Você está na página 1de 321

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Ciências Sociais


Faculdade de Serviço Social

Tatiana Brettas

Capital financeiro, fundo público e políticas sociais:


uma análise do lugar do gasto social no governo Lula

Rio de Janeiro
2013
Tatiana Brettas

Capital financeiro, fundo público e políticas sociais:


uma análise do lugar do gasto social no governo Lula

Tese, apresentada como requisito


parcial, para a obtenção do título de
Doutora ao Programa de Pós-
Graduação em Serviço Social, da
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de Concentração:
Trabalho e Política Social.

Orientadora: Profª. Dra. Elaine Rossetti Behring

Rio de Janeiro
2013
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/ BIBLIOTECA CCS/A

B845 Brettas, Tatiana


Capital financeiro, fundo público e políticas sociais : uma
análise do lugar do gasto social no governo Lula /
Tatiana Brettas. – 2013.
310 f.

Orientadora: Elaine Rossetti Behring.


Tese (doutorado) - Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Faculdade de Serviço Social.
. Bibliografia.

1. Finanças públicas – Brasil – Teses. 2. Orçamento – Brasil


– Teses. 3. Política social – Teses. 4. Brasil – Política
Econômica - Teses. 5. Brasil - Política e governo – 2003-2010 -
Teses. I. Behring, Elaine Rossetti. II. Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Faculdade de Serviço Social. III. Título.

CDU 336.12(81)

Autorizo apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese, desde que citada a
fonte.

_____________________________________ ___________________________
Assinatura
Tatiana Brettas

Capital financeiro, fundo público e políticas sociais:


uma análise do lugar do gasto social no governo Lula

Tese apresentada como requisito


parcial, para a obtenção do título de
Doutora, ao Programa de Pós-
Graduação em Serviço Social, da
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de Concentração:
Trabalho e Política Social.

Aprovada em: 2 de setembro de 2013.

Banca Examinadora

___________________________________________
Profª. Dra. Elaine Rossetti Behring (Orientadora)
Faculdade de Serviço Social - UERJ

___________________________________________
Profª. Dra. Silene de Moraes Freire
Faculdade de Serviço Social - UERJ

___________________________________________
Profª. Dra. Ivanete Salete Boschetti
Universidade de Brasília - UNB

___________________________________________
Profª. Dra. Sara Granemann
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

___________________________________________
Prof. Dr. Cézar Henrique Miranda Coelho Maranhão
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro
2013
DEDICATÓRIA

Com muito amor,


dedico este trabalho
à minha mãe, Teresa,
e ao meu pai II, Nelson (in memorian),
por todo o apoio e incentivo. Sempre!
AGRADECIMENTOS

O percurso de elaboração deste trabalho foi recheado de momentos intensos e de muito


aprendizado em diversos âmbitos da minha vida. Muitos passos foram dados e a
possibilidade de compartilhar conhecimento e experiências, sem dúvida, permitiu que este
caminho assumisse um caráter coletivo e inspirador. Neste momento, não poderia deixar de
mencionar as pessoas que foram fundamentais para que esta trajetória assumisse contornos
mais leves e, ao mesmo tempo, instigantes. Assim, gostaria de registrar meus
agradecimentos:

À minha Mãe, com quem venho estabelecendo laços a cada dia mais sólidos de amizade e
parceria, resgatando uma relação de identidade e respeito às diferenças, indispensáveis
para seguir firme nesta caminhada. Seu apoio, disponibilidade e incentivo foram uma fonte
essencial de energia para superar todos os desafios que apareceram.
Às minhas irmãs Ana e Flávia, com quem partilhei momentos revigorantes de
descontração.
Ao Castelo, que contribuiu intensamente para que parte destas elaborações fossem
produzidas de forma menos solitária. Seu carinho, incentivo e companheirismo se
combinaram a profícuos debates teórico-metodológicos e políticos e foram fundamentais
para as análises que aparecem neste trabalho. Ao mesmo tempo, nossa relação me permitiu
viver na pele a beleza da transformação de uma longa e especial amizade em um delicioso
amor.
Aos meus amigos queridos de longa data, que a distância nunca conseguiu separar:
Rodrigo Marcelino, companheiro para todas as horas, pelos debates teóricos partilhados e
pela fiel amizade; João Hallak, pelas acaloradas discussões e pelos dados tão prontamente
disponibilizados, que contribuíram para fundamentar os argumentos aqui apresentados;
Raphael Muller, pelas conversas intermináveis que, não raras vezes, nos fizeram varar
madrugadas; Vanessa Bezerra, amiga querida e responsável pela minha aproximação com
o Serviço Social.
Às companheiras e interlocutoras do GOPSS: Juliana, Tainá, Aline Miranda, Aline Abreu
e Sandra, pessoas com quem aprendi muito. Em especial, à Giselle, com quem estabeleci
uma relação que ultrapassou os muros da UERJ e me possibilitou dividir muitas alegrias e
angústias ao longo destes últimos anos.
À Luciana Cantalice, uma pessoa imprescindível na minha vida, pelo carinho e por tudo
mais. Ao Rodrigo Lima, amigo que a vida reaproximou por meio do doutorado, e à Maria
do Rosário.
Aos companheiros e companheiras do Nepem: Marcio, Victor, Fernanda e, em especial,
Sara Granemann, amiga com quem partilho instigantes debates.
À amiga e (ex)colega de departamento (além de orientadora na monografia!), Telma
Gurgel, pessoa das mais generosas e solidárias que tive o prazer de conhecer, e com quem
aprendi não somente do ponto de vista teórico e acadêmico, mas também pessoal, me
mostrando a importância da leveza e do bom humor para enfrentar os desafios cotidianos.
Às companheiras com quem trabalhei no Departamento de Serviço Social da UERN:
Mirla, Rivânia, Samya, Iana, Glaucia, Fernanda e Aione, com quem tive uma convivência
muito valorosa e enriquecedora.
Aos companheiros e companheiras de militância, com quem tenho tido um imenso
aprendizado e que muito me inspiram e fortalecem na luta por uma nova sociedade.
Destaco Larisse, Boing, Rafa, Mariana, Talles, Rogério e Valéria. Além de referências na
militância, são conquistas preciosas que ajudam a fazer a nossa vida mais especial.
À Janaiky, Gabi, Val e Marcela, pessoas hoje essenciais na minha vida.
À Ivanete Boschetti, Cézar Maranhão e Silene Freire, pelas contribuições dadas à minha
formação e por terem se disponibilizado a contribuir com o meu trabalho.
À Maria Inês Bravo, professora, amiga e companheira de militância, com quem pude
estabelecer uma relação de imenso carinho, aprendizado e parceria.
Ao Aloísio Teixeira (in memorian), grande mestre e incentivador que acompanhou minha
formação desde o mestrado e será sempre uma referência forte pela sua imensa
generosidade e simplicidade.
À Elaine Behring, orientadora e amiga, pela sua paciência e sensibilidade, em todos os
momentos. Sua solidariedade e compromisso com tudo o que faz é uma grande fonte de
inspiração.
Ao Evilásio Salvador, pelas conversas, sugestões e dúvidas tiradas e pelos dados
fornecidos.
Ao IPEA pelos dados divulgados, em especial, Jorge Abraão, por ter generosamente me
recebido e conversado sobre a metodologia desenvolvida pela instituição e Eduardo Zen,
por ter facilitado o acesso a alguns dos documentos utilizados como fonte de pesquisa.
À Capes, pelo apoio financeiro para a realização desta pesquisa.
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.
Não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela.
Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida.
Não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente,
os homens [e mulheres!] presentes,
a vida presente.

Carlos Drummond de Andrade


RESUMO

BRETTAS, Tatiana. Capital financeiro, fundo público e políticas sociais: uma análise do
lugar do gasto social no governo Lula. 2013. 319 f. Tese (Doutorado em Serviço Social) –
Faculdade de Serviço Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2013.

O orçamento constitui um instrumento imprescindível para avaliarmos as


prioridades de um governo e as disputas existentes entre as diferentes classes sociais no
que diz respeito à apropriação dos recursos do fundo público. Neste sentido, uma
aproximação cuidadosa acerca das particularidades que vêm assumindo a dinâmica de
acumulação capitalista, bem como das contradições que envolvem o processo de luta e
implementação das políticas sociais, parecem elementos que contribuem para nos ajudar a
entender de que forma esta disputa vem acontecendo. O objetivo deste trabalho é analisar o
lugar do gasto social no governo Lula. Para tanto, consideramos importante analisar os
principais elementos da dinâmica de acumulação capitalista tendo como referência a
constituição do capital financeiro e o processo de financeirização da economia; discutir a
relação entre divida pública, financeirização e crise do capital; apreender as tendências da
política social, buscando identificar sua configuração na atualidade; resgatar o processo de
formação do Brasil para pensar o governo Lula e a dinâmica da luta de classes na
atualidade; e analisar os gastos sociais do governo federal, tendo como base a metodologia
desenvolvida pelo IPEA, considerando o período de 2004 a 2011. Por entendermos os
gastos sociais como reflexo de um processo de correlação de forças que tem, na relação
entre capital e trabalho sua dimensão fundante, esta análise não pode ter um fim em si
mesma. Ao contrário, entender as particularidades da dinâmica de acumulação no tempo
presente é imprescindível para apreender os movimentos do capital e sua força para fazer
valer os seus interesses no enfrentamento às resistências impostas pela classe trabalhadora
e desta para lutar contra seus grilhões. A atuação do Estado só pode ser entendida em meio
a este terreno de luta de classes e suas decisões expressam o poder destas classes de impor
suas demandas, além de trazerem consigo o traço das heranças do passado, em especial os
vínculos de dependência e subalternidade aos interesses imperialistas. A ausência de
ruptura com o capital que marca a ascensão do Partido dos Trabalhadores ao governo
federal é permeado por contradições e a análise de seus resultados situa-se em uma série de
polêmicas, muitas das quais somente um maior distanciamento histórico permitirá avaliar.
Isto não significa que não seja possível empreender um esforço no sentido de identificar as
mudanças em curso e levantar as contradições, os limites e as possibilidades abertas pelos
mandatos do presidente Lula. De maneira geral, podemos dizer que não houve avanços
estruturais significativos neste governo e que a lógica da gestão dos recursos que prioriza o
pagamento da dívida pública permanece tendo sofrido alterações pontuais. Entretanto,
existem algumas diferenças na composição do gasto social. Estas estão mais atreladas ao
provimento de programas voltados para a população de baixa renda do que à melhoria
substantiva na garantia das políticas sociais universais. De qualquer forma, seu efeito sobre
a melhoria nas condições de vida e de acesso ao consumo de uma parcela da população
pode ser sentido.

Palavras-chave: Capital financeiro. Financeirização. Fundo público. Políticas sociais.


Gasto social.
ABSTRACT

BRETTAS, Tatiana. Financial capital, public fund and social policy: an analysis of social
spending in the Lula government. 2013. 319 f. Tese (Doutorado em Serviço Social) –
Faculdade de Serviço Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2013.

The budget is an essential tool for assessing the priorities of government and the
disputes between the different social classes with regard to the appropriation of funds from
the public fund. In this sense, a careful approach regarding the particularities that are
assuming the dynamics of capitalist accumulation, as well as the contradictions involved in
the process of struggle and implementation of social policies, elements that seem to
contribute to help us understand how this dispute has been going . The objective of this
work is to analyze the place of social spending in the Lula government. Therefore, we
consider it important to analyze the main elements of the dynamics of capitalist
accumulation with reference to the creation of financial capital and the process of
financialization of the economy, discussing the relationship between public debt, crisis and
financialisation of capital; grasp the trends of social policy, seeking identify its
configuration today; rescue training process to think of Brazil Lula and the dynamics of
class struggle today, and analyze the social spending of the federal government, based on
the methodology developed by IPEA, considering the period 2004 to 2011. Because we
understand social spending as a result of a process of correlation of forces that have, in the
relationship between capital and labor founding its size, this analysis can not be an end in
itself. Rather, to understand the peculiarities of the dynamics of accumulation at the
present time it is essential to grasp the movement of capital and its power to enforce their
interests in dealing with resistance imposed by the working class and thus to fight against
his shackles. The role of the state can only be understood in the midst of this plot of class
struggle and their decisions express the power of these classes to impose their demands,
and bring along the trace of the legacies of the past, especially the bonds of dependency
and subordination to imperialist interests. The absence of a break with the capital that
marks the rise of the Labor Party to the federal government is permeated by contradictions
and analysis of its results lies in a series of controversies, many of which only one will
assess greater historical distance. This does not mean it is not possible to undertake an
effort to identify the ongoing changes and raise the contradictions, limits and the
possibilities offered by the mandates of President Lula. In general, we can say that there
was no significant structural advances in this government and that the logic of resource
management that prioritizes the payment of public debt remains having undergone specific
changes. However, there are some differences in the composition of social spending. These
are more linked to the provision of programs for low-income people than for substantive
improvement in assuring universal social policies. Anyway, its effect on improving the
living conditions and access to the consumption of a portion of the population can be felt.

Keywords: Financial Capital. Financialization. Public fund. Social policies. Social


spending.
RESUMÉE

BRETTAS, Tatiana. Le capital financier, fonds public et la politique sociale: une analyse
des dépenses sociales dans le gouvernement Lula. 2013. 319 f. Tese (Doutorado em
Serviço Social) – Faculdade de Serviço Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2013.

Le budget est un outil essentiel pour évaluer les priorités du gouvernement et les
conflits entre les différentes classes sociales en ce qui concerne l'affectation des crédits du
fonds public. En ce sens, une approche prudente en ce qui concerne les particularités qui
sont en supposant que la dynamique de l'accumulation capitaliste, ainsi que les
contradictions impliquées dans le processus de lutte et de mise en œuvre des politiques
sociales, des éléments qui semblent contribuer à nous aider à comprendre comment ce
conflit dure depuis . L'objectif de ce travail est d'analyser la place des dépenses sociales
dans le gouvernement Lula. Par conséquent, nous considérons qu'il est important d'analyser
les principaux éléments de la dynamique de l'accumulation capitaliste en référence à la
création du capital financier et le processus de financiarisation de l'économie, de discuter
de la relation entre la dette publique, la crise et la financiarisation du capital; saisir les
tendances de la politique sociale, à la recherche identifier sa configuration aujourd'hui, le
processus de formation de sauvetage à penser du Brésil Lula et la dynamique de la lutte de
classe aujourd'hui, et d'analyser les dépenses sociales du gouvernement fédéral, basée sur
la méthodologie développée par l'IPEA, compte tenu de la période de 2004 à 2011. Parce
que nous comprenons les dépenses sociales à la suite d'un processus de corrélation des
forces qui ont, dans la relation entre le capital et le travail fonder sa taille, cette analyse ne
peut pas être une fin en soi. Au contraire, pour comprendre les particularités de la
dynamique d'accumulation à l'heure actuelle, il est essentiel de saisir les mouvements de
capitaux et de son pouvoir pour faire valoir leurs intérêts face à la résistance imposée par la
classe ouvrière et donc de lutter contre ses entraves. Le rôle de l'Etat ne peut être compris
dans le milieu de ce terrain de la lutte de classe et leurs décisions expriment la puissance de
ces classes d'imposer leurs exigences, et apporter le long de la trace de l'héritage du passé,
en particulier les liens de dépendance et de subordination à intérêts impérialistes. L'absence
d'une rupture avec le capital qui marque la montée du Parti travailliste au gouvernement
fédéral est imprégné par les contradictions et l'analyse de ses résultats réside dans une série
de controverses, dont beaucoup ne l'on va évaluer plus grande distance historique. Cela ne
signifie pas qu'il n'est pas possible d'entreprendre un effort pour identifier les changements
en cours et à augmenter les contradictions, les limites et les possibilités offertes par les
mandats du président Lula. En général, nous pouvons dire qu'il n'y avait aucun progrès
structurels importants dans ce gouvernement et que la logique de la gestion des ressources
qui privilégie le paiement de la dette publique reste ayant subi des modifications
spécifiques. Cependant, il ya des différences dans la composition des dépenses sociales. Ce
sont plus liés à la prestation de programmes destinés aux personnes à faible revenu que
pour l'amélioration de fond en assurant politiques sociales universelles. Quoi qu'il en soit,
son effet sur l'amélioration des conditions de vie et l'accès à la consommation d'une partie
de la population peut se faire sentir.

Mots-clés: capital financier. La financiarisation. Fonds publics. Les politiques sociales. Les
dépenses sociales.
LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 – Detentores da Dívida Pública Mobiliária Federal Interna (DPMFi) em


dezembro de 2011 ............................................................................................... 86

Gráfico 2 – Taxa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) entre os anos 1991 e 2000
(em %) ............................................................................................................... 167

Gráfico 3 – Valor das empresas listadas na Bolsa de Valores de São Paulo em US$
(1995/2011) ....................................................................................................... 184

Gráfico 4 – Evolução dos ativos financeiros das empresas fechadas de previdência


complementar por setor instituidor em R$ milhões (2003/2010) ..................... 185

Gráfico 5 – Alocação dos ativos dos fundos de pensão no Brasil (2003-2010) ..................... 194

Gráfico 6 – Crescimento do PIB de 1995 a 2011 (%) ............................................................ 267

Gráfico 7 – Evolução da taxa Selic de 2003 a 2011 ............................................................... 268

Gráfico 8 – Taxa de desemprego de 1995 a 2011 (%) ........................................................... 273

Gráfico 9 – Distribuição dos reajustes salariais em comparação com o INPC/IBGE entre


1996 e 2011 ....................................................................................................... 275

Gráfico 10 – Participação dos componentes do PIB pela ótica da renda no Brasil


(2005/2009) ..................................................................................................... 278

Gráfico 11 – Trajetória do gasto social federal de 1995 a 2010 ............................................. 283

Gráfico 12 – Taxas de crescimento real do gasto social federal e do PIB de 1995 a 2010 .... 285
LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Dívida total e gastos com o pagamento de juros em 2010 e 2011 (%) ................... 88

Tabela 2 – Desembolsos do BNDES (em bilhões de reais) ................................................... 191

Tabela 3 – Desembolso anual por porte de empresa (valores relativos) ................................ 192

Tabela 4 – Estimativa da carga tributária brasileira, por base de incidência, em 2009 .......... 227

Tabela 5 – Participação das despesas financeiras no Orçamento Fiscal e da Seguridade


Social (%) ............................................................................................................ 270

Tabela 6 – Nível de execução das Ações Prioritárias (2009-2011) ........................................ 292


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABRAPP Associação Brasileira de Previdência Privada


Açominas Siderúrgica Aços Finos de Minas Gerais
ANL Aliança Nacional Libertadora
BACEN Banco Central
BB Banco do Brasil
BGU Balanço Geral da União
BID Banco Interamericano do Desenvolvimento
BIRD Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento
BNDE Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
BNDESPar BNDES Participações S.A.
BNH Banco Nacional de Habitação
BOVESPA Bolsa de Valores de São Paulo
BPC Benefício de Prestação Continuada
CACEX Carteira de Câmbio e Comércio Exterior
CAGED Cadastro Geral de Empregados
CAMOB Caixa de Mobilização Bancária
CARED Carteiras de Redesconto
CEF Caixa Econômica Federal
CF88 Constituição Federal de 1988
CGT Central Geral dos Trabalhadores
CMN Conselho Monetário Nacional
CONSED Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Educação
COSIPA Companhia Siderúrgica Paulista
CPMF Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira
CSN Companhia Siderúrgica Nacional
CUT Central Única dos Trabalhadores
CVRD Companhia Vale do Rio Doce
DIEESE Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos
DIT Divisão Internacional do Trabalho
DLSP Dívida Líquida do Setor Público
DRU Desvinculação de Receitas da União
EITA Cooperativa Educação, Informação e Tecnologia para a Autogestão
EOB Excedente Operacional Bruto
EUA Estados Unidos da América
FAR Fundo de Arrendamento Residencial
FAT Fundo de Amparo ao Trabalhador
FDS Fundo de Desenvolvimento Social
FED Federal Reserve Board
FEF Fundo de Estabilização Fiscal
FGTS Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
FHC Fernando Henrique Cardoso
FIES Financiamento Estudantil
FIESP Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
FMI Fundo Monetário Internacional
FSE Fundo Social de Emergência
FUNDEB Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização
dos Profissionais da Educação
GND Classificação por grupos de natureza da despesa
GPS Gasto Público Social
GSF Gasto Social Federal
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IBPT Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário
ICMS Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços
IDH Índice de Desenvolvimento Humano
IED Investimento Externo Direto
IEJ Imposto para Equalização dos Juros
ILPI Impostos Líquidos de Subsídios sobre a Produção e Importação
INESC Instituto de Estudos Sócio-Econômicos
INPC Índice Nacional de Preços ao Consumidor
IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
IPI Imposto sobre Produtos Industrializados
LDO Lei de Diretrizes Orçamentárias
LOA Lei Orçamentária Anual
LRF Lei de Responsabilidade Fiscal
MDB Movimento Democrático Brasileiro
MDS Ministério de Desenvolvimento Social
MPME Micro, pequenas e médias empresas
MPS Ministério da Previdência Social
MST Movimento de Trabalhadores sem Terra
MTO Manual Técnico do Orçamento
OCDE Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico
OIT Organização Internacional do Trabalho
OMC Organização Mundial do Comércio
ONG Organização Não-Governamental
OPEP Organização dos Países Exportadores de Petróleo
ORTN Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional
PAC Programa de aceleração do crescimento
PAEG Plano de Ação Econômica do Governo
PASEP Programa de Formação de Patrimônio do Servidor Público
PBF Programa Bolsa Família
PDE Plano de desenvolvimento da educação
PDP Política de Desenvolvimento Produtivo
PED Pesquisa de Emprego e Desemprego
PIB Produto Interno Bruto
PIS Plano de Integração Social
PITCE Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior
PME Pesquisa Mensal de Emprego
PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
PND Programa Nacional de Desestatização
PNJ Política Nacional de Juventude
POLOP Organização Revolucionária Marxista – Política Operária
PPA Plano Plurianual
PROER Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema
Financeiro Nacional
PRONASCI Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania
PROUNI Programa Universidade para Todos
PSDB Partido da Social Democracia Brasileira
PT Partido dos Trabalhadores
REUNI Reestruturação e Expansão das Universidades Federais
RMB Rendimento Misto Bruto
AS Sociedade Anônima
SEADE Sistema Estadual de Análise de dados/SP
SELIC Sistema Especial de Liquidação e de Custódia
SENAC Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial
SENAI Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
SENAR Serviço Nacional de Aprendizagem Rural
SENAT Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte
SESC Serviço Social do Comércio
SESC Serviço Social do Comércio
SESCOOP Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo
SESI Serviço Social da Indústria
SEST Serviço Social do Transporte
SFN Sistema Financeiro Nacional
SINDIFISCO Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita Federal
SUDAM Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia
SUDENE Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste
SUMOC Superintendência da Moeda e do Crédito
TCU Tribunal de Contas da União
TD Texto de Discussão
TJLP Taxa de Juros de Longo Prazo
UBS Unidades Básicas de Saúde
UNDIME União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação
UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 17
1 A DINÂMICA DE ACUMULAÇÃO CAPITALISTA NA ERA DO CAPITAL
FINANCEIRIZADO .................................................................................................. 30
1.1 Notas sobre o capital portador de juros em Marx ................................................... 32
1.1.1 A importância da dívida pública para a constituição do capitalista industrial ............. 33
1.1.2 O capital portador de juros ............................................................................................ 38
1.2 O fundo público ........................................................................................................... 50
1.3 O capital financeiro e a marca da financeirização no processo de
desenvolvimento capitalista ....................................................................................... 58
1.4 Financeirização, crise do capital e tendências das políticas sociais ........................ 82
1.4.1 Apontamentos sobre a reconfiguração das políticas sociais ......................................... 90
2 ESTADO E CAPITAL FINANCEIRO NO BRASIL ............................................ 103
2.1 As bases do desenvolvimento capitalista no Brasil .................................................. 103
2.1.1 A expansão industrial iniciada nos anos 1930 ............................................................. 107
2.1.2 A chegada do capitalismo monopolista ....................................................................... 118
2.2 Da reforma bancária nos anos 1960 à crise do endividamento nos 1980 ............. 125
2.2.1 A efervescência política dos anos 1980 e a Constituinte............................................. 147
2.3 Neoliberalismo e a constituição do capital financeiro brasileiro........................... 153
2.3.1 O neoliberalismo no Brasil .......................................................................................... 157
2.3.2 As alterações na estrutura produtiva e sua relação com as finanças ........................... 175
3 ESTADO, ORÇAMENTO PÚBLICO E GASTO SOCIAL NO BRASIL (2004-
2011) ........................................................................................................................... 188
3.1 Considerações de ordem teórico-metodológica....................................................... 203
3.1.1 Questão social, luta de classes, direitos e políticas sociais .......................................... 205
3.1.2 A necessária articulação entre financiamento e gastos no debate sobre as políticas
sociais ......................................................................................................................... 220
3.2.2 Percursos metodológicos para a análise dos gastos federais ...................................... 239
3.2 O Plano Plurianual (PPA) e as políticas sociais (2004/2011) ................................. 254
3.2.1 Os PPA (2004-2007 e 2008-2011) do governo Lula e a definição de prioridades ...... 254
3.2.2 O gasto público e as políticas sociais .......................................................................... 265
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 295
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 308
17

INTRODUÇÃO

Analisar instante por instante,


perceber o núcleo de cada
coisa feita de tempo ou espaço.
Possuir cada momento...
É a vida? Mesmo assim ela me escaparia.
Mas o sonho é mais completo que a realidade...
Liberdade é pouco.
O que queremos ainda não tem nome.

Clarisse Lispector

A fase monopolista de desenvolvimento do capital é permeada por uma série de


alterações na organização da produção, com desdobramentos em diversos aspectos da vida
social. Estas mudanças, à medida que se fortalecem, ampliam os espaços de controle do
capital e intensificam as formas de exploração e expropriação, privilegiando o capital de
caráter rentista e redimensionando o Estado e suas esferas de atuação. Entendemos que as
mudanças na repartição do fundo público estão plenamente conectadas a este movimento
do sistema capitalista e, mais que isso, têm uma importância fundamental para agravar este
quadro.
Como afirma Ellen Wood, “o segredo fundamental da produção capitalista revelado
por Marx – segredo que a economia política ocultou sistematicamente [...] – refere-se às
relações sociais e à disposição do poder que se estabelecem entre os operários e o
capitalista [...]” (2003, p. 28). Neste sentido, podemos afirmar que a discussão no campo
da produção está totalmente vinculada à forma como se configuram as relações de poder,
de modo que tentar entender uma sem articular à outra, pode fazer com que esta análise
caia na superficialidade.
Assim, uma avaliação mais detalhada acerca da dinâmica do fundo público é
fundamental, não apenas no sentido de entender sua composição, mas também de
identificar o destino destes recursos e o seu significado para a luta de classes. Para tanto, é
preciso ter em mente que, dada a regressividade na forma de arrecadação tributária
brasileira, quando falamos em recursos do fundo público, estamos falando em recursos que
foram arrecadados mediante o pagamento de impostos por parte, fundamentalmente, da
classe trabalhadora.
18

A alocação de boa parte destes recursos nos circuitos que vão alimentar e ampliar
as possibilidades de rentabilidade financeira significa uma transferência de recursos
oriundos do trabalho para as mãos da burguesia financeira – nacional e internacional. Do
mesmo modo, as decisões que vêm sendo tomadas na condução da política econômica,
dentre as quais destacamos os juros altos e o superávit primário, caminham também na
direção de favorecimento deste capital rentista e expressam as dificuldades que os
trabalhadores vêm tendo em canalizar para si os recursos do fundo público.
O orçamento constitui um instrumento imprescindível para avaliarmos as
prioridades de um governo e as disputas existentes entre as diferentes classes sociais no
que diz respeito à apropriação dos recursos do fundo público. Neste sentido, uma
aproximação cuidadosa acerca das particularidades que vêm assumindo a dinâmica de
acumulação capitalista, bem como das contradições que envolvem o processo de luta e
implementação das políticas sociais, parecem elementos que contribuem para nos ajudar a
entender de que forma esta disputa vem acontecendo.
O objetivo deste trabalho é analisar o lugar do gasto social no período de 2004 a
2011. Para tanto, consideramos importante investigar os principais elementos da dinâmica
de acumulação capitalista tendo como referência a constituição do capital financeiro e o
processo de financeirização da economia; discutir a relação entre dívida pública,
financeirização e crise do capital; apreender as tendências da política social, buscando
identificar sua configuração na atualidade; resgatar o processo de formação do Brasil para
pensar o governo Lula e a dinâmica da luta de classes na atualidade; e analisar os gastos
sociais do governo federal, tendo como base a metodologia desenvolvida pelo IPEA,
considerando o período analisado.
Consideramos, portanto, ser necessário reconstituir o processo de reação burguesa à
crise internacional que se inicia no final dos anos de 1960, inserindo de forma mais
minuciosa as questões referentes ao papel do Estado e à gestão do fundo público. Em
outras palavras, mais do que identificar a intensificação dos fluxos financeiros como forma
de garantir a rentabilidade do capital, as alterações no mundo da produção e do trabalho, a
crise do Estado de Bem Estar Social e a ascensão do neoliberalismo - e os elos de ligação
existentes entre todos estes processos de mudança - torna-se indispensável pensar como o
orçamento público vem sendo planejado e executado, para entender a conjuntura atual.
Neste sentido, buscaremos perceber de que forma vem se dando a repartição do
fundo público no Brasil, destacando o volume de recursos direcionados para as políticas
19

sociais e o volume despendido com a dívida pública. Para tanto, faremos uma discussão
acerca dos elementos constitutivos do fundo público no Brasil e a forte marca da
regressividade na tributação, bem como analisaremos o caráter político do orçamento
público. Acreditamos que as medidas, adotadas no Brasil, vão na mesma direção de um
processo de mercantilização das políticas públicas e integração da periferia capitalista no
“mundo global das finanças”, como forma de garantir crescentes taxas de retorno ao
grande capital nacional e internacional. Ainda assim, vêm sendo tomadas medidas que
proporcionaram alguma melhora nas condições de vida da classe trabalhadora. Deste
modo, não seria possível uma aproximação com nosso objeto, sem retomar o movimento
do modo de produção capitalista nas últimas décadas e fazer uma fundamentação teórica
acerca das alterações econômicas, políticas e sociais vividas na contemporaneidade.
O final dos anos 1960 e início dos 1970 marcam um período em que a crise
estrutural vivenciada é enfrentada, dentre outras maneiras, pela intensificação dos fluxos
financeiros, principalmente nos países de capitalismo avançado. Estes fluxos passam a
funcionar como o espaço privilegiado na garantia da rentabilidade capitalista, de tal
maneira que muitos autores chegam a apontar um total descolamento entre produção e
finanças. Alguns dados concretos ajudam a fundamentar esta ilusão. Para termos uma
ideia, o total de ativos negociados representavam 120% da riqueza total produzida em
1980, e passaram para 380% em 20081. Acreditamos, entretanto, na impossibilidade de um
descolamento total, dado que a produção é o espaço por excelência da produção de valor.
Isto não significa que uma alteração quantitativa desta magnitude não tenha
desdobramentos qualitativos sobre a forma como se produz e distribui a riqueza social.
O processo de reestruturação produtiva observado nas últimas décadas do século
passado, estabeleceu uma mudança no padrão de acumulação que trouxe uma nova
configuração nas relações entre o capital e o trabalho, com vistas a intensificar as formas
de exploração do primeiro sobre o segundo. O aumento nas bases de extração de mais valia
funcionou como o recurso para viabilizar o aumento da punção da esfera financeira sobre
os valores gerados na produção, ampliando as contradições na dinâmica de acumulação
capitalista, levando a sucessivas crises de acumulação.
O Estado também sofreu alterações. O fundo público, que já possuía um lugar
estrutural na dinâmica de acumulação desde o pós-guerra, passou a ter na dívida pública

1
Dados divulgados pelo Brasil de Fato – Ano 7 – Número 339 – Julho/2009, p. 2.
20

uma das principais formas de transferência de recursos para o grande capital. Este
mecanismo transforma-se em uma importante ferramenta do Estado para garantir as
condições de funcionamento do sistema e alimentar a rentabilidade no circuito das
finanças. Neste sentido, o gasto com as políticas sociais, o financiamento ao investimento e
a participação direta do Estado na produção sofrem reconfigurações com vistas a liberar
recursos para alimentar a rentabilidade do capital portador de juros.
A busca por ampliar as fronteiras de acumulação avança sobre o meio ambiente, as
políticas sociais, o setor de serviços e sobre as economias dependentes. O final dos anos
1980 e 1990 marcam um aumento da ofensiva sobre diversos países, dentre eles os da
América Latina, com vistas a transformá-los em espaços mais atrativos ao capital fictício e
ao investimento externo direto (IED). Os países imperialistas buscam, desta maneira,
absorver os excedentes gerados fora de suas fronteiras e contrarrestar a tendência
decrescente na taxa de lucro.
No caso específico do Brasil, o processo de redemocratização é permeado por uma
intensificação da luta de classes que tem na vitória dos interesses capitalistas –
representada pela eleição de Fernando Collor de Mello em 1989 – um momento de refluxo
das lutas protagonizadas pela classe trabalhadora. Este contexto possibilitou um
fortalecimento das ideias neoliberais no país, consubstanciadas a este movimento mais
geral do grande capital internacional.
Embora a intensificação dos fluxos financeiros tenha se dado no país, de forma
mais visível, somente nos anos 1990, período também de crescimento exponencial da
dívida pública interna, suas raízes encontram-se nos anos 1960. As medidas
governamentais de incentivo à constituição de um mercado de capitais fizeram parte de
uma tentativa de buscar fontes não inflacionárias de estímulo ao crescimento econômico. A
solução encontrada passou pelo estímulo às empresas a abrirem seu capital, o que também
contribuiu para um aumento da concentração em diversos setores.
A sociedade anônima é uma forma de relação de propriedade que estimula o
processo de monopolização da economia por permitir o exercício do controle sobre o
capital sem a necessidade de se ter a propriedade de cem porcento deste. As decisões, em
última instância, ficam a cargo do acionista majoritário, o qual pode chegar a deter menos
da metade do total das ações. Fica mais fácil, assim, com um menor capital disponível,
determinar os rumos de um maior capital alheio, ampliando o potencial de controle sobre o
processo de produção no seu conjunto.
21

Este fato favoreceu, nos países imperialistas, a constituição do capital financeiro, ou


seja, da junção do grande capital industrial com o grande capital bancário, ainda no início
do século 20, como analisa Hilferding em sua obra de 1910, acerca da realidade alemã.
Atualmente, com a complexificação e diversificação das relações, nos parece legítimo
ampliar esta definição, para que ela não se restrinja apenas aos bancos, mas também
cooperativas de crédito, seguradoras, fundos de investimentos, fundos de pensão, dentre
outras instituições financeiras. De qualquer modo, o fato é que na etapa monopolista de
desenvolvimento capitalista, os processos de concentração e centralização vão
contribuindo para que o capital financeiro seja a principal forma de ser do grande capital.
No Brasil, entretanto, ao que tudo indica, a consolidação da etapa dos monopólios
não veio acompanhada de um grau de centralização a ponto de unificar, de forma
significativa, produção e finanças sob dominância desta última, pelo menos até o período
recente. Mesmo contando com a atuação do capital financeiro internacional, a constituição
do mercado de capitais não parece ter viabilizado este imbricamento endogenamente. Em
outras palavras, o ingresso na fase monopolista parece não ter proporcionado uma
articulação generalizada entre produção nacional e as instituições financeiras nacionais.
Podemos observar uma concentração na produção e também nas instituições financeiras
nacionais, mas não uma centralização nas mãos do mesmo proprietário que abarcasse estas
duas esferas.
Nos anos 1990, com o processo de privatizações, bem como de liberalização
comercial e financeira, houve uma reorganização da estrutura produtiva no país. O
aumento da fragilidade das empresas nacionais levou a uma desnacionalização e aumento
da concentração, com desdobramentos sobre o nível de emprego e o crescimento
econômico. A venda das empresas estatais contou inicialmente com uma participação
significativa das instituições financeiras nacionais, mas estas, em sua maioria, revenderam
posteriormente as posições ocupadas, de modo que parece não ter havido a consolidação de
um atrelamento destas com o capital produtivo.
Nossa hipótese é de que somente nos anos 2000 começa a ganhar força um
processo endógeno de constituição do capital financeiro, por meio da atuação em especial
dos fundos de pensão e do BNDES. Os primeiros, se já tiveram uma participação digna de
nota durante as privatizações, depois de maturados os resultados das “reformas” da
Previdência (1998 e 2003), passam a ter suas carteiras de investimentos substancialmente
aumentadas e diversificadas. Quanto ao segundo, a reorientação de suas atividades,
22

promovida pelos governos do Partido dos Trabalhadores, envolveu um aumento de seus


desembolsos, os quais quase quadruplicaram do período de 2003 a 2009. Este fato o
transformou em uma importante engrenagem do modelo de desenvolvimento adotado,
voltada para o fomento de investimentos por meio da concessão de empréstimos
bilionários e da participação acionária em diversas empresas.
Estaríamos diante, portanto, de um processo de constituição endógena do capital
financeiro por uma via não clássica, na qual as instituições financeiras clássicas teriam uma
participação apenas residual e que contaria com a participação ativa do Estado e de
instituições que são fortemente influenciadas por eles, como os fundos de pensão. Os
desdobramentos desta nova dinâmica precisariam de estudos mais aprofundados, mas de
início, podemos identificar que este fato possui efeitos sobre a forma como os recursos do
fundo público são apropriados.
Se por um lado a postura de fomento ao investimento, propiciada em grande
medida pela atuação do BNDES, vem contribuindo para estimular o crescimento
econômico, por outro, representa o deslocamento de recursos públicos para o grande
capital e, portanto, para intensificar as formas de exploração da classe trabalhadora. Ao
mesmo tempo, boa parte destes recursos vem sendo obtida por meio do endividamento, o
que nos coloca diante de uma outra questão. Na medida em que esta postura se estabelece
sem uma ruptura com a política econômica adotada pelo modelo vigente nos anos 1990,
esta se combina a um vultoso repasse de recursos para alimentar o capital portador de
juros, expresso na política de gestão da dívida pública.
O processo de financeirização nas economias dependentes é fortemente marcado
pela centralidade da dívida pública, tendo o mercado de capitais um papel menor do que o
presente nos países de capitalismo avançado. Este lugar da dívida pública torna a mudança
na política econômica tão mais difícil quanto necessária para promover mudanças
estruturais voltadas para beneficiar a classe trabalhadora. A sangria de recursos destinados
para este fim compromete sensivelmente as possibilidades abertas pelo gasto social do
governo federal. Além disso, ao consolidar a dinâmica da financeirização, estimula o
espraiamento desta lógica para outros setores, dentre eles, as políticas sociais, por meio da
monetarização típica dos programas de transferência de renda.
O governo Lula viveu, deste modo, uma tensão estabelecida pela manutenção da
política econômica, acompanhada da continuidade na preocupação com a responsabilidade
fiscal, e sua intenção em promover um novo padrão de desenvolvimento para o país. Em
23

outras palavras, a política de valorização do salário mínimo, o aumento na média das taxas
de crescimento e a adoção de alguns programas sociais voltados para reduzir a pobreza
produziram um efeito, em alguma medida, redistributivo, o que garantiu ao governo Lula
um forte apoio popular. Entretanto, as possibilidades de avanço nestas políticas esbarram
nos elementos de continuidade em relação ao governo anterior e o impedem de promover
alterações efetivamente estruturais para romper com o modelo neoliberal.
A análise dos gastos sociais deve ser feita em meio a este contexto e aponta para a
existência de uma preocupação em utilizá-los como mecanismo para ampliação do
consumo interno e como elemento de contenção dos efeitos das crises econômicas. Este
fato produziu efeitos sobre a qualidade de vida da classe trabalhadora, em especial a mais
pauperizada. Encontrou limites, entretanto, dentre outras coisas, nas restrições
orçamentárias provocadas pela política de gestão da dívida, que seguiu promovendo uma
transferência de recursos das políticas sociais para alimentar o capital portador de juros.
Esta dinâmica, contraditória e complexa, envolve a necessidade de apreensão de um
conjunto de categorias teórico-metodológicas que vêm sendo assimiladas ao longo de
nossa trajetória acadêmica e profissional. Na verdade, o estudo desenvolvido na
monografia de graduação – apresentada como requisito de conclusão do curso de
Economia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) – sobre as mudanças
contemporâneas no mundo do trabalho, consistiu em uma primeira aproximação com a
obra teórica de Marx e da tradição marxista. Neste momento, percebemos a importância de
buscar apreender a realidade considerando o processo de luta de classes e a dinâmica
contraditória que envolve a produção e apropriação de riqueza nos marcos do capital.
Na dissertação de mestrado, desenvolvida no curso de Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o debate travado para discutir a
financeirização do capital foi o pano de fundo para um estudo das privatizações no Brasil e
as alterações que vieram acompanhadas ao processo de estabilização monetária. Fizemos
uma análise político-econômica do Plano Real para perceber as alterações na relação entre
o setor produtivo e financeiro no Brasil durante o governo FHC. Este trabalho nos chamou
a atenção para a magnitude dos desdobramentos causados pelas alterações em curso na
dinâmica de acumulação global e nos instigou a aprofundar a discussão acerca do fundo
público e o papel da dívida pública neste processo.
A opção pelo Serviço Social deveu-se à certeza da contribuição que esta
interlocução permitiria, no sentido de propiciar o aprofundamento no debate pautado na
24

tradição marxista. Esta troca de conhecimento nos possibilitou avançar na análise da


estrutura produtiva, articulando-a à configuração do Estado e das políticas sociais, tendo
como pano de fundo o entendimento das determinações necessárias à compreensão da luta
de classes e das possibilidades de enfrentamento ao capital.
A inserção no curso de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro viabilizou a participação em dois
grupos de pesquisa, um deles na própria UERJ e o outro na Universidade Federal do Rio
de Janeiro. O primeiro, Grupo de Estudos sobre Orçamento Público e Seguridade Social
(GOPSS/UERJ), está voltado para a discussão do fundo público e do orçamento, e o
segundo, o Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas (NEPEM/UFRJ), dedicado à análise
de algumas categorias usadas para fundamentar nossa discussão, tais como capital
financeiro, capital portador de juros, dívida pública, dentre outras. Este nos parece ser o
grande pano de fundo para o entendimento da dinâmica atual de desenvolvimento
capitalista e o eixo articulador das análises político-econômicas que perpassam o debate
sobre o gasto social.
A combinação das temáticas abordadas nestes dois grupos, nos parece ser a base de
sustentação da nossa argumentação. Em outras palavras, acreditamos que o debate sobre o
fundo público e, portanto, sobre os gastos federais, não pode ser visto como um debate
puramente técnico. Ao contrário, ele precisa estar situado no conjunto de relações sociais e
de produção que lhe dão sustentação. Investigar as mudanças na dinâmica de acumulação
inerente ao processo de financeirização e a atual correlação de forças entre as classes
fundamentais da sociedade, será o caminho perseguido para atingir os objetivos desta
pesquisa.
Para o Serviço Social, especificamente, o debate sobre o fundo público nos parece
pertinente dada a pouca produção acerca desta temática nas elaborações teóricas da
categoria. Apesar de observarmos um considerável acúmulo nesta área, as produções
encontram-se concentradas em algumas universidades e foram pouco absorvidas pelo
conjunto da categoria. Acreditamos na necessidade de expansão e difusão destes estudos,
tendo em vista a importância que o conhecimento acerca do financiamento das políticas
sociais pode trazer para o aprofundamento das discussões pertinentes ao Serviço Social.
Considerando as possibilidades de contribuição que esta categoria profissional pode
dar no campo das políticas sociais, torna-se necessária uma maior fundamentação acerca
das polêmicas que giram em torno do gasto social. A apropriação deste debate retorna para
25

o Serviço Social por meio da qualificação da intervenção profissional e do fortalecimento


desta como área de conhecimento articulada ao curso. Neste sentido, à medida que o
Serviço Social se apropria das discussões em torno do orçamento, instrumentaliza-se para
ocupar e ampliar o campo de atuação voltado para elaboração, implementação e
acompanhamento das políticas sociais.
Estes conhecimentos também têm o potencial de contribuir na luta pela ampliação
destas políticas, tendo em vista que tanto podem fortalecer uma militância em organizações
coletivas (da categoria ou para além dela), quanto a atuação profissional no campo, por
exemplo, das assessorias a profissionais e a movimentos sociais. Este tipo de intervenção
possibilitado pela assessoria, ainda que pouco difundida e visibilizada entre os
profissionais de Serviço Social, precisa ser ampliada, de modo que “cabe na atualidade,
fazer e registrar essa contribuição como parte das suas competências profissionais,
conforme está expresso na lei que regulamenta a profissão” (BRAVO ; MATOS, 2010, p.
147, grifo dos autores).
A preocupação com o fortalecimento de movimentos sociais autônomos e
combativos é o que oxigena nossa proposta de pesquisa. Acreditamos que o esforço nesta
direção pode contribuir para fomentar debates e análises que apontem para a necessidade
de resistência às mudanças em curso, bem como para a construção de uma nova sociedade
como um imperativo para que possamos ter uma sociabilidade efetivamente crítica e
libertária.
Gostaríamos de ressaltar, ainda, o recorte temporal proposto pelo estudo. Investigar
as mudanças na condução das políticas sociais implementadas pelo Governo Lula parece-
nos um desafio que precisa ser enfrentado. A complexidade que assumiu o processo de luta
de classes no Brasil, com a ascensão do ex-sindicalista Luis Inácio Lula da Silva à
presidência da República, acabou acirrando algumas contradições cujos desdobramentos
precisam de maior aprofundamento. Entendê-las melhor nos parece indispensável para
enfrentarmos os desafios e fortalecermos um processo de acúmulo de forças no sentido da
garantia dos interesses da classe trabalhadora.
O caminho percorrido, ao longo do desenvolvimento desta pesquisa, envolveu o
levantamento bibliográfico e documental acerca do tema proposto como forma de subsidiar
a análise que empreendemos. Neste sentido, nossa preocupação esteve centrada na
necessidade de articular um duplo contexto de fatos:
26

[...] o contexto da realidade, no qual os fatos existem originária e


primordialmente, e o contexto da teoria, em que os fatos são, em um segundo
tempo, mediatamente ordenados, depois de terem sido precedentemente
arrancados do contexto originário do real. [...] O homem não pode conhecer o
contexto do real a não ser arrancando os fatos do contexto, isolando-os e
tornando-os relativamente independentes. Eis aqui o fundamento de todo o
conhecimento: a cisão do todo. Todo o conhecimento é uma oscilação dialética
[...] entre os fatos e o contexto (totalidade), cujo centro ativamente mediador
é o método de investigação (KOSIK, 1976, p. 48, grifo nosso).

Nossa perseguição aos elementos constitutivos do fundo público e sua repartição


em uma sociedade de classes vem nos trazendo uma série de desafios. Para o
desenvolvimento deste estudo entendemos que foi importante, em um primeiro momento,
fazer um levantamento do gasto social federal nos anos de 2004 a 2011. Levantamos não
apenas o total gasto em termos absolutos, mas sua proporção em relação ao PIB e o gasto
per capta, para que fosse possível considerar sua dinâmica tendo em vista o crescimento
populacional.
Este período foi definido por se referir aos dois Planos Plurianuais elaborados pelo
Governo Lula e vai do segundo ano de seu segundo mandato (2004) até o primeiro ano do
mandato de sua sucessora (2011), a presidenta Dilma Rousseff. Nossa preocupação em
trazer a discussão do PPA, bem como em usá-lo como critério para definição do recorte
temporal de nossa pesquisa, se deve ao fato de que consideramos importante levar em
consideração a forma como os gastos foram planejados por este governo. O PPA expressa
este planejamento de médio prazo, feito para quatro anos, e foi confrontado com o que foi
efetivamente gasto nestes anos. A intenção foi dar um maior dinamismo à nossa análise.
Acreditamos que assim tornou-se possível visualizar melhor as possíveis mudanças de rota
na gestão de recursos públicos em função da mudança de conjuntura.
Dito isso, além dos Planos Plurianuais, levantamos os documentos do IPEA em que
são divulgados o gasto social do governo federal nos anos delimitados neste estudo. Este
Instituto de Pesquisa desenvolveu uma metodologia para consolidar estes gastos que nos
pareceu pertinente para fundamentar a análise sobre as prioridades definidas pelo governo.
Como material de apoio, recorremos às Leis Orçamentárias Anuais (LOA) e às Leis de
Diretrizes Orçamentárias (LDO) e aos Relatórios do Tribunal de Contas da União (TCU).
Estes relatórios têm o objetivo de avaliar a prestação de contas feitas pelo governo federal
e trazem uma sistematização de informações importante para quem deseja se aproximar
destes estudos. Por meio da análise destes documentos, conseguimos sistematizar as
informações sobre o gasto social presentes nos orçamentos Fiscal e da Seguridade Social.
27

A preocupação em levantar dados tanto do orçamento Fiscal, como da Seguridade


Social, residiu na forma como os gastos com políticas sociais são contabilizados. Eles se
distribuem nestes dois orçamentos, de modo que a contabilização dos gastos totais com
estas políticas implica na análise cuidadosa dos registros feitos em ambos.
Paralelamente a este trabalho de levantamento de dados, empreendemos um esforço
de aprofundar o debate em três direções: os elementos necessários para entender a relação
entre capital financeiro e financeirização; o resgate da organização da produção voltada
para fundamentar o caráter do Estado e sua relação com o fundo público; e as elaborações
teóricas que nos ajudem a caracterizar as políticas sociais e entender suas especificidades
na contemporaneidade. Deste modo, capital financeiro, financeirização, Estado, fundo
público e políticas sociais são as categorias de análise que nos servirão como referência e
base de fundamentação para o estudo acerca do lugar ocupado pelos gastos sociais do
governo federal.
A exposição das análises empreendidas foi organizada em três capítulos. No
primeiro, procuramos resgatar as elaborações de Marx acerca do capital portador de juros e
todo o debate que ele trava no Livro III d’O Capital (em especial na seção V). Fizemos
também uma análise do fundo público considerando o caráter regressivo da arrecadação,
bem como o destino destes recursos em meio à disputa que marca as decisões tomadas pelo
Estado. Do mesmo modo, pareceu-nos imprescindível uma análise conceitual que
permitisse um maior rigor teórico na discussão acerca do capital financeiro, recorrendo a
autores importantes na tradição marxista como Hilferding e Lenin. Além disso,
procuramos abordar com maior propriedade a teoria marxista do valor e os limites postos
pelo redimensionamento da relação entre o setor produtivo e o financeiro na conjuntura
atual, como forma de fundamentar nossa análise das alterações contemporâneas no modo
de produção capitalista. Acreditamos que uma discussão acerca do capital financeiro
levando em consideração a teoria do valor, permite-nos escapar de uma abordagem
fenomênica desta temática. Além disso, para a reconstituição e análise deste período,
pareceu-nos salutar recuperar o processo de reestruturação produtiva, reorganização social
e de intensificação dos fluxos financeiros vividos na última metade do século passado.
Procuramos também abordar as relações entre financeirização, dívida pública e crise do
capital, identificando as tendências das políticas sociais na contemporaneidade.
No segundo capítulo, fizemos uma análise sobre o século 20 no Brasil. Este retorno
às origens é importante por que “trata-se de um verdadeiro amálgama de determinações
28

econômicas, políticas, sociais e culturais, fundindo passado e presente, cujo desvelar é


imprescindível na construção do futuro” (BEHRING, 2003, p. 84). Em primeiro lugar,
destacamos o período que vai de 1930 ao início dos anos 1960, sintetizando os principais
elementos para pensar a consolidação do capitalismo e a entrada em sua fase monopolista.
A intenção foi a de resgatar a particularidade brasileira em relação à dinâmica global de
acumulação do capital, desvelando suas contradições, bem como seus momentos de
mudança e de conservação. Em seguida, resgatamos o período que vai dos anos 1960 aos
1980, tendo como foco a constituição do mercado de capitais no país. Procuramos
identificar como o problema em torno do financiamento da produção contribuiu para lançar
as bases para o fortalecimento do setor financeiro e de uma atuação especulativa no
mercado de capitais. Na análise dos anos 1990, buscamos levantar os elementos
necessários para se pensar as alterações na relação entre produção e finanças no país.
Nossa hipótese é a de que as mudanças vivenciadas nesta década abriram caminho para o
que seria a constituição endógena do capital financeiro no Brasil, a qual se efetivaria na
década seguinte. A intenção é buscar as condicionantes internas e externas que ajudaram
no redimensionamento do Estado. Este debate é importante tendo em vista que as
alterações econômicas e sociais experimentadas a partir deste período, mudam a
conformação das políticas sociais e, por conseguinte, do gasto social, nosso objeto de
estudo.
Feitas estas incursões teórico-históricas, no terceiro capítulo, retornamos ao nosso
objeto e aos documentos levantados no início da pesquisa, analisando suas particularidades
em meio a esta teia de relações a serem pormenorizadas no processo de exposição dos
resultados deste estudo. De início, introduzimos o capítulo com uma breve análise do
governo Lula, dando uma especial atenção à organização produtivo-financeira, destacando
a atuação do BNDES e dos fundos de pensão em sua articulação com o grande capital
produtivo nacional. Fizemos também algumas considerações de ordem metodológica
analisando: as contradições inerentes às políticas sociais e a importância da luta pela sua
ampliação como forma de enfrentamento ao capital; a importância deste debate articulando
a estrutura de financiamento do gasto público, bem como ao padrão de gastos do governo e
de gestão da dívida pública; análise da metodologia de contabilização do gasto social
desenvolvida pelo IPEA e as razões para termos a adotado para fundamentar a discussão.
Em seguida, empreendemos uma análise dos principais elementos contidos nos Planos
Plurianuais (2004-2007 e 2008-2011) que nos ajudassem a identificar o padrão de
29

acumulação proposto, bem como suas contradições e limites em relação à política


econômica adotada. Feitas estas incursões, passamos à análise do lugar do gasto social
neste governo, buscando levantar alguns dos resultados da política econômica
implementada e suas determinações sobre as políticas sociais. A questão é identificar de
que modo as políticas sociais vêm sendo conduzidas e influenciadas pelas definições
governamentais e até que ponto estão contribuindo para uma redistribuição da riqueza
socialmente produzida em favor da classe trabalhadora.
30

1 A DINÂMICA DE ACUMULAÇÃO CAPITALISTA NA ERA DO CAPITAL


FINANCEIRO FINANCEIRIZADO

O trabalhador se torna tanto mais pobre


quanto mais riquezas produz,
quanto mais a sua produção aumenta
em poder e extensão.
O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais
barata quanto mais mercadorias cria.
Com a valorização do mundo das coisas,
aumenta,
em proporção direta, a desvalorização
do mundo dos homens.

Karl Marx

O debate sobre o processo de financeirização vem ocupando lugar de destaque nas


análises de segmentos expressivos da esquerda, com diferentes graus de aproximação com
o legado de Marx e dos marxistas. Apesar disso, existe muita dificuldade em se ter uma
consistente apropriação deste debate – tão complexo quanto indispensável – para uma
análise bem fundamentada da caracterização das especificidades contemporâneas na
acumulação capitalista.
Neste capítulo, nossa preocupação é articular as mudanças no mundo das finanças a
um determinado estágio de desenvolvimento das forças produtivas, em que a rentabilidade
esperada já não mais poderia ser sustentada diretamente no âmbito da produção 2. Sendo
assim, ao contrário do que aparece na superficialidade dos fenômenos, não existe um total
descolamento entre produção e finanças. O que existe é uma articulação em que, mesmo
sendo possível encontrar vultosas margens de lucratividade por meio de aplicações
financeiras, persiste a dependência do valor gerado na esfera da produção para que esta
rentabilidade se efetive.
Para uma consistente análise do processo em curso é imprescindível que se tenha
em mente que tratam-se de mudanças operadas na fase monopolista de desenvolvimento

2
Convém destacar que, quando falamos em rentabilidade na esfera financeira, não estamos nos referindo à
produção de valores, mas tão somente à capacidade de promover uma punção nos valores gerados na
atividade produtiva propriamente dita.
31

capitalista e, portanto, do imperialismo, como destaca Lenin ([1917] 2012). O


imperialismo é, deste modo, uma fase de desenvolvimento do capitalismo marcado pela
“dominação dos monopólios e do capital financeiro; em que a exportação de capitais
adquiriu marcada importância; em que a partilha do mundo pelos trustes internacionais
começou; em que a partilha de toda a terra entre os países capitalistas mais importantes
terminou” ([1917] 2012, p. 123-124).
Sendo assim, esta é uma fase marcada pela concentração, centralização e
internacionalização do capital, que tem no aumento das disputas interimperialistas e no
desenvolvimento desigual e combinado a expressão do movimento do capital na busca dos
superlucros. Nesta fase, o poder político-militar, aliado ao econômico, buscam alargar as
fronteiras da acumulação, intensificando as desigualdades e recheando de novas e
contraditórias determinações o desenvolvimento capitalista, como procuraremos
demonstrar ao longo de nossa argumentação.
Para tanto, faremos um resgate das contribuições deixadas por Marx para
entendermos a articulação entre produção e finanças. Ainda que o autor não tenha vivido o
período que iremos retratar, nem tenha testemunhado a intensidade que este processo
atingiu, sua elaboração nos traz várias chaves indispensáveis para entendermos o que está
em curso. O debate do capital portador de juros e do capital fictício são o pano de fundo
sem o qual fica difícil apreender as especificidades do momento atual.
Feito isso, nos dedicaremos a caracterizar alguns dos elementos que permeiam a
discussão em torno do fundo público, procurando analisá-lo por meio do aporte teórico
pautado na tradição marxista. Neste sentido, é importante não apenas desvendar sua
composição, como também a contradição de interesses que tenciona e impulsiona o seu
destino. A teoria do valor é o fio condutor que orienta nossa reflexão e a articulação entre
as determinações econômicas e o “jogo da política”, as chaves para romper com análises
moralistas e politicistas no trato com o fundo público.
Em seguida, iremos pontuar as contribuições de Hilferding e Lenin para o debate
sobre o capital financeiro e faremos um resgate histórico do processo de financeirização
vivenciado a partir da crise do capital dos anos 1970. A intenção é identificar os elementos
que vão conduzindo o capital a encontrar, nas finanças, as margens de lucratividade que já
não encontram mais na produção e procurar analisar o significado deste processo.
Finalizaremos este capítulo buscando caracterizar a financeirização na atualidade e
algumas das medidas para conter a crise vivida em 2008. Procuraremos também, refletir
32

sobre seus desdobramentos, em especial para a reconfiguração em curso das políticas


sociais, abordando como este processo se expressa na disputa pelo fundo público e na
capacidade da classe trabalhadora de pautar suas demandas.

1.1 Notas sobre o capital portador de juros em Marx

Para começar, não é demais lembrar que no Brasil existem duas traduções de O
Capital3. Em uma delas, a de Reginaldo Sant’anna, o capítulo XIX do Livro Terceiro
aparece com o título de “Capital Financeiro”. No entanto, na outra tradução, posterior a
esta primeira, a de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe, este capítulo aparece com outro título:
“O capital de comércio de dinheiro”, tradução mais fiel à discussão travada neste momento
do desenvolvimento das ideias do autor.
O mais provável é que a origem deste problema esteja na tradução francesa, na qual
o título do referido capítulo aparece como “Le Capital Financier (Capital Marchant)”. É
possível que Reginaldo Sant’anna tenha sido influenciado por esta tradução e adiantado
uma categoria que, efetivamente, não foi elaborada, nem discutida pelo autor. Marx trata,
neste capítulo, de questões relacionadas ao comércio de dinheiro e não de capital
financeiro, no sentido que este conceito assume posteriormente na tradição marxista,
principalmente por meio do debate travado por Hilferding e Lenin.
Ainda que as análises marxianas tenham fundamentado e, em alguma medida,
proporcionado todo um arcabouço categorial para caracterizar e analisar o capital
financeiro, as condições histórico-concretas ainda não estavam suficientemente maduras
para que ele entrasse realmente neste debate, como fizeram os autores a que nos referimos.
O estudo do capital de comércio de dinheiro, as determinações do capital portador
de juros e sua forma mais “aloucada” – para usar os termos do próprio Marx – o capital
fictício, o desenvolvimento da sociedade por ações e a intensificação do processo de
concentração e centralização do capital, são alguns dos elementos indispensáveis para a

3
Existe ainda uma nova tradução feita pela Editora Boitempo, mas até o momento só foi publicado o Livro
Primeiro, de modo que não chegaram a público os demais Livros.
33

constituição do capital financeiro e discutidos pelo autor. Mas não nos autorizam a afirmar
que ele teria tratado desta categoria.
Consideramos oportuno, neste momento, recuperar este percurso de
desenvolvimento das ideias de Marx, fazendo uso, em especial, das seções IV e V do Livro
Terceiro4 e, no próximo ponto, o debate travado por Hilferding e Lenin acerca do capital
financeiro, tentando identificar em que estes últimos se aproximam e se afastam na forma
como conduzem suas argumentações. Pretendemos, assim, destacar a atualidade desta
categoria para a análise do capitalismo em sua fase atual, o imperialismo. Antes disso,
entretanto, faremos um breve resgate acerca das elaborações de Marx sobre a dívida
pública no período da acumulação primitiva.

1.1.1 A importância da dívida pública para a constituição do capitalista industrial

A única parte da chamada riqueza nacional


que é realmente objeto de posse coletiva
dos povos modernos é...
a dívida pública

Karl Marx

Consideramos indispensável fundamentar as nossas análises com um resgate do


debate travado por Marx acerca do papel da dívida pública na acumulação primitiva do
capital. O retorno ao processo de acumulação primitiva se dá tendo em vista que, para usar
as palavras do autor, esta “desempenha na Economia Política um papel análogo ao do
pecado original na teologia” ([1867]1988b, p. 251). Constitui, portanto, o ponto de partida
da acumulação capitalista, mas não se esgota neste processo. Pelo contrário, este modo de
produção “pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das condições da
realização do trabalho. Tão logo a produção capitalista se apoie sobre seus próprios pés,

4
Não queremos, com isso, desconsiderar a importância da obra em seu conjunto. Sem atribuir graus de
importância às obras, em função de terem sido ou não publicadas por Marx em vida, acreditamos que a
leitura d’O Capital deve ser feita e valorizada em sua totalidade, sendo a articulação entre todos livros um
movimento sem o qual a análise fica comprometida. Vale ressaltar que, quando falamos em todos os livros,
incluímos também o Quarto, intitulado postumamente de Teorias da Mais-valia. Para Marx, todos estes
compõem a mesma obra, como ele deixou claro no prefácio à primeira edição do Livro Primeiro: “o segundo
volume desta obra vai tratar do processo de circulação do capital (Livro Segundo) e das estruturações do
processo global (Livro Terceiro); o terceiro (Livro Quarto), da história da teoria” ([1867] 1988a, p. 20).
34

não apenas conserva aquela separação, mas a reproduz em escala sempre crescente”
([1867]1988b, p. 252). Sendo assim, consideramos oportuno o resgate de alguns
pressupostos da acumulação primitiva para análise da dinâmica de desenvolvimento
capitalista e suas especificidades contemporâneas.
O autor destaca como meios propulsores da acumulação primitiva alguns sistemas:
o colonial, o das dívidas públicas, o moderno sistema tributário e o protecionismo. Para os
estudos que pretendemos desenvolver, vamos nos deter no segundo e terceiro sistemas
mencionados. Importa, entretanto, destacar que todos eles têm como marca o uso da força
e o poder do Estado e, no caso do sistema colonial, esta aparece de forma ainda mais
brutal. Nas palavras de Marx, “a violência é a parteira de toda velha sociedade que está
prenhe de uma nova” ([1867]1988b, p. 276).
É oportuno destacar que, segundo o autor, o sistema de crédito público tem suas
origens na Idade Média, em Gênova e Veneza, e se espalhou para a Europa no período
manufatureiro. Assim, foi significativamente impulsionado pelo sistema colonial e
contribuiu para dar origem ao capitalismo industrial (MARX, [1867]1988b). Mas ele
afirma que o primeiro lugar em que o regime da divida pública foi implantado foi a
Holanda e destaca que “a dívida do Estado, isto é, a alienação do Estado – se despótico,
constitucional ou republicano – imprime sua marca sobre a era capitalista” ([1867]1988b,
p. 278). Isto significa dizer que independentemente da forma como um governo está
organizado e do modo como se constituem os processos de tomada de decisão, o
mecanismo da dívida pública funciona como um importante instrumento de consolidação
das relações capitalistas de produção.
Como sinalizado na epígrafe, Marx afirma, com um tom bastante irônico, que
somente a dívida pública tem um caráter verdadeiramente coletivo quando falamos na
riqueza nacional ([1867]1988b, p. 278). Com essa análise, o autor enfatiza o apelo ao
sentimento de coletividade e de responsabilidade conjunta sobre seus rumos, com vistas a
garantir a esta uma certa legitimidade.
O processo de expropriação das terras de que trata o início da acumulação primitiva
demarca a separação entre o trabalhador e os meios de produção e a consolidação da
propriedade privada burguesa – de forma mais ou menos institucionalizada – por meio da
35

violência, da fraude e do roubo5. Assim, “propriedade privada, como antítese da


propriedade social, coletiva, existe apenas onde os meios de trabalho e suas condições
externas pertencem a pessoas privadas. Porém, conforme estas pessoas privadas sejam
trabalhadores ou não-trabalhadores, a propriedade privada assume também caráter
diferente” ([1867]1988b, p. 282).
Apesar de uma suposta preocupação com o bem comum e a satisfação da
coletividade, presente em determinadas formas de governo, os interesses que estão a frente
deste processo buscam garantir e defender a propriedade privada. Estes interesses
particulares, ao aparecerem como universais, tornam coletivo o sentimento de
responsabilidade sobre seus ônus – como é o caso da dívida pública – ainda que os ganhos
permaneçam sendo apropriados privadamente.
O que estamos querendo destacar são os caminhos para garantir à dívida uma certa
legitimidade e um sentimento de responsabilidade coletiva sobre seus rumos. Essa
preocupação é ilustrada pelo autor em mais um dos seus momentos de analogia com a fé
cristã: “O crédito público torna-se o credo do capital. E com o surgimento do
endividamento do Estado, o lugar do pecado contra o Espírito Santo, para o qual não há
perdão, é ocupado pela falta de fé na dívida do Estado” ([1867]1988b, p. 278). Assim, o
autor procura enfatizar que, visto dessa forma, esse movimento se distancia de uma
racionalidade típica do mundo material e assume uma configuração em que não cabem
questionamentos, tendo, portanto, um caráter inexorável.
Podemos perceber, portanto, a importância da dívida pública, já no período da
consolidação do capitalismo, em virtude de suas características – aparentemente “mágicas”
–, que funcionam como um importante veículo de sua alavancagem. Assim, a dívida
pública vai aos poucos transformando-se em instrumento de uma “fada madrinha da
acumulação” dotando o dinheiro de capacidade criadora como se fosse uma “varinha de
condão”.

5
“A propriedade comunal [...] era uma antiga instituição germânica que continuou a viver sob cobertura do
feudalismo. Viu-se como a violenta usurpação da mesma, em geral acompanhada pela transformação da terra
de lavoura em pastagem, começa no final do século XV e prossegue no século XVI. Mas, então, o processo
efetivava-se como ato individual de violência, contra a qual a legislação lutou, em vão, durante 150 anos. O
progresso do século XVIII consiste em a própria lei se tornar agora o veículo do roubo das terras do povo,
embora os grandes arrendatários empreguem paralelamente também seus pequenos e independentes métodos
privados. A forma parlamentar do roubo é a das Bills for Inclousures of Commons (leis para o cercamento da
terra comunal), em outras palavras, decretos pelos quais os senhores fundiários fazem presente a si mesmos
da terra do povo, como propriedade privada, decretos de expropriação do povo” (MARX, [1867]1988b, p.
258-259).
36

Os credores do Estado, na realidade, não dão nada, pois a soma emprestada é


convertida em títulos da dívida, facilmente transferíveis, que continuam a
funcionar em suas mãos como se fossem a mesma quantidade de dinheiro
sonante. Porém, abstraindo a classe de rentistas ociosos assim criada e a riqueza
improvisada dos financistas que atuam como intermediários entre o governo e a
nação – como também os arrendatários de impostos, comerciantes e fabricantes
privados, aos quais uma boa parcela de cada empréstimo do Estado rende o
serviço de um capital caído do céu – a dívida fez prosperar as sociedades por
ações, o comércio com os títulos negociáveis de toda a espécie, a agiotagem, em
uma palavra: o jogo da Bolsa e a moderna bancocracia” ([1867]1988b, p. 278).

Marx chama a atenção para a importância dos grandes bancos, que juntamente com
os governos, tiveram (e ainda têm!) um papel fundamental para a acumulação da dívida
pública. Ele destaca a contribuição do Banco da Inglaterra, fundado no final do século 17,
para alavancar este processo. “Não bastava que ele [o banco] desse com uma mão e
recebesse com a outra; ele, enquanto recebia, continuava eterno credor da nação até o
último tostão adiantado” ([1867]1988b, p. 278-279). Assim, por meio, de um lado, dos
empréstimos ao governo e, de outro, da criação de moeda fiduciária, em pouco tempo
tornou-se o “receptáculo inevitável dos tesouros metálicos do país” ([1867]1988b, p. 279).
Com o seu peculiar sarcasmo, o autor registra as mudanças que vão acontecendo neste
período:

Ao mesmo tempo em que na Inglaterra se parou de queimar feiticeiras, começou-


se a enforcar falsificadores de notas bancárias. O efeito causado pelos
contemporâneos pelo repentino aparecimento dessa ninhada de bancocratas,
financistas, rentiers, corretores stockjobbers e leões da Bolsa, demonstraram os
escritos daquela época, como por exemplo os de Bolingbroke ([1867]1988b, p.
279).

Outro elemento que nos parece pertinente salientar é a relação entre a dívida
pública e o sistema internacional de crédito. É possível identificarmos – portanto, isto não
é um fenômeno recente – significativos processos de transferência de recursos, por meio da
dívida pública, de uma nação para outra. “Assim, as vilezas do sistema veneziano de rapina
constituem uma das tais bases ocultas da riqueza de capital da Holanda, a qual a decadente
Veneza emprestou grandes somas em dinheiro” (MARX, [1867] 1988b, p. 279). Marx
([1867] 1988b) identificou que estas relações já estavam presentes ainda na Idade Média e
analisava que, em seu tempo, muitas vezes, quando a produção já não atingia as exigências
de remuneração dos capitalistas, uma das principais atividades poderia ser a de emprestar
capital para países em ascensão.
37

Ao transpor este entendimento para o período em que viveu, ele aponta, de forma
bastante contundente, que “muito capital que aparece hoje nos Estados Unidos, sem
certidão de nascimento, é sangue infantil ainda ontem capitalizado na Inglaterra” ([1867]
1988b, p. 279). Como podemos perceber, o autor relaciona dívida pública e crédito
internacional, mas também ressalta as origens destes recursos, que aparece sempre
obscurecida. Ele nos lembra que estes, por mais que pareçam brotar da esfera da
circulação, advêm da produção e esta, além de acontecer por meio da exploração humana,
envolve também a utilização de uma força de trabalho precarizada e muitas vezes ainda em
idade infantil.
Feitas estas observações gerais sobre a dívida e o crédito, o autor chama a pensar a
relação com os impostos: “como a dívida do Estado se respalda nas receitas do Estado, que
precisam cobrir os juros e demais pagamentos anuais, o moderno sistema tributário tornou-
se um complemento necessário do sistema de empréstimos nacionais” (MARX, [1867]
1988b, p. 279).
O sistema tributário aparece, portanto, como uma poderosa engrenagem deste
sistema, o qual leva os governos a um círculo vicioso. Se por um lado, a possibilidade do
crédito permite o acúmulo de dívidas como forma de dar conta de despesas exorbitantes e
evitar o recurso do aumento de impostos, por outro lado, os governos acabam fazendo uso
deste recurso quando a dívida vai se avolumando. Neste sentido, o aumento de imposto,
decorrente da necessidade de arcar com a dívida, leva a um novo processo de
endividamento quando as despesas, por uma razão ou por outra, crescem além do esperado
(MARX, [1867] 1988b, p. 279).
Não nos parece desnecessário ressaltar que o alvo mais recorrente do aumento dos
impostos incida sobre o consumo dos bens de subsistência, fato que vai garantindo uma
certa tendência a existência de uma marca regressiva no sistema tributário de uma maneira
geral. Em outras palavras, recai para a classe trabalhadora o ônus de alimentar este
processo de endividamento, na medida em que se define uma estrutura tributária pautada
na tributação indireta. Assim, Marx afirma que “a supertributação não é um incidente,
porém muito mais um princípio” ([1867] 1988b, p. 279) e uma maneira de transferir
recursos dos trabalhadores para os capitalistas.
Estes sistemas de dívida pública e tributação, portanto, que se desenvolvem de
forma significativa no período infantil da indústria moderna, para usarmos os termos de
Marx, são, ainda hoje, elementos fundamentais para entendermos a dinâmica do modo de
38

produção capitalista. Como sinaliza Harvey, “alguns dos mecanismos de acumulação


primitiva que Marx enfatizou foram aprimorados para desempenhar hoje um papel bem
mais forte do que no passado” (2004, p. 122). Sendo assim, não podemos tratar “a
acumulação baseada na atividade predatória e fraudulenta e na violência como uma ‘etapa
original’ tida como não mais relevante6” (HARVEY, 2004, p. 120).
Como procuraremos demonstrar na próxima seção, a dívida pública, que contribuiu
para a consolidação do capitalismo, no período pós-guerra estimulou a aceleração da
acumulação de capital e, passou, desde o final do século 20, a, cada vez mais, alimentar um
processo de reprodução ampliada de base financeiro-especulativa por meio do capital
fictício. Trata-se, deste modo, de uma mudança no lugar que a dívida pública assume no
circuito de valorização capitalista.

1.1.2 O capital portador de juros

No sistema de crédito,
tudo se duplica e triplica
e se converte em pura fantasmagoria

Karl Marx

Como veremos na terceira seção, o processo de financeirização se intensifica em


decorrência de uma crise do capital vivenciada no final dos anos 1960 e início dos 1970. O
surgimento do euromercado é um dos marcos deste movimento em direção à busca de uma
rentabilidade financeira. Ele significou a imposição da tendência decrescente da taxa de
lucro discutida por Marx e, ao mesmo tempo, apareceu como alternativa de rentabilidade.
Durou até que os Estados Unidos definissem pelo rompimento do padrão dólar-ouro e
aumentassem a taxa de juros, fato que fez com que os EUA voltassem a se tornar atrativos
à especulação financeira e que o fluxo de capitais retornasse em massa para o território

6
“Valorizações fraudulentas de ações, falsos esquemas de enriquecimento imediato, a destruição estruturada
de ativos por meio da inflação, a dilapidação de ativos mediante fusões e aquisições e a promoção de níveis
de encargos de dívida que reduzem populações inteiras, mesmo nos países capitalistas avançados, a
prisioneiros da dívida, para não dizer nada da fraude corporativa e do desvio de fundos (a dilapidação de
recursos de fundos de pensão e sua dizimação por colapsos de ações e corporações) decorrente de
manipulações do crédito das ações – tudo isso são características centrais da face do capitalismo
contemporâneo” (HARVEY, 2004, p. 123).
39

estadunidense. Esta decisão, “quebrou” o euromercado e permitiu que os EUA retomassem


as rédeas do processo e recobrassem as condições para impor seu padrão ao resto do
mundo. A partir daí uma série de medidas liberalizantes contribuiu para a intensificação
dos fluxos financeiros em proporções nunca antes experimentadas.
Para que seja possível entender exatamente como este mecanismo funciona,
precisamos recorrer à noção de capital portador de juros. Este é o caminho para a análise
de como é possível “fazer dinheiro com dinheiro” e também para elucidar as ilusões que
este fenômeno acoberta. O ponto de partida é, como não poderia deixar de ser, a produção
de mercadorias.
O movimento próprio do processo de produção no interior da sociedade capitalista
foi exaustivamente discutido por Marx n’O Capital e consiste, em linhas gerais, em utilizar
o trabalho assalariado para transformar uma determinada quantidade de mercadorias em
outras mercadorias possuidoras de um valor maior do que o existente inicialmente.
Somente o trabalho humano, na dimensão de trabalho humano abstrato, é capaz de
produzir não só valor como mais valor, denominado por Marx de mais-valia. Nas palavras
dele:

Se compararmos o processo de formação de valor com o processo de


valorização, vemos que o processo de valorização não é nada mais que um
processo de formação de valor prolongado até depois de certo ponto. Se este
apenas dura até o ponto em que o valor da força de trabalho é substituído por um
novo equivalente, então é um processo simples de formação de valor. Se
ultrapassa esse ponto, torna-se processo de valorização ([1867] 1988a, p. 154).

Não cabe, nesse espaço, discorrer acerca do processo de valorização do capital,


apesar da importância que atribuímos ao tema. Consideramos importante apenas demarcar
que entendemos esse processo como próprio e exclusivo da produção de mercadorias. Para
a análise das mudanças decorrentes da fase monopolista do capitalismo, precisamos nos
deter, ainda que não com a profundidade que esse assunto comportaria, na discussão
relacionada à circulação das mercadorias, tendo em vista que essa é a esfera de realização
do valor. Valor este gerado na produção, tendo em vista que, como diria o próprio Marx,
“as funções puras do capital na esfera da circulação [...], portanto os atos de venda e
compra – não geram valor nem mais valia” ([1894] 1988d, p. 202).
O processo de produção de mercadorias pressupõe uma determinada quantia de
dinheiro adiantada, que é utilizada na compra de mercadorias (M). Essas mercadorias são
40

compostas por uma parte de meios de produção (Mp) e força de trabalho (F). Somente a
partir daí é que acontece o processo de produção propriamente dito (P) por meio do qual
obtêm-se mercadorias cujo valor é acrescido de mais-valia (M’). A venda dessas
mercadorias permite a realização desse valor gerado e as transforma em dinheiro
novamente (D’). São portanto, dois estágios de circulação (D – M e M’ – D’) e um de
produção que compõem o que chamamos de tempo de rotação do capital. Temos,
resumidamente, o seguinte trajeto: D – M – P... M’ – D’.
Como ressalta Granemann, “Ao compreender-se a indissociável relação entre a
produção e a circulação na obra de Marx, impressiona a demonstração de unidade entre as
diversas e particulares formas de capital [...]” (2006, p. 66). Deste modo, o capital
industrial se expressa de diferentes formas, passando de capital monetário para capital
produtivo até chegar a capital comercial. Esses são desdobramentos de um mesmo capital,
o qual tem sua importância destacada por Marx: “O capital industrial é o único modo de
existência do capital em não só a apropriação da mais-valia, ou, respectivamente, mais
produto, mas, ao mesmo tempo, também sua criação é função do capital” ([1885] 1988c, p.
41).
Como dissemos, o tempo que as operações na esfera da circulação “custam é
aplicado em operações necessárias no processo de reprodução do capital, mas não agrega
valor ” (MARX, [1894] 1988d, p. 208). Este momento da circulação envolve o capital
comercial e comporta atos M – D e D – M, o que significa atos constantes de compra e
venda. Em outras palavras, o capital “se encontra continuamente ao mesmo tempo em
ambos os estágios” (MARX, [1894] 1988d, p. 225). Esta é, portanto, uma das fases em que
o capital opera uma mera mudança de forma, neste caso, com vistas a viabilizar seu
processo de reprodução. O capital de comércio de dinheiro e o capital de comércio de
mercadoria constituem momentos diferenciados do capital comercial, sendo o primeiro um
elemento fundamental para entendermos o sistema de crédito e o capital portador de juros.
A importância do crédito se intensifica principalmente no primeiro estágio da
circulação, D – M (Mp, fundamentalmente), em que é necessário que haja um capital
adiantado, cuja magnitude varia dependendo do fôlego existente na produção e das
condições em que ela acontece. Ele ajuda a acelerar esses momentos em que não se agrega
valor.
Em vista disso, para o capitalista, quanto menor for o tempo de rotação do capital,
e, nesse sentido, quanto mais rápido um ciclo produtivo for fechado, mais rapidamente ele
41

terá acesso ao capital monetário acrescido de mais-valia. Marx ressalta em diversos


momentos do Livro Terceiro a importância do crédito para a redução dos custos de
produção tendo em vista, dentre outras razões, o fato de contribuir para acelerar as fases de
circulação, de modo a encurtar o processo de reprodução em geral. Em outras palavras,
quanto menor o tempo de rotação, mais rapidamente se realiza a mais-valia, o que significa
maior rapidez na acumulação. São esses, em linhas gerais, os fatores que impulsionam o
grande capital a encurtar os estágios da produção.
O sistema de crédito encontra suas raízes do comércio de dinheiro. Isto quer dizer
que, ainda que o comércio de dinheiro em sua forma pura encontre-se separado do sistema
de crédito, ele já comporta a forma geral do capital D – D’, em que um adiantamento leva a
obtenção de um valor maior do que o adiantado. Assim, a busca por reduzir o tempo de
rotação do capital por meio do desenvolvimento, no âmbito da circulação, de operações
técnicas que possibilitaram reduzir a necessidade de dinheiro em espécie, acabou
desencadeando uma série de mecanismos que foram contribuindo para a formação do
sistema de crédito. Em outras palavras, o dinheiro necessário para adquirir matéria-prima,
pagar salários e realizar as demais operações necessárias ao processo de produção, pode ser
adiantado por quem deseje emprestá-lo. Esse adiantamento acaba por virar o negócio
específico daquele que passa a se configurar como o comerciante de dinheiro.
Assim, “os movimentos puramente técnicos que o dinheiro realiza no processo de
circulação do capital industrial e, como podemos acrescentar agora, do capital de comércio
de mercadorias [...], transformam este capital em capital de comércio de dinheiro”
(MARX, [1894] 1988d, p. 225). De certa forma, o capital monetário se autonomiza em
relação ao capital industrial para realizar suas funções peculiares e desempenhar seu papel
no processo de reprodução, ou seja, funcionar como meio de circulação e meio de
7
pagamento .
Marx sinaliza que este dinheiro, que passa a ser comercializado, contribui para
concentrar, abreviar e simplificar as operações técnicas que ele realiza. Deste modo, reduz
o montante necessário em espécie para executar todas estas tarefas, por meio de um
mecanismo artificial de compensação dos saldos.

7
“Pagamento de dinheiro, cobrança, acerto dos balanços, operação de contas correntes, guarda do dinheiro
etc., separados dos atos pelos quais essas operações se tornam necessárias, convertem o capital adiantado
nessas funções em capital de comércio de dinheiro” (MARX, [1894] 1988d, p. 226).
42

Este fato, ao mesmo tempo em que beneficia o capitalista industrial, que conseguirá
agilizar os estágios de produção de sua mercadoria (e, com isso, reduzir seus custos),
constitui uma vantagem também para o comerciante de dinheiro, o qual receberá o D que
emprestou, acrescido de ΔD. “Assim, não parece correto dizer que o capital industrial sofre
oposição do capital portador de juros e ainda menos acertado seria tratá-los como capitais
excludentes entre si e a seus proprietários como classes em luta” (GRANEMANN, 2006, p.
21). Isto não significa, entretanto que não haja disputas pela apropriação da mais-valia,
como veremos adiante.
Na medida em que o comércio e as relações de produção capitalistas vão se
complexificando, estes mecanismos vão se ampliando e se generalizando e vão configurar
o sistema de crédito. Ao mesmo tempo, emprestar e tomar dinheiro emprestado passa a ser
o “negócio especial”, nos termos de Marx, dos comerciantes de dinheiro. No momento
histórico em que o autor escreve, podemos dizer que os bancos são os responsáveis por
centralizar os mutuários e cumprir o papel de “administradores gerais do capital
monetário”:

[...] o negócio bancário, sob este aspecto, consiste em concentrar em suas mãos o
capital monetário emprestável em grandes massas, de modo que, em vez do
prestamista individual, são os banqueiros, como representantes de todos os
prestamistas de dinheiro, que confrontam os capitalistas industriais e comerciais
(MARX, [1894] 1988d, p. 287).

Atualmente trata-se não apenas dos bancos, mas de diversas outras instituições
financeiras como os fundos de pensão e as seguradoras. Estas instituições financeiras, no
geral, contribuem para canalizar o capital monetário, que se encontra ocioso, e direcioná-lo
para a atividade produtiva. Esta é uma atividade fundamental, tendo em vista que,
“enquanto permanece na configuração monetária, não funciona como capital e, portanto,
não se valoriza; o capital permanece em alqueive” (MARX, [1885]1988, p.52). O capital
monetário, nas mãos do capitalista industrial é utilizado para produzir mais-valia, ou seja,
para dar continuidade ao processo de valorização do capital, base de funcionamento do
modo de produção capitalista. O que estamos querendo dizer é que o sistema de crédito,
uma vez consolidado, possui, no processo de reprodução do capital, diversos
desdobramentos. Um deles já foi mencionado, é a redução dos custos de circulação.
Gostaríamos de destacar outro aspecto: a formação da sociedade por ações. Este
mecanismo contribuiu para uma separação entre o capitalista funcionante, o dirigente do
43

capital alheio, e o proprietário de capital – o capitalista monetário. Para este último, sua
remuneração é o juro, pagamento pela “nua e crua” propriedade do capital, a qual passa a
estar totalmente separada do trabalho. Assim, este processo contribuiu, também, para a
reprodução de uma “nova aristocracia financeira, uma nova espécie de parasitas na figura
de fazedores de projetos, fundadores e diretores meramente nominais; todo um sistema de
embuste e de fraude no tocante à incorporação de sociedades, lançamentos de ações e
comércio de ações” (MARX, [1894] 1988d, p. 316).
A preocupação em encurtar os estágios da produção, cada vez mais acentuada,
contribui para aumentar o número de adeptos à especulação financeira na Bolsa de
Valores8 e, desse modo, a intensificar a autonomia relativa das finanças. Segundo ele:
“Uma vez que a propriedade existe aqui na forma de ação, seu movimento e transferência
tornam-se resultado puro do jogo de bolsa em que os peixes pequenos são devorados pelos
tubarões e as ovelhas pelos lobos da Bolsa” (MARX, [1894] 1988d, p. 317).
Desse modo, podemos dizer que o advento da sociedade por ações, se por um lado
permitiu a expansão em larga escala da produção, por outro, favoreceu um processo de
concentração e centralização do capital sem precedentes. Como já sinalizava Marx, “o
sucesso e o insucesso levam aqui simultaneamente à centralização dos capitais e, portanto,
à expropriação9 em escala mais alta” ([1894] 1988d, p. 317).
E este é um outro aspecto que gostaríamos de acrescentar: com o desenvolvimento
do crédito e das sociedades anônimas (S.A.), podemos observar o recrudescimento da
concentração industrial, o que aumenta a possibilidade do grande capitalista de comandar o
capital alheio. Isto quer dizer que aumentam as possibilidades de, com o menor capital
próprio possível, controlar o maior capital alheio disponível. Deste modo, a organização da
empresa na forma de sociedade anônima potencializa a capacidade de produção dos que
dominam o setor produtivo de uma forma muito mais intensa do que a empresa individual,
a qual precisaria acumular o seu próprio lucro para garantir as condições necessárias para
viabilizar a produção futura.

