a construção de
creches e pré-escolas, atividades relacionadas ao Programa Minha Casa, Minha
Vida e a venda de eletrônicos pelo Programa de Inclusão Digital. Difícil é saber
quem paga Cofins no Brasil.
Em relação a CSLL são isentas as atividades relacionadas à Copa do Mundo,
doações a entidades sem fins lucrativos e instituição de ensino e pesquisa, a
indústria promotora de inovações tecnológicas, a Previdência Privada Fechada, as
organizações participantes do Prouni, as microempresas tributadas pelo Simples e
participantes do Programa Minha Casa, Minha Vida.

Tabela 13 - Desonerações federais sobre as contribuições que financiam a saúde


Em milhões de reais
% de
2008 2009 2010 2011 2012
aumento
COFINS 36.023,66 36.302,92 41.635,63 41.807,24 48.615,92 35%
CSLL 6.069,12 6.475,61 8.179,43 8.008,81 9.336,69 54%
Total 42.092,78 42.778,53 49.815,07 49.816,05 57.952,61 38%
Fonte: Receita Federal do Brasil. Demonstrativo dos Gastos Tributários (2008, 2009, 2010, 2011)
Elaboração Própria. Valores relativos a 2012, corrigidos pelo IGP-DI.

A tabela 14 demonstra o impacto significativo que os gastos tributários com a


Cofins e a CSLL têm para o orçamento da função saúde. Se recolocados no
orçamento permitiriam um aumento de, em média, 40% do orçamento anual,
conforme demonstra a tabela 14.
160

Tabela 14 – Relação entre a Função Saúde e os Gastos Tributários com a Cofins e a CSLL
Em reais
Perda
Desoneração das receitas da
Função Saúde orçamentária
saúde
anual
2008 55.317.973.814,90 40.404.262.034,49 -27%
2009 71.922.758.609,51 41.834.340.069,96 -42%
2010 82.129.193.429,09 48.555.587.869,20 -41%
2011 85.470.590.586,93 49.341.853.222,43 -42%
2012 97.440.941.400,59 57.729.051.762,49 -41%
Fonte: Receita Federal do Brasil. Demonstrativo dos Gastos Tributários (2008, 2009, 2010, 2011)
Elaboração Própria. Valores corrigidos pelo IGP-D

No caso dos municípios não existem contribuições específicas para as


políticas da Seguridade Social no seu orçamento. O orçamento municipal é
formadopor receitas de capital e receitas correntes 111 nas quais está incluída a
receita tributária própria. Os impostos e taxas municipais são: Imposto sobre
Serviços (ISS), Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), Imposto sobre a
Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), Taxa de Coleta de Lixo (TCL), Taxa de
Licenciamento de Estabelecimentos (TLE), Taxa de Inspeção Sanitária (TIS), entre
outras taxas que podem ser instituídas pelos municípios. O ISS e o IPTU são os
principais tributos municipais representando, em 2012, 81,89% da receita tributária
do conjunto de municípios do país e 83,99% da receita tributária das capitais
(Bremaeker, 2014).
Assim, o gasto tributário municipal, sobretudo desses dois impostos, impacta
a receita para o conjunto de políticas entre elas a saúde112. No município do Rio de
Janeiro houve um aumento importante dos setores beneficiados durante o governo
Paes o que ampliou o percentual desses gastos em relação ao orçamento total.
Esses gastos vêm sendo criticados pela imprensa e por vereadores de
oposição do município. No caso das empresas de ônibus, o prefeito reduziu no final
de 2010 a alíquota do ISS de 2% para 0,01%, o que significa, segundo dados da
Prefeitura, uma renúncia de 33 milhões de reais por ano. Essa renúncia, no entanto,
chegou a 50,7 milhões em 2012, 52,8 milhões em 2013, e tem previsão de alcançar

111
As receitas correntes incluem: receita tributária, receita de contribuições, receita patrimonial,
receita agropecuária, receita industrial, receita de serviços, transferências correntes, outras receitas
correntes (Ministério da Fazenda, 2005).
112
Nosso objetivo era verificar o gasto tributário com receitas tributárias próprias. Só encontramos,
porém esse dado disponível nos municípios do Rio de Janeiro e parcialmente em São Paulo.
161

69 milhões em 2017, um crescimento anual significativo em um serviço cuja


qualidade é sistematicamente questionada pela população 113 (TCM, 2012).

Tabela 15 - Gastos Tributários do Município do Rio de Janeiro – Receita Tributária.


Gasto Tributário Gasto Tributário % Gasto
Despesa Executada
Previsto na LOA Executado tributário
2008 R$ 15.984.383.843,40 R$ 447.672.659,28
2009 R$ 14.150.894.920,06 R$ 159.314.420,50
2010 R$ 19.032.345.848,65 R$ 69.190.489,78 R$ 343.860.963,79 1,81%
2011 R$ 22.422.786.955,20 R$ 185.898.151,02 R$ 401.107.350,00 1,79%
2012 R$ 23.782.299.295,20 R$ 292.335.488,01 R$ 587.449.992,00 2,47%
Fonte: Relatório de Parecer Prévio do TCM sobre as Contas da Prefeitura (2008, 2009, 2010, 2011,
2012) Elaboração Própria. Valores corrigidos pelo IGP-DI.

Os dados da tabela consideram apenas a arrecadação tributária do município,


excluindo deduções de outras receitas correntes 114, e comparam esse gasto com o
volume de recursos executados de todas as fontes. Considerando apenas a
arrecadação tributária, em 2012, segundo o Tribunal de Contas do Município (TCM),
o gasto alcançou 7,22% do total arrecadado. Em relação ao IPTU, o gasto tributário
chega a 20% do arrecadado. O TCM alerta ainda que não há nenhuma medida de
compensação a esses gastos tributários no município e não há nenhuma
preocupação do governo em demonstrar os impactos socioeconômicos positivos
desses gastos, apesar dessa demonstração ser uma obrigação dos governos,
segundo a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
O TCM de Salvador tem menos estudos sobre o gasto tributário do que o
TCM do Rio de Janeiro, sequer separando as deduções de receita corrente por
fontes de receita. Assim, não é possível observar, pelos dados do TCM, o gasto
tributário municipal com renúncias fiscais.Segundo as LOAs do município entre 2010
e 2012115 só há previsão de deduções referentes a transferências. Não se prevê
nenhum gasto tributário com a arrecadação própria do município.