8
A bolsa é um mercado de títulos, que tem a função de dar liquidez aos mesmos, por meio da criação de um
mercado em que eles possam ser negociados.
9
“A expropriação estende-se aqui dos produtores diretos até os próprios capitalistas pequenos e médios. Essa
expropriação constitui o ponto de partida do modo de produção capitalista; sua realização é seu objetivo;
trata-se, em última instância de expropriar todos os indivíduos de seus meios de produção [...]” (MARX,
[1894] 1988d, p. 317).
44

Este desenvolvimento do crédito e das sociedades anônimas vem assumindo uma


proporção significativa, principalmente a partir das últimas décadas do século 20. Deste
modo, com o processo de financeirização ganhando força, algumas contradições vão
ganhando contornos mais expressivos. A questão que se coloca é que, tendo em vista a
busca pela obtenção de D’ – ou seja, de mais dinheiro, no mais curto período de tempo
possível – esse processo teria como base de constituição a suposta eliminação do próprio
processo de produção, encurtando o ciclo de forma a termos, aparentemente, apenas D-D’.
Ou seja, a geração de mais dinheiro, como se ele não passasse pelo processo de produção-
distribuição-consumo de mercadorias. Do ponto de vista da obtenção do retorno para o
capital, esse caminho é perfeitamente compreensível, tendo em vista que “o processo de
produção aparece apenas como elo inevitável, como mal necessário, tendo em vista fazer
dinheiro” (MARX, [1885]1988, p. 42). O que interessa para o capitalista é obter D’, de
modo que, o melhor caminho a ser seguido para atingir esse objetivo é sempre o menor
caminho.
No entanto, o movimento que parece muito “lógico” do ponto de vista do capitalista
individual, do ponto de vista do processo de acumulação em seu sentido ampliado, possui
contradições significativas. O que aparece como sendo capital “[...] autômato que se
valoriza por si mesmo” (MARX, [1894] 1988e, p. 5) é, em essência, reflexo de uma
punção da mais-valia gerada no circuito produtivo ou, em outras palavras, uma
transferência de riqueza.
Esse dinheiro que se transforma em mais dinheiro, ou seja, o capital portador de
juros, nada mais é do que uma soma de dinheiro que, uma vez emprestada e empregada
como capital, possibilita a seu proprietário ter acesso a uma parcela da mais valia
produzida. Nas palavras de Marx, “a parte do lucro que lhe paga chama-se de juro, o que
portanto nada mais é que nome particular, uma rubrica particular para uma parte do lucro,
a qual o capital em funcionamento, em vez de por no próprio bolso, tem de pagar ao
proprietário do capital” ([1894] 1988d, p. 242).
Sendo assim, o que não fica claro, se fizermos uma análise fenomênica, é que o que
aparece para o proprietário do capital como sendo D-D’, ou seja, dinheiro que gera mais
dinheiro, é na verdade apenas uma parte do movimento feito pelo capital. O percurso todo
pode se expresso pela fórmula: D – D – M – D’ – D’. O proprietário do dinheiro adianta
um montante para o capitalista funcionante que, ao inseri-lo no processo de produção de
45

mercadorias, irá obter uma mercadoria com valor acrescido, fato que o permitirá obter um
volume de dinheiro maior e usar uma parte dele para pagar a quem o emprestou.
O montante emprestado, portanto, assume a forma capital monetário nas mãos do
capitalista funcionante, que o converte em capital mercadoria10. Ao fim do processo, o
capital mercadoria acrescido assume a forma transmutada de capital dinheiro novamente.
Mas o que há neste ponto de retorno é D + ΔD, ou seja, a soma inicial acrescida de mais
valia. É deste valor adicional que se originam tanto o lucro do capitalista funcionante,
quanto os juros do capitalista monetário11.
Marx sintetiza este movimento de forma bem didática:

O possuidor de dinheiro que quer valorizar seu dinheiro como capital portador de
juros aliena-o a um terceiro, lança-o na circulação, torna-o mercadoria como
capital; não só como capital para si mesmo, mas também para os outros; não é
meramente capital para aquele que o aliena, mas é entregue ao terceiro de
antemão como capital, como valor que possui valor de uso de criar mais-valia,
lucro; como valor que se conserva no movimento e, depois de ter funcionado,
retorna para quem originalmente o despendeu, nesse caso o possuidor de
dinheiro; portanto, afasta-se dele apenas por um período, passa da posse de seu
proprietário apenas temporariamente à posse do capitalista funcionante,
não é dado nem vendido, mas apenas emprestado; só é alienado sob a
condição, primeiro, de voltar, após determinado prazo, a seu ponto de partida, e,
segundo, de voltar como capital realizado, tendo realizado seu valor de uso de
produzir mais-valia ([1894] 1988d, p. 244-245, grifos nossos).

Na passagem que destacamos, queremos chamar a atenção para o fato de que o


capital monetário que é emprestado ao capitalista funcionante, não pertence a este último.
Ele é cedido, na forma capital portador de juros, sem que seja dado um equivalente em
troca e na expectativa de ser restituído, ou seja, de receber uma parcela da mais-valia que
será obtida pelo capitalista funcionante, tão logo este capital adiantado seja posto em
movimento. Este capital adiantado, portanto, apenas viabiliza o início de um ciclo
produtivo, que será realizado pelo capitalista funcionante.“E é justamente desse processo

10
“Mercadoria e dinheiro aqui são capital, não à medida que mercadoria se transforma em dinheiro e
dinheiro em mercadoria, não em suas relações reiais com o comprador ou vendedor, mas apenas em suas
relações ideais, ou com o próprio capitalista (do ponto de vista subjetivo) ou com momentos do processo de
reprodução (do ponto de vista objetivo) (MARX, [1894] 1988d, p. 244).
11
O caráter derivado dos juros não foi apontado somente por Marx. Antes dele Smith já chama a atenção
para este fato. Para ele, “os juros do dinheiro são sempre uma renda derivativa, a qual, se não for paga do
lucro auferido do uso do dinheiro, deve ser paga de alguma outra fonte de renda, a não ser que talvez o
tomador seja um esbanjador que contrai uma segunda dívida para pagar os juros da primeira” (SMITH,
[1776] 1988, p. 53). Aqui já estão, portanto, as bases para afirmarmos a impossibilidade de autonomia no
âmbito do capital portador de juros.
46

de D como capital, sobre o qual repousa o juro do capitalista prestamista de dinheiro, que o
juro se origina” (MARX, [1894] 1988d, p. 246).
Em sua análise acerca do capital portador de juros, o autor está recorrentemente
fazendo menção à sua relação com a produção e ressaltando o fato de que é da mais valia
que se originam tanto os juros quanto os lucros. Sua preocupação em fazer essa ressalva,
numerosas vezes, deve-se ao fato de que ele mesmo reconhece a aparente autonomia desse
processo. Em um determinado momento de sua análise, o autor afirma que “ponto de
partida e ponto de retorno, entrega e restituição do capital emprestado, aparecem assim
como movimentos arbitrários, mediados por transações jurídicas, e que ocorrem antes e
depois do movimento real do capital, e que nada têm a ver com o próprio” ([1894] 1988d,
p.248). Apesar de parecer, portanto, que não há relação entre os juros auferidos e o
processo de produção de mercadorias, eles estão intimamente vinculados, fato que impõe
sérios limites às possibilidades de remuneração do capital na esfera predominantemente
financeira.
As ilusões produzidas pelo capital portador de juros são de diversas ordens. Além
dele fazer parecer que o dinheiro se reproduz sozinho, também faz parecer que qualquer
rendimento monetário é proveniente de um capital. Este é o caso, por exemplo, dos juros
auferidos pelos credores do Estado. Os recursos emprestados ao Estado são gastos e, na
maioria das vezes, nem mesmo são investidos como capital. Os títulos da divida pública,
portanto, não representam capital algum, e estes recursos emprestados já nem existem mais
quando o pagamento é efetuado. Eles compõem o que Marx denominou como sendo
capital fictício. Não é a toa, como ele mesmo chama a atenção, que nos momentos de crise,
em que se questiona a capacidade do Estado de arcar com esta dívida, este “capital”, que
aparece sob a forma de títulos, simplesmente desaparece, desfazendo esta aparência de
capital.
A distorção, fruto de uma das formas “aloucadas” de capital, esconde o fato de que,
na verdade, estes juros pagos aos detentores de títulos da dívida, nada mais são do que
parte das receitas da União, ou seja, de impostos pagos pelos contribuintes, em especial a
classe trabalhadora. Mais que isso, a distorção chega ao ponto de fazer parecer que o
acúmulo de dívidas representa um acúmulo de capital. Assim,

Esses certificados de dívida, que são emitidos sobre o capital originalmente


emprestado e há muito tempo dispendido, essas duplicatas de papel de capital
extinto, funcionam como capital para seus proprietários na medida em que são
47

mercadorias vendáveis e, por isso, podem ser retransformados em capital


(MARX, [1894] 1988e, p. 13).

Um processo parecido acontece com o capital associado. Como vimos, o sistema de


crédito dissemina a organização da indústria baseada na sociedade anônima. Neste caso, as
ações representam efetivamente um capital real. Mas este capital não existe duplamente,
como títulos de propriedade e como capital real. Deste modo, estes títulos são também
considerados como capital fictício. Eles “não dão possibilidade de dispor desse capital. Ele
não pode ser retirado. Apenas dão direitos a uma parte da mais valia a ser produzida pelo
mesmo” ([1894] 1988e, p. 13).
De uma maneira geral, o valor destes papéis, ainda que esteja, de alguma forma,
relacionado ao que representa, possui uma flutuação e determinação própria, sugerindo a
existência de uma certa autonomia:

O movimento autônomo do valor destes títulos de propriedade, não apenas dos


títulos da dívida pública, mas também das ações, confirma a aparência, como se
eles constituíssem capital real ao lado do capital ou do direito ao qual
possivelmente dêem título. É que se tornam mercadorias cujo preço tem um
movimento e uma fixação peculiares. Seu valor de mercado obtém uma
determinação diferente do seu valor nominal, sem que o valor (ainda que a
valorização) do capital real se altere (MARX, [1894] 1988e, p. 5-6).

O que o autor pretende salientar é que eles assumem, muitas vezes, um caráter
especulativo, de modo que constituem um capital ilusório, mesmo mantendo uma relação
com a base real. Eles representam um direito a rendimentos: no caso dos títulos da dívida,
direito a parte dos impostos pagos12, no caso dos títulos de propriedade – as ações –, direito
a uma parcela dos lucros (da mais-valia produzida).
Mas esta autonomia é apenas aparente, tendo em vista que a conexão com a base
real acaba em algum momento se impondo e definindo limites para as eventuais flutuações.
Isto porque como a “acumulação desses papéis expressa a acumulação de ferrovias, minas,
navios e etc, ela expressa a ampliação do processo real de reprodução, do mesmo modo
que a ampliação de uma relação de impostos sobre [...] bens móveis indica a ampliação
destes bens” (MARX, [1894] 1988e, p.13).

12
Como veremos mais detalhadamente na seção sobre o fundo público, estes impostos pagos são, na
verdade, recursos oriundos do trabalho humano e correspondem a parcelas do trabalho excedente (ou mais
valia) e do trabalho necessário (salários pagos aos trabalhadores).
48

A remuneração dos papéis indica deslocamento de recursos do processo de


acumulação real para a órbita financeira. Nos tempos de Marx isto significava passagem de
riqueza das mãos do capitalista industrial para o capitalista monetário, o banqueiro. Este,
ao funcionar como intermediário entre mutuários e prestamistas privados, tinha sob seu
controle praticamente todo o sistema de crédito. Além disso, “esses sujeitos possuem o
capital e a receita sempre em forma monetária ou em direitos diretos sobre dinheiro”
(MARX, [1894] 1988e, p.13), deste modo, eles embolsam boa parte da riqueza real, fruto
da acumulação real.
Pensar os desdobramentos deste processo na atualidade envolve um grau de
complexidade maior do que o contexto sócio-histórico vivido por Marx exigia. Hoje, o
grande capital industrial está atrelado ao grande capital bancário, em uma fusão
representada pela figura do capitalista financeiro. Discutiremos em detalhes o capital
financeiro na próxima seção, mas gostaríamos de sinalizar aqui que, com a intensificação
dos fluxos financeiros e dos processos de concentração e centralização do capital, a
repercussão destas mudanças assume contornos não experimentados por Marx. Por ora,
nos preocupamos em sistematizar suas contribuições, entendendo que muitas de suas
análises permanecem atuais e já sinalizavam alterações, naquele momento ainda
embrionárias, mas hoje em franco desenvolvimento e cada vez mais complexas.
Não podemos perder de vista, por exemplo, que capital monetário e capital
industrial, independentemente de estarem representados na mesma figura ou não, disputam
entre si parcelas da mais-valia e desempenham tarefas diferentes no processo de produção
como um todo. Do mesmo modo, é desta relação que vem a definição tanto da taxa de
juros quanto do ganho empresarial. Ambas “somente existem em sua antítese” (MARX,
[1894] 1988d, p.269). Dito de outra forma: “o capital portador de juros é o capital
enquanto propriedade em confronto com o capital enquanto função” (MARX, [1894]
1988d, p.269, grifos do autor).
Sendo assim, produção e finanças estão inevitavelmente ligadas. Como dissemos,
esse processo de intensificação dos fluxos financeiros possui uma base material e encontra
raízes nas condições de produção encontradas pelos capitalistas. Essas novas configurações
estão intimamente relacionadas, portanto, ao desenvolvimento da base produtiva e, mais
que isso, à busca pelo enfrentamento das barreiras que são freqüentemente impostas ao
padrão de acumulação, por conta das contradições que são a ele inerentes.
49

Esse quadro vem gerando uma situação em que a riqueza financeira parece ter se
descolado das condições postas pela riqueza real, gerando uma hipertrofia financeira que
tem conduzido à existência de inúmeras “bolhas especulativas” e a um enorme
descompasso no mercado de câmbio. Para se ter uma ideia, o PIB mundial estava em torno
de US$ 10 trilhões em 1980 e, em 2008 passou para cerca de US$ 48 trilhões. Os ativos
financeiros negociados, entretanto, passaram de US$ 12 para 167 trilhões
aproximadamente13. Isto significou um aumento do total de ativos financeiros negociados
da ordem de 1.391,66% no período destacado. Mas não se trata apenas do aumento dos
fluxos: os valores fictícios passaram de algo em torno de 120% para 348% da riqueza de
todas as nações juntas.
O volume e o significado que este processo assume nos nossos dias não foram
vivenciados por Marx. Apesar disso, ele já sinalizava que “[...] como duplicatas que são,
em si mesmas, negociáveis como mercadorias e, por isso, circulam como valores-capitais,
elas são ilusórias e seu montante de valor pode cair ou subir de modo inteiramente
independente do movimento do valor do capital real, sobre o qual são os títulos” ([1894]
1988e, p. 13).
Um dos elementos fundamentais para se pensar esses fluxos financeiros é o papel
que a dívida pública assume nesse processo. Passaremos por este debate na seção 1.2, mas
nos deteremos neste ponto na seção 1.4. Desde já adiantamos que, se levarmos em
consideração que esse título público, como sinalizamos, assegura ao seu proprietário a
possibilidade de receber parte das receitas do Estado e se acrescentarmos a isso a
significativa e crescente participação da dívida no Produto Interno Bruto (PIB) da maioria
dos países industrializados, veremos que o debate sobre o fundo público é indispensável
para compreendermos as particularidades da dinâmica de acumulação capitalista na
atualidade.

13
Dados divulgados pelo Brasil de Fato – Ano 7 – Número 339 – Julho/2009, p. 2.
50

1.2 O fundo público

O debate sobre o fundo público muitas vezes é conduzido como se fosse uma
questão puramente técnica. Esta abordagem faz parecer que tratam-se de recursos
arrecadados por meio dos impostos pagos pelos contribuintes que precisam ser gastos de
forma eficiente e responsável. Assim, todas as pessoas que, de alguma forma, pagam
impostos são vistas em pé de igualdade, tanto do ponto de vista da contribuição, quanto da
capacidade de definição na forma como deve ser seu dispêndio.
Esta perspectiva, de alguma maneira, estimula também o entendimento de uma
suposta neutralidade no que diz respeito a estes gastos e acarreta uma limitação do debate,
o qual fica restrito a uma preocupação em reduzir o desvio de recursos e a uma necessidade
de adequação entre receitas e despesas. Como se o problema fosse “saber gastar”, ou seja,
administrar a escassez, o problema da tributação e do orçamento é tratado sem considerar o
conteúdo político por trás destas afirmações.
Consideramos importante ressaltar que os chamados “contribuintes” não constituem
um conjunto homogêneo de pessoas que pagam da mesma forma e têm os mesmos direitos
em relação à forma como eles serão despendidos. Ao mesmo tempo, tanto a arrecadação
quanto o gasto, não se resumem a uma questão técnica e têm como pano de fundo a forma
como a sociedade se organiza e a correlação de forças existentes. Mais do que isso, ao
contrário de neutralidade, a forma como isso acontece, ao mesmo tempo em que é
resultado da luta de classes, interfere nela, podendo contribuir para produzir condições
mais ou menos favoráveis aos trabalhadores.
Partimos do entendimento de que o fundo público é composto por recursos
arrecadados sob a forma de impostos e contribuições pagos tanto pela classe trabalhadora,
quanto por capitalistas. Principalmente nos países em que há uma grande desigualdade de
renda e riqueza, como é o caso brasileiro, esta arrecadação não se dá de forma igualitária,
muito menos progressiva, de modo que a maior parte advém de parcelas significativas do
salário recebido pela classe trabalhadora. Para se ter uma ideia, do total de recursos do
fundo público, mais da metade é arrecadada por meio de impostos indiretos14

14
A tributação indireta é considerada regressiva tendo em vista que recai sobre os contribuintes na mesma
medida, independente do nível de renda de cada um. Sendo assim, o imposto pesa mais no orçamento das
51

(SALVADOR, 2010) e menos de 4% advém de tributação sobre o patrimônio, que seria


uma forma de onerar os detentores de propriedade privada. Isto sem falar que, mesmo a
parcela paga pelos capitalistas, tem sua origem no trabalho e, portanto, na mais valia
extraída por meio da exploração da classe trabalhadora.
Ao mesmo tempo, os recursos retornam para estes “contribuintes” por meio de
políticas sociais e econômicas. Significa dizer que eles podem se concentrar mais em
assegurar as condições para melhorar as taxas de lucro ou em melhorar a distribuição de
renda e as condições de vida da classe trabalhadora, de modo que, a forma como se dá a
repartição entre as classes, depende da correlação de forças de cada momento histórico.
Assim, ainda que seja possível identificar um caráter de classe no Estado, é possível
perceber uma disputa pela forma como seus recursos são arrecadados e utilizados.
A análise acerca do fundo público precisa ser entendida em meio à realidade
contraditória inerente ao modo de produção capitalista, afinal, este é objeto de disputa
entre os diferentes interesses da classe trabalhadora e do capital. Sua utilização depende,
portanto, da configuração que assume a luta de classes. Além disso, sabemos que o Estado
não é neutro e que suas ações, ainda que não sejam totalmente insensíveis às pressões que
vêm da sociedade, possuem um nítido caráter classista, de modo que a gestão do fundo
público está sempre, de alguma forma, comprometida com os interesses da classe
dominante.
Na medida em que cresce a atuação do Estado no sentido de garantir as condições
gerais de produção capitalista, nos termos em que Mandel ([1972] 1985)15 destaca, o fundo
público vai se tornando, cada vez mais, um elo fundamental na reprodução do sistema. Ao
mesmo tempo, suas formas de intervenção vão se diversificando e complexificando,
assumindo contornos não vivenciados por Mandel e que pressupõem alterações inclusive
na forma como o fundo público é utilizado, como pretendemos demonstrar. O que

famílias que detêm os níveis de renda mais baixos. São considerados impostos indiretos aqueles que incidem
sobre a produção, circulação e consumo de bens e serviços.
15
Muitas foram as contribuições de Mandel para o debate acerca da caracterização do Estado. Uma de suas
preocupações consistiu em analisar como o Estado pode contribuir para interferir de modo a garantir taxas de
retorno mais favoráveis ao capital. As possibilidades elencadas por ele são inúmeras, dentre elas destacamos:
aumento da indústria bélica; ampliação das possibilidades de planejamento e dos mecanismos de socialização
de custos e de perdas nos processos produtivos; garantia das oportunidades de investimento que propiciem
uma valorização mais rápida do capital excedente; utilização de instrumentos que vão desde o manuseio de
políticas anticíclicas até a manipulação ideológica da classe trabalhadora para evitar todo o tipo de revoltas
populares (MANDEL, [1972] 1985).
52

queremos destacar é que o fortalecimento dessa função do Estado ajuda a explicitar o


aumento da dificuldade do capital de garantir a continuidade no seu processo de
valorização.
Francisco de Oliveira (1998) possui um polêmico, mas fecundo estudo acerca da
importância do fundo público, publicado em um livro intitulado Os direitos do antivalor: a
economia política da hegemonia imperfeita. Procuraremos destacar aqui algumas de suas
principais ideias, ressaltando os pontos que nos aproximam e que nos distanciam das suas
observações.
De início, o autor chama a atenção para o fato de que o Estado de Bem Estar Social
instituiu novo padrão de financiamento público em que este não apenas passa a se dar de
forma abrangente, como estrutural. As tendências crescentes a crises por um lado, e o
crescimento do movimento operário por outro, contribuíram para pressionar o Estado a dar
respostas às demandas postas pelo capital sem, contudo, ser possível ignorar
completamente as reivindicações da classe trabalhadora. Sendo assim, ele passa a ser o
responsável por financiar tanto a reprodução da força de trabalho – via políticas públicas –
quanto a acumulação de capital – por meio de subsídios diversos e da adoção de políticas
econômicas que contribuíam para garantir a rentabilidade.
Diferentemente do período anterior, em que a esfera pública tem uma importância,
mas de forma pontual, este novo padrão de financiamento impõe um paradigma de relação
entre o fundo público e os capitais particulares. Para Francisco de Oliveira, “o fundo
público é agora um ex ante das condições de reprodução de cada capital particular e das
condições de vida, em lugar de seu caráter ex post, típico do capitalismo concorrencial”
(1998, p. 21). Este fato merece destaque tendo em vista que assume proporções tão
significativas que, nas palavras do autor, a “taxa de lucro passa pelo fundo público, o que
o torna um componente estrutural insubstituível” (1998, p. 21, grifo do autor).
Concordando com esta abordagem, mas indo um pouco além, Behring afirma que,
na particularidade da dinâmica de acumulação capitalista em sua fase monopolista, “o
fundo público passou a se constituir como um elemento nem ex ante, nem ex post do
processo de produção e reprodução capitalista, como se supõe que fosse ao período
concorrencial, mas um componente in flux do mesmo, que está ali presente no ciclo D – M
– D’” (2010, p. 22). Isto quer dizer que se parte do fundo público tem origem na produção
de mais valia repassada para o Estado por meio de impostos, ele retorna para o capital de
diversas formas, dentre elas a remuneração aos credores da dívida pública, contratos e
53

editais realizados com o setor privado, disponibilidade de crédito para as empresas etc.
Este fato repõe o fundo público em um outro patamar, com repercussões sobre os
processos estabelecidos no âmbito do circuito do valor.
Uma das formas em que podemos observar as mudanças na condução do fundo
público diz respeito à ampliação dos gastos com a reprodução da força de trabalho. Este
fato, como já mencionamos, possui um conteúdo contraditório. Se por um lado, representa
uma demanda da classe trabalhadora por melhoria na qualidade de vida, por outro,

a transferência para o financiamento público de parcelas da reprodução da força


de trabalho é uma tendência histórica de longo prazo no sistema capitalista; a
expulsão destes custos do ‘custo interno de produção’ e sua transformação em
socialização dos custos foi mesmo, em algumas sociedades nacionais, uma parte
do percurso necessário para a constituição do trabalho abstrato [...] (OLIVEIRA,
Francisco, 1998, p. 22).

O autor destaca que, mesmo quando implementam ações que consistem em


respostas às demandas da classe trabalhadora por melhoria na qualidade de vida, os gastos
públicos possuem um conteúdo contraditório e favorecem também a acumulação. Essa
postura do Estado contribuiu para que a classe trabalhadora alimentasse o consumo de
massa, estimulando principalmente o mercado de bens duráveis no período pós-segunda
guerra. Ao mesmo tempo, contribuiu para reduzir o custo do capital com a reprodução da
força de trabalho ao garantir acesso a direitos como saúde e educação públicas.
Este padrão de financiamento público entrou em crise e favoreceu a geração e a
intensificação do déficit público em diversos países que o adotaram. Francisco de Oliveira,
entretanto, destaca que o termo crise do Estado-providência é “frequentemente mais
associado à produção de bens sociais públicos e menos à presença dos fundos públicos na
estruturação da reprodução do capital, revelando, pois um indisfarçável acento ideológico
na crítica à crise” (1998, p. 24). Nesta análise, o autor procura desvendar o caráter de
classe das formulações dominantes acerca das críticas ao perfil do gasto público. Estas, de
uma maneira geral, denunciam os gastos voltados para a classe trabalhadora, ao passo que
preservam e legitimam aqueles diretamente vinculados ao fortalecimento da acumulação
capitalista. Deste modo, responsabilizam os recursos voltados para a reprodução da força
de trabalho pelo déficit no orçamento público. Um discurso que advoga a necessidade de
ajustes fiscais, o que significa a ampliação dos repasses para o capital em detrimento do
trabalho.
54

De qualquer forma, podemos perceber que “ao lado do déficit público e das receitas
e despesas estatais como proporção do PIB [...] as proporções e o lugar da dívida pública
dos principais países confirmam o lugar estrutural do fundo público na sociabilidade geral”
(OLIVEIRA, Francisco, 1998, p 24). O autor articula, portanto, a importância que o fundo
público passa a ter para a reprodução ampliada do capital ao aumento da dívida pública,
explicitando que este é um dos principais mecanismos do Estado na garantia das condições
de acumulação capitalista.
Para ele, os limites da regulação keynesiana se devem fundamentalmente à
internacionalização financeira e produtiva da economia capitalista. A desterritorialização,
ao promover uma internacionalização da produção, reduz os ganhos fiscais relativos aos
investimentos e a renda, que passam a se dar em diversos países. Ao mesmo tempo, as
demandas, que pesavam sobre o fundo público no sentido de articular e financiar a
reprodução do capital e da força de trabalho, permanecem, embora contem com uma base
de arrecadação menor. Este fato “gera uma crescente incompatibilidade entre o padrão de
financiamento público e a internacionalização produtiva e financeira” (1998, p. 27).
Os elementos teóricos para entender a crise, portanto, estariam centrados no que o
padrão de financiamento público teria produzido, e é aí que aparecem nossas diferenças em
relação à análise do autor. “No fundo, levado às últimas consequências, o padrão do
financiamento público ‘implodiu’ o valor como único pressuposto da reprodução ampliada
do capital, desfazendo-o parcialmente enquanto medida da atividade econômica e da
sociabilidade em geral” (OLIVEIRA, Francisco, 1998, p. 27).
A argumentação de Francisco de Oliveira (1998) passa pelo fato de que a
particularidade da relação contemporânea entre fundo público e cada capital em particular
(no sentido de potencializar a acumulação), teria feito com que o primeiro funcionasse
como um “anticapital”16, assim como os bens e serviços prestados pelo Estado teriam se
tornado “antimercadorias”17. A fundamentação em torno dos reflexos que a mudança do
lugar do fundo público tem sobre a teoria do valor vai longe e ele chega a afirmar que este

16
O fundo público se comportaria como um anticapital tendo em vista que “essa contradição entre um fundo
público que não é valor e sua função de sustentação do capital destrói o caráter auto-reflexivo do valor,
central na constituição do sistema de valorização do valor” (OLIVEIRA, Francisco, 1998, p. 29, grifo do
autor).
17
“Esses bens e serviços [públicos] funcionaram, na verdade, como antimercadorias sociais, pois sua
finalidade não é a de gerar lucros, nem mediante sua ação dá-se a extração de mais valia” (OLIVEIRA,
Francisco, 1998, p. 29, grifo do autor).
55

processo de “desmercadorização” teria como desdobramento a anulação do fetiche da


mercadoria e sua substituição pelo fetiche do Estado.
Não queremos nos alongar no resgate às mudanças na teoria do valor que, segundo
ele, estariam sendo operadas neste contexto sócio-histórico, apesar de considerarmos
oportuno fazer um convite à leitura das principais teses que o autor registra na referida
obra. Concordamos com a sua afirmação de que o fundo público assume um lugar
estrutural no processo de acumulação capitalista, mas não acreditamos que isto implicaria
em uma mudança na essência da teoria do valor-trabalho desenvolvida por Marx. Estamos
de acordo com a afirmação de Behring de que “o fundo público não pode ser considerado
um antivalor, como pensa Oliveira, uma vez que o mesmo participa de forma direta e
indireta do ciclo de produção e reprodução ampliada do valor” (2008, p. 54). Em outras
palavras, tanto produzindo mercadorias diretamente, quanto por meio de suas ações de
incentivo ao capital ou de atendimento às demandas da classe trabalhadora, o fundo
público atua sobre a lei do valor e está inevitavelmente inserido neste processo. Se
olharmos também, do ponto de vista da sua composição, veremos que parte considerável
de recursos utilizados para estas ações são obtidos por meio da canalização de mais valia
para o fundo público.
A utilização do Estado para garantir as condições de acumulação capitalista foi um
dos elementos levantados por Marx e reforçados por muitos dos principais pensadores da
tradição marxista, dentre os quais destacamos Mandel. Não nos parece que, ainda que as
proporções sejam maiores atualmente, isso seja suficiente para advogarmos no sentido da
necessidade de uma revisão da lei do valor. Ao contrário, é justamente porque a lei do
valor está operando, e, com isso, a tendência decrescente da taxa de lucro, que o fundo
público vai, paulatinamente, assumindo esta posição.
Entretanto, ainda que com as ressalvas acima, consideramos importantes as
contribuições de Oliveira em sua análise sobre o significado do fundo público no momento
histórico em que vivemos. Para finalizar o diálogo com este autor, gostaríamos de resgatar
um trecho em que ele parece sintetizar sua análise no que ela tem de mais original e
pertinente:

O que torna o fundo público estrutural e insubstituível no processo de


acumulação de capital, atuando nas duas pontas de sua constituição, é que sua
mediação é absolutamente necessária pelo fato de que, tendo desatado o capital
de suas determinações autovalorizáveis, detonou um agigantamento das forças
produtivas de tal forma que o lucro capitalista é absolutamente insuficiente
56

para dar forma, concretizar, as novas possibilidades de progresso técnico


abertas. Isto somente se torna possível apropriando parcelas crescentes da
riqueza pública em geral, ou mais especificamente, os recursos públicos que
tomam a forma estatal nas economias e sociedades capitalistas (1998, p. 31-32,
grifo do autor).

Estas são as linhas gerais da argumentação de Oliveira que consideramos oportuno


trazer para o debate. É deste lugar estrutural que o fundo público assume, que pretendemos
conduzir as análises sem, contudo, colocar em xeque a importância da lei do valor para
entendermos as particularidades da realidade que vivemos.
Se foi durante o período do Estado de Bem Estar Social que o fundo público
assumiu uma maior importância na dinâmica de acumulação capitalista, com a sua crise,
em torno dos anos 70 do século passado, este processo se intensifica ainda mais. A crise no
padrão de acumulação estava contribuindo para reduzir a taxa de lucro. Este fato,
estimulou o deslocamento de significativa parte dos recursos para a esfera financeira, na
busca de garantir as margens de rentabilidade. Sendo assim, é nesta década que se
consolidam as operações financeiras em escala internacional, avançando em um processo
que – mesmo não tendo início neste momento – passam a ganhar uma importância
expressiva.
Essas mudanças vieram também acompanhadas de um processo de reestruturação
produtiva, além de uma intensa fragilização e fragmentação dos movimentos sociais. A
configuração do Estado também se altera, mudando significativamente a condução das
políticas econômicas e sociais, fato que tem implicações no perfil do gasto público. A
intervenção direta do Estado na produção, ainda que não desapareça, perde espaço para
uma postura que favorece a rentabilidade financeira, tendo a dívida pública um papel de
destaque. Estas mudanças na forma como os recursos públicos são gastos tornam
fundamental uma análise mais detalhada acerca da dinâmica do fundo público. Trata-se da
necessidade de entender não apenas a sua composição, mas também de identificar o
destino desses recursos e o seu significado para a luta de classes.
Para tanto, é preciso ter em mente a regressividade que marca o perfil da
arrecadação tributária em diversos países, dentre eles o Brasil (BEHRING, 2008;
SALVADOR, 2010). Os recursos do fundo público consistem em um montante arrecadado
mediante o pagamento de impostos e contribuições. Esta apropriação por parte do Estado
é, de forma direta ou indireta, fruto do processo de produção de mercadorias e vêm,
portanto, do trabalho despendido nessa produção. Tal apropriação se dá basicamente de
57

duas formas: uma parcela vem da mais valia produzida e recai sobre os donos do capital e
a outra consiste em parte do trabalho necessário, parcela do salário pago pelos
trabalhadores na forma de impostos, sobretudo indiretos. Quando falamos em tributação
regressiva, esta última parcela tende a ser maior do que a primeira.
Neste caso, Behring adverte que “a exploração do trabalho na produção é
complementada pela exploração tributária crescente nesses tempos de intensa crise”
(2010, p. 21, grifo da autora), em que a classe trabalhadora, dada a correlação de forças
desfavorável, acaba sendo mais onerada e tendo um menor poder de pressão para
empreender suas disputas pelo fundo público. Esta exploração a que se refere a autora
advém do fato de que a burguesia encontra formas cada vez mais sofisticadas de se
apropriar do valor gerado pela classe trabalhadora.
Não é novidade, para quem tem alguma aproximação com a teoria do valor
desenvolvida por Marx, que a classe trabalhadora contribui para o processo de valorização
por receber um valor menor do que o valor que gera no circuito de produção de
mercadorias. A questão que estamos querendo enfatizar é que, na atualidade, os detentores
do capital vem se apropriando, por meio do Estado, cada vez mais do trabalho necessário.
Significa dizer que, mesmo a parte do valor gerada pela classe trabalhadora que fica sob
seu poder, acaba sendo, em alguma medida, redirecionada para o Estado, sob a forma do
pagamento de impostos. Segundo um documento do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA), com base em dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), intitulado Receita pública: quem paga e como se gasta no Brasil
(BRASIL, 2009), famílias com renda mensal de até 2 (dois) salários mínimos gastam, em
média, 50% de sua renda com o pagamento de tributos, ao passo que aquelas com renda de
mais de 30 salários, pagam menos de 30%.
O investimento em políticas sociais consistiria em uma forma de fazer retornar
parte desses recursos para a classe trabalhadora, por meio da prestação de serviços públicos
voltados para o atendimento das necessidades desse segmento. A universalidade na
prestação desses serviços foi uma característica perseguida de forma mais intensa nos
países europeus do pós-guerra, mas era de alguma forma, o horizonte buscado pelos
Estados mesmo fora desse seleto grupo, ainda que limitado ao plano da retórica.
Como veremos nas seções seguintes, com a crise dos anos 1970, podemos observar
uma alteração significativa na configuração dessas políticas sociais, tanto do ponto de vista
da sua abrangência, quanto dos instrumentos mais utilizados para sua implementação. Em
58

linhas gerais, podemos observar uma redução nas políticas de caráter universal e um
avanço da iniciativa privada na gestão destas políticas18, ao passo que ganham maior
fôlego as políticas de assistência, em especial, as transferências de renda, tendo essas um
papel fundamental no deslocamento de fundo público para as instituições financeiras19
(para maiores detalhes ver, GRANEMANN, 2007; SILVA, 2010).
A parte mais significativa dos recursos públicos, entretanto, retorna para a classe
dominante por meio das ações do Estado para garantir as condições gerais de produção e,
com isso, contrarrestar a tendência decrescente da taxa de lucro. Essas ações podem
acontecer via intervenção direta nos moldes destacados por Mandel ([1972] 1985), mas
vêm se dando fundamentalmente por meio das decisões na condução da política econômica
no sentido de garantir e ampliar a rentabilidade financeira.
Trata-se agora de discutirmos de forma mais cuidadosa o processo de
financeirização, identificando suas raízes e contradições, para que possamos voltar ao
debate das políticas sociais e suas tendências contemporâneas.

1.3 O capital financeiro e a marca da financeirização no processo de


desenvolvimento capitalista

De início, gostaríamos de resgatar que uma das marcas do atual estágio de


desenvolvimento do capitalismo é o processo de financeirização, o qual tem, sob seu
comando, o capital financeiro. Funcionando como a fusão dos grandes bancos com a
grande indústria – para recorrermos à elaboração de Hilferding ([1910] 1985), reforçada
por Lenin ([1917] 2012) –, o capital financeiro mantém íntima relação com o processo de

18
Um exemplo disso são as Organizações Sociais (OS), mecanismo criado pelo governo Fernando Henrique
Cardoso, em 1998, e que vem crescendo nos últimos anos, usado para passar à iniciativa privada a gestão de
unidades da área da saúde, educação, cultura, dentre outras.
19
Gisele Silva, ao fazer uma análise dos programas de transferência de renda brasileiros, destaca que, “por se
constituírem por meio de repasses monetários não operados diretamente pelo aparato estatal, ambos
remuneram terceiros para a realização destes serviços. Neste caso, remuneram bancos para a realização
destas operações” (2010, p 141). A autora chama, com isso, a atenção para o fato de que parcelas
consideráveis do fundo público são deslocadas para instituições financeiras públicas e privadas, com a
finalidade de operar programas que integram as políticas sociais desenvolvidas pelo governo federal, além de
inserirem os usuários destas políticas no circuito financeiro .
59

concentração e centralização do capital e opera recorrentemente com o capital que porta


juros. Nas palavras de Hilferding:

Chamo de capital financeiro o capital bancário, portanto o capital em forma de


dinheiro que, desse modo, é na realidade transformado em capital industrial.
Mantém sempre a forma de dinheiro ante os proprietários, é aplicado por eles em
forma de capital monetário – de capital rendoso – e sempre pode ser retirado por
eles na forma de dinheiro. Mas, na verdade, a maior parte do capital investido
dessa forma nos bancos é transformado em capital industrial, produtivo (meios
de produção e força de trabalho) e imobilizado no processo de produção. Uma
parte cada vez maior do capital empregado na indústria é capital financeiro,
capital à disposição dos bancos e, pelos industriais (HILFERDING, [1910] 1985,
p. 219).

O capital financeiro, deste modo, constitui-se por meio da participação ativa dos
bancos na transformação do capital monetário em capital produtivo e não da sua atuação
através da simples concessão do crédito. Lenin complementa a definição de Hilferding
ressaltando que não se trata apenas da relação entre o capital bancário e o capital industrial,
mas de uma determinada forma de junção, que acontece em período histórico específico:
“concentração da produção; monopólios resultantes dela; fusão ou junção dos bancos com
a indústria: tal é a história do aparecimento do capital financeiro e do conteúdo deste
conceit” ([1917] 2012, p. 75).
Este fato se dá, dentre outras formas, por meio da aquisição de ações. O banco-
acionista, uma vez tendo disponibilizado seu capital à empresa, uma sociedade anônima20,
passa a ter direito a uma participação no rendimento desta. Seu retorno não é, portanto,
estabelecido previamente, como acontece com o empréstimo, que é feito como capital
bancário. Na realidade, seu retorno não é nem garantido.
Este rendimento, no entanto, não é completamente indeterminado e as estimativas
são calculadas com base em um estudo pormenorizado da situação da empresa. Hilferding
ressalta que “de modo geral, a insegurança relativa do acionista, talvez maior que a do

20
“[...] a sociedade anônima compõe seu capital juntando porções individuais de capital que, separadamente,
talvez sejam pequenas demais para desempenhar uma função industrial – seja de modo geral, seja no ramo
industrial específico ao qual se restringe a sociedade anônima” (HILFERDING, [1910] 1985, p.124). Neste
sentido, “o capital fragmentado é reunido em forma de um capital fictício. Não se deve pensar, aliás que a
reunião de pequenos capitais, fragmentos eventuais de capitais maiores, tenha a mesma participação que a
dos pequenos capitalistas. Capitais pequenos podem pertencer a capitalistas bem grandes. Os pequenos
capitais dos pequenos capitalistas são mais reunidos pelos bancos do que pela sociedade anônima”
(HILFERDING, [1910] 1985, p. 126).
60

capitalista monetário, rende-lhe certo prêmio de risco” ([1910] 1985, p.112). O banco,
nesta condição, passa a ter acesso à participação direta no lucro da empresa e não a um
fragmento deste sob a forma de juros.

A sociedade anônima é uma sociedade de capitalistas. Ela é sempre constituída


por meio de inversão de capital em ações; o grau de participação de cada
capitalista na organização é proporcional ao capital investido; seu direito de voto
e sua influência naturalmente se regulam, por isso, pelo tamanho de seu
investimento. O capitalista só é capitalista na medida em que dispõe de capital e
só se diferencia dos outros capitalistas em termos quantitativos. Em tais
condições, todo o poder de mando se concentra em mãos do acionista
majoritário. Para exercer o controle da sociedade anônima é necessário, pois, ser
21
proprietário da metade apenas do capital e não da totalidade como acontece na
empresa individual. Isso duplica o poder dos grandes capitalistas
(HILFERDING, [1910] 1985, p. 121- 122).

Este poder dos grandes capitalistas é aumentado, por um lado, porque ampliam-se
as possibilidades de investimento e, deste modo, de crescimento e aprimoramento da
capacidade produtiva, e, por outro lado, a fragmentação da propriedade da empresa
aumenta o poder de mando do grande acionista. Este já não precisa mais deter todo o
capital necessário para produzir, basta que detenha a maioria das ações para exercer o total
controle sobre a produção. A situação indicada pode favorecer ainda mais o grande capital,
caso atraia novos investidores, estimulando a intensificação da concentração industrial, o
que acontece com bastante frequência. Como destaca Lenin, “a ‘democratização’ da posse
das ações – da qual os sofistas burgueses e os ‘pseudossocial-democratas’ oportunistas
esperam (ou dizem que esperam) [...] é na realidade um dos meios de reforçar o poder da
oligarquia financeira” ([1917] 2012, p. 77).
O acionista, de uma maneira geral, não precisa ser um capitalista industrial, nem
mesmo entender muito sobre produção para adquirir suas ações. Basta que disponibilize o
capital-dinheiro de que deseja dispor para o capitalista industrial. Este sim vai usar todos
os seus conhecimentos na área para tomar as decisões que lhe cabem. É ele quem tem o
poder de mando sobre o capital.
Sendo capaz de reunir um volume bem maior de capital, estas empresas ampliam as
possibilidades de investimento se inserindo em setores que eram viáveis apenas para o

21
Muitas vezes, não precisa deter nem mesmo a metade do capital. A maioria das ações pode consistir em
maioria absoluta (metade mais um, no caso 51%). Na prática, de uma maneira geral, ela é bem menor, 20 ou
30%, podendo ser até menos, se as ações estiverem muito pulverizadas (nas mãos de muitos pequenos
acionistas).
61

Estado, por conta da magnitude do capital exigido. O investimento pesado em capital fixo
e a ampliação das escalas de produção passam a ser corriqueiros neste estágio de avanço
das forças produtivas, caracterizando o que chamamos de capitalismo monopolista. Um
estágio que, como Netto aponta:

[...] assinala uma inflexão em que a totalidade concreta que é a sociedade


burguesa ascende à sua maturidade histórica, realizando as possibilidades de
desenvolvimento que, objetivadas, tornam mais amplos e complicados os
sistemas de mediação que garantem a sua dinâmica. Donde, simultaneamente, há
contínua reafirmação das suas tendências e regularidades imanentes (as suas
“leis” de desenvolvimento gerais, capitalistas) e a concreta alteração delas (as
“leis” particulares do estágio imperialista) (1996, p.16).

Uma das características desta etapa é o redimensionamento dos agentes produtivos


na dinâmica mais geral do processo produtivo. Este redimensionamento se expressa por
meio da centralidade que ganha o capital financeiro. Para Lenin, “o imperialismo, ou
domínio do capital financeiro, é o capitalismo no seu grau superior [...]” ([1917] 2012, p,
89). Para o autor, há uma clara relação entre o poder político e o econômico de modo que
“o predomínio do capital financeiro sobre todas as demais formas do capital implica o
predomínio do rentista e da oligarquia financeira; implica uma situação privilegiada de uns
poucos Estados financeiramente poderosos em relação a todos os restantes” (LENIN,
[1917] 2012, p. 89).
Sendo assim, é o capital financeiro, via sociedade por ações, o grande
impulsionador da produção nesta etapa de desenvolvimento. Brunhoff destaca que: “da
mesma maneira que não há mercadoria sem moeda, não há capital produtivo sem capital-
dinheiro, nem capital industrial sem capital financeiro” (1991, p. 154).
Podemos salientar também dois aspectos fundamentais que resultam destas
condições históricas e aprofundam este quadro: a concentração e a centralização do
capital22. Como concentração do capital, entendemos o processo decorrente da
intensificação da concorrência e da subsequente fase de monopolização da produção. Já a
centralização consiste na junção de capitais de diversos ramos em um só. Sendo assim, a
“centralização de capital implica um poder dirigente central, ou centralização do controle
dos meios de produção – em outras palavras, a propriedade privada centralizada”

22
Para maior aprofundamento, ver Marx ([1867] 1988a, cap. 23); Marx ([1894] 1988d; [1894] 1988e); Lenin
([1917] 2012); Mandel, ([1972] 1985); Harvey (2004), dentre outros.
62

(MANDEL, [1972] 1985, p. 227, grifo do autor). O crescimento e o aumento do volume do


capital passa a estimular a fusão de empresas e a ampliação dos setores em que elas atuam.
Essa realidade já estava, ainda que de forma embrionária, presente no final do
século 19 e início do século 20. Podemos dizer que, neste período, o capital financeiro –
que consiste, na verdade, na outra face do capitalismo monopolista –, ao guardar uma
relação umbilical com a produção, inaugura uma nova etapa no desenvolvimento das
forças produtivas, a etapa imperialista.
No entanto, apesar da existência do capital financeiro ser discutida desde o início
do século 20, a financeirização do capital é uma característica que singulariza o momento
em que vivemos. Ao que nos parece, as novas configurações existentes desde as últimas
décadas do século passado estão intimamente relacionadas ao desenvolvimento da base
produtiva e, mais que isso, à busca pelo enfrentamento dos limites que são frequentemente
colocados ao padrão de acumulação, por conta das contradições que são a ele inerentes.
Buscaremos levantar algumas destas contradições, mas gostaríamos primeiramente
de salientar que, quando falamos em aumento da autonomia na órbita financeira, estamos
falando de uma autonomia relativa. Tendo em vista que a geração de valor é atividade
exclusiva do setor produtivo, a valorização que ocorre na esfera financeira tem como base
um capital cuja origem está na produção. A busca da rentabilidade máxima no circuito
financeiro faz uso da mais valia gerada no processo produtivo, sendo o juro um ganho
derivado desta atividade.
Neste sentido, não poderíamos falar em completa autonomia, tendo em vista que
este setor se alimenta de recursos produzidos por outro setor, no caso, o setor produtivo,
fato que constitui, na verdade, uma transferência de riqueza. Este processo, portanto, tem
como base de constituição uma riqueza já criada, sendo ele próprio incapaz de criar algo.
Não há, portanto, a rigor, um processo de valorização (geração de mais valor) no circuito
das finanças.
Feita essa ressalva, consideramos importante iniciar o resgate histórico a partir do
período que se inicia no pós-segunda guerra por entendermos ser uma fase de significativa
importância para a configuração de uma determinada ordem mundial, marcada por um
conjunto de relações que permitiu a ocorrência de um longo período de crescimento para as
economias capitalistas. Este período tem, em seu cerne, elementos de fundamental
importância para que possamos aprofundar a discussão rumo às transformações com as
quais estamos nos deparando nas últimas décadas.
63

Sabemos que já em julho de 1944, quando representantes de 44 países se reuniram


em Bretton Woods (EUA), estavam sendo dados os primeiros passos em direção a uma
nova institucionalidade, como decorrência de uma nova correlação de forças nas relações
internacionais.
Novos padrões começaram a ser estabelecidos. Mais de um século depois, o
arcabouço teórico pautado no liberalismo dava sinais de esgotamento. Os movimentos
cíclicos23, tão característicos do capitalismo, haviam-se tornado cada vez mais difíceis de
serem contornados pela atuação do livre-mercado.
Os Estados Unidos despontaram indiscutivelmente como a grande potência
imperialista. Não podemos deixar de considerar, entretanto, a importância da União
Soviética – e da formação de um bloco socialista – para a configuração de uma ordem
econômica bipolar e para a decorrente existência do que se convencionou chamar de
Guerra Fria. As disputas entre estes dois grandes pólos de desenvolvimento mundial são
fundamentais para entendermos a configuração geopolítica do pós-guerra (ver NETTO,
1995; HARVEY, 2004).
Neste momento, os Estados Unidos não só são o único país capaz de ocupar uma
posição hegemônica24, como têm também as condições necessárias para financiar a
reconstrução da Europa e do Japão, completamente devastados pela guerra. E, de uma
certa forma, a segunda característica reforça ainda mais a primeira, consolidando,
definitivamente, a posição ocupada.
Nas palavras de Michael Moffit: “A missão de Bretton Woods era, em grande parte,
a de criar um ambiente internacional propício à emergência dos Estados Unidos no papel
de motor da recuperação mundial” (1984, p. 16). Desse modo, a “saúde” da economia
mundial passa a depender do desempenho da economia norte-americana.
Para viabilizar esta nova ordem, foram criados dois importantes organismos
multilaterais que refletem, de forma irrefutável, o poderio político-econômico-militar dos
Estados Unidos: o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Internacional para
Reconstrução e Desenvolvimento (Banco Mundial). Era a institucionalização da ideia de

23
Em termos gerais, chamamos de movimentos cíclicos o que Marx denominou de ciclo industrial; “o curso
característico da indústria moderna, um ciclo decenal, com a intercorrência de movimentos oscilatórios
menores, constituído de fases de atividade média, de produção a todo vapor, de crise e de estagnação [...]”
(MARX, 1980, p. 734).
24
Tomamos hegemonia aqui no sentido gramsciano, ou seja, entendemos que a hegemonia está pautada,
dentre outras coisas, no fato de um grupo ser capaz de universalizar seus interesses particulares.
64

que o mundo precisava de mecanismos de regulação supranacionais e a definição — não


tão institucionalizada, mas não menos clara — de que isto seria viabilizado sob a tutela
norte-americana. Este seria o fio condutor de uma dinâmica internacional de comércio e
desenvolvimento econômico nos moldes capitalistas que deveria ser levado para todo o
mundo não-comunista.
Os EUA tomaram para si a responsabilidade de restabelecer os parâmetros para a
organização mundial e fizeram isso submetendo os interesses de todo o mundo aos seus
próprios. O acordo firmado em Bretton Woods significou a clara expressão da preocupação
em estabelecer novos critérios nos quais os Estados Unidos se consolidassem como a
grande potência. Aloísio Teixeira, ao comentar o desenvolvimento das políticas adotadas
por este país no pós-guerra – tanto em relação aos adversários quanto aos inimigos –,
aponta que:

No que toca à Alemanha e ao Japão, por exemplo, o objetivo implícito era, senão
a sua desindustrialização, ao menos a desconcentração do poder econômico, em
mãos dos grandes grupos financeiros daqueles países.
Esta política tinha uma contrapartida em relação aos próprios aliados
americanos, evidenciada nos acordos de Bretton Woods. As regras que dali
resultaram, por sua rigidez, criavam sérias dificuldades para a recuperação
daqueles países. As consequências desta atitude não se fizeram sentir, no
entanto, apenas no plano econômico, mas sobretudo no plano político. E foi,
talvez, movido principalmente por razões políticas que os Estados Unidos se
viram obrigados a alterar sua posição (1994, p. 28).

Pouco tempo depois, em 1947, foi necessário redirecionar o curso das políticas
adotadas. O contexto da guerra fria e a fragilidade com que os países europeus e o Japão se
deparavam acabaram contribuindo para a definição de planos mais efetivos de
reconstrução européia. Tais planos, no entanto, acabaram por impor certos limites ao
poderio norte-americano e à sua capacidade de ditar regras que, como as de Bretton
Woods, reforçavam a posição de subalternidade dos demais países.
Teixeira (1994) ressalta três elementos que caracterizam esta “reviravolta”: a
aprovação do Plano Marshall, voltado para a reconstrução da Europa, envolvia não só a
destinação de recursos, como também criava as condições para uma futura integração
européia (entre os países capitalistas, é claro); aceitação do não-cumprimento de algumas
das regras estabelecidas em Bretton Woods no que diz respeito ao controle cambial, de
modo a permitir que diversos países efetuassem desvalorizações significativas em relação
ao dólar, como forma de garantir a competitividade externa; aceitação, por parte dos
65

Estados Unidos, de algum tipo de protecionismo nas economias européia e japonesa, bem
como a redução do protecionismo na sua economia.
Refeitas as relações do pós-guerra, estavam dadas, no âmbito internacional, as
condições para um processo de crescimento mundial sem precedentes na história do
capitalismo. Processo este em que as bases do pensamento liberal – que propunha a
autorregulação dos mercados e a tendência natural ao equilíbrio e à harmonia – foram
substituídas por um novo paradigma em que se aceitava, por parte da própria elite
capitalista, a existência de mecanismos de regulação não só nas relações internacionais,
como também no interior do Estado-Nação25.
Ainda que esta ideia tenha encontrado forte resistência no pensamento mais
conservador, o fato é que teve força suficiente para criar, no interior dos principais países
capitalistas, instrumentos de indução do crescimento econômico e de minimização dos
efeitos das crises. A busca generalizada dos capitalistas de obter uma rentabilidade segura
impôs limites ao propalado livre-mercado e garantiu uma dose de tolerância à – até então
famigerada – intervenção estatal.
Por outro lado, o movimento operário realizou algumas conquistas e tornou-se
também, menos radical em suas proposições, abrindo mão de lutas mais efetivas em prol
da transformação societária para enveredar por uma luta pautada na garantia de direitos já
adquiridos e pela satisfação de demandas pontuais e fragmentadas (ANTUNES, 1999).
Este quadro, marcado em alguma medida por uma amenização dos conflitos de
classes, estabeleceu-se juntamente com a consolidação do paradigma fordista26 de
produção e constituiu a base de desenvolvimento deste período, cujos efeitos, para o
desenvolvimento do capitalismo, Harvey aponta:

Assim, o período que vai de 1945 a 1970 foi a segunda etapa do regime político
27
da burguesia funcionando sob a égide do domínio e da hegemonia globais-

25
Estas mudanças foram operadas sob a “gestão social” da social-democracia, tendo como pano de fundo,
como já mencionado, uma ordem geopolítica bipolar. Segundo Netto, o desenvolvimento prático-político da
social-democracia se realizou sob pressão em dois níveis “internacional, com a existência do ‘campo
socialista’, com apelo sobre ponderáveis segmentos de trabalhadores e de intelectuais; nacional, com a
existência de núcleos comunistas disputando a direção do movimento operário” (1995, p. 49).
26
Sobre este assunto ver Antunes (1995 e 1999), Gounet (1999), Harvey (1992).
27
A primeira etapa destacada por Harvey (2004) vai do período de 1870 a 1945, a segunda de 1945 a 1970 e
a terceira de 1970 até os dias de hoje.
66

norte-americanos, que promoveram uma época de notável crescimento


econômico consistente nos países capitalistas avançados. Estabeleceu-se um
coeso grupo global tácito envolvendo todas as grandes potências capitalistas,
com os Estados Unidos num claro papel de liderança, a fim de evitar guerras
intestinas e partilhar os benefícios de uma intensificação de um capitalismo
integrado a regiões nucleares. A expansão geográfica da acumulação do capital
foi garantida mediante a descolonização e o “desenvolvimentismo” como meta
generalizada para o resto do mundo (2004, p. 55).

Este período de intenso crescimento econômico aconteceu, portanto, sob a égide da


economia norte-americana e se manteve graças à transposição de seu padrão de produção e
consumo aos demais países do centro.
No entanto, ela se consolidou em meio a uma profunda contradição no tocante à
questão monetária. Uma contradição dada pela dificuldade em conciliar os objetivos da
política econômica doméstica e o papel de potência hegemônica, fundamental para garantir
a manutenção da ordem mundial, tal como ela se configurou28. O dólar, ao ser definido
como moeda internacional, impôs a necessidade de colocar a economia dos EUA como
uma grande exportadora de dólares para o resto do mundo, via déficits no Balanço de
Pagamentos. No entanto, o aumento do déficit punha em xeque a credibilidade desta
mesma economia, em função da possibilidade de enfrentar dificuldades para atender às
demandas de conversão em ouro29.
Este impasse começou a tomar proporções preocupantes ao longo da década de
1960, quando a Europa e o Japão estavam fortalecidos e começaram a disputar com os
EUA os mercados existentes, além de aumentarem significativamente suas exportações
para a grande potência.
Aliado ao aumento do déficit do Balanço de Pagamentos, alguns problemas
internos30 e o aumento da inflação contribuíram para corroer o valor da moeda norte-

28
Esta dificuldade de conciliação ficou conhecida como “paradoxo de Triffin” em homenagem a Robert
Triffin, primeiro estudioso a identificá-la.
29
Vale lembrar que um dos pontos do acordo firmado em Bretton Woods é a paridade dólar-ouro, de modo
que deveria haver, no território estadunidense, ouro em quantidade suficiente para garantir a paridade.
30
Dentre os principais problemas internos, podemos destacar: no plano produtivo, a redução do impulso
dinâmico, que marcou o período de expansão, decorrente do esgotamento do padrão industrial vigente; com
relação ao setor público, a redução da atividade econômica contribui para diminuir a base de arrecadação ao
mesmo tempo em que aumenta as demandas que recaem sobre o Estado; “quanto aos salários, sempre
apresentados como responsáveis pelas tendências aparentes de profit squeeze, experimentavam um duplo
movimento: os salários nominais subiam, em consequência do último miniboom sincronizado antes do
choque do petróleo (1970-1973), quando se verificou uma modificação dos preços relativos favorável às
matérias-primas e aos alimentos (TEIXEIRA, 1994, p. 33).
67

americana. Este fato influenciava todos os países com reservas em dólar, de modo que a
crise doméstica estava sendo exportada para os demais países que dependiam desta moeda
para efetuar as transações internacionais. Em outras palavras, havia um excesso de liquidez
no mercado de dólares do mundo e um sistema artificial de manutenção do valor dessa
moeda. Este quadro parecia difícil de ser alterado. As dificuldades em se desvalorizar o
dólar unilateralmente residiam no fato de que vários países já haviam alertado que
desvalorizariam suas moedas na mesma intensidade, anulando deste modo, o efeito que se
pretendia obter.
Se, para o governo dos Estados Unidos, a situação exigia cautela, para as empresas
multinacionais norte-americanas, por outro lado, havia um crescente estímulo para
aumentar o investimento e a produção no exterior, dado o desequilíbrio entre a paridade
oficial e a cotação de mercado do ouro em dólares. Deste modo, esta situação favorecia a
saída de capital produtivo dos EUA, intensificando o quadro de inflação e de desemprego
neste país. Ao mesmo tempo, este contexto contribuía para um desestímulo cada vez maior
às exportações e estímulo às importações, o que agravava ainda mais o desequilíbrio do
Balanço de Pagamentos desta superpotência.
Está presente aqui a intensificação de uma contradição apontada por Harvey (2004)
na análise do “imperialismo capitalista”, no que diz respeito à lógica territorial do poder e a
lógica capitalista do poder. Esta seria a contradição fundamental presente na constituição
do imperialismo e abarca a interrelação entre o domínio econômico e político. Uma de suas
expressões passa pelo fato de que o capitalista procura vantagens individuais e deseja
aplicar seu capital onde quer que vislumbre possibilidades de lucro. Já o homem de Estado
busca manter e aumentar o poder de seus próprios Estados. Ele “procura vantagens
coletivas, vendo-se restringido pela situação política de seu Estado, sendo em algum
sentido responsável perante uma comunidade de cidadãos ou, o que é mais frequente,
perante um grupo de elite, uma classe, uma estrutura de parentesco ou algum grupo social”
(2004, p. 32). Cabe ao Estado imperialista, por meio das estruturas institucionais, procurar
estabelecer um direcionamento ao processo de tomada de decisões, procurando atenuar
esta contradição e estabelecer o cenário em que se favoreça a acumulação capitalista
juntamente com o aumento do poder político31.

31
Ainda assim, em muitos momentos esta contradição aparece de forma inconteste. O autor cita o exemplo
da Guerra no Vietnã ou a invasão no Iraque, como momentos que passam mais pela necessidade de
demonstração de força por parte do Estado, do que de uma demanda da acumulação capitalista. “A relação
68

Sendo assim, diversas foram as medidas adotadas para conter o fluxo de saída de
capitais, uma das mais significativas na direção de um controle efetivo deste desajuste foi a
criação do Imposto de Equalização dos Juros (IEJ) em 1963. O IEJ surgiu como forma de
conter os empréstimos que estrangeiros contraíam nos Estados Unidos, através do
estabelecimento de um acréscimo para a taxa de juros, na tentativa de restringir a função de
“banqueiro do mundo” e, deste modo, impor limites à sangria de recursos que assolava a
economia norte-americana.
Podemos observar, a partir deste momento, a ida dos bancos para o exterior. A
abertura de filiais fora do território nacional, se já era um movimento comum entre as
empresas do setor produtivo (e que estava se intensificando), passou a proliferar também
no setor bancário32.
Esta foi a estratégia encontrada para fugir da regulamentação econômica cada vez
maior do governo. Tivemos, a partir daí, a consolidação de um mercado de dólares fora dos
Estados Unidos, o chamado euromercado, o qual não tinha nenhum tipo de regulamentação
e que passou a movimentar bilhões33 de dólares, constituindo o que Chesnais coloca como
sendo o “primeiro elo no nascimento dos todo poderosos mercados financeiros de hoje”
(1996, p. 251). Sua expansão representou uma considerável ampliação do sistema bancário
privado, fato que acentuou o processo de transnacionalização do sistema capitalista e
refletiu uma busca, por parte dos bancos norte-americanos, em se manter como mediadores
das relações de produção34.

entre estas duas lógicas deveria, pois, ser vista como problemática e muitas vezes contraditória (ou seja,
dialética) em vez de cooperativa ou unilateral. Essa relação dialética cria o arcabouço para uma análise do
imperialismo capitalista em termos da interseção destas duas lógicas diferentes mas interligadas. A
dificuldade que afeta análises concretas de situações concretas é manter os dois lados dessa dialética em
movimento simultâneo, sem cair no modo de argumentação puramente político ou predominantemente
econômico” (HARVEY, 2004, p. 34).
32
A atuação de bancos norte-americanos fora dos Estados Unidos estava presente antes da Segunda Guerra
Mundial, mas depois da guerra, ela cresceu significativamente. No entanto, foi apenas em meados da década
de 1960 que começou a ganhar força. “Em 1963, de acordo com informação do Morgan Guaranty Trust Co.,
cerca de 72 por cento dos títulos internacionais foram emitidos nos Estados Unidos. Em 1964, a percentagem
caiu para 55 por cento, e em 1968 baixou mais: 28 por cento” (MOFFIT, 1984, p. 45).
33
Para Chesnais, “a diferença [do euromercado em relação aos demais mercados] está relacionada à
existência de um multiplicador de criação de crédito, baseado nas longas e imbricadas cadeias de operações,
bem como na pirâmide de créditos e dívidas que ia sendo montada, graças ao caráter interbancário do
mercado e à ausência de reserva obrigatória e de mecanismos de controle” (1996, p. 255).
34
O objetivo destes bancos, inicialmente, era não perder seus clientes preferenciais — as grandes corporações
que passaram a tomar empréstimos junto a bancos europeus.
69

Em 1971, dadas as frustradas tentativas de superar o desequilíbrio, os Estados


Unidos romperam, de forma unilateral, com o acordo de Bretton Woods, promovendo a
desvalorização do dólar e, como consequência, dificultando as importações, como forma
de conter o desajuste nas contas externas. Esta década foi marcada também pelo
recrudescimento de uma crise no setor produtivo, que já vinha tomando forma desde
meados da década de 1960, e envolvia, em maior ou menor intensidade, as principais
economias do centro. Ao fim de algo em torno de três décadas, as condições, citadas
anteriormente, que permitiram a configuração de um longo período de expansão, davam
claros sinais de esgotamento.
A existência de ciclos econômicos é uma característica do modo de produção
capitalista e eles já receberam tratamento de diversos autores de irrefutável relevância no
meio acadêmico, dentre eles o economista belga, Ernest Mandel, o qual possui uma
perspectiva cujo resgate consideramos ser oportuno. Mandel ([1972] 1985), com base em
Marx, aponta para o imperativo, típico de uma sociedade produtora de mercadorias, de
reduzir o tempo de trabalho a um nível inferior ao tempo de trabalho socialmente
necessário como forma de garantir os superlucros. O autor mostra também como estes
podem ser auferidos não só pelo aumento da composição orgânica do capital, mas também
por meio do rebaixamento do preço pago pela força e trabalho ou pelo capital constante35,
dentre outras formas. Ele aponta esta busca do capitalista pelos superlucros como uma das
bases do movimento de exportação de capitais e mostra como isso fortalece a atuação
imperialista e o inerente desenvolvimento desigual e combinado entre os países. Segundo
ele, “a própria acumulação de capital produz desenvolvimento e subdesenvolvimento como
momentos mutuamente determinantes do movimento desigual e combinado do capital”
([1972] 1985, p. 58).
A questão, de todo modo, é que a busca pelos superlucros leva a uma aceleração no
processo de acumulação, tendo como base o aumento na composição orgânica do capital
até o momento em que se esbarra em limites para assegurar a valorização de todo o capital
investido. Quando isso acontece, inicia-se um processo de subinvestimento no qual
considera-se que as margens de retorno não são suficientemente atrativas para manter a

35
“Na prática, isso só é normalmente possível no caso do capital constante circulante, e não do capital
constante fixo – em outras palavras, quando o capital de uma firma ou de uma indústria ou um país tem
acesso a matérias-primas que são mais baratas do que aquelas com que outros capitais se veem obrigados a
operar” (MANDEL, [1972] 1985, p. 53).
70

acumulação no mesmo patamar. Assim, este aumento na composição orgânica do capital


reduz o declínio da taxa de lucro, ao mesmo tempo em que garante a liberação de uma
parcela deste capital, que retornará à produção somente quando a situação se apresentar de
forma mais favorável.
Temos, portanto, na própria dinâmica do modo de produção capitalista, uma
contradição que nos parece essencial. Quando a extração da mais-valia não mais garante a
manutenção da taxa de lucro — e isso ocorre como resultado do processo de acumulação
— dá-se início à fase descendente do ciclo e que, em geral, desemboca em crises de
superprodução mais ou menos intensas. Mandel explica, deste modo, as fases de “expansão
e contração sucessivas da produção de mercadorias” ([1972] 1985, p. 75) e, embora
caracterize este período cíclico como tendo, em média uma duração de 7 a 10 anos (tempo
de renovação do capital fixo), ele identifica períodos de maior duração em condições
específicas, historicamente determinadas.
Estes períodos mais duradouros são denominados por ele de “ondas longas” e
pressupõem algumas pré-condições que Behring resume:

[...] queda na composição orgânica média do capital por sua penetração em


países com composição baixa; aumento da taxa de mais-valia, decorrente de
derrotas políticas dos trabalhadores e/ou do aumento da intensidade do trabalho
(mais-valia relativa); queda súbita dos componentes do capital constante; ou
diminuição repentina do tempo de rotação do capital circulante. A interação
combinada destes elementos pode gerar as condições para uma inovação técnica
radical, a partir de um aumento prévio da taxa de lucros (2002a, p. 28).

Além destas pré-condições, outros fatores decorrentes da Guerra Fria — a adoção


de políticas keynesianas e o aumento das possibilidades de consumo por parte dos
trabalhadores, as inovações tecnológicas, para mencionar alguns elementos —
possibilitaram a constituição de um período de grande crescimento econômico36.

36
A este respeito Mandel faz uma ressalva que consideramos oportuno resgatar: “É evidente que estas ‘ondas
longas’ não se manifestam de maneira mecânica, mas operam através da articulação dos ‘ciclos clássicos’.
Numa fase de expansão, os períodos cíclicos de prosperidade serão mais longos e mais intensos, e mais
curtas e mais superficiais as crises cíclicas de superprodução. Inversamente, nas fases da onda longa, em que
prevalece uma tendência à estagnação, os períodos de prosperidade serão menos fervis e mais passageiros,
enquanto os períodos das crises cíclicas de superprodução serão mais longos e mais profundos. A ‘onda
longa’ é concebível unicamente como resultado destas flutuações cíclicas, e jamais como uma espécie de
superposição metafísica dominando essas flutuações” ([1972] 1985, p. 85).
71

Sendo assim, podemos perceber, ao fim de três décadas, aliado a todas as


dificuldades levantadas no tocante às políticas de ajuste político-monetário e de um
rearranjo nas relações internacionais, um esgotamento, nos países centrais, das condições
de produção vigentes. Este esgotamento se expressou por meio de um mercado saturado,
cada vez mais competitivo e que encontrou, pelas razões já mencionadas, uma maior
dificuldade para garantir atraentes taxas de retorno. Isto sem falar na intensificação das
tensões com o movimento operário organizado, que vinha, nos últimos anos, tornando-se
mais combativo37, interferindo na taxa de lucros no sentido de contribuir para sua queda.
Crise na base produtiva, adoção de políticas protecionistas, crise de financiamento,
pressão inflacionária, redução dos salários reais a despeito do aumento nominal. Este era o
quadro existente nos países centrais, visto de uma forma mais ampla (DUMÉNIL ; LEVY,
2003; CHESNAIS, 2003 , 1996). Tivemos, neste sentido, uma desarticulação nas bases que
propiciaram uma redução nos conflitos entre capitalistas e trabalhadores e o início de uma
rearticulação nesta correlação de forças, a qual teve, como consequência, uma retomada do
crescimento em novas bases.
No que diz respeito à ordem econômica mundial, o rompimento com o acordo de
Bretton Woods marcou um processo, iniciado no final dos anos 1960, de desmantelamento
de muitos dos mecanismos de regulação que contribuíram para modelar as bases das
relações internacionais que se estabeleceram no pós-guerra. O clima de insegurança
monetária abriu caminho para uma longa e crescente onda de movimentos especulativos de
capitais, movida principalmente pelas grandes empresas norte-americanas entre 1970 e
1973 e marcada pelo fim da paridade com o ouro em 1971.
A queda na rentabilidade do capital investido na indústria, decorrente do
esgotamento dos mecanismos virtuosos de crescimento, baseados em bens de consumo
duráveis e agravada pelo choque do petróleo, bem como pela intensificação da luta de
classes, conduziu a uma saída em massa na busca por formas de “valorização” puramente
financeiras. Chesnais aponta que:

A formação do mercado de eurodólares [...] é uma etapa importante na


reconstituição do capital monetário. Reflete também a degradação da
rentabilidade do capital comprometido na produção, bem como o fato de que os

37
Com relação a alteração na correlação de forças entre o capital e o trabalho a partir do esgotamento do
padrão de acumulação vigente ver, Antunes (1995 e 1999) e Harvey (1992).
72

EUA deixam de ter uma posição industrial incontestável pelos outros países e, ao
mesmo tempo, deixam de cumprir o papel que lhes tinha sido atribuído em
Bretton Woods (1996, p. 250).

Os Estados Unidos, ao contrário do Japão, que estabeleceu uma mudança


significativa no padrão de acumulação como forma de se adaptar aos “novos tempos”38,
não se lançaram a uma busca por novas oportunidades de expansão. A estratégia de
enfrentamento da crise pautou-se em políticas de ajuste monetário no Balanço de
Pagamentos, como forma de contornar os efeitos do choque do petróleo nas contas
externas.
O choque do petróleo, além de contribuir para agravar a crise na produção, em
virtude do encarecimento da energia e diversos insumos industriais, canalizou uma grande
quantidade de recursos para as mãos dos países membros da Organização dos Países
Exportadores de Petróleo (OPEP). Estes países se dirigiam ao euromercado para reciclar
seus superávits, espaço que, livre das regulamentações nacionais, era a alternativa
disponível para garantir uma rentabilidade atraente.
O aumento da liquidez resultante deste processo foi adensado ainda pela dívida
pública americana. Segundo Tavares, “esta dívida é o único instrumento que os EUA têm
para realizar uma captação forçada da liquidez internacional e para canalizar o movimento
do capital bancário japonês e europeu para o mercado monetário americano” (1997, p. 35).
Também funcionaram para intensificar este quadro de liquidez internacional, o período de
subinvestimento pelo qual estavam passando as empresas e o decorrente deslocamento de
boa parte do capital excedente para a esfera financeira. Deste modo, as taxas de juros
baixas e a abundância de capitais promoveram um quadro atrativo para o endividamento,
público e privado, não só nos países centrais, mas também, e principalmente na periferia
do sistema.
A década de 1970 foi, portanto, a década em que as operações financeiras em escala
internacional, cuja intensidade e importância já vinham crescendo na década anterior, se
consolidaram. Um imenso mercado, livre de controle por parte dos Estados-Nação e sem
nenhum lastro, começou a dar passos fundamentais em direção a uma autonomização cada

38
As mudanças implementadas no Japão deram origem ao modelo de acumulação flexível, que
posteriormente foi exportado para os demais países, sofrendo alterações em função das particularidades de
cada região. Ver Harvey (1992).
73

vez maior, ainda que esta autonomia permaneça relativa (DUMÉNIL ; LEVY, 2003;
CHESNAIS, 2003 , 1996).
Braga chama a atenção para alterações importantes nos mecanismos existentes para
financiar a produção, os quais, durante muito tempo, estiveram baseados “nos lucros
internos das empresas, no crédito bancário de curto e médio prazos e no funding estável do
mercado acionário de títulos, proporcionado pelos fundos de pensão e seguradoras” (1997,
p. 201). Os “anos dourados” marcaram um período em que uma série de regras e
comportamentos contribuíam para imprimir um caráter, de certa forma, disciplinado ao
mercado financeiro. Isto pode ser percebido tendo em vista que sua estabilidade estava, em
grande parte, fundada no controle inflacionário e na resistência a grandes movimentos de
cunho especulativo, através da manutenção das ações em carteira por longos períodos.
Depois da crise que pôs fim a este período – cujos elementos foram, em linhas
gerais, mencionados anteriormente –, Chesnais (1996) aponta que houve uma
intensificação da preocupação em dar às finanças o mesmo tratamento dado à outra
indústria qualquer39. Elas passaram, cada vez mais, a se distanciar do papel de instrumento
para melhorar a alocação de recursos produtivos e se aproximaram da função de geradoras
de lucros como qualquer outro setor. Propagou-se, cada vez mais, um entendimento de que
a atividade financeira deve ser marcada pelo caráter transnacional, competitivo e que deve
gerar lucro como forma de estimular a abertura dos mercados, em especial o de capital, ao
mercado internacional.
Para alimentar este processo, tomou força, de forma indiscutível, um movimento
voltado para tornar imperativos diversos mecanismos em direção à liberalização de capitais
e à desregulamentação. Podemos observar uma quantidade cada vez maior e mais variada
de “produtos financeiros”, o que demarca o aumento no volume e a complexificação das
transações financeiras que são efetuadas. Esta dinâmica específica das finanças alimenta-se

39
Chesnais regata que “foram necessários mais de dois séculos, desde o escândalo de Law até as medidas
estabelecidas após a grande onda de falências bancárias dos anos 30, para criar um conjunto de regras
enquadrando, tanto quanto possível, a atividade financeira; em particular, estabelecendo estrito controle sobre
a criação de moeda de crédito pelos bancos. Para acabar com elas, foram suficientes uns vinte anos”. O autor,
ao qualificar as finanças como “indústria” retoma as palavras de Régnier e ressalta, como característica deste
momento que: “o comércio de dinheiro e valores é encarado como atividade transnacional, objeto de
competição, no plano mundial, entre agentes que procuram explorar da melhor forma suas próprias
vantagens comparativas. Elas não são diretamente encaradas como meio de melhorar o processo de alocação
de recursos no interior da economia britânica, e sim – tal como uma indústria de exportação – de explorar um
certo know-how, a fim de extrair uma parte da renda mundial” (1996, p. 240).
74

de dois mecanismos principais: a “inflação no valor dos ativos” e a transferência da riqueza


para a esfera financeira (CHESNAIS, 1996).
Sucessivas inovações financeiras acabaram dando margem a um “processo crucial
de substituição da moeda pelos ativos geradores de juros que alterou as condições
operacionais dos bancos, implantou a securitização, desatou a concorrência financeira, e
problematizou o controle da liquidez pelo Banco Central, o FED” (BRAGA, 1997, p. 204).
Este processo foi denominado de “desintermediação bancária”40 e teve base na necessidade
das empresas em reduzir os custos administrativos e financeiros presentes nas transações
com os bancos, resultando em um relativo abandono destes e a uma busca por formas de
financiamento baseadas na emissão de títulos de crédito.
Se, por um lado, essas alterações aumentaram a relevância das instituições
financeiras não bancárias, tais como seguradoras e fundos de pensão, por outro,
redirecionaram o papel dos bancos e contribuíram para a formação dos grandes
“conglomerados de serviços financeiros”, permitindo a determinação de uma “circulação
financeira ampliada” (BRAGA, 1997, p. 205).
De certa forma tivemos, a partir daí, a passagem de um sistema de financiamento
baseado no crédito bancário41 para um financiamento por meio do mercado de capitais.
Vale ressaltar que a essa passagem é inerente uma instabilidade muito maior do que na fase
anterior, tendo como um dos principais motivos, a possibilidade de fuga de capitais em
função de qualquer boato ou avaliação pessimista, resultando em prejuízo para ambas as
partes (financiadores e endividados) e em aumento da vulnerabilidade para os demais.
Podemos observar, neste sentido, uma situação em que crédito e títulos que
representam capital, seja ele público ou privado, transformaram-se, de forma crescente, em
mercadorias de onde podem ser tirados lucros “parasitários”. Isto quer dizer que um
mesmo título pode resultar em transações como título principal e, posteriormente, como
“derivado” deste título. E podemos observar, em função da proporção que ele toma no
período em questão, que:

40
É importante destacar que este é um processo aconteceu principalmente nos Estados Unidos em razão da
forte regulamentação bancária.
41
Braga aponta que: “Num sistema baseado no crédito bancário, [...] a parceria entre financiador e financiado
é maior, reduzindo os riscos de imobilização do capital, de iliquidez e de insolvência, e encurtando as
manobras de ganhos especulativos” (1997, p. 202).
75

O número e complexidade dessas cadeias de transações “derivadas”, bem como


seu altíssimo valor conceitual, refletem a irracionalidade e a anarquia de uma
esfera financeira que funciona cada vez mais, em circuito fechado, mas que
impõe sua marca a todas as operações de investimento (CHESNAIS, 1996, p.
268).

Estão dadas as condições para sucessivas crises especulativas, fruto de uma


mudança na forma de se estabelecer as relações monetárias, tanto no plano nacional como
internacional, e que conduziram a iniciativas de negociação na tentativa de estabelecer um
maior controle do sistema financeiro internacional por parte do FMI. Estas tentativas
culminaram, em 1979, com a decisão unilateral do então presidente do Banco Central
norte-americano (FED), Paul Volker, de subir bruscamente a taxa de juros e, deste modo,
implementar um novo padrão monetário, estabelecendo uma política monetária que ficou
conhecida como a “diplomacia do dólar”. Como aponta Harvey (2004, p. 58), “ameaçados
no campo da produção, os Estados Unidos reagiram afirmando sua hegemonia por meio
das finanças” e, ainda que isto o tenha permitido manter-se como a grande potência
imperialista, os desdobramentos sobre sua estrutura produtiva foram significativos.
As consequências foram sentidas em todo o mundo. Nos Estados Unidos e demais
países do globo, os anos imediatamente subsequentes foram marcados por uma forte
recessão. Os países que compõem a chamada periferia capitalista experimentaram um
período de escassez de empréstimos aliado a uma forte crise da dívida - que se intensificou
com a moratória do México em 1982. Os demais países centrais se viram obrigados a
“apertar os cintos” e adotar políticas recessivas como estratégia de sobrevivência
(TAVARES, 1997).
No entanto, passados os anos iniciais do ajuste, podemos observar a retomada do
controle norte-americano que, ao “quebrar” o euromercado e redirecionar o fluxo de
capitais para seu território, garantiu as condições necessárias para submetê-lo às
determinações do FED. Ao fazer isso, submeteu também a própria política econômica dos
demais países aos seus interesses e garantiu um processo de restabelecimento do
crescimento econômico norte-americano. Um crescimento que, apesar de ter passado por
algumas crises ao longo das décadas de 1980 e 1990, se mostrou consistente e forte o
suficiente para colocar o resto do mundo a mercê de seus interesses. Nas palavras de
Braga:
76

[...] a posição hegemônica americana tornou possível, nos últimos anos, operar a
lógica da financeirização e as políticas de globalização em favor de sua
performance econômico-financeira, ao passo em que a difusão deste padrão de
financeirização global não tem revelado nos demais países o mesmo “sucesso”
do país central, nos últimos anos (1997, p. 211).

Ainda em 1979, podemos dizer que a liberalização e desregulação, a abertura dos


mercados financeiros nacionais, bem como a desintermediação bancária, intensificaram-se
de forma indubitável, constituindo o que Chesnais chama de “mundialização do capital”42.
Estes fatores propagaram-se de forma a favorecer os interesses capitalistas de caráter
rentista e a obrigar os demais Estados a se alinharem às práticas americanas, configurando
um sistema fortemente hierarquizado.
O autor, na tentativa de explicar as particularidades deste momento histórico do
capitalismo defende a tese de que estaríamos vivenciando um “regime de acumulação de
dominância financeira”, o qual teria uma ligação estreita com a mundialização financeira e
consistiria em “uma etapa particular do estágio do imperialismo, compreendido como a
dominação interna e internacional do capital financeiro43” (2003, p. 46). Além da
liberalização e desregulação, o agravamento da rivalidade e das relações de dominação
entre Estados (fortalecimento de desigualdades e de relações de dependência), taxas de
juros elevadas, aumento do endividamento público e privado, reduzidas taxas de
crescimento, privatização, aumento do desemprego e da instabilidade são algumas das
marcas deste processo – as quais não podem ser vistas de forma isolada –, que tem nas
finanças a responsável pela condução do “regime de acumulação”.
Estas características destacadas pelo autor em suas produções contribuem para
construirmos um quadro das particularidades do momento em que vivemos. Muitos são os
dados levantados em pesquisas e apresentados de forma consistente em sua obra. Não é à
toa que Chesnais é atualmente uma das grandes referências no debate sobre o capitalismo
atual e um interlocutor crítico do processo de financeirização. Mas é preciso tomar cuidado

42
Nas palavras do autor: “o termo ‘mundialização do capital’ designa um quadro político e institucional no
qual um modo específico de funcionamento do capitalismo foi se constituindo, desde o início dos anos
[19]80, em decorrência das políticas de liberalização e de desregulamentação das trocas, do trabalho e das
finanças adotadas pelos governos dos países industriais, encabeçados pelos Estados Unidos e pela Grã-
Bretanha” (CHESNAIS, 1997, p. 7).
43
Vale ressaltar que o autor entende o capital financeiro como sinônimo do capital portador de juros, em uma
concepção, portanto, diferente da que discutimos neste trabalho. Em um de seus artigos, esta denominação
fica clara: “o capital portador de juros (também designado ‘capital financeiro’ ou simplesmente ‘finança’)”
(CHESNAIS, 2005, p. 35).
77

com os desdobramentos que ele vem dando aos seus estudos, sobretudo no que diz respeito
ao lugar que as finanças têm hoje na dinâmica de acumulação capitalista.
Em que pese a preocupação constante, em suas obras iniciais, em articular as
mudanças na produção com a intensificação dos fluxos financeiros e de, por vezes,
salientar o caráter relativo da autonomia das finanças, acreditamos que existem algumas
contradições na sua argumentação. Ao que nos parece, além de ser tímido o seu esforço de
explicar as determinações que levaram a um regime de predominância financeira, ele põe
tanto peso no controle das finanças que chega a afirmar que “a acumulação industrial não
está mais orientada, no centro do sistema, para a reprodução ampliada” (1997, p. 28).
Esta análise vai ganhando mais força na sua argumentação ao longo do tempo,
fazendo com que o autor vá paulatinamente se afastando da discussão, baseada em Marx,
da indissociável relação entre produção e finanças (1996, p. 146-147, por exemplo), para
uma análise em que afirma serem as finanças exteriores à produção44 (2005, p. 52-56).
Ele mesmo sinaliza, no prefácio de um de seus livros, um momento desta mudança:

O livro anterior [A mundialização do capital] havia sido escrito partindo da ideia


de que a mundialização do capital constituía uma etapa a mais no processo de
internacionalização e nas operações contemporâneas das multinacionais.
Destacava-se o fato de que a mundialização do capital era mais impulsionada na
esfera financeira que em qualquer outro domínio. Mas, apesar, de tratar-se do
papel desempenhado pelas taxas de juros reais positivas sobre o nível e a
orientação da acumulação, como da financeirização dos grupos industriais, a
interpretação do movimento de conjunto do capitalismo partia, ainda, das
operações do capital industrial. A partir dos dados e das análises reunidos
neste novo livro, um deslocamento qualitativo se impõe. É da esfera
financeira que é necessário partir se desejarmos compreender o movimento
em seu conjunto (1998, p. 7, grifos nossos).