113
Dados dos jornais O Globo e O Dia. Em:http://oglobo.globo.com/rio/prefeito-sanciona-projeto-que-
reduz-iss-para-onibus-no-rio-2948067#ixzz3JXiAE6id e http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-
janeiro/2014-05-06/em-tres-anos-renuncia-fiscal-de-empresas-de-onibus-chegara-a-r-188-
milhoes.html.
114
As deduções de receitas correntes não incluem apenas renúncias de receita (gastos tributários)
mas também restituições de tributos recebidos indevidamente e recursos que o ente tenha
competência de arrecadar, mas que pertencem a outro ente (Ministério da Fazenda, 2005). Assim,
os dados de deduções de receitas correntes são bastante imprecisos para nosso objetivo de
observar a apropriação privada de recursos que deveriam compor o fundo público.
115
A prefeitura de Salvador só disponibiliza em seu site peças orçamentárias a partir de 2010.
162

Assim como Salvador, em São Paulo há pouquíssimo debate sobre esses


gastos nos relatórios do TCM. Os relatórios denunciam, inclusive, que sequer nas
LOAs o governo faz previsão das renúncias fiscais, o que é obrigatório segundo a
LRF.O ano de 2009 é o único em que as renúncias aparecem separadas por grupos
de fonte de receita sendo possível distinguir o que são os gastos tributários
referentes às receitas tributárias e o que são as demais deduções dereceitas
correntes. Nesse ano as renúncias de receitas tributárias equivalem a 0,05% dos
recursos totais executados, bem menos significativo que no Rio de Janeiro116.
O que chama atenção nos relatórios do TCM de São Paulo, no entanto, é a
imensa participação de contratos de gestão no orçamento da função saúde nesse
município e a preocupação do tribunal em fiscalizar e auditar esses contratos, o que
discutiremos na próxima sessão.

4.4. O repasse do orçamento para entidades sem fins lucrativos

Segundo os Manuais Técnicos do Orçamento, toda transferência a entidades


sem fins lucrativos é indicada como modalidade de aplicação 50. Esses repasses
tanto podem ser repasses diretos para custeio e financiamento de entidades sem
fins lucrativos como repasses para OSs e Oscips para cumprimento de contratos de
gestão. No caso dos contratos de gestão o elemento de despesa 117 aparece com o
número 39.
O montante desse repasse federal na função saúde no período estudado não
é significativo em comparação ao total dos recursos. Nota-se que os recursos pagos
anualmente não alcançam nem 1% do total da função. Até 2010 percebe-se uma
tendência de queda na aplicação de recursos nessa modalidade que voltam a se
ampliar nos anos seguintes. Outra característica notável é a distância entre recursos
empenhados e efetivamente pagos o que denota uma dificuldade das entidades sem
fins lucrativos em executar os recursos, que são vinculados aos grupos de despesa:

116
O TCM de São Paulo só disponibiliza em sua página eletrônica oficial os relatórios referentes a
2009, 2010 e 2011. Seriam necessários mais dados e uma série histórica mas longa para observar a
média do gasto tributário relativo às receitas tributárias.
117
A classificação por elemento de despesa “tem por finalidade identificar o objeto imediato de cada
despesa, por exemplo: remuneração de pessoal, obrigações patronais, material de consumo e etc”
(Giacomoni, 2012).
163

3 – outras despesas correntes, referente ao custeio, e 4- investimentos, referente a


ampliações patrimoniais 118. No caso do governo federal, os repasses a instituições
sem fins lucrativos na saúde não se referem a contratos de gestão mas repasses
diretos de investimento e custeio.

Gráfico 04 – Repasses federais na modalidade 50

Gastos Federais na Função Saúde - % Modalidade 50


1,60%
1,40%
1,20%
1,00%
0,80%
0,60%
0,40%
0,20%
0,00%
2008 2009 2010 2011 2012

Dotação Inicial Empenhado Pago

Fonte: Siga Brasil. Elaboração Própria

Segundo dados de pesquisadores do IPEA, “em termos globais, o Estado


brasileiro está transferindo mais recursos para as entidades sem fins lucrativos”
(Lopes e Bueno, 2012, p.11, grifo dos autores). No entanto, a descentralização dos
recursos para a saúde e para educação, de acordo com os pressupostos
constitucionais, fez com que a transferência federal para entidades sem fins
lucrativos se reduzisse nessas áreas.
As transferências federais para estados e municípios passaram de 5,1% do
PIB para 5,8% entre 2001 e 2011, segundo dados do IPEA. As transferências nas
funções saúde e educação, chamadas de voluntárias, foram aquelas que mais
cresceram em relação ao PIB, atingindo 0,51% de aumento (IPEA, 2011). Dessa
forma, passaram a ser estados e municípios os que repassam recursos às entidades

118
Segundo Giacomoni (2012, p.113) o grupo 3 – outras despesas correntes - permite aquisição de
material de consumo, pagamento de diárias, contribuições, subvenções, auxílio alimentação e
auxílio transporte entre outros, enquanto o grupo 4- investimentos - permite despesas com
softwares, planejamento e execução de obras, aquisição de imóveis, instalações, equipamentos e
material permanente.
164

sem fins lucrativos. Esse movimento de descentralização do repasse pode ser


observado no gráfico 05.

Gráfico 05 – Transferências para entidades sem fins lucrativos (ESFL) por nível de governo – 2002 a
2009

Fonte: Lopes e Bueno, 2012.

No gráfico 06 pode-se notar que esse não é um movimento comum a todas as


funções orçamentárias. O repasse federal a entidades sem fins lucrativos segue
crescendo principalmente na função ciência e tecnologia enquanto a saúde é a
função na qual há maior redução de repasses federais, reafirmando a hipótese de
que essa transferência está se dando por meio de estados e municípios, graças à
lógica de descentralização que orienta essa política desde a criação do SUS.
165

Gráfico 06 – Repasses a entidades sem fins lucrativos por função - 2011

Fonte: Lopes e Bueno, 2012.

O estudo do orçamento dos municípios para a saúde confirma essas


tendências e deixa bastante claro que o aumento acompanha a aprovação de leis
que regulamentam a atuação das organizações sociais, o que no caso de Salvador
só foi aprovado em 2014, após o período da pesquisa. Também nota-se que a
ampliação de transferências para entidades sem fins lucrativos é acompanhada pela
redução, em menor proporção, de gastos com pessoal, corroborando a hipótese de
que esse aumento se refere à participação crescente das entidades sem fins
lucrativos na gestão de unidades como organizações sociais.
166

Gráfico 07 – Gastos com pessoal e repasses a entidades sem fins lucrativos nos municípios – 2008 a
2012.

Gastos com pessoal e transferências para entidades sem


fins lucrativos na função saúde - municípios
R$3.000.000.000,00

R$2.500.000.000,00

R$2.000.000.000,00

R$1.500.000.000,00

R$1.000.000.000,00

R$500.000.000,00

R$-
2008 2009 2010 2011 2012

Pessoal e encargos
Pessoal e encargos
Pessoal e encargos
Transferência a Instituições Privadas sem fins lucrativos
Transferência a Instituições Privadas sem fins lucrativos
Transferência a Instituições Privadas sem fins lucrativos

Fonte: Siops. Elaboração própria. Deflacionado pelo IGP-DI.

Podemos observar na tabela 16 que a partir de 2010 todos os municípios


estudados têm repassado em torno de um terço do seu orçamento para
organizações sociais por meio de contratos de gestão. Ao contrário do governo
federal, onde os repasses são diretos para entidades sem fins lucrativos para
custeio e investimento, nos municípios praticamente o total dos repasses se dá pelo
elemento de despesa 39, ou seja, para contratos de gestão, com exceção de
Salvador onde a lei de regulamentação dos OSs só foi aprovada em 2014 (e o
elemento de despesa 39 não existe).
167

Tabela 16 – Participação da Modalidade 50 e dos Gastos de Pessoal no total do orçamento da


Função Saúde nos municípios:
2008 2009 2010 2011 2012
São Paulo 0,00% 0,01% 37% 38% 38%
Modalidade 50 Rio de Janeiro 0,01% 0,02% 14% 21% 33%
Salvador 21% 23% 27% 27% 17%
São Paulo 41% 35% 31% 30% 30%
Gastos com Pessoal Rio de Janeiro 55% 58% 48% 41% 33%
Salvador 19% 21% 25% 30% 38%
São Paulo 59% 65% 32% 32% 32%
Outros Rio de Janeiro 45% 42% 38% 38% 34%
Salvador 60% 56% 48% 43% 45%
Fonte: Relatórios do TCU. Elaboração Própria.

O Tribunal de Contas do município São Paulo ainda chama a atenção para


uma classificação equivocada das despesas. Se classificadas corretamente, em
2009 a soma dos contratos de gestão com OSs com contratos de terceirização de
limpeza e segurança alcançariam em São Paulo o equivalente a 53,1% do
orçamento da função saúde e em 2012 a 57,5% do total. O TCM constata também
que o controle sobre os contratos de gestão é falho: há falhas na elaboração dos
indicadores de desempenho, desrespeito ao regulamento de compras e
incapacidade da Secretaria Municipal de Saúde para controlar e fiscalizar os
contratos. Além disso, em 2012, O TCM afirma que 4 hospitais geridos por OSs tem
uma taxa de ocupação muito menor do que o esperado. Enquanto o MS determina
que a taxa de ocupação desejável deve estar em 80 e 85%, o hospital Cidade
Tiradentes, gerido por OS em São Paulo, só possuía uma taxa de ocupação de
48,1%. O TCM aponta como causa desse cenário a insuficiência de profissionais.
Auditorias realizadas demonstraram que em geral os serviços são realizados em
volume menor do que o pactuado nos contratos. Além disso, as OSs têm devolvido
os pronto-socorros e maternidades à gestão do município 119 alegando dificuldades
de gestão por serem unidades de portas abertas demonstrando que só se
interessam por unidades com retorno financeiro garantido (Valor Econômico, 2014)
As organizações sociais, de acordo com os contratos de gestão firmados,
recebem repasses orçamentários para gerir a força de trabalho, os serviços e o
119
“O pronto socorro, no entanto continuará sob gestão do município (..) porque o Einstein enfrenta
maus bocados na gestão de uma unidade de portas abertas no Hospital Municipal Dr. Moysés
Deustch (...). (...) foram frequentes as renegociações para ajustar o custo operacional à dotação do
recurso colocado à disposição pela SMS. (...) Assim como o Einstein no M‟Boi Mirim, o Sírio,
aparentemente, não quer repetir a experiência de gerir uma unidade de portas abertas, tanto que o
novo hospital de Jundiaí não terá pronto-socorro” (Valor Econômico, 2014).
168

patrimônio das unidades de saúde dos municípios. Entre esses repasses estão
gastos com despesas administrativas e operacionais que, na prática, funcionam
como taxas de administração. No caso do Rio de Janeiro, esses gastos podem
alcançar no máximo 5% do total dos contratos, o que são valores significativos em
contratos que alcançam a casa dos milhões de reais. Em São Paulo, não há limite
para esses gastos que devem ser previstos no plano de trabalho das OSs. Esse
percentual equivale às taxas de lucro de hospitais privados que são estimadas entre
5% e 9% (Valor Econômico, 2014).
Chama atenção, ainda, que os repasses de fundo público, quando não
imediatamente utilizados, podem ser aplicados no mercado financeiro. No Rio de
Janeiro isso pode se dar por meio de cadernetas de poupança em bancos estatais
(Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil), fundos de curto prazo e títulos
públicos federais. São Paulo permite essa aplicação sem especificar como deve ser
feita. Assim, o capital portador de juros também se apropria de parte do fundo
público por meio da privatização da gestão. Os possíveis ganhos com juros podem,
além disso, estimular as organizações sociais a “pouparem” recursos que deveriam
estar sendo usados para garantir a qualidade dos serviços para os usuários do SUS.
Às organizações sociais é permitido, ainda, a arrecadação de recursos
privados. Isso é dito de forma genérica nos contratos de gestão do Rio de Janeiro.
Nos contratos de gestão de São Paulo fica explícito que é possível que a
organização social obtenha receitas de prestação de serviços, desde que a
assistência à saúde não seja prejudicada, abrindo espaço, portanto, para
comercialização de atividades de ensino e pesquisa, por exemplo.
Fica evidente que o interesse das OSs na gestão das unidades em nada se
relaciona com bons e humanitários sentimentos. Seu interesse se vincula,
diretamente, a possibilidade de remunerações do fundo público para seus serviços.
169