Sendo assim, neste mesmo movimento de deslocamento do eixo de análise, o ponto


de partida deixa de ser a produção (1996) e se volta para a esfera financeira (1998),
levando-o a analisar um pouco depois que “o mundo contemporâneo apresenta uma
configuração específica do capitalismo, na qual o capital portador de juros está localizado
no centro das relações econômicas” (2005, p. 35, grifo nosso).

44
O curioso é que o autor fundamenta sua análise com base no Livro Terceiro d’O Capital de Marx. Segundo
Chesnais (2005, p. 53), o autor nesta obra “desenvolve uma teoria da ‘autonomia’ da finança que é
acompanhada de uma problemática de sua ‘exterioridade à produção’”. Como procuramos demonstrar,
discordamos radicalmente desta interpretação.
78

Este fato vem conduzido a discussão do economista francês para uma certa
oposição entre finanças e produção, que aponta para uma autonomização da primeira em
relação à segunda. Não queremos, com esta crítica, dizer que esta oposição não exista.
Como ambas se alimentam da mesma fonte, existe entre elas uma disputa pela apropriação
da mais valia, que pode, inclusive, levar a conflitos entre as frações de classe burguesas.
Mas produção e finanças formam uma unidade dialética que impõe um objetivo comum
qual seja, o aumento da exploração do trabalho no âmbito da produção, dado que este é o
lócus por excelência do processo de valorização do capital. Fora dele, o aumento da
rentabilidade representa tão somente uma punção da mais valia já produzida ou uma
expectativa em relação a mais valia futura, nunca um processo de valorização.
Sendo assim, a financeirização carrega em si não somente uma intensificação dos
fluxos financeiros sem precedentes45, mas uma pressão para aumentar as bases de extração
da mais valia que dê conta de alimentar a rentabilidade financeira. A grande contradição
que este processo encerra é que, mesmo estando nas finanças a rentabilidade mais atraente
– o que mobiliza uma parte cada vez mais significativa de recursos nesta direção – é
somente o investimento produtivo que pode sustentar esta dinâmica.
Em outras palavras, ainda que estejamos vivendo um período de hegemonia do
capital rentista, a centralidade na acumulação segue sendo do capital produtivo. É esta a
tensão que marca o período atual e que precisa ser enfatizada na análise. Nossa
preocupação é que a ideia de um “regime de acumulação de dominância financeira”, dada
a sua imprecisão, possa levar a uma interpretação de que a finança prescinde da produção
por ter se tornado o espaço privilegiado da acumulação capitalista contemporânea. Nos
parece que Chesnais vêm caminhando a passos largos nesta direção.
Reconhecer o significativo crescimento dos fluxos financeiros – e o direcionamento
que este novo padrão de acumulação vem atribuindo à relação entre o setor produtivo e o
financeiro –, sem se deixar seduzir pelo canto da autonomização, requer firmeza na
compreensão da teoria do valor de Marx. Suas elaborações permanecem atuais e as crises

45
Chesnais traz dados consistentes que ajudam a ilustrar o crescimento exagerado das finanças. Segundo ele,
“no fim dos anos [19]90, o volume de ativos em posse do conjunto dos investidores institucionais
ultrapassava U$36 trilhões. Esses haveres representavam em torno de 140% do PIB dos países da zona da
OCDE [Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico]. Mas, em alguns países, a relação
entre ativos financeiros e o PIB – que representa as pretensões de apropriação da produção econômica
presente e futura – é muito mais elevada: 226% no caso do Reino Unido, 212% nos Países Baixos, 207% nos
Estados Unidos, 200% na Suíça. Ao longo da década, o crescimento do valor dos ativos dos investidores
institucionais se fez a um ritmo sustentado, mais de 11% em média durante o período” (2005, p. 43-44).
79

recentes são uma prova de que, ainda que o crescimento quantitativo (volume) e qualitativo
(sua diversificação e complexificação) das finanças pareça descolar do mundo produtivo, a
lei do valor acaba se impondo em algum momento e “estourando” as enormes bolhas
especulativas, fazendo desaparecer milhões e transformando em pó uma rentabilidade que
era, na realidade, puramente fictícia.
Este deve ser o fio condutor das análises acerca da intensificação das transações
financeiras presentes desde o início da década de 1980. Sabemos que esta teve, como
marco, a implantação dos governos neoliberais de Thatcher (1979) e Reagan (1980), na
Inglaterra e nos EUA, respectivamente. São os governos destes dois países os detentores da
paternidade do que podemos chamar de sistema contemporâneo de finanças, tendo os EUA
um papel preponderante46.
As mudanças, entretanto, não se restringiram à liberalização dos fluxos financeiros.
Passaram também pela imposição de ajustes fiscais e de uma reconfiguração do Estado no
sentido de liberar recursos para arcar com a dívida pública, que passa a crescer em espiral,
alimentando os ganhos do capital rentista. Deste modo, esta década foi marcada, também,
assim como as que se sucederam, por alterações consistentes na concepção de Estado e de
seu papel regulador. As políticas keynesianas e desenvolvimentistas foram
responsabilizadas pela inflação e por boa parte dos problemas existentes no campo
político-econômico.
A ideia de um excessivo gasto público, principalmente no que diz respeito aos
gastos sociais, e que teria conduzido os países a uma “crise fiscal”, tomou força e colocou
na ordem do dia as discussões relativas à necessidade de promover políticas de equilíbrio
fiscal, privatização e abertura econômica. Esta seria a forma de aumentar a competitividade
e devolver aos mercados o seu dinamismo, bem como a capacidade de ditar as regras e
trazer de volta a “eficiência”. A redução do Estado na área social, associada a medidas
como a flexibilização das leis trabalhistas, tornaram-se, supostamente, um imperativo para
sair da crise vivida na década de 1970.
Ao mesmo tempo, o aumento da pressão por ampliar as bases de extração de mais
valia contribuíram para aumentar a exploração e por uma busca crescente de impor limites

46
O governo Thatcher teve um papel fundamental na legitimação do neoliberalismo, mas não dispunha do
mesmo poder que Reagan, nos Estados Unidos, para impor aos demais países as mudanças requeridas por
este novo padrão de acumulação.
80

à capacidade de resistência dos trabalhadores. Tivemos, durante este período, uma redução
significativa do poder dos sindicatos e dificuldades cada vez maiores a serem enfrentadas,
dadas pelo aumento crescente do desemprego, da precarização do trabalho e da
fragmentação da classe trabalhadora (aumento do trabalho terceirizado, subcontratado,
temporário, parcial e todas as suas variações).
Harvey chama a atenção para o fato de que as lutas de classe passam a ser pautadas
pelos ajustes estruturais impostos pelas organizações multilaterais e pelas privatizações. “O
tom do antiimperialistmo começou a deslocar-se para o antagonismo aos principais agentes
da ‘financeirização’ – com o FMI e o Banco Mundial apontados diretamente” (2004, p.
61). A classe trabalhadora encontrou uma grande dificuldade para travar suas lutas, muitas
vezes se limitando a buscar reduzir o ritmo das mudanças ou a garantir os direitos já
conquistados do que a avançar nas suas reivindicações.
Percebemos, portanto, uma forte relação entre a crise do capital e sua forma de
buscar superá-la, trilhando os caminhos da financeirização, e as alterações no chamado
“mundo do trabalho”, com desdobramentos significativos sobre as mais variadas
expressões da questão social e sobre a forma como o Estado responde a estas expressões.
Foi neste contexto, que podemos observar novas configurações na inserção de parte
dos países dependentes47. Estas alterações constituíram uma etapa importante neste
processo de (re)integração por viabilizar de forma inconteste a expansão financeira e
garantir um vasto mercado a ser ocupado. Fiori ressalta muito bem esta preocupação em
incorporar um número cada vez maior de mercados a fim de ampliar as possibilidades de
ganho do capital. Ao mencionar o período pós-1990, ele fala da incorporação dos
chamados “mercados emergentes”:

É a hora em que se universaliza a revolução neoliberal, promovendo por todos os


lados a desregulação e a abertura das economias nacionais, permitindo que a
globalização financeira alcance uma dimensão territorial sem precedentes,
mesmo quando não inclua a maior parte dos estados nacionais. É a hora da
incorporação dos estados menos industrializados [...] (1997, p. 91).

O “ajustamento” das economias endividadas fez parte de uma preocupação em


enquadrar e garantir o alinhamento destes países. A negociação da dívida na década de

47
Convém ressaltar que esta (re)inserção não engloba todos os países dependentes. Estamos falando
basicamente de alguns países da América Latina e Ásia.
81

1980 passou sempre pela imposição de uma série de medidas que explicitavam a
“necessidade” de um redirecionamento político e econômico que conduziria à resolução de
todos os problemas e traria de volta o tão sonhado crescimento.
A nova estratégia dos Estados Unidos para as economias dependentes pode, em
linhas gerais, ser traduzida pela passagem de Fiori:

Em 1989, um economista norte-americano chamou de “Consenso de


Washington” ao programa de políticas fiscais e monetárias associadas a um
conjunto de reformas institucionais destinadas a desregular e abrir velhas
economias desenvolvimentistas, privatizando seus setores públicos e
enganchando seus programas de estabilização na oferta abundante de capitais
disponibilizados pela globalização financeira. Chegava desta maneira à periferia
capitalista endividada, e em particular à América Latina, uma versão adaptada
das idéias liberal-conservadoras que já se difundiam pelo mundo desde o início
da “grande restauração” (1997, p. 121-122).

No final da década de 1980, quase todos os países da América Latina já haviam


incorporado o discurso liberalizante e, a despeito de vivenciarem um contexto bem
diferente dos países centrais, pregavam o redimensionamento do Estado, a flexibilização
do mercado de trabalho e uma série de outras medidas “modernizantes”, importando o
discurso como se houvesse um grande esquema de proteção social pronto para ser
desmontado. Trataremos desta questão no próximo capítulo, procurando levantar as
particularidades destas mudanças no caso brasileiro.
A reorganização das relações de produção entre os países, portanto, aconteceu de
modo a fortalecer o imperialismo estadunidense e a reforçar as relações internacionais
desiguais sob o novo contexto de hegemonia das finanças. Como resgata Harvey,

as práticas imperialistas, do ponto de vista da lógica capitalista, referem-se


tipicamente à exploração das condições geográficas desiguais sob as quais ocorre
a acumulação do capital, aproveitando-se igualmente do que chamo de as
‘assimetrias’ inevitavelmente advindas das relações espaciais de troca (2004, p.
35).

O Estado, em especial o imperialista, é o grande responsável por conduzir este


processo em que, as relações de troca – na medida em que se acentuam a concentração e
centralização na base do capitalismo em sua fase monopolista – produzem e reproduzem
relações desiguais, fortalecendo e aprofundando as relações de dependência. Sendo assim,
a redução dos ganhos nos países mais avançados foi compensada por uma maior
apropriação no exterior, principalmente por meio de ganhos parasitários. Assim, fica claro,
82

mais uma vez, o imperativo em se abrir novos espaços de acumulação capitalista para
conter a crise e uma eventual contestação do poder imperialista.
A grande questão que aparece para pensarmos é: por quanto tempo será ainda
possível sustentar este padrão de acumulação, dado que ele aprofunda as contradições
essenciais deste modo de produção? Ao se sustentar nas finanças – hipertrofiadas – e
impor, ao processo de produção de mercadorias, bases de extração de mais-valia cada vez
mais acentuadas (em uma combinação de mais-valia relativa e absoluta), amplia e
complexifica as expressões da questão social, contribuindo para que a organização coletiva
da classe trabalhadora se torne tanto mais difícil quanto necessária.

1.4 Financeirização, crise do capital e tendências das políticas sociais

No final do século 20, com a intensificação e generalização do processo de


financeirização da economia, o capital financeiro contribui para agravar uma situação
marcada pela contradição. Como dissemos, esta contradição aparece na medida em que a
busca e a obtenção da rentabilidade aparentemente prescindem da mediação da produção, a
qual é, em essência, a esfera privilegiada de extração do sobre-trabalho e, portanto, de
valorização da riqueza.
Sendo assim, o capital financeiro e o decorrente processo de concentração e
centralização do capital em geral, por um lado alteram as relações de propriedade e
conferem ao grande capital um maior poder de controle sobre o processo global da
acumulação. Por outro lado, abrem caminho para a acumulação financeira, cujo retorno,
auferido por meio da negociação de capital fictício, depende de operações especulativas no
mercado de capitais em detrimento da produção de mercadorias.
Vale lembrar que somente interessa ao capital industrial a venda inicial das ações.
Esta contribui com a mudança de capital ocioso em ativo, tendo em vista que tende a
significar a passagem de capital monetário para capital produtivo. As operações de compra
e venda posteriores a este momento significam tão somente a troca de propriedade destes
títulos e o ganho adicional, que eventualmente decorre destas operações, não compõe o
capital da sociedade anônima. Esta ressalva é importante para destacar que o movimento
de ações não é, de forma alguma, um movimento do capital real. A ação é “um título de
83

rendimento, um título de dívida sobre a futura produção, uma ordem de pagamento de


lucros” (HILFERDING, [1910] 1985, p.114).
Outra ressalva é a de que não estamos falando apenas da negociação de ações. O
capital fictício envolve também outros títulos, como os derivativos, mas
fundamentalmente, os títulos da dívida pública, que movimentam uma imensa quantidade
de recursos. Para se ter uma ideia, o Japão, que está entre os países mais endividados do
mundo, possui uma dívida em torno de 200% do seu PIB.
Isto significa o repasse de recursos do fundo público para as mãos de grandes
capitalistas, ao mesmo tempo em que aumenta o poder de barganha destes últimos, tendo
em vista que passam a ser credores do Estado. Deste modo, temos um quadro em que o
capital se fortalece por meio do acesso aos recursos da classe trabalhadora, o qual é
viabilizado pelas mãos do Estado. Esta equação, ainda que não seja uma grande novidade,
assume artifícios cada vez mais complexos e sofisticados.
A intensificação dos fluxos financeiros indica por um lado, a dificuldade de
garantia de margens de lucratividade maiores no âmbito da produção e por outro, dado que
na esfera financeira não há criação de valor, é este mesmo processo produtivo que serve
como base para a geração e extração da mais valia, que irá alimentar o capital portador de
juros. Significa dizer que, para que estes fluxos financeiros possam garantir a rentabilidade
do capital, são necessários mecanismos de extração de mais valia cada vez mais “criativos”
no processo produtivo. Mas não é somente do sobre-trabalho que estes fluxos vêm se
alimentando. Também o trabalho necessário serve como base para os ganhos obtidos na
esfera financeira. Este fato se dá tendo em vista que a parte dos salários que não é utilizada
para o consumo (e que, portanto, garante a realização da mais valia) tem, pelo menos, dois
destinos: 1) bancos (aplicações financeiras e pagamento de empréstimos feitos pela classe
trabalhadora), fundos de pensão e demais instituições financeiras; 2) fundo público48
(BEHRING, 2010; SALVADOR, 2010), por meio do pagamento de impostos. Ao passar
para as mãos, de instituições financeiras ou do Estado, os recursos oriundos tanto da

48
Para citarmos o caso brasileiro, podemos dizer que, dada a imensa regressividade que caracteriza a nossa
estrutura tributária, parte significativa do fundo público é composta por recursos vindos do trabalho
necessário. Em outras palavras, dos valores produzidos pela classe trabalhadora, parte é apropriada pelo
capitalista, sob a forma de mais valia (trabalho excedente). Do que a classe trabalhadora recebe, ou seja, de
seu salário (trabalho necessário), parte se destina ao pagamento de impostos (sejam eles diretos ou indiretos).
Se levarmos em consideração que quase metade do orçamento anual do governo federal é utilizada para o
pagamento de juros e amortizações da dívida pública, vemos o imenso papel do Estado no sentido de
alimentar o capital que porta juros e que isso é feito as custas de recursos da classe trabalhadora.
84

remuneração do trabalho necessário quanto do excedente são postos a serviço do capital


portador de juros e alimentam os fluxos financeiros.
Diante do exposto, gostaríamos de dar uma ênfase especial à questão da dívida
pública, tendo em vista o seu papel preponderante neste processo. Já sinalizamos a
importância que ela teve no processo de consolidação do modo de produção capitalista.
Durante o pós-segunda guerra, a dívida cumpriu o papel de garantir as condições de
produção e reprodução do capital funcionando de forma mais direta para viabilizar
investimentos produtivos.
A questão que está posta a partir da década de 1970, com a intensificação dos
fluxos financeiros, é a utilização da dívida para alimentar os circuitos de “valorização” do
capital portador de juros. Mais especificamente, em 1979, a elevação da taxa de juros
estadunidense consistiu em um ponto de inflexão na utilização da dívida pública como um
importante mecanismo de garantia das margens de rentabilidade do capital e de
fortalecimento destes detentores da dívida, os quais passam a se constituir como uma
parcela significativa da aristocracia financeira que se forma neste período.
Como nos mostrou Marx no Livro Terceiro d’O Capital ([1894]1988e, p. 4), a
dívida pública pode ser denominada de capital fictício – uma das formas de ser do capital
portador de juros – por criar a ilusão de que o rendimento auferido é proveniente de um
capital. Na verdade, a dívida esconde o fato de que se trata de recursos que vêm das
receitas da União e que são repassados aos credores da dívida por meio do pagamento de
juros.
O recurso ao endividamento pode se dar pela venda de títulos aos que os compram
para fins especulativos, o que, em termos marxistas, significa percorrer o circuito D-D’, na
ilusão de que seria possível fazer dinheiro com o próprio dinheiro, sem passar pela
produção. Pode também acontecer como estratégia de saída de uma situação de crise
econômica, com “pacotes de salvamento”, que incluem o direcionamento de recursos
públicos para a iniciativa privada, como forma de evitar uma “quebradeira” em cascata,
para usar os argumentos do mainstream.
Ao mesmo tempo, esta ampliação da dívida em espiral, contribui para legitimar
todo um conjunto de medidas que envolve a privatização e a retirada de direitos duramente
conquistados pela classe trabalhadora, dentre outros, como forma de “sanear as contas
públicas” e “equilibrar o orçamento”. E assim, em nome da necessidade de pagar a dívida,
todo um arsenal de mudanças, que contribuem também para alimentar a lucratividade do
85

capital, ganha ares de benefícios para toda a coletividade, universalizando interesses que
são, na verdade, exclusivos à grande burguesia.
No caso brasileiro, podemos destacar diversos mecanismos, criados no Governo
Fernando Henrique Cardoso, com o objetivo de favorecer o pagamento de juros e,
portanto, a rentabilidade auferida na esfera financeira. Dentre eles destacamos: a política
de juros altos, a definição de metas de superávit primário (1998), a Lei de
Responsabilidade Fiscal (LRF/2000) e a Desvinculação de Receitas da União
(DRU/2000)49. Medidas que favorecem a alocação de boa parte dos recursos públicos no
pagamento de juros e amortizações da dívida pública, como veremos mais detalhadamente
no último capítulo.
A DRU, por exemplo, permite que até 20% das receitas de contribuições sociais
(excetuando as previdenciárias) – ou seja, parte significativa das receitas do orçamento da
Seguridade Social –, seja desvinculado e repassado para o orçamento fiscal para ser
destinado às despesas, por exemplo, com o serviço da dívida, comprometendo os gastos
com Saúde, Assistência Social e Previdência Social50. Para se ter uma ideia do montante de
recursos, de 2007 a 2010, a DRU desvinculou R$ 195,3 bilhões, segundo dados divulgados
no site do Senado Federal51.
Os grandes beneficiados por estas medidas podem ser identificados quando
examinamos os principais credores do Estado, ou seja, os que detêm os títulos da dívida e
que, portanto, têm acesso aos recursos públicos por meio do pagamento dos juros da
dívida. O gráfico 1 mostra os principais detentores da Dívida Pública Mobiliária Federal
Interna em 2011:

49
Ainda quef a DRU seja de 2000, ela tem sua origem em 1994, por meio da criação do Fundo Social de
Emergência (FSE). Em 1996 passa a se chamar Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) e somente em 2000 é
que recebe o nome que vigora até hoje.
50
“As contribuições sociais fazem parte do Orçamento do setor público, e financiam os gastos com saúde,
assistência social e previdência social. Em 2012, estão estimadas em R$ 522 bilhões. Todavia, desse total,
272 são as previdenciárias (que não são submetidas aos efeitos da DRU). Ou seja, a DRU incide sobre 302
bilhões, que é o que totalizam as contribuições sociais exceto as previdenciárias. A desvinculação em 2012
vai ser, portanto, de R$ 60 bilhões, ou seja, 20% dos 302 bilhões”. Disponível em:
http://www12.senado.gov.br/noticias/entenda-o-assunto/dru. Acesso em 20/05/2012.
51
Disponível em: http://www12.senado.gov.br/noticias/entenda-o-assunto/dru. Acesso em 20/05/2012.
86

Gráfico 1 – Detentores da Dívida Pública Mobiliária Federal Interna (DPMFi) em


dezembro de 201152

Fonte: Tesouro Nacional (BRASIL, 2012).

Como podemos ver, mais de 70% dos títulos da dívida estão sob o poder de
Instituições Financeiras (31,5%), Fundos de Investimento (25,3%) e Fundos de
Previdência (15,4%). Estes têm acesso a parcelas expressivas do fundo público e é na
garantia de seus interesses de classe que muitos recursos são drenados das políticas sociais
para assegurar os compromissos assumidos com a dívida pública.
Um outro argumento que nos ajuda a pensar o lugar que a dívida pública tem hoje
na reprodução do capital foi a reação à última crise mundial, que “estourou” no final de
2008. Ainda em 2007 o Banco Central Europeu destinou o equivalente a R$ 405 bilhões
para empresas em dificuldade. Este valor correspondia a cerca de metade das reservas
daquele ano, segundo João Alexandre Peschanski (2012).
A maneira encontrada por diversos países, principalmente na Europa, de conter
esta crise e o consequente repasse de recursos para o setor privado, foi o aumento brutal da
dívida pública, fato que fez com que esta passasse a ocupar uma posição privilegiada nos
noticiários de todo o mundo. “A dívida global da União Europeia em 2010 chegou a 80%

52
A categoria “Governo” abrange todos os fundos cuja gestão é de responsabilidade do setor público,
inclusive aqueles que envolvem recursos privados.
87

do PIB; um aumento de cerca de vinte pontos percentuais desde 2005” (PESCHANSKI,


2012).
Assim, a crise financeira foi assumida pelos Estados por meio da dívida pública e
está sendo paga pela classe trabalhadora, via imposição de um ajuste fiscal que restringe
direitos, contribui para o aumento do desemprego53 e precariza as condições de vida de
grandes parcelas da população. Peschanski (2012) resgata que na Alemanha foram
cortados mais de R$ 100 bilhões do orçamento de 2009. Em 2010, o governo francês
anunciou um plano para cortar cerca de R$ 200 bilhões até 2013. No mesmo ano, a Grécia
adotou um pacote de medidas visando o aumento de impostos e arrocho salarial e, no ano
seguinte, mais um plano reforçava as medidas já adotadas. Portugal e Espanha também
seguiram a trilha da austeridade fiscal, corte de direitos e liberalização da economia, assim
como outros países. Em outras palavras, estas mudanças provocaram “reformas” nos
sistemas de proteção europeus, provocando uma “corrosão insidiosa nos princípios
fundantes da universalidade, qualidade e proteção ampla, e ocasionaram uma redução na
abrangência dos direitos, seleção e focalização das prestações sociais, perda de qualidade
dos sistemas públicos [...]”, dentre outras, como analisa Ivanete Boschetti (2012b, p.799).
São alterações que tiveram início nos anos 1990 e, em alguma medida, contribuíram para
intensificar os efeitos da crise de 2007-200854.
Mesmo com os significativos cortes de gastos vivenciados pelos que foram afetados
pela crise e do fortalecimento de medidas de austeridade, podemos observar um sensível
aumento da dívida pública nestes países. A divulgação sistemática da relação dívida/PIB –
que contribui para verificar a capacidade de pagamento dos países – nos mostra que, em
muitos casos, esta ultrapassa o valor dos bens e serviços produzidos em território nacional.

53
“Na União Europeia, a taxa média de desemprego aumentou cerca de um ponto percentual entre 2005 e
2011, quando chegou a 10%. Na Grécia, Espanha e Portugal, chegou respectivamente a 14%, 17% e 21%; em
países do Leste europeu, como Estônia, Letônia e Lituânia, o desemprego chegou a seus níveis mais altos
desde os anos 1980. Em toda a Europa, o desemprego atingiu 22% da população entre 18 e 24 anos,
chegando a 46% na Espanha e 40% na Grécia” (PESCHANSKI, 2012) .

54
“As contrarreformas no âmbito dos sistemas de proteção social atingiram todos os países europeus na
década de 1990-2000 e alteraram profundamente sua lógica redistributiva, afetando a potencialidade
histórica, ainda que limitada, de redução da desigualdade social no capitalismo. A crise 2007/2008 e o
agravamento da pobreza e das desigualdades, conforme demonstrado, já são analisados como resultado das
mudanças do papel do Estado na regulação econômica e social, mesmo pelos analistas mais refratários à
crítica marxista” (BOSCHETTI, 2012b, p. 778).
88

Por meio da relação entre a dívida pública e o PIB de um país temos um indicador
que procura tornar mais comparáveis as dívidas de países de dimensões muito diversas.
Assim, a magnitude da dívida articula-se à capacidade de produção. Este é um elemento
que nos parece muito significativo para analisarmos a iniciativa dos Estados de tentar
garantir a rentabilidade do capital fictício, mas insuficiente para identificarmos o quanto
exatamente isto significa em termos de recursos que são destinados para arcar com os
compromissos decorrentes da dívida.
Se quisermos identificar a relação entre a dívida e o fundo público, precisamos
investigar o quanto dos recursos são efetivamente destinados para este fim. Para tanto, é
preciso ver o quanto cada país tem despendido com a dívida. A tabela 1 ilustra este fato
com um pouco mais de precisão. Ela nos mostra a dívida total em relação ao PIB e os
gastos com o pagamento de juros, em 2010 e 2011, dos cinco países mais endividados e do
Brasil55.

Tabela 1 – Dívida total e gastos com o pagamento de juros em 2010 e 2011 (%)
2010 2011
País Dívida Pgto de juros da Dívida Pgto de juros da
total/PIB (%) dívida/PIB (%) total/PIB (%) dívida/PIB (%)
Japão 199 1,43 209,20 0,80
Grécia 143 5,47 154,80 6,50
Itália 119 4,53 119,80 4,20
Irlanda 95,7 3,20 112,60 3,20
Portugal 93 3,04 103,50 3,40
Brasil 59 5,10 57,40 4,90
Fonte: Economist Intelligence Unit (EIU), divulgados pela BBC Brasil. Elaboração nossa.

O significado do endividamento para as contas públicas depende da taxa de juros e


também da política adotada para arcar com os serviços da dívida. Assim, o Japão, por

55
Os dados são referentes a uma pesquisa realizada pelo Economist Intelligence Unit (EIU) e divulgados
pela BBC Brasil. Nela foram pesquisados 25 países, além de feita uma compilação dos dados da União
Europeia. Os países pesquisados, em ordem descrescente de endividamento foram: Japão, Grécia, Itália,
Irlanda, Portugal, Canadá, Alemanha, União Europeia, França, Grã-Bretanha, Estados Unidos, Espanha,
Brasil, Índia, Argentina, Turquia, México, África do Sul, Indonésia, Venezuela, Austrália, Coreia do Sul,
China, Arábia Saudita, Chile, Rússia. Disponível em:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/07/110727_divida_brasil_juros_rw.shtml#pagamentos.
Acesso em 26/02/2012.
89

exemplo, país que tinha uma dívida equivalente a mais de duas vezes o seu PIB em 2011
(209,20%), gastou menos de 1% com o pagamento de juros. O Brasil, que está em 12º
lugar no ranking dos países mais endividados, é o segundo país que mais gasta com os
juros da dívida em relação ao PIB, 4,9%. Perde somente para a Grécia, com 6,5%, um dos
países mais afetados pela crise e que vem sofrendo uma enorme pressão para efetuar um
duríssimo ajuste fiscal, o qual já se encontra em andamento.
Estes dados nos ajudam a perceber que, embora possamos observar uma tendência
nos países capitalistas como um todo de buscar transferir os prejuízos do setor privado para
os Estados e, mais do que isso, de usar o recurso à dívida para realizar este objetivo,
existem contornos diferenciados em cada país. Nos Estados que ocupam uma posição, em
alguma medida, mais dependente frente ao imperialismo e em que há maiores fragilidades
inclusive do ponto de vista da organização dos trabalhadores, a sangria de recursos para o
pagamento de juros é maior em relação ao orçamento total.
No caso do Brasil, por exemplo, as altas taxas de juros, o parco sistema de controle
de capitais e todo um aparato legislativo contribuem para que os objetivos de arcar com as
obrigações financeiras se sobreponham a todas as outras “prioridades” definidas pelo
governo.
Para se ter uma ideia, Maria Lúcia Fattorelli Carneiro fez um estudo acerca da
carga tributária no período de 1995 a 2005, e concluiu que “praticamente todo o aumento
da carga tributária ocorrido nos últimos anos foi destinado ao cumprimento da meta de
superávit primário” (CARNEIRO, 2007, p. 147). De lá para cá, não houve nenhuma
mudança, do ponto de vista estrutural, na condução da política econômica governamental.
Trata-se portanto, de uma decisão política que expressa as prioridades do governo com o
pagamento da dívida em detrimento de gastos que beneficiem a classe trabalhadora.
Em suma, tanto o tamanho da dívida quanto sua gestão não envolvem questões
puramente técnicas. Ao contrário, tratam-se de decisões políticas que envolvem a defesa
dos interesses do grande capital e que têm por base uma determinada correlação de forças
entre estes e a classe trabalhadora. O grande desafio que encontramos é o de expor o
significado desta política de pagamento de juros e questionar o caráter inexorável que é
dado a esta. Por mais que existam limites na possibilidade de canalizar os recursos do
fundo público para atender às demandas da classe trabalhadora, consideramos que esta luta
é fundamental, tendo em vista que confronta diretamente os interesses do grande capital.
90

Mas sabemos que nem todos os recursos nas mãos destas instituições vão para a
esfera financeira. Especialmente no caso do Estado, uma parte vai para financiar o gasto
com políticas sociais. Entretanto, dado o caráter contraditório das políticas sociais e as
dificuldades que a classe trabalhadora vem enfrentando para fazer valer seus interesses, a
forma como estas políticas vem sendo geridas tem sofrido uma forte reconfiguração,
abrindo espaço cada vez maior para a iniciativa privada. Deste modo, ao mesmo tempo em
que atendem, de alguma forma, às reivindicações da classe trabalhadora, servem como
base para garantir a rentabilidade do capital, de forma que o Estado vai complexificando
cada vez mais sua capacidade de garantir as “condições gerais da produção”, nos termos de
Mandel ([1972] 1985) e remodelando sua forma de configurar e implementar as políticas
sociais.

1.4.1 Apontamentos sobre a reconfiguração das políticas sociais

As mudanças observadas nas últimas décadas – e sobre as quais estamos nos


debruçando – impõem novas análises tanto sobre a base produtiva, quanto sobre as
políticas sociais e a questão social, tendo em vista que tratam-se de alterações que abarcam
o conjunto da vida em sociedade. Nas palavras de Iamamoto,

essas novas condições históricas metamorfoseiam a questão social inerente ao


processo de acumulação capitalista, adensando-a de novas determinações e
relações sociais historicamente produzidas, e impõem o desafio de elucidar o seu
significado social no presente (2008, p. 107).

O enfrentamento às expressões da questão social tem como uma de suas


determinações a capacidade da classe trabalhadora de analisar o momento em curso e
estabelecer o melhor caminho para levar adiante sua luta por melhoria nas condições de
vida. Como já discutimos, os recursos do fundo público são objeto de constante disputa
entre as classes sociais e o direcionamento que estes assumem expressam a dinâmica dada
pela correlação de forças. Sendo assim, consideramos importante analisar a condução das
políticas sociais operadas pelo Estado no contexto de financeirização do capital.
Gostaríamos, para tanto, de destacar alguns dos elementos elencados por Mandel
em sua análise acerca das particularidades que o Estado assume no período que ele
91

denominou de “capitalismo tardio”56. Para ele, dado que a produção e a reprodução da


estrutura social não estão garantidas de forma automática pelos mecanismos econômicos, o
Estado assume algumas importantes tarefas de modo a assegurar a continuidade do
sistema.
Significa dizer que as mudanças em curso não seriam viáveis sem a intervenção do
Estado. Antes, entretanto, de adentrarmos na discussão das suas funções propriamente
ditas, consideramos oportuno destacar uma ressalva feita pelo economista belga em relação
ao surgimento do Estado e que pode contribuir para evitar equívocos na interpretação de
Marx.
O autor argumenta, com base na análise dos clássicos, que o Estado tem origem na
separação entre as esferas pública e privada na sociedade. Mas é preciso lembrar que ele é
anterior à existência do capital. Deste modo, suas funções não podem ser vistas como
sendo decorrentes do processo de produção de mercadorias. Ao contrário, o Estado para
ele é o “parteiro”57 deste modo de produção, que tem na generalização da produção de
mercadorias uma de suas características centrais58. “É incorreto, portanto, tentar deduzir o
caráter e a função do Estado diretamente da natureza da produção e circulação de
mercadorias” (MANDEL, [1972] 1985, p. 335).
Feita a ressalva, o autor define resumidamente as principais funções do Estado
como sendo: criar as condições gerais de produção, reprimir qualquer ameaça das classes

56
O capitalismo tardio, nos termos em que Mandel se refere e que dão título a sua obra mais madura, faz
parte de uma periodização do desenvolvimento capitalista e identificaria o período que vai do pós-segunda
guerra até os dias de hoje. O sentido, portanto, é diferente do atribuído por João Manuel Cardoso de Melo em
livro homônimo. Nesta, o termo capitalismo tardio, apesar de dar nome a sua obra, quase não aparece no
texto, preferindo o autor utilizar o termo capitalismo retardatário. O significado também é diferente e refere-
se ao processo de constituição do capitalismo na América Latina, sendo o foco de análise a particularidade
brasileira. Assim, o termo não está relacionado a uma periodização da história do capitalismo, mas a uma
forma específica de gestação e consolidação deste modo de produção na periferia do sistema (ver MANDEL,
[1972] 1985; MELO, 1991).
57
“O Estado burguês é um produto direto do Estado absolutista, gerado pela tomada do poder político e de
sua maquinaria institucional pela classe burguesa. Mas é também uma negação deste último, pois o Estado
burguês clássico da época da ascensão vitoriosa do capital industrial era um estado ‘fraco’ por excelência –
porque se fazia acompanhar pela demolição sistemática do intervencionismo econômico dos Estados
absolutistas, que impedira o livre desenvolvimento da produção capitalista enquanto tal” (MANDEL, [1972]
1985, p. 335).
58
Harvey parece reforçar esta análise de Mandel, ao afirmar que: “Depois de ler Marx, é muito difícil
imaginar o nascimento do capitalismo sem o exercício do poder estatal e sem a criação de instituições
estatais, que prepararam o terreno para a emergência das relações sociais capitalistas inteiramente
desenvolvidas. Contudo, estamos muito seduzidos pela imagem de uma base econômica (e de uma
superestrutura que meramente reflete a base), e tendemos a pensar a respeito do Estado num papel totalmente
passivo em relação à história capitalista” (2006, p. 92).
92

dominadas ou de frações particulares das classes dominantes ao modo de produção


corrente e integrar as classes dominadas.
A função repressiva foi muito discutida pelo marxismo clássico e a importância da
função integradora foi uma das maiores contribuições de Gramsci e também abordada por
Luckács. Consideramos que é indispensável que estas funções sejam vistas de forma
articulada, tendo sempre em mente que a utilização mais incisiva de uma ou de outra
dependerá da correlação de forças e da intensidade dos conflitos que caracteriza cada
momento histórico.
A grande contribuição que o autor trouxe em relação a este debate diz respeito à
primeira função mencionada, ou seja, a preocupação em garantir as condições gerais de
produção. Esta seria, segundo ele, uma atribuição do Estado que ainda careceria de maiores
debates e interpretações.
Para Mandel, o Estado burguês se distingue de todos os outros dado um suposto
isolamento – que ele contribui para alimentar e manter – entre a esfera privada e a pública.
Este fato faz com que a ilusão de defesa dos interesses gerais precise ser identificada com o
Estado, o único capaz de representar os interesses do capital sem ser identificado como tal.
Assim, Mandel resgata uma conhecida frase do Kautsky: “A classe capitalista reina, mas
não governa. Contenta-se em dar as ordens ao Governo” ([1972] 1985, p. 336). Deste
modo, o autor afirma que a autonomização relativa do aparato estatal 59 acaba fazendo com
que ele se torne um “capitalista total ideal” e fiel defensor das bases do modo de produção
capitalista.
A preocupação com as medidas para garantir as condições gerais de produção nos
leva a analisar as características da fase monopolista de desenvolvimento do capital e de
que forma isto alterou tanto as relações entre o Estado e a burguesia, quanto as próprias
funções do Estado. Neste sentido, Mandel ([1972] 1985), preocupado em articular as
alterações político-econômicas com os desdobramentos sobre a configuração do Estado,
destaca:
I) tendência a superacumulação permanente nas metrópoles e o decorrente estímulo para
exportação de capitais e divisão do mundo em áreas de influência. Este fato leva a um

59
Segundo Mandel ([1972] 1985), esta autonomização é decorrente de dois fatores: a predominância da
propriedade privada e a concorrência capitalista. Mas esta autonomia é sempre relativa, dadas as disputas
intra e entre as classes sociais, as quais acabam pressionando o Estado em favor de uma ou de outra decisão
na busca pela satisfação dos seus interesses.
93

significativo aumento da indústria bélica que, além de ampliar o aparato estatal, cumpre
uma dupla função: funciona como uma fonte de acumulação de capital e contribui na
defesa dos interesses de uma potência em relação às outras;
II) crescimento do movimento operário e de sua influência política. Temos, com isso, a
necessidade de aumento da função integradora do Estado, fato que leva a uma aparente
sensação de acesso da classe trabalhadora ao processo de tomada de decisões. Ao mesmo
tempo, assistimos a um deslocamento do centro da dominação política – que deixa de estar
no parlamento e direciona-se para os escalões superiores da administração estatal e,
portanto, menos acessível para a classe trabalhadora;
III) ampliação geral da legislação social. Esta ampliação contém um elemento contraditório
à medida que, se por um lado é fruto de uma concessão da classe dominante decorrente de
um processo de luta dos(as) trabalhadores(as), por outro contribuiu com o capital para
conter a superexploração que ameaçava as condições de reprodução da força de trabalho;
IV) redução da rotação do capital fixo, aceleração da inovação tecnológica e aumento dos
custos da acumulação de capital. Estas características contribuem para o aumento dos
riscos de atraso ou insucesso na valorização do vultoso capital investido para corresponder
a estas mudanças. Assim, o Estado é impelido a ampliar não só suas possibilidades de
planejamento, como também, os mecanismos de socialização de custos e de perdas nos
processos produtivos. Em outras palavras, ele pode proporcionar ao capital investimentos
lucrativos de modo a garantir as “condições gerais de produção”60;
V) dificuldades crescentes de valorização do capital (supercapitalização e
superacumulação). Para conter estas dificuldades, o Estado é chamado a viabilizar
oportunidades de investimento que propiciem uma valorização mais rápida do capital
excedente;
VI) tendência crescente a crises econômicas e políticas que ameaçam a sobrevivência do
sistema. Cabe ao Estado administrar estas crises, contê-las ou, ao menos, minimizar seus
efeitos sobre as possibilidades de lucratividade do capital. Para isso, ele deve fazer uso de
instrumentos que vão desde a utilização de políticas anti-cíclicas até a manipulação
ideológica da classe trabalhadora para evitar todo o tipo de revoltas populares.

60
“Exemplos diretos dessa tendência são o uso crescente dos orçamentos do Estado para o financiamento de
pesquisas e dos custos do desenvolvimento e as despesas estatais destinadas a financiar ou subsidiar usinas
nucleares, aviões a jato e grandes projetos industriais de todos os tipos. Exemplos indiretos são o
fornecimento de matérias primas baratas mediante a nacionalização das indústrias particulares que as
produzem, subvencionando assim, de forma dissimulada, o setor privado” (MANDEL, [1972] 1985, p. 340).
94

Todas estas funções são de grande importância para o capital, mas a atenção que é
dada a elas, bem como o grau de importância que uma assume em relação às outras
depende do momento histórico. Assim,

a articulação efetiva dos interesses da classe burguesa – o processo concreto


através do qual o ‘capitalista total ideal’ estabelece prioridades entre suas
diversas funções – adquire uma importância mais decisiva para muitos (a longo
prazo para todos) grupos capitalistas do que em qualquer fase anterior do modo
de produção capitalista (MANDEL, [1972] 1985, p. 343).

Estas alterações na função do Estado, que marcam o capitalismo tardio, ajudam a


explicitar o aumento da dificuldade do capital de garantir, por si uma continuidade no seu
processo de valorização. Não queremos, com isso, sugerir que o capitalismo já tenha
funcionado sem uma articulação estrita com o Estado, muito menos que isso seja possível
um dia. A questão é que a participação deste é progressivamente ampliada, de modo a
viabilizar a acumulação capitalista, embora as formas como esta intervenção aconteça
possam variar de acordo com as especificidades conjunturais.
A configuração contemporânea do Estado pode ter sofrido algumas alterações, mas
em essência a análise de Mandel permanece atual. Toda a posterior onda de privatizações,
abertura econômica, ajuste fiscal por meio da redução do gasto público com as políticas
sociais, o avanço do capital que porta juros sobre o fundo público– por meio do mecanismo
da dívida pública – e outras medidas que se ampliaram, ao passo em que avançava o
neoliberalismo, redirecionaram algumas de suas atividades, mas mantiveram as suas
funções. Em outras palavras, suas decisões permanecem sendo tomadas de forma
combinada com a necessidade do Estado de, cada vez mais, funcionar como o
representante dos interesses do grande capital.
Para uma análise da configuração da política social na contemporaneidade,
gostaríamos de desenvolver um pouco mais o ponto V, em que o autor menciona a
superacumulação e supercapitalização. A superacumulação mantém relação com o fato de
que, em determinados momentos, o processo de acumulação produz um capital excedente
que precisa, para driblar a tendência descrescente da taxa de lucro e evitar uma crise de
superprodução, encontrar novos espaços de valorização. Muitas foram as crises deste tipo
95

vivenciadas na história do modo de produção capitalista61 e muitas são também as


iniciativas de ampliação e expansão de novos mercados como forma de contrarrestar a
tendência decrescente da taxa de lucro, dentre elas, podemos destacar as disputas
interimperialistas por território/mercados62.
Harvey (2006) demonstra como a política imperialista busca garantir a acumulação
capitalista por meio do controle ideológico, político e econômico dos demais países.
Assim, ele deixa claro como o apelo ao livre mercado, por exemplo, favorece, na realidade,
relações desiguais de troca e o fortalecimento do poder de monopólio, às custas do
aumento da dependência dos países mais pobres. A ampliação das fronteiras de
acumulação é um imperativo que cada país resolve à sua maneira, mas que de uma forma
ou de outra, sempre desemboca na intensificação de formas de exploração e se baseia em
relações desiguais de poder.
Já a supercapitalização refere-se à tendência de industrializar atividades que são
típicas da esfera da reprodução do capital. Behring (2002) contribui para este debate ao
chamar a atenção para a importância do estudo acerca deste fenômeno para pensarmos a
configuração da política social e suas tendências. Mandel ressalta que esta é uma
característica básica do capitalismo tardio e está relacionada à existência de:

capitais excedentes não investidos, acionados pela queda secular da taxa de


lucros e acelerando a transição para o capitalismo monopolista. Enquanto o
“capital” era relativamente escasso, concentrava-se normalmente na produção
direta de mais-valia nos domínios tradicionais da produção de mercadorias. Mas
se o capital gradualmente se acumula em quantidades cada vez maiores, e uma
parcela considerável do capital social já não consegue nenhuma valorização, as
novas massas de capital penetrarão cada vez mais em áreas não produtivas,
no sentido de que não criam mais-valia, onde tomarão o lugar do trabalho
privado e da pequena empresa de maneira tão inexorável quando na produção
industrial de 100 ou 200 anos antes ([1972] 1985, p. 272, grifo nosso).

Mandel, em sua obra, lança luzes sobre algumas áreas em que isto pode acontecer
como por exemplo o setor de transportes, o comércio e o serviço de crédito. Neste sentido,

61
Dentre elas podemos destacar a de 1929, cujo estopim foi a quebra da bolsa de Nova Iorque e a dos anos
1970. A mais recente, de 2008, começou no mercado imobiliário, também nos Estados Unidos, mas seus
efeitos estão sendo sentidos com maior intensidade nos países mais frágeis que compõem a União Europeia,
como Grécia, Portugal e Espanha.
62
Mandel chama a atenção para a característica já apontada por Lenin ([1917] 2012): “o surgimento dos
monopólios gerou uma tendência à superacumulação permanente nas metrópoles e à correspondente
propensão à exportar capital e a dividir o mundo em domínios coloniais e esferas de influência sob o controle
das potências imperialistas” (MANDEL, [1972] 1985, p. 337).
96

podemos observar uma mercantilização, em diversos âmbitos, da vida social. A


supercapitalização seria uma forma de contornar o problema da superacumulação e evitar a
queda da taxa de lucro. Em uma outra passagem, ele destaca possíveis resoluções para a
dificuldade em garantir as taxas de retorno esperadas:

O Estado resolve essas dificuldades, ao menos em parte, proporcionando


oportunidades adicionais, numa escala sem precedentes, para investimentos
“lucrativos” desse capital na indústria de armamentos, na “indústria de proteção
ao meio ambiente”, na “ajuda” a países estrangeiros, e obras de infraestrutura
(onde lucrativo significa tornado lucrativo por meio da garantia do subsídio do
Estado) ([1972] 1985, p. 340).

Ainda que ele tenha se limitado a mencionar estas áreas, acreditamos que esta
mesma lógica pode ser usada para entendermos um processo que não foi vivenciado por
ele, mas marca a forma como tem se dado a condução das políticas sociais. Com o
desenvolvimento das forças produtivas, o capital passa a avançar não apenas “no lugar do
trabalho privado e da pequena empresa”, como aponta o autor, mas também sobre as
políticas sociais. Estas têm passado, cada vez mais, a funcionar como um mecanismo
fundamental de garantia da rentabilidade nos moldes capitalistas.
Fala-se muito em algumas características das políticas sociais atualmente, como o
caráter pontual, fragmentado, focalizado e descontínuo, que vem restringindo o acesso e
tornando a universalização um sonho distante, muitas vezes nem mencionado. Mas não é
apenas disso que se trata quando vamos analisar o quadro atual destas políticas. Mesmo as
áreas da educação ou da saúde, só para darmos alguns exemplos, que ainda são um pouco
mais abrangentes, vêm funcionando como espaços para garantir a rentabilidade do capital.
De acordo com a Constituição Federal brasileira, os serviços prestados nestas áreas
consistem em direito dos cidadãos e dever do Estado, funcionando o setor privado como
complementar à prestação do serviço público. Entretanto, atualmente existem mecanismos
que fomentam uma concepção de público não-estatal, a qual dilui a separação entre o
público e o privado, minimizando a responsabilidade do Estado com a garantia dos direitos
sociais.
A base de sustentação do conceito de “público não-estatal” está ancorada na defesa
de que uma instituição pública, diante da falta de condições de financiamento público, não
pode (e nem deve!) recusar fontes alternativas, oriundas de instituições privadas, famílias,
organizações não-governamentais, ou quem quer que tenha interesse em disponibilizar
97

recursos para serem investidos. Ao fornecerem um serviço público, as instituições, mesmo


não sendo estatais, devem ter como objetivo fundamental servir aos interesses públicos, o
que, de acordo com esta argumentação, independe da origem dos recursos nela
empregados. Esta noção funciona como uma forma hibrida para se pensar a prestação de
serviços públicos e sociais de uma maneira geral, marcada pelo fato de permitir um avanço
mais “sorrateiro” do capital privado neste setor.
Com isso, parece que vem se criando uma certa legitimação para desresponsabilizar
o Estado da garantia de políticas públicas e universais sem que fique tão clara esta
manobra. Afinal, o Estado não sai de cena, apenas se abre para a atuação conjunta com a
iniciativa privada, que, em nome de uma tão propalada preocupação com a
“responsabilidade social”, encontra espaços altamente rentáveis e com uma infraestrutura
já garantida pelo setor público.
Na área da educação, por exemplo, uma das principais formas para viabilizar e
facilitar a captação externa são as fundações de direito privado, tidas como o caminho
privilegiado para encaminhar as universidades para a tão defendida condição de auto-
sustentabilidade. Uma forma que deixa estas instituições a mercê dos interesses dos
financiadores, além de criar uma enorme desigualdade entre os que atraem estes
investidores e os que não conseguem – ou até mesmo resistem – buscar estes modelos de
financiamento.
Deste modo, uma antiga reivindicação dos setores mais progressistas, no sentido de
possibilitar um aumento do debate e uma ampliação democrática do processo de decisão
no interior das universidades por meio de uma maior autonomia63, foi resignificado pelos
setores mais conservadores e identificado com uma estratégia para levar a iniciativa
privada para dentro nas universidades.
O fato é que as políticas sociais, financiadas e geridas pelo Estado, vão sendo
remodeladas e tendem a se direcionar para um público cada vez mais específico em
detrimento do caráter universal, garantido constitucionalmente. Por um lado, estas
mudanças funcionam como uma forma de liberar recursos para o pagamento da dívida
pública. O debate da necessidade de um ajuste fiscal com vistas a “equilibrar o orçamento”

63
O debate sobre autonomia, que desde a década de 1980 está presente nos discursos de grupos que
compõem diferentes correntes políticas, foi iniciado no seio da luta contra a ditadura militar e a conseqüente
intervenção na vida universitária, tanto no que diz respeito à liberdade de pensar quanto na própria condução
da dinâmica interna da universidade.
98

legitima a ideia de que o Estado deve garantir apenas o “básico”, dado que existem poucos
recursos disponíveis para atender às demandas da classe trabalhadora. Ao mesmo tempo –
e de forma complementar – este discurso permite e estimula a entrada cada vez mais
significativa do setor privado nesta área, mercantilizando a prestação destes serviços e
submetendo-os à lógica mercantil, não apenas do ponto de vista da sua execução, mas
também de sua concepção. Assim a intervenção privada sobre as expressões da questão
social – ainda que não seja nenhuma novidade e que sempre tenha precisado da atuação do
Estado para acontecer e se expandir –, vem crescendo por dentro do Estado e, portanto, de
forma menos clara para a população usuária, adquirindo contornos novos e cada vez mais
contraditórios.
Tratam-se de mudanças que abarcam diversas áreas sociais: na educação cria-se
uma falsa dicotomia entre investimento no ensino fundamental e no universitário,
relegando ao Estado uma dedicação prioritária ao primeiro; na saúde, a diferença entre o
atendimento de baixa complexidade e o de alta já não é mais suficiente e até na atenção
básica já se justifica a entrada do setor privado, dado que o público é visto como
inoperante; na previdência, o argumento falacioso da existência de um déficit justificou o
estabelecimento de tetos que fizeram migrar os possuidores de maiores rendimentos para a
previdência complementar; na Assistência, o SUAS, mesmo possuindo um caráter bastante
inovador, tem dificuldades de sair do papel e tem sua política cada vez mais identificada
aos programas de transferência de renda; e assim por diante.
O quadro mais geral, portanto, aponta para um avanço da participação do setor
privado na prestação de serviços sociais, sob o aval do Estado, que busca, por meio de
políticas cada vez mais inventivas, burlar o caráter público e de responsabilidade estatal
conquistado por intensas lutas travadas e acumuladas no período da Constituinte e antes
dela.
No Brasil, as Organizações Sociais (OS) são um grande exemplo desses
mecanismos voltados para garantir a inserção do setor privado em espaços que até então
eram ocupados pelo Estado. A lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998, dispõe sobre a
qualificação de entidades como OS. Em seu artigo 1º, define:

O Poder Executivo poderá qualificar como organizações sociais pessoas jurídicas


de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao
ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e
preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde, atendidos aos requisitos
previstos nesta Lei.
99

Como podemos ver, elas abarcam diversas áreas e, ainda que sob a gestão privada,
podem receber recursos e bens públicos e deles dispor como considerarem mais
conveniente. Além disso, por não serem entidades públicas, não precisam fazer licitação,
nem concurso público, flexibilizando a forma de contratação e de aquisição de materiais e
equipamentos. Da mesma forma, não precisam prestar contas publicamente, o que fere
frontalmente o princípio da transparência na gestão dos recursos públicos.
Trata-se, portanto, de um mecanismo que passa para as mãos da iniciativa privada a
responsabilidade de administrar o patrimônio público, tornando o atendimento às
demandas e direitos sociais cada vez mais inserido na lógica mercantil, mudando a
concepção da prestação do atendimento e descaracterizando a política social como um
todo.
Isto sem mencionar as denúncias de fraudes, que cercam muitas destas
organizações ditas de caráter social. Assim, as políticas de saúde, educação, cultura,
ambiental são transformadas em espaços rentáveis ao grande capital, o qual, por meio de
organizações consideradas institucionalmente como “sem fins lucrativos”, passa a ter
poder de mando sobre vultosos recursos64 arrecadados fundamentalmente com as
contribuições da classe trabalhadora.
Existe, entretanto, toda uma polêmica em torno da (in)constitucionalidade desta lei,
tendo em vista que ela comprometeria diversos artigos da Constituição Federal vigente,
dentre eles a responsabilidade do Estado de zelar pelo patrimônio público (art. 23-I);
proteger documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural (art. 23-
III); proteger o meio ambiente (art. 23-VI); contratar por meio de concurso público (art.37-
II); fazer licitação (art.37-XXI) (BRASIL, 1988). Por esta razão está correndo hoje na
justiça uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN)192365. Apesar disso, podemos
observar uma franca expansão das Organizações Sociais em todo o país, o que mostra a
força que o capital tem para fazer valer seus interesses.

64
Segundo documento produzido pela Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde intitulado Contra
fatos não há argumentos que sustentem as Organizações Sociais no Brasil, somente em São Paulo, apenas
uma organização social, na área da saúde, recebeu cerca de R$1 bilhão de reais nos últimos 5 anos. Além de
ser significativo o valor por ela recebido, existem sobre esta OS denúncias de fraudes envolvendo desvio de
recursos (disponível em http://pelasaude.blogspot.com/p/contra-fatos-nao-ha-argumentos-que.html, acesso
em 10/01/2012).
65
Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=393820&tipo=TP&descricao=ADI/1923. Acesso
em 10/02/2012.
100

Para nós não resta dúvida de que “a hipertrofia e a autonomia crescentes do Estado
capitalista tardio são um corolário histórico das dificuldades crescentes de valorizar e
realizar a mais-valia de maneira regular”. Neste sentido, “refletem a falta de confiança
cada vez maior do capital em sua capacidade de ampliar e consolidar sua dominação por
meio de processos econômicos automáticos”, para usarmos os termos de Mandel ([1972]
1985, p. 341). Trata-se, portanto, de viabilizar espaços ainda não explorados pelo capital
para garantir a ampliação das fronteiras de acumulação e, com isso, contrarrestar a
tendência de queda na taxa de lucro.
Especificamente sobre as OS, para ficarmos em apenas um exemplo, o Governo do
Estado do Rio de Janeiro inaugurou em março de 2013 o Hospital Estadual da Criança,
uma unidade exclusiva para casos pediátricos de cirurgia de transplante, ortopedia e
oncologia em Vila Valqueire. Foram feitos investimentos de “R$ 5 mihões em
equipamentos e obras de adaptação” e entregues nas mãos da Rede D’or, por meio da
Organização Social Instituto D’Or de Gestão em Saúde Pública66. Esta que já é a maior
operadora independente de hospitais no Brasil67 não constituiria o Instituto D’or para,
dentre outras coisas, disputar a gestão de unidades de saúde, se não visse ali um negócio
extremamente rentável.
Podemos dizer que as políticas sociais, que até bem pouco tempo atrás tinham sua
contradição marcada pelo fato de, ao atenderem às necessidades da classe trabalhadora,
contribuírem também para a acumulação capitalista – por reduzirem o custo de reprodução
da força de trabalho e por apaziguarem as tensões sociais –, têm agora novos elementos
contraditórios. Elas podem funcionar diretamente como espaços rentáveis e atrativos ao
capital, dentre outras formas, ao disponibilizarem infraestrutura e recursos públicos para a
iniciativa privada prestar diretamente o serviço. Desta forma, podemos dizer que :

o capital monopolista não tem nenhum motivo para hostilizar o desenvolvimento


completo da industrialização e capitalização intensiva de todos os setores sociais,
porque ele próprio participa deste processo – ao menos enquanto o “novo”
capital desempenhar com sucesso o papel histórico de abrir novos campos de
investimento e de experimentar novos produtos, de modo que a lucratividade
desses novos campos seja garantida (MANDEL, [1972] 1985, p. 273).

66
Disponível em: http://www.rededor.com.br/clipping/hospital-estadual-da-crianca-tera-gestao-da-rede-dor.
Acesso em 10/04/2013.
67
Disponível em: http://www.rededor.com.br/a-rede. Acesso em 10/04/2013.
101

As OS são apenas um dos mecanismos que temos hoje no Brasil para funcionar no
sentido em que aponta Mandel, permitindo que sejam experimentados novos produtos e
garantindo margens generosas de lucratividade para o capital privado.
Gostaríamos também de mencionar a importância que têm assumido os programas
de transferência de renda – cada vez mais identificados como sendo a política social no seu
conjunto. Por meio do cartão bancário, estes programas contribuem para inserir milhões de
pessoas no sistema de crédito, além de disponibilizarem generosas quantias para os bancos,
que ficam a disposição destes até que os usuários do programa retirem todo o benefício.
Tratam-se de programas presentes em diversas áreas. Na educação, por exemplo, mais
precisamente na assistência estudantil, foi criada em 2013 a Bolsa Permanência. Esta bolsa
transfere R$400,00 para estudantes das universidades e institutos federais por meio de um
cartão do Banco do Brasil68– somente para aqueles com renda familiar por pessoa de até
1,5 salário mínimo. O principal programa de transferência de renda, o Programa Bolsa
Família (PBF), além de também garantir o acesso à política por meio do cartão bancário, é
operado pela Caixa Econômica Federal (CEF), que recebe recursos do fundo público para
desempenhar esta função, como destaca Gisele Silva (2010). Ainda que os referidos
programas sejam viabilizados por bancos públicos, avaliamos que se inserem nesta lógica
mais geral da financeirização por canalizarem recursos para instituições financeiras, além
de privilegiarem rendimentos monetários para um perfil muito específico de usuários, em
detrimento de garantias universais aos direitos sociais.
O caso da Previdência também é bastante ilustrativo. As contrarreformas
conduzidas em 1998 e 2003, pelos presidentes FHC e Lula contribuíram, por um lado, para
tornar o acesso ao benefício mais difícil, mudando a lógica de tempo de serviço para tempo
de contribuição, além da utilização do fator previdenciário e outras medidas que tendem a
retardar a aposentadoria. Por outro lado, ao estabelecerem tetos para o valor dos benefícios
praticamente obrigam os beneficiários que ficariam acima deste teto a contribuir com a
previdência complementar69. Nos últimos anos, os chamados Fundos de Pensão, cresceram
e se fortaleceram, movimentando um volume cada vez mais significativo. Para se ter uma

68
Segundo reportagem de Demétrio Weber, publicada no jornal O Globo em 10 de maio de 2013, na seção O
País, página 4. A matéria destaca também que estudantes indígenas e quilombolas terão direito a uma bolsa
no valor de R$900,00, desde que venham de aldeia indígena ou remanescente de quilombo.
69
Para uma análise da previdência complementar ver Granemann (2002; 2003).
102

ideia, somente o Fundo de Pensão do Banco do Brasil, a Previ tem um total de R$ 160
bilhões investidos, destes 60% estão em ações de empresas como a Vale do Rio Doce e a
Brasil Foods70.
Por fim, podemos dizer que, apesar de observarmos uma organização da classe
trabalhadora contra algumas destas medidas, como as OS, por exemplo, ou as “reformas”
da Previdência, ela não tem sido suficiente para travar o avanço do capital na área social. A
atual dinâmica capitalista é bastante agressiva e tem, por meio da interferência do Estado,
contribuído no sentido de favorecer a iniciativa privada, avançar sobre o fundo público,
integrar todo o sistema a esta lógica das finanças mundializadas, ampliar as possibilidades
de extração de mais-valia – em uma combinação entre a absoluta e a relativa – e fragilizar
a capacidade organizativa da classe trabalhadora. E assim, as políticas sociais que são, ao
mesmo tempo, uma forma de enfrentamento à questão social e bandeira de luta e
reivindicação, sofrem uma reconfiguração que as permite atender às demandas dos
trabalhadores funcionando diretamente como espaço de garantia da rentabilidade do grande
capital.
Mas o avanço na precarização das políticas sociais não apaga o fato de que elas
possuem a capacidade de, mesmo neste contexto adverso, produzir melhoras nas condições
de vida das pessoas e, deste modo, contribuir para engendrar melhores condições de luta da
classe trabalhadora. A luta por políticas sociais universais, financiadas e geridas pelo
Estado, e com qualidade é, cada vez mais, uma luta que confronta os interesses do grande
capital. Esta é a grande contradição que o padrão de acumulação atual produz: quanto mais
lucrativas forem as políticas sociais, mais indispensável é a sua luta para a classe
trabalhadora e maior o seu potencial de ameaçar a ordem estabelecida.

70
Disponível em: http://economia.estadao.com.br/noticias/economia-geral,maior-fundo-de-pensao-do-pais-
investe-em-acoes-de-empresas-estrangeiras,150875,0.htm. Acesso em 25/04/2013.
103

2 ESTADO E CAPITAL FINANCEIRO NO BRASIL

A democracia e a república são o luxo


que o capital tem que conceder às massas,
dando-lhes a ilusão de que
controlam os processos vitais,
enquanto as questões reais
são decididas em instâncias restritas,
inacessíveis e livres de qualquer controle.

Francisco de Oliveira

Os traços gerais da dinâmica de acumulação capitalista abordados no capítulo


anterior assumem particularidades em uma economia dependente como a brasileira. Neste
sentido, resgatar as especificidades do processo de formação social, econômico e político
brasileiro nos parece um movimento essencial para apreender as determinações que
envolvem a constituição e consolidação do capitalismo no país.
Para tanto, faremos um apanhado histórico das elaborações teóricas que ajudem a
apreender os caminhos trilhados a partir dos anos 1930, buscando apontar as bases do
desenvolvimento capitalista no Brasil e os processos que desaguaram na entrada na etapa
monopolista. Procuraremos destacar o caráter autocrático do Estado e a sua importante
contribuição para impulsionar as mudanças em curso. Em seguida, faremos uma discussão
sobre o período que vai dos anos 1960 aos 1980, destacando as alterações institucionais
voltadas para a constituição do mercado de capitais e o fortalecimento do sistema
financeiro. Estas mudanças permitiram, nos anos 1990, uma inserção subordinada no
circuito internacional das finanças. As alterações daí decorrentes provocaram uma
profunda reconfiguração do parque industrial brasileiro cujos desdobramentos ainda
carecem de maiores estudos para que seja possível compreendê-los em sua totalidade.

2.1 As bases do desenvolvimento capitalista no Brasil

A análise dos avanços e dos entraves que vivemos no presente, assim como das
perspectivas que se abrem para o futuro, pressupõem um cuidadoso resgate de nosso
passado e das marcas deixadas pelas particularidades de nossa formação sócio-histórica.
104

Entender o movimento do real como uma processualidade histórica e contraditória é um


desafio que instigou e orientou a interpretação de teóricos como Caio Prado Jr., Florestan
Fernandes e Octavio Ianni. Estes são alguns dos principais expoentes de uma leitura
dialética acerca da formação social brasileira e com os quais estabelecemos um diálogo.
Com eles, procuramos travar um debate na busca por resgatar alguns elementos
essenciais para a compreensão da dinâmica que envolveu a consolidação do capitalismo no
Brasil. Longe de procurar trazer um apanhado minucioso das suas obras, tencionamos tão
somente apontar alguns elementos do debate que nos ajudassem a reconstruir as linhas
gerais do processo de industrialização no país. Partimos da análise dos anos 1930 por
entendermos ser este o momento de impulso decisivo das relações capitalistas e buscamos
situar algumas das polêmicas discutidas neste período.
Procuramos abordar fundamentalmente a interpretação que aproxima estes três
autores, sem uma preocupação maior em destacar as diferenças que existem entre eles,
ainda que consideremos importante um esforço maior no sentido de fazer uma ampla
análise da contribuição destes para o pensamento acerca do processo de formação do
capitalismo no Brasil.
Nossa preocupação central é apreender alguns dos elementos que marcam a
revolução burguesa no país que, pela via não-clássica, foi capaz de combinar, de forma
muito particular, uma modernização significativa e a conservação de traços herdados do
passado. Esta é uma forte marca da chegada tardia do capitalismo em um país dependente,
que consolida a industrialização sem, contudo, comprometer o poder da aristocracia agrária
e do imperialismo, mas apenas reconfigurando e redimensionando esta dominação.
Carlos Nelson Coutinho, ao fazer uma análise da obra de Caio Prado, ressalta como
que, mesmo sem ter conhecido os conceitos de vias não-clássicas elaborados por Lenin
(“via prussiana”) e Gramsci (“revolução passiva”), o autor foi capaz de formular
“contribuições significativas para a compreensão dos processos e das modalidades de
modernização conservadora ocorridos no Brasil” ([1988] 1990, p. 169), enriquecendo o
próprio conceito de vias “não clássicas”. Assim, ao se debruçar sobre a via de transição
para o capitalismo no Brasil, Caio Prado demonstra como a exploração da grande
propriedade foi se adaptando ao sistema capitalista, em uma complexa articulação entre
“progresso” e “conservação”, refutando as teses de que haveria feudalismo no país e
105

afirmando a existência do capitalismo, ainda que não se configurasse da forma “clássica”71.


Do mesmo modo, ele destaca como os processos de mudança conduzidos “pelo alto”
contribuíram para a consolidação de uma nova ordem em um contexto de baixíssima
participação popular (COUTINHO, [1988] 1990).
Estes são alguns dos elementos que funcionarão como pano de fundo das análises
que pretendemos empreender acerca da nossa formação social. Mas sabemos que são
muitas as polêmicas que envolvem este tema. Como lembra Rocha (2011), o uso do termo
Revolução Brasileira, por mais que tenha surgido na década de 1920, somente nos anos
1950 e 1960 é que passa a integrar o debate com mais força – ainda que de forma
controversa –, deixando mais clara a existência de posicionamentos bastante distintos
acerca da possibilidade de rompimento com o passado colonial e o horizonte aberto com a
política nacional-desenvolvimentista.
São dois os grandes eixos da discussão: o primeiro seria o debate “entre o avanço
das forças produtivas, a questão nacional e o desenvolvimento econômico” e o segundo
sobre “as contradições fundamentais que bloqueiam o desenvolvimento nacional e as
forças que se opunham à dependência, sendo, neste sentido, uma discussão sobre o caráter
progressista ou não das diversas frações de classe que compunham a sociedade brasileira”
(ROCHA, 2011, p. 247).
Neste debate, que envolve os caminhos para a superação do atraso e do
subdesenvolvimento, destacamos a posição da Comissão Econômica para América Latina
e Caribe (CEPAL)72 e do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB)73, em que a
desigualdade – externamente, entre o centro e a periferia e, internamente, entre regiões
modernas e atrasadas – era o centro da discussão. Assim, haveria uma contradição entre o

71
“Essa não era uma posição consensual entre os marxistas, pelo menos até os anos 1960. Ignorando a
problemática das formas ‘não clássicas’ de transição para o capitalismo (e as peculiaridades da formação
capitalista que dela resulta), os marxistas brasileiros – sobretudo os ligados ao PCB – afirmaram durante
muitos anos que o Brasil era um país ‘semifeudal’ e ‘semicolonial’, que se defrontava ainda, por conseguinte,
com a tarefa de efetuar uma ‘revolução democrático-burguesa’ ou de ‘libertação nacional’” (COUTINHO,
1990, p. 173).
72
A CEPAL foi criada em 1948 e era uma das cinco comissões econômicas da Organização das Nações
Unidas (ONU). Dentre seus principais expoentes no Brasil estão Celso Furtado, Maria da Conceição Tavares,
Carlos Lessa, Antônio Barros de Castro e João Manuel Cardoso de Mello.
73
O ISEB foi criado em 1955, vinculado ao Ministério de Educação e Cultura e foi extinto após o golpe
civil-militar de 1964. Alguns dos intelectuais de maior destaque foram Hélio Jaguaribe, Álvaro Vieira Pinto,
Guerreiro Ramos, Ignácio Rangel, Cândido Mendes, Roland Corbisier e Nelson Werneck Sodré. A este
respeito ver Rocha (2011).
106

setor agroexportador e o processo de industrialização e entre a constituição de uma


economia nacional e os interesses externos, a saber, do imperialismo.
Nesta perspectiva dualista, internalizar os centros de decisão e romper com os
entraves ao desenvolvimento levaria à desintegração das desigualdades e traria o progresso
e o “bem comum”, numa proposta que pressupunha também, como se pode imaginar, a
conciliação dos interesses de classe. O que eles não consideravam, por estarem presos
demais à descrição das desigualdades, é como estas se combinavam e se alimentavam, num
processo histórico que fortalecia a dominação e a exploração. O antídoto para resolver o
problema da desigualdade, nesta argumentação, seria o avanço do desenvolvimento
capitalista, o que serviu, na verdade, para aprofundar os laços de desigualdade e de
dependência.
A diferença, portanto, entre os defensores do desenvolvimentismo e seus críticos já
começa no ponto de partida, ou seja, na interpretação da natureza do subdesenvolvimento
brasileiro. Sampaio Jr. e Sampaio (2007) resgatam alguns elementos essenciais que
aproximam Caio Prado de Florestan – e podemos acrescentar, sem sombra de dúvidas
Ianni – ao elencar: a convicção de que a alternativa para os problemas enfrentados pelo
povo brasileiro impõe a ruptura radical com a estrutura social existente; crítica à ideia de
que haveria uma burguesia nacional com interesses antagônicos ao imperialismo; defesa da
autonomia das forças populares e da necessidade de unidade entre camponeses e operários.
Aqui, o entendimento do subdesenvolvimento passa pela análise do nosso processo de
formação sócio-histórico, pela construção de uma estrutura social que produz e reproduz a
pobreza e a desigualdade de forma dependente e subalternizada. Deste modo, os caminhos
para sua superação envolvem mudanças estruturais conduzidas autonomamente pelas
forças populares, proposta, deste modo, muito diferente dos rearranjos “pelo alto” que
compuseram a política de modernização apresentada neste período.
Nesta perspectiva, a análise da implementação da política nacional
desenvolvimentista nos permite afirmar que esta não expressou uma ruptura, como destaca
Florestan ([1975] 2005), com os traços mais marcantes das relações até então
estabelecidas, ou seja, a) as relações de dependência com o exterior; b) o antigo regime, ou
as formações pré-capitalistas; c) a situação de subdesenvolvimento. É com base neste
entendimento que pode-se dizer que a modernização vivenciada aqui garantiu a
conservação do essencial: o poder de uma classe dominante, processos desiguais (e
combinados) de desenvolvimento e a heteronomia.
107

2.1.1 A expansão industrial iniciada nos anos 1930

O período pós-30 do século passado marca um processo de transição em que é


possível identificar o início do fim da hegemonia agroexportadora e o começo de uma nova
fase de organização produtiva de cunho urbano-industrial. Trata-se, em poucas palavras, de
um processo de transformação de boa parte do capital agrícola em capital industrial.
Processo este orquestrado pelas mãos do Estado e que o colocou como o seu centro
dinamizador, num movimento de passagem da hegemonia das grandes oligarquias agrárias
para a burguesia industrial.
Logo no início de Estado e Capitalismo, Ianni destaca que “o Estado desenvolve
atividades destinadas a criar as condições de possibilidades de desenvolvimento” (1965, p.
18), deixando clara sua fundamentação em análises marxistas acerca do funcionamento do
capitalismo e do papel do Estado. Nesta obra, ele se dedica especialmente ao período que
vai de 1930 até o início dos anos 1960, tendo sido publicada em 1965.
A pesquisa que deu origem a este livro baseou-se em uma rica análise de
documentos e publicações da época, dentre elas, não apenas jornais, mas também
planejamentos, relatórios e conferências produzidos tanto pelos governos quanto pela
burguesia, bem como por organizações e partidos operários. Estes documentos ilustram
como o Estado, ao buscar reduzir os efeitos da crise e garantir as margens de lucratividade
do capital, contribuiu para fomentar o desenvolvimento industrial. Sua atuação foi, com o
tempo, ganhando contornos de um planejamento cada vez mais contundente e orientador
das atividades privadas, ao mesmo tempo em que propiciava e promovia a infraestrutura
necessária para a industrialização.
Analisando a produção realizada pelo Grupo Misto BNDE-CEPAL, responsável
pala realização de um estudo sobre a economia brasileira que serviria de base para o Plano
de Metas, na segunda metade dos anos 1950, o autor resgata que:

Depois de mostrar que o desenvolvimento econômico se funda na força de


trabalho, no progresso técnico e na acumulação de capital, o referido
documento põe de lado os dois fatores iniciais e propõe que a análise e as
projeções a serem propostas se apoiem em especial no controle do terceiro fator.
Não é examinado o papel fundamental desempenhado pela força de trabalho.
Depois de reconhecer que as técnicas acumuladas nas economias mais
adiantadas estão à disposição dos países subdesenvolvidos, o referido Grupo
afirma que a base de uma política econômica é a acumulação de capital (1965, p.
18-19, grifos do autor).
108

Ao longo de toda a sua obra o autor demonstra como esta preocupação com a
acumulação de capital, já presente de alguma forma desde 1930, ganha força nos anos
1950. O Estado atuou de forma decisiva – não apenas por meio da política econômica –
para viabilizar o avanço das relações capitalistas de produção, a tal ponto que “o
desenvolvimento econômico se transformou na problemática maior, para todas as classes
sociais” (1965, p. 23).
Para que fosse possível alterar a forma de organização da base produtiva era
necessário deslocar recursos, ou seja, canalizar o excedente agrícola para estimular o
estabelecimento e consolidação de um novo padrão de acumulação de base industrial. Para
tanto, a política cambial74 foi um recurso utilizado com vistas a proteger a renda da
cafeicultura e favorecer a inversão na indústria. Apesar da importância dada à consolidação
da indústria no país, e justamente por ela, a agricultura teve um papel de destaque. Por
fornecer produtos para exportação, ela foi indispensável para conseguir divisas que
viabilizaram a importação de bens de capital e intermediários, ao invés de garantir apenas a
importação dos bens de consumo, como era anteriormente.
A questão central passou a ser promover a continuidade deste setor e, ao mesmo
tempo, deixar de tê-lo como a base de expansão do sistema. Além disso, a agricultura tinha
a responsabilidade de abastecer os centros urbanos sem ampliar os custos de reprodução da
força de trabalho, o que poderia inviabilizar o processo de acumulação que se gestava.
Assim, a consolidação da indústria seguiu reforçando o traço de ruptura não-clássica com o
passado na constituição do novo, uma forte marca da formação sócio-histórica brasileira.
É, portanto, por meio da intervenção do Estado e da expansão da produção
marcadamente intensiva em trabalho, com baixos coeficientes de capitalização, que
podemos perceber o desenvolvimento da agricultura neste período. Deste modo, a
constituição da força de trabalho urbana contribuiu também para a consolidação do
proletariado rural, penalizado por altas taxas de exploração e muito funcional à
acumulação.
A agricultura contribuiu significativamente para o crescimento da indústria e dos
serviços, tanto por favorecer o deslocamento de pessoas do campo para as cidades,
alimentando o “exército industrial de reserva”, quanto por produzir um excedente de

74
Por meio da desvalorização do câmbio e, portanto, do rebaixamento do preço da moeda nacional, a política
do governo favorecia o setor exportador e encarecia as importações, estimulando a produção interna.
109

alimentos – a preços baixos – indispensável para garantir a subsistência da população


urbana que se formava, permitindo a reprodução da sua força de trabalho com baixo custo.
Ao mesmo tempo, nos centros urbanos, observamos um enorme crescimento na
produtividade industrial o qual, somado às iniciativas de intervenção do Estado e o baixo
custo de reprodução da força de trabalho, levou às imensas taxas de acumulação do
período. Nas palavras de Ianni: “estão em curso os processos de concentração e
centralização do capital, que vincula setores de produção, nações e classes sociais” (1965,
p. 37). Não é a toa que Florestan Fernandes chama a atenção para o fato de que é nos anos
1950 que se dá a passagem para o capitalismo monopolista no Brasil, fruto do avanço das
forças produtivas e do processo de concentração e centralização do capital dele
decorrentes.
Este processo guarda elementos contraditórios. Ao acirrar as relações entre capital e
trabalho, cria um terreno propício para a explicitação de muitas das expressões da questão
social, abrindo caminho para uma nova etapa da organização da classe trabalhadora e para
a contestação deste padrão de desenvolvimento. Como forma de contornar o avanço do
pauperismo e a precarização das condições de vida e de trabalho, e, ao mesmo tempo,
garantir um ambiente favorável para a acumulação capitalista, o Estado passa a construir
ferramentas de controle das relações de produção. Sendo assim, a regulamentação dos
fatores de produção é destacada na interpretação marxista do processo de acumulação de
base industrial como uma das decisões mais importantes no favorecimento dos índices de
produtividade do período.
Dentre as medidas adotadas, a regulamentação das leis trabalhistas em 1943 foi a
mais importante tendo em vista que contribuiu para preparar as condições para o avanço do
desenvolvimento capitalista na década seguinte. A definição destas leis, se por um lado
garantia a formação um exército industrial de reserva composto, principalmente, pelas
pessoas que saíam do campo em busca de melhores condições de trabalho – dado que o
salário era, sem dúvida, superior ao do campo –, por outro lado, contribuía para o
rebaixamento do preço pago pela força de trabalho urbana.
Assim, o Estado assumia a tarefa de minimizar os interesses de classe, por um lado,
impondo limites à pauperização da classe trabalhadora e, por outro, garantindo as
condições para a intensificação da expansão do setor industrial. A definição de um salário
mínimo, apesar de ser, em alguma medida, uma resposta às demandas da classe
trabalhadora, operou como um importante instrumento a serviço da burguesia em ascensão.
110

Este fato se deu tendo em vista que igualava a remuneração de trabalhadores com
diferentes níveis de qualificação, evitando o pagamento de melhores salários para algumas
categorias mais especializadas. Deste modo, “a regulamentação das leis do trabalho operou
a reconversão a um denominador comum de todas as categorias, com o que, antes de
prejudicar a acumulação, beneficiou-a” (OLIVEIRA, Francisco, [1972] 1981, p. 17, grifo
do autor).
Ainda sobre os altos custos pagos pela classe trabalhadora para garantir o
“desenvolvimento da nação”, consideramos importante mencionar o papel das altas taxas
de inflação do período, demarcando o que Ianni caracterizou como um “processo
espoliativo” (1965, p. 153). Dada a avançada perda no poder de compra que esta situação
impunha, as pessoas que tinham um rendimento fixo – em especial as que viviam do seu
salário – acabavam sendo induzidas a poupar. Esta poupança, aliada aos lucros auferidos
pelos capitalistas, era uma dimensão importante dos recursos que seriam transformados em
capital produtivo, à medida que, por meio da intermediação bancária, eram postos a serviço
dos investimentos industriais que precisavam ser feitos para garantir a acumulação.
Em outras palavras a fixação de baixos salários, a formação de um significativo
exército industrial de reserva e a depreciação monetária resultante da inflação constituíram
elementos fundamentais sobre os quais se assentou o processo de “modernização” do país.
Ao mesmo tempo, a definição do salário mínimo e a adoção de algumas políticas, inclusive
recreativas, destinadas à classe trabalhadora, além de um discurso populista destinado às
massas, buscavam conter as constantes tensões entre as classes e viabilizar um convívio
“harmonioso” entre elas, ante à concentração de renda que marca o período.
A utilização do braço repressivo do Estado é também uma marca forte do processo
de acumulação capitalista no Brasil. Esta se deu de forma mais visível durante a ditadura
do Estado Novo – no governo Vargas (1937-1945) –, e a ditadura civil-militar (1964-
1985), mas também esteve presente, ainda que de maneira reduzida e menos clara, no
período de democracia representativa.
Mattos (2011) possui um interessante artigo em que analisa os relatos de militantes
que foram presos durante o período ditatorial do primeiro governo Vargas, juntamente com
textos literários e produções sobre a experiência prisional no período. Presos políticos
como Graciliano Ramos, Apolônio de Carvalho e Patrícia Galvão, a Pagu, estão entre os
que tiveram seus escritos analisados por Mattos. São os presídios de Fernando de Noronha
(PE) e o de Ilha Grande (RJ), os principais palcos das experiências relatadas.
111

Os relatos denunciam um conjunto de arbitrariedades que envolvem a detenção e o


confinamento dos presos políticos (superlotação, tortura etc). Mas também abordam um
certo orgulho pela entrega militante que os teria levado à prisão. Falam também do
sentimento de humanidade que a experiência havia trazido, bem como do aprendizado no
campo da formação política.
Para além das grandes personalidades que foram detidas, saltam aos olhos a
quantidade de presos políticos durante o governo Vargas. Segundo o autor, seriam cerca de
35 mil pessoas, desde o Levante da Aliança Nacional Libertadora (ANL), em 1935. A
principal ferramenta usada foi a Lei de Segurança Nacional, de 1935, mas chama a atenção
também, “a sofisticação de um aparato policial repressivo – a polícia política –, que se não
foi ‘inventado’ por Vargas, passou por várias redefinições que ampliaram em muito sua
área de atuação” (MATTOS, 2011, p.3). A contradição, entretanto, que o período
repressivo trouxe é que, mesmo buscando conter o avanço das forças revolucionárias, a
experiência prisional contribuiu para a entrada de muitos militantes no PCB durante ou
após a detenção, o que demonstra a força da formação de uma geração de militantes de
esquerda. Mas o fato é que, no geral, a repressão significou a redução das possibilidades de
contestação e facilitou o aumento da exploração do trabalho, como forma de dinamizar a
acumulação capitalista.
Estas são, em linhas gerais, as bases para a expansão industrial pós-1930. Este
processo se deu de forma bastante complexa dadas as particularidades típicas de um país
que ingressou tardiamente na dinâmica de industrialização. Por demandar vultosos
investimentos e com alto tempo de maturação, boa parte destes só poderia ser realizada por
meio da ação do Estado. Uma outra parte, também muito significativa, viria do setor
agrícola, que precisava ser “seduzido” para a atividade industrial e outra viria do setor
externo. “A classe dirigente, por isso, está comprometida com a economia agrária, o
proletariado e o imperialismo” (IANNI, 1965, p. 121).
Todo este movimento se choca por um lado, com os pressupostos liberais, nunca
totalmente implementados ou defendidos, mas que criam uma ambiguidade na burguesia a
qual, mesmo que em boa parte tivesse clareza da importância da atividade estatal, se
preocupava com a interferência no “livre jogo do mercado”. Ianni ao destacar os jornais e
revistas da época, aponta que as opiniões da burguesia são “um contínuo oscilar entre a
prática de um Estado participante, engajado no processo produtivo, e a concepção de um
Estado ausente, distante e neutro” (1965, p. 126). Mas não era possível negar que a
112

intervenção do Estado, dadas as condições existentes – em que destacamos a força do


capitalismo monopolista internacional, a incipiente indústria nacional e a ausência de uma
significativa poupança interna – era indispensável para viabilizar as condições de produção
de uma mais-valia crescente.
Principalmente neste momento, quando pensamos no início da consolidação do
capitalismo monopolista, veremos que a participação direta do Estado na produção de bens
e serviços foi definitiva. Fernandes ([1975] 2005, p. 287) destaca a criação da Companhia
Siderúrgica Nacional (1946) e da Petrobras (1953) como as realizações de maior peso no
período. Para ele, ao contrário do momento anterior “quando se cria a infraestrutura de um
mercado capitalista plurifuncional, a infraestrutura de um complexo sistema de produção
industrial não pode ser lograda pelos esforços da iniciativa privada, estrangeira ou
nacional”. Daí porque foi possível se consolidar uma certa legitimidade para o
intervencionismo estatal.
“Agora não se discute mais se o Estado é ou não o principal centro de decisão;
discute-se como ele deve intervir” (IANNI, 1965, p. 107, grifo do autor). O planejamento
econômico passou a ser a principal ferramenta para orientar o desenvolvimento e a atuar
também como uma forma de estreitar os laços com a burguesia. Esta passou não somente a
poder orientar suas atividades a partir do planejamento, como também a interferir neste, ao
ocupar cargos no aparelho estatal e ao usar sua influência para que as definições fossem
feitas em seu benefício.
O Plano de Metas (1956/60), implementado por Juscelino Kubitschek deixa clara a
importância do planejamento para garantir um ritmo de crescimento acelerado da atividade
industrial e as bases em que este desenvolvimento aconteceria: aumento da facilidade para
a entrada de capital externo, da emissão de moeda, da exploração da classe trabalhadora e
das desigualdades intersetoriais e regionais. Paul Singer destaca alguns dados bastante
ilustrativos do período:

A desigualdade relativa no crescimento econômico dá uma ideia das dimensões


que a concentração da renda deve ter assumido: entre 1955 e 1961, o produto
real (índice de base física) da indústria de material de transporte, que inclui a
automobilística, cresceu 549%, o da indústria de material elétrico e de
comunicações, que inclui a de eletrodomésticos e de eletrono-domésticos,
cresceu 367,7% (24,2% ao ano), ao passo que o da indústria de produtos
alimentares cresceu apenas 46,4% (6,6% ao ano) e o da indústria têxtil aumentou
28,9% (4,3% ao ano) (SINGER, P., 1977, p. 102).
113

Por outro lado, mesmo sem romper com o imperialismo, ao se voltar para o
mercado interno, a estrutura produtiva redefiniu esta relação, impondo uma nova
configuração da relação com o mercado externo e, portanto, com as grandes potências. Nas
palavras de Ianni “eis aí como a crise do imperialismo, traduzida na guerra, foi aproveitada
por uma nação semicolonial” (1965, p. 69). É claro que este “aproveitamento” se deu
reestabelecendo os vínculos de dependência e subordinação, marca do nosso processo
sócio-histórico até os dias atuais.
Fundamentalmente, a entrada do capital externo vai paulatinamente deixando de se
dar por meio da importação de bens de consumo e passa a se materializar na entrada de
bens de capital, máquinas e equipamentos necessários à produção interna das mercadorias.
Na linha do avanço do imperialismo ao qual se refere Lenin ([1917] 2012), o domínio
sobre as nações dependentes passa cada vez menos pela exportação de mercadorias e mais
pela exportação de capitais75. No território nacional, esta foi uma mudança vista com bons
olhos pela ideologia “nacionalista”, dado que significava uma redução na compra de
produtos importados já acabados e prontos para o consumo.
Este era o limite do conceito de “nacional” que acompanhava a ideia de
desenvolvimento. O capital externo continuou sendo muito bem recebido e incentivado,
desde que favorecesse a produção interna, daí por que muitas análises do período falam em
desenvolvimento “associado”, como Ianni, por exemplo, ou desenvolvimento “induzido”,
como é o caso de Florestan. Principalmente a partir do final dos anos 1950, podemos falar
em uma reintegração ao sistema internacional, tendo esta funcionado como uma das
principais alavancas do desenvolvimento interno. A interiorização dos centros de decisão
não significou, de forma alguma, o rompimento com o exterior. Nas palavras de Florestan
“a dominação imperialista externa cresce (e não diminui, como se esperava) com a
diferenciação e a aceleração do desenvolvimento capitalista” ([1975] 2005, p. 291).
O fato é que, no final dos anos 1940 a possibilidade da industrialização já havia
conquistado corações e mentes76. Neste momento, a conversão do capital agrário em

75
Não estamos, com isso, querendo dizer que a exportação de mercadorias deixa de ser importante, muito
menos que haja, necessariamente, uma redução quantitativa. A questão é que a exportação de capitais assume
centralidade nas relações internacionais, constituindo-se como uma das principais formas de dominação
imperialista.
76
Em meados da década de 1940 o tema da industrialização e desenvolvimento já começa a render
acalorados debates. Exemplo disso foi a polêmica instaurada no interior do governo Vargas entre o industrial
Roberto Simonsen – membro do Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial, vinculado ao
114

industrial já era suficiente para viabilizar um período de consolidação da indústria e para


ruir com as afirmações que exaltavam uma vocação para a produção de produtos primários.
Sua legitimação envolveu um processo que trouxe não somente a burguesia industrial
nascente, mas também o proletariado e as organizações de esquerda, muitas das quais
passaram a defender o desenvolvimento nacional como forma de avançar rumo à redução
das desigualdades sociais. O debate caminhava no sentido de que caberia à burguesia
nacional romper com os resquícios do passado colonial por meio de uma revolução
democrática e nacional, livrando também o país dos interesses imperialistas.
Esta era a posição do Partido Comunista Brasileiro (PCB), por exemplo, que deixa
claro na Declaração de Março de 1958, a importância do partido compor o “bloco de apoio
ao nacional-desenvolvimentismo, incorporando uma parte significativa das concepções
desenvolvimentistas em seu programa partidário, sobretudo o apoio às chamadas reformas
de base” (ROCHA, 2011, p. 253). Vale ressaltar, entretanto, que, mesmo reivindicando o
apoio ao desenvolvimentismo, o partido seguia defendendo a hegemonia do proletariado na
condução das mudanças.
Foi com a desaceleração do crescimento industrial do fim dos anos 1950 e,
principalmente, após o golpe civil-militar – e, portanto, a partir da segunda metade da
década de 1960 – que esta análise passa a ser contestada de forma mais sólida entre os
setores mais a esquerda77. Neste momento, análises que já despontavam no final dos anos
1950 e início de 1960, ganham contornos mais sofisticados e deixam clara uma perspectiva
que aponta para a inviabilidade histórica da revolução “democrático-burguesa”78. Obras de
maior fôlego como a de Octavio Ianni, em 1965, e Caio Prado Jr., em 1966, estiveram
entre as que fundamentaram a denúncia a esta interpretação. Também Florestan Fernandes

Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio – e o economista Eugênio Gudin – membro do Conselho de


Segurança Nacional, vinculado à Comissão de Planejamento Econômico do governo. Esta pode ser
considerada a primeira controvérsia sobre desenvolvimento brasileiro, em que o primeiro defendia o
planejamento Estatal como condutor do processo e o segundo, a redução da intervenção estatal e princípios
marcadamente liberais, como a igualdade no tratamento entre o capital estrangeiro e o nacional.
77
As análises da Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (POLOP) e da Teoria da
Dependência já apontavam os limites desta perspectiva e muitas delas são ainda do início dos anos 1960.
Dentre estes trabalhos, destacamos as elaborações de Ruy Mauro Marini.
78
Dentre estes, destacamos a tese de livre docência defendida por Fernando Henrique Cardoso, junto à
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em 1963, que reúne pesquisas
realizadas entre julho de 1961 e outubro de 1962. Ver Cardoso ([1963] 1972).
115

fez uma forte crítica aos limites do padrão vigente e, portanto, aos posicionamentos que
predominaram ao longo do período de exaltação ao desenvolvimentismo.
Estes autores contestaram a tese de existência de uma burguesia nacional que
poderia romper com o imperialismo e com os “entraves ao desenvolvimento” e
denunciaram a dificuldade teórica da classe trabalhadora de analisar a conjuntura e se
posicionar de forma mais independente em relação à dominação a que estava submetida.
Muitas das críticas chegaram a ser excessivamente duras. Para Caio Prado Jr., “não é de se
admirar que as esquerdas brasileiras, privadas de uma teoria satisfatória e capaz de as
conduzir com segurança a seus objetivos, se tivessem deixado levar pelas seduções de
demagogos instalados no poder” ([1966] 2004, p. 23).
Em que pese acreditarmos ser necessária uma avaliação mais cuidadosa do papel da
esquerda neste período – dado que esta avaliação, por exemplo, feita no calor do golpe,
dificulta uma análise mais cuidadosa das contradições que permearam os posicionamentos
no período – é fato que setores organizados da classe trabalhadora apoiaram as medidas
desenvolvimentistas por acreditarem que seria uma etapa importante na construção do
socialismo. Mas existe uma dimensão contraditória neste apoio, que precisa ser melhor
estudada e discutida. Não temos condições, neste trabalho de avançar neste ponto, mas
gostaríamos de ressaltar uma avaliação de que a luta da classe trabalhadora pelas reformas
de base contribuiu para conduzir a um período de efervescência política que fortaleceu
algumas tensões no interior da burguesia. Consideramos esta uma das determinações que a
levou a optar pelo golpe como forma de “restaurar a ordem”79.
De todo o modo, a crítica destes autores ao suposto protagonismo da burguesia
nacional tinha como pano de fundo a compreensão da existência de uma interação dialética
entre o comportamento dos setores agrário e industrial e destes com o setor externo. Ianni,
assim como os autores citados, fundamenta sua crítica à perspectiva de uma dualidade
estrutural entre os setores “moderno” e “atrasado”. Para ele, o processo de
desenvolvimento impôs uma nova racionalidade que fosse capaz de permitir o avanço das
forças produtivas. Ele lembra que neste momento, ganhou força o debate acerca da
necessidade de uma maior articulação e integração nacional que enfrentasse as
“descontinuidades e desequilíbrios da economia nacional”. Difundiram-se análises que

79
Discutiremos melhor os antecedentes ao golpe no início da próxima seção.
116

falavam na existência de “dois brasis”, o que estaria impondo obstáculos ao


desenvolvimento.
Para Ianni, estas análises retiram o caráter histórico do nosso processo de formação
e desconsideram as mútuas influências que existem entre estas disparidades. Tratam apenas
de descrever a realidade destacando, de forma mecânica, as suas desigualdades. “Há um
maniqueísmo na base da teoria dualista, o que a coloca distante de um entendimento de
tipo dialético [...]” (1965, p. 82). Começa a ganhar força, na interpretação da realidade
brasileira, a ideia de um processo de desenvolvimento desigual e combinado, no qual, por
meio de uma interação dialética, o “arcaico” e o “novo” se articulam e complementam,
tendo em vista as particularidades de um capitalismo dependente.
Florestan também dá bastante ênfase para este traço do desenvolvimento capitalista
dependente ao afirmar que:

para se aninhar e crescer nas economias periféricas esse padrão de


desenvolvimento capitalista tem de satelizar formas econômicas variavelmente
‘modernas’, ‘antigas’ e ‘arcaicas’, que persistiram ao desenvolvimento anterior
da economia competitiva, do mercado capitalista da fase colonial e da economia
colonial. Tais formas econômicas operam, em relação ao desenvolvimento
capitalista-monopolista como fontes de acumulação originária de capital. Delas
são extraídos, portanto, parte do excedente econômico que financia a
modernização econômica, tecnológica e institucional requerida pela irrupção do
capitalismo monopolista, e outros recursos materiais e humanos, sem os quais
esta modernização seria inconcebível ([1975] 2005, p. 315).