4.5. O caso peculiar das empresas públicas e sociedades de economia mista


no setor saúde

Segundo a legislação brasileira há duas formas distintas de participação do


Estado em atividades econômicas com fins lucrativos: as empresas públicas e as
sociedades de economia mista. A empresas públicas são regulamentadas pelo
Decreto 200 de 1967 e 900 de 1969, ambos, portanto, do período da ditadura. Esses
decretos definem as empresas públicas como entidades de direito privado que
podem ser unipessoais, quando pertencem exclusivamente à União, ou
pluripessoais, quando além do fundo público da União é permitida a participação de
outras pessoas jurídicas de direito público bem como de entidades da Administração
Indireta da União, dos Estados, Distrito Federal e Municípios, situação jurídica que
por lei se estende a suas subsidiárias.
Já as sociedades de economia mista são compostas por recursos do fundo
público, que deve ser majoritário, e recursos privados. Formam-se como sociedades
de ações, reguladas pela lei 6404 de 1976 que refere-se às sociedades anônimas
(S/A). Podem ser abertas, quando vendem suas ações no mercado de capitais, ou
fechadas.
Em todos os casos a contratação de força de trabalho se dá pelo regime dos
trabalhadores do setor privado, a CLT. Também em todos os casos o objetivo é
gerar lucro, o que faz com que o fundo público opere como capital, ainda que, no
caso das empresas públicas, a acumulação de capital da empresa não seja
distribuída na forma de lucro, de forma semelhante ao que ocorre com as entidades
sem fins lucrativos.
Alguns autores entendem as empresas públicas como modelos de gestão na
saúde que, apesar das diferenças jurídicas, poderiam ser classificados como
semelhantes em objetivos e estratégias às organizações sociais e às fundações
públicas de direito privado. Nossa hipótese, no entanto, é que esse modelo permite,
em teoria, uma privatização ainda mais aprofundada dos estabelecimentos de saúde
na medida em que pode permitir abertura para o mercado do capital dessas
empresas por meio de ações. Afirmamos isso, no entanto, ainda como hipótese visto
que as empresas públicas, inclusive a EBSERH, mais recentemente criada e de
maior abrangência, ainda mantêm-se dependentes de fundo público, com serviços
170

privados apenas residuais e modelo legal que impede a abertura de seu capital 120.
Até o momento, de fato, seus objetivos centrais têm sido semelhantes aos objetivos
de OSs e fundações: precarização dos contratos de trabalho, redução dos espaços
de controle social e burla a mecanismos do direito público como as licitações.
A saúde no nível federal possui algumas empresas públicas e algumas
sociedades de economia mista. A mais antiga empresa pública no setor saúde,
pluripessoal, criada em 1970, é o Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA),
ligado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul e gerida pelo Ministério da
Educação (MEC).
Os hospitais universitários federais só se tornaram unidades orçamentárias,
separadas das universidades, a partir de 2008, ao contrário do HCPA que sempre
geriu seus recursos. Podemos, então, comparar o orçamento do HCPA com os
demais hospitais universitários a partir de 2009. De 2009 a 2012, o HCPA foi o
hospital universitário que mais recebeu recursos da União para seu funcionamento.
Atrás dele, com o segundo maior orçamento, está o Complexo Hospitalar da UFRJ,
composto por 09 unidades de saúde.

Tabela 17 - Arrecadação própria e participação no orçamento total dos HUFs


2009 2010 2011 2012
HCPA 11% 9% 10% 9%

% fontes privadas Complexo Hospitalar da


0% 2% 0% 0%
UFRJ

HCPA 15% 15% 14% 12%


%do total dos
recursos para Complexo Hospitalar da
16% 11% 11% 9%
0sHus UFRJ
Fonte: Leis Orçamentárias Anuais (2009, 2010, 2011, 2012) Elaboração Própria

Comparando os dois maiores orçamentos entre hospitais universitários


federais percebemos que a participação de fontes privadas é muito mais significativa
no HCPA do que no Complexo Hospitalar da UFRJ, mas, mesmo no HCPA ainda

120
Isso porque a EBERSH é uma empresa pública unipessoal, modelo jurídico que se estende a suas
subsidiárias. No entanto, o projeto inicial do governo era que a EBSERH fosse uma SA, situação que
pode ser alterada a qualquer momento por meio de uma mudança na legislação.
171

são valores muito baixos em comparação ao total do orçamento, isto é, mais de 90%
do seu orçamento é oriundo do fundo público.

Tabela 18 - Número de leitos e vinculação dos leitos ao SUS

SUS Total %SUS do total


HCPA 842 994 85%
Complexo Hospitalar da
685 751 91%
UFRJ
Fonte: Sala de Apoio de Gestão Estratégica. Em: http://189.28.128.178/sage/ Elaboração Própria

A tabela 18 demonstra que nos dois casos a arrecadação própria de recursos


privados sequer é proporcional ao número de leitos excluídos do SUS. Com isso
reforça-se a tese de que, hoje, mesmo unidades de saúde geridas por formas
jurídicas que têm o lucro como objetivo, ainda dependem majoritariamente de
recursos do fundo público. A arrecadação privada não subsidia o financiamento do
SUS, mas, pelo contrário, é o orçamento público que financia as atividades
realizadas para o setor privado por estes hospitais.
Porém é possível que a arrecadação de recursos próprios seja maior do que o
apontado pelo orçamento público. Pela sua relação com as universidades a maioria
dos hospitais têm convênio com fundações de apoio. O HCPA mantém junto a
UFRGS a Fundação Médica do Rio Grande do Sul, enquanto a UFRJ mantém a
Fundação José Bonifácio. Essas fundações de apoio às universidades já foram
amplamente denunciadas pelo TCU por arrecadarem recursos próprios por fora da
prestação de contas do orçamento, o que é ilegal, configura caixa dois, mas segue
como prática dessas entidades (Cislaghi, 2013). Assim, é possível que por meio das
fundações haja arrecadação própria não declarada, o que impede o controle social
desses recursos e permite casos de corrupção.
Já o modelo adotado pelo Grupo Hospitalar Conceição (GHC), composto
originalmente pelo Hospital Nossa Senhora da Conceição, pelo Hospital Fêmina e
pelo Hospital Cristo Redentor(os dois últimos transformados em filiais do primeiro em
2012121), é a sociedade de economia mista, única no setor saúde brasileiro. Os três