Ainda no início dos anos 1970, Francisco de Oliveira também publica um ensaio
em que aborda esta questão, A economia brasileira: crítica a razão dualista, no qual
afirma que “longe de ser um crescente e acumulativo isolamento, há relações estruturais
entre os dois setores [agrário e industrial] que estão na lógica do tipo de expansão
capitalista [...] no Brasil” ([1972] 1981, p. 25).
A análise desenvolvida por Francisco de Oliveira, assim como a dos demais autores
citados, busca fazer uma crítica à teoria do subdesenvolvimento e ao dualismo, defendido
por intelectuais tanto da CEPAL, quanto do ISEB, sob o argumento da necessidade de
pensarmos este processo entendendo-o como um momento particular da luta de classes.
Não é a toa que a referida teoria funcionou como um suporte para o
desenvolvimentismo, que, nas palavras de Ricardo Bielschowsky, destacado economista da
CEPAL, deve ser entendido como sendo “a ideologia de superação do subdesenvolvimento
nacional com base numa estratégia de acumulação de capital na indústria” (2004, p. 250).
117

Já nas palavras de Ianni, o desenvolvimentismo foi “a ideologia da nova classe dirigente,


na fase de ascensão do poder” (1965, p. 108). Avaliação que traz em seu bojo uma análise
da classe que efetivamente se beneficiou deste processo, em detrimento da defesa da ideia
de que ele traria um benefício para todos.
Ainda sobre a necessidade de percebermos todas as mudanças deste período de
forma articulada, é importante ressaltar que Francisco de Oliveira, além de destacar o
imbricamento entre a produção agrícola e a industrial nascente, aponta alguns elementos
acerca do chamado setor terciário. Segundo ele, para os teóricos do subdesenvolvimento,
uma das características dos países que se encontram nesta condição seria um setor de
serviços “inchado”, que “consome excedente e comparece como um peso morto na
formação do produto” (OLIVEIRA, Francisco, [1972] 1981, p. 30). O autor, com base nas
produções de Marx e da tradição marxista, refuta esta noção alegando que, apesar de não
criar valor, este setor tem uma importância fundamental para a reprodução do sistema. Ele
destaca que

O crescimento do Terciário, na forma em que se dá, absorvendo


crescentemente a força de trabalho, tanto em termos absolutos como
relativos, faz parte do modo de acumulação urbano adequado à expansão do
sistema capitalista no Brasil; não se está em presença de nenhuma
“inchação”, nem de nenhum segmento “marginal” da economia ([1972]
1981, p. 31, grifo do autor).

Não podemos pensar o crescimento da indústria sem o acompanhamento do setor


de serviços. A questão é que este crescimento se dá em bases diferentes, tendo em vista
que a intensidade com que cresce a produção industrial não permite que esta venha
acompanhada de igual capitalização dos serviços. O que aparece como “inchação” tem por
base a constituição de um importante mecanismo para a acumulação: “os serviços
realizados à base de pura força de trabalho, que é remunerada a níveis baixíssimos,
transferem, permanentemente, para as atividades econômicas de corte capitalista, uma
fração do seu valor, ‘mais-valia’, em síntese” (OLIVEIRA, Francisco, [1972] 1981, p. 33).
Dentre estes serviços, podemos destacar o comércio ambulante nas cidades – que
comercializa desde as hortaliças e outros produtos de granja até alguns “industrializados”,
como pente, lâminas de barbear, produtos de limpeza, dentre outros – e o serviço braçal
realizado para lavar os automóveis. Além de absorverem o “exercito industrial de reserva”
118

estes serviços têm o importante papel de contribuir com a acumulação industrial e reforçar
a concentração de renda.
Para finalizar, gostaríamos de destacar o que Francisco de Oliveira considera
original no processo vivenciado no Brasil e que incorpora todos os elementos até aqui
discutidos:

A originalidade consistiria em dizer-se que – sem abusar do gosto pelo paradoxo


– a expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações novas no
arcaico e reproduzindo relações arcaicas no novo, um modo de compatibilizar a
acumulação global, em que a introdução de relações novas no arcaico libera
força de trabalho que suporta a acumulação industrial-urbana e em que a
reprodução de relações arcaicas no novo preserva o potencial de acumulação
liberado exclusivamente para os fins de expansão do próprio novo (OLIVEIRA,
Francisco, [1972] 1981, p. 36, grifos do autor).

Esta é, em síntese, a marca do processo de transição para uma economia de base


urbano-industrial no Brasil, que redundou em uma “concentração da renda, da
propriedade e do poder” (OLIVEIRA, Francisco, [1972] 1981, p. 36, grifo do autor).

2.1.2 A chegada do capitalismo monopolista

Sabemos que a definição de marcos históricos não é feita sem polêmicas e que
muitas são as possíveis referências para cada definição. Neste sentido, apesar de muitos
estudiosos tomarem os anos 1930 como um marco que inaugura uma nova etapa do
desenvolvimento do capitalismo brasileiro, como é o caso de Octavio Ianni, Francisco de
Oliveira e tantos outros, Florestan Fernandes dá a este momento menor importância,
privilegiando os acontecimentos da década de 195080. Nós nos juntamos aos primeiros e
defendemos que esta década constitui um momento de inflexão no nosso processo de
formação, ainda que estejamos de acordo com a interpretação de que são os anos 1950
decisivos para o entendimento da nossa entrada nos marcos do capitalismo monopolista.

80
Para Florestan o desenvolvimento capitalista deve ser pensado em três fases: “a) fase de eclosão de um
mercado capitalista especificamente moderno; b) fase de formação e expansão do capitalismo competitivo; c)
fase de irrupção do capitalismo monopolista” ([1975] 2005, p. 263). A primeira vai da Abertura dos Portos
até 1860, a segunda vai até 1950 e a terceira começa em 1950, mas só adquire caráter estrutural depois de
1964.
119

Apesar de sabermos da necessidade de pensar as particularidades da dinâmica de


acumulação brasileira, não restam dúvidas de que ela caracteriza-se como uma expansão
de base capitalista, dado que funda-se na separação entre proprietários dos meios de
produção e não proprietários. Nossa proposta é a de resgatar alguns dos elementos que nos
ajudem a pensar a forma como se deu a consolidação deste modo de produção.
Como dissemos, estas transformações não teriam acontecido da forma como
aconteceram sem a participação ativa do Estado. Muitas foram as iniciativas para
caracterizar estas mudanças, mas gostaríamos de destacar a análise de Ianni (1965). O
autor divide a intervenção estatal em duas fases distintas, tendo em vista que “o Estado,
como instituição fundamental do sistema global, está na base e na cúpula do sistema de
apropriação e dominação” (1965, p. 55).
A primeira seria definida por uma defesa setorial, assentada em um estilo
patrimonial de ordenamento econômico e social, em que o Estado atua de modo a garantir
níveis de emprego e renda de setores específicos, dentre os quais podemos destacar o
cafeeiro. De acordo com Ianni, esta “é uma fase de orientação que pode ser definida como
específica de uma fase de crescimento econômico em que as forças produtivas não
encontravam canais novos de manifestações nem recebiam estímulos institucionais” (1965,
p. 51, grifo do autor). A preocupação estava centrada na preservação e estabilização do
sistema vigente.
A segunda fase foi marcada por buscar orientar, dinamizar e diversificar as forças
produtivas. O Estado passa a atuar de forma mais intencional no estímulo à expansão de
base industrial. Assim, esta seria uma fase de “desenvolvimento econômico, em que as
forças produtivas encontram novos canais de expressão e recebem impulsos às vezes de
grande envergadura” (1965, p. 52, grifo do autor). Seria um momento de difusão de uma
racionalidade distinta da patrimonial e mais adequada ao estabelecimento de relações
tipicamente capitalistas.
É sobre esta segunda fase que devemos nos debruçar mais detidamente. Para tanto,
não podemos deixar de mencionar o processo de industrialização por substituição de
importações. A este respeito, Francisco de Oliveira dá mais um passo na crítica que faz à
interpretação difundida pela CEPAL. Para ele, algumas análises acerca do avanço
industrial pós anos 1930, hiperdimensionam o papel do processo de industrialização por
120

substituição de importações81. Ainda que este debate seja importante para discutir a forma
do processo de industrialização, faltariam, nesta perspectiva teórica, algumas categorias
fundamentais para capturar o seu conteúdo.
O pressuposto de que as dificuldades de importação levam à necessidade de
produção interna inverte a análise, fazendo parecer que o fundamento do processo está no
consumo e não na produção. A valorização da influência do contexto externo dá pouca
importância ao que procuramos enfatizar na análise dos aspectos que impulsionaram a
acumulação, nos quais temos como pressuposto as possibilidades de extração da mais valia
e a estrutura de classes no país. Segundo o autor, o problema está em pensar que “começa-
se a produzir bens sofisticados de consumo, e essa produção é que ‘perverte’ a orientação
do processo produtivo, levando no seu paroxismo à recriação do ‘atrasado’ e do
‘moderno’” (OLIVEIRA, Francisco, [1972] 1981, p. 27).
As necessidades de acumulação impunham a urgência em produzir os bens
necessários para rebaixar o custo de reprodução da força de trabalho, portanto, bens não
duráveis, destinados ao consumo das classes populares (Departamento III)82. É a produção
destes bens que inaugura o processo industrializador a que estamos nos referindo. Isto não
significa que, num segundo momento, não se tenha avançado para os bens duráveis
(Departamento II).

O fato de que o processo tenha desembocado num modelo concentracionista, que


numa segunda etapa de expansão vai deslocar o eixo produtivo para a fabricação
de bens de consumo duráveis, não se deve a nenhum fetiche ou natureza dos
bens, a nenhum “efeito demonstração”, mas à redefinição das relações trabalho-
capital, à enorme ampliação do “exército industrial de reserva”, ao aumento da
taxa de exploração, às velocidades diferenciais de crescimento dos salários e

81
Como não cabe, dadas as possibilidades deste trabalho, entrar em uma análise pormenorizada do processo
de industrialização por substituição de importações, vamos nos restringir a resgatar sua ideia geral, muito
bem sintetizada por Francisco de Oliveira: “a crise cambial encarece os bens até então importados e, no
limite, a não disponibilidade de divisas e a II Guerra Mundial impedem, até do ponto de vista físico, o acesso
aos bens importados; isso dá lugar a uma demanda contida ou insatisfeita, que será o horizonte de mercado
estável e seguro para empresários industriais que, sem ameaça de competição, podem produzir e vender
produtos de qualidade mais baixa que os importados e a preços mais elevados. Posteriormente, a adoção de
uma clara política alfandegária protecionista ampliará as margens de preferência para os produtos de
fabricação interna” ([1972] 1981, p. 25). Para maiores esclarecimentos, ver Tavares ([1963] 1976).
82
Kalecki resgata a divisão marxista da economia em departamentos, faz pequenas modificações e sintetiza:
“o Departamento I representa a produção total de todos os bens finais não utilizados para o consumo”
(compreendendo os bens de produção e as matérias-primas respectivas). Além deste, são distinguidos mais
dois: “Departamento II, que produz bens de consumo para os capitalistas, e Departamento III, que produz
bens de consumo para os trabalhadores” ([1968] 1977, p. 1).
121

produtividade que reforçaram a acumulação (OLIVEIRA, Francisco, [1972]


1981, p. 28).

Podemos dizer, portanto, que a industrialização por substituição de importações


apesar de necessária, é insuficiente para explicar as bases do crescimento industrial
vivenciado a partir dos anos 1930. Florestan ([1975] 1995, p. 286) também faz indicações
neste sentido ao afirmar que “o essencial não está na substituição de importações”.
Segundo ele, o fundamental está “nas características que a dominação imperialista externa
e a ausência da universalização das relações capitalistas de mercado e de produção
introduzem no padrão brasileiro de desenvolvimento econômico sob o capitalismo
dependente”. Neste mesmo sentido, ele afirma que “é má descrição dizer-se que a
substituição de importações tenha sido o dínamo do processo” ([1975] 1995, p. 285).
A valorização da esfera do consumo, neste caso, contribui para dar sustentação à
ideologia desenvolvimentista presente neste período. Ao mesmo tempo, este termo, se
levado ao “pé da letra”, pode passar a impressão de que contém em si a perspectiva de
conduzir o país a autonomia em relação ao exterior por possibilitar eliminar todas as
importações. Tavares argumenta que, neste sentido, este termo é “pouco feliz” dado que,
pelo contrário, “no lugar destes bens substituídos aparecem outros e à medida que o
processo avança isso acarreta o aumento da demanda derivada por importações (de
produtos intermediários e bens de capital), que pode resultar numa maior dependência
com o exterior [...]” ([1963] 1976, p. 39, grifo nosso).
Em todo caso, podemos dizer que o processo de acumulação capitalista neste
período foi contribuindo para a construção de um tripé, marcado pela articulação entre o
Estado e o capital privado, nacional e internacional, com papeis diferentes entre si. A
produção de bens de capital (departamento I), dados os vultosos recursos que mobilizava,
se constituía fortemente vinculado ao Estado. A produção de bens de consumo não
duráveis (departamento III), estava mais diretamente ligado ao capital privado nacional. A
produção de bens duráveis – que demandava um maciço investimento em tecnologia –
passou em pouco tempo a funcionar como o eixo dinâmico da economia e era
implementado pelo capital externo, por meio de multinacionais, fortemente oligopolizadas.
Embora tenhamos optado por esta descrição, tão esquemática quanto frequente na
literatura acerca de nosso processo de formação, gostaríamos de ressaltar a dificuldade de
se identificar estas diferenças em muitos casos. Ianni (1981, p. 37) indica que
122

não é fácil especificar quando uma empresa, conglomerado, holding, grupo, etc é
simplesmente estatal, nacional ou imperialista. Nem sempre os vínculos
econômicos e políticos são visíveis, mesmo depois de muita pesquisa. Além do
mais, na prática, os três setores da economia, ou o tripé, sempre se acham
articulados, reciprocamente determinados, em uma totalidade que também possui
suas especificidades.

A análise, como veremos na próxima seção, aponta para um processo de constante


ampliação do Estado e para a interação do capital privado nacional entre este e o capital
estrangeiro. Esta dificuldade na diferenciação entre eles tende a ir aumentando à medida
que o capitalismo monopolista de consolida e vai forçando a formação de conglomerados e
holdings, por meio da associação entre grupos de capitalistas, com forte presença do
Estado. Entretanto, é relativamente clara a hegemonia do capital imperialista em relação
aos demais e sua forte presença nos setores mais dinâmicos.
Outro ponto que gostaríamos de destacar é a concentração de renda, ao mesmo
tempo, resultado deste processo e importante impulsionador do mesmo. O fato dos
produtos produzidos internamente terem um preço maior do que se fossem importados,
somente seria um problema se estivéssemos falando dos bens necessários a reprodução da
força de trabalho. Aí sim, teríamos um obstáculo para o processo de industrialização.
Como dissemos, o dinamismo à industrialização foi dado pela produção do
departamento II. Em relação a estes produtos, ainda que os preços nacionais estejam acima
dos importados83, a grande concentração de renda permite a realização da produção. Esta
realização, por se dar em meio a uma produtividade crescente em relação aos salários,
também contribui para ampliar a concentração de renda.
A legislação trabalhista também consiste em uma das principais alavancas do
processo de industrialização e propiciou parte das condições para esta concentração de
renda. Mas existem outros fatores que marcam a particularidade deste processo no Brasil.
Um deles é que ele acontece de forma retardatária, nos termos usados por João Manuel
Cardoso de Melo ([1975] 1991), ou seja, quando há todo um conjunto de trabalho morto
(que se materializa na forma de uma tecnologia), que poderia ser incorporado por meio da
importação de bens intermediários e de capital. Este fator amplia – principalmente quando

83
O que importa aqui é destacar que só faz sentido falar em competitividade no que diz respeito aos preços,
se estivermos tratando de bens destinados à exportação. Para os bens produzidos para o mercado interno em
um contexto de grande concentração de renda e demanda das classes altas aquecida, “nenhuma importância
tem o fato de que os automóveis nacionais sejam duas ou três vezes mais caros que seus similares
estrangeiros” (OLIVEIRA, Francisco, 1981, p. 29).
123

associado às possibilidades abertas pela nova legislação trabalhista – a produtividade na


indústria, distanciando ainda mais os ganhos do capital em relação aos do trabalho.
Ao mesmo tempo, a importação destes bens, se por um lado elimina algumas etapas
da produção, por outro, reduz o circuito interno de realização do capital. Um dos
desdobramentos deste processo é o comprometimento das possibilidades de geração de
empregos. “A razão histórica da industrialização tardia converte-se numa razão estrutural,
dando ao setor secundário e à indústria participações desequilibradas no produto e na
estrutura do emprego” (OLIVEIRA, Francisco, [1972] 1981, p. 42).
Outra particularidade refere-se ao setor terciário. A importação de bens para
alimentar a industrialização requer uma divisão social do trabalho mais sofisticada, o que
tem implicações sobre as demandas postas para o setor de serviços. Esta realidade,
entretanto, choca-se com as possibilidades da “exiguidade inicial [...] dos fundos
disponíveis para a acumulação, que devem ser rateados entre indústria propriamente dita e
os serviços” (OLIVEIRA, Francisco, [1972] 1981, p. 43).
Segundo Francisco de Oliveira,

A solução é encontrada fazendo os serviços crescerem horizontalmente, sem


quase nenhuma capitalização, à base de concurso quase único da força de
trabalho e do talento organizatório de milhares de pseudo pequenos proprietários,
que na verdade não estão mais do que vendendo sua força de trabalho às
unidades principais do sistema, mediadas por uma falsa propriedade que consiste
numa operação de por para fora dos custos internos de produção fabris a parcela
correspondente aos serviços ([1972]1981, p. 43).

Deste modo, os serviços são prestados com baixíssimo nível de capitalização,


fazendo uso de parte do farto contingente de trabalhadores e baseado na existência de uma
força de trabalho pouco especializada e de baixo custo84.
Todo este debate parece demonstrar que o autor pretende chamar a atenção para
uma das características do processo de transição para o capitalismo no Brasil. Aqui,

84
“Criou-se, para atender às demandas nascidas na própria expansão industrial, vista do lado das populações
engajadas nela, isto é, urbanizadas, uma vasta gama de serviços espalhados pelas cidades, destinado ao
abastecimento das populações dispersas: pequenas mercearias, bazares, lojas, oficinas de reparos e ‘ateliers’
de serviços pessoais. Estes são setores que funcionaram como satélites das populações nucleadas nos
subúrbios, e portanto, atendem as populações de baixo poder aquisitivo (OLIVEIRA, Francisco, [1972] 1981,
p. 43-44).
124

a implantação das novas relações de produção no setor estratégico da economia


tende, por razões em primeiro lugar históricas, que se transformam em relações
estruturais, a perpetuar as relações não capitalistas na agricultura e a criar um
padrão não capitalístico de reprodução e apropriação do excedente num setor
como o dos serviços (OLIVEIRA, Francisco, [1972] 1981, p. 44).

Em outras palavras, é possível identificar a existência de setores não capitalísticos


alimentando e dando sustentação para o pleno desenvolvimento dos setores e atividades
capitalistas. Esta é a base material sobre a qual se erguem as relações de poder, permitindo
uma rede de alianças bastante heterogênea, que garante a continuidade de relações de
dominação e exploração com vistas à reprodução do sistema.
Para finalizar, podemos dizer que o processo de consolidação da industrialização no
Brasil envolveu um conjunto intrincado de mudanças que, para ser apreendido, precisa da
articulação entre a dimensão econômica, política e social, de modo a escapar de análises
economicistas ou parciais.
O debate em torno da perspectiva desenvolvimentista, ainda que por vezes admita a
presença da luta de classes, refuta a existência de uma incompatibilidade entre estas, bem
como suas implicações no processo de consolidação de uma economia de base urbano-
industrial. De acordo com esta perspectiva, são os elementos não capitalistas os
responsáveis pela geração das desigualdades sociais e entre as nações. Este período, que
decorre da aceitação destas análises e da adoção das medidas propostas para conter o
subdesenvolvimento, seguiu fundado no argumento de que seria o processo de
industrialização o eixo estruturador do combate às desigualdades sociais.
Procuramos demonstrar as determinações internas da acumulação capitalista,
destacando a importância da articulação dialética entre agricultura, indústria e serviços e da
intervenção estatal para alavancar o desenvolvimento das forças produtivas. Assim, o
“moderno” e o “atrasado”, muito mais do que uma estrutura dual, significaram um
intercruzamento bastante complexo em que um alimenta o outro para poder crescer.
Entender este processo nos parece essencial para estudar a realidade contemporânea
e a as bases da correlação de forças que vivenciamos. Sem isso, torna-se muito limitado o
nosso poder de intervir na realidade, na busca de construção dos elementos fundamentais
para combater este sistema, que sempre teve na concentração de renda e na desigualdade
alguns dos seus fundamentos básicos.
125

2.2 Da reforma bancária nos anos 1960 à crise do endividamento nos 1980

Como já foi dito, desde os anos 1930 no Brasil, são operadas profundas
transformações na base urbano-industrial, com desdobramentos também sobre a
agricultura. Podemos observar um processo de consolidação do capital industrial como
fundamento da acumulação capitalista, que trouxe consigo a concentração de renda e o
aumento do pauperismo, ao ampliar sobremaneira as bases da exploração da força de
trabalho.
A articulação entre latifundiários, burguesia industrial e os capitais estrangeiros foi
capaz de, por meio da atuação do Estado, alterar a estrutura produtiva brasileira.
Conduzidas de forma fundamentalmente autocrática, as mudanças “pelo alto” se
caracterizaram por uma baixa participação das “massas”, hegemonizadas por discursos
populistas e pela truculência mais ou menos ostensiva da repressão policial. Nesse
contexto, instalou-se uma espécie de “pacto” entre as classes sociais, que permitiu um
avanço significativo das relações sociais de produção e das forças produtivas tipicamente
capitalistas.
Este avanço não se deu sem contradições, de modo que o período entre os anos
1961 e 1964 foi marcado por uma crise do Estado burguês, pressionados tanto pelo
imperialismo, pelo nacionalismo econômico, quanto pela politização dos trabalhadores e
camponeses. Como lembra Ianni, “nessa época, as opções capitalismo dependente,
capitalismo nacional, socialismo por via pacífica e socialismo por via revolucionária
tornaram-se bastante reais, ainda que em distintas gradações, como possibilidades do
processo político” (1981, p. 197). As possibilidades estavam em aberto e presenciamos um
aumento da participação popular na cena política. Houve um fortalecimento do movimento
sindical, com aumento de greves, uma maior organização de camponeses e trabalhadores
rurais, uma efervescência no movimento estudantil, para citar alguns dos movimentos que
passaram a aparecer de forma mais efetiva e organizada em torno de propostas de
mudanças. Como resgatam Sônia Mendonça e Virginia Fontes,

a instabilidade política, inaugurada com a renuncia de Jânio Quadros e os


empecilhos para a posse de João Goulart, trouxe os trabalhadores para questões
mais diretamente políticas, enquanto as crises de abastecimento do setor de
consumo popular estimulavam os movimentos reivindicatórios (2004, p. 18).
126

A crise continha elementos econômicos, dado que podia ser observada uma redução
no crescimento85, acompanhada de uma crescente inflação – que contribuía para a
defasagem real nos salários. E continha também elementos políticos, os quais impunham
pressões por todos os lados. Mendonça e Fontes (2004) destacam duas grandes polêmicas
sobre as quais houve uma certa polarização das forças políticas, chegando a provocar um
embate entre os poderes Executivo e Legislativo: as reformas de base e a luta
aintiimperialista.
O golpe empresarial-militar de 1964 representou, deste modo, uma
contrarrevolução, que atentava contra o avanço das conquistas – por mais limitadas que
fossem – democrático-burguesas, portanto, “dentro da ordem”, e contra as possibilidades
abertas para “fora da ordem”, que inspiravam alguns segmentos da esquerda brasileira86.
Por trás do lema “segurança e desenvolvimento” a grande burguesia integrou o poder
militar e econômico e garantiu a sua hegemonia na condução do capitalismo dependente
brasileiro, fortalecendo os processos de concentração do capital e aprofundando as bases
para extração de mais-valia. “A ditadura instalada foi induzida a por-se a serviço do capital
monopolista de modo direto, aberto, ostensivo e repressivo” (IANNI, 1981, p. 34).
Ianni (1981, p. 42-43) destaca três traços marcantes da “economia política da
ditadura”: 1) a importância que o planejamento estatal assume durante o período por
viabilizar o “desenvolvimento”, subordinando todas as formas de organização social da
produção às exigências da acumulação monopolista. Para ele, este planejamento
transforma-se em uma importante força produtiva e expressa dois significados
fundamentais: permite a transformação de mais valia potencial em efetiva, via um
crescente domínio do capital sobre o trabalho e funciona como “uma esfera privilegiada
das articulações e metamorfoses entre a economia política do capital monopolista e a
economia política da ditadura” (1981, p. 25); 2) a violência estatal torna-se também uma

85
“Enquanto no período de 1957-1961, a taxa média de crescimento se situou em 6,9% ao ano, no período de
1962-1964 caiu para 3,4% ao ano” (MARTONE, 1975).
86
“A burguesia que se havia beneficiado do populismo não estava interessada em arriscar uma luta que
poderia transformar-se em revolução popular. Não queria um governo de base popular, muito menos de base
operária. Aceitou o golpe de Estado. Golpe providencial, para certos setores do bloco populista, que estavam
aflitos com o ascenso popular e operário no processo político brasileiro” (IANNI, 1981, p. 210). Mendonça e
Fontes (2004, p. 20) resgatam que o golpe “significou o fim do direito de greve, das associações de
camponeses e da estabilidade no emprego através da criação do FGTS [Fundo de Garantia por Tempo de
Serviço]; a anulação da Lei de Remessas de Lucros e a nacionalização das refinarias de petróleo; o
impedimento a todas as formas de organização popular”.
127

força produtiva a serviço do capital, dada sua capacidade de controlar a classe trabalhadora
e dirimir as possibilidades de resistência à ampliação das taxas de extração da mais valia
que, em outras condições, seriam praticamente inviáveis; 3) a subalternização do Estado ao
capital financeiro sob o predomínio dos interesses imperialistas.
Deste modo, para que esta contrarrevolução pudesse ter continuidade, o novo
governo tinha em suas mãos a responsabilidade de enfrentar a crise que assolou a
economia brasileira. Uma crise que, de acordo com Tavares e Serra, no importante ensaio
Além da Estagnação, “esteve estritamente relacionada, a nível [sic] estrutural, com o
esgotamento do dinamismo da industrialização baseada na substituição de importações”
([1971] 1976, p. 168). Segundo eles, as dificuldades para incrementar o nível de
investimentos estavam relacionadas menos com limitações na capacidade produtiva e mais
com questões estruturais na demanda e no financiamento. Martone acrescenta ainda o
“estrangulamento periódico da capacidade de importar, em boa parte motivado pelo
agravamento da situação financeira externa do país” (1975, p. 72).
O Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG – 1964/1966), implementado
após o golpe, definiu uma política para enfrentar o gargalo na demanda que deixa clara a
preocupação do Estado ditatorial de “dinamizar a produção de mais-valia absoluta e
relativa [...], em favor da grande empresa privada nacional e estrangeira [...]” (IANNI,
1981, p. 24). A solução encontrada, como apontam Tavares e Serra ([1971] 1976), passou
por uma redistribuição de renda para setores médios e altos em detrimento da renda da
classe trabalhadora, por meio de um arrocho salarial. Uma solução viabilizada por um
aumento da concentração da renda e pela dificuldade organizativa dos trabalhadores, fruto,
dentre outros elementos, do aumento da repressão e da cooptação que marca o período
ditatorial87. A saída mostra também, de forma bem clara, a busca pelo fortalecimento do
poder da burguesia monopolista, em processo de consolidação. Sob o manto da
neutralidade do planejamento, difundido como uma questão puramente técnica, o
“político” e o “econômico” vão se articulando e conferindo ao poder estatal as ferramentas
para atender aos interesses do capital monopolista.
O ponto, entretanto, que pretendemos nos dedicar a analisar melhor é a questão do
financiamento. No período anterior, este foi, em grande parte, garantido pela expansão

87
Sobre a organização sindical e as lutas da classe trabalhadora no período ver Mattos (2009), Gianotti
(2009), Ianni (1981), dentre outros.
128

primária dos meios de pagamento, o que teria contribuído para propiciar uma alta na
inflação. Como já mencionamos, o processo inflacionário cumpria também o papel de
impor uma postura voltada para poupar e permitia que esta poupança fosse canalizada para
a realização do investimento. Com o tempo, este esquema perdeu sua funcionalidade, ao
assumir proporções gigantescas, e acabou por produzir estrangulamentos financeiros nas
empresas. Ao mesmo tempo, a crise por um lado, e a Lei de Remessa de Lucros (vigente
desde 1962), por outro, restringiram os investimentos externos no país, de modo que a
estrutura existente para viabilizar os investimentos precisava ser revista com o objetivo de
propiciar novas condições para um impulso à industrialização (TAVARES ; SERRA
([1971] 1976); MARTONE (1975); MENDONÇA E FONTES (2004); WERNECK
VIANNA (1987)).
Segundo Tavares ([1971] 1976, p. 218) os “esquemas de financiamento público e
privado haviam utilizado, até o limite do possível, os mecanismos inflacionários interno e
de endividamento externo”. Assim, um dos principais objetivos do governo passou a ser
construir os mecanismos para estimular o financiamento do investimento na quantidade
necessária para garantir as bases da acumulação industrial. Era necessário construir uma
forma que não acelerasse o processo inflacionário, ou seja, que não demandasse a emissão
de moeda. Em 1964 a inflação já era considerada o “mal maior da economia” e estava
próxima a uma taxa anual de 100%.
Assim, o principal objetivo anunciado do PAEG – e que poderia garantir certo grau
de legitimação popular, dado o ônus político enfrentado com o golpe e o forte arrocho
salarial – era garantir a retomada do crescimento (foram estabelecidas metas de 6% para
cada ano do plano) e para tanto, precisava concentrar suas forças em controlar a inflação88.
Em relação ao financiamento, o plano apontava a necessidade de rever a política de crédito
ao Estado e ao setor privado e aumentar a tributação indireta, como maneira de substituir a
forma até então encontrada de cobrir os déficits do governo, que era a emissão de moeda.
A inflação e o financiamento foram, portanto, os grandes gargalos identificados
como obstáculos ao desenvolvimento e estavam ligados um ao outro, dados os moldes em
que se baseou o crescimento do período anterior. Além disso, o plano procurava atenuar os

88
“O PAEG optou por um combate progressivo ou gradual do processo inflacionário, fixando como meta um
crescimento de preços da ordem de 80% em 1964, 25% em 1965 e 10% em 1966, último ano do plano”
(MARTONE, 1975, p. 75).
129

desequilíbrios regionais, expandir a oferta de empregos89 – por meio de um maior


desenvolvimento econômico – e reverter a dificuldade de importações em função dos
déficits no balanço de pagamentos90 (MARTONE, 1975).
A maneira encontrada para reorganizar as bases do financiamento foi a realização
de algumas reformas institucionais como a reforma bancária, no mercado de capitais e
tributária (via aumento da tributação indireta, o que também contribuiu para uma
transferência de recursos da classe trabalhadora para “viabilizar o crescimento”). Em
outras palavras, ao Estado, “caberia o papel primordial de conduzir a modernização ‘de
cima para baixo’ do setor financeiro, como ponto de partida para a renovação global de
todo o sistema econômico” (WERNECK VIANNA, 1987, p. 92).
Em que pese o fracasso do plano no sentido de atingir seus principais objetivos
anunciados (as taxas de crescimento para os anos de 1964, 1965 e 1966 foram de 3,1%,
3,9% e 4,4% e de inflação foram 93,3%, 28,3% e 37,4%, respectivamente – ficando bem
distante das metas estabelecidas), ele “representou uma mudança de mentalidade das
autoridades governamentais em relação ao problema inflacionário, que pela primeira vez
foi encarado seriamente e foi objeto de uma ação coordenada e incisiva do governo”
(MARTONE, 1975, p. 89).
Esta ação incisiva, entretanto, deixou, como legado, uma alta na taxa real de juros
no mercado financeiro, um aumento na carga tributária da ordem de 45%, o início da
prática de emissão de títulos da dívida pública federal, as Obrigações Reajustáveis do
Tesouro Nacional (ORTN) – e sua colocação no mercado financeiro –, como forma de
financiamento não inflacionário dos gastos governamentais (MARTONE, 1975), uma
compressão no nível dos salários e o aumento da concentração de renda. Na verdade, como
aponta Ianni (1981) o planejamento estatal e o uso da violência estavam permitindo a
extração de taxas de mais valia cada vez maiores, produzindo um aumento da pauperização
absoluta e relativa da classe trabalhadora e viabilizando um ambiente extremamente
favorável para a acumulação capitalista no período.

89
“O Brasil necessitava de cerca de um milhão e cem mil novos empregos por ano, a fim de absorver a mão-
de-obra que anualmente aflui ao mercado. Paradoxalmente, o ritmo de expansão do emprego, particularmente
nos setores mais dinâmicos da economia, tem sido feito a uma taxa muito inferior à necessária, criando
assim, um índice elevado de desemprego estrutural” (MARTONE, 1975, p. 75).
90
O PAEG procurou “criar um sistema de incentivo às exportações, inclusive pela simplificação do sistema
cambial, garantindo simultaneamente um nível de importações que não impeça o crescimento da produção
interna e, de outro lado, revigorar a entrada de capitais estrangeiros no país como meio complementar de
alcançar a taxa de investimento necessária à meta de crescimento fixada” (MARTONE, 1975, p. 76).
130

Em relação à mencionada “mudança de mentalidade”, uma das principais inovações


trazidas, e que contribuiu também para uma nova postura, foi a Lei de Reforma Bancária,
elaborada em 1964 e implementada em 1965, que instituiu o Sistema Financeiro Nacional
(SFN). Este seria composto por um Conselho Monetário Nacional (CMN), o Banco Central
do Brasil (BACEN), Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) e demais
estabelecimentos públicos e privados. A partir de então, a política monetária e creditícia
ficaria a cargo do CMN, autoridade máxima do SFN, que passou a ser responsável, dentre
outras coisas, pela autorização para emissões, controle de crédito, política cambial,
fiscalização das instituições financeiras e a programação monetária e financeira
(WERNECK VIANNA, 1987).
Foi esta a lei que criou o BACEN, principal executor da política definida pelo
CMN, cujas funções eram desenvolvidas até o momento, em grande parte, pela
Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC)91 e pelo Banco do Brasil (BB)92, o
qual em 1964 representava cerca de 50% da atividade bancária no país. Estabeleceu-se,
assim, um sistema mais hierarquizado e centralizado, voltado para uma maior disciplina
financeira. Maria Lúcia Werneck Vianna resgata a badalação feita pela grande imprensa na
época, que anunciava, juntamente com a criação do Banco “o fim do mercado paralelo”,
além de tomar “providências para moralização do uso de cheques, tentando, enfim,
‘sanear’ o meio financeiro para posterior implementação de medidas de maior fôlego”
(1987, p. 110).
Algumas das medidas de alcance duradouro da gestão Campos/Bulhões, destacadas
pela autora foram:

91
A SUMOC foi criada em 1945 e funcionou como uma espécie de embrião do futuro Banco Central, cuja
direção estava a cargo de um conselho dirigido pelo Ministro da Fazenda. “Era responsável pela formulação
da política monetária mas na prática não tinha controle da sua execução, que estava dispersa por vários
órgãos: i) Banco do Brasil através de suas Carteiras de Redesconto (CARED), de Câmbio e Comércio
Exterior (CACEX); ii) da Caixa de Mobilização Bancária (CAMOB), uma instituição administrada pelo
diretor da CARED; e da Caixa de Amortização, do Ministério da Fazenda. A Caixa de Amortização emitia
moeda, quando solicitada pela CARED ou pela CAMOB, depois da autorização do Conselho da SUMOC”
(BARBOSA, [1995]). Segundo Werneck Vianna (1987, p. 98-99), o BB “operava como principal executor
das instruções da SUMOC [...] na prática, [possuía] poder superior ao da própria SUMOC”.

92
O Banco do Brasil, mesmo com a criação do BACEN, continuou funcionando como um banco que
acumulava atividades de um banco comercial com algumas de banco do governo. Para maiores informações
sobre o BB e sobre a história dos bancos no Brasil, ver Costa (2012).
131

O instituto da correção monetária, a regulamentação do Mercado de Capitais, a


criação dos Bancos de Investimentos, o financiamento da dívida através de
títulos governamentais rentáveis (ORTN), a reformulação do sistema de
depósitos e juros bancários e, sobretudo, a tentativa de fundar uma nova
mentalidade na área financeira. Por uma nova mentalidade na área financeira se
poderia entender desde os aspectos mais específicos, tais como exercerem as
instituições financeiras ‘atividades para as quais se dirigem, sem concorrência
predatória e sem indisciplina’, até atitudes elementares, como entender que ‘a
política monetária tem de ser cumprida’, ou ainda – o que sem dúvida é o
principal – assimilar a tendência ao fortalecimento do setor, via concentração
do mercado e fusões de bancos93 (WERNECK VIANNA, 1987, p. 112, grifo
nosso).

A mudança de governo em 1967 altera, em parte, a política adotada no período


Campos/Bulhões e a autonomia, ainda que relativa, que se buscou para a gestão do CMN
abre espaço para que este se torne, de forma mais declarada, na gestão Delfim Neto, em
um instrumento de política governamental. Esta mudança se expressa mais claramente na
alteração do presidente do Banco Central e de sua diretoria. Ainda que estes não tivessem
cumprido nem a metade dos seis anos de mandato estabelecidos na Lei de Reforma
Bancária, deram lugar aos “homens de confiança” do Ministério da Fazenda. Inaugura-se a
partir daí um regime de controle monetário um pouco mais elástico e de maior liquidez.
A questão passa a ser, cada vez mais, estimular políticas de crédito para facilitar o
investimento e isso significou, em grande parte, estimular o mercado de capitais. A partir
de 1966, muitas foram as leis e decretos que permitiram “sucessivas deduções do imposto
de renda, de pessoas e empresas, para aplicação em áreas ou setores prioritários e em novas
ações, debêntures e outros títulos, públicos e privados, de sociedades de capital aberto”
(TAVARES, [1971] 1976, p. 222), estimulando as empresas a abrirem seu capital.
Este fato começa a ter maiores desdobramentos a partir de 1969, quando já se
observa um aumento na movimentação de ações na bolsa. “Posteriormente, em 1971, a
ascensão foi estimulada por um movimento crescente de abertura de capital das empresas,
ao abrigo de novas leis de incentivos à revalorização de ativos e de ampliação de capital”
(TAVARES, [1971] 1976, p. 222).
Ao mesmo tempo, e não por acaso, podemos perceber um processo de concentração
bancária, seguindo um movimento que Lenin ([1917] 2012) já apontava em suas análises

93
As aspas referem-se a citações de trechos de entrevistas ao membros do CMN na época, realizadas pela
autora durante a pesquisa que deu origem a obra assinalada.
132

no início do século94. No Brasil, ao mesmo tempo em que a quantidade de


estabelecimentos bancários comerciais se reduz (de 336 em 196495, para 195 em 1970), as
corretoras, que passam a se instalar somente em 196796, ano em que surgem 254, chegam a
404 em 1970 (TAVARES, [1971] 1976). Este processo sinaliza o concomitante
crescimento do mercado de capitais e, portanto, da diversificação da intermediação
financeira e a desintermediação bancária.
Significa dizer que, cada vez mais, o sistema financeiro não se resume à
participação dos bancos. Ao contrário, sofre uma diversificação por meio do surgimento de
variadas instituições financeiras. Ao mesmo tempo, isto não reflete uma perda de poder
dos bancos, dado que eles próprios passam a atuar de formas variadas, aproveitando este
processo de diversificação.
Temos, portanto, no Brasil, ainda que em um ritmo diferente do que ocorreu nos
países de capitalismo mais avançado, uma redução do financiamento baseado no crédito
bancário e um aumento do volume de crédito obtido via mercado de capitais. Tavares
([1971]1976, p. 225) nos ajuda a ilustrar esta mudança, destacando que o crédito bancário
ao setor privado em 1964 era de 80% e cai para 56,6% em 1970. Vale chamar a atenção
também para o crescimento do crédito imobiliário que, com a criação do Banco Nacional
de Habitação (BNH) em 1965, contribuiu para existência de um “subsistema financeiro de
habitação que por si só representa mais de 14% do crédito total ao setor privado”
(TAVARES, [1971] 1976, p. 225).
Não é difícil imaginar que este aumento e diversificação de instituições financeiras,
acompanhado de um processo de concentração bancária e do aumento da competitividade,
produziu uma intensa reorganização do setor, principalmente a partir de 1968, quando
efetivamente se estrutura o mercado de capitais. As implicações para a produção não são
pequenas. É possível perceber um aumento considerável do endividamento público e
privado e uma canalização de recursos para a órbita financeira em busca de maior
rentabilidade.

94
Nos detivemos a um estudo mais geral deste movimento no primeiro capítulo.
95
É importante sinalizar que este processo já vinha acontecendo desde 1958, quando ainda haviam 399
estabelecimentos, como aponta Tavares ([1971] 1976, p. 226).
96
O registro obrigatório vem apenas em 1966, o que explica o aparecimento de tantas corretoras em 1967 e a
“inexistência” delas antes disso. Mas na verdade, é somente a partir desta data que se tem um enquadramento
legal mais claro da sua atuação.
133

Estas mudanças trazem novos aspectos para o entendimento da acumulação


capitalista no período e para seus desdobramentos nas décadas seguintes. Apesar da
inegável contribuição que Maria da Conceição Tavares traz para entender este movimento
e do rigoroso levantamento de dados que ela faz, temos alguns pontos de discordância
conceitual na análise do que estas alterações significam. A autora assinala que

a formação de novos grupos financeiros estrangeiros e a rearticulação de alguns


velhos grupos nacionais, tendo como centro os bancos de investimento e
mediante a fusão prévia de bancos comerciais e grupação de financeiras, com a
sua constelação de agências corretoras e distribuidoras de títulos, é a tendência
recente mais importante do processo de reconcentração financeira ([1971] 1976,
p. 227-228).

Até aqui, estamos inteiramente em acordo com a análise. Acrescentamos ainda que
esta reconcentração financeira, que se inicia no final dos anos 1950, mas ganha força nos
anos 1960, é um elemento indispensável para entendermos as bases da consolidação do
capitalismo monopolista no Brasil. Nossa discordância aparece no trecho seguinte:

Estes novos grupos adquirem posição hegemônica no processo de concentração


crescente do capital financeiro e alguns deles tentam alçar a etapa do
conglomerado, ou seja, o tipo de centralização capitalista na qual se entrelaça a
expansão financeira com o controle ou participação em empresas produtivas dos
mais distintos ramos de bens e serviços ([1971] 1976, p. 228, grifo nosso).

Como procuramos analisar no primeiro capítulo, entendemos por capital financeiro,


seguindo a elaboração de Hilferding ([1910] 1985) e Lenin ([1917] 2012), como a junção
do grande capital bancário com o grande capital industrial. Tavares, entretanto, trata esta
categoria como restrita à órbita das finanças e define o conglomerado como sendo fruto da
centralização do capital, apresentando uma caracterização mais próxima do que
identificamos como sendo o capital financeiro. Para a autora, portanto, o imbricamento
entre produção e finanças se materializa na figura do conglomerado e não do capital
financeiro.
Pode parecer uma mera questão conceitual, mas acreditamos que esta confusão
acaba por levar a autora a antecipar a existência do capital financeiro brasileiro, ou seja,
endogenamente constituído. Este, que é a principal forma de ser do capital na etapa
monopolista, no nosso entender, só se engendra internamente num momento posterior. Um
momento em que os processos de concentração e centralização do capital se aprofundam e
134

avançam no sentido de criar as condições para que a fusão do grande capital bancário com
o grande capital industrial possa acontecer. Até então, a presença do capital financeiro
existe, mas daquele que se originou no exterior e que já chega aqui formado. Trataremos
melhor deste ponto um pouco mais adiante.
De qualquer forma, o crescimento das finanças e seu processo de concentração, ao
ganharem força, já são capazes de aumentar e intensificar as contradições do sistema. A
este respeito, nos parece bastante intrigante a forma como Tavares analisa esta dinâmica. A
autora, ainda que fale em uma autonomia relativa das finanças e perceba a relação entre
esta e a produção propriamente dita97 e, portanto, esteja, de uma maneira geral, em sintonia
com as análises feitas pela tradição marxista, não faz referências explícitas às categorias
utilizadas por Marx para análise deste fenômeno. Na verdade, seu texto não traz uma
discussão mais consistente sobre este debate, o que a leva a algumas imprecisões e
contradições, como veremos.
Na obra que analisamos, a categoria marxiana que aparece, e mesmo assim, uma
única vez de forma explícita, é capital fictício. Primeiramente, ela usa o termo “capital”
(entre aspas), quando afirma que os títulos financeiros “constituem ‘capital’ apenas no
sentido genérico de um direito de propriedade sobre uma renda” (TAVARES, [1971] 1976,
p. 234). Esta avaliação segue no mesmo sentido da realizada por Marx, que adverte ser este
um direito de apropriação da mais-valia produzida, ou seja, uma ação, por exemplo, “nada
mais é do que um título de propriedade, pro rata, sobre a mais valia a realizar por aquele
capital” (MARX, [1894] 1988e, p. 5). Como podemos ver, entretanto, ela fala em renda e
não em mais-valia, sendo esta última, categoria central para entender a acumulação
capitalista e o caráter relativo da autonomia das finanças, debate sobre o qual nos
debruçamos mais detidamente no primeiro capítulo.
Logo em seguida, a autora aponta que “se pode entender a acumulação financeira
como um processo de criação de capital ‘fictício’, que repousa no desenvolvimento de
relações jurídicas que permitem a separação de funções entre empresários e capitalistas”
([1971] 1976, p. 234-235, grifo nosso). Não há nenhuma referência a Marx neste trecho,
mas podemos ver que sua análise, mesmo não desenvolvendo a ideia de capital fictício,
possui uma abordagem que lembra as sínteses apresentadas pelo autor.

97
Tavares identifica sua relação com a produção: “a realização desta renda [obtida a partir dos títulos
financeiros] não repousa, diretamente, no processo de produção, mas em um direito de participação no
excedente gerado por uma empresa ou pela economia em seu conjunto” ([1971] 1976, p. 234).
135

Entretanto, a categoria capital portador de juros, por exemplo, não aparece uma
única vez. Neste sentido, observamos uma certa confusão na referida análise. Marx afirma,
no capítulo 21 do Livro Terceiro, intitulado Capital Portador de Juros, que o ato de tomar
dinheiro emprestado e emprestar, ou seja, “entrega e restituição do capital emprestado,
aparecem assim como movimentos arbitrários, mediados por transações jurídicas e que
ocorrem antes e depois do movimento real do capital, e que nada têm a ver com o próprio”
([1894] 1988d, p. 248, grifo nosso). O autor está aqui discutindo a aparência do fenômeno
e não a sua essência. Este é um elemento fundamental.
Na verdade, o que aparece como sendo puramente uma “relação jurídica”,
obscurece as relações de produção que sustentam o processo. A análise de Marx se propõe
justamente a desvendar a relação com o capital real que estas “relações jurídicas” ocultam.
Por todos os capítulos em que ele discute este tema, procura demonstrar o processo de
produção de mais-valia que está presente entre o ato de tomar emprestado e o de restituir
este capital sob a forma monetária, acrescido dos juros. Não se trata, portanto,
simplesmente de uma relação jurídica, mas de produção de valor. Sem este entendimento,
fica difícil inclusive analisar a demanda por ampliar as bases de extração de mais-valia e,
portanto o aumento da exploração, que o capital portador de juros impõe ao “capitalista
funcionante” para usarmos os termos de Marx.
Seguindo na análise do trecho que destacamos de Tavares, sentimos a necessidade
de recorrer ao capítulo 23, também do Livro Terceiro d’O Capital, intitulado Juro e Ganho
Empresarial. Nele, Marx aponta que “é somente a separação dos capitalistas em
capitalistas monetários e capitalistas industriais que converte parte do lucro em juros e cria,
em geral a categoria juro” ([1894] 1988d, p. 263). Sendo assim, podemos dizer que o
capital portador de juros – e é esta a principal categoria e “a matriz de todas as formas
aloucadas” ([1894] 1988e, p. 4) –, advém da separação entre capitalistas monetários e
capitalistas industriais e não entre empresários e capitalistas. A base aqui é o capital de
comércio de dinheiro, ou seja, como o dinheiro se transforma em mercadoria e passa a ser
objeto especifico da atuação do capitalista monetário, que Marx desenvolve melhor o
capítulo 19. O capital fictício seria uma destas formas “aloucadas” que assume o capital
portador de juros, categorias que parecem se misturar na exposição da autora, o que
dificulta que ela tenha uma análise mais consistente deste processo e de seus limites. Ainda
assim, nos parece oportuno lembrar que Marx escreve em um momento em que estes
processos estão ainda em nível embrionário. Com o avanço do processo de financeirização
136

podemos ver, cada vez mais, o capital fictício como sendo a principal forma de ser do
capital portador de juros.
Mesmo vendo proximidade com o debate trazido por Marx, as diferenças acabam
por abrir espaço para confusões e, em alguns momentos, levam a análises diferentes. Este é
o caso da discussão sobre a presença do capital financeiro, por exemplo. Marx, como
sinalizamos no primeiro capítulo, não tratou de capital financeiro quando discutia o
crescimento das finanças98. Quem tratou disso foi Lenin([1917] 2012). Mas não fomos
capazes de perceber um diálogo da autora com o debate trazido por ele. É recorrente em
sua abordagem, a indicação da necessidade de reconversão do capital financeiro em capital
produtivo, deixando claro que, para ela, tratam-se de formas diferentes do capital.
Entretanto, encontramos uma passagem em que ela afirma que “o caráter
fundamental do capitalismo financeiro no Brasil adquire, de partida, uma funcionalidade
distinta do velho ‘capital financeiro’ alemão ou do vertiginoso crescimento da acumulação
financeira americana do começo do século” (TAVARES, [1971] 1976, p. 255, grifo
nosso). Este fato sugere que ela tinha um conhecimento da categoria. No seu esforço de
entender o que se passava no final dos anos 1960 e início dos 1970 no Brasil, optou por
associar o crescimento da autonomia relativa das finanças a uma espécie de capital
financeiro à brasileira, ao invés de identificar este crescimento como sendo parte dos
antecedentes que levaram à constituição do capital financeiro propriamente dito, opção que
nos parece mais correta.
Além disso, é importante ressaltar que Lenin ([1917] 2012), mesmo dando
centralidade ao capital financeiro, caracteriza a etapa de desenvolvimento capitalista como
sendo imperialista e fundada nos monopólios. Para ele “a base econômica mais profunda
do imperialismo é o monopólio” (LENIN, [1917] 2012, p. 137). A referência ao
capitalismo financeiro pode dar a entender um certo privilegiamento das finanças e sua
autonomização da produção. Como a autora oscila entre a vinculação das finanças com a
produção e uma certa autonomização da primeira, não está claro para nós se esta referência
foi intencional. Advogamos, em todo caso, pela centralidade da produção de mais valia
para a acumulação capitalista, fato que impossibilita a superação do desenvolvimento

98
Cumpre lembrar que uma das edições d’O Capital mais difundidas no Brasil, traduziu erroneamente o
capítulo 19 como Capital Financeiro. Como apresentamos no capítulo anterior, Marx está ali tratando do
capital de comércio de dinheiro.
137

industrial, embora o reconfigure, mantendo-se, portanto, a referência aos monopólios como


sua caracterização mais adequada.
Mas a confusão em torno desta categoria não impede a autora de identificar o
caráter especulativo assumido pelo comércio de ativos financeiros, bem como os limites
que isto pode provocar na acumulação capitalista como um todo. Ao tratar da necessidade
de impulsionar o crescimento econômico e das necessidades de financiamento, ela
demonstra como a opção pela rentabilidade acabava favorecendo a aplicação de recursos
em ativos financeiros, aumentando as dívidas pública e privada, sem uma necessária
reconversão voltada para ampliar a capacidade produtiva. Como ela analisa, “não existe
articulação direta entre os poupadores e os que utilizam os recursos e, em consequência, as
poupanças das unidades superavitárias não se convertem, obrigatoriamente, em
investimento real” ([1971] 1976, p. 236).
A abordagem é, entretanto, contraditória. Por um lado, temos acordo quando ela
destaca que a viabilização do investimento produtivo se dá tanto pela estrutura da taxa de
lucro e de juros, quanto pela taxa de rentabilidade esperada como decorrência das
inversões. Em outras palavras, é a expectativa em relação aos ganhos, tanto na produção
quanto nas finanças, que define a disposição para o investimento. O que é mais certo
esperar deste processo é o recrudescimento da concentração e centralização (neste caso,
ainda como tendência) do capital, fato que pode permitir um crescimento da capacidade
produtiva, mas estimula, principalmente, um aumento significativo de atividades
puramente especulativas.
Por outro lado, em relação ao crescimento da especulação, a autora, mesmo
mencionando algumas vezes o caráter relativo da autonomia das finanças, aponta que “o
valor de mercado das ações se encontra completamente desligado do custo real de
reposição dos ativos fixos ou da taxa interna de rentabilidade do investimento real”. Em
seguida ela afirma que “não há articulação possível, para fins de cálculo econômico entre a
expansão real e financeira” ([1971] 1976, p. 243, grifo nosso).
Ainda que possa ser difícil calcular do ponto de vista econômico esta relação – que
contém muitos elementos subjetivos, como as expectativas dos agentes econômicos –
consideramos um equívoco assinalar um completo desligamento entre estas esferas. O que
a análise do processo histórico nos indica é que, por mais distantes que estejam os valores
financeiros dos reais, em algum momento estas “bolhas” estouram. Isto acontece dado que
a lei do valor acaba se impondo e trazendo os números para uma maior proximidade com a
138

realidade produtiva e, portanto, com os valores que estes ativos financeiros representam.
Nos parece que a falta de uma análise sob o ponto de vista da lei do valor e uma melhor
caracterização categorial dos processos que acontecem na órbita das finanças acabam
levando a autora a contradições e a uma tendência a autonomização do capital portador de
juros.
Consideramos, entretanto, que o fundamental que Tavares parece querer salientar –
e ponto sobre o qual temos acordo – é que esta relativa autonomia vem transferindo
recursos excedentes para as finanças e pondo em risco a capacidade do capital de sustentar
esta rentabilidade, levando a uma tendência constante a crises. Os números ajudam a
ilustrar o processo e seus limites:

enquanto os bancos estatais e os bancos de investimentos apresentam em seus


balanços de 1970 taxas de lucro líquido superiores a 50%, e as demais
financeiras, taxas superiores a 30%, a rentabilidade média para o conjunto das
empresas da amostra é de apenas 11,5%, apresentando alguns setores, como o
químico, o farmacêutico e plástico, taxas negativas ([1971] 1976, p. 245).

O que precisa ser enfatizado, e ao que nos parece esta é uma análise que escapou às
possibilidades da autora, é que a base de sustentação destes lucros das instituições
financeiras é a mais-valia gerada no processo de produção. Estas disparidades expressam
uma capacidade do capital portador de juros de absorver parcelas crescentes do excedente
em detrimento do capital produtivo, ou seja, apontam para uma repartição da mais-valia a
favor dos juros e não do lucro. Reside aí uma contradição importante para entendermos os
limites da acumulação neste estágio de desenvolvimento capitalista.
Este é também o pano de fundo sobre o qual precisamos entender as iniciativas de
ampliação das bases de extração de mais valia, em sua combinação absoluta e relativa,
vividas a partir daí. Na indústria, a busca por abocanhar parcelas do excedente e, ao mesmo
tempo, alimentar a rentabilidade do capital fictício, tem conduzido ao aumento da
exploração em proporções significativas, o que tem implicações sobre as expressões da
questão social, como discutiremos no próximo capítulo.
Para finalizar, em que pese a análise de um suposto capital financeiro no Brasil, os
dados da autora não nos autorizam a falar na existência desta forma de ser do capital
durante este período. Por mais contraditório que pareça, são suas próprias afirmações que
nos levam a esta conclusão:
139

Salvo nos casos de alguns consórcios internacionais em que há associações


claras de interesses industriais, agrícolas, comerciais e financeiros, a
conglomeração parece ser mais objeto de discussão e projeção do que uma
tendência geral já definida.
As inúmeras fusões de grupos financeiros que vêm ocorrendo nos últimos anos
não têm estado articuladas com o processo de concentração na esfera real
([1971] 1976, p. 247).

Sendo assim, até este momento, a concentração na esfera financeira ainda não havia
desencadeado uma centralização suficiente para que possamos falar em capital financeiro
brasileiro, mesmo que o capital financeiro constituído nos países de capitalismo mais
avançado já estivesse presente em nosso território.
Ao analisar o desenvolvimento do capitalismo no Brasil neste período (anos 1960 e
1970), Aloísio Teixeira (1983) também afirma a ausência de uma articulação definida entre
produção e finanças99, concluindo que não havia elementos suficientes para se falar na
presença do capital financeiro endogenamente constituído. Para ele, “o capital bancário
não parece assim, disposto a trocar sua posição de credor pela de proprietário e empresário
produtivo”. Ele acrescenta que “as grandes empresas, por sua vez, não se dispõem a abrir
seu capital de forma a perder o controle para os grandes grupos bancários” (1983, p. 103).
Este ponto parece não ser consensual. Paul Singer, ao falar do estímulo estatal à
formação dos conglomerados financeiros, adverte para a possibilidade de associação com o
capital industrial e afirma a existência de fusões “de modo a constituir autênticos
conglomerados industrial-financeiros, de acordo com o modelo japonês” (1977, p. 69, grifo
nosso). Como é possível falar em autenticidade nesta relação, na análise de um período em
que Aloísio Teixeira (1983) e Conceição Tavares ([1971] 1976) falam em inexistência, é
algo que precisaria de uma investigação mais cuidadosa, que não teremos como fazer neste
trabalho.
De todo modo, consideramos importante registrar, ainda que parcialmente, os
exemplos dados pelo autor para ratificar sua afirmação:

99
“Paralelamente aos grandes grupos ‘financeiros’, com nítido predomínio de capital nacional, operam as
grandes empresas industriais, em sua maioria estrangeiras. Estas detêm um grau de autofinanciamento
elevado [...], não apresentando dependência visível do sistema financeiro privado [...]. Por outro lado, as
inúmeras empresas, de menor porte e em sua maioria nacionais, cujo poder financeiro e de mercado é menor,
apresentando por isso forte necessidade de recursos externos, não contam com o apoio do setor bancário para
se modernizar e expandir” (TEIXEIRA, 1983, p. 102-103).
140

Exemplos desta tendência são a fusão do grupo da Refinaria ‘União’ com bancos
Irmãos Guimarães, Brasul, Investbanco e outros e a constituição do grupo
‘Brascan’, organizado ao redor do Banco Brascan de Investimentos, que controla
companhias de eletricidade (São Paulo Light e Rio Light), uma financeira (a
Crefinan – Crédito, Financiamento e Investimentos), diversas firmas industriais
[...], de serviços [...] e de mineração [...] (1977, p. 88).

O caminho para entender melhor o significado destes exemplos seria um


levantamento da origem destas empresas (privado nacional, internacional, Estado) para
avaliar melhor se trata-se realmente de capital financeiro produzido de forma endógena. A
princípio, o que podemos adiantar é que não há nesta obra de Singer um debate categorial
sobre o capital financeiro, nem aparentemente, uma preocupação mais efetiva em dar conta
da análise deste processo. Estas informações aparecem de forma muito pontual e pouco
desenvolvida para nos dar maior clareza sobre as influências teóricas que embasam o
levantamento destes exemplos, bem como de sua precisão metodológica.
Ianni (1981) também trabalha com a ideia de que o capital financeiro nacional já
estava presente neste período. Claro está que sua concepção de capital financeiro se
alimenta das mesmas fontes que utilizamos quando ele afirma que “o capital bancário
passou a ser articulado de forma mais profunda e generalizada com o capital industrial”
(1981, p. 36). Ele, entretanto, não traz uma fundamentação para sustentar esta análise. Ao
que nos parece, apoia-se nos trabalhos de Conceição Tavares ([1971] 1976) e de Paul
Singer (1977), que já mencionamos em nossa discussão sobre o tema. Estas referências
aparecem na nota 10 do quarto capítulo, intitulado O Capital Imperialista. Como já
sinalizamos, Singer realmente aponta para a existência desta articulação, embora de forma
tangencial. Tavares, entretanto, a nosso ver, deixa claro que os processos de fusão ainda
não indicavam uma efetiva articulação entre as esferas produtiva e financeira. Nossa
avaliação é a de que o autor faz uso de uma citação da autora de forma descontextualizada,
colocando em suas palavras o que ela não estava afirmando, procurando encontrar no país
um processo que, no máximo, estava ainda totalmente embrionário.
Ainda que tenha cometido este pequeno deslize, as análises que Ianni faz daí
decorrentes são absolutamente impecáveis. Sua preocupação era analisar a ampliação do
Estado e a complexificação de sua atuação no sentido de garantir as condições de
acumulação capitalistas. Ele percebe os desdobramentos que o capital financeiro (para nós,
internacional) tem sobre a totalidade econômica e política no país e afirma:
141

A totalidade econômica e política formada pelos setores estatal, nacional e


imperialista adquiriu, por sua vez, uma configuração muito especial. O modo
pelo qual se deu o desenvolvimento dessa totalidade, principalmente desde a
instauração da ditadura, transformou o Estado em poderoso núcleo do capital
financeiro (1981, p. 53).

O autor destaca algumas vezes como o Estado, hegemonizado pelo capital


financeiro imperialista vai conduzindo a economia brasileira a se transformar em um
espaço cada vez mais atraente ao capital monopolista. Fazendo uso da ideia do tripé –
composto pelos setores estatal, privado nacional e privado estrangeiro –, ele ressalta a
articulação subordinada dos dois primeiros em relação ao último. Deste modo,
consideramos oportuna a análise do autor para entendermos a posição do Estado, que usava
todo o seu poder de pujança para alavancar os interesses do capital monopolista,
fortalecendo o capital nacional sem alterar o caráter dependente e subalternizado em
relação ao capital imperialista.
Procurando avaliar as particularidades do desenvolvimento capitalista brasileiro,
Ianni (1981, p. 42, grifo nosso) parece chegar ao centro da questão ao afirmar que:

Dentro desta estrutura, et pour cause, o Estado constitui formas superiores de


organização capitalista, consubstanciadas num sistema financeiro público e em
grandes empresas estatais, cumprindo o papel desempenhado pelo capital
financeiro nas industrializações avançadas. Este fato de o Estado condensar as
formas mais abstratas do capital é que confere ao capitalismo monopolista
retardatário uma condição ainda mais ‘desenvolvida’, no sentido de que tende a
apresentar, neste aspecto, um grau mais avançado de ‘socialização’ da produção
capitalista.

Perceber esta especificidade na atuação estatal no Brasil permite-nos constatar, por


um lado, as “debilidades” no desenvolvimento do capital privado nacional e, por outro, a
disponibilidade do Estado para intermediar sua atuação na busca por garantir as condições
de acumulação no estágio monopolista. Além disso, chama a atenção o rigor na análise
dialética, que articula atraso e desenvolvimento em uma estrutura que tem, em seu caráter
retardatário, a possibilidade de produzir avanços no que diz respeito à produção capitalista.
Neste sentido, ao que tudo indica, o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, por
se dar em uma etapa tardia, vai se configurando e construindo suas bases de uma maneira
particular e em um ritmo próprio, queimando umas etapas e acelerando outras. Ao iniciar o
processo de industrialização no país em um momento em que diversos países já estão em
um estágio muito mais avançado das forças produtivas e das relações de produção – tendo
142

atingido sua fase monopolista – acabamos saltando mais rapidamente, via intensa
concentração do capital, da consolidação do capitalismo concorrencial para o monopolista.
Florestan ([1975] 1995), embora caracterize o período concorrencial no Brasil de fins do
século 19 até 1950, procura demonstrar como o processo “descontínuo e demasiado débil”
da transição para o capitalismo de base urbano-industrial se consolida somente nos anos
1930.
A partir daí, a passagem para o capitalismo monopolista se dá de forma mais rápida
em virtude das particularidades da nossa formação social e seu caráter dependente. Por esta
razão, boa parte da estrutura produtiva do país vem a se constituir já no contexto
monopolista. De modo um pouco mais lento do que o setor produtivo, o financeiro viveu o
processo de concentração um pouco depois e se intensifica no final dos anos 1960 e início
dos 1970, como assinalamos.
Mas, parece não ter havido, no momento inicial e visto de forma mais ampla, um
movimento de centralização concomitante ao de concentração. A concentração estava se
dando de forma relativamente independente em cada ramo de atividade. Em outras
palavras, ainda que estes dois processos possam se dar ao mesmo tempo (e, no geral, se
dão), a centralização pressupõe um certo nível de concentração do capital, mas o inverso
não acontece. Os elementos que estimulam a centralização, ou seja, a entrada em diferentes
ramos de atividade, estão relacionados à necessidade de ampliar o controle sobre o
processo produtivo como um todo e de reduzir os custos de produção e impõem, para que
esta redução possa se dar desta forma, que o capital esteja suficientemente robusto. Não é a
toa que falamos na fusão do grande capital bancário com o grande capital industrial.
Como veremos na próxima seção, ao que nos parece, movimentos significativos de
centralização e, portanto, capazes de desaguar nas condições para engendrar um processo
endógeno de constituição do capital financeiro, só estarão presentes nas décadas seguintes.
Procuraremos demonstrar nossa hipótese de que a nova etapa de acumulação
capitalista no Brasil, a etapa monopolista, tem início em meados da década de 1950,
aprofunda-se em 1960, mas a principal forma que assume o capital nesta etapa, o capital
financeiro, só se constitui endogenamente nos anos 1990/2000, ainda que já pudéssemos
contar com a presença do capital financeiro internacional. Isto nos leva a avaliar que esta
etapa se fortalece recentemente, em que pese o fato de estar sendo gestada há mais de meio
século.
143

De qualquer maneira, podemos dizer que as mudanças vivenciadas produziram uma


alteração no quadro do desenvolvimento capitalista brasileiro a partir do final dos anos
1960 e início dos 1970, os quais precisam ser articulados às condições externas, para um
entendimento mais cuidadoso. Este período foi marcado por uma série de mudanças no
plano internacional, como procuramos demonstrar no capítulo anterior. Apesar da
indiscutível conexão aos acontecimentos no chamado “mundo desenvolvido”, as alterações
tiveram uma dinâmica própria e um ritmo diferente entre os países dependentes.
No Brasil, estes impactos podem ser sentidos por um crescimento acelerado a partir
de 1968 e seu esgotamento em 1973. Depois disso, a economia brasileira rateia, mas
recomeça o crescimento com o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND)100, que
“possibilitou a continuidade do crescimento – com novos rumos e menor velocidade – por
mais seis anos” (CASTRO ; SOUZA, [1985] 2004, 14). Este plano, ao procurar privilegiar
a produção no departamento I (em contraposição ao dinamismo que obtivera o
departamento II, como já assinalamos) protagonizada pelas empresas estatais, baseou-se
fortemente no endividamento público, fato que teve sérios desdobramentos na década
seguinte, além de estimular a especulação no mercado de capitais com os títulos da dívida
interna.
De uma maneira geral, podemos dizer que o período foi marcado por uma grande
liquidez internacional, que se estendeu até o final da década de 1970101. Este fato estimulou
a utilização de financiamento externo para atender às demandas domésticas de
desenvolvimento e crescimento do parque industrial nacional. O referido financiamento
externo foi potencializado pelas mudanças, realizadas nos anos 1960, nas regras para a
realização de empréstimos no exterior no intuito de enfrentar as dificuldades de
financiamento para a produção.
Ao mesmo tempo, o fortalecimento da concentração de capital, o maior
disciplinamento da política monetária e a estruturação de um mercado de capitais, aliado a
política de contenção dos salários e a repressão ao movimento sindical – que limitava a
incorporação dos ganhos de produtividade ao rendimento auferido pela classe trabalhadora

100
Escapa às possibilidades deste trabalho uma análise mais minuciosa do II PND. A este respeito ver Castro
e Souza (2004).
101
A liquidez deveu-se principalmente aos excedentes do petróleo decorrentes da subida do preço do barril
(os chamados Petrodólares).
144

– viabilizaram a saída do período de baixo crescimento em que se encontrava a economia


brasileira e que marcou os anos de 1961 até 1967.
A articulação das condições favoráveis, tanto interna quanto externamente, nos
permitiu viver o que se convencionou chamar de “milagre brasileiro”102. Nas palavras de
Mendonça e Fontes (2004, p.21) referindo-se ao governo militar: “o favorecimento da
grande empresa era seu objetivo. O arrocho salarial, sua estratégia. O combate à inflação,
sua justificativa legitimadora. O ‘milagre’ econômico veio a ser seu resultado”.
No entanto, o aumento do endividamento externo, vivido durante toda a década de
1970 – dada a adoção da estratégia de crescimento com endividamento –, tomou
proporções gigantescas na década de 1980. Os motivos estão, em grande parte,
relacionados às políticas de ajuste macroeconômico norte-americano. Vale lembrar que
estas tinham, como um de seus principais sustentáculos, o aumento da taxa de juros, o que
teve sérias repercussões sobre as economias dos países endividados, como era o caso do
Brasil.
A elevação da taxa de juros desmontou o mercado internacional de crédito e
contribuiu, de forma significativa, para o desequilíbrio crescente nas contas públicas
brasileiras, dado que havia sido adotado um modelo de financiamento baseado em
empréstimos externos em moeda. Além disso, a forte participação de empresas estrangeiras
tinha como um de seus desdobramentos uma volumosa quantia de recursos saindo do país
sob a forma de remessa de lucros. Sendo assim, o Brasil optou por uma política
monetarista, marcada pela contenção do crédito interno e ajuste monetário do Balanço de
Pagamentos.
O resultado foi um quadro recessivo de difícil superação por várias razões. Primeiro
porque o aumento da taxa de juros no mercado internacional encareceu o endividamento
externo, chegando a inviabilizá-lo em alguns setores e esta era uma fonte de financiamento
importante da produção interna. Segundo porque o mercado financeiro interno, em
ascensão, pegou “carona” neste aumento da taxa de juros e absorvia boa parte do
excedente produtivo, estimulando o movimento especulativo de todo o tipo. Terceiro

102
A este respeito, consideramos indispensável a leitura de Paul Singer (1977). Ianni (1981, p. 188) também
aborda esta questão e afirma: “o ‘milagre econômico’ do ‘modelo brasileiro’ apoia-se na produção inclusive
de uma taxa de mais valia extraordinária, propiciada pela amplitude e brutalidade da atuação da ditadura
contra operários e camponeses”.
145

porque o longo período de arrocho salarial vivido no país estava sendo levado ao limite e
as mobilizações populares voltavam a se fortalecer.
Segundo Mendonça e Fontes (2004, p. 61),

desde 1976-77 a especulação era o horizonte da economia brasileira. Com a


redução das inversões e o aumento geral dos custos da produção, os detentores
do capital preferiam garantir seu lucro mediante o aumento dos preços, sem se
arriscarem a novos investimentos. Isso sem falar naqueles segmentos que –
sentindo-se preteridos ou lesados por certas medidas do governo – responderam
com a aplicação de seus recursos no mercado financeiro de curto prazo (open
market e overnight), atrofiando ainda mais as disponibilidades para inversão
produtiva.

Além disso, apesar da preocupação constante em controlar o déficit interno, o


crescimento do montante de juros a ser pago era agravado pela perda de liquidez do
mercado internacional e a consequente dificuldade em dar continuidade à usual prática de
rolagem da dívida. Esta situação teve, como um dos marcos mais importantes, a moratória
do México em 1982. Estava deflagrada uma crise que atingiria diversos países “em
desenvolvimento” e que se arrastaria ao longo de toda a década de 1980.
Um dos principais organismos multilaterais gestados no acordo de Bretton Woods,
o FMI, havia sido pensado com o objetivo de reduzir os efeitos de crises cambiais
isoladas103. No entanto, a crise generalizada nas economias dependentes, bem como de
alguns países do então bloco socialista, acabou excedendo significativamente as
possibilidades de socorro do Fundo. Este novo contexto levou a uma redefinição no papel
desempenhado por esta instituição104, ressaltado por Filgueiras como sendo:

103
A proposta seria de conceder ajuda financeira temporária para crises de curto prazo que, por ventura,
ameaçassem se proliferar para o restante das economias mundiais.
104
Brunhoff alerta que foi como se “uma espécie de ‘New Deal’ financeiro internacional tivesse sido
instaurado em 1982, entre bancos credores, países endividados e Fundo Monetário Internacional, para
impedir que as tensões financeiras degenerassem em crise de pagamentos internacionais. Ele refletia, no
plano da finança, o novo lugar dos ‘PDV’ [países em via de desenvolvimento] na acumulação capitalista
internacional, como locais de valorização do capital. A solvabilidade desses países seria então um objetivo
estratégico da reprodução de capital financeiro em escala mundial” (1991, p. 164, grifos da autora). É
importante acrescentar que o capital financeiro, stricto sensu, estava aplicado no mercado de eurodólares, e, a
partir daí, atingia a periferia. Quando o mercado de eurodólares desabou, a rota da periferia foi deslocada
para o grande mercado americano, tornado atrativo pelas altas taxas de juros. O FMI e suas recomendações,
aparecem para dar conta da questão da dívida, que tinha de ser paga.
146

[...] de defesa explícita e intransigente dos interesses do capital financeiro


internacional, através da imposição aos países periféricos de acordos político-
econômicos extremamente rígidos, que possibilitassem o reembolso dos
empréstimos realizados. Essa foi a condição indispensável para que esses países
periféricos pudessem se candidatar aos exíguos recursos da instituição e às linhas
de crédito dos bancos privados para o financiamento de importações e
exportações (2000, p. 72).

A postura do FMI foi a de responsabilizar os próprios países pelas crises em que se


encontravam. Com isso, desconsiderava a relevância das políticas adotadas pelo governo
norte-americano para o desenrolar da crise, além de desresponsabilizar os bancos privados,
que emprestaram um grande volume de recursos sem avaliar os riscos envolvidos na
operação, dadas as possibilidades de mudança na conjuntura internacional.
A ortodoxia econômica, que garantia as interpretações para a crise instaurada,
desconsiderava também uma outra questão:

A liberdade de movimento do capital-dinheiro, que se reflete no mercado


financeiro mundial, gera uma centralização financeira privada que pode conviver
com a centralização monetária operada pelo dólar. Mas esta afeta a capacidade
de pagamento dos países endividados, que a conjuntura de crise torna
particularmente vulneráveis (BRUNHOFF, 1991, p. 165).