121
Hoje o Grupo Hospitalar Conceição SA é composto pelo Hospital Nossa Senhora da Conceição
S.A. (Matriz) e suas Filiais: Hospital Fêmina SA, Hospital Cristo Redentor SA, Hospital Criança
Conceição, Unidade de Pronto Atendimento Zona Norte Moacyr Scliar, Unidade de Saúde
Santíssima Trindade, Unidade de Saúde Parque dos Maias, Unidade de Saúde Nossa Senhora
172

hospitais, originalmente privados, foram desapropriados pela União, durante a


ditadura militar, pelo decreto 75408 de 20 de fevereiro de 1975, devido a dívidas
dessa instituição com o INPS. Curiosamente em 7 de março de 1975, por meio do
decreto 75457, o governo recua e estatiza apenas 51% das ações dos três hospitais
com a alegação de que a extinção dessas empresas não seria compatível com a
intenção do governo de apoiar à iniciativa privada. Hoje 100% das ações são
propriedade da União, que ainda deve, porém, muitos precatórios aos antigos
acionistas do Grupo (Vecina Neto, 2006).
Até 2002, esses três hospitais, por serem S/A, compunham o Orçamento de
Investimento junto com as demais estatais de propriedade da União. Em 2002, em
conjunto, seu orçamento era composto por 245 milhões de reais para pessoal e
custeio provenientes do Orçamento da Seguridade Social e 12 milhões do
Orçamento de Investimento. A portaria 589 da Secretaria do Tesouro Nacional
(STN), de 27 de dezembro de 2001, determinou, porém, que a partir de 2003 as
chamadas “estatais dependentes”, isto é, dependentes majoritariamente de recursos
da União, passariam definitivamente ao Orçamento Fiscal ou da Seguridade Social.
Assim, desde 2003 o Grupo Hospitalar Conceição perdeu os recursos do orçamento
das estatais e passou a depender exclusivamente das fontes da Seguridade Social,
tornando-se unidade orçamentária122 do Ministério da Saúde, o que sobrecarregou
ainda mais esse orçamento.

Aparecida, Unidade de Saúde Jardim Leopoldina, Unidade de Saúde Floresta, Unidade de Saúde
Divina Providencia, Unidade de Saúde Costa e Silva, Unidade de Saúde COINMA, Unidade de
Saúde Barão de Bagé, Centro de Educação Tecnol. E Pesquisa em Saúde – CETPS, Centro de
Atenção Psicossocial I – Infantil, Unidade de Saúde SESC, Centro de Atenção Psicossocial II –
Adulto, Unidade de Saúde Conceição, Unidade de Saúde Jardim Itú, Centro de Atenção
Psicossocial III - Álcool e Drogas. Para esse trabalho analisaremos o orçamento apenas dos três
principais hospitais do grupo.
122
Apesar dos hospitais Femina e Cristo Redentor terem se tornado filiais do Hospital Nossa Senhora
da Conceição, os três permanecem sendo unidades orçamentárias independentes no orçamento do
Ministério da Saúde.
173

Tabela 19 - Orçamento Executado do Grupo Hospitalar Conceição


Em reais
2008 2009 2010 2011 2012
HNSC 556.217.411,81 553.424.632,79 571.373.815,14 571.701.036,54 646.084.494,57
Cristo
124.030.310,25 150.362.756,73 141.509.522,45 142.420.714,15 159.326.912,36
Redentor
Fêmina 78.322.180,06 81.502.862,00 72.988.806,93 83.850.708,91 99.033.517,75
Total 758.569.902,11 785.290.251,53 785.872.144,52 797.972.459,59 904.444.924,68
% de
aumento 3,52% 0,07% 1,54% 13,34%
anual
Fonte: Siga Brasil. Elaboração própria. Valores corrigidos pelo IGP-DI.

A tabela 19 mostra o orçamento executado pelo Grupo Hospitalar Conceição


no período estudado. Em 2012, chega perto de 1 bilhão de reais, o que corresponde
a aproximadamente 1% do orçamento total do Ministério da Saúde. Segundo dados
da Associação dos Servidores do Grupo Hospitalar Conceição (Aserghc)123, esse é o
terceiro maior orçamento do Rio Grande do Sul na função saúde, atrás, apenas, da
Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre e da Secretaria Estadual de Saúde.
Tudo isso para um total de 1793 leitos dos quais 96% destinados ao SUS.

Tabela 20 - Percentual de arrecadação própria do Orçamento


2008 2009 2010 2011 2012
HNSC 0,51% 2,75% 0,48% 0,63% 0,39%
Cristo
0,28% 0,12% 0,20% 0,14% 0,57%
Redentor
Femina 0,55% 0,68% 0,39% 0,45% 0,19%
Fonte: LOA (2008, 2009, 2010, 2011, 2012). Elaboração própria.

Conforme pode ser visto na tabela 20, a arrecadação própria, ou seja, de


recursos privados, é irrisória, mas assim como no caso do HCPA, desproporcional
aos leitos não destinados ao SUS. Nesse caso também, podemos observar que o
financiamento do GHC é totalmente dependente do orçamento público.
Também ligada ao MEC e declaradamente inspirada no HCPA foi
recentemente criada a EBSERH, com o objetivo de gerir o conjunto dos hospitais
universitários federais e congêneres. A EBSERH foi originalmente proposta pelo
governo como S/A, o que só foi alterado pela Câmara de Deputados que a aprovou
123
A Aserghc vem denunciando nos últimos anos inúmeros problemas de gestão no GHC, como o
grande número de cargos comissionados indicados pelo governo e sem qualificação. Em
http://www.correiodopovo.com.br/Noticias/?Noticia=330379, http://www.aserghc.com.br/wp-
content/uploads/2012/05/Jornal-Maio-2012.pdf. Consulta em 01/08/2014.
174

como empresa pública unipessoal com a possibilidade de criação de subsidiárias.


Suas subsidiárias, segundo a lei 12550 de 2011, precisam seguir o mesmo regime
jurídico da EBSERH. Essa lei prevê, ainda, que os estados poderão criar empresas
públicas de serviços hospitalares.
A princípio, fica claro que a EBSERH, apesar dos fins lucrativos, também se
constitui como uma empresa pública dependente do orçamento público. Sua
legislação prevê o ressarcimento pelos planos de saúde quando serviços forem
prestados a seus clientes. Como hipótese, esse pode se tornar um mecanismo
importante de captação de recursos e na prática instituição de co-pagamento para
os usuários por intermédio dos planos. Mas é possível, também, que como acontece
até o momento desde a instituição da lei de ressarcimento em 1998, os planos
resistam política e juridicamente a isso, mantendo o fundo público como financiador
da alta e média complexidade.
A EBSERH passou a ser unidade orçamentária em 2012. A justificativa de
seus recursos é a necessidade de criar sua estrutura. A dotação inicial, como pode
ser visto na tabela 21 é pequena, mas significativos créditos adicionais foram
autorizados, não sendo, por fim, empenhados na sua totalidade. O valor autorizado,
porém, só para a criação da estrutura burocrática da empresa equivale a mais do
que o orçamento total de 11 hospitais universitários federais no mesmo ano.
Destinou-se, ainda, à EBSERH em 2014 R$ 557 milhões dos R$ 970 milhões
referentes ao Programa de Reestruturação dos Hospitais Universitários Federais
(Rehuf), mais da metade do total. Além desses valores alocados na unidade
orçamentária (UO), a EBSERH também recebe os repasses do orçamento dos
hospitais universitários que estabelecem contrato com ela. No caso da UFPI há um
Inquérito Civil Público (nº 1.27.000.000905/2013-11) em curso investigando, entre
outras irregularidades, o fato de no primeiro semestre de 2013 o hospital só ter
realizado atendimentos equivalentes a 1,64% do que foi repassado pelo SUS.

Tabela 21 - Orçamento da UO EBSERH em 2012


Em reais
Dotação Inicial Autorizado Empenhado Pago
7.223.793,92 85.230.592,47 16.974.606,52 11.122.388,67
Fonte: Siga Brasil. Corrigido pelo IGP-DI. Elaboração Própria.

A análise dos dados orçamentários das três principais empresas públicas na


área da saúde em nível federal referenda o que apontamos inicialmente que, apesar
175

de terem uma forma jurídica que permite fins lucrativos nas suas ações, até o
momento são quase exclusivamente dependentes do fundo público, mesmo
prestando serviços privados. Portanto, até o momento sua função tem sido
semelhante à das organizações sociais e fundações, qual seja, flexibilizar as regras
do direito público nos serviços de saúde.
Isso não significa que essas empresas públicas, ainda que sob diferentes
formas jurídicas, não possam aprofundar a lógica do direito privado implementado
em outros “modelos de gestão” como as organizações sociais e fundações, na
medida em que assumam seus fins lucrativos. Mesmo que em um primeiro momento
seu capital esteja exclusivamente em posse do Estado e essas instituições sigam
quase que exclusivamente dependentes do fundo público para seu funcionamento
nada impede que, por uma mera mudança legislativa, se transformem em
sociedades de economia mista e seu capital seja aberto ao setor privado. Hospitais
geridos por essa forma jurídica foram criados na ditadura e, após a regulamentação
do SUS, estavam completamente fora do modelo de saúde brasileiro. Ao invés de se
adequarem ao SUS, vemos agora tornarem-se modelos para seu desmonte.

4.6 Síntese da análise dos dados: o quadro geral de repasse de fundo público
ao setor privado na função saúde

Para finalizar a análise de dados elaboramos gráficos com a composição do


orçamento federal e dos três municípios em 2012. Nosso objetivo é a realização de
uma “viagem de volta” a nossas hipóteses iniciais que permita confirmar a proposta
central desse trabalho: demonstrar o quanto as políticas sociais, e nesse caso
particular a política de saúde, têm cada vez mais se tornado espaços de apropriação
de fundo público pelo setor privado, apropriação que é um suporte central para a
valorização do capital num momento de crise e de esgotamento das suas
possibilidades de auto reprodução e, portanto, elementos centrais para a crítica da
economia política contemporânea.
No caso federal destacamos a importância das transferências para estados e
municípios e a transferência para as entidades sem fins lucrativos. Como já
demonstrado, a descentralização dos recursos corresponde a maior parte do
176

orçamento federal enquanto a transferência para entidades sem fins lucrativos não
alcança 1% do total, o que evidencia o que já afirmamos: que essa modalidade de
privatização se dá centralmente por meio de estados e municípios. Somados os
gastos com pessoal e as aplicações diretas (indicadas como outros) os recursos
usados efetivamente para as unidades de saúde federais, que incluem as unidades
orçamentárias Fiocruz, Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Agência
Nacional de Saúde Complementar (ANS), Grupo Conceição, Fundação Nacional de
Saúde(Funasa) além de hospitais federais, institutos e serviço social autônomo que
não possuem unidade orçamentária própria como o Instituto Nacional do Câncer
(INCA) e a Rede Sarah, correspondem a apenas 29% do total de recursos alocados
no orçamento federal na função saúde. Não foi possível analisar, pelos dados
disponíveis, o orçamento federal organizado por elementos de despesa o que nos
impediu de verificar a magnitude, nas aplicações diretas, de gastos com a compra
de medicamentos e equipamentos. O pagamento de serviços ambulatoriais e de
internações, assim como os contratos de gestão,também é realizado pelos estados
e municípios.

Gráfico 08 - Orçamento Federal em 2012 – Por Grupo de Despesa e Modalidade de Aplicação

Orçamento Federal - 2012

17% 12%

Pessoal 0%

Transferências para Estados e


Municípios
Transferência para Instituições
Sem Fins Lucrativos
Outros
71%

Fonte: Siga Brasil. Elaboração Própria.

Em relação aos municípios ficam mais evidentes as formas centrais de


apropriação privada do fundo público. Os três municípios gastam em torno de um
terço dos seus recursos com pessoal, onde se incluem os profissionais contratados
por tempo determinado e concursados pelo RJU. Em 2012 apenas Salvador
177

mantinha contratados por tempo determinado que correspondiam a 14% do total de


gastos com pessoal. Assim, apesar de ter gastos maiores com pessoal e gastos
menores com repasses para contratos de gestão, Salvador ainda mantinha em 2012
a modalidade de contratação precária direta, apesar dos esforços do MP em eliminar
essa ilegalidade.
Entre os mecanismos de consumo do Estado a compra de serviços é o gasto
mais significativo, alcançando 7% do total em Salvador. No Rio de Janeiro em 2012,
apenas se declara a compra de medicamentos como material de consumo,
correspondente a 2% do total. Nos municípios de São Paulo e Salvador, além de
medicamentos o material de consumo inclui material odontológico, laboratorial e
hospitalar correspondentes a respectivamente 5% e 2% do total. Já a compra de
material e equipamentos permanentes tem participação bastante irrisória, não
chegando a 1% do total do orçamento em nenhum dos três municípios.
O que mais chama atenção, no entanto, é a importância da participação da
transferência a entidades sem fins lucrativos que corresponde, no nível municipal, a
repasses para pagamento de contratos de gestão. Apenas Salvador, que em 2012
ainda não possuía lei de regulamentação das OSs, ainda os apresentava como
repasses diretos a entidades sem fins lucrativos pela modalidade 50. Ainda que
menores do que em São Paulo e no Rio de Janeiro, e mesmo sem legislação
própria, esses repasses alcançam significativos 17% do total do orçamento para a
saúde de Salvador, em 2012.No Rio de Janeiro e em São Paulo eles correspondem
a um terço do total do orçamento.
Assim, excluída a compra de material de consumo e de serviços e as
transferências para entidades sem fins lucrativos, que representam a apropriação
direta de recursos para o setor privado da saúde, restam:
55% do orçamento no município de São Paulo, pouco mais da metade do
total, dos quais 30% correspondem a pagamento de pessoal
178

Gráfico 09 – Orçamento do município de SP em 2012 – por grupo de despesa e modalidade de


aplicação

Orçamento do município de SP - 2012


Pessoal e encargos
25%
30%
Transferência a Instituições
Privadas sem fins lucrativos
0%
Material de Consumo 2%
5%
SIA/AIH Privado

Equipamento e Material
Permanente 38%
Outros

Fonte: Datasus. Elaboração Própria.