A explicação oficial para a crise centrava-se na irresponsabilidade dos governos,


que consumiam além das suas capacidades. Neste sentido, as condicionalidades para a
efetivação dos empréstimos passavam por um rígido receituário, voltado para instituir, nos
países assolados pela crise, uma disciplina fiscal e financeira e, principalmente, um ajuste
das contas externas.
As estratégias desenvolvidas para se contrapor às dificuldades econômicas – que
tinham como uma de suas principais expressões o descontrole inflacionário – deveriam
estar pautadas por uma questão que passou a ser entendida como central para sair da crise:
o ajuste das contas externas. Os esforços deveriam se voltar para produzir, ao máximo
possível, superávits comerciais105. As políticas extremamente recessivas tiveram aqui um
papel fundamental à medida que contribuíram para reduzir a demanda por importação e, ao
diminuir a demanda interna, aumentar as possibilidades de exportação.

105
Filgueiras aponta que a preocupação era a de que esses países passassem “da condição de importadores de
capital para a de exportadores de capitais, garantindo assim, uma travessia da crise mais tranquila para o
sistema financeiro internacional – sobrecarregado com créditos duvidosos das dívidas dos países do terceiro
mundo” (2000, p. 75).
147

A chamada “década perdida” foi marcada por sucessivas tentativas de renegociação


da dívida e por uma infinidade de planos de estabilização como forma de promover o
controle de uma inflação galopante (chegando a 1.320% em 1989). Estes planos, apesar
das variadas matrizes teóricas que os inspiraram, não se mostraram capazes de sustentar a
estabilidade de preços e, ao final de cada insucesso, contribuíam para aumentar ainda mais
o componente inercial da inflação (TEIXEIRA, 1994).
Apesar dos saldos comerciais positivos acumulados ao longo da década, muitas
vezes até vultosos, a fragilidade cambial permanecia, dada a dificuldade de acumular
reservas. Além disso, permanecia também “a continuidade da política de expansão da
dívida pública para reduzir a liquidez gerada pelo superávit exportador” (TEIXEIRA,
1994, p. 119), o que conduzia a um desequilíbrio do setor público cada vez maior.
O resultado de todas essas políticas é sabido por todos nós: estagnação econômica
associada à inflação, compondo um fenômeno conhecido como estagflação, acompanhado,
não por acaso, de uma crise na legitimidade do governo. Além disso, podemos observar o
aumento do desemprego e da concentração de renda106 e o início de um processo de
contestação das grandes empresas estatais. Esta contestação iria contribuir, na década
seguinte, para a responsabilização do Estado por boa parte dos problemas enfrentados em
função de uma suposta “incompetência administrativa”, a qual era ilustrada pelo enorme
déficit público.

2.2.1 A efervescência política dos anos 1980 e a Constituinte

À crise econômica somou-se uma crise política de legitimidade que abriu espaço
para um avanço no processo de redemocratização, formalmente iniciado no Governo
Geisel (1974-1978), por meio de sua defesa por uma abertura “lenta, gradual e segura”107.
Tratou-se de uma transição que enfrentou bastante resistência por parte de setores militares

106
Aloísio Teixeira ressalta, como decorrência deste período, um “processo de transferências de renda do
setor público para o setor privado e dos salários para os lucros, agravando as condições estruturais do
funcionamento da economia, com a deterioração do poder de compra da população assalariada e a
degradação física da infraestrutura dos serviços públicos” (1992, p. 119).
107
“Temos aqui a essência do projeto político implementado pelos generais Geisel e Golbery, cujo mote
parece ter sido ditado pelo famoso personagem de Lampedusa: é preciso mudar para que o fundamental se
conserve” (COUTINHO, 2000, p. 90).
148

e burgueses e que foi, em grande parte, forçada pela crescente mobilização popular e pela
decorrente criação de algumas importantes organizações de esquerda no início dos anos
1980.
Na verdade, o regime ditatorial, para além das dificuldades econômicas que
enfrentava desde meados nos anos 1970, continha uma contradição que acabou tornando
sua continuidade insustentável. Se por um lado, foi a maneira encontrada pela grande
burguesia para consolidar o capitalismo e impulsioná-lo nos trilhos da etapa dos
monopólios, por outro, ao fazer isso, impulsionou também as contradições deste sistema e
as forças que poderiam contestá-lo, tornando insuficiente o recurso à repressão como
forma principal de conter as reivindicações.
O processo de abertura, portanto, passou a ser fundamental para a garantia das
condições de acumulação, desde que fosse conduzido “pelo alto”, respondendo aos anseios
populares, sem que estes assumissem o controle. Tratava-se de buscar, na transição
democrática, restringir o uso da repressão a setores mais radicais e estabelecer estratégias
de cooptação para os moderados. Mas, em diversos momentos, esta iniciativa da burguesia
encontrou limites na disposição dos setores populares de assumir o comando.
Para Coutinho (2000, p. 91, grifo do autor), “esse projeto de abertura pelo alto
chocou-se com o processo de abertura, sendo frequentemente alterado e mesmo derrotado
por ele, ou seja, pela movimentação real da sociedade civil, pela pressão que vinha de
baixo para cima”. Esta pressão foi ganhando força na segunda metade da década de 1970 e
na seguinte apresentava um quadro mais organizado, traduzido no surgimento de novas
instâncias organizativas da classe trabalhadora.
Expressaram este novo quadro de disputas políticas, a criação de um partido
formado por trabalhadores, católicos (em sua maioria vinculados à Teologia da
Libertação), ex-guerrilheiros e intelectuais de esquerda: o Partido dos Trabalhadores
(PT/1980). Foram criadas também a Central Única dos Trabalhadores (CUT/1983) e a
Central Geral dos Trabalhadores (CGT/1986), além do Movimento de Trabalhadores sem
Terra (MST/1984). Podemos observar ainda o fortalecimento dos movimentos das
mulheres, dos negros, sem-teto e diversos outros que se aglutinavam em torno da luta pela
democracia. Isto sem falar no movimento de Reforma Sanitária, que se iniciou nos anos
1970 e se fortaleceu nos anos 1980, reunindo um forte grupo de profissionais de saúde e
usuários em torno da luta pela universalização e descentralização do sistema de saúde.
149

Os anos 1980 são, portanto, marcados pelo fortalecimento do movimento sindical e


dos movimentos sociais de uma forma geral, que contribuíram, dado o quadro de crise
política, econômica e social, para adensar o movimento de Diretas Já (1983-1984).
Conduzido por setores da burguesia – e seus representantes –, que tinham interesse em por
fim a ditadura, este movimento foi organizado em torno do Movimento Democrático
Brasileiro (MDB) e acabou desembocando no fim do regime militar em 1985.
Este processo de transição foi considerado por Coutinho (2000, p. 93) como sendo
de uma “transição fraca”, tendo em vista que, mesmo rompendo com a ditadura, não
eliminou “os traços autoritários e excludentes que caracterizaram aquele modo tradicional
de se fazer política no Brasil”. Para o autor, o predomínio de processos “pelo alto”
caracterizou-se pela presença de: um Executivo forte em relação aos outros poderes;
mecanismos transformistas (marcados pela cooptação e pela manutenção do clientelismo);
formas de populismo (reforçando o personalismo na condução da política) e a tutela militar
(visualizada no peso das forças armadas) 108.
O clima de efervescência política, entretanto, continuou e levou, no final da década,
à condução de um processo de Constituinte que permitiu a promulgação da Constituição
Federal de 1988, em um movimento de avanços e retrocessos, como veremos.
O contexto em que se vivenciaram os dois anos da Constituinte (1987-1988) foi,
deste modo, o de uma forte mobilização social, mas com organizações políticas
relativamente jovens e sem experiência com a dinâmica democrática. Ao mesmo tempo, os
setores mais conservadores estavam divididos entre o apoio ou não aos militares e, diante
da abertura, divergiam em relação ao ritmo e características da transição. Somado a isso,
enfrentavam uma crise de grandes proporções e que demandava mudanças na condução
dos rumos da política econômica e do planejamento. O que os unia era o medo de que a
mobilização social ameaçasse a estrutura de poder consolidada e estabelecesse mudanças
mais radicais na sociedade.
Como atesta Plínio de Arruda Sampaio:

108
Coutinho, ao comparar a ditadura brasileira com aquela implementada pelo fascismo clássico, a qual,
dispondo de bases de massas organizada, era capaz de subordinar a sociedade civil ao Estado de forma
totalitária, afirma: “ o tipo de ditadura que nos foi imposto revelou a possibilidade – que me parece nula no
fascismo clássico – de ser superado mediante um processo pacífico, ou, mais precisamente, mediante uma
transição que se materializa em rupturas parciais e progressivas, muitas vezes ‘negociadas’, e não numa
ruptura única e explosiva” (2000, p. 92).
150

O ziquezague da burguesia mostra que ela não contava com nenhum partido
suficientemente forte para imprimir uma direção clara aos embates de
recomposição do poder civil. No outro polo político, o movimento popular,
embora aguerrido, também não tinha condições de radicalizar sua pressão, de
modo a promover uma ampla democracia (2009, p. 40).

Neste cenário, em fevereiro de 1987 instaurou-se a Assembleia Nacional


Constituinte, que funcionaria por meio de 8 comissões temáticas, cada uma dividida em 3
subcomissões e uma comissão de sistematização. As subcomissões levariam sua proposta
para a comissão e esta, depois de organizar a redação, levaria à comissão de
sistematização, que iria compilar as propostas das 8 comissões e elaborar a redação final
do texto. Em todos estes momentos de síntese de propostas, haveria espaço para
apresentação de novas ementas ao texto final do relator. A versão final, também aberta
para receber emendas, seria submetida à aprovação em Plenário pelos 559 constituintes no
ano seguinte. Isto significava que ao final de cada etapa o texto sofria modificações a
depender da correlação de forças que se estabelecia (SAMPAIO, 2009; BOSCHETTI,
2006).
O caráter inovador da Assembleia era a abertura para uma ampla participação
popular por meio da realização de audiências públicas e pela possibilidade de apresentação
de emendas populares, desde que assinadas por, no mínimo 30 pessoas e por 3 entidades
representativas. Segundo Sampaio, “as 122 emendas populares apresentadas somaram 12
milhões de assinaturas, o que representava na época, cerca de 20% do eleitorado” (2009, p.
43). A massiva participação popular conseguiu, neste primeiro momento, estabelecer uma
correlação de forças mais favorável, constrangendo a direita de defender suas posições.
Isso acabou levando a um certo esvaziamento destes constituintes de direita 109 e
facilitando, inicialmente, a aprovação de propostas da esquerda.
Na comissão de Ordem Social estavam as seguintes subcomissões: dos Negros,
Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias; dos Direitos dos Trabalhadores e
Servidores Públicos; de Saúde, Seguridade e Meio Ambiente. A segunda foi a prioridade
na participação dos militantes do movimento sindical e a terceira contou com intensa
participação dos integrantes do movimento de reforma sanitária. Foi nesta última que se

109
“Sem claras orientações das suas lideranças e expostos a um desgaste enorme pelas organizações
populares – Central Única dos Trabalhadores (CUT) à frente –, grande parte dos constituintes de direita
deixou de comparecer às sessões da Assembleia, preferindo cuidar de suas bases eleitorais, tendo em vista a
eleição municipal marcada para outubro de 1988” (SAMPAIO, 2009, p. 44).
151

elaborou, de forma mais consistente, os princípios da Seguridade Social110 (BOSCHETTI,


2006).
De uma maneira geral, na avaliação de Ivanete Boschetti (2006), a proposta da
comissão de Ordem Social, encaminhada para a comissão de sistematização, estava afinada
com as propostas das organizações de esquerda, em especial, com o acúmulo do
movimento de reforma sanitária. Tal proposta afirmava a responsabilidade do Estado com
a garantia dos direitos sociais, embora tenha sofrido algumas alterações de caráter mais
conservador do que as propostas encaminhadas pelas subcomissões111. Para citarmos um
exemplo, na área da saúde foram aprovados artigos que não só falavam em um sistema
único, mas também determinavam a atenção integral e a proibição de investimentos de
recursos públicos nos organismos privados de saúde.
O texto final foi apresentado pela comissão de sistematização no final do ano de
1987 e sofreu duras críticas dos setores conservadores e do governo. “Os empresários
criticavam o que eles chamavam de reforço ao estatismo e ao burocratismo estatal em
detrimento do ‘pluralismo’ econômico” (BOSCHETTI, 2006, p, 168).
Houve, a partir daí, uma reorganização das forças conservadoras, temerosas de que
fosse aprovada uma constituição que retirasse importantes privilégios das elites. Estas se
aglutinaram e formaram um bloco que ficou conhecido como Centrão. No ano seguinte,
1988, por meio de manobras políticas, este campo conseguiu promover alterações no
regimento da Assembleia de modo a facilitar, na votação no Plenário, a revisão de todo o
trabalho acumulado e sistematizado pela comissão. Temos, então, um retrocesso nas
formulações no sentido de retirada de direitos e de favorecimento da iniciativa privada no
provimento das políticas sociais.
O trecho da justificativa de emenda que propunha um novo capítulo para a Ordem
Social, citado por Boschetti, deixa bem claras as intenções do Centrão:

Deve ser descartado o Estado provedor. Não pode o sistema de seguridade social
tornar-se sorvedouro de recursos, que não são infindáveis, do Tesouro e do
contribuinte. [...] Não há porque desconhecer a importância da colaboração da

110
É curioso destacar que o primeiro esboço de Seguridade Social integrava somente as políticas de
Assistência e Previdência. A Saúde figurava como uma política em separado. Foi o senador Almir Gabriel,
do PMDB, relator da comissão, que incluiu a saúde no conceito de seguridade social (BOSCHETTI, 2006).
111
Para um estudo mais detalhado dos textos originais voltados para a Seguridade Social e de como eles
foram sendo, paulatinamente, alterados, ver Boschetti (2006).
152

iniciativa dos particulares nestes setores (Assembleia Nacional Constituinte apud


BOSCHETTI, 2006, p. 170).

O resultado destes embates foi um texto constitucional híbrido, fruto de um


“acordão” entre as forças conservadoras e progressistas. Se por um lado o Centrão
alcançou um nível de organicidade fluido e incapaz de rever a totalidade das definições já
acumuladas, por outro, a esquerda não teve forças para impedir algumas alterações e
avaliou que um acordo seria a forma de garantir, ao menos parcialmente, a aprovação das
medidas que propuseram.
O fato é que boa parte do texto da comissão de sistematização integrou a versão
final, sobretudo no que diz respeito à Seguridade Social. Deste modo, o texto aprovado
significou uma mudança na lógica do atendimento às necessidades da população da ajuda
para o direito, garantindo uma proposta de universalidade e de responsabilização do
Estado, ainda que na Previdência tenha prevalecido a lógica do seguro.
No próximo capítulo, voltaremos a algumas das conquistas da chamada
Constituição Cidadã, mas consideramos importante destacar aqui a importância da
aprovação deste texto no momento de abertura democrática. Visto de hoje e conhecendo o
processo que vivemos nas décadas seguintes, estamos de acordo com Sampaio (2009, p.
49) ao afirmar que “não fossem estes dispositivos, o sofrimento da classe trabalhadora
durante o período mais duro da desarticulação do Estado desenvolvimentista teria sido
muito maior” e ele dá o exemplo da Argentina, “país que passou diretamente da ditadura
para a ‘democracia’ neoliberal”.
Entretanto, o caminho para a implementação das conquistas do texto constitucional
ainda tinha (e tem) um longo percurso. Por um lado, se, no campo econômico pouco se
avançou nesta década, podemos, por outro, dizer que continuava o momento de
efervescência política e cultural, o qual culminou na ameaça de vitória de Lula às eleições
presidenciais de 1989. As forças conservadoras conseguiram, entretanto, não apenas se
manter no poder, como também, disseminar a necessidade da adesão ao projeto neoliberal
como forma de garantir o retorno ao crescimento e a tão esperada fase de prosperidade.
Este fato criou obstáculos para o avanço das conquistas sociais observadas ao longo dos
anos 1980 e apontadas no texto constitucional de 1988.
Os desdobramentos do primeiro governo civil após o fim da ditadura, portanto,
reforçam a ideia de uma “transição fraca”, como defende Coutinho (2000). Ainda que seja
possível reconhecer os avanços trazidos pela mobilização popular, não se conseguiu alterar
153

o bloco no poder, permanecendo o direcionamento nas mãos dos latifundiários e da grande


burguesia dependente.

2.3 Neoliberalismo e a constituição do capital financeiro brasileiro

O quadro de estagnação da década de 1980 ajudou a criar um ambiente


extremamente propício para um discurso112 de ataque generalizado ao Estado e a tudo que
estivesse a ele relacionado, desde as empresas estatais e os funcionários públicos até as
conquistas sociais como aposentadoria e vários outros direitos trabalhistas. A década de
1990 já se inicia com estas ideias tomando, cada vez mais, um formato de verdade, “óbvia
e inquestionável”, e impulsionando um conjunto de mudanças que, ao serem
implementadas, inauguraram um novo momento da acumulação capitalista no Brasil.
As alterações propostas vinham inspiradas em mudanças experimentadas tanto em
países de capitalismo avançado, como em diversos vizinhos latino americanos. As ideias
neoliberais finalmente aportavam no Brasil com um conteúdo mais consistente e uma
correlação de forças favorável à sua implementação, ainda que seus germes já pudessem
ser identificados na década anterior.
No plano conceitual, podemos dizer que o neoliberalismo possui acepções diversas,
mesmo quando restringimos o debate às análises do pensamento social crítico, fato que
leva muitos teóricos a ressaltar a imprecisão do termo. Tratam-se, no geral, de diferenças
na ênfase que alguns analistas dão a determinados aspectos em detrimento de outros,
embora todos abarquem um conjunto de medidas e alterações que caminham no mesmo
sentido: a busca por restaurar o poder burguês ameaçado pela crise instaurada no final dos
anos 1960 e início dos 1970, o que implica na adoção de medidas voltadas para retomar o
aumento da taxa de lucro.
Castelo (2013) faz uma espécie de inventário da controvérsia que cerca o termo
neoliberalismo. Ele identifica autores que o tratam prioritariamente como uma ideologia,
dentre os quais destaca Perry Anderson, Göran Therborn e, no Brasil, João Leonardo

112
Trata-se de um ataque muito centrado no plano da retórica dado que, na verdade, não se trata de uma
defesa pelo Estado mínimo. Como procuraremos demonstrar, o Estado precisava ser forte e seguir atuante na
garantia das condições de acumulação capitalista, embora tenha passado por um intenso processo de
reconfiguração.
154

Medeiros e Emir Sader, para ficarmos em alguns. Estes, sem perder de vista aspectos
políticos, econômicos e culturais, ressaltam o conteúdo de dominação ideológica da
burguesia que este termo encerra. O segundo grupo assinalado por Castelo (2013), com o
qual nos identificamos, privilegia os aspectos políticos, identificando o neoliberalismo
como uma estratégia de recomposição do poder burguês e de enfrentamento aos
movimentos contestatórios que se fortaleciam como possibilidade de enfrentamento à crise
do capital. Neste grupo estão autores como François Chesnais, David Harvey, Atílio Boron
e, no Brasil, Carlos Montaño, Elaine Behring, Kátia Lima, dentre outros.
Ainda que somente no início da década de 1970 estas ideias tenham encontrado as
condições materiais para a sua difusão e implementação, a concepção se deu cerca de trinta
anos antes. Um dos grandes marcos desta trajetória foi a reunião sediada na Suíça, mais
precisamente em Mont Pelèrin, em 1947. Participaram deste encontro Frederich Hayek,
que em 1944 havia escrito O Caminho da Servidão ([1944] 1990) – no qual já deixava
claro o seu combate à intervenção do Estado nos mecanismos de mercado –, juntamente
com intelectuais como Milton Friedman, Ludwig Von Mises e Karl Popper (ANDERSON,
[1995] 2003; HARVEY, 2008). Suas propostas, entretanto, foram respondidas de forma
muito concreta: as altas taxas de crescimento decorrentes da intervenção estatal, promovida
pela implementação do Estado de Bem Estar Social. Este fato contribui para explicar a
baixa adesão que suas teses tiveram neste período.
Foi somente com a crise neste padrão de acumulação que se vivenciou a primeira
experiência de implementação das propostas neoliberais. A ditadura instaurada com o
golpe de Estado do general Pinochet, no Chile em 1973, mostrou ao mundo que a tão
proclamada defesa pela liberdade estava centrada no supostamente “livre jogo do
mercado”, de modo que não precisava vir acompanhada das liberdades civis, nem dos
direitos políticos. As medidas adotadas foram marcadas pela truculência no enfrentamento
às manifestações da classe trabalhadora e no desmonte das suas organizações,
desregulamentação das relações trabalhistas, privatização de empresas, de recursos naturais
e das políticas sociais, liberalização da economia, dentre outras, tendo como resultado uma
forte concentração de renda e riqueza nas mãos da burguesia.
Esta experiência foi, poucos anos depois, replicada na Inglaterra (1979) e nos
Estados Unidos (1980), desta vez sob o mistificador véu da “democracia burguesa”. Para
Harvey, “não pela primeira vez, uma experiência brutal realizada pela periferia
transformou-se em modelo para a formulação de políticas no centro [...]” (2008, p. 19).
155

Para o autor, a crise do Estado de Bem Estar Social foi o grande pretexto para o ataque ao
planejamento estatal e a neoliberalização, apontada como a saída, numa tentativa também
estimulada pela necessidade de evitar uma resposta organizada da classe trabalhadora, que
ameaçava os interesses das elites burguesas.
Ao longo dos anos 1970 e 1980, portanto, fazendo uso de uma dialética
combinação entre coerção e consenso, ora com peso maior em um, ora em outro – a
depender da correlação de forças de cada país –, o neoliberalismo foi sendo encampado por
diversas regiões do globo. A truculência das armas por vezes foi substituída por aquela que
advoga a ausência de alternativa, condenando ao isolamento toda a forma de pensamento
que a contrarie. Para Harvey (2008, p. 97),

um mapa dos movimentos mediante os quais ocorreu o progresso da


neoliberalização no cenário mundial a partir de 1970 é difícil de elaborar. Para
começar, a maioria dos Estados que seguiram a virada neoliberal só o fizeram
parcialmente [...]. E na luta de restauração ou implantação do poder de uma
classe alta distintiva ocorre todo o tipo de idas e vindas, enquanto os poderes
políticos mudam de mãos e os instrumentos de influência se enfraquecem ali ou
se fortalecem alhures. Assim, todo mapa desses movimentos apresentaria
correntes turbulentas de desenvolvimentos geográficos desiguais que precisam
ser rastreados para compreender de que maneira as transformações locais se
vinculam a tendências mais amplas.

De todo modo – ainda que guardadas as devidas proporções em cada local em que o
neoliberalismo foi ganhando materialidade –, as mudanças implicaram, para além da
adoção de medidas privatizantes e liberalizantes, em um reforço à busca por saídas
individuais e a um tratamento fragmentado das expressões da questão social, privatizando
também as formas de enfrentamento dadas a esta. A busca por construções coletivas foi
caracterizada como ultrapassada e utópica e as análises baseadas na totalidade,
consideradas inviáveis, sendo difundido o recurso a um conhecimento parcial e efêmero,
muitas vezes calcado no subjetivismo em oposição à objetividade dos fenômenos.
No campo da produção, a reestruturação produtiva neoliberal abriu caminho para
um padrão de acumulação flexível (HARVEY, 1992) que, mesmo contribuindo
significativamente para desarticular o movimento sindical e rompendo com a rigidez
característica do fordismo-taylorismo, não foi suficiente para recuperar as margens de
lucratividade dos chamados “anos gloriosos”. A desregulamentação financeira apareceu,
como procuramos demonstrar no capítulo anterior, como uma alternativa para ampliar a
rentabilidade do capital, o que alimentou as iniciativas de aumento da exploração do
156

trabalho no âmbito da produção, dado que este último é o espaço de extração da mais valia
de onde se originam os ganhos obtidos nas finanças.
O avanço às economias dependentes se deu por meio da imposição por parte dos
organismos multilaterais de políticas de estabilização econômica e da adesão das grandes
burguesias internas a esta proposta. Estas vieram sempre acompanhadas da intensificação
dos fluxos financeiros em direção a estes países e funcionaram como uma estratégia
fundamental de apropriação da mais valia ali extraída. A ruptura de limites anteriormente
existentes para a mobilidade de capitais financeirizados passa a se constituir como uma
alternativa para contornar a tendência decrescente da taxa de lucro, enfrentada nos países
de capitalismo avançado. Aos Estados dependentes, cabia uma reconfiguração que passava
pelo aumento da dívida pública como forma de alimentar a rentabilidade financeira e, ao
mesmo tempo, de justificar sucessivos ajustes fiscais, os quais legitimaram a canalização
de recursos para o capital, a condução de “reformas” na administração pública e a
contenção de gastos sociais.
Os Estados, portanto, longe de se tornarem mínimos – como muitos procuraram
sintetizar –, precisavam ser fortes e robustos o suficiente para conseguirem implementar
estas mudanças e sustentá-las, a despeito dos questionamentos que pudessem advir da
classe trabalhadora ou mesmo de setores da burguesia (em especial a pequena burguesia),
atingidos pelas medidas.
Como dissemos, a forma como se deu a composição de classe e até aonde foi
possível avançar nas mudanças variou em cada país. Seu processo de implementação não
foi linear, nem mesmo “puro”, no sentido de que não abarcaram o conjunto das propostas
recomendadas. Os embates entre as classes sociais, e até mesmo entre frações de uma
mesma classe, foram contribuindo para rechear de um conteúdo próprio o sentido da
chamada ofensiva neoliberal. Deste modo, cabe agora analisarmos as especificidades que
este processo assumiu no Brasil.
157

2.3.1 O neoliberalismo no Brasil

Se o plano de estabilização implementado pela equipe econômica do governo do


então presidente Fernando Collor de Melo113 não surtiu o efeito desejado, o mesmo não
podemos dizer a respeito de suas políticas voltadas para a abertura do mercado externo,
privatização e desregulamentação, as quais foram implementadas com relativo “sucesso” e
tiveram, nas Diretrizes Gerais para a Política Industrial e Comércio Exterior anunciadas em
junho de 1990, uma de suas expressões. Estava dada a largada rumo ao “Primeiro Mundo”
através da “modernização” do parque industrial brasileiro.
Nem precisamos dizer que esta “caminhada” não mantinha relação com
preocupações voltadas para redução da desigualdade na distribuição de renda, a
consolidação do mercado interno e muito menos uma política educacional/tecno-científica
voltada para garantir minimamente uma autonomia no processo de produção de
conhecimento ou mesmo de capacitação da força de trabalho, além de não produzir
nenhum resultado significativo em termos de crescimento econômico. O funcionamento do
mercado e o desenvolvimento das forças produtivas seriam supostamente os grandes
agentes impulsionadores do “progresso” e do “bem-estar”.
A abertura econômica e a expansão das importações, aliadas ainda a políticas
recessivas como forma de reduzir e estabilizar a inflação, levaram a um aumento
considerável das debilidades no setor produtivo de nosso país, e criaram as condições para
“limpar o terreno e abrir espaço para a almejada privatização com conversão da dívida”,
como observa Teixeira (1994, p. 133). Este processo de privatização teve início neste
governo, mas ganhou, não só continuidade como intensidade, ao longo da década de 1990.
Com pouco mais de três anos de governo, uma série de denúncias de corrupção
acabaram destituindo o presidente do poder por meio do impeachment e substituindo-o por
seu vice, Itamar Franco, governo no qual se gestou e implementou o Plano Real, tendo
Fernando Henrique Cardoso (FHC) no Ministério da Fazenda.
Em 1995, FHC foi eleito em primeiro turno com uma Proposta de Governo
intitulada Mãos à obra, Brasil, na qual afirmava claramente ser “condição indispensável
[...] a manutenção de uma política macroeconômica consistente, que compreenda o
controle da inflação e do déficit público, a abertura da economia, a desregulamentação e a

113
A este respeito, ver Filgueiras (2000); Teixeira (1994); Tavares, Teixeira e Pena (1991).
158

privatização” (CARDOSO apud SADER, 1994, p. 162). Aqui também, como nas décadas
anteriores, estava presente a ideia de que a política monetária, voltada para a estabilização
de preços, deveria vir acompanhada por um forte ajuste fiscal, dado que o gasto público é
tido como o principal causador da inflação.
De uma maneira geral, podemos dizer que o Plano Real estava em completa
sintonia com as recomendações do Consenso de Washington e, por meio dele, estávamos
fazendo todos os “deveres de casa” impostos pelo receituário do FMI, transformando nossa
economia em um espaço amplamente rentável para as aplicações financeiras do capital
financeiro e impondo limites cada vez maiores ao capital produtivo nacional.
Neste sentido, precisamos entender o Plano não apenas como um meio para garantir
a estabilização monetária, mas como parte de um projeto estratégico, visando uma nova
inserção da economia brasileira em um contexto de financeirização da economia mundial.
O caráter dependente segue sendo o caminho para entendermos os moldes desta reinserção
e a busca por ampliação das fronteiras de rentabilidade financeira do grande capital, o
objetivo que orientou as mudanças.
Em relação à estabilização monetária, podemos dizer que as medidas adotadas para
conter a inflação, no início do processo de implementação do Plano Real, foram, sem
dúvida nenhuma, eficazes na obtenção do que seria o objetivo fundamental alegado por
seus formuladores: a drástica redução da inflação. Esta passou de 46,60% em junho de
1994 para 3,34% em agosto e veio acompanhada por uma fase de rápido aumento da
produção e do consumo, que se expressou em uma taxa de crescimento do Produto Interno
Bruto (PIB) de 5,8% neste mesmo ano (FILGUEIRAS, 2000).
Os resultados iniciais, por trás da aparente melhora, têm por base alguns efeitos
perversos114. Um primeiro efeito que gostaríamos de destacar diz respeito à reestruturação
financeira decorrente do aumento do crédito provocado pela estabilização e pela abertura
financeira. Para Braga & Prates (1998), a expansão do crédito, por ser pautada em recursos
externos, se, por um lado, contribui para a expansão da demanda, por outro, conduz a um
desequilíbrio em conta corrente e ao surgimento de bolhas especulativas, tanto no mercado
de ações, quanto de imóveis. Isto sem mencionar os efeitos da entrada de divisas sobre a
taxa de câmbio, de juros, a balança comercial e os empréstimos, como veremos mais

114
Estes efeitos, posteriormente, contribuíram para agravar o desequilíbrio das contas públicas, desequilíbrio
este que o Plano, supostamente, se dedicava a resolver, ou, ao menos, minimizar.
159

adiante. Em resumo, eles afirmam que este movimento, da forma como aconteceu, trouxe
para o sistema bancário um aumento de sua fragilidade.
Além disso, as receitas inflacionárias eram uma das principais fontes de
rentabilidade dos bancos e a redução da inflação tornou este ganho irrisório. “As receitas
inflacionárias, que correspondiam a 4% do PIB, em média, no período de 1990-93,
diminuíram para 2% do PIB em 1994, e se tornaram desprezíveis em 1995” (BRAGA ;
PRATES, 1998, p. 36).
É este o contexto em que se “impôs”115 a necessidade de uma série de ajustes que
envolveram não só o redimensionamento dos bancos e de sua estrutura operacional, quanto
o redirecionamento de suas atividades (expansão das operações de crédito116) e, como não
poderia deixar de ser, um reordenamento do Sistema Financeiro Nacional (SFN), com a
eliminação de bancos menores, o fortalecimento dos maiores e o aumento da participação
estrangeira.
As dificuldades vividas por diversos bancos levaram o governo a criar, em
novembro de 1995, o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do
Sistema Financeiro Nacional (Proer)117, logo após a crise do Banco Econômico (22º banco
em intervenção desde o início do Plano Real), em agosto do mesmo ano. De acordo com
afirmações do governo na época, a função do Proer era a de ordenar as fusões e
incorporações de bancos, a partir de regras ditadas pelo Banco Central.
O fato é que a concentração e desnacionalização bancária se intensificaram de
forma inconteste. Gonçalves, em seus estudos, nos traz dados bastante esclarecedores ao
mostrar que, em 1994 havia, no Brasil, 230 bancos, ao passo que, em 1998, este número foi
reduzido para 179. O autor destaca também que, deste universo de 179 bancos, os

115
Braga & Prates são taxativos ao afirmarem, e nós concordamos com eles, que a privatização e a
internacionalização do sistema bancário consistiram em uma escolha de política financeira e não uma
inexorabilidade (1998, p.42).
116
Este esforço por parte dos bancos para expandir as operações de crédito, aliado a um aumento da demanda
de crédito pelas famílias – em decorrência da estabilidade econômica – estimularam um correspondente
aumento da demanda da indústria e do comércio. A avaliação incorreta do risco destes empréstimos, tanto
pelo lado da demanda quanto da oferta, contribuiu para levar a uma crise de inadimplência que se agravou
com a crise do México, no final de 1994, dada a dependência dos voláteis fluxos de capitais, própria de uma
economia estabilizada por meio da âncora cambial (BRAGA & PRATES, 1998, p. 37).
117
Não pretendemos fazer uma avaliação crítica minuciosa a respeito deste programa, mas vale a pena
lembrar que ele atuou em meio a muita polêmica e que muitos foram os economistas que alertaram para o
alto custo pago por toda a sociedade para sua implementação.
160

cinquenta maiores respondiam por 98% de todas as atividades bancárias do país


(GONÇALVES, 1999, p. 162-166).
Outro efeito decorrente da implementação do Plano, está vinculado ao saldo da
Balança Comercial que, em novembro, já começou a apresentar déficit. Segundo Filgueiras
(2000, p. 123), o déficit nos três primeiros meses de 1995 chegou a US$2,33 bilhões, dado
o aumento de 99,5% nas importações e de apenas 9,6% nas exportações, neste período.
O combate à inflação estava calcado, em parte, na liberalização financeira118, na
abertura comercial e em um câmbio sobrevalorizado. Se por um lado, estas medidas
contribuíram para reduzir o preço das importações e conter pressões inflacionárias dos
setores que dependiam de importados para produzir, por outro lado, desestimulavam as
exportações e criavam dificuldades para a produção de alguns bens em virtude da
concorrência externa. Sendo assim, o saldo da Balança Comercial passou de um superávit
de US$10,4 bilhões em 1994, para déficits por 6 anos consecutivos, chegando a US$8,4
bilhões em 1997, só voltando a apresentar saldo positivo em 2001, como apontam Ivo
Lesbaupin e Adhemar Mineiro (2001, p.15), fazendo uso de dados do Banco Central.
Mesmo assim, esta recuperação se deve mais aos efeitos da crise enfrentada neste ano do
que a uma mudança nos rumos da política econômica, como veremos.
Ao mesmo tempo, a entrada dos capitais especulativos, atraídos pelas altas taxas de
juros, ganhava uma importância cada vez maior para viabilizar a manutenção dos
resultados inicialmente obtidos. Estes capitais se tornaram um dos principais elementos
existentes para financiar o aumento espetacular das importações, decorrente,
fundamentalmente, da utilização da âncora cambial. A sustentação das medidas iniciais,
portanto, encontrou em um capital volátil e de curto-prazo, uma das condições para sua
viabilidade.
O aumento do que os estudiosos chamam de “vulnerabilidade externa” ganhou um
contorno diferenciado e intensidade crescente, que pôde ser observada pelas repercussões
sentidas, na economia brasileira, das crises mexicana (dezembro de 1994), asiática (junho
de 1997) e russa (agosto de 1998). Harvey, ao refletir sobre o que teria levado a estas crises
destaca o caráter subjetivo e instável destes movimentos especulativos e adverte que “a

118
“A abertura financeira de uma economia envolve dois processos independentes: a liberalização da conta
de capital do balanço de pagamentos (ou seja, dos movimentos de capitais) e a permissão de transações
monetárias e financeiras em moeda estrangeira no espaço nacional” (FREITAS & PRATES, 2001, p. 84, nota
5).
161

‘mentalidade de rebanho’ dos financistas (ninguém deseja ser o último a manter estoques
de uma dada moeda antes da desvalorização desta) pode produzir expectativas auto-
realizadoras, com manifestações tanto agressivas, quanto defensivas” (2008, p. 105).
Estas crises, ao provocarem a fuga em massa de capitais do Brasil, colocavam em
pauta a questão do (des)equilíbrio do Balanço de Pagamentos, dada a importância destes
capitais para o fechamento das contas nacionais. A receita para conter as crises possuía
sempre, em maior ou menor dosagem, o aumento da taxa de juros como forma de garantir
a sustentação da âncora cambial119, e medidas de cunho recessivo voltadas para reduzir a
demanda por importação e garantir “excedentes”120 exportáveis. O recurso à utilização de
títulos da dívida pública como forma de atrair capitais a juros altíssimos, levou a um brutal
aumento do endividamento. Em 1994, ano anterior ao início do governo FHC, a Dívida
Pública Federal era de R$ 61,8 bilhões. Ao final dos dois mandatos (2002), ela havia
saltado para R$ 624,1 bilhões (LESBAUPIN ; MINEIRO, 2002, p. 17).
As medidas de caráter recessivo se expressavam em uma política fiscal restritiva,
marcada pelo corte de gastos – fundamentalmente com a folha de pagamentos (incluindo
contenção salarial e demissões) e investimentos – e aumento da carga tributária. Estas
medidas foram tornando-se mais rigorosas a cada crise pela qual passava a economia
brasileira. A intenção era a de demonstrar para os investidores estrangeiros a capacidade de
financiamento tanto interno quanto externo.
Os resultados sinalizavam sempre para um retorno do capital especulativo e para
uma redução das possibilidades de crescimento da economia. Esta redução do crescimento,
se por um lado, contribuía para melhorar o saldo da Balança Comercial (em função da
redução das importações), por outro, comprometia a produção e o consumo internos.
Em virtude das medidas tomadas, podemos observar uma queda na utilização da
capacidade instalada na indústria, redução nas vendas, tanto no setor industrial quanto no
comércio e aumento do desemprego. Um dos indicadores da queda na capacidade de

119
Esta sustentação se dá por meio do potencial atrativo de capital de curto-prazo, decorrente das altas taxas
de juros. A atração permite que a entrada de dólares se mantenha e garanta, deste modo, a manutenção das
reservas cambiais.
120
Usamos excedentes entre aspas tendo em vista que trata-se de uma redução da capacidade interna de
absorver a produção, e não exatamente de uma produção em excesso.
162

consumo foi a crise de inadimplência em 1995121, ano que se seguiu à crise do México e ao
pacote de medidas para sair da crise. O problema da inadimplência se relaciona também ao
aumento do endividamento das famílias, estimulado pela redução da inflação e pelo
aumento do crédito que marca o período.
Os períodos de desaceleração da economia, pelo seu caráter recessivo, acabavam
por criar as condições para um certo ajuste na Balança Comercial. Depois que as crises
externas eram contornadas, podíamos observar uma relativa retomada do crescimento, a
qual conduzia, novamente, ao desajuste externo. Este fato apontava para o impasse a que a
condução da política econômica havia nos levado:

Os elementos fundamentais do Plano, que seguravam a inflação em níveis muito


baixos, continuavam colocando o país numa armadilha que contrapunha, de um
lado, inflação reduzida, com estagnação econômica ou crescimento medíocre e
elevados níveis de desemprego, e, de outro, crescimento mais elevado, mas com
risco de uma crise cambial (FILGUEIRAS, 2000, p. 135).

Era, portanto, em cima desta “corda bamba” que o governo procurava se equilibrar,
produzindo uma política econômica do tipo stop and go, que consistia em pequenos
períodos de aquecimento, logo seguidos por desaquecimento e recessão, em geral,
acionados por uma crise externa e uma subsequente fuga de capitais.
A resposta econômica do governo à crise russa, entretanto, foi a mais rígida do
primeiro mandato. A situação de instabilidade, tanto nacional quanto internacional, e as
estratégias adotadas para o enfrentamento da crise nos conduziram, mais uma vez, ao
Fundo Monetário Internacional. Deste novo acordo, saímos com o compromisso de
estabelecer metas de superávit primário, além de reafirmarmos a intenção de estabelecer
um ajuste fiscal para enfrentar o déficit público, que crescia em proporções gigantescas.
Dentre as soluções para enfrentar o déficit estavam as privatizações. Na verdade, no
Plano Real, o processo de desestatização acabou por se constituir como uma de suas
dimensões fundamentais, podendo ser entendido como uma das bases para o “sucesso” na
sua implementação. Além do equilíbrio nas contas públicas, os argumentos a seu favor se
pautaram na necessidade de racionalização do Estado, no estímulo a um aumento da
competitividade da economia e na atração de investidores estrangeiros para permitir a

121
Tivemos neste período um “crescimento de todos os indicadores de inadimplência – cheques sem fundos,
prestações em atraso, títulos protestados, concordatas e falências” (FILGUEIRAS, 2000, p. 128-129).
163

“retomada de investimentos”. Nesta perspectiva, estes fatores contribuiriam para garantir a


estabilização da economia e para viabilizar uma (re)inserção na economia mundial de
forma mais competitiva e promover a “modernização da infraestrutura e do parque
industrial do País”.
Tendo em vista as mudanças no aparato regulatório ocorridas ao longo da
década122, podemos dizer que a análise das privatizações não pode ser feita sem a
articulação com o processo, ainda mais amplo, de desnacionalização da nossa economia,
ou seja, transferência do patrimônio nacional – privado ou estatal – para estrangeiros.
Alguns dos elementos fundamentais para o aprofundamento desta discussão são: o
fluxo de investimento externo direto (IED) e a presença das Empresas de Capital Externo
(ECE)123 no país. Um estudo pormenorizado a este respeito foi feito por Gonçalves (1999)
e, com base nele, podemos perceber que o estoque de IED mais que dobrou nos três
últimos anos do primeiro governo Fernando Henrique Cardoso, passando de U$ 43 bilhões,
em 1995, para algo em torno de U$ 88 bilhões em 1998. Isto significa um crescimento de
80% do grau de desnacionalização da economia brasileira – em apenas 3 (três!) anos –,
medidos pela variação na razão estoque de IED/PIB de 6,3% para 11,2% (GONÇALVES,
1999, p.14).
Uma análise dos dados relativos às privatizações no seu conjunto, ao longo do
período de 1990 a 2002, nos permite afirmar que 1997 e 1998 foram os anos em que mais
se arrecadou com a venda/concessão das estatais (incluindo as dívidas transferidas),
totalizando U$ 65,216 bilhões arrecadados (BNDES, 2002b).
No ano de 1997 foi vendida a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) e feitas
concessões no setor de telefonia celular. Em 1998, contribuiu para aumentar o volume de
recursos, o leilão do sistema Telebrás, que aconteceu no mês de julho. Como afirma Leda

122
O Programa Nacional de Desestatização (PND) foi instituído no governo Collor, no dia doze de abril de
1990, por meio da Lei nº 8.031 (BNDES, 2002a).
123
Com relação às ECE, cumpre identificar a definição existente no Censo de Capitais Estrangeiros no
Brasil, realizado pelo Banco Central do Brasil: “A população abrangida pelo Censo compreendeu as
empresas receptoras de investimentos estrangeiros diretos e as captadoras de créditos externos, que
usualmente solicitam registro dessas operações junto ao Departamento de Capitais Estrangeiros (FIRCE) do
Banco Central do Brasil (Bacen), na forma da Lei nº4.131/62, bem como as detentoras de participação
estrangeira direta. [...] Neste sentido, no que tange às empresas receptoras de investimento estrangeiro,
instituiu-se a obrigatoriedade de resposta àquelas com participação direta ou indireta de não residentes
em seu capital social representando, em 31/12/95, no mínimo 10% das ações ou quotas com direito a
voto ou, então, 20% ou mais do capital total” (apud GONÇALVES, 1999, p.202-203, grifo nosso).
164

Paulani, (1998, p.53) “[...] A antiga Telebrás, que bem poderia ter sido transformada numa
empresa capaz de, em pouco tempo, competir no mercado internacional, acabou tratada
como se fosse uma massa falida, fatiada que foi em 12 empresas [...]”. Das 12 empresas
holdings, criadas após a cisão do sistema, quatro delas se constituíam em empresas de
telefonia fixa e serviços de longa distância. No que diz respeito às empresas estaduais, o
setor elétrico teve um peso significativo. Das 20 empresas privatizadas, 14 foram vendidas
nestes anos, o que representa um total de US$ 19,148 bilhões, quase 80% do total das
receitas acumuladas com as vendas neste setor (BNDES, 2002b, p. 144-145).
Mas não foram só as privatizações que buscavam respaldo na necessidade de
contenção do déficit. Uma série de medidas voltadas para “dar maior agilidade à
administração pública” e para sanear as contas do governo foram implementadas, dentre
elas, as “reformas” da Previdência e da Administração Pública. Em relação à Previdência,
mudanças como a substituição do tempo de serviço por tempo de contribuição, a limitação
para aposentadorias especiais, definição de um teto para o valor dos benefícios e alteração
do cálculo nos seus valores contribuíram para, em nome de um suposto déficit124, retirar
direitos e empurrar boa parte dos “contribuintes” para a Previdência Complementar 125. No
que diz respeito às mudanças na Administração Pública, capitaneadas pelo Ministério de
Administração e Reforma do Estado (MARE)126, estavam, dentre outras, o incentivo às
privatizações, parcerias público-privadas de vários tipos, as organizações sociais (OS) e a
introdução de critérios de avaliação e indicadores de desempenho. Estabelece-se assim,
uma diluição das fronteiras entre o público e o privado em que, além de ficar cada vez mais
difícil saber aonde um termina e o outro começa, o primeiro vai adotando a mesma lógica
de funcionamento do segundo.
A “reforma gerencial”, como aponta Behring (2003, p. 177) foi voltada para “o
controle dos resultados e baseada na descentralização, visando a qualidade e produtividade
do setor público”. A fundamentação de sua necessidade passava pelo argumento da “crise
do Estado”, que teria feito com que este se desviasse de suas funções básicas, deteriorando
os serviços públicos, produzindo a chamada crise fiscal e alimentado a inflação. A este

124
Sobre a reforma da Previdência no governo FHC, ver Dain (1999). Uma crítica contundente ao suposto
déficit da previdência foi feita por Gentil (2007).
125
Para uma análise do significado da Previdência Complementar, ver Granemann (2002;2003).
126
Um cuidados estudo da reforma do Estado foi feito por Behring (2003).
165

respeito a autora alerta que “deve-se distinguir a reforma do Estado, como um projeto
político, econômico e social mais amplo, da reforma do aparelho do Estado, orientada
para tornar a administração pública mais eficiente” (2003, p. 178, grifo da autora).
Neste sentido, a “reforma administrativa” é apenas um dos elementos que caracterizam um
processo, bem mais amplo, de reformulação do papel do Estado .
Um balanço das mudanças iniciais, aprofundadas no governo seguinte, nos permite
analisar que trataram-se de alterações marcadas por uma decisão política interna –
associada aos interesses externos – de tornar o país mais atrativo ao investimento
internacional. A liberalização do fluxo de capitais, a privatização, o aumento do
endividamento interno e externo, a prioridade com o pagamento de juros em detrimento de
gastos com o funcionalismo e com as políticas sociais consistiram em um conjunto
integrado de mudanças para servir aos interesses do capital portador de juros e do grande
capital internacional. Foram mudanças em total sintonia com a conjuntura externa e com a
necessidade de ampliação das fronteiras de rentabilidade financeira dos países imperialistas
e que aprofundaram significativamente nossos laços de dependência.
Trataram-se de medidas fortemente viabilizadas pelo clima favorável interno
trazido em função da redução da inflação que, ao garantir uma maior estabilidade,
conseguiu o apoio popular e uma espécie de permissão – ou, ao menos, legitimidade – para
que qualquer medida fosse tomada em nome da manutenção deste quadro. E foi sempre em
função da “garantia da estabilidade” que a implementação das “reformas” neoliberais
foram justificadas. O medo generalizado do retorno à inflação foi usado com grande
habilidade pela equipe do governo.
Os contratempos enfrentados, entretanto, não foram poucos. Podemos atribuir boa
parte destes – sua intensidade e repercussão interna – à grande vulnerabilidade externa a
que este Plano nos conduziu. Os desdobramentos da moratória russa são um exemplo de
como o clima de instabilidade internacional pode ter rebatimentos sérios sobre a economia
brasileira, marcada por uma inconsistente estabilidade.
A cada crise, o pacote de medidas, propostas e implementadas para contornar seus
efeitos, era mais rígido. A crise da Rússia, terceira em menos de quatro anos, mostrou que
o “remédio” já não tinha mais o mesmo efeito. O país ainda nem havia se recuperado da
crise asiática e se viu precisando enfrentar uma nova turbulência. As desconfianças dos
especuladores aumentaram e a elevação da taxa de juros perdeu eficácia. Havia ainda um
outro elemento que garantia uma certa particularidade a esta crise: o processo eleitoral.
166

O clima de instabilidade acabou levando os governistas a traduzirem a sucessão


presidencial em uma escolha entre FHC e “o caos”. O debate sucessório, entretanto, aliado
à disputa por espaços políticos, dificultaram uma ação mais efetiva do governo no
enfrentamento à crise. Como lembra Paul Singer (1999, p. 43), “se Fernando Henrique
Cardoso não conseguia consolidar o Real, sempre atacado por especuladores de fora, Lula
e Cyro Gomes tampouco tinham conseguido conquistar sua confiança”. Ainda assim, a
insatisfação de alguns segmentos da sociedade civil e o crescimento da oposição nas
eleições estaduais, impuseram à reeleição de Fernando Henrique uma correlação de forças
bem menos favorável neste segundo mandato, apesar da vitória no primeiro turno.
Foi neste clima de instabilidade internacional e de fragilidade interna que, em
janeiro de 1999, o governo optou pela ampliação da banda cambial e, em meio às
dificuldades para garantir sua manutenção, determinou, dias depois, a alteração do regime,
tornando o câmbio flexível. Esta medida instaurou um novo momento na condução da
política econômica. A resposta, entretanto, não foi a que o governo esperava. Ao contrário,
parecia corroborar a expectativa dos analistas mais críticos, que alertavam para a
insustentabilidade da política econômica adotada.
O cenário recessivo perdurou, apesar de alguns momentos de melhora. A
preocupação em conter a inflação continuou sendo não só o grande objetivo explícito do
governo, como também a explicação determinante para o baixo índice de crescimento
econômico e o aumento crescente do desemprego. Estes resultados seriam uma espécie de
“mal necessário” a que todos deveriam se submeter, ainda que sob promessas de que o
“sacrifício” teria um caráter temporário.
A dificuldade com os níveis do crescimento econômico podem ser visualizadas no
gráfico 2, que apresenta os dados consolidados da variação do PIB durante a década de
1990:
167

Gráfico 2 – Taxa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) entre os anos 1991 e
2000 (em %)

Fonte: IBGE. Elaboração própria.

De acordo com os dados do gráfico, observamos uma taxa de crescimento do PIB


de 0,13 e 0,81% em 1998 e 1999, respectivamente. A economia voltou a dar sinais de
aumento da atividade, fechando o ano de 2000 com um crescimento de 4,36%. O gráfico
deixa clara a dificuldade com a manutenção de um ritmo de crescimento e mostra a sua
redução significativa nos primeiros anos do Plano, voltando a crescer, posteriormente, mas
sem conseguir se estabilizar.
O desaquecimento da economia voltou em 2001 – principalmente no segundo
semestre127 – reduzindo a taxa de crescimento para 1,42%. A redução no nível de atividade
em 2001 deveu-se, em parte, a duas novas crises externas, uma decorrente da explosão de
uma bolha financeira no mercado internacional, que produziu uma queda no mercado de
ações de 25% no período de maio a dezembro (IBGE, 2003, p. 182). A outra deveu-se à
crise na Argentina, em parte, um desdobramento desta primeira. A estes dois choques,
podemos somar mais um, de origem interna: o racionamento de energia elétrica. A crise de
energia, além do desgaste político que promoveu, teve impacto profundo no nível de
atividade econômica do país, contribuindo sobremaneira para a redução do PIB neste ano.
A flexibilização da taxa de câmbio e a redução do crescimento influenciaram,
significativamente, a melhora do saldo da Balança Comercial nos dois últimos anos do
governo. A desvalorização da moeda e a retração da economia estimularam as exportações

127
Taxa de crescimento no terceiro trimestre de 0,5% e de (-) 0,75% no último trimestre do ano (IBGE,
2003).
168

e comprimiram as importações, de modo que o resultado desta conta passou de um déficit


de US$ 698 milhões em 2000, para um superávit de US$ 13,126 bilhões em 2002, de
acordo com os dados do IBGE (2003).
Apesar da melhoria do resultado da Balança Comercial, um dos resultados mais
significativos da abertura econômica foi uma recomposição da base produtiva. A
intensificação da concorrência estimulou a terceirização, a importação de produtos de alta
tecnologia (contribuindo para aumentar nossa pauta de importação), o fechamento de
unidades, a fusão de empresas e dificultou a sobrevivência dos produtores domésticos, que
passaram a intensificar a estratégia de redução de custos, fundamentalmente com
trabalhadores.
O resultado foi o aumento do grau de concentração e centralização da economia,
impulsionando a entrada do país em uma nova fase do capitalismo monopolista. Uma fase
em que se aprofundam os laços de dependência, reconfigurando a base produtiva,
intensificando os fluxos financeiros, descaracterizando a concepção acumulada acerca das
políticas sociais e comprometendo o potencial combativo da classe trabalhadora.
A desarticulação do setor exportador, por exemplo, chegou a tal ponto que o
crescimento das vendas ao exterior de produtos manufaturados foi de apenas 0,3% em
2002, ao passo que a exportação de produtos básicos cresceu de US$ 12,562 bilhões para
US$ 16,952 bilhões, demonstrando um claro fortalecimento dos setores exportadores
tradicionais (IBGE, 2003) em detrimento de uma produção de bens mais elaborados, e,
portanto, com um valor agregado maior.
O avanço das privatizações também contribuiu consideravelmente para reduzir o
desempenho da produção interna. A venda das empresas estatais foi uma das grandes
responsáveis pelo aumento do investimento externo direto, fato que aponta para um
processo de desnacionalização da produção, embora concentrado em alguns setores como
as telecomunicações, e a uma perda do poder de manobra do governo na condução de suas
políticas.
Alguns dos elementos fundamentais que resultam deste processo de transferência
de propriedade, consistem na redução da demanda de peças e equipamentos utilizados na
produção e um aumento da demanda por importação destes bens. Ao mesmo tempo, o
crescimento da remessa de lucros para o exterior reduz o nível de renda que permanece no
país e contribui para dificultar o fechamento das contas nacionais.
169

Por todos os lados, a pressão para aumentar a concentração de renda e o


desemprego, reduzir o nível da atividade econômica, a deterioração das contas públicas
(com aumento das dívidas interna e externa) se fizeram sentir. O aumento da miséria, a
retração do Estado e a desarticulação do parque industrial foram alguns dos custos que a
sociedade brasileira pagou pela estabilidade de preços.
Um balanço dos anos 1990 nos permite analisar os efeitos da adoção do receituário
neoliberal – que começa no início da década e ganha força e expressão em 1994, com a
implementação do Plano Real – para o Brasil. Como procuramos demonstrar, o
desempenho econômico desta década foi menor do que o de qualquer outra do século 20,
inclusive a de 1980, conhecida como a “década perdida”.
Podemos perceber, portanto, que, apesar da relativa estabilidade dos preços, a
instabilidade econômica, articulada à queda da atividade, produziram efeitos extremamente
danosos para os níveis de emprego e renda. Qualquer que seja a metodologia adotada128, o
desemprego aumentou substancialmente. Segundo os dados do IBGE, a taxa de
desemprego passou de 6,1%, em 1994, para 15%, em 2000 (POCHMANN ; BORGES,
2002, p. 16).
Mas não foi apenas a falta de empregos que marcou a década. Outra questão
vivenciada foi a alteração na qualidade do emprego. A flexibilização das leis trabalhistas,
juntamente com a redução da oferta formal do emprego empurraram muitos trabalhadores
para o emprego temporário, parcial, em domicílio, informal, e outras tantas formas de
expressão da precariedade das condições de trabalho que ganharam força nos últimos anos
da década de 1990. Segundo Márcio Pochmann e Altamiro Borges (2002, p.51), além da
redução de postos de emprego no setor industrial, devido à substituição de produtos
nacionais por importados e à privatização e desnacionalização, “a maior parte das vagas
abertas no mercado de trabalho não foram assalariadas, mas ocupações sem remuneração,
por conta própria e empregador, enquanto os empregos assalariados que surgem são, na
sua maioria, sem registro em carteira”.

128
Existem basicamente duas pesquisas mensais de emprego no Brasil, uma realizada pelo IBGE – a
Pesquisa Mensal de Emprego (PME) – e outra realizada pelo Departamento Intersindical de Estatística e
Estudos sócio-econômicos (DIEESE) e da Fundação SEADE (Sistema Estadual de Análise de dados/SP) – a
Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED). A primeira, e mais antiga, centra-se mais nos dados sobre
emprego e seu indicador de desemprego aborda apenas o desemprego aberto. A segunda, mais recente,
considera também o desemprego oculto (tanto pelo trabalho precário quanto pelo desalento) (MATTOSO,
2001, p. 12-13).
170

Pochmann e Borges (2002, p. 62) resgatam relatórios da Organização Internacional


do Trabalho (OIT), segundo os quais “o Brasil foi um dos recordistas mundiais em
desregulamentação na década passada [1990]”. Este fato contribuiu para fragilizar e
desarticular a organização dos trabalhadores, situação esta que criou um ambiente
favorável para a intensificação destas mudanças. Um movimento de mútua influência, que
teve como resultado a piora nas condições de vida de grande parte da população.
Para termos uma ideia da contribuição que este plano de estabilização deu ao
aumento da precarização do trabalho, que cresceu de forma estrutural na década de 1990,
basta pesquisar o movimento da geração de postos de trabalho formais na segunda metade
da década. Segundo Mattoso (2001, p.18), a redução na geração destes postos ocorreu em
todos os anos deste período, apesar de termos verificado um crescimento do PIB em alguns
anos (1997 e 1999). O autor ressalta, com base nos dados do Cadastro Geral de
Empregados (CAGED), que o número de postos de trabalho formais diminuiu em 3,3
milhões na década de 1990, sendo que destes, 1,8 milhão foram eliminados ao longo da
segunda metade desta década.
Diante deste quadro, inúmeros foram os desafios para a classe trabalhadora. Dentre
eles, podemos destacar as dificuldades para mobilização e organização coletiva, tendo em
vista a crescente heterogeneidade entre os trabalhadores. Esta heterogeneidade contribui
para desagregar, não só porque estimula a competição entre eles (decorrente, por exemplo,
da existência de diferentes vínculos empregatícios em um mesmo espaço de trabalho),
como também porque impõe limites às possibilidades de atuação nas instâncias
representativas, dado que muitas delas não permitem a incorporação, em seus espaços de
discussão, de uma quantidade cada vez maior de trabalhadores – os desempregados.
Um outro desafio era o resgate do potencial combativo das organizações de
trabalhadores, já que estas centraram seus esforços mais na manutenção dos direitos
conquistados, do que na reivindicação de novos, em função do avanço da deterioração das
condições de trabalho. Sabemos que as possibilidades de construção de um projeto
alternativo esbarram nos limites próprios da preocupação primária com a garantia das
condições de reprodução da vida material129, agravadas pelos desdobramentos do processo
de estabilização monetária.

129
Não custa lembrar uma conhecida passagem de Marx e Engels em que eles destacam a importância do
homem estar vivo para poder fazer história: “Mas, para viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter
habitação, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios que
171

A reorientação da atividade estatal, marcada pela redefinição das políticas sociais,


se mostrou cada vez menos capaz de arcar com todo o ônus produzido pela política
econômica do governo. A condução desta política, assentada no aumento da dívida pública
como forma de atrair investimentos, tornou o país refém de um capital especulativo de
curto prazo. Este fato foi promovendo uma reorientação do gasto público no sentido de
priorizar o pagamento da dívida e justificar a necessidade de ajustes fiscais constantes, que
comprimiram os gastos com políticas sociais.
Assim, política econômica e a política social, por serem partes de uma unidade,
precisam ser vistas de forma articulada e combinada para serem melhor compreendidas.
Tanto a complexificação das expressões da questão social, quanto sua forma de
enfrentamento, impõem a necessidade de entendermos as mudanças que estão postas no
campo da produção, bem como a correlação de forças que se estabelece a partir do
enfrentamento entre os sujeitos coletivos que nela operam.
Esta relação tem como uma de suas expressões, no que diz respeito ao período que
estamos estudando, no caminho encontrado pelo governo para dar conta dos “efeitos
indesejáveis”, frutos das medidas econômicas adotadas. As estratégias de enfrentamento
pautaram-se no desenvolvimento e fortalecimento de políticas sociais não somente
fragmentadas, focalizadas e pontuais, como também cada vez mais privatizadas,
mercantilizadas e monetarizadas, funcionando como um espaço importante de
rentabilidade capitalista, como discutimos no primeiro capítulo. Tratou-se de um
direcionamento na contra-mão das garantias constitucionais duramente conquistadas no
final dos anos 1980. Políticas que, pelo caráter emergencial – por mais que tenham sua
carga de contribuição – não atuam de forma estrutural na distribuição da riqueza social,
centrando esforços em ações paliativas e temporárias.
Do ponto de vista ideológico, a responsabilização do indivíduo e o apelo ao
voluntariado e à “solidariedade”, adquiriram uma indiscutível funcionalidade neste
sistema. Isto se dá à medida que deslocam o foco da “questão social”, dificultando uma
discussão mais profunda das determinações que permeiam a essência das desigualdades
sociais, das quais a estrutura de classes e a exploração são os elementos fundamentais.
Trata-se, portanto, de procurar, na “falta de competência individual” ou na “pouca

permitam a satisfação destas necessidades, a produção da própria vida material, e de fato este é um ato
histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, como há milhares de anos, deve ser
cumprido todos os dias e todas as horas, simplesmente para manter os homens vivos” ([1846] 1999, p. 39).
172

disposição ao trabalho”, as “razões” para explicar as péssimas condições de vida


enfrentadas por muitos brasileiros. Condições estas que têm suas raízes em aspectos, tanto
estruturais quanto conjunturais, como procuramos demonstrar. Nas palavras de Netto:

A análise de conjunto que Marx oferece n’O capital revela, luminosamente, que
a “questão social” está elementarmente determinada pelo traço próprio e peculiar
da relação capital/trabalho – a exploração. A exploração, todavia, apenas remete
à determinação molecular da “questão social”; na sua integralidade, longe de
qualquer unicausalidade, ela implica a intercorrência mediada de componentes
históricos, políticos, culturais etc. Sem ferir de morte os dispositivos
exploradores do regime do capital, toda a luta contra as suas manifestações
sócio-políticas e humanas (precisamente o que se designa por “questão social”)
está condenada a enfrentar sintomas, consequências e efeitos (2001, p.45-46).

A Constituição de 1988, mesmo não alterando as bases da produção e reprodução


da riqueza capitalista, possui um caráter distributivo em virtude do tratamento que deu às
políticas sociais e às recomendações para a estrutura tributária do país 130. A dificuldade em
aprovar a legislação complementar, necessária para dar efetividade a algumas de suas
recomendações, bem como as Emendas Constitucionais (EC) aprovadas e um sem número
de Medidas Provisórias (MP) editadas, contribuíram significativamente para limitar o
potencial redistributivo do texto constitucional. Este fato, aliado aos cortes no orçamento
para a efetivação destas políticas, promoveu efeitos danosos à sua implementação,
agravados por um cenário em que as decisões de política econômica ampliavam as
necessidades de proteção social.
Neste contexto de busca por amenizar os efeitos da desigualdade, sem promover
uma melhor distribuição da renda e da riqueza, cresceu de forma significativa a atuação do
“terceiro setor”131, de onde destacamos a participação das Organizações Não-
Governamentais (ONGs)132 na sociedade brasileira. A proposta deste “setor” é a de
promover uma organização da chamada “sociedade civil” e suprir as lacunas deixadas pelo
setor público, tendo em vista uma suposta incapacidade do Estado de atuar na promoção de

130
Discutiremos as orientações constitucionais para a tributação no próximo capítulo.
131
“O intitulado ‘terceiro setor’ alimenta-se da opinião, mais ou menos notória, da necessidade de aprimorar
a gestão da política social. Nele se buscam resultados, participação, eficiência, eficácia nos programas
sociais, por intermédio da atuação conjunta do Estado e de ‘setores’ da sociedade. Com o ‘terceiro setor’,
retomam-se as antigas práticas da filantropia e do voluntariado, agora com trajes empresariais, decretando um
novo mundo, livre de antagonismos e de conflitos entre classes sociais, mesmo com a injustiça, a
desigualdade e a miséria que nos olham” (VIEIRA, 2004, p. 112-113).
132
Para uma discussão mais aprofundada sobre o terceiro setor, ver Montaño (2002).
173

políticas sociais que contribuam para uma efetiva redução das desigualdades. Privatiza-se,
deste modo, boa parte da política de assistência, chegando a descaracterizá-la como uma
política de Estado.
Os desdobramentos da atuação das ONGs constituem, fundamentalmente, no
reforço à fragmentação das políticas sociais – na medida em que servem, inclusive, como
instrumentos da intervenção estatal, ainda que atuando de forma desorganizada e
descontínua – e de descaracterização dos movimentos sociais – pela institucionalização de
muitos destes movimentos e adoção de uma postura voltada para a negociação em
detrimento de um caráter reivindicatório, tendo em vista a perda de sua autonomia via
dependência dos financiamentos133 para garantir sua operacionalização.
Atuando conjuntamente com as ONGs nas expressões da questão social, temos
também nesta década o crescimento do apelo ao voluntariado e à responsabilidade
social134. Netto resgata, já no primeiro ano do mandato de FHC, a constituição do Grupo de
Institutos, Fundações e Empresas (GIFE), composto por empresas como o Banco Itaú,
Unibanco e IBM, voltado para a promoção de “atividades comunitário-assistenciais a partir
do que chamam de cidadania empresarial” (1999, p. 88, grifo do autor). Assim, toda a
sociedade, desde indivíduos até as empresas, é conclamada a “fazer a sua parte” e
contribuir para “melhorar o país”. Esta forma – despolitizada e individualizada – de
atuação se contrapôs ao clima de organização coletiva vivenciado na década anterior e
apontou uma alternativa de (i)mobilização, que contribuiu para adequar a classe
trabalhadora aos “novos tempos”135.
As mudanças, sumariamente elencadas acima, fazem parte de um processo de
recomposição da ordem burguesa e convergem na direção de uma reconfiguração do
Estado brasileiro, caracterizada por alguns autores como uma contrarreforma 136, como

133
Estes financiadores, a exemplo do FMI e do Banco Mundial, passam a não apenas controlar, como
também, direcionar politicamente, de acordo com seus interesses, a ação destas ONGs.
134
Programas como Amigos da Escola (projeto criado em 1999 pela Rede Globo, no qual ela atua em
parceria com: o Instituto Faça Parte [o nome já é bem elucidativo], o Fundo das Nações Unidas para a
Infância (UNICEF), o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Educação (CONSED) e a União
Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME)) e o Criança Esperança, promovido pela Rede
Globo em parceria com a UNICEF.
135
Para análise da intervenção social do empresariado por meio da “responsabilidade social” e da “empresa
cidadã”, ver Cesar (2008).
136
Esta interpretação, entretanto, não é consensual. A controvérsia que aponta para a caracterização do
neoliberalismo como revolução passiva ou contrarreforma foi analisada por Castelo (2012).
174

Coutinho (2010) e Behring (2003). Para o autor, este termo seria mais adequado do que o
de revolução passiva, dado que tratam-se de mudanças que estariam longe das concessões
incorporadas no bojo das alterações que marcam o período varguista, ou mesmo da
ditadura militar. A grande marca do período atual seria muito mais a retirada de direitos do
que a concessão de novos137. Behring segue um caminho diferente e fundamenta a
caracterização deste processo por meio do debate da modernização conservadora que
marca nosso processo de formação. Articulando elementos políticos e econômicos à
análise, a autora destaca que a particularidade das mudanças na década de 1990 consiste no
fato de que estas não promoveram o “salto para adiante”, que possibilitaria um espaço para
efetivas reformas, como aconteceu em outros momentos de nossa história138.
É, portanto, neste sentido de retrocesso que as, tão mencionadas, “reformas” foram
discutidas ao longo do Governo Fernando Henrique Cardoso. Apesar disso, seus principais
pontos foram sempre apresentados pelo governo como indispensáveis para a retomada do
crescimento e para a consolidação do processo de estabilização monetária. Ao contrário do
que o governo afirmava, o crescimento econômico não voltou e as relações de trabalho, a
Previdência Social e outros tantos pontos das “reformas” foram traduzidos em perdas de
direitos e redução das possibilidades de uma luta de contestação ao capital.
Em resumo, os encaminhamentos da política econômica conduziram a um
estrangulamento das possibilidades de crescimento, um aumento da vulnerabilidade

137
“Não creio que se possa encontrar no que chamei (de modo um pouco simplista) de ‘época neoliberal’
essa restauração-revolução que caracteriza as revoluções passivas. [...] As chamadas reformas [...] têm por
objetivo a pura e simples restauração das condições próprias de um capitalismo ‘selvagem’, no qual devem
vigorar sem freios as leis do mercado. [...] É por isso que me parece mais adequado, para uma descrição dos
traços essenciais da época contemporânea, utilizar não o conceito de revolução passiva, mas sim o de
contrarreforma” (COUTINHO, 2010, p. 37, grifos do autor). Além disso, ao contrário do que acontece no
caso de uma revolução passiva, “a contrarreforma neoliberal não tem como pano de fundo nenhuma questão
da grande política [...], não está em jogo nenhuma opção entre diferentes modelos de sociedade. Podemos
assim, dizer que, na era da contrarreforma neoliberal, predomina sem grandes contrastes a hegemonia da
pequena política” (COUTINHO, 2010, p. 40).
138
As mudanças que caracterizam o neoliberalismo, “embora mantenha elementos em comum com períodos
históricos anteriores, a exemplo do conservadorismo político na condução dos processos decisórios e do
patrimonialismo, é muito diferente daqueles ‘saltos para adiante’, modernizações conservadoras ou processos
de revolução passiva e ‘pelo alto’ que engendraram a industrialização e a urbanização brasileiras,
acompanhados da formação de um mercado interno significativo, embora sempre estreito em relação às
possibilidades. Diferença que reside no fato de que se tratou de um salto para trás, sem o sentido da
ampliação das possibilidades de autonomia ou de inclusão de segmentos no circuito ‘moderno’, diferente das
transformações estruturais anteriores, apesar dos limites também destas últimas. Este retrocesso é o que se
configura uma contrarreforma, por meio da qual houve quebra de condições historicamente construídas de
efetivas reformas, dentro de um processo amplo de profundas transformações (BEHRING, 2003, p. 282).
175

externa e a uma reconfiguração do Estado. Articulado a estas questões, tivemos um


aumento da fragilidade dos movimentos sociais, o que levou a uma incapacidade de
contraposição efetiva às medidas adotadas, a um avanço da financeirização, da
privatização e desarticulação da estrutura produtiva nacional e das políticas sociais,
reforçando o enfraquecimento do potencial combativo dos movimentos sociais por meio da
deterioração das condições de vida.

2.3.2 As alterações na estrutura produtiva e sua relação com as finanças

Ainda que o Plano Real tenha como mérito uma certa capacidade inventiva no que
diz respeito ao processo de estabilização monetária, as medidas tomadas em seu nome não
tiveram nada de muito original. Ao contrário, elas se encontram no bojo de uma
reorganização do capitalismo mundial, que trouxe consigo um aumento na flexibilidade
das bases de acumulação.
A perseguição dos capitalistas por aumentar o controle sobre as etapas da produção
e recompor suas margens de lucratividade os levou a uma ofensiva em dois sentidos
fundamentais. Em primeiro lugar, no que diz respeito à base produtiva, foi preciso romper
com a rigidez que marca o período fordista e flexibilizar o processo de produção de
mercadorias fazendo uso de novas tecnologias, descentralizando a produção,
desterritorializando, desregulamentando as formas de contratação, ampliando a
terceirização e repassando para a classe trabalhadora o ônus das descontinuidades que
marcam a produção neste período.
Em segundo lugar, foi preciso avançar sobre espaços até então menos aproveitados
pela rentabilidade capitalista, industrializando esferas que funcionavam mais como uma
base de apoio para a trajetória da acumulação no âmbito da produção-circulação-consumo
das mercadorias. O crescimento e complexificação do setor de serviços, das finanças e da
privatização das políticas sociais se apresentam como marcas deste novo momento do
capitalismo, impondo mudanças não apenas quantitativas, mas também qualitativas para o
desenvolvimento do sistema, que tem na ampliação das fronteiras de acumulação as
possibilidades de ganhar um novo fôlego.
A concentração e centralização do capital, acentuadas em períodos de crise,
fortalecem o capital financeiro – forma de ser do capital mais afeita a flexibilidade, dado
176

que, ao ampliar as possibilidades de apropriação da mais valia, permite aproveitar melhor


as possibilidades de ganho onde quer que estejam (produção, finanças, serviços etc) – e
dão, paradoxalmente, uma aparência mais difusa a um movimento que, na verdade, conduz
o poder para um número cada vez menor de mãos.
A reconfiguração do Estado e o reestabelecimento das relações de dominação e
dependência entre os países são algumas das principais formas de implementar este novo
estágio e de garantir as condições para que as alterações se aprofundem. Os contornos que
estas assumem variam de região para região, mas é fato que o seu enquadramento foi se
tornando um imperativo, caracterizado por vezes como inescapável.
No Brasil, a aceitação subordinada a este padrão de acumulação, em que pese ter
encontrado resistência nos anos 1980, ganhou ares de uma modernização que deveria ser
encampada por toda a sociedade nos anos 1990. Mais do que grandes mudanças, o início
desta década é marcada pela força do discurso neoliberal e pela passagem das grandes
empresas estatais de “paladinas do progresso” a “vilãs do atraso” – para usarmos o
maniqueísmo típico de nossa formação sócio-cultural.
Mas não foi somente a luta social ou a crise no regime burguês que adiou a chegada
em terras brasileiras da “boa nova”. O ambiente de incertezas, fruto das altas taxas de
inflação, é muito pouco atrativo para o capital, em especial o rentista. A liberdade de ir e
vir ao sabor dos interesses especulativos passa por algo mais do que a liberalização do
fluxo de capitais. Como indica Paulani ([2005] 2008, p. 133), no período de alta
inflacionária, “complicava-se sobremaneira o cálculo financeiro que comanda a arbitragem
com moedas e a especulação visando ganhos em moeda forte (a taxa de câmbio e a taxa
real de juros sofrem contínuas oscilações)”. Além disso, a inflação alta tinha efeitos sobre
o gasto público e impunha dificuldades para se usar a dívida pública como extração de
renda real. “A dificuldade em perceber a exata dimensão dos gastos públicos não parecia
uma boa credencial para um país disposto a entrar no circuito mundial de valorização
financeira” (PAULANI ; PATO, 2008, p. 94).
Não é a toa que neste período ganham força as imposições dos organismos
multilaterais no sentido de criar mecanismos para a estabilização monetária dos países
dependentes, em especial na América Latina. A nova dinâmica tornava um imperativo a
luta contra a inflação para viabilizar a emergência de novas praças de ganhos financeiros.
Eis porque é somente na segunda metade da década que teremos um verdadeiro aumento
177

nos fluxos deste capital rentista, que já vinha crescendo – principalmente nos países de
capitalismo avançado – desde o início dos anos 1970.
Isto não significa que o processo de abertura tenha começado neste período. Como
aponta Braga (2006), desde o final dos anos 1980 ele já vinha acontecendo. Em um
primeiro momento, de 1987 até 1993, mais voltado para o mercado de capitais por meio,
dentre outras coisas, da aquisição de ações e debêntures de empresas brasileiras por não
residentes. Podemos dizer que buscou-se facilitar as inward transactions, ou seja, “a
entrada de não residentes no mercado financeiro doméstico e captação de recursos externos
pelos residentes” e, embora em menor intensidade, as outward transactions, que consistem
na “saída de capitais pelos residentes e endividamento de não-residentes no mercado
financeiro doméstico” (BRAGA, 2006, p. 99). Tentando simplificar a linguagem, a
abertura econômica no Brasil consistiu em dois momentos: a liberalização da entrada e da
saída de capitais139, sendo a primeira mais estimulada no momento inicial da abertura e a
segunda intensificada em um momento posterior.
É neste período que começam a aparecer, por dentro dos grupos industriais
nacionais, a presença de instituições financeiras (bancárias e não bancárias). Para Miranda
e Tavares (1999, p. 336) “a extinção da carta-patente-instrumento de autorização da
abertura e funcionamento de novas instituições financeiras pelo governo federal em 1988
constitui um dos incentivos para os grupos nacionais abrirem financeiras e bancos
próprios”140. Neste mesmo ano, foi autorizada pelo Banco Central a formação de bancos
múltiplos, o que para os autores significou apenas a formalização da existência destes, que
já se dava desde os anos 1970.
Ainda neste período, Paulani ([2004] 2008, p. 41-42) destaca a mudança nas contas
CC5141, em 1992, que facilitaram a saída de recursos do país. Para a autora, “esta resolução
passou não apenas pela securitização da dívida externa, como pela abertura do mercado

139
Existe ainda um terceiro nível de abertura que consiste na “conversibilidade interna da moeda, ou seja, a
permissão de transações em (ou denominadas em) moeda estrangeira no espaço nacional, como depósitos no
sistema bancário doméstico e emissão de títulos indexados à variação cambial” (BRAGA, 2006, p. 99). Mas
não chegamos a este nível no país.
140
“Em 1989, iniciaram as atividades do Banco Fibra como banco múltiplo do grupo Vicunha. Nos anos
1990, foram constituídos o Banco ABC Roma da Globopar, o Banco Votorantim e os da Fiat e WV”
(MIRANDA ; TAVARES, 1999, p. 336).
141
“Contas exclusivas para não residentes, que permitem a livre disposição de recursos em divisas”
(PAULANI, [2004] 2008, p.41).
178

brasileiro de títulos privados e públicos” ([2005] 2008, p. 134). Resultado disso é a


possibilidade de fuga, praticamente sem restrições, de capitais nos momentos de crise.
Uma outra mudança destacada pela autora (e já mencionada no início desta seção)
aconteceu em 1998 e em 2003. Tratam-se das contrarreformas da Previdência Social. O
destaque se deve ao fato de que elas contribuíram para aquecer o mercado de planos
privados de Previdência, fato que põe um volume significativo de recursos a serviço do
capital portador de juros. Ao contrário da Previdência Pública, que funciona sob o regime
de repartição simples e, portanto, da solidariedade intergeracional, a Previdência Privada é
ditada pelo regime de capitalização. Uma lógica que individualiza a geração do benefício –
dado que este é baseado na capacidade de contribuição – e disponibiliza os recursos das
contribuições para aplicação financeira em renda fixa (títulos da dívida) ou variável (ações
de empresas), como forma de “fazer render” os recursos imobilizados.
A perversidade desta mudança está no fato de que, enquanto a primeira depende do
nível de emprego e de renda – já que são as contribuições dos trabalhadores ativos que
pagam os benefícios dos inativos – a segunda aposta nas altas taxas de juros dos títulos da
dívida e da ampliação da extração de mais valia, presente e futura, que alimenta o mercado
acionário. Abre-se, com isso, uma nova frente de rentabilidade financeira, transformando
recursos dos salários em um agente impulsionador da financeirização. Em outras palavras,
o trabalho necessário é utilizado para viabilizar uma extração ainda maior do trabalho
excedente, o que significa dizer que recursos da classe trabalhadora estão servindo
diretamente para aumentar a exploração da própria classe (GRANEMANN, 2006).
Mas a liberalização financeira passa também pela necessidade de dar garantia aos
credores de que, mesmo em uma situação de turbulência, não haverá calote. Esta
preocupação refere-se principalmente ao Estado que, ao contrair um passivo crescente,
poderia entrar em colapso. Neste sentido, foram tomadas algumas providências para deixar
clara aos investidores institucionais a disponibilidade do governo em honrar os
compromissos assumidos com a dívida pública. A criação do Fundo Social de Emergência
(hoje chamado de Desvinculação de Receitas da União), em 1994, as metas de superávit
primário, frutos de um acordo com o FMI em 1998, e a Lei de Responsabilidade Fiscal
(LRF) de 2000142, são alguns dos principais mecanismos voltados para explicitar a

142
Discutiremos em detalhes estes mecanismos no próximo capítulo.
179

priorização no pagamento da dívida, mesmo que isto envolva sacrificar recursos destinados
para outros fins, como as políticas sociais, por exemplo.
De uma maneira geral, podemos dizer que as mudanças elencadas têm
desdobramentos significativos sobre a base produtiva no país. Como procuramos
demonstrar, a abertura comercial e financeira desarticulou o parque industrial brasileiro,
promovendo uma reorganização que passou também por um amplo processo de
privatização das empresas estatais como forma de atrair investimentos externos e aumentar
a competitividade.
Miranda e Tavares (1999), ao fazerem uma cuidadosa análise da constituição dos
grandes conglomerados industriais e financeiros no Brasil, desde 1930 até o final dos anos
1990, traçam algumas linhas gerais do processo que consideramos oportuno destacar. A
preocupação dos autores é compreender o caráter patrimonialista e rentista da atuação das
empresas no Brasil e o sentido da rearticulação patrimonial em curso nos anos 1990.
Até os anos 1980 não havia uma articulação definida entre os grandes grupos
industriais e os bancários nacionais. Em sua argumentação, os autores destacam o papel do
financiamento público na formação destes grupos e o seu caráter familiar. Mesmo com a
constituição do mercado de capitais nos anos 1960, estes abrem o capital de suas empresas
como forma de absorver as vantagens trazidas por este modelo de relação de propriedade,
mas seguem funcionando como “sociedades limitadas” (1999, p. 341), mantendo o
controle da empresa no seio da família. A concentração bancária, por outro lado, permitiu
ampliar a escala de atuação de alguns bancos, que até então limitavam-se a uma
intervenção local ou regional, mas estes seguiam com uma postura conservadora de
diversificação143 dos investimentos.
Mesmo com a abertura comercial e a liberalização financeira, o que os autores
observaram foi a existência de um limite às possibilidades de diversificação dos negócios
dos grandes grupos industriais, levando-os a buscar a especialização produtiva, em muitos
casos, voltadas para as commodities. Além disso, a adoção do regime de câmbio flutuante e
a desvalorização cambial comprometeram o rendimento de alguns grandes grupos
endividados em dólar.

143
Algumas atuações são, entretanto, dignas de nota. O Bradesco (maior banco privado nacional no período)
chegou a “adquirir participações acionárias minoritárias em algumas empresas brasileiras nos anos 1980
somente por razões patrimonialistas. Nessa estratégia geral do capital bancário privado, diferenciou-se o
Banco Itaú, que operou pioneiramente como banco de negócios na articulação de interesses
industriais/bancários” (MIRANDA ; TAVARES, 1999, p. 335).
180

Entretanto, o processo de privatização funcionou como uma tentativa de intensificar


a concentração e fortalecer ou estimular a constituição de novos grupos nacionais e sua
articulação com o capital internacional. Mais uma vez, constata-se a participação do Estado
não somente na (des)regulamentação, como também por meio de uma intervenção mais
incisiva. Na opinião dos autores, “pela primeira vez o Estado tenta articular ‘por dentro’
(do processo de privatização) a associação orgânica entre o grande capital nacional,
empresas e bancos estrangeiros” (MIRANDA ; TAVARES, 1999, p. 339). Sua atuação se
deu em grande parte pelo BNDESPar, sociedade gestora das participações do BNDES, e
por meio da intermediação de empréstimos internos e externos pelo BNDES aos grupos
nacionais. Os autores, ao escreverem em 1999, deixam em aberto as possibilidades em
relação a renegociações futuras. De fato, a consolidação deste rearranjo só acontece nas
décadas seguintes.
Consideramos importante, entretanto, discutir melhor a participação do Estado e
seu reposicionamento por meio das alterações na base produtiva vivenciadas a partir dos
anos 1990. O processo de privatizações levou muitos estudiosos a decretarem o fim do
papel intervencionista do Estado, fundamentados na análise de que este teria aberto mão de
sua função de “empresário” para abrir espaço à iniciativa privada. Chegaram até a
constatar que vigoraria hoje um Estado “mínimo”, com reduzida capacidade de influenciar
a atividade produtiva, assumindo tarefas mais ligadas à regulação desta.
Ao que parece, os estudos mais empíricos da forma de atuação e composição
acionária de muitas das empresas que atuam hoje no processo produtivo refutam esta
análise e atestam a importância que o Estado segue tendo na participação de atividades
produtivas de alguns setores estratégicos (ver, PINTO, 2010; LAZZARINI, 2011;
ROCHA, 2013). Isto não significa que não tenha ocorrido alterações na forma como esta
participação acontece, mas aponta para a necessidade de mais estudos que contribuam para
entender o sentido da recomposição da base produtiva fruto da abertura econômica,
liberalização financeira e das privatizações. Em outras palavras, a complexidade das
mudanças exige uma cuidadosa investigação que supere a aparência dos fenômenos
experimentados nas últimas décadas.
181

Em primeiro lugar, é importante lembrar que principalmente na primeira fase do


processo de privatização, que vai de 1990 a 1994144, era possível utilizar os títulos contra o
governo acumulados ao longo dos anos 1980 – os quais ficaram popularmente conhecidos
como “moedas podres”. Este foi um incentivo a mais à participação dos grupos
econômicos e do setor financeiro nacional, mas promoveu também algumas distorções,
dado que levou a uma “corrida pelos ativos postos a venda que muitas vezes possuía uma
lógica mais especulativa do que estratégica” (ROCHA ; SILVEIRA, 2009). Em outras
palavras, principalmente no caso de parte das instituições financeiras, a intenção era mais
buscar o ganho de capital por meio da utilização das moedas da privatização do que
propriamente ampliar sua área de atuação, o que levou a saída destas num momento
posterior.
Foram também incentivadas as participações dos fundos de pensão, com o
argumento de democratizar o acesso às empresas. Sob este aspecto, devemos ressaltar um
outro elemento extremamente contraditório: os principais fundos de pensão eram, e são
ainda hoje, vinculados aos trabalhadores do setor público e geridos por trabalhadores, com
certo grau de influência do Estado. Apesar de serem privados, estes fundos funcionam
como uma boa expressão do que Lenin ([1917] 2012, p. 69) chamou de “união pessoal”
com o governo. Para ele, “a ‘união pessoal’ dos bancos com a indústria completa-se com a
‘união pessoal’ de umas e outras sociedades com o governo”145. O fato é que atuam como
capital buscando, na valorização dos ativos que detêm, a rentabilidade requerida para arcar
com os compromissos previdenciários assumidos. Deste modo, os fundos de pensão estão
no que Chesnais chamou de “primeira linha das instituições financeiras não bancárias”
(2004, p. 51), dado o volume que movimentam e a capacidade de transformá-lo em capital.
Deste modo, se considerarmos os tipos de moedas utilizadas no processo de
privatização das empresas no período, veremos que apenas 19% do valor arrecadado foi
pago em moeda corrente. O restante foi pago sob a forma de títulos. Quanto ao perfil dos
compradores, podemos dizer que as instituições financeiras e os fundos de pensão, juntos,

144
Este primeira fase foi centrada na indústria de transformação, em especial siderúrgico e petroquímico,
com destaque para as siderúrgicas Aços Finos de Minas Gerais (Açominas-MG), Companhia Siderúrgica
Paulista (Cosipa-SP) e a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN-RJ) (BNDES, 2002b).

145
“Embora seja através de posições negociadas, os fundos de pensão – via as centrais sindicais – estão
inseridos dentro do aparelho institucional que o Estado brasileiro consegue manejar; sendo que no caso dos
fundos de pensão de empresas públicas, de fato, o poder executivo tem capacidade de nomeação dos
conselheiros das empresas fechadas de previdência complementar através das empresas estatais” (ROCHA,
2013, p. 75).
182

foram os responsáveis pelo desembolso de 40% do total do valor pago pelas empresas,
US$ 3.393 milhões, a maior parte no setor de siderurgia (BNDES, 2002a).
Soma-se a estas características uma outra que é a baixa participação do investidor
estrangeiro nesta primeira fase, ficando este com apenas 5% do total da receita de vendas
(BNDES, 2002a). Rocha (2013) destaca o fato de estarem acontecendo, neste mesmo
período, processos semelhantes no restante da América Latina e no leste da Europa, além
da expansão do mercado asiático, o que contribuiria para explicar a baixa participação
externa.
A segunda etapa do processo de privatizações concentrou-se no setor de serviços
públicos, indústria extrativa e infraestrutura. Esta fase é marcada pelo fim da distinção
entre empresa nacional e estrangeira, o que contribuiu para o aumento da participação do
capital externo, pela transferência do controle de concessionárias – nas áreas de transporte,
rodovias, saneamento, portos e comunicações – ao setor privado e pela quebra de
monopólios públicos.
Do ponto de vista do valor arrecadado, os setores que merecem maior destaque
foram o elétrico e de telecomunicações. Juntos, eles somaram 66% das privatizações, tendo
movimentado um volume de US$ 52,049 bilhões, sem levar em consideração as dívidas
transferidas. O terceiro setor em volume de vendas foi o financeiro, com a arrecadação de
mais de US$ 6 bilhões. As empresas e o setor financeiro nacionais tiveram sua participação
relativa consideravelmente reduzida neste período, representando apenas 26% e 7%,
respectivamente, do total de compradores (BNDES, 2002b). Podemos observar, entretanto,
que a participação dos investidores externos se concentrou muito no setor de
telecomunicações e em parte no de energia. Nos demais setores, foi intensa a participação
dos grupos econômicos nacionais, refutando as teses de uma total desnacionalização do
parque produtivo.
O período posterior às privatizações foi marcado por uma significativa
reestruturação. Foi um processo de reacomodação, que Paulani (2008) chamou de “dança
dos capitais” e somente se consolidou na década seguinte. Como aponta Rocha (2013),
além da já mencionada saída de parte das instituições financeiras, pode-se identificar a
busca destes ativos renegociados (em função da saída das instituições financeiras) pelos
grupos econômicos nacionais e uma renegociação de posições entre estes, possibilitando
uma nova rodada de fusões, aquisições e descruzamentos acionários, no sentido de uma
verticalização. Isto porque a tentativa de diversificação das atividades foi frustrada no final
183

da década, dados os problemas de financiamento decorrentes da sobrevalorização cambial.


Este fato contribuiu para a decisão de concentrar as atividades em ramos de atuação
específicos e entre um pequeno grupo do grande capital nacional. No setor privado, Rocha
(2013, p. 165) resgata que as associações envolveram principalmente os grupos de atuação
na construção civil e engenharia e os de máquinas e equipamentos.
“O prosseguimento deste processo de associação entre blocos de capital no interior
do mercado acionário resultou no crescente entrelaçamento dos grupos econômicos
nacionais, empresas estatais e fundos sindicais de pensão” (ROCHA, 2013, p. 52). Trata-se
de uma movimentação fruto da necessidade de capitalização requerida pelos processos de
concentração e centralização do capital e que aconteceu com a ativa participação do fundo
público, dadas as limitadas possibilidades dos grupos econômicos nacionais atuarem sem
esta intervenção do Estado.
Deste modo, uma avaliação geral do processo de privatizações nos permite dizer
que houve uma contribuição para alavancar o estoque de ativos financeiros (ações,
debêntures, títulos da dívida, tanto pública quanto privada e etc.) 146. O gráfico 3 mostra o
aumento no valor das empresas listadas na Bolsa de Valores de São Paulo da segunda
metade da década de 1990 até 2011.

146
“[...] O valor capitalizado pela Bolsa de Valores subiu de forma considerável, levando a Bovespa a ocupar
a décima posição entre as bolsas mundiais (terceira maior entre os ‘emergentes’) em volume de capitalização
no mercado. O que fornece uma dimensão qualitativa do crescimento dos fundos envolvidos no mercado
acionário brasileiro” (ROCHA, 2013, p. 72).
184

Gráfico 3 - Valor das empresas listadas na Bolsa de Valores de São Paulo em US$
bilhões (1995/2011)

Fonte: BM&FBovespa (apud ROCHA, 2013, p. 73).

Como podemos ver, o valor sobe de forma bastante intensa a partir de 2003, sofre
uma brusca redução em função da crise de 2008/2009 e retoma o crescimento desde então.
Estes dados apontam para a consolidação do processo que se inicia nos anos 1990, mas que
seguia se alterando no momento posterior às privatizações, ganhando um incentivo no
aumento da participação dos fundos de pensão e na mudança de postura do BNDES, a
partir do governo Lula. Para Rocha (2013, p. 74), estes “tornaram-se atores chave no
processo de reestruturação dos grupos econômicos e estão entre os principais sócios dos
grupos que apresentaram maior crescimento patrimonial”.
O gráfico 4 demonstra a evolução dos ativos financeiros das empresas de
Previdência Complementar fechada durante os dois primeiros governos do Partido dos
Trabalhadores.
185

Gráfico 4 - Evolução dos ativos financeiros das empresas fechadas de previdência


complementar por setor instituidor em R$ milhões (2003/2010)

Fonte: MPS/Dataprev (apud ROCHA, 2013, p. 75).

Como é possível observar, a curva é também ascendente, não sofrendo redução nem
mesmo no auge da crise, diferentemente do que indicamos a respeito do valor das
empresas de capital aberto. Este fato aponta para o fortalecimento dos fundos de
previdência privada, o que aumenta sua importância, capacidade de influência e articulação
com as empresas do setor produtivo. Sabemos que boa parte destes ativos são títulos da
dívida privada, mas pode-se observar uma tendência ao aumento da procura por ações de
empresas, principalmente na área de infraestrutura.
Os fundos de pensão da Petrobras (Petros), do Banco do Brasil (Previ) e da Caixa
Econômica Federal (Funcef), controlavam, em conjunto, US$ 131 bilhões, em 2012.
Segundo informações de José de Souza Mendonça, presidente da Associação Brasileira de
Previdência Privada (Abrapp), divulgadas pela revista Exame no final de 2012147, estes
fundos “estão comprando fatias de até 25 por cento em empresas que atuam na construção
de hidrelétricas, estradas, linhas de transmissão e aeroportos”. Para Mendonça, “em vez de
especular no mercado acionário, os grandes fundos estão participando diretamente nas
empresas”. As razões estão em parte na queda da taxa de juros, bem como nas expectativas

147
Disponível em: http://exame.abril.com.br/mercados/noticias/fundos-de-pensao-investem-em-
infraestrutura. Acesso em: 02/03/2013.
186

de lucratividade futura destas empresas, em virtude dos Mega-eventos esportivos que estão
aquecendo estes setores, mas caminham no mesmo sentido já sinalizado desde os primeiros
anos deste século.
Sendo assim, este período de acomodação permitiu a consolidação das posições de
instituições financeiras como fundos de investimento e pensão e das companhias holdings
(formação típica das empresas em seus conglomerados), e apresenta, em geral, um
significativo aumento da vinculação entre o grande capital produtivo e instituições
financeiras148. Cumpre destacar, entretanto, que este comportamento parece estar muito
mais relacionado às instituições financeiras do Estado ou a algum grau de vinculação a
este, do que às privadas.
Segue, deste modo, forte a presença do Estado, constituindo-se como um terceiro
elemento. Nesta intrincada rede de articulações entre diferentes frações da burguesia
(produtiva e rentista) e o Estado, diluem-se parcialmente as diferenças entre estes três
segmentos. Mantém-se, apesar disso, a influência direta do poder executivo sobre o
processo de tomada de decisões, em especial nos governos do Partido dos Trabalhadores,
principalmente por meio do BNDESPar e da sua relação com os gestores dos fundos de
pensão. Tem-se também, mesmo que em boa parte proprietários minoritários de ações, a
participação do capital estrangeiro em diversos setores de atuação do grande capital
nacional.
Para termos uma ideia da importância da atuação do BNDESPar:

Em menos de uma década o valor do ativo em títulos imobiliários do BNDESPar


passou de pouco menos de 5 bilhões de reais, em 2003, para quase 105 bilhões
em 2010. Além de aumentar sua capacidade de se financiar diretamente no
mercado de títulos via emissão de debêntures, o BNDESPar contou com o
incremento significativo de seu capital social através do processo de
capitalização do BNDES pelo Tesouro Nacional, cujo valor dos repasses
passaram de cerca de 14 bilhões em 2003, para o valor de aproximadamente 320
bilhões em 2012. O volume de recursos possibilitou o banco de desenvolvimento
atuar ativamente no financiamento das estratégias de consolidação setorial de
algumas grandes empresas brasileiras (ROCHA, 2013, p. 78).

148
O site da campanha Quem são os proprietários do Brasil? (www.proprietáriosdobrasil.org.br) elaborou um
ranking dos proprietários do Brasil, além de ter desenvolvido uma metodologia que nos permite visualizar o
controle acionário das empresas, desnudando uma intrincada rede de propriedade que envolve empresas
nacionais, estrangeiras e o Estado. A campanha é organizada pelo Instituto Mais Democracia e a cooperativa
Educação, Informação e Tecnologia para a Autogestão (EITA).
187

Estes dados demonstram como, mesmo após as privatizações, houve uma postura
ativa do Estado no sentido de fortalecer a atuação dos grandes grupos nacionais,
rearticulando a base produtiva e estimulando processos de concentração e centralização
capitalistas. Este fato nos faz lembrar a já mencionada dificuldade em se especificar
quando uma empresa é claramente estatal, privada nacional ou estrangeira. Como sinalizou
Ianni (1981) em seus estudos sobre a acumulação capitalista no período da ditadura civil-
militar, mesmo com muito estudo, estabelecer estes vínculos é um desafio. Acreditamos
que, na atualidade, esta dificuldade é ainda maior dado que muitas empresas, mesmo não
sendo mais formalmente estatais, seguem sob influência do Estado, embora de maneira
diversa.
Assim, o capital financeiro no Brasil se forma endogenamente de uma maneira,
digamos, “não clássica”, assumindo um caráter hibrido dado o grau de envolvimento do
Estado na dinâmica que constituiu a articulação entre produção e finanças no país. Mais
uma vez, o salto para uma nova etapa de desenvolvimento capitalista se dá por meio da
forte atuação do Estado que, já tendo sido o impulsionador do capitalismo monopolista em
meados dos anos 1950, atua agora como o mecanismo pelo qual se engendra o capital
financeiro.
As privatizações consistiram na ponta de lança deste processo, em uma trajetória
que, entre idas e vindas, se consolida na primeira década deste século, sob a batuta do
governo conduzido pelo Partido dos Trabalhadores. Os instrumentos são em grande parte
fundos de pensão e o BNDESPar, sem os quais as empresas nacionais – fragilizadas pela
abertura comercial e com sérios problemas de endividamento (externo), agravados pela
política cambial dos anos 1990 –, não teriam como se capitalizar para tirar proveito das
vendas das estatais e talvez teriam que optar por uma associação ainda mais subalternizada
com o capital estrangeiro, o que de fato aconteceu nos setores mais intensivos em
tecnologia.
Uma análise mais completa dos desdobramentos desta particularidade na
constituição endógena do capital financeiro ainda precisaria ser elaborada. Mas já podemos
sinalizar que este processo tem repercussões sobre a configuração do Estado e sobre o
papel da dívida pública. Este fato se deve, por um lado, à possibilidade de alavancar
recursos para o investimento público e, por outro lado, alimentar a rentabilidade financeira
de seus credores, que abocanham parcelas significativas do fundo público. É sobre este
aspecto que nos debruçaremos no próximo capítulo.
188

3 ESTADO, ORÇAMENTO PÚBLICO E GASTO SOCIAL NO BRASIL (2004-


2011)

Nunca devemos nos esquecer de que o


futuro não é totalmente nosso, nem
totalmente não-nosso, para não sermos
obrigados a esperá-lo como se estivesse
por vir com toda a certeza, nem nos
desesperarmos como se não estivesse por
vir jamais

Epicuro

Entender as particularidades da dinâmica de acumulação no tempo presente é


imprescindível para apreender os movimentos do capital e sua força para fazer valer os
seus interesses no enfrentamento às resistências impostas pela classe trabalhadora e desta
para lutar contra seus grilhões. A atuação do Estado só pode ser entendida em meio a este
terreno de luta de classes e suas decisões expressam, de alguma forma, o poder destas
classes de impor suas demandas, além de trazerem consigo o traço das heranças do
passado, em especial os vínculos de dependência e subalternidade aos interesses
imperialistas.
Neste sentido, por entendermos os gastos sociais como reflexo de um processo de
correlação de forças que tem, na relação entre capital e trabalho sua dimensão fundante,
esta análise não pode ter um fim em si mesma. Nosso objetivo neste capítulo é analisar o
lugar do gasto social implementado ao longo dos oito anos do governo Lula. Para tanto,
levaremos em consideração as prioridades apresentadas em seus planejamentos e o
processo de tomada de decisões mais amplo que caracteriza o período de vai de 2004 a
2011, intervalo temporal coberto pelos dois Planos Plurianuais elaborados por este
governo.
Nos capítulos anteriores, buscamos resgatar a contribuição da categoria capital
financeiro para a análise das mudanças no modo de produção capitalista trazidas pela etapa
monopolista. Ressaltamos a crise vivenciada nos anos 1970 como elemento fundamental
para a intensificação dos fluxos financeiros que marca o processo de financeirização em
que vivemos. Trouxemos também alguns elementos para pensar o processo de formação
sócio-histórico brasileiro e as particularidades que nossa economia dependente enfrentou
para empreender sua revolução burguesa e consolidar o capitalismo. Articulamos as
189

mudanças no início dos anos 1990, trazidas pela adesão ao receituário neoliberal de
parcelas do grande capital que atua no país, aos interesses do capital internacional, que
buscava ampliar suas fronteiras de atuação, estando esta orientada pela necessidade de
maximizar a rentabilidade financeira e contrarrestar a tendência decrescente da taxa de
lucros.
Mas a entrada do Brasil de forma mais aprofundada no circuito mundial das
finanças não foi fruto “apenas” dos interesses externos. Ela beneficiou frações da
burguesia que atuam em nosso território de forma mais atrelada ao capital financeiro
internacional e dependeu de um conjunto de mudanças implementadas pelos governantes
nos anos 1990. Demonstramos como a estabilização monetária foi fundamental para
garantir um ambiente mais estável e sedutor para o capital especulativo e a importância das
alterações feitas na política econômica para assegurar o pagamento de juros e a liberdade
de capitais.
A ausência de uma política industrial, o câmbio sobrevalorizado, a liberalização
financeira, as altas taxas de juros, dentre outras medidas, foram recursos utilizados sob a
justificativa de viabilizar a estabilidade monetária e ampliar a competitividade, mas que
trouxeram consigo um aumento da vulnerabilidade externa, fragilização do parque
industrial, dependência do capital de curto prazo e aumento exponencial da dívida pública.
O processo de privatizações, neste contexto, não seria suficiente para dar novo fôlego ao
grande capital interno, que também sofreu o impacto não apenas destas medidas, como
também da desvalorização cambial após a adoção do regime de câmbio flutuante no final
da década149.
Foi preciso um amplo apoio do Estado, principalmente via recursos
disponibilizados pelo BNDES, para que o grande capital pudesse tirar um maior proveito
desta situação. E assim foi tornado possível levar a cabo um conjunto de fusões e
aquisições em que foram absorvidas as empresas com maior fragilidade, bem como a
ampliação das possibilidades de compra das estatais por parte do grande capital. O
financiamento das privatizações e de operações de fusões e aquisições foi a principal tarefa
deste banco de desenvolvimento na referida década.
Esta recomposição da base produtiva, entretanto, não foi suficiente para reverter a
especialização regressiva em curso. Não se verificou uma centralização significativa

149
Como discutido no segundo capítulo, boa parte dos grandes capitalistas possuía significativas dívidas em
dólar, o que representou um aumento do endividamento quando houve a desvalorização cambial.
190

pautada na busca pela diversificação dos negócios e muitas vezes, quando houve, esta foi
marcada pela entrada de outros setores, como da construção civil, na produção de
commodities. Continuamos sem grandes perspectivas de uma atuação efetiva nos setores
mais dinâmicos da economia como os intensivos em capital e tecnologia de ponta. Em
outras palavras, o que houve foi um reforço à nossa posição na Divisão Internacional do
Trabalho (DIT) e uma atuação mais conservadora do grande capital, voltada para fortalecer
posições já conquistadas. Também não podemos verificar, em meio a esta recomposição, a
formação de grandes conglomerados produtivo-financeiros típicos das formações
capitalistas nos países imperialistas. Este salto qualitativo na conformação do grande
capital interno, segundo nossa hipótese, começa a ser verificado na década seguinte, por
meio da implementação do projeto de desenvolvimento conduzido pelo Partido dos
Trabalhadores.
Sobre esta mudança, destacamos novamente o papel preponderante do Estado. Sem
deixar de considerar a importância que este tem desde a própria constituição do modo de
produção capitalista – como procuramos resgatar no início do primeiro capítulo, por meio
do debate de Marx acerca da acumulação primitiva –, consideramos fundamental ressaltar
a particularidade de sua atuação nas economias dependentes.
Como destaca Ianni, nas crises inerentes ao modo de produção capitalista o Estado
é chamado a intervir de forma mais ativa para conter seus efeitos. Esta ideia serve tanto
para os países dominantes quanto para os dependentes. A diferença é que nos elos mais
fracos da cadeia, muitas destas crises tendem a vir de fora e a assumir grandes proporções
internamente, o que demanda uma atuação mais ofensiva para dirimir seus
desdobramentos. Quanto maior o nível de dependência externa, mais suscetível está um
país a crises de longo alcance. “Em consequência, o Estado se insere cada vez mais no
centro do sistema econômico, isto é, desenvolve-se mais e mais um dos seus conteúdos
essenciais, como expressão e síntese do regime político-econômico” ([1971] 2009, p. 283).
No Brasil, o Estado sempre possuiu um papel preponderante para a garantia das
condições gerais de acumulação capitalista. Sua atuação foi decisiva para viabilizar os
saltos de desenvolvimento experimentados ao longo de nossa história. Por exemplo, “a
transição para a fase de bens de produção esteve associada a transformações qualitativas,
isto é, estruturais; e estas não ocorrem sem saltos” (IANNI, [1971] 2009, p. 285). A
particularidade de uma formação dependente passa pelo fato de “queimar” algumas etapas
e, para isso, a presença do Estado sempre foi fundamental. “As transformações de tipo
191

qualitativo, conforme ocorreram na economia brasileira, estiveram ligadas à participação


crescente do poder público nas decisões, estímulos e investimentos relacionados com o
conjunto do sistema econômico do país” (IANNI, [1971] 2009, p. 285).
No caso dos processos que permitiram a constituição endógena do capital
financeiro no país não foi diferente. Uma das mudanças mais significativas do governo
Lula, em relação ao anterior, se deu em virtude da busca por fortalecer os grandes grupos
industriais, por meio do retorno à adoção de uma política industrial150 e incentivo ao
crédito, em que se destaca a atuação do BNDES. Como apontam Tautz et al (2010, p. 260-
261), a quantidade de recursos à disposição do Banco permitiu que seus desembolsos
superassem os realizados pelo Banco Internacional para a Reconstrução e o
Desenvolvimento (BIRD) e do Banco Interamericano do Desenvolvimento (BID). De 2003
para 2009 o valor de seus desembolsos aumentou quase quatro vezes, como mostram os
dados da tabela 2.

Tabela 2 – Desembolsos do BNDES (em bilhões de reais)


ANO DESEMBOLSOS (R$)
2003 35,10
2004 40,00
2005 47,10
2006 52,30
2007 64,90
2008 92,20
2009 137,40
Fonte: BNDES (apud TAUTZ et al, 2010, p. 260).

Como podemos observar, os investimentos saltam de pouco mais de R$35 bilhões


em 2003 para mais de R$137 bilhões em 2009. A mudança quantitativa veio acompanhada
de uma alteração qualitativa. Este banco nacional de desenvolvimento teve sua intervenção
reorientada e passou a ser o principal instrumento na busca governamental por estabelecer
as “campeãs nacionais”, dedicando a esmagadora maioria de seus recursos para o grande
capital interno, como forma de aprofundar processos de concentração e centralização do
capital. Participação minoritária possuem os desembolsos destinados às pequenas e médias
empresas. As informações sobre os investimentos por porte de empresa estão ilustrados na
tabela 3.

150
Este aspecto será retomado na segunda seção deste capítulo.
192

Tabela 3 – Desembolso anual por porte de empresa (valores relativos)


DISCRIMINAÇÃO 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009
Micro e pequena 10,3 8,1 8,5 7,8 9,3 10,0 8,5
Média 7,8 7,5 8,0 8,0 9,4 9,4 5,3
Subtotal 18,0 15,6 16,6 15,8 18,7 19,4 13,8
Pessoa Física 11,8 15,9 8,3 5,9 6,1 4,6 3,7
MPME 29,9 31,6 24,8 21,7 24,8 24 17,5
Grande 70,1 68,4 75,2 78,3 75,2 76,0 82,5
Nota: A sigla MPME significa Micro, pequenas e médias empresas (inclui pessoas
físicas).
Fonte: Silva, 2003 (apud TAUTZ et al, 2010, p. 264).

Os dados referentes às MPME consistem no somatório dos desembolsos destinados


às micro e pequenas empresas, às médias e às pessoas físicas. O maior valor que todas
estas receberam, conjuntamente, corresponde a pouco mais de 30% no ano de 2004. As
grandes empresas receberam, em média, cerca de 75% dos recursos no período assinalado.
Esta intervenção do BNDES, entretanto, não se expressa somente por meio da
concessão de empréstimos, mas também pela concessão de créditos que lhe conferem uma
participação acionária nas empresas “eleitas” para figurarem entre as “vencedoras”, via
BNDESPar. Assim, o Estado efetua, na verdade, um reposicionamento (e não uma
retirada) no setor produtivo, figurando entre os grandes proprietários nacionais, juntamente
com grupos tradicionais como Andrade Gutierrez, Camargo Correa, Odebrecht,
Votorantim, Bradesco/Vale, Gerdau, dentre outros151. À participação do BNDESPar
podemos somar também, como sócios e patrocinadores destes grandes grupos, os fundos
de pensão dos funcionários de empresas públicas como Previ, Petros e Funcef.
Este reposicionamento implica em alterações substantivas na capacidade do Estado
de gerenciar os negócios, quando comparada ao que foi vivenciado no período do nacional-
desenvolvimentismo. Naquele tempo, o Estado geria a “coisa pública” e, embora do ponto
de vista mais geral, estivesse atuando na defesa dos interesses capitalistas, suas atitudes
não raras vezes contrariaram as demandas de capitalistas, vistos de forma individual. Foi o
caso, por exemplo, da criação da Petrobras que, a princípio, irritou muitos capitalistas que
criticaram o alto investimento público para a criação desta empresa, argumentando que

151
Segundo Tautz et al, “[...] o capital estrangeiro também se fez presente nestas redes [de proprietários], mas
normalmente de modo minoritário, exceção para o setor bancário e de telefonia, onde o capital estrangeiro
assumiu posições de controle” (2010, p. 251).
193

seria muito mais barato comprar barris de petróleo no mercado externo. Esta decisão
viabilizou o fornecimento de insumos básicos a preços subsidiados, além de um
investimento em tecnologia de ponta que permitiu, posteriormente, a exploração em alto-
mar. A criação desta empresa foi um dos pontos altos de enfrentamento aos interesses
imperialistas do período nacional-desenvolvimentista, com fortes impactos sobre a
produção nacional.
O que podemos observar no último período é a privatização da lógica que rege a
intervenção do Estado na economia. Esta não desaparece, mas assume novas configurações
em uma conjuntura de alteração nas relações de poder sobre a empresa. O Estado aparece
agora como sócio-proprietário de empreendimentos privados. Este fato contribui para
reforçar a confusão e a dificuldade de discernimento entre o público e o privado, de modo
que a atuação do Estado está cada vez mais submetida à lógica que rege a iniciativa
privada152. São, portanto, as possibilidades de defender os “interesses públicos” muito mais
pontuais, por mais que se mantenha, ainda, alguma capacidade.
Do mesmo modo, os fundos de pensão – regidos por frações dos trabalhadores,
muitas vezes sob a influência do Estado –, assumem também a capacidade de gerirem os
recursos sob a ótica do capital, investindo nas empresas mais rentáveis e se beneficiando
dos ganhos de quem dispõe de recursos para emprestar ao Estado. Assim, tanto o Estado
quanto esta aristocracia operária se apropriam do aumento da rentabilidade advindos de
demissões e do aumento da exploração da classe trabalhadora, financiando o capital
privado e obtendo cargos de gestão que os possibilita, inclusive conduzir estes processos.
Como sinalizamos no capítulo anterior, além de terem participado do processo de
privatizações, estes fundos vêm recentemente ampliando sua participação em
investimentos de infraestrutura de grande porte e longa maturação, atraídos pelas
possibilidades de ganhos, em especial em função dos Mega-eventos esportivos e do PAC.
O gráfico 5 apresenta a alocação dos ativos dos fundos de pensão no período de 2003 a
2010.

152
Em 2009, a Vale “recebeu o maior financiamento já dado pelo Banco a uma empresa, R$7 bilhões. Esta
mesma empresa tem participação do BNDESPar, incluindo golden shares que, contudo, nunca foram usadas
pelo Banco, nem mesmo quando a Vale realizou demissões em massa, no contexto da crise” (TAUTZ et al,
2010, p. 254).
194

Gráfico 5 - Alocação dos ativos dos fundos de pensão no Brasil (2003-2010)

Fonte: Abrapp (apud IPEA, 2012b, p. 30).

Como podemos ver, em todos os anos da série, houve cerca de 60% dos ativos
aplicados em renda fixa, ou seja, títulos da dívida. O segundo investimento de maior vulto
é em renda variável – ações compradas na bolsa de valores. Em 2010 começam a aparecer
os investimentos estruturados, que representam os investimentos de grande porte a que nos
referimos (sinalizados pela pequena linha azul escuro, logo acima da lilás). Um dos
elementos que podemos perceber é que a lógica que rege as decisões pela aplicação dos
recursos, baseada na expectativa do ganho e no menor risco – lógica que orienta o
capitalista individual –, conduz os investimentos aos setores e empresas mais consolidados
no mercado.
Também a atuação do BNDES vem obedecendo a esta orientação com o objetivo
explícito de fortalecer as “empresas nacionais líderes globais”, de modo que pouco tem se
feito para alterar a posição do país na DIT, fortalecendo setores exportadores de baixo
valor agregado, ao passo em que os setores industriais tradicionais seguiram perdendo
posições153. O pesquisador do IPEA, Mansueto Almeida, destaca que “a exportação de

153
No primeiro governo Lula, a indústria “foi o setor que mais cresceu, em termos absolutos e relativos, no
que diz respeito ao patrimônio líquido, à receita operacional líquida e ao lucro líquido. No entanto, essa
evolução positiva não se deu de forma homogênea entre os segmentos industriais; pelo contrário, o que se
verificou foi uma expansão elevada, em termos absolutos e relativos, dos grupos econômicos industriais
produtores de commodities (fortemente influenciados pelos efeitos Vale e Petrobras) destinadas, em boa
medida, ao mercado externo; ao passo que os setores industriais tradicionais e difusores de tecnologia – que
195

commodities primárias e de produtos de baixa intensidade tecnológica e intensivos em


recursos naturais, [...] juntos, respondem por cerca de 60% do valor das exportações
brasileiras” (ALMEIDA, 2009, 21). Sendo assim, é possível dizer que têm-se aprofundado
as históricas vantagens comparativas do país, sem apontar de forma consistente uma
política voltada para o incentivo à produção na qual possuímos uma situação de
desvantagem, como no caso dos setores intensivos em tecnologia.
A intenção é fortalecer a internacionalização por meio de uma multinacionalização
das empresas brasileiras com um agressivo apoio do BNDES. Este processo, centrado nos
países sul-americanos e africanos, vem reforçando nossa posição de país exportador de
produtos primários e semi-elaborados (TAUTZ et al, 2010; ALMEIDA, 2009). Exemplos
emblemáticos deste caso são os empréstimos concedidos às empresas Bertin154,
JBS/Friboi155 e Brasil Foods156.
Almeida (2009, p. 55) aponta também uma implicação para os recursos do fundo
público que tende a se apresentar de maneira mais intensa com o passar dos anos. Boa
parte dos recursos usados pelo BNDES são oriundos do Fundo de Amparo ao Trabalhador

destinam sua produção ao mercado interno – decresceram em termos absolutos e relativos. Isso evidencia que
o processo de mudança estrutural da indústria brasileira, denominado de especialização regressiva da
indústria, em curso desde os governos FHC, se acelerou durante do governo Lula. Em outras palavras,
ocorreu um avanço de segmentos industriais intensivos em recursos naturais e produtores de commodities,
intensivo em capital, que tiveram como contrapartida a redução absoluta e relativa de outros segmentos
industriais” (PINTO, 2010, p. 165).

154
O grupo Bertin possui controle 100% nacional e “tem investimentos nos setores agroindustrial, de higiene
e limpeza, infraestrutura e energia, destacando-se por sua participação nas indústrias de couro e carne no
Brasil e no mundo. O grupo está entre os 100 maiores em atividade no Brasil [...]. Em 2008, a maior
aplicação direta do BNDES em um grupo industrial (R$ 2,5 bilhões) foi para este grupo, que conta também
com uma elevada participação do BNDES na sua composição acionária.” (ALMEIDA, 2009, p. 29).

155
“No ranking das 200 maiores corporações empresariais em atuação no Brasil, o grupo JBS/Friboi passou
da posição 61 em 2006 para a posição 31 em 2007, sendo que, até 2002, a empresa não aparecia nem mesmo
entre as 400 maiores empresas em atividade no Brasil. O grupo iniciou seu processo de internacionalização
em 2005 com a aquisição da empresa Swift na Argentina por meio de financiamento do BNDES [...]. No
início de 2009, o grupo JBS/Friboi [...] [havia se tornado o] maior exportador mundial de carne processada, o
terceiro maior produtor de carne bovina [..] e o terceiro maior produtor de carne de porco [...]. Esta empresa
nacional, além das plantas no Brasil, tem unidades de produção nos EUA, Argentina, Itália e Austrália”
(ALMEIDA, 2009, p. 29-30).
156
Fruto da fusão da Sadia com a Perdigão em 2008, duas grandes empresas exportadoras, a Brasil Foods é
líder nacional, “com uma participação de mercado acima de 50% nos segmentos de carnes refrigeradas,
carnes congeladas, massas e pizzas semiprontas. [...] Juntas, estas duas companhias [Sadia e Perdigão]
receberam R$ 672,5 milhões do BNDES apenas em 2008, o que as colocaria no quarto lugar entre as maiores
operações diretas do BNDES, atrás apenas das que envolveram os grupos Bertin, JBS/Friboi e Marfrig”
(ALMEIDA, 2009, p. 31).
196

(FAT), que está com déficit em caixa, não podendo repassar além do limite constitucional
de 40% para o Banco. Significa que a continuidade da política industrial por meio do
fortalecimento do BNDES tem sido garantida pelo endividamento do Estado. Em 2009, o
governo emprestou R$100 bilhões ao Banco. Isto sem mencionar a contradição existente
no fato de serem usados recursos da classe trabalhadora, por meio do FAT, para financiar a
acumulação capitalista e, portanto, a exploração da própria classe.
Como podemos ver, esta lógica de apropriação do trabalho necessário vem
assumindo contornos bastante diversificados no contexto da financeirização. Cada vez
mais, fundos compostos por parcelas dos salários são formados e disponibilizados
diretamente para investimentos produtivos ou postos a serviço do capital fictício,
alimentando o circuito das finanças157. No caso do BNDES e dos fundos de pensão, é
possível constatar um imbricamento entre estas instituições financeiras e o grande capital
produtivo, constituindo endogenamente, e por uma via não clássica, o capital financeiro no
Brasil.
Esta atuação do Estado e o incentivo para que os fundos de pensão atuem neste
mesmo sentido, tem contribuído para fortalecer e incentivar as “campeãs nacionais”. O
governo Lula, ao retomar a política industrial, relegada pelo governo FHC, e reorientar a
atuação estatal, deixa clara sua preocupação em não apenas não romper com o capital, mas
de fortalecê-lo. O faz, todavia, de maneira diferente da que se definiu nos governos
anteriores. Como analisa Boito Jr. (2012), ao priorizar investimentos às empresas
nacionais, o governo vem contrariando frações da burguesia mais diretamente atreladas ao
imperialismo – a chamada burguesia compradora – e melhorando a posição da burguesia
interna no bloco do poder158. Esta burguesia interna ocuparia “uma posição intermediária
entre dois extremos – entre a burguesia nacional e a burguesia compradora – teria base de
acumulação própria e poderia buscar, ao mesmo tempo, associar-se ao capital imperialista
e limitar sua expansão no interior do país” (2012, p. 68-69).

157
Como já discutido, nos referimos a parcelas do salário que compõem fundos como o FAT ou os fundos de
pensão e são utilizados para financiar a acumulação capitalista. Um outra parcela da remuneração dos
trabalhadores compõe o fundo público por meio do pagamento de impostos e contribuições sociais e é usado,
dentre outras coisas, para pagar os credores da dívida pública.
158
Para fazer a distinção entre burguesia interna e compradora o autor se baseia nas formulações de Nicos
Poulantzas, em A crise das ditaduras: Portugal, Grécia e Espanha. Segundo ele, “nos países dependentes,
essa burguesia [interna] ocuparia, na análise de Poulantzas, uma posição intermediária entre a antiga
burguesia nacional, passível de adotar práticas anti-imperialistas, e a velha burguesia compradora, mera
extensão do imperialismo no interior desses países” (BOITO Jr., 2012, p. 68).
197

O grande capital segue mantendo sua hegemonia durante os governos do Partido


dos Trabalhadores. A questão é que as alterações que ressaltamos contribuíram para uma
mudança na fração de classe que detém a hegemonia, embora isso não represente
alterações estruturais no processo de tomada de decisão. Como alerta o autor, “o
deslocamento da hegemonia política no interior do bloco no poder monopolista de uma
dessas duas frações para outra não é, portanto, uma mudança política de alcance maior”
(BOITO Jr., 2012, p. 74). Não se trata de uma ruptura com o neoliberalismo, mas indica
um aumento do poder político da burguesia interna, a qual possui uma posição em relação
ao imperialismo de maior resistência, embora não de autonomia ou mesmo de uma
oposição direta.
Este padrão de desenvolvimento encampado pelo governo Lula está muito longe de
criar condições efetivas para uma ruptura com os laços de dependência que caracterizam
nossa formação. Como vimos, ele vem fortalecendo nossa posição na DIT ao reforçar a
especialização em setores em que possuímos vantagens comparativas. Embora tenha
contribuído para aumentar o mercado interno, segue também sendo muito voltado para as
exportações, em especial de commodities, que são mais vulneráveis a alterações no
comércio internacional. Também não vem produzindo taxas de crescimento estáveis nem
significativamente altas, nem mesmo constantes.
Entretanto, está baseado no aumento do crédito, na participação acionária e, deste
modo, no fortalecimento do grande capital nacional, o qual mantém resistência ao
fortalecimento do grande capital financeiro internacional por competir com este em
situação de desigualdade. Boito Jr. alerta que “diante do grande capital financeiro
internacional, a grande burguesia interna, mesmo tendo interesse em atrair investimentos
estrangeiros para o Brasil, procura preservar e ampliar as posições que detém no sistema
econômico nacional e no exterior” (2012, p. 77).
O autor, por meio do resgate das posições da Revista da Indústria publicada pela
Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), apresenta a posição desta
entidade acerca das medidas adotadas pelo governo e suas propostas para a retomada do
compromisso com o desenvolvimento do país. Em relação às medidas adotadas está
presente a crítica: aos juros altos, à preponderância do setor financeiro sobre o produtivo,
ao alto custo do financiamento de longo prazo, à liberdade dos bancos para fixarem o
spread bancário, aos reajustes do salário mínimo, ao gasto social do governo, dentre
outras. Dentre as propostas explicitadas pela FIESP nesta revista estão o: favorecimento
198

dos grandes grupos nacionais internacionalizados, aprofundamento das reformas tributária,


trabalhista, sindical, previdenciária, fiscal e do judiciário, redução dos juros, investimento
estatal em infraestrutura, proteção alfandegária. Além disso, está presente um apoio ao
Lula (mesmo durante a crise do mensalão), críticas ao FHC e ao Serra e o apoio na troca
do Ministro Antônio Palocci por Guido Mantega.
Com isso, o autor procura demonstrar as fissuras existentes entre as frações da
burguesia e como a burguesia interna percebe as diferenças entre os governos Lula e os
governos do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), saindo em defesa do
primeiro quando necessário. “A luta no interior do grande capital monopolista, luta que
opõe a grande burguesia compradora à burguesia interna, reflete-se no sistema partidário
brasileiro” (2012, p. 85).
Mas esta burguesia interna não tem poderes para sustentar, sozinha, o governo.
Este, para se manter no poder, vem sendo capaz de conciliar um conjunto de interesses
contraditórios, que impõem uma série de limites para uma mudança estrutural, ao mesmo
tempo em que não pode se apresentar como uma mera continuidade dos governos
anteriores. Esta correlação de forças põe as decisões do governo em uma espécie de corda-
bamba, em que podemos ver insatisfações por todos os lados. Todos reivindicam avanços
em mudanças que beneficiem seus interesses e são obstaculizados pela necessidade de
fazer concessões. Entretanto, dada a sua habilidade para contornar as dificuldades e manter
sua base de apoio, o governo Lula foi capaz de manter altos os índices de satisfação e
popularidade em relação a sua atuação, soldando um bloco de poder que lhe deu
sustentação.
Como discutimos, ele promoveu uma reacomodação no bloco de poder burguês,
mas o fez com forte apoio popular. Isto significa que algumas medidas precisaram ser
tomadas para garantir a manutenção de sua popularidade. Discutiremos melhor as decisões
tomadas neste sentido na última seção deste capítulo, mas já adiantamos que a política de
valorização do salário mínimo e alguns programas sociais, dentre os quais destacamos o
Bolsa Família, foram fundamentais para isso. Ainda assim, foi preciso contrariar os
interesses desta grande burguesia interna, que questionava o aumento dos gastos do
governo e defendia uma reforma fiscal para, dentre outras coisas, aumentar os gastos com
investimento, em especial, na infraestrutura.
Também a grande burguesia compradora e os interesses do capital financeiro
internacional não ficaram totalmente de fora, mesmo com o deslocamento da hegemonia
199

para a burguesia interna. Pelo contrário, estes continuam no bloco de poder. A condução da
política econômica seguiu sem alterações substantivas. Como foi feita, por parte do
governo, a escolha de assumir o poder sem ruptura com o capital (e garantindo a
manutenção da estabilidade econômica), o que ele fez foi buscar brechas para flexibilizar
um pouco a ortodoxia do receituário e procurar as compensações “possíveis” (no interior
deste padrão de acumulação), para traçar uma alteração tímida no rumo do
desenvolvimento no país.
Sendo assim, segue o compromisso com a obtenção de superávits primários,
inicialmente assumidos por FHC, quando enfrentou a crise em 1998. Mas são elaboradas
estratégias para, em alguma medida, burlar seus cálculos e atenuar parcialmente seus
efeitos. Não é a toa que, em 29 de setembro de 2010, a coluna Opinião do jornal Estado de
São Paulo159 denunciou que o governo estaria usando botox nas contas públicas. A
intenção era denunciar a “maquiagem” – feita pelo recurso a algumas artimanhas contábeis
– usada para atingir a meta de superávit primário, criticar os considerados excessivos
gastos do governo e reivindicar o compromisso com a austeridade que, supostamente, todo
o governo “sério” deveria ter.
As metas de inflação são também heranças do passado que ainda permanecem nos
governos petistas, embora flexibilizadas, tendo em vista que não há mais uma preocupação
obsessiva com o centro da meta, sendo considerado suficiente não ultrapassar o seu teto.
De qualquer forma, o economista Miguel Bruno afirma que “o chamado novo consenso de
política econômica com sistemas de metas de inflação [inaugurado nos anos 1990 e
mantido até hoje] inaugura, assim, [...] uma época singular de conservadorismo da política
econômica e, particularmente, da política monetária” (2010, p. 99, grifo do autor).
As taxas de juros de uma maneira geral diminuíram significativamente, mas além
de permanecerem altas, o recurso a aumentá-las por vezes ainda é considerado o mais
eficaz para conter a inflação160. Como forma de compensar os entraves que a taxa de juros
alta cria, o governo, por meio do BNDES, dispõe de recursos a taxas de juros subsidiada
para emprestar ao grande capital, permitindo a este grupo de capitalistas uma certa

159
Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,botox-nas-contas-publicas,616988,0.htm.
Acesso em: 14/07/2013.
160
O Banco Central segue praticando – e é pressionado pelos setores rentistas a aprofundar – “uma política
monetária gerida de acordo com a hipótese de neutralidade da moeda e sob o pressuposto, sem comprovação
empírica, de que não importa qual origem tenha, toda inflação pode ser assimilada à inflação de demanda e
deve ser combatida com aumentos da taxa de juros” (BRUNO, 2010, p. 98, grifo nosso).
200

proteção. A maioria das pequenas e médias empresas, assim como boa parte classe
trabalhadora, seguem se endividando sem mecanismos que os preservem das taxas de juros
vigentes.
A questão da taxa de juros, entretanto, está longe de se restringir aos obstáculos
impostos ao investimento produtivo. Ela nos remete ao problema da dívida pública,
mecanismo pelo qual se alimenta o capital portador de juros e se drena parte substantiva
dos recursos do fundo público. A condução da política econômica efetuada pelo governo
Lula – e que tem continuidade com a presidenta Dilma – não alterou o padrão de gestão da
dívida, mantendo-se não apenas as metas de superávit, mas também a Desvinculação de
Receitas da União (DRU) e a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Uma das iniciativas alegadas para conter o aumento da dívida nos anos 1990, como
discutimos no capítulo anterior, foi a venda das empresas estatais. Ao contrário de
diminuir, seu valor aumentou de forma acelerada no período. Este aumento se deveu, em
grande parte, ao forte aumento da taxa de juros, um dos pilares usados para garantir a
estabilidade monetária via atração de significativos montantes de recursos externos, em
grande parte com aspirações puramente especulativas. Já registramos a articulação desta
decisão aos interesses do capital financeiro internacional, que buscava ampliar suas
possibilidades de rentabilidade por meio da absorção dos excedentes produzidos nas
economias dependentes.
O mais grave a se considerar é que, ao contrário dos argumentos liberais, pautados
na ideia de que o Estado gasta mal ou de que ele seria perdulário e por isso estaria
endividado, o aumento da dívida tem base financeira (aumento dos juros). Não se trata de
gastar muito ou gastar mal, aliás, pouco se gastou. Em outras palavras, do montante total
da dívida, apenas uma parcela de recursos foram emprestados e efetivamente gastos. A
maior parte desta consiste em juros em cima de juros. O endividamento praticamente não
possui contrapartida em termos de desenvolvimento e, muitas vezes, é utilizado para pagar
a própria dívida161 (FATTORELLI, 2012).
Como discutimos nos capítulos anteriores, o brusco aumento da taxa de juros
estadunidense em 1979, comprometeu enormemente os países dependentes. Para Chesnais,

161
“Cabe ressaltar que a Constituição Federal, art. 167, autoriza a emissão de dívida somente para pagar
amortizações (despesas de capital), vedando porém, a emissão de dívida para pagar juros (despesa corrente).
Entretanto, a contabilização irregular de parte dos juros nominais (atualização monetária) como se fossem
“rolagem” vem burlando esta vedação constitucional” (FATTORELLI, 2012, grifo da autora).
201

“é nos países economicamente e politicamente dominados que essas consequências foram


mais dramáticas” (2010, p. 152). O Brasil, em especial, que havia financiado boa parte do
seu crescimento fazendo uso de empréstimos externos contraídos a taxas de juros
flutuantes, viu sua dívida aumentar exponencialmente. “A multiplicação por três, e mesmo
por quarto, das taxas de juro nas quais os valores emprestados deviam ser reembolsados
precipitou a ‘crise da dívida do Terceiro Mundo’ cujo primeiro episódio foi a crise
mexicana de 1982” (CHESNAIS, 2010, p. 152). Este contexto tornou a dívida impagável,
além de “injusta”, como afirma o autor.
Tem-se, portanto, desde a década de 1990, uma gestão dos recursos do Estado
subordinada às necessidades do pagamento dos juros e a constituição de todo um aparato
técnico-institucional que legitima esta orientação. Com isso, constata-se a manutenção do
poder dos setores rentistas e uma transferência de recursos da classe trabalhadora em
direção ao capital portador de juros.
Bruno destaca que esta é uma diferença do processo de financeirização no Brasil
em relação aos países avançados, nos quais a base é o mercado de capitais e a baixa taxa de
juros, de modo que há um incentivo ao aumento do crédito – e estímulo à especulação no
mercado acionário, o que desaguou em diversas crises financeiras. Ao contrário, o Brasil
tem “o endividamento do Estado no centro da acumulação financeira e não no mercado de
capitais” (BRUNO, 2010, p. 97). Neste sentido, a financeirização, na medida em que vem
acompanhada de pouco crédito e de alto custo, estimula ainda mais a especulação, neste
caso no mercado de títulos, tendo em vista que é bem mais fácil e lucrativo emprestar
dinheiro ao Estado162.
Com isso, a presença de instituições de fomento ao desenvolvimento, como o
BNDES é ainda mais necessária. Em outras palavras, por um lado sangram recursos
públicos para alimentar o capital portador de juros e, por outro – e para compensar este –
drenam recursos para financiar a acumulação capitalista – desestimulada pelo incentivo às
finanças. O aperto de cintos, quando necessário para bancar toda esta estrutura, vem
sempre na redução no gasto social e aumento de impostos o que, no caso de uma estrutura
regressiva como a vigente, significa fundamentalmente onerar a classe trabalhadora.

162
“Sob condições macroeconômicas que caracterizam um processo de financeirização por renda de juros, o
endividamento público interno contribui muito mais para reproduzir os limites estruturais ao
desenvolvimento econômico brasileiro do que para superá-los, caso em que seria necessário que os déficits
públicos tivessem como contrapartida o aumento do investimento do governo” (BRUNO, 2010, p. 102).
202

Consideramos importante resgatar este pano de fundo para a análise do gasto social,
tendo em vista que é fundamental, para a discussão das prioridades do governo, entender o
“sequestro” da política econômica. A política monetária é vista como imutável e submete
as políticas fiscal e cambial a um engessamento com forte expressão no gasto público.
Assim, o Estado tem suas possibilidades de intervenção bastante limitadas, equilibrando-se
em torno de políticas paliativas que atenuam apenas parcialmente os efeitos de suas
decisões econômicas.

Neste contexto, o endividamento do Estado e a política econômica fornecem o


lastro institucional para a liberalização financeira com mercado de derivativos
profundo e orientam-se, preponderantemente, pelos atributos que conferem
‘credibilidade’ às suas formas de intervenção, de acordo com o novo consenso de
política econômica, consubstanciado no regime de metas de inflação (BRUNO,
2010, p. 101).

Se por um lado o governo Lula se pôs a serviço da burguesia interna, por outro não
deixa de beneficiar a burguesia compradora. Ao mesmo tempo, vem habilmente operando
algumas importantes concessões à classe trabalhadora. Para tanto, recorre com frequência à
adoção de medidas ambíguas e limitadas no seu potencial ofensivo. Mantém altas as taxas
de juros, mas concede créditos a juros subsidiados. Cria programas sociais que atingem
considerável parcela da população, mas o faz cheio de restrições e condicionalidades e, na
maior parte deles, por meio de transferência direta de renda, o que beneficia também o
capital portador de juros.
No caso específico das políticas sociais, suas contradições são aprofundadas ao
passo em que estas, além de servirem ao capital por reduzirem o custo de reprodução da
força de trabalho e atenuarem os conflitos de classe – elementos contraditórios presentes
na gênese destas políticas – servem, cada vez mais, à acumulação capitalista de modo
direto. Estas se tornam espaços lucrativos tanto na prestação dos serviços diretamente (por
meio de contratos de gestão privada, planos de saúde e previdência e etc), quanto por
viabilizar a inclusão de parcelas significativas da população no sistema bancário e
financeiro, via transferência de renda efetivada por cartão de banco e empréstimos
consignados de todo o tipo.
A partir destas considerações, neste capítulo, nos dedicamos à análise do gasto
social nos dois mandatos do presidente Lula. Para tanto, fizemos, na primeira seção, um
debate introdutório de caráter metodológico como forma de subsidiar a discussão. Nele
203

tratamos de elementos que sustentam nosso referencial teórico e apontam para o lugar que
a luta por políticas sociais assume no processo de enfrentamento ao capital, na perspectiva
de superação desta sociedade. Abordamos também a importância de se pensar o gasto
público de forma articulada ao seu financiamento, bem como aspectos metodológicos e
técnicos presentes na contabilização dos gastos sociais que tomamos como referência.
Na segunda seção, apresentamos uma análise inicial dos dois Planos Plurianuais
elaborados, bem como avaliamos alguns de seus resultados, tendo por base dados sobre
parte das variáveis macroeconômicas que contribuem para ilustrar o sentido das alterações
produzidas. Em especial, nos dedicamos a discutir os gastos sociais em sua dimensão
quantitativa e qualitativa, procurando apreender as contradições, avanços e continuidades
destes governos.

3.1 Considerações de ordem teórico-metodológica

Antes de entrarmos mais especificamente nos traços gerais do planejamento estatal


e na forma como foram efetivados seus gastos, é importante precisar um pouco melhor
algumas das referências que nortearam a nossa análise. A intenção é apresentarmos alguns
dos pressupostos a que recorremos, bem como os procedimentos metodológicos utilizados
para viabilizar uma apreensão à realidade pautada no princípio da totalidade. Escapar de
avaliações meramente fenomênicas ou despolitizadas e descontextualizadas do movimento
mais geral do modo de produção capitalista é uma preocupação que orienta nosso estudo.
Muitas são as análises de dados que focam nos números, tratando-os de forma isolada,
como se pudessem ser avaliados de forma técnica e neutra.
Sabemos o imenso desafio que perpassa esta preocupação, tendo em vista que, nas
palavras de Vázquez, “o homem comum e corrente é um ser social e histórico; ou seja,
encontra-se imbricado numa rede de relações sociais e enraizado em um determinado
terreno histórico” (1977, p. 9). Se por um lado, este fato traz a chave para nos
enveredarmos na busca de um conhecimento histórico-concreto, o processo de construção
de consciência, muitas vezes imbuída das análises prático-sensíveis, dificulta as análises
que extrapolam a imediaticidade dos fenômenos. Sendo assim, o cotidiano imposto pelo
modo de produção da vida material tende a deformar e esvaziar sua consciência política.
204

“A despolitização cria, assim, um imenso vazio nas consciências, vazio que só pode ser útil
à classe dominante, que recheia as consciências com atos, preconceitos, hábitos, lugares
comuns e preocupações que, enfim, contribuem fortemente para manter a ordem social
vigente” (VÁZQUEZ, 1977, p. 12-13).
Partimos do pressuposto de que o mundo real não é, deste modo, algo estático “uma
variante secularizada do paraíso, de um estado já realizado e fora do tempo”. Seu
dinamismo está em ser “a compreensão da realidade humano-social como unidade de
produção e produto, de sujeito e objeto, de gênese e estrutura” (KOSIK, 1976, p. 18, grifo
do autor). Por estar continuamente em movimento, existem sempre questões a serem
apreendidas. “[...] o conhecimento de fatos ou de conjuntos de fatos da realidade vem a ser
conhecimento do lugar que eles ocupam na totalidade do próprio real” (KOSIK, 1976, p.
41).
Este mundo, regido pelas necessidades práticas imediatas, acaba afastando os
homens da práxis163 revolucionária, criando uma ilusão de que chegamos ao fim da
história. Entendemos a teoria como condição indispensável para o processo de politização
da análise da realidade e subsídio para a ação de homens e mulheres. A teoria, portanto, em
sua integração com o método, possui um caráter de classe que pode contribuir para a
transformação das condições sócio-estruturais existentes. Deste modo, “[...] a teoria, que
por si só não transforma o mundo real, torna-se prática quando penetra na consciência dos
homens” (VÁZQUEZ, 1977, p. 127).
O caminho percorrido ao longo do desenvolvimento desta pesquisa envolve, por
conseguinte, a análise de documentos e de dados inseridos em um determinado contexto
histórico sobre o qual nos debruçamos desde o primeiro capítulo deste trabalho e que
abordamos em suas especificidades neste. Acreditamos que “todo o conhecimento é uma
oscilação dialética [...] entre os fatos e o contexto (totalidade), cujo centro ativamente
mediador é o método de investigação” (KOSIK, 1976, p. 48).
Portanto, faremos uma discussão inicial acerca da Questão social, luta de classes,
direitos e políticas sociais, buscando apreender seus elementos contraditórios e o lugar da
luta por políticas sociais e por direitos, no contexto de luta de classes, bem como suas

163
Assim como Vázquez, “inclinamo-nos pelo termo ‘práxis’ para designar a atividade humana que produz
objetos, sem que por outro lado, essa atividade seja concebida com o caráter estritamente utilitário que se
infere do significado do ‘prático’ na linguagem comum. Assim entendida, a práxis é a categoria central da
filosofia que se concebe ela mesma não só como interpretação do mundo, mas também como guia de sua
transformação” (1977, p.5).
205

possibilidades para o enfrentamento à questão social. Acreditamos ser este um ponto de


partida pertinente para nos municiar do debate necessário para analisar o gasto do governo
federal nesta área sem cairmos no messianismo ou no fatalismo.
Também consideramos importante destacar que esta luta pela ampliação no campo
dos direitos passa por desvendarmos o financiamento e as prioridades definidas para o
gasto com as políticas sociais. Entender como funciona a dinâmica de implementação
destas políticas é parte do processo de construção das formas de reivindicação e de
disputas entre as classes sociais. O processo de politização da análise da realidade passa
por uma apropriação de seus elementos aparentemente técnicos e sua articulação a uma
dinâmica de luta coletiva pela sua transformação.
Sendo assim, ao final desta seção, procuramos levantar os elementos que nortearam
a metodologia que escolhemos para a mensuração destes gastos, abordando sua dimensão
mais técnica e como ela se relaciona com as análises teóricas que fundamentam nossa
perspectiva teórica. Este é o pano de fundo sobre o qual nos debruçamos no estudo sobre
os Planos Plurianuais do governo brasileiro e da forma como é implementado este
planejamento no tocante às políticas sociais.

3.1.1 Questão social, luta de classes, direitos e políticas sociais

Para termos uma ideia da magnitude da desigualdade gerada pelo padrão de


produção da riqueza existente, um estudo realizado pelo Instituto Mundial de Pesquisa
sobre a Economia do Desenvolvimento, da Universidade das Nações Unidas, publicado no
final de 2006, revela que 2% dos adultos mais ricos do planeta detêm mais de 50% de toda
a riqueza, enquanto 50% possui somente 1% dela. A pesquisa também revela que esta
riqueza “está muito concentrada na América do Norte, Europa e nas nações mais
desenvolvidas da Ásia e Pacífico. Só a população dessas regiões concentra 90% do total da
riqueza. A América do Norte, apesar de reunir 6% da população adulta do planeta,
concentra 34% de toda a riqueza”164.

164
Dados publicados no O Globo on line em 05/12/2006, no caderno de Economia.
Disponível em http://oglobo.globo.com/economia/nacoes-unidas-apenas-1-da-populacao-mundial-detem-40-
da-riqueza-do-planeta-4542153. Acesso em 15/02/2012.
206

Ainda que estes dados sejam, por si só, alarmantes, não se trata apenas de um
aumento quantitativo. A forma como a desigualdade aparece ao longo de um determinado
período histórico sofre mudanças também de natureza qualitativa. O entendimento de suas
determinações envolve um longo trajeto. Nas palavras de Netto,

O desenvolvimento capitalista produz, compulsoriamente, a “questão social” –


diferentes estágios capitalistas produzem diferentes manifestações da “questão
social”; esta não é uma sequela adjetiva ou transitória do regime de capital: sua
existência e suas manifestações são indissociáveis da dinâmica específica do
capital tornado potência social dominante. A “questão social” é constitutiva do
capitalismo. Não se suprime a primeira conservando-se o segundo (2001, p. 45).

Estas diferentes manifestações da questão social se apresentam na medida em que o


desenvolvimento capitalista impõe novas dinâmicas de articulação entre as forças
produtivas e as relações sociais de produção, produzindo também mudanças nas respostas
a problemas, que embora apareçam de forma renovada, possuem os mesmos elementos
constitutivos.
Do ponto de vista da produção, podemos dizer que os bancos e instituições
financeiras estabelecem um imbricamento com as indústrias, a partir do início do século
20, em uma relação que se aprofunda nas últimas décadas deste século. Este processo se
dá, principalmente, via um processo de concentração e centralização do capital sem
precedentes. Assim, o grande capital passa a buscar garantir suas margens de lucratividade
diversificando suas formas de atuação, atuando tanto por meio do recurso ao capital
portador de juros, quanto da produção propriamente dita, ou mesmo de avanços sobre o
setor de serviços e as políticas sociais. As mudanças se dão em um contexto de crescente
desenvolvimento tecnológico e informatização com diversos desdobramentos, incluindo
novos padrões de comunicação. São processadas, deste modo, alterações na maneira como
a produção se organiza, como forma de dar sustentação a estas mudanças.
Alguns dos recursos encontrados para reconfigurar a estrutura produtiva são
conhecidos de todos nós: ampliação das formas de exploração do trabalho, abarcando tanto
as mais diversificadas modalidades de contratação (emprego domiciliar, part time,
terceirização, e diversas outras precarizadas), quanto a adoção de um processo de trabalho
mais longo e/ou mais intenso, além dos mecanismos para ampliação da produtividade do
trabalho. Isto sem mencionar a substituição do trabalho vivo por trabalho morto,
intensificada a cada fusão e aquisição de novas empresas e pela aquisição de novas
207

tecnologias. Assim, por meio da combinação de extração de mais valia absoluta e relativa,
as condições de trabalho e de vida são gravemente atingidas. Estas mudanças refletem uma
fragilidade na organização sindical e sua possibilidade de se contrapor a este quadro, ao
mesmo tempo em que agravam esta realidade (ANTUNES, 1999; IAMAMOTO, 2008;
PASTORINI, 2004).
As medidas acontecem em meio a uma suposta “sociedade global”, em que crescem
as desigualdades não apenas no interior dos países, mas também entre eles. Uma espécie de
diluição de fronteiras para garantir o avanço das grandes corporações internacionais choca-
se, paradoxalmente, ao avanço da xenofobia e aumento das exigências para entrada de
estrangeiros que migram em busca de melhores condições de vida, observada em diversos
países. E assim, com o avanço da liberdade para que o capital transite e uma maior
restrição para o deslocamento de pessoas, observamos o crescimento do capital em busca
de novos espaços de valorização e o crescimento das contradições que este processo
engendra.
Comuuo decorrência deste processo, apesar das possibilidades crescentes de criação
de riqueza, o que temos é a impossibilidade de se satisfazer as necessidades de todos. É no
modo de produção capitalista que torna-se possível, pela primeira vez na história, criar
uma identidade entre o aumento da produção de riqueza e o pauperismo crescente. Assim,
Marx afirma, ao tratar da lei geral de acumulação capitalista – base em que se sustenta a
questão social –, que “acumulação da riqueza num polo é, ao mesmo tempo, acumulação
de miséria, de trabalho atormentante, de escravatura, ignorância, brutalização e degradação
moral, no polo oposto, constituído pela classe cujo produto vira capital”([1867] 1985, p.
749).
Isto se dá tendo em vista que as bases para a acumulação capitalista – e a decorrente
produção de riquezas –, vista no seu conjunto, se assenta no uso intensivo do capital e na
absorção de parcelas menores da força de trabalho, acompanhadas de formas cada vez mais
intensas e diversificadas de extração de mais valia (tanto absoluta quanto relativa),
precarizando as condições de vida dos trabalhadores e comprometendo as possibilidades de
reprodução da vida material dos que não conseguem vender sua força de trabalho.
Deste modo, ainda que possamos demarcar uma posição contrária aqueles que
reivindicam a existência de uma nova questão social – como Castel (1998) ou Rosanvallon
(1998), mesmo que com argumentos diferentes entre si –, salientamos que o tempo
presente é marcado por uma maior complexificação, tanto do ponto de vista dos elementos
208

que a determinam, quanto dos que a expressam. Neste sentido, estamos de acordo com
Alejandra Pastorini ao afirmar que:

A “questão social” contemporânea nas sociedades capitalistas mantém a


característica de ser uma expressão concreta das contradições e antagonismos
presentes nas relações entre classes, e entre estas e o Estado. As relações
capital-trabalho, no entanto, não são invariáveis, como tampouco o é a forma de
organização do capital e do trabalho: por isso, concordamos com a idéia de que
existem novidades nas manifestações imediatas da “questão social”, o que é
bem diferente de afirmar que a “questão social” é outra, já que isso pressuporia
afirmar que a “questão social” anterior foi resolvida e/ou superada (2004, p. 14-
15).

O que queremos destacar é que as raízes da questão social seguem sendo as mesmas
e fundam-se nos elementos centrais que marcam o modo de produção capitalista, os quais
também permanecem, em essência, os mesmos, quais sejam: a subsunção real do trabalho
ao capital, a qual relaciona-se ao fato de termos uma produção cada vez mais social e uma
apropriação cada vez mais privada. Esta é a base sobre a qual podemos dizer que a
acumulação de riqueza gera, no outro polo, a miséria. Para usarmos as palavras de Marx:

Quanto maiores a riqueza social, o capital em funcionamento, o volume e a


energia de seu crescimento, portanto também a grandeza absoluta do proletariado
e a força produtiva de seu trabalho, tanto maior o exército industrial de reserva.
A força de trabalho disponível é desenvolvida pelas mesmas causas que a força
expansiva do capital. A grandeza proporcional do exército industrial de
reserva cresce, portanto, com as potências da riqueza. Mas quanto maior este
exército de reserva em relação ao exército ativo de trabalhadores, tanto mais
maciça a superpopulação consolidada, cuja miséria está em relação inversa do
suplício de seu trabalho ([1867] 1988, vol.II, p. 200, grifo nosso).

As mudanças em curso não derivam de alterações estruturais nesta relação, mas têm
desdobramentos significativos sobre ela. Na verdade, estas mudanças possuem
continuidades e rupturas e estão articuladas a questões técnico-organizativas, político-
econômicas e ideo-culturais, que vêm se constituindo ao longo de um determinado
processo sócio-histórico. A dinâmica da base produtiva mantém uma interação dialética
com a capacidade reivindicativa da classe trabalhadora e com as suas condições de vida e
de trabalho, de modo que provocam mudanças que abarcam o conjunto da vida social,
produzindo mais diversificadas e complexas expressões da questão social.
Marilda Iamamoto chama a atenção para o fato de que “a mundialização
financeira sob suas distintas vias de efetivação unifica, dentro de um mesmo
209

movimento, processos que vêm sendo tratados pelos intelectuais como se fossem
isolados ou autônomos” (2008, p. 114, grifo da autora). Dentre estes, ela destaca:

A “reforma” do Estado, tida como específica da arena política; a reestruturação


produtiva, referente às atividades econômicas empresariais e à esfera do
trabalho; a questão social, reduzida aos chamados processos de exclusão e
integração social, geralmente circunscritos a dilemas da eficácia da gestão
social; à ideologia neoliberal e concepções pós-modernas, atinentes à esfera
da cultura (2008, p. 114, grifo da autora).

Sendo assim, o maior desafio que encontramos para analisar as particularidades


contemporâneas do desenvolvimento capitalista está em conseguirmos articular todas estas
determinações e entendê-las como uma totalidade dinâmica, para que seja possível analisar
os (des)caminhos que vêm tomando o processo de produção e reprodução da questão
social.
Podemos acrescentar, ou dar mais visibilidade também, no que diz respeito a
“reforma” do Estado, à maneira como vêm sendo conduzidas as políticas sociais, tendo em
vista que elas mantêm íntima relação, não apenas com as mudanças na base produtiva, mas
também com as estratégias de enfrentamento à questão social.
Sendo assim, a perda de força da defesa da universalidade da política social e o
avanço de sua mercantilização, a flexibilização das relações trabalhistas e a precarização
do trabalho, o aumento da exploração, a intensificação dos fluxos financeiros, o aumento
da concentração e centralização do capital – que acirra a concorrência e absorve a pequena
produção –, são fruto de mudanças que o Estado contribui para operar e que reconfiguram
a questão social e o tratamento que é dado a ela.
Cumpre ressaltar que a questão social não significa simplesmente a desigualdade
social, a pobreza ou a miséria. Por um lado, ela é expressão da “banalização do humano,
que atesta a radicalidade da alienação e a invisibilidade do trabalho social165 – e dos
sujeitos que o realizam – na era do capital fetiche” (IAMAMOTO, 2008, p. 125). Por outro
lado, ela representa também, a capacidade que os sujeitos têm de explicitar esta situação e
de pressionar para que seja enfrentada esta realidade. Sendo assim, não somente a

165
“É exatamente esta forma acabada – a forma dinheiro – do mundo das mercadorias que objetivamente
vela, em vez de revelar, o caráter social dos trabalhos privados e, portanto, as relações sociais entre os
produtores privados” (MARX, [1867] 1988a, p. 73).
210

desigualdade, mas também a iniciativa de enfrentá-la são indispensáveis para o seu


entendimento. Por esta razão, Iamamoto (2008, p. 156) ressalta que a questão social:

condensa o conjunto das desigualdades e lutas sociais, produzidas e reproduzidas


no movimento contraditório das relações sociais [...]. Ela expressa, portanto, uma
arena de lutas políticas e culturais na disputa entre projetos societários,
informados por distintos interesses de classe na condução das políticas
econômicas e sociais, que trazem o selo das particularidades históricas nacionais.

A correlação de forças na sociedade, portanto, é dada por uma tensão entre as


estratégias de reprodução da desigualdade e a capacidade da classe trabalhadora de
“produzir rebeldia”, para usar os termos da autora. Sendo assim, seu enfrentamento impõe
a organização coletiva da classe no sentido de superar suas determinações estruturantes,
tarefa que se traduz, dentre outras coisas, na ação política mediatizada pela luta e
afirmação das políticas sociais. Estas conquistas, ao garantirem melhores condições de
vida, podem permitir seguir avançando do ponto de vista político-organizativo no
enfrentamento ao capital.
Consideramos importante fazer esta ressalva porque o atendimento às demandas da
classe trabalhadora possui desdobramentos que vão para além dos anseios presentes nas
reivindicações. Deste modo, a própria análise da luta por direitos deve se dar levando em
consideração seus aspectos contraditórios e a tensão existente entre as necessidades de
reprodução do sistema e a capacidade reivindicativa da classe trabalhadora. Não podemos
isolar nenhum dos elos deste conflito, sob pena de travarmos um debate com apenas uma
parte deste processo, o qual precisa ser visto na perspectiva da totalidade.
Sabemos que o agravamento das condições de vida vem acompanhado de um
conjunto de instrumentos que cumprem a importante função de contribuir para a
reprodução deste sistema, os quais enfraquecem – mas nunca neutralizam – as
possibilidades de questionamento e contestação. Dentre estes, destacamos a perspectiva do
direito166, a qual possui o papel de manutenção da ordem institucional e das relações
sociais burguesas, ao contribuir para a afirmação de uma suposta igualdade entre pessoas
com origens de classe distintas.

166
Com base em Silvana Mara dos Santos, gostaríamos de destacar que “o direito a que estamos nos
referindo é aquele que se efetiva de modo institucional, definindo norma, critérios e um corpo técnico
responsável para regular as relações entre os indivíduos e seu sistema de propriedade” (2007, p. 25).
211

A existência desta noção abstrata de igualdade, escamoteia todo um conjunto de


desigualdades, fato que contribui para legitimar os privilégios da burguesia em relação à
classe trabalhadora. Nas palavras de Lukács, “o direito surgido porque existe a sociedade
de classes é, por sua essência, necessariamente um direito de classe: um sistema para
ordenar a sociedade segundo os interesses e o poder da classe dominante” (apud SANTOS
2007, p. 25). Na mesma linha, Gramsci afirma: “a função máxima do direito é a de
pressupor que todos os cidadãos devem aceitar livremente o conformismo assinalado pelo
direito, segundo o qual todos podem-se tornar elementos da classe dirigente” (GRAMSCI,
1984, p. 152-153).
Sendo assim, o direito privado e as relações jurídicas assumem um conteúdo de
classe e contribuem para garantir as relações de propriedade existentes, além de
funcionarem como um instrumento de controle sobre a classe trabalhadora167. Uma
perspectiva analítica pautada na articulação entre economia e política, tendo como
perspectiva o caráter dinâmico da construção sócio-histórica, nos permite avaliar como
que, com o avanço das forças produtivas, também as relações jurídicas precisam ser
atualizadas, incorporando novas relações de propriedade e novos códigos jurídicos.
Deste modo, a despeito de uma desigualdade estrutural inerente a este sistema, a
perspectiva do direito consegue sustentar uma atmosfera de universalidade. Esta estaria
supostamente presente em uma série de direitos que existem apenas do ponto de vista de
sua potencialidade. Lukács nos ajuda a esclarecer o significado do direito em uma
sociedade dominada pelo capital:

Nessa sociedade o direito de todos é definido como o funcionamento tranquilo


de uma ordem social que deixa intactos os interesses dos setores dominantes, e
circunscreve as possibilidades de uma admissível mudança social nesta
perspectiva. Observando como as coisas funcionam nesta sociedade, é tentador
concluir que “o interesse de todos” é um conceito ideológico vazio, cuja função é
a legitimação e a perpetuação do sistema de dominação dado (apud SANTOS,
2007, p. 26).

167
“O direito de propriedade privada constitui a base do poder econômico, mas, sob o sufrágio universal, os
privilégios da propriedade privada são substituídos pelo poder correspondente a ‘uma pessoa, um voto’, que
constitui a base imediata do poder político. Sob estas condições, o relacionamento entre interesses de classe
economicamente concebidos e o Estado enquanto entidade política se torna especialmente nebuloso, o que,
naturalmente, é vantajoso, pois é muito mais fácil para o Estado manter a aparência de árbitro neutro entre
todos os interesses” (HARVEY, 2006, p. 86).
212

É neste sentido que o discurso de cidadania ganha corpo. Em Marshall ([1950]


1967), um dos principais formuladores deste debate, a luta pela cidadania não só se
restringe aos marcos da sociedade capitalista, como torna-se totalmente compatível com as
desigualdades advindas da esfera produtiva. Sua proposta é, em síntese, resolver no plano
da distribuição, problemas que, como sabemos, encontram raízes na dinâmica de
acumulação capitalista.
Situar a luta por direitos neste terreno significa, a nosso ver, contribuir para
canalizar demandas populares para consolidar as relações políticas, econômicas e
ideológicas que geram estas mesmas demandas. Deste modo, isto funciona como um
estímulo para aprofundar a função integradora do Estado e caminha no sentido de
promover o favorecimento da classe dominante no que diz respeito ao fortalecimento de
sua posição hegemônica.
Este é o contexto que fundamenta as análises de Ivo Tonet (1997) acerca da
discussão no plano dos direitos. O autor resgata, de forma muito pertinente, os limites e
contradições da luta por direitos em uma sociedade capitalista dado que a luta só existe em
função da não realização do direito. Tomando como exemplo o direito ao trabalho, temos
que:

o direito de todos ao trabalho só existe como direito porque ele não pode ser
realizado. A sua plena efetivação só seria possível mediante a eliminação da
compra-e-venda da força de trabalho, com todas as suas consequências, ou seja,
a superação da sociedade regida pelo capital. O mesmo raciocínio pode ser
aplicado ao direito de propriedade, à educação, à saúde, etc. Ora, um direito que
não existe como direito porque existe como realidade efetiva, não pode chamar-
se direito. A ninguém ocorreria instituir o direito a respirar (1997, p. 173).

Podemos dizer, deste modo, que, quanto menos estes direitos ganham concretude
na realidade, mais a defesa destes aparece no plano da retórica, da igualdade e justiça
formais; quanto maior a degradação da vida humana e o individualismo, maior o apelo à
ajuda, à solidariedade, à preocupação com o “bem comum”. Nesta perspectiva, afirma
Mészáros: “A promessa de ‘imparcialidade’ e ‘justiça’ em um mundo dominado pelo
capital só pode ser o álibi mistificador para a permanência da desigualdade substantiva”
(2002, p. 305). Neste sentido, apesar da existência de direitos formais, a efetivação destes
direitos na sua totalidade é incompatível com a lógica deste sistema.
É justamente pelo fato de entendermos que a efetivação dos direitos na sua
totalidade é inviável nos marcos do capital, que consideramos importante – no contexto da
213

luta de classes – explorar esta contradição. Em outras palavras, consideramos que, mesmo
com limites, a luta por direitos não deve ser abandonada. Ao contrário, se deixá-la de lado,
a classe trabalhadora perde um importante instrumento de tensionamento com o capital e
garante a burguesia um ambiente muito mais favorável para sua ofensiva.
Ao mesmo tempo, sabemos que esta luta possui limites. As possibilidades de
interferir na distribuição de renda não dependem exclusivamente da vontade da classe
trabalhadora, nem poderão se dar de forma efetiva em uma sociedade sob o domínio do
capital. Mandel afirma que:

Tudo quanto pode acontecer é, portanto, uma redistribuição “horizontal” por


meio da centralização de frações da mais valia e salários (“salários indiretos”) –
cuja finalidade é assegurar a realização efetiva de certas despesas importantes
para a preservação da sociedade burguesa, que os gastos privados das principais
faixas de renda não cobrem (1985, p. 342).

Entretanto, esta luta é indispensável à classe trabalhadora, tanto pelo fato de


acumular forças para uma intervenção mais radical, quanto pelo fato de possibilitar
conquistas que contribuam para efetivamente melhorar suas condições de vida.
É nesta perspectiva que gostaríamos de adentrar no debate acerca das políticas
sociais, tendo em vista que estas políticas constituem um dos principais espaços de
concretização dos direitos sociais. Ela é, portanto, do mesmo modo, indispensável para o
fortalecimento da classe trabalhadora, ainda que permeada de contradições.
Este debate, entretanto, é alvo de muitas polêmicas. Mesmo se nos centrarmos em
um campo mais crítico, a concepção de política social pode ser vista de formas bastante
distintas, o que dá margem a diversas interpretações acerca do seu potencial e dos sujeitos
que devem impulsioná-la. Elaine Behring (2002), em Política Social no Capitalismo
Tardio, procurou sistematizar o tratamento teórico metodológico da política social e
identificou os principais equívocos presentes nas análises acerca desta temática.
O primeiro deles seria o politicismo. Padecem deste equívoco de interpretação
aqueles que hiperdimensionam as possibilidades dos sujeitos que a demandam. Acabam,
portanto, dando uma grande ênfase ao poder de pressão da classe trabalhadora, como se ela
fosse capaz de conduzir o ritmo e a configuração das políticas sociais independentemente
do processo de produção e das condições históricas existentes.
O segundo equívoco apontado pela autora relaciona-se à dificuldade de
compreender os limites da política social no contexto de luta de classes. Assim, a
214

centralidade da atuação gira em torno do Estado, como se este fosse capaz de promover
uma conciliação entre acumulação e igualdade. A proposta se dá como se fosse possível
resolver, na esfera da circulação, uma desigualdade oriunda no processo produtivo.
Uma outra interpretação bastante recorrente é aquela que se propõe a utilizar na
análise um arcabouço teórico pautado na tradição marxista, mas encaminha sua discussão e
suas propostas tendo como referência o enfoque distributivista. Deste modo, apesar de um
potencial crítico-analítico, os desdobramentos da análise acabam não ultrapassando as
fronteiras do capital.
Para finalizar, Behring (2002) chama a atenção para uma forma de tratar a política
social que é decorrente de uma concepção de Estado com a qual temos desacordo. A
perspectiva de que o Estado seria uma instância acima das relações sociais e, portanto, fora
da sociedade. Nesta concepção, a política social parece ser explicada somente pelo papel
do Estado, como se não houvesse interferência possível fora dele, como a atuação dos
movimentos sociais, por exemplo.
Consideramos que, para escapar destas análises parciais e avançar no sentido de
buscar a perspectiva da totalidade, é fundamental um domínio dos pressupostos da crítica
da economia política desenvolvida por Marx. A articulação dialética entre o econômico e o
político é indispensável para entendermos as contradições e as possibilidades no interior da
luta por políticas sociais.
Do ponto de vista do capital, uma das principais funções das políticas sociais
consiste em regular o processo de reprodução da força de trabalho. Isto se dá por que, por
um lado, a oferta de serviços como moradia, saúde e educação168 garantem à classe
trabalhadora condições mínimas de reprodução da vida material. Por outro lado, liberam
recursos para o consumo dos bens produzidos pelos detentores do capital, o que,
juntamente com as políticas de Previdência e Assistência (que atuam mais diretamente
sobre a população que não está inserida no mercado de trabalho e, portanto, não recebe
salário), contribuem para evitar a queda da demanda efetiva nos momentos de crise.

168
A educação cumpre ainda uma importante tarefa no sentido de fornecer “recursos humanos” perfeitamente
adaptados a lógica do capital e com a qualificação necessária para atender aos seus interesses. Assim, ela
tende a assumir, tanto no que diz respeito ao ensino básico e fundamental, quanto ao superior – isto
dependerá da correlação de forças e das condições materiais existentes –, a dimensão e o formato exigidos
para garantia do processo de produção e reprodução capitalistas.
215

Existem também outras políticas setoriais169 como transportes, saneamento básico que,
dentre outras funções, contribuem significativamente para ampliar as possibilidades de
valorização capitalistas (NETTO, 1996; BEHRING, 2002).
Dado que o Estado tem como uma de suas grandes tarefas administrar as crises,
podemos dizer que as políticas sociais integram a estratégia anti-cíclica, mas muitas vezes
não são capazes de obter resultados satisfatórios se atuarem sozinhas. Neste sentido, a
política social não atua de forma isolada, ao contrário, ela “aparece associada a um
conjunto de estratégias anticrise, especialmente a intumescência dos orçamentos militares,
que caracterizou o período de expansão pós-45, em nome da Guerra Fria” (BEHRING,
2002, p. 168).
Aliado a isso, se tentarmos ir além das suas estratégias exclusivamente econômicas,
veremos que a implementação destas ações vem sempre acompanhada de mecanismos de
controle da classe trabalhadora e de construção de consensos. O Estado é legitimado como
uma instância a serviço dos interesses de toda a coletividade e, deste modo, legitima o
próprio modo de produção capitalista, obscurecendo seu caráter de classe e
hiperdimensionando suas possibilidades de incorporação de demandas e ações no sentido
da melhoria da qualidade de vida de todas as pessoas. Nas palavras de Engels

para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes
não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, torna-se
necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a
amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da ‘ordem’. Este poder,
nascido da sociedade, mas posto acima dela e distanciando-se cada vez mais, é o
Estado (ENGELS, [1884] 1984, p. 227).

É justamente a falsa noção de que ele estaria acima destes interesses que permite
tomar partido da luta de classes, ao mesmo tempo em que evita o acirramento dela. Na
intenção de mediar os conflitos de classe e defender os interesses da burguesia é que o
Estado aparece como sendo o responsável pelo tão difundido “bem comum”. Mas afinal,
como é possível defender o “bem comum” em uma sociedade dividida em classes e,
portanto, com interesses contraditórios e conflituosos? É neste sentido que esta afirmação

169
“Enquanto intervenção do Estado burguês no capitalismo monopolista, a política social deve constituir-se
necessariamente em políticas sociais: as sequelas da ‘questão social’ são recortadas como problemáticas
particulares (o desemprego, a fome, a carência habitacional, o acidente de trabalho, a falta de escolas, a
incapacidade física etc) e assim enfrentadas (NETTO, 1991, p. 28, grifos do autor).
216

não pode ter outra função que não seja a de deixar velada a verdadeira motivação que
fundamenta a existência e a manutenção do Estado: a garantia da dominação de uma classe
sobre a outra.
A responsabilidade pela defesa e implementação das políticas sociais não pode,
portanto, ficar restrita ao Estado. É possível identificar, no debate da tradição marxista,
uma articulação entre o público e o privado que inviabiliza a existência do Estado como
uma instância independente de interesses e de uma posição de classe. Em outras palavras,
as disputas acontecem em virtude da configuração da luta de classes, de modo que
possibilidades de avanço e de retrocesso na implementação das políticas sociais dependem
também das condições materiais de produção e, portanto, dos ciclos econômicos. Deste
modo, Behring afirma de forma bastante enfática que:

O significado da política social não pode ser apanhado nem exclusivamente pela
sua inserção objetiva no mundo do capital, nem apenas pela luta de interesses
dos sujeitos que se movem na definição de tal ou qual política, mas
historicamente, na relação destes processos na totalidade (2002, p. 174).

Assim, se por um lado admitimos que as políticas sociais possuem uma


funcionalidade neste sistema, por outro lado, é importante que ela seja entendida também
como sendo fruto das demandas e das lutas travadas no interior deste sistema. Entretanto,
as análises acerca desta temática no campo da esquerda têm levado, muito frequentemente,
a dois caminhos que consideramos substantivamente equivocados e, apesar de distintos,
possuem um ponto em comum: desconsideram a natureza contraditória desta política.
Tem sido bastante recorrente entre os segmentos mais críticos a existência de
grupos ou forças sociais que atribuem às políticas sociais o papel de resolver os problemas
oriundos da estrutura produtiva. De uma forma ou de outra, as perspectivas distributivistas,
politicistas, estatistas, ou mesmo as que possuem um conteúdo de ecletismo acabam
centrando forças na luta por políticas sociais (via Estado ou via lutas populares), como se
elas por si só pudessem alterar substantivamente a realidade desigual que marca a
sociedade capitalista.
Entender o sentido que a burguesia atribui aos direitos e à política social é
fundamental para rompermos com análises – ainda que, por vezes, bem intencionadas – de
que estas lutas são capazes de superar todas as expressões da questão social. Consideramos
217

esta perspectiva já bastante discutida, de modo que não pretendemos nos estender neste
debate.
Nossa preocupação neste momento é centrar forças em um segundo grupo da
esquerda, que acaba incorrendo em outro equívoco: o de acreditar que a luta por direitos e
por políticas sociais cumpre um único papel, qual seja, o de fortalecer o projeto burguês de
sociedade. Não há, para os defensores deste ponto de vista, na conquista de direitos, nada
que mereça comemoração por parte da classe trabalhadora.
Sérgio Lessa, um importante filósofo e estudioso da teoria crítica pautada no
referencial teórico marxista, chega a dizer, por exemplo, que “o Estado de Bem Estar não
pode ser considerado uma vitória dos trabalhadores” (LESSA, 2007, p. 53). Para ele, o
período pós-guerra trouxe ganhos somente para a burguesia e expressou a fragilidade
política da classe trabalhadora.
É claro que pactuamos da análise de que o Estado de Bem Estar foi fundamental
para dar novo fôlego à acumulação capitalista, mas consideramos que é resultado também
de lutas empreendidas pela classe trabalhadora, e teve como resultado significativas
melhoras para esta classe, se tomarmos como parâmetro o período que o antecedeu. Não
queremos com isso dizer que esta melhora se deu de forma homogênea, ou que tenha se
dado sem contradições ou sem exploração de trabalhadores, mas houve melhorias e é
importante que reconheçamos isso.
Sabemos que as conquistas empreendidas não teriam sido possíveis se não fosse a
capacidade de articulação e de lutas que, de alguma forma, pressionaram o capital a dar
respostas. No entanto, este grupo defende que a luta pela cidadania ou pela democracia,
contribui para fortalecer os princípios da propriedade privada e reforçam os valores
burgueses. “Por isso, na crítica ao Estado “político”, da cidadania, e da ‘sociedade
burguesa’, não devemos propor [...] o revigoramento da cidadania, a democratização da
democracia etc. [...]” (LESSA, 2007, p.49).
Acreditamos que é importante encararmos a democracia como uma luta
indispensável e o reconhecimento de que somos sujeitos de direitos contribui para darmos
concretude às nossas reivindicações. De outra forma, acabamos caindo em abstrações que
não favorecem a organização coletiva. Lessa, ao contrário, afirma que:
218

Na luta contra a presente onda histórica de destruição dos “direitos”, o horizonte


170
estratégico adequado não pode ser a luta “por meio do Estado” pela
manutenção dos direitos”, mas sim a luta estratégica por uma sociabilidade na
qual os “direitos” e a propriedade privada serão superados tal como o Estado e o
casamento monogâmico (LESSA, 2007, p. 50).