63% do orçamento no município do Rio de Janeiro, mais da metade do total,


dos quais 33% correspondem a pagamento de pessoal.

Gráfico 10 - Orçamento do município do RJ em 2012 – por grupo de despesa e modalidade de


aplicação

Orçamento do município do RJ - 2012


Pessoal e encargos

30% 33%
Transferência a Instituições
Privadas sem fins lucrativos
Medicamentos
1%
1%
2%
SIA/AIH Privado

Equipamento e Material 33%


Permanente
Outros

Fonte: Datasus
179

73% do total no município de Salvador, mais de dois terços, dos quais 38%
correspondem a pagamento de pessoal, o que demonstra que o padrão de
apropriação direta de fundo público pelo setor privado só se diferencia em um
município que ainda não tinha aprovada uma lei de regulamentação das OSs.

Gráfico 11 - Orçamento do município de Salvador em 2012 – por grupo de despesa e modalidade de


aplicação

Orçamento do município de Salvador - 2012

Pessoal e encargos

Transferência a Instituições 35% 38%


Privadas sem fins lucrativos
Material de Consumo

SIA/AIH Privado
0%
7%
Equipamento e Material
Permanente 3%
17%
Outros

Fonte: Datasus. Elaboração Própria.

Acreditamos que esses dados deixam bastante evidente que o fundo público
não é propriedade estatal sem contradições. Ao priorizar o pagamento ao setor
privado ou o fortalecimento da produção de insumos e serviços efetivamente
públicos o Estado faz uma escolha política que tem consequências na qualidade da
saúde pública e nos lucros auferidos pelo capital alocado no setor. São bem pouco
significativos os gastos de aplicação direta (que chamamos de “outros”) sobretudo
nos municípios de São Paulo e do Rio de Janeiro, que em 2012 já tinham as
organizações sociais como base da gestão da saúde. Em certa medida, os gastos
de pessoal são a única “barreira” à ampliação da apropriação privada do orçamento
o que leva ao estímulo de mecanismos de intensificação do trabalho e redução de
direitos que possam diminuir esses recursos.
Muitos pesquisadores no campo da política de saúde explicam essa
privatização do setor como um “mix público-privado”.Ocké-Reis (2012) concorda que
o papel do Estado se dá na criação do mercado e no financiamento do setor privado
180

por meio do fundo público, o que garante seus lucros 124. O autor aponta, como
demonstra nossa argumentação, que a concentração de capitais é
contraditoriamente incentivada pela forma de regulação institucional, já que as
regras para a entrada no mercado inviabilizam pequenas e médias empresas.
Apesar da clareza sobre o papel do Estado e do fundo público para a constituição do
setor privado, Ocké-Reis mantém a tese do “mix público-privado”. A solução do autor
para essa dualidade é uma nova regulação que integre o setor privado à lógica do
SUS, reestabelecendo seu papel de apenas complementar, e reunificando o
sistema, que se constituiu como dual.
Andreazzi (2012) tem como hipótese que a ideia de “mix” bastante utilizado
na literatura nacional e internacional é um instrumento descritivo da existência de
espaços privados e espaços não submetidos a lógica capitalista, organizados pelo
Estado. Concordamos com a crítica da autora para quem:

O termo mix ou combinação quiçá denote uma ideia de síntese de


fenômenos diferentes, porém combinados, sem contradições entre
eles, ou sem entender o caráter de contradição (...) como processo
de unidade e luta dinâmico e não estático. (ANDREAZZI, 2012, p.31)

A autora passa a usar um modelo, apropriado de Mackintosh e Koisuvalo,


formado por um conjunto de trajetórias de mudança institucional na atenção à
saúde, onde se destacam três: a comercialização informal de cuidados primários em
países de baixa renda; a corporatização e segmentação nos cuidados hospitalares
para a população de renda média; e a globalização de mercados de insumos e
trabalho no setor saúde. Sua hipótese é que em países de renda média, como o
Brasil, essas três trajetórias convivem no mesmo tempo e espaço, formando,
portanto, o que chama de mosaico.
Concordamos com a crítica de Andreazzi à lógica dual trazida pela ideia de
“mix”, incorporando uma perspectiva de desenvolvimento desigual e combinado em
detrimento das teses de dualidade. A compreensão da política de saúde hoje precisa
resgatar um sentido de totalidade: um “aparente paradoxo” na relação entre um
mercado privado, oligopolista, regulado de forma liberal e um segmento público,
formalmente universal, que afirma a saúde como direito é, certamente, apenas

124
O autor utiliza a ideia de “lucros extraordinários”, para explicar as vantagens do setor monopólico,
alimentados pelos fundos públicos e pela corrida tecnológica, termo atribuído a Possas (1989),
autora referenciada no marxismo.
181

aparente. De um lado se fortalecem mecanismos de transferência de fundo público


para o setor privado lucrativo, de outro se privatiza a gestão do setor público.
É possível que sejam essas interpretações duais, que tornam mercado e
Estado uma antinomia maniqueísta, resgatando inclusive o Estado como antivalor,
reificado na representação do interesse público, que levam parte dos pesquisadores
e militantes da Reforma Sanitária brasileira 125 a uma cruzada contra o setor privado
e, ao mesmo tempo, acordo e cumplicidade com os mecanismos de transferência de
fundo público e privatização da gestão impostos pelos “novos modelos”.