Diferentemente de Lessa, pensamos que é exatamente nesse contexto de destruição


de direitos que devemos lutar pela sua defesa e ampliação. Do contrário, como avançar
para uma sociedade sem Estado se não conseguirmos, ao menos, assegurar as conquistas
democráticas da classe trabalhadora?
A luta pelo fim do Estado, ou do casamento monogâmico, apesar de ser importante,
não aglutina em torno de si a diversidade e a potencialidade da luta que precisa ser travada
para alterar significativamente as bases em que se estrutura a nossa sociedade. Assim, elas
acabam ficando vazias de conteúdo e caindo em abstrações com poucas chances de ganhar
materialidade.
Além disso, gostaríamos de chamar a atenção para o fato de que Lessa, em sua
análise, identifica a luta “por meio do Estado” como sendo a luta parlamentar, expressando
uma visão bastante restrita do Estado, o que acaba por influenciar o potencial que ele
atribui à luta por direitos. Consideramos que a leitura de Gramsci171 pode contribuir muito
para ampliar a visão do Estado e para perceber as contradições que, no atual estágio de
avanço das forças produtivas, ele comporta em seu bojo.
Podemos acrescentar ainda que, independentemente da existência de uma
concepção restrita de Estado ou não, consideramos que o potencial da luta parlamentar, ou
de qualquer outra, não pode ser dado a priori, nem definido em abstrato, tendo em vista
que depende das condições histórico-concretas, da correlação de forças, mesmo que, no

170
Ao utilizar esta expressão “por meio do Estado” o autor faz referência a Marx em A Questão Judaica
([1843] 2009). Consideramos que esta obra, ainda que indispensável para o debate sobre a superação desta
sociedade e os limites da luta pela emancipação política, precisaria ser melhor contextualizada pelo autor,
que faz uma transposição, a nosso ver mecânica, para a compreensão do contexto atual em que a luta é
travada.
171
Consideramos que Gramsci cumpre, com relação a Teoria Marxista do Estado, um importante papel de
atualizá-la e ampliá-la, inserindo novas determinações. Mas este avanço não se deu às custas de negações ou
contradições a respeito das análises clássicas, ou seja, “Gramsci não inverte nem nega as descobertas
essenciais de Marx, mas ‘apenas’ as enriquece, amplia e concretiza, no quadro de uma aceitação plena do
método do materialismo histórico” (COUTINHO, 2003, p. 123). Gramsci não nega o caráter de classe do
Estado, muito menos a importância da utilização de seu braço repressivo. A percepção do processo de
socialização da política e de ampliação da participação das massas, entretanto, chamou sua atenção para a
necessidade de discutir a hegemonia e a utilização dos “aparelhos privados de hegemonia” na construção de
consensos.
219

limite, não seja capaz de romper com a ordem estabelecida. Em outras palavras, “no
pensamento marxiano não se trata da derivação mecânica entre o sistema jurídico-político
e a estrutura da sociedade, mas de estabelecer, por um conjunto de mediações, a relação
entre a sociabilidade e o direito, entre a universalidade e a singularidade” (SANTOS, 2007,
p. 28). Sendo assim,

Somente as condições sócio-concretas e no ambiente contraditório da luta de


classes é possível definir precisamente se determinada luta por direito, e sua
respectiva configuração legal, orienta-se para desmistificar formas históricas de
dominação ou, ao contrário, aprofunda e reforça ações não conformistas, por
disseminar ideologicamente, a igualdade perante a lei, como se esta fosse a
própria resolução de uma dada forma de opressão e de exploração (SANTOS,
2007, p. 28).

As políticas sociais não seriam viáveis se não fosse a capacidade da classe


trabalhadora de fazer denúncias e de explicitar suas demandas por meio da luta coletiva e
da articulação de suas forças. Afinal, qualquer que seja a situação, a regulamentação de um
direito não acontece sem luta, sem que as desigualdades sociais apareçam sob a forma de
reivindicações, ainda que o Estado possa se antecipar e imprimir a ela um ar de concessão
ou favor.
Como dissemos, mesmo que a luta possa ser aproveitada de maneira vantajosa para
a burguesia, a plena consolidação destes direitos acaba confrontando seus interesses à
medida que aumenta a pressão por distribuição de renda e, portanto, pode ameaçar as
possibilidades de extração de mais valia. Abrir mão dela é, necessariamente, garantir uma
trajetória bem mais favorável para a manutenção do projeto burguês.
A emergência e a configuração da política social, portanto, não apenas está longe
de ser natural, fruto de uma geração “espontânea”, como consiste em um “produto da
organização coletiva e da articulação entre luta institucional, parlamentar, luta popular e
extra-parlamentar” (SANTOS, 2007, p. 29). Deste modo, cada uma destas lutas – quando
travadas de forma coletiva e mediante uma análise da correlação de forças – pode ter
resultados que sejam, de alguma forma, capitaneados pela classe trabalhadora e
transformadas em combustível para uma luta mais ousada, que tenha como fim a
transformação social.
Estas lutas, na medida em que podem ser traduzidas em algo que faz parte do
cotidiano da classe trabalhadora, podem suscitar pequenas conquistas e, deste modo,
contribuir para a continuidade das reivindicações, bem como para o surgimento de novas.
220

Acreditamos, portanto, que a luta por políticas sociais e pelos direitos é um instrumento
indispensável ao enfrentamento às diversas formas de exploração presentes no capitalismo,
embora não elimine as bases desta exploração. Somente assim é possível garantir um
acúmulo ideológico e material a favor da classe trabalhadora e fortalecer sua disputa pela
hegemonia.
Nesta disputa pela hegemonia, o acesso a informações nos parece um elemento
indispensável. Quando falamos em acesso não nos referimos exclusivamente à
possibilidade de buscar ou levantar dados, mas de produzir um conhecimento que torne
estas informações passíveis de serem compreendidas e traduzidas em demandas que
atendam aos interesses da classe trabalhadora. O acompanhamento e monitoramento da
implementação das políticas sociais deve ser uma das principais ferramentas para
estabelecer reivindicações e traçar os caminhos a serem perseguidos para sua efetivação e
ampliação. O debate sobre o financiamento e os gastos governamentais assume, deste
modo, um caráter político sobre o qual nos debruçaremos neste capítulo.

3.1.2 A necessária articulação entre financiamento e gastos no debate sobre as políticas


sociais

O debate sobre o financiamento e os gastos governamentais fica, em geral, restrito a


técnicos e “especialistas” no assunto e muitas vezes não aparece na discussão acerca das
políticas sociais. Consideramos, entretanto, que esta é uma chave fundamental para uma
abordagem acerca desta temática. Decifrar esta linguagem nos parece um desafio a ser
enfrentado e que contribui para desvendarmos muitas das falácias que giram em torno
desta questão.
Mas somente defender a importância de entender a dinâmica de financiamento e
gastos poderia sinalizar que esta é realmente uma questão técnica e que cabe a nós entrar
nesta arena. Não é isso que estamos querendo dizer. Por conter informações sobre a forma
como os recursos do fundo público são arrecadados e também para onde eles vão, podemos
identificar as prioridades definidas por um governo. Trata-se de uma discussão que possui
uma dimensão política.
O conhecimento técnico é apenas uma ferramenta para que possamos nos apropriar
do conteúdo que está por trás dos dados expressos nos números que são divulgados. O
221

fundamental que nos interessa aqui é entender de onde vêm e para onde vão os recursos e
de que modo este quadro se articula à disputa existente entre as diferentes classes sociais
pelos recursos do fundo público. Trata-se, portanto, da disputa pela condução das ações do
Estado.
Mais uma vez, ressaltamos a importância da relação entre o debate sócio- político e
os elementos trazidos pela crítica da economia política. Este é o pano de fundo da análise
que pretendemos empreender acerca do orçamento público. Sua configuração e as
definições em torno deste tema mantêm íntima relação com as bases do modo de produção
capitalista, mas também dizem respeito à forma como as distintas classes sociais se
enfrentam e atuam no cenário político.
Uma outra questão que precisamos destacar é a importância de pensarmos os gastos
de forma articulada à origem dos recursos. Muitas vezes, mesmo quando se procura entrar
neste debate, estes dois elementos aparecem de forma dissociada. Existem aqueles que
estudam as fontes de financiamento e os que se dedicam à análise da execução
orçamentária, ou seja, dos recursos públicos sob a ótica dos gastos. Consideramos que é
justamente a relação entre os dois que pode nos dar uma visão mais geral das contas
governamentais.
A análise do orçamento nos permite identificar as receitas e despesas do governo,
de modo que registra também a dívida e o tratamento que se dá a ela. Este é um ponto
importante de nossa análise, dado que permite verificar o montante de recursos
disponibilizado para alimentar o capital portador de juros. É possível, deste modo,
visualizar a classe que mais financia os gastos e aquela que se beneficia deles,
identificando o sentido da distribuição de renda operada por um governo, o que contribui
para apontar a resultante obtida no confronto entre os interesses de classe que marca o
modo de produção capitalista.
Para entendermos a estrutura de financiamento dos gastos governamentais,
precisamos nos apropriar do debate acerca da tributação. Fabrício de Oliveira destaca que,
em termos conceituais, a carga tributária é “um indicador que expressa a relação entre o
volume de recursos, que o Estado extrai da sociedade para financiar as atividades que se
encontram sob sua responsabilidade, e o produto ou a renda nacional de um determinado
país” (OLIVEIRA, Fabrício, 2010, p. 167).
Já discutimos que, na perspectiva marxiana, o que está sendo denominado
abstratamente de recursos extraídos da “sociedade” significa parcelas do trabalho
222

excedente e do trabalho necessário, (e, portanto, são recursos vindos da exploração da


força de trabalho e da capacidade que esta tem de gerar valor) que são canalizadas pelo
Estado. Da mesma forma, as “atividades que estão sob sua responsabilidade” e que irão
receber estes recursos, dependem da correlação de forças existente na sociedade e,
portanto, não correspondem a decisões técnicas, mas políticas.
De qualquer forma, esta definição nos ajuda a ter uma ideia do significado da
tributação. A origem destes recursos é diversa, de modo que podemos dizer que os
componentes da carga tributária são os tributos172 (impostos, taxas e contribuições de
melhoria) e as contribuições sociais e econômicas. A parte mais significativa de recursos é
arrecadada por meio de impostos e estes podem ser regressivos, progressivos ou
proporcionais, a depender da forma como incidem na remuneração dos contribuintes.
Convém destacar também que “as bases modernas de incidência dos impostos são a renda,
a propriedade, a produção, a circulação e o consumo de bens e serviços” (OLIVEIRA,
Fabrício, 2010, p. 183).
Os impostos regressivos são aqueles que oneram mais pesadamente os que possuem
as menores remunerações. Por tributar o mesmo valor, independente do nível de renda,
participam de forma menos significativa na renda das pessoas que possuem os maiores
rendimentos. Fazem parte desta classificação os impostos indiretos, que recaem sobre a
produção, a circulação e o consumo de bens e serviços.
Os progressivos são aqueles que incidem em proporções cada vez maiores,
conforme a remuneração aumenta. Estes são os impostos que têm maior potencial de
viabilizar uma redistribuição de renda e são auferidos por meio da tributação direta, ou
seja, da incidência direta sobre a renda e o patrimônio. Recebem esta denominação porque
“não são passíveis de transferência para terceiros, significando que o contribuinte que
recolhe aos cofres públicos é o mesmo que arca com seu ônus” (OLIVEIRA, Fabrício,
2010, p. 183). Em outras palavras, diferentemente de impostos sobre a produção,
circulação ou consumo, que em geral são repassados para o consumidor final do produto, a
tributação sobre a renda ou patrimônio é paga por quem está efetivamente contribuindo.

172
O artigo 145 da Constituição define que: “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
poderão instituir os seguintes tributos: I - impostos; II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou
pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte
ou postos a sua disposição; III - contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas” (BRASIL, 1988).
223

O imposto proporcional tem, como o próprio nome já diz, uma relação proporcional
entre a contribuição e o nível de renda, de modo que não produz alterações no nível de
distribuição de renda. Um exemplo deste tipo de imposto é a extinta Contribuição
Provisória sobre Movimentação Financeira173 (CPMF), que incidia, por meio de um
percentual, sobre o valor de cada movimentação financeira, independentemente da
magnitude desta.
Um sistema tributário conta, em geral, com uma combinação destes três tipos de
contribuição. A sua composição vai depender da capacidade que os capitalistas têm de
evitar a tributação e, ao mesmo tempo, da classe trabalhadora de garantir que ele funcione
como um mecanismo de redistribuição de renda. Sendo assim, as definições no âmbito do
Estado vão depender desta correlação de forças.
Mas esta disputa não começou hoje. Ela é um processo e teve, no Brasil, um
momento importante na constituinte, que desembocou na elaboração da Constituição
Federal de 1988 (CF88). Nela foram definidos alguns preceitos que contribuiriam para
atribuir ao sistema tributário um caráter mais distributivo. Em outras palavras, a
Constituição (BRASIL, 1988) define alguns princípios que devem funcionar como a base
de sustentação da estrutura tributária do país, dentre eles, podemos destacar:
1) Capacidade contributiva. O artigo 145, em seu § 1º define que, “sempre que possível, os
impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do
contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a
esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o
patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”(grifo nosso);
2) Isonomia. O artigo 150 proíbe, no inciso II, “instituir tratamento desigual entre
contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em
razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da
denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”;
3) Progressividade. O artigo 153 prevê que compete à União instituir impostos dentre
outros sobre: inciso III, “renda e proventos de qualquer natureza” e, segundo o § 2º, inciso
I, “será informado pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade,

173
Embora a CPMF possa ser identificada como uma tributação proporcional, Salvador nos alerta que, “de
acordo com o Ministério da Fazenda (2007), 72% da arrecadação era recolhida por PJ [Pessoa Jurídica], o
que significa repasse aos preços de bens e serviços, sendo então também um tributo indireto e regressivo”
(2010, p. 218).
224

na forma da lei”; inciso VI, “propriedade territorial rural”, que deve ser, segundo o § 4º,
inciso I “progressivo e terá suas alíquotas fixadas de forma a desestimular a manutenção de
propriedades improdutivas”; inciso VII, “grandes fortunas, nos termos de lei
complementar” (que nunca foi definida).
No entanto, estes princípios estão longe de orientarem efetivamente a condução da
política tributária. Sua garantia no texto constitucional é apenas mais um momento do jogo
das forças sociais em disputa. O grande desafio desde então, passou a ser conseguir fazer
valer o que está escrito e isto depende também das condições materiais em que se
processam os enfrentamentos necessários à sua implementação.
O início dos anos 1990 foi marcado por uma série de mudanças que influenciaram o
processo de democratização no Brasil. Estas mudanças caminharam no sentido de
restabelecer as margens de lucratividade do capital – que amargou baixíssimas taxas de
crescimento nos anos 1980 – por meio da abertura comercial e financeira, privatizações e
todo um conjunto de medidas que, além de beneficiar o capital, fortaleciam nossa inserção
dependente no mercado mundial. Além disso, todo um discurso em torno de uma suposta
crise fiscal e do combate à inflação funcionava como base de legitimação para corte nos
gastos sociais. Com isso, dificultava-se a implementação de direitos que haviam sido
conquistados formalmente e, dada a conjuntura pós-1988, acabaram tendo muita
dificuldade para sair do papel.
Salvador (2010) alerta que, no mesmo ano em que foi promulgada a CF88, a
regressividade do Imposto de Renda (IR) foi ampliada, passando a tabela do IR de 9 para
apenas 2 faixas salariais em 1989. E assim, dos anos 1990 para cá, toda a reorientação
sofrida pela política tributária caminhou no sentido oposto às prerrogativas constitucionais,
como mostram os estudos de Fabrício de Oliveira (2010) e Salvador (2010), tendo sido os
governos do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) os que mais agravaram o
quadro:

Ao longo do governo FHC foi sendo alterada, paulatinamente, a legislação infra-


constitucional, solapando ou tornando nulos os princípios básicos da reforma
tributária realizada na Constituição de 1988, agravando as distorções e,
sobretudo, aprofundando a regressividade do sistema tributário brasileiro
(SALVADOR, 2010, p. 195).

Não custa lembrar também que os anos 1990, principalmente a segunda metade,
foram anos em que vivenciamos uma política econômica que beneficiava o grande capital
225

portador de juros, tornando o país um lugar privilegiado e muito atrativo à rentabilidade


puramente financeira. A taxa de juros brasileira chegou a ser a maior do mundo e a entrada
de capitais foi amplamente estimulada174, dentre outras medidas, pela política tributária,
que criou mecanismos de renúncias fiscais175 para facilitar a distribuição de lucros176 e
desonerar o grande capital (ver SALVADOR, 2010). Sendo assim,

A política tributária foi uma determinante importante no bojo das políticas


macroeconômicas que deram sustentação ao Plano Real. A engenharia
macroeconômica que assegurou o relativo controle da inflação passou pela
elevação do endividamento público, que assegurou a transferência de renda do
setor real da economia para os detentores de excedentes financeiros,
particularmente o capital bancário (SALVADOR, 2010, p. 208).

Como já mencionamos, a tributação direta, que incide sobre a renda e o patrimônio,


é a que mais amplamente atende aos princípios constitucionais. No sentido inverso, a
tributação indireta – aquela que está voltada para bens e serviços – onera as pessoas de
forma diferenciada em relação à renda que possuem. Por pesarem mais no orçamento dos
que ganham menos, os impostos indiretos possuem um conteúdo altamente regressivo.
Salvador (2010) nos alerta que, se considerarmos o período posterior à CF88, o
debate acerca dos mecanismos para tornar a tributação brasileira mais progressiva não
apareceu. O IR ficou mais regressivo, como dissemos. Além disso, o imposto sobre
patrimônio é insignificante, como veremos, e aquele que incide sobre as grandes fortunas
inexiste.
Isto sem falar que a correção da tabela do IR é um instrumento fundamental para
garantir a progressividade do imposto. Esta tabela possui os valores em reais a partir dos
quais as pessoas deixam de estar isentas e passam a ter que contribuir. Ela também define
os limites para cada faixa de contribuição. Como vivemos em uma situação de constante
inflação, mesmo no ambiente mais estável em que nos encontramos, é comum que muitos

174
Uma das medidas foi a isenção de imposto de renda da remessa de lucros e dividendos ao exterior, como
destaca Salvador (2010).
175
“[...] Uma das renúncias fiscais implantadas em 1995 é a dedução dos juros sobre o capital próprio das
empresas do lucro tributável do Imposto de Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL)”
(SALVADOR, 2010, p. 201). Em outras palavras, parte do lucro passa a ser contabilizado como despesa e
deixa de aparecer como lucro líquido, ficando isento de imposto.
176
Outra medida foi “a isenção de imposto de renda à distribuição de lucros a pessoas físicas, eliminando o
imposto de renda na fonte sobre lucros e dividendos [...]” (SALVADOR, 2010, p. 196).
226

salários sejam reajustados com certa frequência. Estes reajustes, mesmo que não
signifiquem aumentos reais no salário, podem tirar da faixa de isentos muitos
trabalhadores, caso não haja uma atualização do valor da tabela do imposto de renda que
acompanhe a alta inflacionária.
A partir de 1996, a tabela deixou de ser ajustada anualmente e, mesmo quando o
ajuste acontece (entre 1996 e 2001 não houve reajuste), ele é insuficiente para repor os
efeitos da inflação, o que indica que o imposto foi perdendo progressividade. Em 2007, a
tabela voltou a ser reajustada anualmente, mas o reajuste foi de 4,5%, taxa que corresponde
ao centro da meta de inflação, sendo que esta ficou acima desta média em todos estes anos.
Segundo dados do Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco)177, em
1996, quem recebia até nove salários mínimos estava isento do Imposto de Renda de
Pessoa Física (IRPF). Em 2013, quem ganha mais de 2,52 salários mínimos já precisa
contribuir.
Ao mesmo tempo, a tributação indireta consiste na maior fonte de financiamento
dos recursos do governo. Em 2009, mais da metade dos recursos obtidos por meio de
impostos, um total de 54,9%, advém da tributação sob o consumo, de modo que recaem de
forma mais significativa sobre as pessoas com remuneração mais baixa. Este é um forte
indício de que a maior parte dos recursos do fundo público vem das contribuições da classe
trabalhadora.
Os impostos sobre a renda, por consistirem em uma forma de tributação direta, são
os mais indicados pela Constituição e os que têm um maior potencial distributivo.
Entretanto, eles representam apenas cerca de um quarto dos recursos do fundo público
(26,94%). O que torna esta questão ainda mais séria é que, se analisarmos a composição
destes tributos sobre a renda, a distorção é ainda maior. Destes valores, 10,68% são
oriundos da renda do trabalho e apenas 12,40% de renda do capital. Este fato mostra que,
apesar deles terem uma perspectiva progressiva – cobrar mais de quem tem mais – o que é
arrecadado diretamente pelos trabalhadores e pelo capital está muito próximo. Se houvesse
uma política tributária efetivamente redistributiva, o percentual da renda do capital deveria
ser bem maior.

177
Disponível em:
http://www.sindifisconacional.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=21833:imposto-de-
renda&catid=45:na-midia&Itemid=73. Acesso em 20/06/2013.
227

Os dados da tabela 4 mostram a estimativa da carga tributária brasileira para o ano


de 2009, por base de incidência.

Tabela 4 – Estimativa da carga tributária brasileira, por base de incidência, em 2009


TRIBUTOS Em % PIB Part. em %
Consumo 18,13 54,90
Imposto sobre importação 0,51 1,55
IPI – Total 0,98 2,96
Contribuição p/ Seguridade Social/CONFINS 3,75 11,36
Entidades Financeiras 0,23 0,71
Demais empresas 3,52 10,64
Contribuição para o PIS/PASEP 1,01 3,06
Entidades Financeiras 0,04 0,13
Demais Empresas 0,97 2,93
CIDE – Combustíveis 0,15 0,47
Imposto sobre Operações Financeiras 0,61 1,85
Contribuição Previdenciária das Empresas 3,18 9,61
ICMS 7,21 21,83
ISS 0,73 2,21
Renda 8,90 26,94
Renda do Trabalho 3,53 10,68
I. Renda – Pessoa Física 0,47 1,43
IRRF – Rendimentos do Trabalho 1,66 5,03
Contribuição Previdenciária dos trabalhadores 1,40 4,22
Renda do Capital 4,10 12,40
I. Renda – Pessoa Jurídica 2,69 8,14
Entidades Financeiras 0,43 1,31
Demais Empresas 2,26 6,83
Contribuição Social sobre o Lucro Líquido 1,41 4,26
Entidades Financeiras 0,29 0,87
Demais Empresas 1,12 3,39
Outras Rendas 1,27 3,86
Patrimônio 1,23 3,72
Imposto Territorial Rural (ITR) 0,02 0,05
IPVA 0,64 1,94
ITCD 0,05 0,16
IPTU 0,42 1,27
ITBI 0,10 0,30
Outros 4,77 14,44
TOTAL 33,0 100
Fonte: Sindifisco (2010).
228

Não podemos deixar de mencionar, também, o caráter residual da tributação sobre o


patrimônio, somente 3,72% do total de recursos que compõem o fundo público. Este seria
um dos principais mecanismos para cobrar dos que têm os maiores rendimentos e,
portanto, o maior patrimônio. Além disso, como já dissemos, o artigo 153, parágrafo 4,
inciso VII da CF88, prevê a cobrança de um imposto sobre grandes fortunas, a ser
regulamentado por uma lei complementar. Mas se a cobrança sobre patrimônio já é pífia,
sobre grandes fortunas está ainda muito mais distante de se efetivar.
Como é possível observar, do ponto de vista do financiamento das políticas sociais,
podemos indicar que existe uma contribuição da classe trabalhadora muito maior do que a
dos capitalistas, principalmente, se considerarmos esta contribuição em termos
proporcionais ao nível de renda.
Para dar continuidade a análise, precisamos resgatar alguns elementos que nos
ajudem a avaliar o montante e a qualidade dos gastos feitos com estes recursos. De
imediato, gostaríamos de informar que uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de
Planejamento Tributário (IBPT), e divulgada em janeiro de 2012178, mostra que dentre os
30 países selecionados para a realização do estudo, o Brasil detêm uma das maiores cargas
tributárias. Apesar disso, detém um fraco desempenho, quando se trata do retorno à
população por meio de serviços públicos, ilustrado, dentre outras coisas pelo pior Índice de
Desenvolvimento Humano179 (IDH), dentre os países pesquisados.
Salvador (2010), entretanto, faz uma crítica a este mito de que temos uma carga
tributária alta quando considera que o valor arrecadado com tributos precisa ser associado
aos valores que se deixa de arrecadar por meio de subsídios fiscais e outras
transferências180. Além disso, como dissemos, o problema não é a magnitude dos recursos,

178
Disponível em: http://www.ibpt.com.br/img/_publicacao/14191/196.pdf. Acesso em 13/02/2012.
179
Segundo o documento, o IDH “é uma medida comparativa de riqueza, alfabetização, educação, esperança
de vida, natalidade e outros fatores para os diversos países do mundo. É uma maneira padronizada de
avaliação e medida do bem-estar de uma população, especialmente bem-estar infantil. O índice foi
desenvolvido em 1990 pelo economista paquistanês Mahbubul Haq, e vem sendo usado desde 1993 pelo
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em seu relatório anual. [...] Este índice é
calculado com base em dados econômicos e sociais. O IDH vai de 0 (nenhum desenvolvimento humano) a 1
(desenvolvimento humano total). Quanto mais próximo de 1, pode-se afirmar que esse país é o que atingiu
maior grau de desenvolvimento”. O documento aponta que o IDH brasileiro de 2011 foi 0,718.
180
Tendo como referência Santos, Salvador afirma que “[...] uma análise da carga tributária líquida com base
nas contas nacionais, isto é, a carga tributária bruta menos os subsídios dados pelo governo aos produtores
privados e as transferências de previdência e assistência social feitas pelo governo às famílias e às
instituições privadas sem fins lucrativos, que significa uma transferência quase imediata de renda, mostra que
229

mas de onde eles saem, ou seja, quem paga a conta. Em todo caso, os dados da pesquisa
ajudam a sinalizar que existe um descompasso entre o que é arrecadado e a disponibilidade
do Estado para atender às demandas da classe trabalhadora.
Para pensarmos os gastos de forma um pouco mais aprofundada, precisamos fazer
uma breve discussão mais geral acerca do orçamento público. A Constituição trouxe
significativas mudanças no tocante ao trato orçamentário. Salvador (2010), com base em
Eduardo Refinetti Guardia, elenca três grupos de mudanças: “a) a tentativa de recuperar o
papel de planejador do Estado com a integração entre plano e orçamento; b) a conclusão do
processo de unificação orçamentária; e c) a recuperação da competência do Congresso
Nacional para dispor de matéria orçamentária” (2010, p. 175).
Em relação ao planejamento, além da Lei Orçamentária Anual (LOA), a CF88
determina a criação do Plano Plurianual (PPA) e da Lei de Diretrizes Orçamentárias
(LDO). Este ordenamento jurídico permite uma maior integração no processo que vai do
planejamento à execução das políticas, além de melhorar a possibilidade de dar maior
transparência à gestão dos recursos públicos.
No PPA são estabelecidas as diretrizes, objetivos e metas do governo (em âmbito
federal, estadual e municipal) por um período de quatro anos. Este período começa no
segundo ano do mandato e vai até o primeiro ano do mandato seguinte, facilitando uma
maior continuidade no processo de alternância de um governo para o outro. Salvador
afirma, com base em documento produzido pelo Instituto de Estudos Sócio-Econômicos
(INESC) que:

O PPA é constituído por um conjunto de programas, por meio dos quais os


governos tentam alcançar os objetivos estabelecidos no plano. O programa é um
conjunto de ações articuladas voltadas para a solução de problemas e para o
atendimento das demandas da população, sendo desenvolvido com propósito
específico e inscrito no PPA (2010, p. 175).

Assim, para receber os recursos anuais, um programa tem, necessariamente, de


estar previsto no PPA e é este que orienta as ações a serem desenvolvidas para cumprir os
objetivos estabelecidos. Para tanto, é preciso especificar os recursos, as metas e as

esta é bem menor que a carga tributária bruta no período de 1995 a 2007” (2010, p. 209). E o autor continua
analisando que “se somarmos a isso o que fica retido pelos credores do Estado na forma de pagamento de
juros, a carga tributária líquida tem permanecido, desde 2000, estabilizada em 12% do PIB, o que transforma
em ‘mito’ a elevada tributação no Brasil [...]” (2010, p. 209).
230

unidades orçamentárias que serão responsáveis por sua realização. Significa dizer que tanto
a LDO quanto a LOA precisam estar em consonância com o PPA. Mais do que isso, são
estas peças que viabilizam a definição das especificidades deste planejamento mais geral e
que vão dando corpo às ações propostas pelo governo para sua implementação.
A LDO tem como objetivo estabelecer diretrizes para elaboração e execução da
LOA, funcionando como a ligação entre o PPA e o orçamento propriamente dito. Mas ela
não se restringe a isso. Contribui para racionalizar e disciplinar as finanças públicas, além
de apontar as prioridades que serão definidas em um determinado exercício orçamentário.
Em um de seus anexos, ela estabelece as metas para a administração pública, como a meta
de superávit primário e de crescimento econômico, por exemplo, como orienta a Lei de
Responsabilidade Fiscal a qual analisaremos adiante.
Estas diretrizes também definem as questões relacionadas ao tratamento da dívida
pública, orientando o pagamento de juros e encargos, emissão de títulos, dentre outros.
Além disso, a LDO trata, como alerta Fabrício de Oliveira (2010), das alterações na
legislação tributária, da política de aplicação de recursos das agências financeiras de
fomento (como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e da
Caixa Econômica Federal (CEF)) e autoriza a criação de cargos e carreiras, concessão de
vantagens ao funcionalismo e contratação de pessoal. Para Oliveira (2010, p. 100-101) ela
significa “a arena de negociação do orçamento, podendo, por esta razão, ser apontada
como a fase mais importante de todo o processo”. Assim para que a necessidade de sua
aprovação possa promover uma discussão substantiva, é necessário, dentre outras coisas,
que os prazos e o tempo de tramitação no Legislativo sejam respeitados.
Salvador destaca que uma das grandes contribuições da LDO é recolocar o
Legislativo na discussão do orçamento e impor limites ao poder Executivo na gestão dos
recursos, aumentando o tempo para o debate sobre as contas públicas e permitindo uma
maior participação de deputados e senadores. Na verdade, todas as peças orçamentárias
devem ser apresentadas pelo Executivo e aprovadas pelo Legislativo, promovendo uma
maior interação entre estes dois Poderes.
A LOA diz respeito a três segmentos: Orçamento de Investimento das Empresas
Estatais, que trata separadamente o orçamento das empresas estatais; o Orçamento da
Seguridade Social, que envolve os recursos relacionados à Saúde, Previdência Social,
Assistência Social e Trabalho; e o Orçamento Fiscal, no qual são computados todos os
outros registros, que vão desde os gastos com a máquina administrativa do Estado até as
231

despesas com educação, energia, transportes, serviço da dívida, dentre outros. A LOA deve
ser elaborada tendo em vista as definições feitas pela LDO e nela devem estar identificados
todos os gastos planejados para o exercício do ano seguinte ao que ela foi aprovada.
Depois de executado o orçamento, o Executivo precisa elaborar um documento
denominado de Balanço Geral da União (BGU), o qual deve ser apreciado pelo Tribunal de
Contas da União (TCU) – órgão auxiliar do Legislativo –, que emite um relatório em que
sugere sua aprovação ou rejeição. Ao Legislativo cabe analisar e definir pela aprovação ou
não da prestação final das contas181. Mais uma vez a interação entre o poder Legislativo e
Executivo é fundamental, tendo em vista a necessidade do primeiro analisar a execução
orçamentária realizada pelo segundo.
Estes são os documentos que compõem o ciclo orçamentário e, apesar de todas as
inovações trazidas pela CF88, este processo ainda funciona de forma precária, ocorrendo
atrasos na aprovação das leis, sem mencionar os problemas com desvios de recursos,
dentre outros que dificultam o controle sobre as contas públicas.
Mas os desafios para um maior controle na aplicação dos recursos não se esgotam
na busca por dar materialidade a estas prerrogativas constitucionais. De 1994, início da
implementação do Plano Real, até o ano 2000, foram criados alguns mecanismos que
comprometem as ações no campo das políticas sociais em benefício do capital portador de
juros. São mecanismos que confrontam de forma institucionalizada os preceitos que
mencionamos. Dentre eles, gostaríamos de destacar três: as metas de superávit primário, a
Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e a Desvinculação de Receitas da União (DRU).
A realização do superávit primário significa produzir uma poupança primária no
orçamento para dar garantia aos credores da dívida de que o país possui condições de arcar
com o pagamento dos juros. Ele é calculado somando o total das receitas e excluindo as
despesas não financeiras, ou seja, retirando do cálculo das despesas o que é gasto com o
pagamento do serviço da dívida.
A preocupação em gerar superávits primários ganhou força por meio de um acordo
firmado com o FMI em 1998 – logo após a vitória nas urnas para o segundo mandato de
FHC –, em que se estabeleceu a elaboração de metas como uma condicionalidade para o
recebimento do repasse de recursos. A política de metas de superávit primário, portanto,
começou em 1999 e não saiu de cena desde então.

181
Vale destacar que o acompanhamento da execução não é feito somente no final. Ao longo de todo o
exercício são elaborados pelo Executivo relatórios periódicos e apreciados pelo Legislativo.
232

Este acordo com o FMI, assinado em novembro de 1998, ratificava o caminho até
então adotado no governo FHC para a saída da crise182 e retomada do crescimento.
Filgueiras resume alguns dos compromissos firmados, dentre eles, destacamos:

[...] prosseguir com a abertura comercial, não impondo restrições comerciais que
fossem incompatíveis com os compromissos da OMC [Organização Mundial do
Comércio] [...]; acelerar as privatizações e a aprovação das reformas liberais e
realizar um programa de ajuste fiscal para três anos (1999/2001), assumindo
metas com relação à obtenção de superávits primários fiscais e ao pagamento de
juros (2000, p. 143).

Este acordo nos mostra uma preocupação governamental centrada no ajuste externo
e na busca por dar todas as garantias possíveis ao capital financeiro. Uma preocupação,
portanto, que se sobrepôs à busca por melhorar as condições internas de crescimento e de
redução do índice de desemprego, um dos maiores problemas enfrentados ao longo dos
anos 1990, em virtude da política econômica adotada.
Como discutimos no capítulo anterior, no final do primeiro mandato do presidente
Fernando Henrique Cardoso, a dívida pública cresceu de forma explosiva em virtude da
política de juros altos. Esta foi uma das razões alegadas para encaminhar as privatizações,
apesar de pouco terem contribuído para a redução deste déficit.
Em outras palavras, quanto mais o governo avançava nos ajustes fiscais e na
preocupação em dar garantias de que honraria seus compromissos, mais a dívida
aumentava, dado que a política econômica adotada seguia aumentando o montante dos
serviços desta dívida. Sendo assim, foi necessário, no segundo mandato do governo, lançar
mão de outros instrumentos para assegurar os credores e garantir uma sangria de recursos
ainda maior em direção a eles.
A DRU recebeu este nome em 2000, mas tem sua origem em 1994, por meio da
criação do Fundo Social de Emergência (FSE). Portanto, é um pouco anterior ao
estabelecimento das metas de superávit primário e permite a desvinculação de recursos das
contribuições sociais e sua utilização para outros fins. Filgueiras resgata a Exposição de
Motivos nº 395, divulgada no dia em que foi anunciado o Plano, e destaca que o FSE:

182
Logo no início da implementação do Plano Real o país enfrentou os efeitos da crise mexicana, o “efeito
tequila”, como ficou popularmente conhecido. Em 1997, uma crise na Ásia e em 1998 na Rússia acabaram
levando o governo brasileiro a procurar socorro no FMI.
233

[...] tem como principal objetivo equacionar o financiamento dos principais


programas sociais que na proposta orçamentária original, mesmo após cortes
feitos, teriam de ser financiados por fontes inflacionárias. Também será
utilizado, de forma complementar, no pagamento de despesas relacionadas
com outros programas especiais de relevante interesse econômico e social
[...] (2000, p. 103, grifo nosso).

Como é sabido, este fundo não foi utilizado de acordo com o que foi definido como
sendo o objetivo principal: “equacionar o financiamento dos principais programas sociais”.
Desde o início, foi o objetivo estabelecido como complementar quem orientou as ações
voltadas para a utilização destes recursos, ou seja, o “pagamento de despesas relacionadas
com outros programas especiais”. A grande questão é que estes programas de “relevante
interesse econômico e social” são, na maior parte das vezes, identificados com o
pagamento de juros. Assim, o FSE foi recorrentemente utilizado com os mais variados
objetivos, principalmente o de atingir o chamado equilíbrio fiscal. Mais uma vez aqui,
vemos interesses individuais aparecendo como se representassem o interesse de toda a
coletividade.
Pelas suas características, ele permitia a utilização dos recursos com uma maior
flexibilidade e rapidez, o que contribuiria para amenizar os efeitos da suposta excessiva
“rigidez nas contas públicas”. Uma “rigidez” fruto do avanço conquistado com a
Constituição de 1988, que buscou amarrar melhor o trato dos recursos públicos e submetê-
los à discussão no Legislativo, como forma de evitar o uso indevido por parte do poder
Executivo, prerrogativa que foi contornada, ao menos parcialmente, por meio deste
mecanismo. Sendo assim, ao desvincular recursos que estão definidos para uma
determinada dotação orçamentária, permite-se que estes sejam gastos com o pagamento
dos serviços da dívida, sem nenhum controle e passando por cima das definições
orçamentárias aprovadas pelo Legislativo.
Não por acaso ele foi, posteriormente (1996), rebatizado com o nome de Fundo de
Estabilização Fiscal (FEF), uma denominação mais próxima de sua efetiva função. Este
Fundo vigorou, com este nome, até 31 de dezembro de 1999. A partir do ano 2000 foi
reformulado183 e passou a se chamar Desvinculação de Receitas da União (DRU) –
denominação ainda mais adequada para o objetivo efetivamente dado a este mecanismo.

183
“A principal diferença da DRU é o fato de que esta não reduz o valor de transferências constitucionais por
repartição de receitas a Estados e Municípios” (BRASIL, 2003b, p. 17).
234

No final de 2011 foi promulgada uma Emenda Constitucional que prorrogou a DRU até
2015.
Salvador (2010, p. 370) tem uma definição bastante oportuna acerca do seu
significado: “a DRU é a alquimia que transforma recursos que pertencem à Seguridade
Social em receitas do orçamento fiscal”. Isto porque permite que até 20% das receitas de
contribuições sociais (excetuando as contribuições de empregados e empregadores para a
Previdência) seja desvinculado. Estas receitas consistem em parte significativa dos
recursos da Seguridade Social e, depois de desvinculadas, podem ser repassadas para o
orçamento fiscal, no intuito de efetuar despesas com o serviço da dívida, ou serem
contingenciados para o superávit primário.
Em outras palavras, podemos dizer que a Seguridade Social vem financiando boa
parte do pagamento de juros, ao contrário da realidade apresentada pelos que afirmam ser
ela deficitária. Na verdade, a Seguridade além de não possuir um déficit, acaba
contribuindo para financiar gastos do orçamento fiscal. Uma outra questão que contribui
para onerar o orçamento da Seguridade é que existem algumas despesas que são
computadas de forma equivocada (SALVADOR, 2010, p. 372). Não nos alongaremos
nesta discussão, mas gostaríamos de destacar uma das críticas levantadas pelo autor e que
nos parece muito pertinente: “as despesas com ‘assistência do servidor’ correspondente ao
auxílio-creche, alimentação, moradia, transporte etc, que consumiram R$ 934 milhões [em
2007], não deveriam ser, em hipótese alguma, despesas da assistência social e sim do
vínculo empregatício” (2010, p. 372) e, portanto ser contabilizadas no orçamento fiscal.
Assim como esta situação, existem diversas outras em que o orçamento da Seguridade é
inchado por despesas que não são decorrentes das atividades que caracterizam as políticas
que a compõem.
A criação deste instrumento de desvinculação orçamentária compromete as
definições constitucionais acerca deste tema, desconsiderando o debate feito no
Legislativo, como já dissemos, além de desvirtuar a definição de alocação de recursos,
limitar as possibilidades de investimentos na área social, comprometer a clareza da
prestação de contas184, dentre vários outros efeitos danosos para o cumprimento das
prerrogativas da Carta Magna.

184
A LDO de 2005 determinou que o montante de recursos desvinculados da Seguridade Social deveriam ser
explicitados. Em vista disso, a Secretaria do Tesouro Nacional passou a divulgar os dados, mas ainda
permanece a falta de clareza na definição da origem dos recursos presente na execução do orçamento.
235

Em resumo, podemos dizer que a DRU foi criada para contribuir na promoção do
“equilíbrio fiscal”, ainda que o caminho encontrado para isso seja o de retirar recursos que
deveriam ser utilizados para as políticas sociais. Sendo assim, ela fere não apenas as
definições constitucionais, mas também as definições orçamentárias aprovadas no
Legislativo, sem falar que desconsidera as lutas e pressões empreendidas pela classe
trabalhadora pela ampliação no acesso a direitos e melhoria da qualidade dos serviços
prestados. Em 2000, os recursos desvinculados pela DRU representavam 72,66% do
superávit primário. Mesmo este percentual tendo sido reduzido até 2005, ele volta a subir
em 2006, chegando a 65,15% do total do superávit primário em 2007 (SALVADOR,
2010).
A LRF foi criada neste mesmo sentido. Sobre esta, o que mais se difunde é o limite
de gastos com o funcionalismo público. Como veremos, este é apenas um dos pontos da
lei. Oficialmente, alega-se a necessidade em se gastar de forma “responsável” e evitar os
excessos. Na verdade, se analisarmos de forma cuidadosa, veremos que o real objetivo – e
que não aparece no discurso oficial – é o de reduzir a capacidade que o Estado tem na
implementação de políticas sociais e no investimento, para garantir que ele arque com suas
obrigações financeiras. É isto que não aparece no debate: que este limite foi criado
justamente para contribuir com a geração do superávit primário.
Esta lei foi definida por meio da Lei Complementar nº101, de 4 de maio de 2000185,
mesmo ano da DRU, e reforça a ideia de que a política fiscal é quem deve avalizar o
espaço de valorização do capital portador de juros. Nas palavras de Salvador (2010, p.
382), “a política fiscal é a guardiã da expectativa de rentabilidade de capitais estrangeiros
[e nacionais!], e a realização de superávits primários para honrar o pagamento dos juros da
dívida é um dos atrativos para o capital externo [e nacional]” e assim reduzir seus riscos.
O autor destaca ainda, com base em Lopreato, a obrigatoriedade, definida pela
LRF, de estabelecer as metas de superávit primário na LDO, deixando bem clara a
prioridade do governo no que diz respeito ao tratamento da política fiscal. Estas metas
devem constar no Anexo de Metas Fiscais, que passa a compor a LDO. No artigo 4,§ 1º, a
lei define que no anexo “serão estabelecidas metas anuais, em valores correntes e
constantes, relativas a receitas, despesas, resultados nominal e primário e montante da

Persiste, portanto, uma dificuldade de identificar com exatidão todos os desdobramentos da desvinculação
dos recursos.
185
Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp101.htm. Acesso em 12/02/2012.
236

dívida pública, para o exercício a que se referirem e para os dois seguintes”. O parágrafo
seguinte define que este anexo deve conter também:

I - avaliação do cumprimento das metas relativas ao ano anterior; II -


demonstrativo das metas anuais, instruído com memória e metodologia de
cálculo que justifiquem os resultados pretendidos, comparando-as com as fixadas
nos três exercícios anteriores, e evidenciando a consistência delas com as
premissas e os objetivos da política econômica nacional; III - evolução do
patrimônio líquido, também nos últimos três exercícios, destacando a origem e a
aplicação dos recursos obtidos com a alienação de ativos; IV - avaliação da
situação financeira e atuarial: a) dos regimes geral de previdência social e
próprio dos servidores públicos e do Fundo de Amparo ao Trabalhador; b) dos
demais fundos públicos e programas estatais de natureza atuarial; V -
demonstrativo da estimativa e compensação da renúncia de receita e da margem
de expansão das despesas obrigatórias de caráter continuado.

Além disso, a LDO deve apresentar um anexo de riscos fiscais, avaliando passivos
e demais riscos que possam afetar as contas públicas, e um outro anexo específico para
definir os objetivos da política monetária, creditícia e cambial.
O artigo que mais impressiona é o 9º. Nele estão indicados os procedimentos que
devem ser tomados, caso seja verificada uma dificuldade em relação ao cumprimento das
metas:

Se verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita poderá não


comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal
estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério Público
promoverão, por ato próprio e nos montantes necessários, nos trinta dias
subsequentes, limitação de empenho e movimentação financeira, segundo os
critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias (grifo nosso).

Na prática, significa dizer que o governo deve deixar de usar um recurso, que foi
definido para uma dotação orçamentária, para garantir que as metas sejam atingidas. O
mais grave, e que não deixa dúvidas acerca das reais intenções desta lei, é que o § 2o
estabelece que esta limitação não vale para o pagamento de juros. Este parágrafo diz o
seguinte: “não serão objeto de limitação as despesas que constituam obrigações
constitucionais e legais do ente, inclusive aquelas destinadas ao pagamento do serviço da
dívida, e as ressalvadas pela lei de diretrizes orçamentárias”. Significa dizer que os cortes
devem ser feitos desde que não comprometam os recursos voltados para a remuneração do
capital portador de juros. Salvador observa ainda que o “corte não precisará ser aprovado
pelo Legislativo, enquanto [se] uma expansão ou melhoria de um serviço público for feita
237

mediante a interrupção de outra despesa, deve ser submetida ao parlamento” (2010, p.


383). Em outras palavras, a interrupção de uma despesa para utilização destes recursos no
pagamento de juros da dívida, não precisa passar pelo Legislativo, mas se for para expandir
ou melhorar um serviço público, esta aprovação é requerida.
Do mesmo modo, o artigo 17 trata das despesas de caráter continuado e define que
os atos que aumentarem uma despesa precisam, além de demonstrar as origens para seu
custeio, comprovar que não afetará as metas e resultados fiscais previstos. O § 6º
novamente confere um tratamento diferenciado para o pagamento de juros: “o disposto no
§ 1º186 não se aplica às despesas destinadas ao serviço da dívida [...]”.
O “curioso” é que apesar de todas estas preocupações com o atendimento das metas
fiscais, a noção de “responsabilidade” que esta lei estabelece não contempla nenhuma
preocupação com metas sociais ou com definições voltadas para a política social, muito
menos com a distribuição de renda e redução das desigualdades. Pelo contrário, todos os
demais gastos do orçamento devem se submeter à necessidade de garantia do superávit
primário e do pagamento dos juros da dívida. Deste modo, a execução do orçamento fica
submetida ao cumprimento destas exigências.
O artigo que mais se discute, entretanto, e que mais aparece na mídia e nos
comentários dos “especialistas” acerca da Lei de Responsabilidade Fiscal, está no Capítulo
IV, Da Despesa Pública, Seção II, Das Despesas com Pessoal. É o artigo 19, que dispõe
sobre o limite de gastos com pessoal. Este artigo define que

Para os fins do disposto no caput do art. 169 da Constituição, a despesa total com
pessoal, em cada período de apuração e em cada ente da Federação, não poderá
exceder os percentuais da receita corrente líquida, a seguir discriminados: I -
União: 50% (cinquenta por cento); II - Estados: 60% (sessenta por cento); III -
Municípios: 60% (sessenta por cento).

Deste modo, os gastos com pessoal têm seus limites muito claramente
estabelecidos, ao passo que as despesas financeiras, além de não terem limites, têm enorme
prioridade de recursos. Isto sem falar que este percentual é definido sem levar em
consideração as diferenças regionais, típicas de um país de dimensões continentais como o
Brasil.

186
Art.17, § 1o “Os atos que criarem ou aumentarem despesa de que trata o caput deverão ser instruídos com
a estimativa prevista no inciso I do art. 16 e demonstrar a origem dos recursos para seu custeio”.
238

Não temos dúvida, portanto, que o cumprimento desta lei compromete as


possibilidades de investimento e de ampliação das políticas sociais e dos serviços públicos
de uma maneira geral, transferindo recursos que poderiam ser utilizados para este fim no
intuito de arcar com as obrigações financeiras.
Um claro exemplo disso foi o que aconteceu com muitos estados e municípios (que
também estão submetidos a esta regulamentação). Estes, estrangulados pelas obrigações
definidas em lei e atolados em dívidas, usaram os bancos estaduais como recurso para
financiar seus desequilíbrios orçamentários. Estes bancos, “com posições fragilizadas no
mercado financeiro tinham de buscar socorro no redesconto do Banco Central. Essa
situação constituiu o cenário ideal para o processo de privatização ou liquidação de bancos,
que veio a se consolidar no governo FHC” (SALVADOR, 2010, p. 384). Salvador (2010)
resgata um estudo feito por Menezes e Junior em que se constata o aumento das despesas
com juros e encargos da dívida, acompanhado de uma redução nos investimentos na
maioria dos estados pesquisados.
Estes são alguns dos instrumentos, digamos assim, institucionalizados, que nos
ajudam a identificar as prioridades definidas pelo governo no que diz respeito à gestão dos
recursos. Para finalizar este ponto gostaríamos de abordar, rapidamente, duas outras formas
de fazer com que os recursos sejam canalizados para o capital que porta juros, mas que o
fazem de forma mais “discreta”. Uma é a política de contingenciamento e outra é a não
execução dos gastos previstos no orçamento.
Em relação ao contingenciamento, podemos dizer que, mesmo que a LOA tenha
sido amplamente discutida, esteja em consonância com a LDO e o PPA, dedique boa parte
do orçamento para as políticas sociais, enfim, no quadro mais favorável possível, ainda não
temos garantia de que os recursos chegarão efetivamente aos programas e projetos que
precisam ser realizados. O contingenciamento consiste em “um instrumento que limita o
empenho, a movimentação financeira e os pagamentos das despesas discricionárias no
âmbito federal” (SALVADOR, 2010, p. 189). Deste modo, os recursos, mesmo já
autorizados, são reduzidos, de modo a limitar a capacidade de gastos. Salvador ressalta
que “o contingenciamento orçamentário é um recurso que vem sendo bastante utilizado nos
últimos anos como meio de assegurar metas de superávit primário, funcionando como um
apêndice da política econômica adotada pelo governo federal” (2010, p. 189).
Do mesmo modo, o recurso pode já ter sido autorizado, mas não ser empenhado.
Neste caso, a não execução do orçamento acaba tendo, concretamente, o mesmo efeito que
239

teria se o recurso fosse contingenciado. Na prática, estes dois casos permitem que a
liberação de gastos seja feita a depender do cumprimento das metas econômicas e fica
condicionado à realização destas. Em ambas as situações, os valores ficam no caixa único
do Tesouro Nacional “contribuindo para a realização do resultado financeiro do governo
federal” (SALVADOR, 2010, p. 190). Ou seja, podem ser direcionados para o pagamento
de juros da dívida.
Em linhas gerais, estes são alguns elementos importantes de se ter em mente no
momento de analisar o destino dos recursos governamentais. Trata-se, portanto, não apenas
de analisar o que foi gasto, mas o que não foi e porquê. Trata-se também de identificar qual
classe social arca com a maior parte do financiamento destes gastos. Mais do que isso, de
perceber a lógica que orienta a gestão destes recursos e as prioridades definidas. A análise
sobre o financiamento e os gastos governamentais nos traz pistas importantíssimas acerca
da correlação de forças entre as diferentes classes sociais que compõem a sociedade, além
de servir como munição para as lutas e uma referência para a definição de pautas e
reivindicações.
Mas existem também questões metodológicas importantes para definir o que deve
ser considerado como gasto com as políticas sociais. Para isso, é necessário ter clareza no
que se entende por política social e as variáveis que devem ser consideradas, além de um
certo rigor no cômputo das dotações orçamentárias. A intenção é não “inflar” o cálculo
com despesas que não dizem respeito à implementação destas políticas e, ao mesmo
tempo, conseguir acompanhar os recursos utilizados para este fim. Nos dedicaremos a
fazer algumas considerações a este respeito no próximo ponto.

3.2.2 Percursos metodológicos para a análise dos gastos federais

O debate sobre o financiamento das políticas sociais é extremante complexo e


controverso. O caráter do debate, sua fundamentação e implicações vão depender da forma
como os dados são levantados e analisados, de modo que, mesmo envolvendo aspectos
mais técnicos, está longe de ser neutro ou de apontar apenas um único e incontestável
caminho.
Sendo assim, este debate envolve fundamentalmente a análise de algumas questões:
(1) o lugar das políticas sociais nas ações do Estado como um todo, (2) a caracterização
240

das políticas sociais, (3) a política tributária e a composição do fundo público, (4) a
definição dos critérios utilizados para a alocação dos recursos, (5) procedimentos
metodológicos adotados para efetuar a mensuração dos gastos e (6) comparações e
variáveis correlacionadas utilizadas para fundamentar as reflexões.
Em relação à primeira questão, reforçamos a análise do caráter contraditório das
políticas sociais. Por um lado, representam um esforço do Estado em garantir as condições
de reprodução do capital por, ao mesmo tempo, funcionarem como uma forma de
rebaixamento do custo de reprodução da força de trabalho (salário indireto) e de ampliação
das margens de lucratividade do capital, além de contribuírem para redução de conflitos e
legitimação da ordem. Por outro lado, são resultado de lutas e conquistas da classe
trabalhadora no sentido de garantir melhores condições de vida e, ao fazer isso, podem
contribuir para gerar uma situação mais favorável para novas reivindicações e, no limite,
tensionar o capital a ponto de fortalecer um processo revolucionário. É nesta arena de
contradições que se dá a luta por direitos e o processo de implementação das políticas
sociais, de modo que, ainda que esteja restrita aos limites da ordem burguesa, pode
contribuir para sua superação a depender da correlação de forças e da intencionalidade
atribuída a esta luta, em uma articulação dialética entre as condições objetivas e subjetivas.
Em relação à segunda questão, a caracterização das políticas sociais, salientamos
que o artigo 6º da Constituição, de acordo com a redação dada pela Emenda Constitucional
nº 64, de 2010187, assegura que “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o
trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Sendo assim, em
linhas gerais, podemos dizer que as políticas sociais envolvem o conjunto de ações e
programas desenvolvidos pelo Estado nestas áreas, com caráter público e continuado, no
sentido de atender, garantir e ampliar os direitos da população.
A exceção é apenas a segurança no seu aspecto mais relacionado à questão policial-
militar. Esta exclusão se baseia no fato de que, mesmo sendo um direito, sua execução se
dá por uma política de segurança, sendo esta mais vinculada à função coercitiva do que
integradora do Estado, para usar os termos de Mandel (1985). A dimensão da segurança
abarcada pelas políticas sociais refere-se a questões como alimentação, condições de
saúde, saneamento básico, políticas de transferência de renda, combate ao preconceito e

187
Disponível em http://www.soleis.com.br/ebooks/Constituicoes5-6.htm. Aceso em: 30/06/2011.
241

garantia de igualdade racial e de gênero, dentre outras, ou seja, tratam da segurança em seu
sentido mais amplo.
Ao definirmos as políticas sociais como sendo as ações desenvolvidas pelo Estado,
de caráter público e continuado, estamos querendo dizer que as ações desenvolvidas pelo
setor privado ou por organizações do terceiro setor, não se configuram como políticas
sociais, a menos que sejam definidas como rede conveniada para a prestação de serviços
públicos. As ações fragmentadas desenvolvidas pelas organizações não governamentais ou
pelo empresariado “com responsabilidade social”, embora atuem nas refrações da questão
social, no nosso entendimento não se configuram como uma política dado seu caráter
descontínuo, descentralizado, focalizado e descolado de um planejamento governamental
mais intencionalizado.
Sobre a terceira questão, destacamos o dito anteriormente: no Brasil possuímos uma
estrutura tributária extremamente regressiva, em que mais da metade dos recursos
arrecadados vem de impostos e contribuições indiretas. Sabemos que a Constituição de
1988 define alguns princípios tributários como o da igualdade e da capacidade contributiva
(artigo 150) e da progressividade (artigo 153), mas eles têm uma incidência minoritária no
total da arrecadação tributária. Isto por si só compromete as possibilidades de
redistribuição de renda. Em outras palavras, se considerarmos que a classe trabalhadora – a
que mais contribui para a magnitude de volume de recursos do fundo público – paga seus
impostos com parte do seu salário (trabalho necessário), temos que os limites para a
redistribuição de renda em favor desta classe assume proporções significativas quando
estes recursos não retornam para ela sob a forma de políticas sociais universais. Trata-se da
“exploração tributária” denunciada por Behring (2010) e a que nos referimos no primeiro
capítulo.
Quanto aos critérios utilizados para a alocação dos recursos, é preciso considerar
que a definição hegemônica procura defender a ideia de que seriam baseados em princípios
técnicos e neutros, tendo como base a noção da escassez de recursos. Já questionamos esta
análise, argumentando o caráter político destas definições e o quanto estão imbricados em
uma disputa entre as classes sociais pelo fundo público, de modo que a correlação de
forças e o poder de pressão de uma classe pode contribuir para canalizá-los em um ou
outro sentido. Significa dizer que a gestão dos recursos por parte do Estado, ainda que
tenda a servir predominantemente aos interesses do capital, não está imune às lutas
conduzidas pela classe trabalhadora e, mais do que isso, está longe de representar os
242

interesses do que abstratamente se denomina nas análises mais conservadoras como sendo
o “bem comum”.
Estes são, resumidamente, alguns dos elementos que discutimos ao longo da
fundamentação teórica e que precisamos resgatar para apresentar o marco teórico-
metodológico das análises que procuramos empreender. O central que precisamos discutir
aqui reside, basicamente, nas duas últimas questões que apresentamos: os procedimentos
metodológicos adotados para efetuar a mensuração dos gastos e as variáveis
correlacionadas que pretendemos utilizar para fundamentar as nossas reflexões.
Para começar, gostaríamos de destacar que não encontramos nenhum órgão de
pesquisa ou estudos sobre orçamento público que contabilizasse o gasto com políticas
sociais usando explicitamente o termo “política social”. O que mais se aproxima disso,
pelo que pudemos levantar, é a noção de orçamento social segundo uma classificação
desenvolvida pelo Ministério da Fazenda, e a de gasto social, na qual destacamos a
metodologia de contabilização desenvolvida pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA). Nossa intenção, por ora, mais do que discutir os números apresentados, é
analisar a forma como estes números são produzidos e buscar avaliar se existe uma
metodologia de cálculo que contemple a discussão sobre políticas sociais nos moldes que
estamos indicando ou se haveria a necessidade de elaborar uma mais adequada.
Sobre a primeira, a noção de orçamento social, encontramos uma reportagem
divulgada em 2008 no site oficial do Panorama Brasil188, em que se afirma que: “o
conceito de orçamento social ainda é pouco usado no País e engloba [...] as áreas de
previdência social, assistência social, saúde, educação e cultura, proteção do trabalhador e
emprego, habitação e saneamento, e organização agrária”. Procuramos algum documento
recente que explicitasse a metodologia utilizada para o cálculo, mas não encontramos.
O que conseguimos apurar em relação à contabilização feita pelo governo federal
foi um documento, de novembro de 2003, em que estão registrados os gastos sociais,
intitulado Gastos Sociais do Governo Central: 2001 e 2002. Trata-se de um material
produzido pela Secretaria de Política Econômica, vinculada ao Ministério da Fazenda, sob

188
Disponível em: http://www.panoramabrasil.com.br/orcamento-social-para-2009-cresce-17-e-privilegia-
educacao-id11566.html. Aceso em: 30/06/2011.
243

o comando do então ministro Antônio Palocci. Nele, além de gastos com as políticas
sociais, são contabilizados os gastos com o Sistema S189. De acordo com o documento,

apesar dessas instituições não fazerem parte do governo, recebem recursos


oriundos de contribuições compulsoriamente impostas às empresas (e,
indiretamente, aos consumidores) por força de lei e, portanto, competem com os
impostos e contribuições sociais que financiam o gasto social do governo
(BRASIL, 2003a, p.3).

Consideramos que, mesmo em uma definição mais geral e abstrata, os recursos


destinados ao sistema S possam ser considerados, em sentido amplo, como gasto social,
eles estão longe de se constituírem como gastos com política social por serem geridos por
entidades de direito privado. Além disso, este sistema possui critérios próprios de definição
de seu público alvo. Sendo assim, esta metodologia não pode ser utilizada por nós como
referência para identificar o que efetivamente é gasto com a política social do governo
federal, objeto do presente estudo. Além disso, não encontramos documentos com este
mesmo caráter para os anos subsequentes, de modo que não temos como utilizá-lo, nem
mesmo como fonte de comparação.
O IPEA vem acompanhando o gasto público federal em áreas sociais desde 1980 e
apresenta os resultados destes estudos por meio de suas publicações. Em 2012 foi
publicada a Nota Técnica nº11, intitulada Gasto Social Federal: prioridade
macroeconômica no período 1995-2010 (CASTRO et al, 2012). São dados consolidados,
portanto, referentes aos governos de FHC e Lula.
As publicações acerca do gasto social do governo federal saem, em geral, com dois
anos de atraso, tendo em vista que a contabilização na metodologia adotada por este
instituto de pesquisa leva tempo para ser realizada. Até o momento em que concluímos
este trabalho, os dados sobre 2011 foram discutidos na Nota Técnica nº13 (CHAVES ;
RIBEIRO, 2012), que trata da execução orçamentária pelo enfoque institucional. Trata-se,
portanto, de uma análise preliminar, utilizando a metodologia de mensuração divulgada
pelo governo federal. Faremos uma diferenciação entre estas metodologias mais adiante.

189
O Sistema S é composto por instituições classistas financiadas por contribuições para-fiscais e é integrado
pelo Serviço Social da Indústria (SESI); Serviço Social do Comércio (SESC); Serviço Nacional de
Aprendizagem Comercial (SENAC); Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI); Serviço
Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR); Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (SENAT);
Serviço Social do Transporte (SEST) Serviço Social do Comércio (SESC); Serviço Nacional de
Aprendizagem do Cooperativismo (SESCOOP).
244

Existe também um grupo de publicações que sai com o nome específico de políticas
sociais e não de gasto social: Políticas Sociais: acompanhamento e análise. Este
documento possui, em geral, periodicidade anual, com exceção do número 17, uma edição
especial publicada em 3 volumes e uma introdução, que buscou fazer um balanço dos 20
anos pós-Constituição. Recorremos, desta publicação, aos números 17, 18, 19 e 20, sendo
este último o mais recente e referente ao ano de 2010. Tivemos por meio destas,
informações mais específicas sobre cada uma das políticas, possibilitando-nos acompanhar
sua evolução no período definido para nosso estudo.
Entretanto, eles não indicam de forma mais precisa a metodologia utilizada para o
cálculo. Tendo em vista as distintas metodologias possíveis para definir e mensurar estes
gastos, consideramos que esta informação seria fundamental para a análise e definição
acerca da possibilidade de adotarmos estes dados como referência para nossa pesquisa.
O documento em que encontramos uma descrição metodológica mais detalhada foi
publicado em 2003 como um Texto de Discussão (TD). No anexo 2 do TD 988 (CASTRO
et al, 2003), existe um detalhamento minucioso da metodologia adotada para a
contabilização dos gastos sociais federais (GSF) e procuraremos fazer uma apresentação
desta, bem como sua análise. Acrescentaremos as contribuições contidas no TD 1324
(CASTRO et al 2008), em que os autores, não destacando de forma mais cuidadosa a
metodologia utilizada, fazem referência à metodologia apresentada no TD 988. O TD 1324
traz algumas informações complementares em relação ao texto de 2003, as quais
procuraremos demonstrar. Mais recentemente, a Nota Técnica nº11 (CASTRO et al, 2012),
apesar de também não especificar a metodologia adotada, faz algumas observações novas.
A ausência de uma descrição metodológica completa nas publicações posteriores a 2003
deve-se ao fato de não ter havido mudanças posteriores significativas. Sendo assim, muitas
vezes quando tratam deste tema, fazem apenas considerações pontuais e complementares
ao que já foi registrado anteriormente.
Para começar, os autores (CASTRO et al, 2003) fazem referência à dificuldade de
se chegar a uma definição de gasto público social (GPS) e explicam que adotaram a
conceituação de M. A. Fernandes190, em um documento do IPEA, do ano 2000, sobre a

190
FERNANDES, M. A. Mensuração do Gasto Público Social: a metodologia desenvolvida na Diretoria de
Estudos Sociais do Ipea. Brasília: Ipea, setembro de 2000 (mimeo).
245

mensuração dos gastos sociais, e uma publicação da CEPAL, assinada por Comenetti e
Ruiz191, de 1994. Esta definição foi sintetizada da seguinte forma, o GPS:
compreende os recursos financeiros brutos empregados pelo setor público no
atendimento de necessidades e direitos sociais e que corresponde ao pagamento
dos custos de bens e serviços – inclusive bens de capital – e transferências, sem
deduzir o valor de recuperação (depreciação e amortização dos investimentos em
estoque, ou recuperação do principal de empréstimos anteriormente concedidos)
192
(CASTRO et al, 2003, p.7).

O conceito de gasto social federal (GSF) é uma derivação deste primeiro e

envolve os dispêndios diretamente efetuados pelo governo federal, bem como a


transferência negociada de recursos a outros níveis de governo (estadual e
municipal) ou a instituições privadas, referentes a programas e ações
(projetos/atividades) desenvolvidos nas áreas de atuação sociais (CASTRO et al,
2003, p.7).

Sendo assim, podemos observar que a definição de gasto social parte da análise dos
recursos efetuados pelo governo e envolve transferências a outros níveis do governo ou a
instituições privadas. Este fato poderia se contrapor à nossa definição de que o gasto a ser
considerado envolve recursos públicos e ações efetuadas pelo próprio governo. Entretanto,
pelo que pudemos identificar, estas transferências a instituições privadas estão restritas a
rede conveniada, em ações que complementam os serviços públicos, portanto, cabem no
conceito que estamos adotando.
Feitas estas aproximações, o documento procura precisar melhor o que entendem
por políticas sociais e novamente ressaltam as diferenças de concepção e as imprecisões
conceituais que envolvem o debate sobre políticas sociais. Ao mesmo tempo, a discussão é

191
COMINETTI, R & RUIZ, G. Evolucion del gasto social en América Latina, 1980-1995. Cuadernos de la
Cepal. Santiago de Chile: Cepal, 1994.
192
Em uma nota de rodapé, os autores fazem referência a um outro conceito que é o de Gasto Social Fiscal,
que seria “uma depuração do primeiro, pois retira do gasto público social o valor das contribuições dos
beneficiários e/ou os valores de recuperação mencionados. Porém, a operacionalização de um sistema de
acompanhamento do gasto social em torno desse conceito está muito além dos recursos atuais disponíveis,
caso tal tarefa fosse de fato possível. Essa questão, aliada à necessidade de compatibilidade internacional,
justifica a opção pelo conceito mais abrangente, de gasto público social” (CASTRO et al, 2003, p.7).
246

muito genérica e, na definição apresentada, não parece fazer diferenciação entre política
social e política pública193, como podemos ver nos trechos que destacamos:

Para esse intuito, a política social deve ser entendida como um conjunto de
programas e ações do Estado, em geral de forma continuada no tempo, que tem
como objetivo o atendimento de necessidades e direitos sociais fundamentais que
afetam vários dos elementos que compõem as condições básicas de vida da
população, principalmente aqueles que dizem respeito à pobreza e à
desigualdade.
[...] As políticas públicas que buscam esses objetivos circunscrevem-se no
interior de organismos estatais que estão minimamente preparados para efetuar
regulação, provisão, produção e transferência de dinheiro para a formulação e
implementação de programas e ações, principalmente de Educação, Saúde,
Alimentação e Nutrição, Saneamento Básico, Previdência Social, Assistência
Social, Emprego e Defesa do Trabalhador, Organização Agrária e Habitação
(CASTRO et al, 2003, p 9, grifos nossos).

Ainda que sem fazer uma diferenciação mais precisa entre política pública e
política social, as áreas de atuação identificadas são as mesmas por nós elencadas, como
podemos ver no último trecho citado. Estes são os gastos públicos identificados pelo IPEA
para as políticas sociais e reafirmados no documento de 2008. Além disso, eles
diferenciam, de acordo com Flood, as formas de atuação do Estado (CASTRO et al, 2003).
Seriam elas:
(a) Regulação: mantém relação com o conjunto de normatização e regulação do
comportamento dos agentes econômicos (exemplo: controle de qualidade sobre a produção
e a comercialização de medicamentos, alimentos, etc.);
(b) Produção: envolve a participação direta do governo na fabricação de bens e oferta de
serviços (exemplo: educação pública);
(c) Provisão de bens e serviços: garantia, com recursos públicos, de prestação de serviços
ou de bens públicos, independentemente de serem produzidos diretamente pelo Estado
(exemplo, financiamento público de um atendimento de saúde oferecido pela rede
privada);
(d) Transferências de dinheiro: inclui as transferências de renda, como o Bolsa Família, ou
recursos como seguro-desemprego e aposentadorias.

193
No TD 1324, de 2008, esta confusão permanece, dando a entender, em diversos momentos, que
consistiriam em sinônimos.
247

Em outras palavras, trata-se de separar, em termos conceituais: as ações restritas ao


campo normativo e de regulação; as atividades voltadas diretamente à produção dos bens e
serviços; as que são providas de forma indireta (recursos públicos, mas intermediados pelo
setor privado ou não-governamental); as transferências de renda. Esta distinção nos parece
interessante e deixa claro o entendimento do financiamento público como referência para a
concepção de política social.
No que diz respeito aos critérios definidos para a alocação dos recursos públicos
temos uma diferença com o que apresentam os pesquisadores do IPEA. Para eles,

O escopo e a escala de cobertura dos bens e serviços sociais que podem ser
ofertados pelo Estado mediante políticas sociais estão diretamente relacionados
às condições econômicas estruturais, bem como conjunturais, que determinam a
disponibilidade de recursos, e ainda ao arranjo político de uma sociedade, pois é
justamente a tensão entre o arranjo político e a escassez de recursos que
define opções de ação, direção e cobertura financeira às ações sociais do Estado,
as quais resultam no Gasto Público Social (CASTRO et al, 2003, p.10, grifo
nosso).

A noção de arranjo político nos parece bastante vaga e não indica exatamente o que
está sendo considerado. Apesar de sugerir que esta definição não envolve apenas uma
dimensão técnica, não ressalta a dimensão da luta de classes na disputa pelo fundo público.
Pode estar se referindo apenas à dimensão político-institucional, alianças partidárias feitas
pelo governo, incidências de uma miríade de sujeitos no melhor espírito pluralista, ou
coisas deste tipo, abordagem que consideramos insuficiente para uma análise mais
cuidadosa dos elementos que contribuem para determinar a alocação de recursos.
A ausência desta dimensão de classe na análise tem, como um de seus
desdobramentos, certa exaltação das mudanças vivenciadas na atualidade na condução das
políticas sociais. A identificação do aumento da participação do setor privado e a diluição
das diferenças entre este setor e o público, aparece como um fato consumado e não é feita
nenhuma problematização acerca do seu significado. Sendo assim, a seção em que se
discute a relação entre política social e gasto público termina com a seguinte citação de
Draibe sobre as mudanças em curso:

O seu significado maior são profundos processos sociais que tendem à alteração
das relações entre o Estado e o Mercado; o público e o privado; os sistemas de
produção, de um lado, e os de consumo, de outro. As assim chamadas formas
alternativas – os mutirões, as diversas experiências de ajuda mútua, práticas
comunitárias e de vizinhança (na guarda de crianças, no setor de alimentação, na
248

coleta e processamento do lixo) – são exemplos que se multiplicam e que


correspondem a tantos outros, verificados em todo o mundo, de participação dos
próprios beneficiários e de envolvimento de associações voluntárias e de redes
de ONGs – Organizações Não-Governamentais – no encaminhamento das
políticas sociais. Ora, esses processos expressam novas formas de sociabilidade,
indicando um reordenamento das relações destas partes da Sociedade com o
Estado e a Economia: ali onde antes predominavam o Estado ou o Mercado (ou
os seus vários mix), um espaço passa a ser ocupado por estas novas formas da
solidariedade social, ou se quiser, por uma ampliação da autonomia dos setores
organizados da sociedade (apud CASTRO et al, 2003, p. 10, grifo dos autores)

Já fizemos uma discussão sobre a importância do Estado no planejamento,


execução e acompanhamento das políticas, de modo que estas “formas alternativas”
significam o avanço de um processo de fragmentação e privatização das políticas sociais e
contraria a noção de direito. O desenvolvimento destas formas representa um retorno à
perspectiva do favor, combatida no texto constitucional e nas lutas empreendidas pela
classe trabalhadora no sentido do fortalecimento de políticas universais, públicas e
gratuitas.
Entretanto, mais do que a análise do significado das mudanças ou mesmo da
precisão conceitual, interessa-nos identificar a maneira pela qual estão sendo levantados os
dados sobre as políticas sociais. Assim, para adentrar mais especificamente na metodologia
utilizada pelo IPEA, é importante destacar que, na sua exposição, não é utilizada a mesma
classificação presente na forma como o governo federal divulga a sua execução
orçamentária. Dentre as classificações apresentadas pelo governo e que contribuem para a
explicitação do destino de seus gastos estão: a classificação funcional e a institucional194.
A classificação funcional foi instituída pela Portaria no 42, de 14 de abril de 1999,
do então Ministério do Orçamento e Gestão. Segundo o Manual Técnico de Orçamento de
2010:

A classificação funcional é representada por cinco dígitos. Os dois primeiros


referem-se à função, que pode ser traduzida como o maior nível de agregação
das diversas áreas de atuação do setor público. A função está relacionada com a
missão institucional do órgão, por exemplo, cultura, educação, saúde, defesa, que
guarda relação com os respectivos Ministérios (BRASIL, 2009, p. 36).

194
Além destas duas existem ainda as classificações segundo a fonte de recursos, a natureza das receitas e a
natureza das despesas.
249

Ainda que esta classificação seja um bom ponto de partida, ela possui alguns
problemas por estar presa à instituição responsável. Assim, os gastos com hospitais
universitários, por exemplo, por estarem vinculados ao Ministério da Educação, aparecem
na função educação e não na saúde, comprometendo uma visualização mais precisa da área
a que estão efetivamente ligados.
A classificação institucional, relaciona os órgãos orçamentários e suas unidades
orçamentárias:

A classificação institucional, na União, reflete a estrutura organizacional e


administrativa governamental e está estruturada em dois níveis hierárquicos:
órgão orçamentário e unidade orçamentária. As dotações orçamentárias,
especificadas por categoria de programação em seu menor nível são consignadas
às unidades orçamentárias, que são as estruturas administrativas responsáveis
pelas dotações orçamentárias e pela realização das ações. Órgão Orçamentário é
o agrupamento de unidades orçamentárias (BRASIL, 2009, p. 37).

Sendo assim, funciona como um registro de despesas por órgão setorial, mas
também apresenta imprecisões em razão da forma como são registrados. Caso a
contabilização considerasse apenas a classificação funcional,

ele não permitiria uma visualização correta da finalidade dos gastos, pois, entre
outros inconvenientes: i) atribuiria parte dos dispêndios em saúde
(funcionamento de hospitais de ensino e residência médica) ao Ministério da
Educação; ii) subestimaria os gastos relativos a projetos de saneamento básico,
por se inserirem em diversos órgãos dos Ministérios da Saúde, do Meio
Ambiente e do Planejamento e Orçamento; e iii) impossibilitaria a identificação
das despesas relativas a benefícios previdenciários (pensões e aposentadorias) e
assistenciais (assistência médica e social, auxílio creche, entre outros) pagos a
servidores públicos, diluídos em cada um dos órgãos da estrutura dos Poderes
Legislativo, Judiciário e Executivo (CASTRO et al, 2003, p. 11).

A forma como os pesquisadores do IPEA procuraram escapar destas imprecisões e


agregar os valores levando em consideração a área em que os recursos estão sendo
efetivamente aplicados foi a organização dos programas e ações por área de atuação. Este
conceito “orienta o agrupamento das despesas de caráter social segundo o critério de
objetivo ou finalidade dos gastos, na tentativa de promover a melhor aproximação
possível da destinação efetiva dos dispêndios junto à população beneficiária” (CASTRO et
al, 2003, p. 11, grifos dos autores). Assim, esta classificação é feita por meio da análise
cuidadosa das unidades orçamentárias e de uma nova organização e agregação dos dados
considerando a descrição de cada projeto/atividade.
250

Para facilitar a visualização e a compreensão das áreas definidas, consideramos


oportuno reproduzir um quadro, elaborado por Castro et al (2008, p.10), ilustrando os
principais programas de cada uma delas:

QUADRO 1 – Abrangência da política social do governo federal, por áreas de atuação e


principais programas/ações
Áreas de atuação Principais programas e ações
1. Previdência social Previdência Social Básica (Regime Geral de
Previdência Social) – pagamento de aposentadorias,
pensões e auxílios-doença
2. Benefícios a servidores públicos federais Previdência de Inativos e Pensionistas da União
(Regime Jurídico Único)
Assistência Médica e Odontológica aos Servidores
Auxílio-alimentação/refeição e transporte
3. Emprego e proteção ao trabalhador Qualificação Social e Profissional do Trabalhador
Integração das Pol. Públ. de Emprego, Trabalho e
Renda
Seguro-Desemprego
Abono Salarial PIS/Pasep
4. Desenvolvimento agrário Apoio ao pequeno produtor rural;
Reforma Agrária - assentamentos sustentáveis para
trabalhadores rurais
5. Assistência social Transferência de Renda com Condicionalidades –
Bolsa Família
Proteção Social à Pessoa Portadora de Deficiência
(RMV e BPC/Loas)
Proteção Social à Pessoa Idosa (RMV e BPC/Loas)
Erradicação do Trabalho Infantil
6. Alimentação e nutrição Apoio à Alimentação Escolar na Educação Básica
Aquisição de Alimentos Provenientes da Agricultura
Familiar
7. Saúde Atenção Básica em Saúde
Atenção Hospitalar e Ambulatorial no Sistema Único
de Saúde
Vigilância Epidemiológica e Controle de Doenças
Transmissíveis
Vigilância, Prevenção e Atenção em HIV/Aids e
outras Doenças Sexualmente Transmissíveis
8. Educação Erradicação do analfabetismo
Educação infantil
Ensino fundamental
Ensino médio
Ensino superior (graduação e pós-graduação)
Ensino profissionalizante
Educação de Jovens e Adultos (EJA)
9. Cultura Etnodesenvolvimento das Sociedades Produção e Difusão Cultural
Indígenas Preservação do Patrimônio Histórico
10. Habitação e urbanismo Infraestrutura Urbana
Morar Melhor e Nosso Bairro
11. Saneamento e meio ambiente Saneamento Básico e Saneamento é Vida
Pró-Água, infraestrutura e outros
Fonte: IPEA
Nota do IPEA: Na metodologia utilizada neste e em trabalhos anteriores, as despesas do Regime Geral de Previdência
Social (INSS) são tratadas de modo isolado das despesas com os inativos e dos pensionistas do Regime Jurídico Único,
que são analisados na área de atuação benefícios a servidores públicos federais.
251

Foram definidas 11 áreas de atuação195, assim denominadas: previdência social;


benefícios a servidores da União; proteção ao trabalhador; organização agrária; habitação e
urbanismo; assistência social; alimentação e nutrição; saúde; educação; cultura; e
saneamento básico. No que diz respeito aos gastos com pessoal, destacamos que:

Os dados relativos aos recursos humanos alocados nas áreas de atuação refletem
os gastos com pessoal ativo e são computados exclusivamente para aqueles
órgãos ou programas que desenvolvem ações de cunho social. Já os dispêndios
com inativos e pensionistas, referentes a pagamento de aposentadorias, reformas
e pensões de antigos servidores (e/ou seus beneficiários) dos três poderes e dos
antigos territórios, salário-família e outros benefícios (que fazem parte da rubrica
de pessoal, no conceito contábil de natureza de gasto dos registros oficiais) estão
alocados na área de atuação Benefícios a Servidores Públicos Federais
(CASTRO et al, 2003, p. 49).

Em relação ao levantamento dos dados, existe um outro aspecto que merece nossa
atenção. De acordo com o anexo 2 do TD988 (CASTRO et al, 2003), para evitar a dupla
contagem dos gastos, a agregação é feita de 3 diferentes formas: a classificação funcional-
programática, a classificação por grupos de natureza da despesa (GND) e pela fonte de
financiamento. A vantagem é que, desta forma, é possível identificar, dentre outras coisas,
as transferências feitas pelo governo federal e os custos diretos com a máquina
governamental relacionados ao provimento das políticas sociais.
Outro destaque diz respeito aos valores contidos na execução orçamentária e que
foram definidos para a utilização no levantamento. De acordo com o documento, o IPEA
trabalha com os valores liquidados. Consideramos ser este o maior problema da
metodologia utilizada. O valor liquidado significa que houve a confirmação do empenho,
mas não foi efetuado o pagamento ainda. Principalmente se observarmos os valores do
orçamento fiscal, a diferença entre o liquidado e o pago é significativa. Como estamos nos
propondo a analisar os recursos que efetivamente saem do fundo público para garantir o
funcionamento das políticas sociais, consideramos que o mais adequado seria utilizar, para
efeitos de contabilização dos gastos, os valores pagos.
O último aspecto trazido pelo documento de 2003 que gostaríamos de destacar em
relação ao tratamento dos dados feito pelo IPEA é o deflator utilizado, Índice Geral de

195
“Salienta-se que a análise [...] procura cobrir tanto as ações sociais da administração direta quanto aquelas
desenvolvidas e executadas por órgãos da administração indireta que dispõem de recursos próprios. Assim,
evitou-se a perda de informações das entidades com atuação social descentralizada da administração”
(CASTRO et al, 2003, p. 12).
252

Preços – Disponibilidade Interna (IGP-DI) da Fundação Getúlio Vargas. Além disso, os


pesquisadores destacam que optaram por fazer a deflação mês a mês em virtude de que:

a) Algumas áreas de atuação apresentam cronogramas de dispêndios irregulares


ao longo do ano, com tendência de a despesa se concentrar nos últimos meses do
ano em observação; e
b) a correção pela média anual pode resultar em distorções graves para valores
constantes, as quais tendem a invalidar comparações com outros anos de uma
mesma série, em virtude de ela não captar uma variância acentuada nas taxas
inflacionárias mensais e/ou em períodos de aceleração inflacionária, nos quais a
execução mensal do orçamento aprovado é corroída pela inflação (CASTRO et
al, 2003, p. 49).