125
Bravo (2011) identifica uma modificação no referencial teórico nos principais sujeitos da Reforma
Sanitária, como o CEBES, que acompanha essa “flexibilização” política. Para a autora, passa-se a
defender um pluralismo teórico sem hegemonia da teoria social crítica, possibilitando o ecletismo.
Assim, a direção da Reforma Sanitária não tem mais a preocupação com a superação do
capitalismo e perde a referência em categorias como a totalidade, a historicidade e a luta de classes
182

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“O gigantismo do SUS e o salto no número de medicamentos


ofertados pelo governo estão transformando o sistema produtivo da
saúde em um dos maiores complexos econômicos do país.
Indicadores apontam que ele já superou a marca de 10% do PIB
nacional. Por trás desse crescimento estão as parcerias entre
poder público e iniciativa privada” (Valor Econômico, 2014, grifo
nosso)

Não é nenhuma novidade que a qualidade e o acesso à saúde no Brasil


sofrem uma crise grave, generalizada e permanente. Os processos de privatização e
contrarreforma do SUS que ganharam força ainda nos anos 1990, tornando o projeto
nacional de Reforma Sanitária nunca de fato completamente realizado, não foram
responsáveis por qualquer melhora nesse cenário. Logo após os protestos de junho
de 2013, na ocasião da realização da Copa da Fifa no Brasil, pesquisa do Ibope
apontava que para 77% dos brasileiros a saúde era o principal problema do país.
Os dados levantados nessa tese demonstram, no entanto, que não basta a
reivindicação por mais recursos para a saúde. Conforme a tendência do conjunto de
políticas sociais, os recursos do fundo público para a saúde, que deveriam atender
as necessidades coletivas da população, cada vez mais servem como esteio para o
setor privado lucrativo, mesmo escondidos em formas jurídicas “não lucrativas”, seja
por meio de isenções fiscais, pelo comércio de produtos e serviços seja pelos
ganhos com a gestão de unidades do Estado e quiçá, no futuro, pela
comercialização de ações de empresas públicas.
Essa apropriação de fundo público dá suporte ao processo de subsunção real
do conjunto de atividades do setor saúde ao capital no Brasil, no qual se incluem os
serviços, processo que ainda está em curso. A entrada de capital estrangeiro direta
183

ou indiretamente em todos os subsetores de saúde, inclusive filantrópicos, aprovada


no apagar das luzes de 2014 pela MP 656/14, é mais uma das medidas nessa
direção.
Para garantir taxas de lucro nos serviços o setor privado estimula a ampliação
da mais valia relativa pelo aumento das taxas de produtividade, alterando os
processos de trabalho na saúde. Essas mudanças nos processos de trabalho não
visam a melhoria na qualidade mas o aumento da quantidade de atendimentos e a
racionalização de procedimentos independente das necessidades dos usuários e
são implantadas também nas unidades públicas, sobretudo naquelas que passaram
a ser administradas por OSs, com o objetivo de possibilitar a ampliaçãoda
apropriação de fundo público pelas entidades privadas.
Apesar de um cenário desolador de avanço dos processos privatistas sobre
os ganhos na construção do SUS, associado a cooptação de antigos defensores da
Reforma Sanitária, a luta por saúde pública de qualidade, como sempre, continua
viva.
Os profissionais da saúde têm sido a vanguarda da resistência à privatização
o que tornou a precarização dos contratos de trabalho uma necessidade para seguir
com os ataques privatistas. Ao acabar com a estabilidade garantida pelo RJU, os
chamados “novos modelos de gestão” pretendem minar a autonomia relativa dos
trabalhadores e a resistência de seus sindicatos. Como aponta Leys (2004, p.110)
não é fácil subordinar ao impulso para o lucro trabalhadores organizados e
motivados a prestar um serviço público, que possuem valores ético-políticos
profissionais e sociais na defesa dos direitos de seus usuários.
A Frente Nacional contra a Privatização da Saúde constituiu-se como espaço
de aglutinação de Fóruns locais das entidades desses trabalhadores, além de
organizações de estudantes e usuários do SUS. No caso dos usuários é ainda um
desafio vencer as ideologias favoráveis a privatização, visto que a veiculação
negativa permanente do SUS na mídia, a falta de profissionais e materiais nos
serviços públicos, alguns péssimos atendimentos e trabalhadores
descompromissados fazem com que qualquer alternativa se torne esperança de dias
melhores. Mas o que há de fundamental na Frente, que a diferencia de outras
iniciativas de articulação em defesa da saúde como o Saúde Mais 10 126, é a clareza

126
“ (...) O objetivo desse movimento é a coleta de assinaturas para um Projeto de Lei de Iniciativa
Popular que assegure o repasse efetivo e integral de 10% das receitas correntes brutas da União
184

programática acerca da necessidade de reapropriação pública do fundo público, isto


é, da exclusividade de recursos para a saúde pública sob direção do Estado, sem
nenhuma concessão a novos modelos de gestão.
Nossa defesa do Estado como gestor direto de políticas sociais universais
não se refere a nenhuma ilusão etapista social-democrata, ou seja, de que a
estatização de todos setores da sociedade, se fosse possível, nos levaria a ruptura
com o capitalismo. O Estado é a construção mais universal no capitalismo, e, como
arena da luta de classes,um espaço no qual pode ser possível resistir, ainda que
apenas parcialmente, ao movimento ilimitado de crescimento do capital. Como
espaço de resistência, o Estado pode ser utilizado para construção de experiências
mais coletivas, na medida em que busquemos a permanente ampliação de espaços
de controle social, gerando contradições a serviço da luta anticapitalista. Se, no
entanto, num momento de crise, o capital não pode abrir mão do fundo público, do
controle do Estado, da exceção permanente, da subsunção total, continuaremos de
forma intransigente defendendo a saúde como bem público e coletivo que precisa
ser reapropriado pela humanidade como condição para sua sobrevivência. Que para
isso derrubemos, então, a doente sociedade do capital.

para a saúde pública brasileira, alterando, dessa forma, a Lei Complementar no 141, de 13 de
janeiro de 2012.(...) Num sentido organizativo, o MOVIMENTO NACIONAL EM DEFESA DA SAÚDE
PÚBLICA definiu por uma coordenação nacional inicial composta pelas representações da Ordem
dos Advogados do Brasil – OAB, Associação Médica Brasileira – AMB, Conselho Nacional de
Secretários Estaduais de Saúde – CONASS, Conselho Nacional de Secretarias Municipais de
Saúde – CONASEMS, Fórum Sindical dos Trabalhadores – FST, Força Sindical, Confederação
Nacional dos Trabalhadores em Saúde – CNTS, Federação Nacional dos Farmacêuticos –
FENAFAR, Pastoral da Saúde, Conselho Nacional de Saúde – CNS e Conselho Municipal de Saúde
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