A Nota Técnica nº11 (CASTRO et al, 2012) traz mais duas complementações
acerca da metodologia utilizada. Um primeiro aspecto é sobre as despesas previdenciárias.
Dadas as diferenças jurídico-institucionais entre a Previdência destinada aos trabalhadores
do setor privado e a dos funcionários públicos, mesmo sabendo que existe uma
aproximação entre estas, considerou-se que seria melhor tratá-las em separado. Assim, a
primeira está contemplada na área de atuação Previdência e a segunda foi incluída
juntamente com os demais Benefícios a Servidores Públicos Federais.
O segundo aspecto diz respeito às chamadas políticas transversais (gênero,
igualdade racial, dentre outras). Esta contabilização não considera o gasto específico com
estas políticas. A justificativa apresentada nos parece bastante oportuna e contém dois
argumentos: a) seu registro não poderia ser feito apenas com base no orçamento
diretamente vinculado as estas políticas, dado que a pretensão é de que ela influencie todas
as outras políticas setoriais; b) se fossem incorporar todas as políticas tensionadas, de
alguma forma, pelas políticas transversais, acabaria ocorrendo o problema da dupla
contagem, dado que uma mesma política setorial “clássica” seria contabilizada em várias
políticas transversais. Estas dificuldades acabariam comprometendo uma visualização mais
geral do gasto social, de modo que optou-se por não lidar (diretamente) com elas.
Sendo assim, é preciso reconhecer o cuidado e as minúcias consideradas pelos
pesquisadores do IPEA para definir sua metodologia de contabilização dos gastos federais.
Apesar disso, a utilização dos valores liquidados, pelas razões que já apontamos, nos
parece um problema que tem implicações no levantamento da magnitude dos recursos
envolvidos com as políticas sociais. Consideramos, entretanto, que esta diferença não
justificaria a elaboração de um novo cálculo, de modo que decidimos pela adoção dos
dados levantados por esta instituição.
253

Gostaríamos de lembrar que nosso objetivo é analisar o lugar do gasto social nas
definições feitas pelo governo federal nos anos de 2004 a 2011, em sua relação com o
debate sobre o fundo público, a dinâmica da financeirização do capital e o nosso processo
de formação sócio-histórico. Este recorte temporal foi definido em função da periodicidade
dos Planos Plurianuais estabelecidos pelo governo federal. Estes consistem em um
planejamento feito para 4 anos e são elaborados no primeiro ano de governo. Sendo assim,
abarcam o segundo ano de um governo e vão até o primeiro ano do governo seguinte. O
período de 2004 a 2011 refere-se, fundamentalmente aos dois mandatos do governo Lula e
vai do segundo ano de seu primeiro mandato (2004) até o primeiro ano do mandato de sua
sucessora (2011), a presidente Dilma Rousseff.
Procuraremos, deste modo, fazer uma análise dos gastos deste período abarcando o
planejamento da atuação governamental, expresso nos PPA, e a execução orçamentária
destes anos, mediante a análise dos dados consolidados pelo IPEA. Acreditamos que esta
preocupação facilitará a visualização das diferenças e identidades entre o que foi planejado
e o efetivamente gasto, sinalizando possíveis alterações nas prioridades de gestão e
adequações que forem feitas pela administração federal.
Os dados apresentados acerca dos gastos sociais estão organizados por área de
atuação, como já mencionamos. Como material de suporte e de fundamentação dos dados,
utilizamos as Leis Orçamentárias Anuais (LOA), as Leis de Diretrizes Orçamentárias
(LDO) e os Relatórios do Tribunal de Contas da União (TCU) quando necessário. Para
consultas muito pontuais foram utilizados também o Balanço Geral da União (BGU) e os
Manuais Técnicos do Orçamento (MTO). Recorremos, entretanto, fundamentalmente, às
publicações do IPEA e aos Relatórios do TCU.
Como empreendemos as análises da política social tendo como pano de fundo o
processo de financeirização, os dados levantados além de levarem em consideração o
Produto Interno Bruto (PIB), também foram comparados aos recursos utilizados para o
pagamento da dívida (juros e amortizações), com os recursos remanejados pelo mecanismo
da DRU e o superávit primário. Estes são os dados orçamentários e contábeis que
contribuíram para a articulação à dinâmica de financeirização e ao capital portador de
juros, e que nos ajudaram a analisar as prioridades do governo e a forma como o fundo
público, de uma maneira geral, é gerido.
254

3.2 O Plano Plurianual (PPA) e as políticas sociais (2004/2011)

3.2.1 Os PPA (2004-2007 e 2008-2011) do governo Lula e a definição de prioridades

O artigo 165 da Constituição Federal determina o estabelecimento do Plano


Plurianual e o 166 define a obrigatoriedade de que este seja apreciado nas duas casas do
Congresso Nacional (BRASIL, 1988). Como já discutimos, a intenção é garantir uma
interação entre os poderes Legislativo e Executivo no tocante à responsabilidade com o
planejamento estatal, de modo a criar um maior controle sobre suas definições, bem como
na implementação e avaliação destas.
Como se trata de um planejamento para quatro anos, o PPA 2004-2007 (BRASIL,
2003b), intitulado Plano Brasil de todos, definiu a necessidade de avaliação e revisão
anuais, de modo a permitir uma adequação às mudanças na conjuntura, tanto interna,
quanto externa, bem como produzir alterações no desempenho de programas e ações, a
depender do resultado das avaliações acerca de sua implementação. De todo modo, as
mudanças devem estar alinhadas aos objetivos inicialmente estabelecidos para o período e
ser conduzidas de modo a contribuir para que estes sejam atendidos.
Uma outra novidade é a implementação do que se convencionou chamar de uma
“programação deslizante”. A ideia é dar continuidade ao planejamento à medida que este
vai se efetivando. Até então, conforme os anos iam passando, o horizonte do planejamento
ia diminuindo, dado que se aproximava a conclusão dos quatro anos planejados. Assim, ao
final do último ano de vigência, não havia mais planejamento para o próximo período,
sendo necessário esperar até a conclusão de um novo PPA. Sendo assim, buscou-se
instaurar uma metodologia em que a continuidade do planejamento seja garantida ao longo
de sua implementação. Esta foi a maneira encontrada para ampliar o horizonte de
intervenção das ações, programas e projetos em andamento.
De acordo com o documento oficial do governo, o Plano Brasil de todos (BRASIL,
2003b, p. 13) expressa a inauguração de um novo “modelo” de desenvolvimento
“destinado a promover profundas transformações estruturais na sociedade brasileira”. Para
tanto, prevê a importância da atuação do Estado para conduzir o desenvolvimento e induzir
o crescimento econômico. Este último é considerado um pilar fundamental sobre o qual
255

seria possível construir as bases sólidas para a modernização da sociedade, da justiça social
e gerar empregos e riquezas.
O crescimento econômico, segundo o plano governamental, pauta-se na expansão e
consolidação de um mercado de consumo de massa e no decorrente círculo virtuoso que
ele proporciona. A ampliação nos rendimentos das famílias leva a um aumento no
consumo, que estimula o investimento. Este investimento conduz a um aumento da
produtividade e da competitividade, o que produz efeitos sobre o poder aquisitivo das
famílias e amplia suas possibilidades de consumo, e assim sucessivamente. Trata-se da
perspectiva de defesa de uma política expansionista, objetivando obter os ganhos advindos
do multiplicador keynesiano da renda. De acordo com o Plano, “o Brasil é um dos poucos
países do mundo que dispõe de condições para crescer por essa estratégia, devido ao
tamanho de seu mercado consumidor potencial” (BRASIL, 2003b, p. 17).
Os seus formuladores percebem, entretanto, algum limite neste círculo virtuoso. Em
outras palavras, o papel do Estado como indutor do desenvolvimento não poderia ficar
restrito às políticas de incentivo ao investimento. Por maior que seja o ritmo do
crescimento decorrente destes estímulos, o aumento no nível de emprego será insuficiente
para absorver todo o contingente de pessoas desempregadas ou subempregadas – em
especial as que possuem menos qualificação – dado que os setores mais dinâmicos tentem
a ser intensivos em capital e, portanto, empregam menos. O repasse dos aumentos de
produtividade às famílias trabalhadoras é obstaculizado não apenas pela falta de postos de
trabalho suficientes. Considera-se também que, por um lado, “devido ao elevado grau de
oligopólios na economia, os ganhos de produtividade não necessariamente se traduzem em
queda de preços de bens de consumo popular”, por outro lado, “a absorção, pelo Estado, de
parte do excedente por meio de tributação não tem se traduzido até agora em aumento da
quantidade e da qualidade dos gastos sociais essenciais” (BRASIL, 2003b, p. 18).
É justamente para dar resposta a estas dificuldades que se situa a necessidade de
políticas sociais. Estas seriam capazes de enfrentar as fragilidades no círculo virtuoso de
crescimento e funcionariam como um mecanismo complementar à operação do “modelo”
de consumo de massa. Como podemos ver, trata-se de uma abordagem de inspiração
Marshalliana, baseada na noção de que cabem às políticas sociais resolver, no plano da
distribuição, o que não é possível ser garantido por meio da produção de riquezas nos
moldes capitalistas. Assim, este objetivo redistributivista das políticas sociais, de acordo
256

com o Plano, só pode ser alcançado em um contexto de crescimento no nível de emprego e


dos salários, de modo a impulsionar o consumo popular.
A estabilidade macroeconômica deste regime possui três fundamentos:

a) contas externas sólidas, ou seja, um saldo em conta corrente que não imponha
restrições excessivas à política monetária nem torne o país vulnerável a
mudanças nos fluxos de capitais internacionais; b) consistência fiscal
caracterizada por uma trajetória sustentável para a dívida pública; e c) inflação
baixa e estável (BRASIL, 2003b, p. 15).

Considera-se fundamental a manutenção da estabilidade, o aumento dos


investimentos e do volume de exportações, o que permitiria também a redução da
vulnerabilidade externa. “O grande desafio macroeconômico do PPA 2004-2007 é,
portanto, conciliar a necessidade de expansão do investimento e das exportações com o
compromisso de expansão do consumo” (BRASIL, 2003b, p. 21). Para tanto, os
investimentos em infraestrutura são considerados prioritários e o crescimento da indústria,
a mola propulsora da recuperação do crescimento.
As metas de crescimento estabelecidas são de 3,5% em 2004; 4,0% em 2005; 4,5%
em 2006; e 5,0% em 2007 (BRASIL, 2003b, p. 22). Estas metas vão sofrendo revisões ao
longo dos anos, chegando a passar por mais de uma alteração no mesmo ano, a depender
das mudanças na conjuntura. Em relação às ocupações, “a taxa de desemprego no país
como um todo deverá cair de cerca de 11,4% em 2003 para 9% em 2007, segundo a
definição utilizada na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE”
(BRASIL, 2003b, p. 23).
De um modo geral, é possível identificar que o PPA elaborado no primeiro governo
Lula tem como objetivo iniciar uma estratégia de longo prazo pautada em:

inclusão social e desconcentração de renda com vigoroso crescimento do produto


e do emprego; crescimento ambientalmente sustentável, redutor das disparidades
regionais, dinamizado pelo mercado de consumo de massa, por investimentos, e
por elevação da produtividade; redução da vulnerabilidade externa por meio da
expansão das atividades competitivas que viabilizam o crescimento sustentado; e
fortalecimento da cidadania e da democracia (BRASIL, 2003b, p. 15)

Para tanto, a estratégia está orientada em cinco dimensões: 1) social; 2) econômica;


3) regional; 4) ambiental; 5) democrática. Estas se articulam em torno de três
megaobjetivos: I) inclusão social e redução das desigualdades, referente à dimensão social;
257

II) crescimento com geração de emprego e renda, ambientalmente sustentável e redutor das
desigualdades regionais, referente às dimensões econômica, regional e ambiental; III)
promoção e expansão da cidadania e fortalecimento da democracia, referente à dimensão
democrática196.
Está presente neste Plano a necessidade de articulação entre desenvolvimento
econômico e social, como fica claro no seguinte trecho:

No que se refere à concepção, a grande diferença reside na integração entre a


política social e a política econômica, derivada do modelo de desenvolvimento
adotado. O modelo realiza a integração entre, por um lado, a inclusão social e a
redistribuição da renda e, por outro, os investimentos e o crescimento da renda e
do emprego. A universalização dos direitos sociais básicos e a transmissão dos
ganhos de produtividade aos salários estabelecem a sinergia entre as políticas
sociais e de investimento, promovendo o crescimento por meio da expansão do
mercado de consumo popular (BRASIL, 2003, p. 61, grifos do autor).

Em outras palavras, a perspectiva de que o crescimento econômico sob a condução


e orientação do Estado possibilita uma melhor distribuição de renda perpassa todo o PPA.
Este Plano está voltado para o fortalecimento do modo de produção capitalista e para
ampliar as condições favoráveis ao investimento no setor produtivo, ao mesmo tempo em
que define caminhos para atender a alguns dos anseios da classe trabalhadora, sem deixar
de se posicionar de forma subalterna aos interesses do capital financeiro internacional.
Trata-se de procurar administrar interesses contraditórios e, sem estabelecer
grandes rupturas com o padrão de planejamento anterior, recolocar alguns objetivos e
prioridades que ficaram relegadas ao longo dos anos 1990 e primeiros anos deste século.
Não são estabelecidas ações voltadas para enfrentar de forma estrutural os vínculos de
dependência ao exterior, mas busca favorecer os interesses da grande burguesia interna,
promovendo uma certa proteção à produção local e dando maior centralidade aos
investimentos em infraestrutura e crédito aos grandes empreendimentos do setor privado
interno.
Não se trata de uma defesa consistente dos interesses da classe trabalhadora, tendo
em vista que uma postura mais consequente precisaria ir para além do crescimento
econômico e pautar mudanças estruturais na condução da política econômica e das
políticas sociais, como forma de viabilizar uma alteração efetiva nas condições de vida da

196
Estes três megaobjetivos se desdobram “em 30 desafios, a serem enfrentados por meio de 374 programas,
que abarcam aproximadamente 4.300 ações” (BRASIL, 2003b, p. 20).
258

população. Estas mudanças envolveriam, além de uma reforma tributária pautada em


onerar mais os altos rendimentos e desonerar os menores, uma alteração no padrão dos
gastos, o que passaria por uma redução das despesas com a dívida pública e um
significativo aumento do gasto social via estruturação das políticas sociais universais. Estes
pontos não aparecem nem como horizonte no planejamento, deixando claro que apesar de
algumas concessões à classe trabalhadora, os interesses a serem defendidos pelo governo
são os da grande burguesia.
Isto quer dizer que, mesmo afirmando que serão feitas mudanças estruturais, não há
no plano um indicativo de quais seriam estas mudanças e de como seriam implementadas.
Assim, parece que a retomada do crescimento, aliado às políticas sociais, já seria suficiente
para uma concreta alteração nos rumos dos processos de produção e apropriação da riqueza
socialmente produzida. Embora a mudança no planejamento e no processo de tomada de
decisão promovida por este governo tenha provocado alterações nas taxas de crescimento e
de distribuição de renda, as suas bases não permitem que estas mudanças adquiram um
caráter estrutural. Faremos mais adiante uma avaliação do impacto destas mudanças.
O PPA 2008-2011 foi denominado Desenvolvimento com inclusão social e
educação de qualidade e buscou aprofundar o modelo definido no plano anterior. Este é
um plano de continuidade que ratifica a proposta de promover o crescimento econômico
associado à distribuição de renda. O debate sobre o cenário do desenvolvimento
econômico segue tendo como base a ideia do círculo virtuoso e da ampliação das
possibilidades de consumo. “Esse modelo de crescimento, via ampliação do consumo de
base popular, pressupõe simultaneidade entre o aumento dos investimentos, da
produtividade e da competitividade e a transmissão do aumento de produtividade à renda
das famílias trabalhadoras e ao lucro das empresas” (BRASIL, 2007, p. 12).
Como se vê, este é um planejamento que não incorpora a dimensão da luta de
classes e faz parecer que seria possível conciliar aumento de lucratividade e repasse de
ganhos de produtividade sem nenhum conflito, possibilitando um ganho para todos de
forma indiscriminada. Não temos dúvidas de que este planejamento e sua implementação
tem favorecido mais amplamente aos interesses do grande capital, estimulando processos
de concentração e centralização e aumento da exploração da força de trabalho. Entretanto,
dada a proporção da desigualdade no país, foi possível neste período levar a cabo um
processo de redistribuição de renda que foi fundamental para manter a base de legitimação
popular do governo Lula.
259

Do ponto de vista de sua elaboração, em relação ao planejamento anterior, houve


algumas mudanças na forma de exposição dos principais objetivos do governo. O PPA do
segundo mandato do presidente Lula não se organizou de modo a definir três
megaobjetivos, cada um deles com seus respectivos desafios. Foram elaborados três eixos,
ou agendas prioritárias: agenda social, educação de qualidade e crescimento econômico e
definidos dez objetivos estratégicos. São eles: 1) promover a inclusão social e a redução
das desigualdades; 2) promover o crescimento econômico ambientalmente sustentável,
com geração de empregos e distribuição de renda; 3) propiciar o acesso da população
brasileira à educação e ao conhecimento com equidade, qualidade e valorização da
diversidade; 4) fortalecer a democracia, com igualdade de gênero, raça e etnia e a
cidadania com transparência, diálogo social e garantia dos direitos humanos; 5) implantar
uma infraestrutura eficiente e integradora do Território Nacional; 6) reduzir as
desigualdades regionais a partir das potencialidades locais do Território Nacional; 7)
fortalecer a inserção soberana internacional e a integração sul-americana; 8) elevar a
competitividade sistêmica da economia, com inovação tecnológica; 9) promover um
ambiente social pacífico e garantir a integridade dos cidadãos; 10) promover o acesso com
qualidade à Seguridade Social, sob a perspectiva da universalidade e da equidade,
assegurando-se o seu caráter democrático e a descentralização (BRASIL, 2007, p. 46-47).
Parte-se do princípio de que os fundamentos econômicos estão sólidos, de modo
que, no primeiro mandato, teriam sido estabelecidas as bases para um desenvolvimento
sustentável, marcado pelo crescimento econômico com distribuição de renda. Segundo o
Plano, “o ambiente macroeconômico estável oferece segurança à estratégia e foi
consolidado por iniciativas orientadas para a responsabilidade monetária e fiscal e para
redução da vulnerabilidade externa” (BRASIL, 2007, p. 13). Como podemos ver, uma
maior preocupação com o crescimento e a identificação do Estado como seu importante
condutor se combinam à manutenção do discurso da responsabilidade fiscal e monetária,
impondo limites às possibilidades de mudanças no plano estrutural, ainda que existam
alterações em relação ao padrão de desenvolvimento da década de 1990.
Para o PPA 2008-2011, o governo utiliza como meta uma taxa de crescimento do
PIB de 5% ao ano para todo o período. Como dissemos, estas metas são revistas ao longo
do tempo em virtude das mudanças na conjuntura. Apresentaremos os resultados
efetivados das variações no PIB no próximo item desta seção.
260

O aumento da atividade econômica está calcado no crescimento do emprego e dos


salários reais e – para os que não conseguem se inserir no mercado de trabalho – nos
programas de transferência de renda. Assim, o aumento do salário mínimo e os programas
de transferência de renda são os pilares sobre os quais se pretende reduzir as desigualdades
sociais.
Ao destacar os benefícios trazidos com a formalização dos empregos, o documento
aponta o acesso ao sistema financeiro formal e o barateamento do crédito. “Deverá se
registrar a continuidade do aumento do crédito para o consumo de bens duráveis e de
serviços, particularmente, do crédito consignado” (BRASIL, 2007, p. 34). Se por um lado,
este crédito realmente facilita o acesso aos bens de consumo, melhorando a qualidade de
vida de muitas pessoas, ele também as insere no circuito financeiro, ampliando mercados e,
com isso, as possibilidades de rentabilidade deste setor. Não é a toa que vemos a ampliação
das possibilidades de consumo significativamente atreladas a um crescimento do
endividamento das famílias. É possível perceber nessas medidas, a grande habilidade que o
governo vem tendo para atender aos interesses do grande capital sem deixar totalmente de
lado as demandas da classe trabalhadora.
Em relação à oferta agregada, os principais setores identificados para impulsionar a
nova fase de expansão da indústria são a indústria de bens de capital, bens de consumo
duráveis, extrativa e construção civil. Sobre a atuação do setor público, o plano não prevê
alterações no padrão de responsabilidade fiscal, nem uma reorientação na política de
superávit primário. A expectativa é a de que o crescimento econômico, aliado à
continuidade na redução dos juros, reduza a relação dívida/PIB. Em outras palavras, sem
alterações estruturais na gestão dos recursos, em especial com a dívida, o governo vai
buscando contornar as contradições e garantir os interesses mais atrelados à esfera
financeira sem deixar de estimular o crescimento econômico.
Em relação aos três eixos que orientam a estratégia do governo, existem alguns
aspectos que consideramos oportuno destacar. Sobre o primeiro, a agenda social, fica clara
a prioridade ao segmento considerado o “mais vulnerável”. A ênfase é dada às
“transferências condicionadas de renda associadas às ações complementares; no
fortalecimento da cidadania e dos direitos humanos; na cultura e na segurança pública. A
prioridade é a parcela da sociedade mais vulnerável” (BRASIL, 2007, p. 13).
O Programa Bolsa Família (PBF), que já era um dos carros chefes na gestão
anterior, segue sendo um dos pilares do planejamento no segundo mandato, o que significa,
261

para além da real melhoria que traz aos seus beneficiários, uma opção por uma política
pontual em detrimento das políticas universais. Esta definição favorece uma lógica de
assistencialização das políticas sociais (MOTA, [1995] 2011) que faz com que muitas
vezes o conjunto destas políticas seja identificado ao programa de transferência de renda,
desvirtuando uma concepção mais ampla do que seriam as possibilidades de enfrentamento
à questão social.
De acordo com o documento, a referida agenda social “promoverá as alternativas
de emancipação para as famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família por meio da
integração de políticas de acesso à educação, à energia, aos produtos bancários, ao
trabalho e à renda” (BRASIL, 2007, p. 14, grifo nosso). Acreditamos não ser necessário
tecer uma longa crítica ao uso da ideia de emancipação para tratar dos beneficiários do
PBF. Basta registrarmos que se trata de uma “palavra de efeito” para valorizar o programa,
mas está muito longe de representar uma emancipação no sentido rigoroso do termo,
mesmo se nos mantivermos no limite da ideia de emancipação política197. O destaque
considerado oportuno é para a busca de integração aos produtos bancários. Como
mencionamos, esta é mais uma das formas em que o governo parece ter bastante habilidade
para atender a uma demanda da classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, ampliar as
fronteiras da rentabilidade do setor financeiro, adequando o provimento das políticas
sociais às necessidades atuais da dinâmica de acumulação capitalista (ver GRANEMANN,
2007 ; SILVA, 2010).
Embora haja uma ênfase na transferência de renda, a agenda social não se limita a
esta. São pensadas formas de integração à educação, esporte, cultura, lazer, cidadania,
direitos humanos, dentre outras, com especial atenção à situação dos jovens, crianças,
mulheres, pessoas com deficiência, quilombolas, índios e negros. Além disso, busca dar
conta da violência e insegurança por meio do Programa Nacional de Segurança Pública
com Cidadania (PRONASCI), que articula políticas de segurança pública às políticas
sociais.
O segundo eixo, educação de qualidade, é operacionalizado por meio do Plano de
Desenvolvimento da Educação (PDE). O plano identifica uma articulação entre educação e
desenvolvimento de modo que, a “educação de qualidade representa [...] um objetivo
estratégico sem o qual o projeto de desenvolvimento nacional em curso não se viabiliza”

197
Para uma discussão acerca da emancipação política e da emancipação humana, ver Marx ([1843] 2009).
262

(BRASIL, 2007, p. 16). O PDE consiste em um conjunto de ações integradas entre o


governo federal e os demais entes da federação com foco na educação básica (da creche ao
ensino médio). Mas a proposta não se restringe à educação básica tendo em vista que
compreende a existência de uma ligação entre esta e a educação profissional e superior.
O PDE organiza-se por meio de quatro eixos de ação: 1) educação básica, voltado
para a melhoria da qualidade por meio do Programa Compromisso Todos pela Educação.
Para o financiamento destas ações foi criado o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento
da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb); 2)
alfabetização e educação continuada, buscando reduzir o analfabetismo e garantir a
continuidade dos estudos de jovens e adultos, com o Programa Brasil Alfabetizado; 3)
ensino profissional e tecnológico, com o objetivo de que os municípios tenham pelo menos
uma escola com educação profissional; 4) ensino superior, visando a ampliação do acesso
por meio do Programa Universidade para Todos (Prouni), articulado ao Financiamento
Estudantil (Fies) e, em relação ao ensino público, da Reestruturação e Expansão das
Universidades Federais (REUNI).
O terceiro eixo, crescimento econômico, é operacionalizado pelo Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC) que congrega um conjunto de investimentos em
infraestrutura econômica e social198. Recebem especial atenção os setores de transportes,
energia, recursos hídricos, saneamento e habitação. O entendimento é o de que a expansão
da capacidade produtiva e a elevação da produtividade são estimuladas pelo investimento
público e pela continuidade das políticas ditas inclusivas e voltadas para a expansão do
mercado interno. Fazem parte deste programa também outras medidas como: incentivo ao
crédito e ao financiamento, em especial o crédito habitacional e o financiamento de longo
prazo para investimentos em infraestrutura; melhoria do ambiente de investimento,

198
“Em março de 2010, nove meses antes do prazo previsto para o término do PAC, foi lançado um segundo
programa, que ficou conhecido como PAC 2. Diferentemente do PAC original, que se articulava ao longo de
três grandes eixos, as ações do PAC 2 se articulam ao longo de seis eixos: Energia, Transportes, Minha Casa
Minha Vida, Água e Luz para todos, Cidade Melhor e Comunidade Cidadã, estes quatro últimos são um
desmembramento do Eixo Social Urbano, do PAC 1, com a inclusão de mais tipos de ações, como construção
de Unidades de Pronto Atendimento (UPA), Unidades Básicas de Saúde (UBS) e construção de quadras
esportivas.
Os objetivos do PAC 2 são basicamente os mesmos do programa antecessor, incorporando, no entanto, um
maior enfoque em ações de infraestrutura social e urbana, voltadas para o enfrentamento dos problemas das
grandes aglomerações urbanas brasileiras, conforme consta no balanço inicial do Programa. Esse caráter de
continuidade pode ser corroborado pelo fato de que aproximadamente doze mil projetos que estavam
contidos no âmbito do PAC 1 (76% do total) foram transferidos para o novo programa” (BRASIL, 2011, p.
173-174).
263

considerando em especial a “questão ambiental, medidas de aperfeiçoamento do marco


regulatório e do sistema de defesa da concorrência e de incentivo ao desenvolvimento
regional” (BRASIL, 2007, p. 30) (sobre este último aspecto o plano aborda a recriação da
Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e da Superintendência do
Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), como forma de estimular o crescimento e reduzir
as desigualdades regionais); o aperfeiçoamento do sistema tributário e a desoneração,
sobretudo relativa aos investimentos em infraestrutura e construção civil; medidas fiscais
de longo prazo, dentre as quais destacamos o compromisso de controlar as despesas de
pessoal em cada um dos Poderes da União, a valorização do salário mínimo e a
regulamentação da previdência complementar dos servidores públicos federais (o que só
aconteceu em 2013).
Estas são, em linhas gerais as bases do proclamado desenvolvimento
“economicamente próspero, ambientalmente sustentável e socialmente justo” (BRASIL,
2007, p. 64). Os dois PPA consistem em planejamentos que aprofundam o capitalismo
monopolista no Brasil, não rompem com a política de pagamento de juros estabelecida
pelos governos que os antecederam, mas reorientam a atuação do Estado no sentido de
induzir o desenvolvimento de alguns setores baseado no aumento dos investimentos em
infraestrutura e estímulos creditícios, promovendo maiores taxas de crescimento
acompanhadas de uma política de valorização do salário mínimo.
Esta reorientação na política industrial apresenta uma diferença em relação ao
padrão de acumulação adotado nos anos 1990. Como discutimos no capítulo anterior, a
última década do século passado foi marcada por uma perspectiva de “estímulo à
competitividade” baseada na abertura às importações, restrição ao crédito e nas
privatizações, sob o argumento de que os mais fortes sobreviveriam, o que fortaleceria o
parque industrial no país. Cano e Silva (2010, p. 183) sintetizaram a premissa que orientou
os governos nesta década: “a melhor política industrial é não ter política”199. O resultado
foi uma forte desnacionalização da indústria, baixo crescimento, aumento do desemprego,

199
Dentre o legado deixado pelos anos 1990 os autores destacam que “foram extintas ou esvaziadas muitas
das instâncias de coordenação e planejamento que desempenharam um papel importante ao longo do
processo de industrialização: conselhos interministeriais, órgãos de planejamento etc., além das instâncias
que existiam no interior das empresas públicas de infraestrutura que foram privatizadas” (CANO ; SILVA,
2010, p. 186).
264

da vulnerabilidade externa, dentre outras marcas deixadas pelas definições tomadas neste
período.
A ascensão de Lula à presidência representou um retorno à definição de uma
política industrial voltada para estimular a produção interna e apresenta uma preocupação
em fomentar a inovação tecnológica, a qual entretanto, não teve resultados significativos.
Cano e Silva (2010) analisam a Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior
(PITCE)200 adotada no primeiro governo Lula e seu aprofundamento, a Política de
Desenvolvimento Produtivo (PDP), do segundo mandato. Ao analisar seus objetivos,
abrangência e profundidade ressaltam a importância destas políticas para incentivar o
crescimento econômico, demonstram como a crise internacional que atingiu o segundo
governo comprometeu o cumprimento das metas, e como esta teve seus efeitos reduzidos
pela existência destas políticas201. Eles apontam também uma grande contradição que
marca o governo e afeta o impacto que estas políticas podem ter: a ausência de mudanças
na condução das políticas macroeconômicas. O câmbio valorizado, os juros altos, as metas
para inflação e superávit primário e a manutenção da chamada responsabilidade fiscal
seguiram sem alterações substantivas, o que compromete significativamente as
possibilidades de uma mudança estrutural no padrão de desenvolvimento.
Em resumo, trata-se de um planejamento voltado para conciliar os interesses das
diferentes frações da grande burguesia e, ao mesmo tempo, garantir algumas concessões à
classe trabalhadora, aprofundando os aspectos contraditórios que permeiam a garantia das
políticas sociais, ao passo em que viabiliza a manutenção do apoio popular que permitiu a
ascensão do Partido dos Trabalhadores ao governo federal. Há um aumento dos gastos com
as políticas sociais, mas com foco nos programas de transferência de renda, continuidade

200
“O padrão de competitividade e especialização da balança comercial brasileira é típico de um país rico
em trabalhadores não qualificados e recursos naturais. Entre 1996 e 2008, não houve grandes mudanças
setoriais. Os setores industriais mais competitivos da indústria brasileira em 2008, medidos pelo saldo
comercial, são exatamente os mesmos de 1996, apesar do esforço de política industrial do governo brasileiro
desde 2003 para fomentar os setores intensivos em tecnologia” (ALMEIDA, 2009, p. 24-25, grifo do autor).
Como uma das possíveis explicações para a dificuldade em avançar nos setores intensivos em tecnologia que
caracteriza a PITCE, Almeida aponta uma das contradições: “a atuação do BNDES é incompatível com a
própria definição de política industrial. A formação de empresas líderes nos setores de baixa e média-baixa
tecnologia torna estas empresas mais competitivas, consolidando a estrutura produtiva atual da economia
brasileira” (2009, p. 32).

201
A PDP e o PAC funcionaram como referências para o enfrentamento à crise de 2008/2009. “Por exemplo,
as desonerações tributárias ocorreram, quase sempre, nos setores estratégicos da PDP; assim como o
principal programa fiscal anticíclico (‘minha casa, minha vida’) revelou fortes interações com o
desenvolvimento do PAC” (CANO ; SILVA, 2010, p. 195).
265

nos estímulos às parcerias público privadas e avanços na transformação do provimento


destas políticas em espaços atrativos para investimentos privados. A seguir, faremos uma
avaliação mais detalhada dos resultados produzidos por este planejamento, buscando
destacar a configuração do gasto social por ele desempenhado.

3.2.2 O gasto público e as políticas sociais

O governo Lula chegou ao poder depois de um conturbado processo eleitoral, com


massivo apoio popular, bem como de frações do grande capital. Eleito no segundo turno
com mais de 60% dos votos válidos, o candidato vitorioso enfrentou uma série de
especulações em relação à sua candidatura e de questionamentos por parte da burguesia,
nacional e internacional, quanto aos rumos que daria ao país. Mesmo tendo divulgado um
programa político muito mais rebaixado se comparado ao das eleições de 1989, sua equipe
de campanha considerou ser necessário deixar mais claro o compromisso com a
estabilidade e com o cumprimento de acordos previamente estabelecidos. Em junho de
2002, foi divulgada a Carta ao povo brasileiro, assinada pelo então presidenciável,
registrando por escrito uma mudança de postura que já vinha acumulando nos anos
anteriores a esta candidatura.
A ausência de ruptura com o capital que marca a ascensão do Partido dos
Trabalhadores ao governo federal é permeada por contradições e a análise de seus
resultados situa-se em uma série de polêmicas, muitas das quais somente um maior
distanciamento histórico permitirá avaliar. Isto não significa que não seja possível
empreender um esforço no sentido de identificar as mudanças em curso e levantar as
contradições, os limites e as possibilidades abertas pelos mandatos do presidente Lula.
Uma das grandes contradições, e também motivo de muita controvérsia entre os
analistas, diz respeito ao padrão de desenvolvimento proposto. Como sinalizamos, os dois
PPA analisados ressaltam a necessidade de se estimular a produção com base em um
mercado de massas e incentivos fiscais e creditícios ao grande capital, além de pautarem
investimentos em infraestrutura. Trata-se de uma preocupação explícita de atuação voltada
para induzir o crescimento econômico e o nível de empregos, em que se articula uma
política industrial a uma política de valorização do salário mínimo e a adoção de políticas
sociais, com ênfase naquelas voltadas para a redução da pobreza.
266

Este planejamento recuperaria o papel preponderante do Estado como indutor do


desenvolvimento, impondo limites à perspectiva de que o crescimento seria estimulado
pela competição internacional e por uma postura mais integrada ao capital financeiro
internacional, que predominou nos anos 1990. O faz, entretanto, fortalecendo grandes
grupos nacionais, muitos deles produtores de commodities e sem uma política clara que
contribua para forçar uma alteração mais significativa do país na DIT. Em 2008, das dez
maiores aplicações diretas do BNDES na indústria, oito foram em setores de baixa e
médio-baixa tecnologia (ALMEIDA, 2009).
No campo da crítica ao governo, o economista Reinaldo Gonçalves tem publicado
uma série de artigos (ver 2012a e 2012b, dentre outros) em que defende a ausência no
governo Lula de uma nova concepção de desenvolvimento, de modo que o que existe, em
sua opinião, é uma convergência com a ortodoxia convencional202. O autor traz alguns
dados (2012a) que fundamentam sua argumentação, dentre eles, destacamos:
1) a existência de um processo de desindustrialização em que, no período de 2002 a 2010,
as taxas de crescimento real do valor adicionado da mineração, da agropecuária e da
indústria de transformação foram de 5,5%, 3,2% e 2,7%, respectivamente;
2) reprimarização, ilustrada, dentre outras coisas, pelo fato de que a participação dos
produtos altamente intensivos em tecnologia na pauta de exportações passou de 13,1% em
2002 para 8,1% em 2010. No mesmo período, a participação de produtos das indústrias de
médio-baixa tecnologia cresceu de 21,7% para 25,1% dos produtos exportados;
3) dominância financeira demonstrada por uma maior rentabilidade dos bancos em relação
às empresas. Segundo o autor, no período de 2003 a 2010, a taxa média de rentabilidade
(lucro/patrimônio líquido) dos 50 maiores bancos foi sempre superior a das 500 maiores
empresas, sendo a taxa média de rentabilidade dos bancos de 17,5% contra 11,0% das
empresas.
Gonçalves fala também em desnacionalização, mas seus dados mostram que,
considerando as 500 maiores empresas que atuam no país, a participação nas vendas das
empresas estrangeiras caiu de 43,6% em 2002 para 41,0% em 2010, o que demonstra uma
redução na participação. Para fundamentar sua argumentação, o autor, então, retira do
cálculo as três maiores empresas nacionais (Petrobras, BR Distribuidora e Vale),

202
“O novo desenvolvimentismo não apresenta nenhuma concepção distinta de desenvolvimento. Ele é
fortemente crítico em relação ao nacional-desenvolvimentismo, e as convergências com a ortodoxia
convencional são evidentes” (GONÇALVES, 2012b, p. 664).
267

justificando que estas possuem forte relação o com setor primário da economia. Ainda
assim, desconsiderando as três maiores empresas nacionais, o que avaliamos em certa
medida sem sentido, a participação das empresas estrangeiras no valor das vendas das 497
maiores empresas no país subiu de 47,8% em 2002 e 48,5% em 2010, aumento “pouco
expressivo”, como o próprio autor avalia.
De qualquer forma, é pertinente a avaliação deste economista e importante o seu
trabalho de levantamento de dados para contribuir em uma caracterização do governo.
Entretanto, sua análise desconsidera um conjunto de elementos contraditórios presentes no
governo e que apontam para alterações que não podem ser postas de lado, como
procuraremos demonstrar.
Ainda que com os limites apresentados acima e também discutidos na introdução
deste capítulo, a política de incentivos implementada principalmente por meio do BNDES
– mas com atuação significativa também da Caixa Econômica (em especial no crédito
imobiliário) e do Banco do Brasil –, contribuiu para que verificássemos uma taxa média de
crescimento de 4,2% do PIB, no período de 2004 a 2011. O gráfico 6 apresenta as taxas
obtidas desde 1995 para que seja possível uma visualização mais ampla deste indicador do
crescimento econômico.

Gráfico 6 – Crescimento do PIB de 1995 a 2011 (%)

Fonte: IBGE. Elaboração própria.

Como podemos ver, o primeiro ano do governo Lula obteve uma taxa de
crescimento do PIB de apenas 1,2%. Este fato decorreu, em grande parte, das opções
feitas para conter a crise cambial enfrentada no ano anterior. A taxa de juros subiu de 23%,
em dezembro de 2002, para 26,4% em janeiro de 2003. Também a meta de superávit
268

primário subiu de 3,75% para 4,25%. Foram medidas restritivas adotadas para passar uma
mensagem clara, já sinalizada na Carta ao povo brasileiro, de que seria mantida a política
de responsabilidade fiscal e de superávit primário.
Dado este “recado” inicial, houve uma redução das especulações em torno do novo
governo e um afrouxamento nas medidas restritivas. A taxa de crescimento foi para 5,7%
em 2004 e voltou a cair em 2005 para 3,2%. Os dados mostram a dificuldade em manter
um ritmo de crescimento, sendo possível observar apenas dois anos seguidos de aumento
na taxa (2006 e 2007). O ano de 2009 apresenta o forte impacto no crescimento decorrente
da grave crise financeira mundial e uma recuperação significativa em 2010, mas que não se
sustentou em 2011, ano que amargou um crescimento de apenas 2,7%. A taxa continuou
caindo e em 2012 tivemos um “pibinho” de 0,9%.
Uma das diferenças que podemos constatar entre este governo e o que o antecedeu
é a forma como foi conduzido o enfrentamento à crise que se inicia no final de 2008. A
adoção de medidas como desonerações fiscais e incentivo ao consumo, substituiu um
aumento acentuado na taxa de juros, o que permitiu uma alavancagem nas taxas de
crescimento em 2010. O gráfico 7 traz o comportamento da taxa do Sistema Especial de
Liquidação e de Custódia (SELIC) durante todo o governo Lula e do primeiro ano do governo
Dilma.

Gráfico 7- Evolução da taxa Selic de 2003 a 2011

Fonte: Nota de Política Fiscal do Bacen, série histórica (apud BRASIL, 2011)
269

Mesmo com alguns períodos de subida, a tendência da Taxa Selic é de queda,


embora ainda estejam altas. Entretanto, convém lembrar que esta é a taxa pela qual a União
vende seus títulos, ao passo que a taxa de juros de longo prazo (TJLP) é a que a União
recebe das instituições financeiras oficiais e de outros programas de fomento. A diferença
entre estas duas taxas representa o custo fiscal dessas operações de fomento, e continua
significativa, o que onera o Tesouro Nacional. Em outras palavras, a taxa pela qual o
governo remunera seus credores é maior (mesmo tendo caído) do que a que recebe pelos
empréstimos que concede. Esta é uma das razões pelas quais a taxa implícita da Dívida
Líquida do Setor Público (DLSP), sinalizada pela linha tracejada em vermelho,
praticamente não se alterou.
O que importa destacar é que não houve uma alteração substantiva na política de
gestão da dívida pública. A permanência da política de superávit primário, a manutenção
da Lei de Responsabilidade Fiscal e a continuidade na utilização da DRU, sinalizam a
decisão de seguir priorizando o pagamento de juros em detrimento da adoção de políticas
mais consistentes tanto no fomento ao crescimento, quanto nos gastos sociais.
Este é o grande ponto de tensão entre o que prega o governo e as possibilidades
estruturais que são construídas para atingir seus objetivos. A dificuldade em alterar este
padrão centra-se no lugar que a dívida pública assume na atual dinâmica de acumulação
capitalista em nossa economia dependente. Este é o ponto chave do processo de
financeirização, que consistiu na “fórmula mágica” para garantia da rentabilidade do
capital que não encontrava na produção espaços suficientemente atrativos para seus
investimentos, “criando” recursos como se fosse uma “varinha de condão”.
Apontamos, no primeiro capítulo, a relevância da afirmação de Francisco de
Oliveira (1998) ao constatar o lugar estrutural do fundo público no estágio de
desenvolvimento capitalista do tempo presente. Procuramos complementar sua análise
apontando como a dívida pública passa a ser o principal, e mais direto, mecanismo de
transferência do fundo público para o capital financeiro.
Estamos agora buscando salientar que nas economias dependentes, como o Brasil, a
dívida pública tem uma centralidade ainda maior, dada a fragilidade do mercado de
capitais. O centro da rentabilidade auferida no âmbito das finanças é dado pelo
endividamento do Estado. Na verdade, não apenas pelo seu endividamento, mas pelo
volume de recursos disponibilizado em virtude desta dívida (pagamento de juros e
amortizações).
270

Este fato ajuda a explicar, por um lado, porque as economias dependentes gastam
muito mais com a dívida pública do que os países avançados e a centralidade nas metas de
superávit primário que marcam as políticas de ajuste fiscal dos organismos multilaterais.
Explica também porque nestes países, a taxa de juros alta e o baixo crescimento econômico
são muito mais a regra do que a exceção. Ao contrário, nos países avançados, as taxas de
juros tendem a ser mais baixas e o mercado de capitais é o foco da rentabilidade financeira.
Não por acaso, suas últimas crises tiveram o epicentro nestes mercados. Não estamos
dizendo que a dívida pública não tenha um papel estrutural nas economias mais avançadas.
A intenção é tão somente acentuar a diferença em relação às economias dependentes, que
dada a sua fragilidade e subalternidade em relação aos interesses do grande capital
internacional. Estas têm, no gasto com a dívida, uma forma mais acentuada de garantir a
rentabilidade na esfera financeira.
Para termos uma ideia do custo com o pagamento da dívida, considerando as
despesas com juros, encargos e amortizações, a tabela 5 apresenta o percentual do
orçamento gasto com estas despesas financeiras.

Tabela 5 – Participação das despesas financeiras no Orçamento Fiscal e da Seguridade


Social (%)
Juros e encargos Amortizações Despesas financeiras
Ano (a) (b) (c) = (a ) + (b)
2004 13,68 13,18 26,86
2005 14,80 8,12 22,92
2006 18,73 14,99 33,72
2007 18,18 12,58 30,77
Média 16,35 12,22 28,57
Fonte: Salvador (2010)

Em 2004 este percentual era de 26,86 e passa para 30,57, ficando em média, para o
período considerado em 28,57. Cumpre ressaltar que nestes valores não estão incluídas as
despesas com o refinanciamento. Estes referem-se à chamada “rolagem” da dívida e não
foram considerados por não representarem recursos efetivamente despendidos. Trata-se da
emissão de novos títulos para pagar os que estão vencendo, constituindo-se, portanto, em
um mecanismo contábil. Mas tem implicações econômicas, posto que representam
“despesas que o governo tem de liquidar semanalmente via emissão de novos títulos que
271

precisam ser submetidos a um ‘teste de credibilidade’ junto ao mercado financeiro”203


(SALVADOR, 2010, p. 193).
A alteração, portanto, no padrão de gestão da dívida pública implicaria em uma
mudança estrutural que atinge diretamente a rentabilidade do grande capital. Sem mexer
nisto, o governo tem as possibilidades de mudança de rumo muito limitadas. O controle
fiscal precisa ficar a mercê do pagamento de juros, o que desestimula a produção por um
lado e compromete um montante significativo de recursos públicos por outro. Ao se manter
refém da política econômica adotada nos anos 1990, a indução do crescimento e da
distribuição de renda passam por medidas paliativas de difícil sustentação no longo prazo.
Por esta razão discordamos das análises de anunciam a entrada em um período
denominado pós-neoliberalismo. Emir Sader organizou um livro, intitulado 10 anos de
governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma, que reúne artigos de diversos autores
dedicados a fazer, sob esta perspectiva, uma análise dos governos do PT. Ainda que seja
possível identificar diferenças destes governos em relação aos anteriores, a manutenção no
padrão de gestão da dívida, as metas de inflação e outras medidas da política econômica –
que seguem com alterações laterais –, indicam a ausência de ruptura com o padrão
neoliberal. Para Sader (2013, p. 141), a “construção do pós-neoliberalismo [..] se deu pela
decisão do governo de priorizar as políticas sociais e a reinserção internacional do Brasil”.
Não vemos, nas decisões do governo, elementos que autorizem a falar em
priorização das políticas sociais, pelo menos se tomadas em seu conjunto. Existe uma
preocupação maior com o seu provimento, mas muito centrado nas políticas de
transferência de renda voltadas para a redução da pobreza, como sinalizado no próprio
planejamento do governo. Este fato é, entretanto, insuficiente para que possamos falar em
uma priorização das políticas sociais como um todo, principalmente levando em conta o
processo de mercantilização em curso, como já discutimos.
O aumento da participação do setor privado na garantia das políticas sociais, que
devem ser tidas como de responsabilidade do Estado, é incompatível com a ideia de um
governo que prioriza efetivamente as políticas sociais, dado que entrega para terceiros o
que está sob sua responsabilidade. A manutenção da Lei de Responsabilidade Fiscal, por

203
Esta é a razão da diferença entre o cálculo feito por outras organizações, como por exemplo, a Auditoria
Cidadã, por meio do qual estes percentuais ficam sempre próximos a 50% dos recursos do orçamento.
Consideramos, entretanto, que para ter uma ideia dos recursos que efetivamente são disponibilizados ano a
ano para o pagamento da dívida, estes não devem ser considerados.
272

outro lado, deixa bem clara a prioridade do governo, quando limita recursos para gastos
sociais e com pessoal e facilita o deslocamento de recursos para o pagamento de juros da
dívida.
Esta reinserção internacional também não indica uma ruptura com o padrão
anterior, apesar de sinalizar mudanças. Existe um maior apoio do Estado para o
investimento e uma postura de favorecer o capital nacional, o que se desdobra em um
processo de multinacionalização de grandes empresas. Mas esta dinâmica não está voltada
para melhorar nossa participação na DIT, ao contrário, vem reforçando esta participação,
como já discutimos. Muitas das políticas de incentivo acabam perdendo a eficácia em
virtude da política econômica adotada.
Marcio Pochmann (2013) também integra o grupo de analistas que defendem a
ideia de que estaríamos diante do pós-neoliberalismo. Ele chega, inclusive, a afirmar a
existência de um Estado de Bem Estar no Brasil nos últimos anos204. A ruptura com o
neoliberalismo se sustentaria em quatro eixos: 1) abandono da ideia de que a estabilidade
econômica levaria automaticamente à melhora nas condições de vida; 2) a ênfase dada às
políticas sociais; 3) fortalecimento do mercado interno como forma de garantir maior
autonomia na governança interna da política econômica nacional; 4) a existência de um
reposicionamento diante da geopolítica mundial. O autor destaca os programas de governo
como o PAC, Minha Casa, Minha Vida, PBF, aumento do salário mínimo e da contratação
do funcionalismo público, a paralisação das privatizações205, a redução da vulnerabilidade
externa e a passagem de devedor a credor internacional 206. Como podemos ver, em sua
análise, parece que o problema da dívida foi equacionado e não há menção às políticas

204
“O impacto econômico do avanço recente do Estado de bem-estar social no Brasil não tem sido
geralmente muito bem percebido” (POCHMANN, 2013, p. 151). Não custa deixar claro que discordamos
desta caracterização do Estado brasileiro.
205
A pesar do autor mencionar a paralisação das privatizações, gostaríamos de lembrar que o governo Lula
foi marcado por concessões de rodovias e o governo Dilma já anuncia concessões de aeroportos, além de
leilões do pré-sal.
206
Consideramos esta ideia uma grande falácia. Segundo Fattorelli (2013), “O que o presidente Lula em 2005
pagou foi apenas a dívida externa com o FMI [Fundo Monetário Internacional]. Na época, existiam 300
milhões de dólares de dívida externa e foram pagos U$15 milhões de dólares. Esse pagamento representou
2% da dívida, se somarmos a interna e a externa. Para pagar isso, o Brasil fez emissão de títulos da dívida
interna em reais para pagar em dólar. O que houve não foi pagamento, foi troca. [...] Mas alguém pode
argumentar que não devemos ao FMI, e isso é um ponto positivo. Mas, no dia desse pagamento, o [Antonio]
Palocci publicou uma carta na página do Ministério da Fazenda argumentando que o pagamento ao FMI não
significaria o rompimento dos compromissos do estatuto do Fundo, que vincula as políticas ao Fundo, dá a
ele o direito a todas as informações do país, inclusive aquelas a que não temos acesso – o FMI tem porque
fica dentro do Ministério da Fazenda.
273

econômicas conservadoras que foram mantidas pelos governos no PT. Trata-se de uma
avaliação parcial do processo de tomada de decisão que tem o objetivo de supervalorizar as
mudanças (que por outro lado não podem ser desconsideradas) para justificar uma ideia de
ruptura.
Estas medidas, muitas delas paliativas, têm produzido, entretanto, um resultado
sobre a taxa de crescimento, como demonstramos, e também sobre a redução do
desemprego e uma melhora na distribuição de renda. A taxa de desemprego subiu no
primeiro ano de governo, influenciada pelas medidas restritivas já mencionadas. Nos anos
subsequentes, manteve uma tendência de queda, só elevada no ano de 2009, em virtude da
crise, mas voltou a cair no ano seguinte chegando a 6,7% em 2010 e 2011, como mostra o
gráfico 8.

Gráfico 8 – Taxa de desemprego de 1995 a 2011 (%)

Nota: Em 2000 a PNAD não foi a campo.


Fonte: IPEA a partir dos dados da PNAD/IBGE. Elaboração nossa.

Esta redução na taxa de desemprego foi acompanhada de uma política de


valorização do salário mínimo que subiu, em termos reais, cerca de 6,6% a.a., passando de
R$378,10 em 2004, para R$569,80 em 2011. Do ponto de vista dos ganhos da classe
trabalhadora, consideramos estas as mudanças mais significativas, juntamente com o
impacto dos programas de transferência de renda, que discutiremos mais adiante. O
aumento real do salário mínimo tem um impacto significativo, dado que quase dois terços
dos aposentados e pensionistas do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) recebem
274

este piso, como destaca Castro et al (2012, p. 20), além de boa parte dos que recebem o
seguro-desemprego e todos os beneficiários do Benefício de Prestação Continuada (BPC).
Ela está, entretanto, longe de ser capaz de sustentar a ideia de que estaríamos diante
do aumento da classe média, como apontam alguns dos defensores do governo, como
Marcelo Neri, atual presidente do IPEA. Para este economista, “a nova classe média
brasileira é filha da combinação do crescimento com a equidade, que difere de nossa
história pregressa e daquilo que ocorre nas últimas décadas em países emergentes e
desenvolvidos nos quais a concentração de renda sobe” (NERI, 2011, p. 14).
Esta avaliação é rechaçada até por analistas do PT, como o Pochmann. Para ele, a
mudança não autoriza a constatação da emergência de uma nova classe média. Por trás
deste debate, “está uma opção política rasteira que certos intelectuais engajados à lógica
mercantil associam com uma retórica de classe de rendimento desprovida de qualquer
sentido estrutural”. Para o autor, estas afirmações significam a “tradução do caráter
meramente propagandista dos imperativos do mercado” (POCHMANN, 2012, p. 7).
Além disso, ele chama a atenção para o fato de que pode não se tratar de um mero
equívoco conceitual, dado que a defesa da nova classe média se configura em meio a uma
disputa sobre o caráter das políticas sociais. A articulação entre o desgaste das políticas
públicas e o estímulo ao recurso às políticas oferecidas pelo setor privado nos parece trazer
pistas do que está realmente em questão diante desta polêmica. Afinal, a classe média
historicamente se dispõe a pagar por planos privados de saúde, previdência, educação. O
esforço midiático para construir esta identidade entre novos segmentos da classe
trabalhadora, que de fato obteve um maior acesso ao consumo, abre novas possibilidades
para a mercantilização da vida de um número ainda maior de trabalhadores e trabalhadoras.
A este respeito, Neri (2011, p. 19) não usa de subterfúgios para afirmar: “ser nova
classe média é também consumir serviços públicos de melhor qualidade no setor privado,
aí incluindo colégio privado, planos de saúde e o produto do prêmio, que é a previdência
complementar”. Trata-se, portanto, de uma análise funcional à transformação dos serviços
públicos em mercadoria. Ela se apoia na possibilidade de se aproveitar do significado que
uma melhoria nas condições de vida dos trabalhadores traz, do ponto de vista subjetivo e
objetivo, induzindo-os a buscar, no mercado, o acesso ao que, na realidade, são direitos
sociais de responsabilidade do Estado.
A ideia de nova classe media está ancorada em um maior acesso ao consumo. Não
apenas um consumo de bens duráveis, que antes eram proibitivos para estes segmentos,
275

mas também de bens e serviços sociais. Este novo cidadão-consumidor é induzido a pensar
que a melhoria no padrão de vida está associada à possibilidade de comprar tudo o que
precisa e de que não deveria mais “depender” do Estado. Com isso, o debate sobre o acesso
aos direitos sociais é despolitizado, a responsabilidade do Estado no provimento de bens e
serviços sociais é desconfigurada e a luta por políticas sociais públicas, gratuitas e de
qualidade, enfraquecida. Isto sem falar no deslocamento que produz sobre o debate das
classes sociais, que tem o seu centro na propriedade privada dos meios de produção, e,
portanto, nos conflitos entre trabalhadores e capitalistas. É justamente na construção de
vínculos de identidade entre a classe trabalhadora e suas diferentes frações que a apologia à
nova classe média pretende atuar, fragmentando seus sujeitos e, por conseguinte, suas
lutas.
Dito isso, é importante destacar que o aumento do salário mínimo, acompanhado do
aumento nas taxas de ocupação, teve um impacto bastante significativo em diversos
setores, sendo poucos os trabalhadores que tiveram reajustes abaixo da inflação. O gráfico
9 mostra o percentual de categorias laborais afetadas pelos reajustes salariais.

Gráfico 9 - Distribuição dos reajustes salariais em comparação com o INPC/IBGE


entre 1996 e 2011

Fonte: Sistema de Acompanhamento de Salários (SAS/DIEESE)207

207
Nota metodológica: “As informações que embasam este estudo foram extraídas de acordos e convenções
coletivas de trabalho registradas no Sistema de Acompanhamento de Salários – SAS-DIEESE. Os
documentos foram remetidos ao Departamento pelas entidades sindicais envolvidas nas negociações
276

O gráfico demonstra que, desde 2005, mais de 70% das categorias laborais tiveram
aumentos acima da inflação, chegando a 88,2% em 2010 e 86,8% em 2011. Este fato deixa
claro o impacto desta mudança e sinaliza para um conjunto bastante expressivo de
trabalhadores atingidos, principalmente se considerarmos o aumento da formalização dos
trabalhadores nos últimos anos. Em 2011, o setor de comércio foi o que apresentou um
maior percentual de reajustes acima do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC),
ou seja, da inflação, ficando em torno de 97%. Na indústria, 90% das negociações
registraram aumentos reais na data-base. Destacam-se os segmentos da construção e
mobiliário, indústria extrativa e indústria do papel, papelão e cortiça, que registraram
aumentos reais em todas as negociações neste ano. As atividades na indústria da
alimentação, metalúrgica e gráfica apresentaram percentuais de negociação com aumentos
reais acima da média do setor. Os serviços obtiveram o menor índice, cerca de 76%
(DIEESE, 2012).
Estas são importantes informações para uma análise da configuração do mercado de
trabalho recente, mas insuficientes. É preciso também avaliar a qualidade dos postos de
trabalho que estão sendo gerados e sua remuneração média. Segundo Pochmann, dos 21
milhões de postos de trabalho gerados na primeira década do século 21, 94,8% foram com
rendimento de até 1,5 salário mínimo mensal (2012, p. 27). Em outras palavras, são
ocupações de baixa remuneração e que exigem, em média, pouca qualificação. Se por um
lado isto significa que foram postos de trabalho que absorveram segmentos da classe
trabalhadora mais pauperizados, por outros nos dá uma ideia das bases em que estão
ancoradas o aumento do investimento. Ou seja, trata-se de um padrão de crescimento que
requer uma força de trabalho de baixa escolaridade e com remunerações próximas ao piso
salarial.
O nível de escolaridade dos trabalhadores ocupados, entretanto, vem aumentando.
Pochmann (2012, p. 39-40) aponta que em 2009, aproximadamente 43% dos ocupados
possuíam 9 anos de estudo ou mais. Em 1999 este número era de cerca de 23%. É preciso
considerar também que o percentual de trabalhadores com carteira assinada ainda é baixo,

coletivas ou pelos escritórios regionais e subseções (unidades de trabalho do DIEESE que funcionam dentro
de entidades sindicais). Complementarmente, também foi considerado o noticiário da imprensa escrita e dos
veículos impressos ou virtuais do meio sindical – jornais e revistas de sindicatos representativos de
trabalhadores e de entidades sindicais empresariais” (DIEESE, 2012, p. 32).
277

embora venha aumentando. Em 2009 os trabalhadores sem carteira ou por conta própria
ficaram em torno de 55%, contra 44% com carteira assinada.
Além disso, o índice de rotatividade vem crescendo desde a década passada. Este
índice que era de 45,1%, em 2001, passou para 46,8, em 2007 e 49,4%, em 2009, segundo
o DIEESE (2011, p. 13). Mesmo quando descontados os desligamentos por transferência,
desligamento a pedido do trabalhador, aposentadoria e falecimento, as taxas foram 34,5%,
34,3%, 36,0%, em 2001, 2007 e 2009, respectivamente. Em 2010 este percentual
continuou subindo, chegando a 37,28%. Este é um índice que aponta para a grande
instabilidade do emprego. Em 2009, cerca de 60% dos vínculos de trabalho não chegaram
a completar dois anos208.
Os dados contribuem para mostrar que ainda estamos longe de possuir uma
configuração do mercado de trabalho que aponte para alterações substantivas no padrão de
uma economia dependente e desigual. Os traços de nossas heranças do passado seguem
fortes e apresentam limites ao estabelecimento de relações de trabalho menos desiguais e
que garantam o acesso aos direitos trabalhistas e previdenciários à maior parte da
população.
Esta nova conjuntura contribuiu para dinamizar o movimento sindical e fortalecer a
capacidade reivindicativa da classe trabalhadora. Boito Jr. e Marcelino (2010) analisam
que houve uma recuperação do movimento sindical desde 2004. Com base em um
levantamento do Dieese, os autores afirmam que, embora o número de greves seja menor
do que o verificado em média nos anos 1990, existe um percentual maior de greves
ofensivas, ou seja, aquelas voltadas para novas conquistas, como aumento real de salário.
Em outras palavras, o que marcou o movimento grevista na última década do século
passado, foram iniciativas voltadas para resistir às mudanças impostas e defender direitos
conquistados. Nos anos 2000 ao contrário, uma análise das greves entre 2004 e 2008
permite afirmar que “as reivindicações ofensivas estiveram presentes na grande maioria
das greves – em porcentagem, 65% ou mais do total de greves de cada ano” (BOITO Jr.;
MARCELINO, 2010, p. 331). Além disso, em todos estes anos, a maior parte das greves
tiveram suas reivindicações total ou parcialmente atendidas. Isto pode significar que as

208
Um outro aspecto a se considerar é que em 2010, “126 mil estabelecimentos (5,8%) foram responsáveis
por 14,4 milhões (63%) dos 22,7 milhões de desligamentos no ano. Dessa forma, constata-se que pouco
menos de 2/3 dos desligamentos anuais foram realizados por cerca de 6% do total dos estabelecimentos, que
demitiram trabalhadores durante esses exercícios” (DIEESE, 2011, p. 13).
278

melhorias no mercado de trabalho, ainda que pequenas, têm contribuído para o


fortalecimento da organização dos trabalhadores e de suas condições para lutar por
melhores condições de vida e de trabalho.
O fato é que a partir de 2004 é possível identificar uma melhora na distribuição de
renda no país. O gráfico 10 apresenta a participação dos componentes do PIB pela ótica da
renda no Brasil e ilustra uma redução da remuneração do capital em favor da renda dos
trabalhadores a partir de 2004.

Gráfico 10 – Participação dos componentes do PIB pela ótica da renda no Brasil


(1995/2009)

Fonte: Sistema de Contas Nacionais/IBGE. Elaboração Hallak Neto (2013).

A série histórica trata do comportamento de quatro componentes do PIB pela ótica


da renda. A remuneração, ou seja, a parcela destinada ao trabalho assalariado; o excedente
operacional bruto (EOB), que indica os ganhos potenciais do capital; o rendimento misto
bruto (RMB), o qual corresponde à parcela que cabe ao trabalho autônomo; e os impostos
líquidos de subsídios sobre a produção e importação (ILPI).
Destas, as duas primeiras são as principais. “As remunerações incluem os salários e as
contribuições sociais; o EOB [identifica] o rendimento das empresas financeiras e não
financeiras, dos proprietários de imóveis e outros bens alugados e dos detentores de títulos
financeiros públicos ou privados” (HALLAK NETO, 2013, p.55). O gráfico ilustra o aumento
das remunerações da classe trabalhadora e uma redução na renda do capital. Este fato está
associado ao aumento na taxa de ocupação, ao aumento da formalização de empregos e
também à política de valorização do salário mínimo. Como dissemos, são mudanças que não
279

produziram uma alteração substantiva na configuração do mercado de trabalho, mas produzem


efeitos sobre as condições de vida de parcela significativa de trabalhadores. O aumento nos
rendimentos do trabalho também não produziu uma grande inflexão na reta, mas sem dúvida,
reverteu a tendência de queda e sofreu uma elevação (43,6% em 2009) que superou o registro
de 1995 (42,6%).
Outro elemento que não pode deixar de ser considerado, quando analisamos o
significado das mudanças em curso, é o comportamento destas variáveis no ano de 2009.
Como dissemos, este ano foi marcado pelos impactos da crise internacional, com
desdobramentos fortes sobre o crescimento da economia (PIB de -0,3%) e aumento do
desemprego (de 7,8% em 2008, para 9,1% em 2009). Por mais que não tenha ocorrido uma
mudança estrutural no mercado de trabalho, os efeitos da crise não comprometeram a trajetória
ascendente da renda do trabalho. Em 2009 esta segue sofrendo aumento, acompanhada de uma
redução na remuneração do capital.
Quanto ao comportamento dos outros dois componentes, é possível observar uma
queda acentuada do rendimento misto. Mas seu movimento está associado a influências
distintas. Como explica Hallak Neto, até 2005 a redução se dá apesar de haver um aumento das
ocupações dos autônomos. O que aconteceu foi que os rendimentos auferidos por estes
trabalhadores diminuiu. Este fato é um reflexo do baixo crescimento econômico, reduzidas
possibilidades de encontrar ocupações formais e do recurso a ocupações pontuais e de baixa
remuneração. Em outras palavras, seu decréscimo expressa um aumento da precarização do
mercado de trabalho e a piora nas condições dos trabalhadores informais. “Em termos
absolutos, as ocupações de autônomos aumentaram em 9,0% de 2000 a 2005209, enquanto que
o RMB real médio reduziu-se em 11,0%” (2013, p. 70).
De 2005 a 2009, o quadro se altera. “Enquanto as ocupações são reduzidas, voltando-se
para o patamar do ano 2000; os rendimentos médios dos autônomos, em termos reais, elevam-
se em 16,6%” (HALLAK NETO, 2013, p. 70). O declínio, portanto, mantém relação com o
aumento da formalização do trabalho, que fez migrar parte dos trabalhadores da informalidade
para uma ocupação com carteira assinada e, portanto, mais estável.
Em relação aos ILPI, podemos observar um leve aumento, seguido por uma redução
em 2009. A este respeito o autor afirma que:

209
Hallak Neto explica que, por questões metodológicas (não há dados disponíveis de ocupações
desagregadas por tipo de inserção), não foi possível fazer a análise do período de 1995 a 1999.
280

Analisando-se os dados desagregados por tipo de imposto pode-se afirmar que as


causas para o crescimento relativo dos ILPI foram o aumento da arrecadação
sobre folha de pagamento e seguridade social, por conta do aumento da massa
salarial e da formalização dos postos de trabalho, e o ganho de peso das
importações no PIB, com a consequente maior arrecadação de impostos ligados a
esta atividade (2013, p. 71-72).

A sua redução, observada no último ano da série, entretanto, não estaria ligada a
uma reversão nestes fatores e sim à forte política de isenção fiscal, utilizada como uma
medida para conter os efeitos da crise internacional. A redução ou isenção de impostos, em
especial o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para uma série de produtos, com
destaque para automóveis e eletrodomésticos (a linha branca), teriam tido impacto sobre a
arrecadação tributária, o que explicaria esta diminuição observada para o ano de 2009.
Os dados apresentados até aqui contribuem para mostrar que, apesar de alguma
melhora, tratam-se de mudanças que não vieram acompanhadas de alterações de fundo
estrutural. Uma reforma tributária voltada para ampliar a progressividade na arrecadação
de impostos, que teria um impacto expressivo sobre a desigualdade de renda, não foi feita.
Também não houve uma mudança significativa da política econômica adotada no início
dos anos 1990. Estes fatos impedem a adoção de medidas com um maior potencial de
alteração na estrutura produtiva e na redistribuição de renda. As prioridades do governo
seguem sendo a chamada responsabilidade fiscal, o que significa um compromisso com o
pagamento de juros que limita as possibilidades de gasto público, dado que uma parcela
substantiva é drenada para arcar com as despesas da dívida.
Existe, entretanto, uma maior preocupação com a indução do crescimento, que tem
se expressado em taxas maiores no aumento do PIB, com desdobramentos sobre a
configuração do mercado de trabalho. São mudanças em parte propiciadas pela situação do
mercado internacional em que o alto preço das commodities tem puxado as exportações e
estimulado a produção interna. Mas também propiciadas pelo aumento do consumo das
famílias, decorrente dos ganhos nos rendimentos do trabalho a que nos referimos (bem
como do aumento no endividamento destas famílias). Estes ganhos são significativos para
a classe trabalhadora, principalmente se considerarmos sua memória recente.
Em parte, o que garantiu um considerável apoio popular ao governo FHC nos
primeiros anos de seu mandato – e que chegou a levá-lo ao segundo mandato no primeiro
turno das eleições – foi o controle da inflação. A população, de uma maneira geral
massacrada pelas longas décadas vividas em um nível acelerado da elevação dos preços,
281

aceitou todos os “efeitos colaterais” do plano de estabilização monetária 210. Assim, durante
um tempo, esteve disposta a conviver com o desemprego e a precarização das condições de
vida que este trouxe. O medo do retorno à inflação – depois de tantos anos considerando
esta como a principal razão de seus infortúnios – parecia ser o suporte subjetivo que a
classe precisava para enfrentar o quadro que foi se configurando ao longo da década.
Passado um tempo, foi-se percebendo que, ao contrário do que se sonhava viver com o fim
da inflação, as dificuldades aumentaram e o desemprego foi se tornando o principal
assunto entre os que viviam da venda da sua força de trabalho.
A questão presente no governo Lula é que, mesmo aprofundando alguns vínculos
de dependência com o exterior e com a ausência de uma ruptura estrutural com o padrão
anterior, existem algumas mudanças concretas que impuseram melhoria nas condições de
vida. Estas mudanças não são fruto de uma grande ilusão ou de uma propaganda muito
bem sucedida. Entretanto, os ganhos sentidos pela classe trabalhadora, embora
significativos e suficientes para garantir um forte apoio popular ao governo, não significam
que este tenha sido voltado para os interesses prioritariamente populares. Em outras
palavras, este não foi um governo a serviço dos interesses da classe trabalhadora.
A governabilidade atual não teria se dado da mesma forma se o grande capital não
tivesse sido ainda mais agraciado pelas políticas conduzidas pela ampla coligação
partidária sob o comando do Partido dos Trabalhadores. O crescimento econômico
permitiu que os ganhos fossem repartidos entre as classes, mas não de forma igualitária. O
apoio de parte expressiva da burguesia ao governo ajuda a perceber que sua satisfação
expressa ganhos reais obtidos.
Segundo dados publicados no caderno de Economia do Jornal O Globo, “o lucro
líquido de uma amostra de nove bancos (entre eles, Banco do Brasil, Itaú e Bradesco)
somou R$174,075 bilhões entre 2003 e 2010, em valores nominais”. A matéria explica que
atualizados estes valores sobem para R$199 bilhões, “[...] batendo de longe os resultados
registrados durante a gestão do tucano Fernando Henrique Cardoso” (NOVO, 2011, p. 31).
O desempenho financeiro da Vale e da Petrobras também foi bem melhor do que o
verificado no governo FHC. “Entre 2003 e 2010, o lucro líquido acumulado da Petrobras
foi de R$245,9 bilhões, salto de 231% sobre os R$74,1 bilhões obtidos entre 1995 e 2002.

210
Como já discutimos, o Plano Real foi muito mais do que um plano de estabilização monetária pura e
simples, embora tenha sido apresentado como tal.
282

Já o ganho da mineradora foi de R$135,7 bilhões na Era Lula, 423% superior ao do


governo FHC211” (ORDOÑEZ & ROSA, 2011, p. 27).
Até o início de outubro de 2010, a Bolsa de Valores de São Paulo (BOVESPA)
havia acumulado ganhos de 523,26%, desde 2003, como divulgou o Jornal o Globo. “Foi a
maior alta nominal entre as 12 principais bolsas do mundo, superando emergentes como
China (94,36%), Índia (505,95%) e México (452,04%)” (VILLAS BÔAS, 2010, p. 39).
Feitos os ajustes com a inflação, a alta foi de 308,46%. A matéria, baseada em dados da
Economática, afirma que, considerando os governos FHC e Lula, os setores que obtiveram
maior valorização foram construção, transporte e siderurgia. Estes dados contribuem para
indicar os ganhos da burguesia interna com as medidas adotadas pelo governo e como ela
foi beneficiada pelo crescimento econômico verificado no último período.
É em meio a este contexto que devemos analisar os gastos sociais realizados pelo
governo federal, ou seja, de um governo que, sem confrontar os interesses do capital, vem
buscando formas de atender timidamente aos interesses da classe trabalhadora. Se formos
considerar os valores absolutos despendidos, deflacionados mês a mês para valores de
dezembro de 2011, veremos que houve um aumento acentuado nestes gastos a partir de
2004. O gráfico 11 mostra a trajetória do gasto social de 1995 a 2010, em valores absolutos
e em percentual do PIB. Cabe ressaltar que os dados consolidados para o ano de 2011
ainda não haviam sido disponibilizados pelo IPEA até a conclusão desta pesquisa.

211
Números corrigidos pelo IGP-DI.
283

Gráfico 11 – Trajetória do gasto social federal de 1995 a 2010

Fonte: SIAFI/SIDOR Elaboração: Disoc/Ipea (apud CASTRO et al, 2012).

Como indicado no gráfico, o gasto social em 1995 foi de aproximadamente R$


234,0 bilhões e chegou a R$ 638,5 bilhões em 2010. Este aumento representa um
crescimento real de 172% nos 16 anos da série. Para se ter uma ideia mais clara sobre o
que isso representa, é preciso considerar o aumento populacional vivido ao longo deste
tempo. Como forma de considerar esta alteração, devemos recorrer aos valores per capta.
Castro et al (2012, p. 8) apontam que o gasto social federal (GSF) per capita, em termos
reais, passou de R$ 1.471,46 em 1995 para R$ 3.324,84 em 2010, tendo mais do que
dobrado no período. Se fizermos um recorte temporal em função dos diferentes governos,
os autores mostram que, no governo FHC (1995-2002), o GSF per capita cresceu 32% em
termos reais, ao passo que no governo Lula (2003-2010) o aumento foi de 70%.
Estes aumentos, embora sejam bastante expressivos, não representaram um
aumento significativo na participação do GSF no PIB. O fato se explica dado que houve
um aumento em termos absolutos que, de certa forma, acompanhou o aumento no produto
interno bruto. Sendo assim, ao considerar os gastos em proporção da riqueza produzida,
veremos que o aumento é bem menos significativo, tendo passado de quase 13% em 2003
para aproximadamente 15,5% em 2010. A estimativa para o ano de 2011, apontada por
284

Chaves e Ribeiro (2012), é de que este percentual tenha subido para pouco mais de 16%.
Podemos dizer, portanto, que houve uma certa manutenção no padrão do gasto, o qual,
mesmo tendo aumentado no que diz respeito ao aporte de recursos, não sofreu uma
mudança que possamos identificar como sendo estrutural.
Mas existem alterações. A mais forte delas diz respeito ao comportamento do GSF
durante a crise financeira de final de 2008 e 2009. Como dissemos, uma das medidas
adotadas pelo governo foi a de estimular o crédito e conceder isenções fiscais 212. Apesar
disso, o relatório do TCU alerta que

a renúncia de receitas tornou-se ao longo dos anos importante instrumento de


políticas públicas. Seu montante (R$ 143,9 bilhões em 2010) ultrapassa a soma
dos orçamentos das políticas de saúde, educação e assistência. Entretanto,
verifica-se ausência de indicadores, deficiência de prestação de contas e
necessidade de melhor distribuição desses recursos entre as diversas regiões do
país. A concentração desses recursos contribui para perpetuação de
desigualdades regionais (BRASIL, 2010).

De qualquer modo, estas medidas tiveram uma importância significativa para


conter os efeitos da crise por meio do estímulo ao consumo interno. Uma outra ferramenta
utilizada foi o gasto social. Este seguiu sua trajetória ascendente mesmo com a retração
econômica de 2009. O gráfico 12 ajuda a visualizar melhor o comportamento do GFS na
crise. Ele ilustra o crescimento real do gasto social federal e do PIB entre 1995 e 2010.

212
Algumas desonerações tributárias adotadas fazem parte do PAC e outras foram feitas temporariamente,
em virtude da crise, como as reduções no IPI para automóveis e bens duráveis.
285

Gráfico 12 – Taxas de crescimento real do gasto social federal e do PIB de 1995 a 2010

Fonte: SIAFI/SIDOR e Ipeadata. Elaboração: Disoc/Ipea (apud CASTRO et al, 2012).

Com a crise, o PIB passou de um crescimento de 5,17% em 2008 para uma redução
de 0,33%, em 2009. O GSF, entretanto, sofreu um aumento de 6,3% para 11,67%, o maior
da série histórica que estamos analisando. Mesmo tendo diminuído, sua taxa de
crescimento no ano seguinte ficou em 10,75%. Este fato indica uma postura mais
expansionista, muito diferente do comportamento anterior, em que podemos verificar uma
redução brusca nos gastos durante as crises de 1998/1999 e de 2002/2003, quando o
crescimento do GSF foi de 2,43% e 1,15%, respectivamente.
Esta postura contribuiu para reaquecer o mercado interno e foi um dos fatores
fundamentais para a recuperação do PIB, que voltou a crescer e fechou o ano de 2010 a
uma taxa de cerca de 7,5%. Além do aumento nos gastos sociais, da valorização do salário
mínimo e das isenções fiscais, no período da crise, o governo manteve também seu
programa de investimentos planejado no PAC. “Em números, os investimentos da União e
da Petrobras continuam a crescer, mesmo durante a crise, atingindo 1% e 1,6% do PIB em
2009, respectivamente” (BARBOSA ; SOUZA, 2010, p. 87). Entretanto, esta taxa de
investimento em relação ao PIB ainda é muito baixa. O relatório do TCU de 2010 indica a
necessidade de “urgente melhoria da eficiência do gasto governamental – em 2010, apenas
9% da dotação orçamentária federal foi destinada a investimentos (BRASIL, 2010, p. 2).
286

Além disso, o governo manteve os reajustes salariais e contratações para o serviço


público programados para o ano de 2009, buscou estimular o crédito por meio da redução
do compulsório e de linhas de crédito oferecidas pelo BNDES, Caixa Econômica Federal e
Banco do Brasil213 e reduziu a taxa de juros. O seguro desemprego teve duas parcelas
extras para os trabalhadores que foram demitidos nos setores mais afetados pela crise.
Em relação às metas fiscais, houve um reajuste para buscar alguma compensação
pelo aumento do gasto público em um contexto de redução na arrecadação puxada pela
retração econômica. “A meta do resultado primário para o ano de 2009 foi reduzida de
3,3% para 2,5% do PIB; se forem descontados os investimentos públicos, o superávit
almejado caiu de 2,8 para 1,6% do PIB” (CASTRO et al, 2012, p. 18). Como se pode
imaginar, a dívida líquida do setor público aumentou, passando de 40,5% do PIB em
agosto de 2008 para 43% em novembro do ano seguinte (BARBOSA ; SOUZA, 2010, p.
92). Mas nos anos seguintes, com a recuperação do crescimento, ela baixou um pouco
passando para 40% do PIB em 2010 e 36,5% em 2011, como aponta o relatório do TCU de
2011 (BRASIL, 2011).
O programa Minha Casa, Minha vida, voltado para a habitação, foi criado em 2009,
também como forma de enfrentar a crise, mas com caráter prolongado. Com recursos do
Fundo de Arrendamento Residencial (FAR) e do Fundo de Desenvolvimento Social (FDS),
o programa é voltado para reduzir o déficit habitacional brasileiro e tinha como público
alvo famílias com renda mensal de até 10 salários mínimos. Em alteração realizada em
2011, o público alvo passou a ser famílias com renda mensal de até R$ 4.650,00 (BRASIL,
2011).
O Relatório do TCU, com base em um estudo realizado em 2008 pelo Ministério
das Cidades juntamente com a Fundação João Pinheiro, de Belo Horizonte, afirma que as
famílias com renda de até cinco salários mínimos representam 96,6% do déficit
habitacional urbano no país (BRASIL, 2011, p. 189). Este é o público prioritário do
programa. O Minha Casa, Minha Vida envolve a construção e financiamento de unidades
habitacionais214 com investimentos e estímulos expressivos no setor de construção civil.

213
“Com esse movimento, evitou-se o decréscimo no crédito na economia brasileira: em dezembro de 2007,
as operações de crédito somavam 34,2% do PIB; em setembro de 2008, 38,7%; e em fevereiro de 2009,
41,9%” (CASTRO et al, 2012, p. 17).
214
“A meta para o quadriênio 2011-2014 era conceder empréstimos no valor de R$ 176,0 bilhões, dos quais
R$ 44 bilhões em 2011, sem a inclusão de contrapartidas. Essa meta se manteve até o 3º Balanço do PAC 2,
287

Por último, convém mencionar a expansão do Programa Bolsa Família realizado em


2009. Além de ampliar a idade limite dos benefícios variáveis de 15 para 17 anos, houve
um aumento nos valores que definem a condição de extrema pobreza (de R$60,00 para
R$69,00) e de pobreza (de R$120,00 para R$137). Portanto, o benefício não apenas
incorporou em número maior de possíveis beneficiários, como passou por um reajuste de
10%, percentual acima da inflação acumulada no ano anterior (CASTRO et al, 2012).
Mesmo com as limitantes condicionalidades, o programa ainda não atingiu todo o seu
público alvo. Em 2009, apenas cerca de dois terços da população considerada oficialmente
na condição de extrema pobreza recebeu o benefício (IPEA, 2012b, p. 67).
Estas são algumas das medidas que levaram André Singer (2012) a afirmar a
presença de um reformismo fraco nos últimos anos. Este cientista político, que compõe a
base aliada do governo sem parecer fazer coro com as teses do pós-neoliberalismo, situa os
mandatos do PT em um “caminho intermediário ao neoliberalismo da década anterior –
que tinha agravado para próximo do insuportável a contradição fundamental brasileira – e
ao reformismo forte que fora o programa do PT até as vésperas da campanha de 2002”
(2012, p. 21). Este reformismo fraco contribuiria para atenuar conflitos e produziria efeitos
muito lentos na redução das desigualdades sociais, dado que procura não ameaçar a ordem
estabelecida215.
Dentre as medidas que caracterizam este reformismo estariam algumas de caráter
“geral” e alguns programas específicos. No primeiro grupo, ele destaca o Programa Bolsa
Família, o aumento do salário mínimo e o aumento de crédito, em especial o consignado.
No segundo, estão os programas Luz para Todos216, regularização das propriedades

tendo sido superada. Ao final do exercício [de 2011], haviam sido firmados 472.038 contratos, totalizando
R$ 75,1 bilhões, o que representa 70% a mais que o originalmente planejado” (BRASIL, 2011, p. 190).

215
Ao procurar caracterizar o que chama de reformismo fraco, o autor o compara com o programa do PT nos
anos 1990, o qual consistiria em um reformismo forte e afirma: “[...] ao tomar as propostas originais do PT
aquilo que não implicava enfrentar o capital como seja o caso da tributação das fortunas, revisão das
privatizações, redução da jornada de trabalho, desapropriação de latifúndios ou negociação de preços por
meio dos fóruns e cadeias produtivas, o lulismo manteve o rumo geral das reformas previstas, não obstante
aplicando-as de forma muito lenta. É a sua lentidão que permite interpretá-lo como tendo um sentido
conservador” (SINGER, A., 2012, p. 192-193).

216
O Programa Luz para Todos foi lançado em novembro de 2003. Segundo o site oficial do Ministério de
Minas e Energia, “a meta inicial de atender a 10 milhões de pessoas foi alcançada em maio de 2009 e até
março de 2012, o Programa já chegou para cerca de 14,4 milhões de moradores rurais de todo o país. Os
investimentos chegam a R$ 20 bilhões, dos quais R$ 14,5 bilhões são do Governo Federal”. Disponível em:
http://luzparatodos.mme.gov.br/luzparatodos/Asp/o_programa.asp. Acesso em: 01/08/2013.
288

quilombolas, a construção de cisternas no semiárido e etc. Todas elas contribuíram para a


redução das desigualdades, o que não se observava no país há décadas. Para o autor, estas
medidas “sugerem um caminho a seguir: manutenção da estabilidade com expansão do
mercado interno” (2012, p. 70).
Discordamos da pertinência em classificar o PBF como uma medida de caráter
geral, dadas as condicionalidades existentes para seu acesso. Apesar de ter impacto sobre
um contingente populacional significativo217, trata-se de um programa focalizado, voltado
para pessoas em situação de pobreza e que exclui muitas outras que também vivem
precariamente. Do mesmo modo, o crédito consignado também só atinge os que estão
inseridos em programas do governo ou que têm acesso à previdência ou a uma
remuneração estável. Das mudanças elencadas, apenas o aumento do salário mínimo pode
ser efetivamente considerada uma medida de caráter geral, mesmo assim é importante
lembrar que mais da metade da população economicamente ativa está na informalidade e
sofre de forma indireta os efeitos deste aumento.
Assim, mesmo reconhecendo os méritos do ponto de vista da melhoria nas
condições de vida, consideramos estas medidas insuficientes para caracterizar um
reformismo, mesmo que com a tentativa de atenuar este termo fazendo uso do adjetivo
“fraco”. Precisaria haver alterações no sentido da garantia da universalidade nas políticas
sociais, para além de políticas focais, que apontassem para a construção de mudanças
estruturais. Ao contrário, o entendimento de políticas sociais é cada vez mais restrito a esta
lógica focalizante e apresentado como o principal mecanismo de atendimento às
satisfações da classe trabalhadora. Não é à toa que o termo política social universal
praticamente saiu de cena, e quase não aparece nas análises daqueles que procuram
valorizar as ações desenvolvidas pelo governo.
Mesmo com impacto nos índices de desigualdade, este processo de construção da
identidade das políticas sociais aos programas de transferência de renda decorre do fato de
que estes são mais facilmente assimiláveis pelo capital. Além de ser possível atingir uma
parcela considerável da população usando um volume menor de recursos, estes programas
atuam sobre os efeitos da desigualdade de forma muito mais “comportada”, não exigindo
grandes alterações no trato dos recursos públicos. Eles convivem, portanto, com a ausência
de alteração nos rumos da política econômica.

217
Em 2010, o programa beneficiou 12.778.220 famílias (IPEA, 2012b, p. 66).
289

O argumento de André Singer para a continuidade na condução macroeconômica


está na preocupação com a manutenção da ordem. Para o autor, um confronto maior com o
capital provocaria uma instabilidade econômica que atingiria fundamentalmente os
trabalhadores precarizados. “A continuidade do ‘pacote FHC’ foi a condição da burguesia
para não haver guerra de classes e consequentemente risco de Lula ser visto como o
presidente que destruiu o Real” (SINGER, A, 2012, p. 75).
É, portanto, partindo do pressuposto de impossibilidade de alteração na política
econômica que este professor da USP defende que o governo teria promovido a
“realização de um completo programa de classe (ou fração de classe para ser exato)”
(2012, p. 76, grifo do autor). Ele explica que não se trata de um programa da classe
trabalhadora organizada, mas a do chamado subproletariado218. Esta seria a fração de
classe que está no centro da equação eleitoral brasileira e, por ser o elo mais fraco da
cadeia, a esta não interessaria uma postura de maior confronto com o capital. Ele não
questiona, entretanto, os limites desta política, tanto do ponto de vista da sua continuidade
no longo prazo, quanto das possibilidades que ela (não) abre para uma melhoria estrutural
nas condições de vida destas pessoas.
Diversos autores questionam a existência de um novo padrão de acumulação,
baseado no desenvolvimento com redução das desigualdades. Dentre estes, além de
Reinaldo Gonçalves que já mencionamos, destacamos o livro organizado por Ana
Elizabete Mota (2012), que reúne artigos de vários estudiosos, e as elaborações de Ivanete
Boschetti (2012a). Esta última afirma que

o investimento em programas assistenciais pífios, focalizados e recheados de


condicionalidades, aliado à manutenção do desemprego estrutural e ao não
investimento em políticas sociais universais, longe de indicar um novo modelo
de desenvolvimento social, é uma estratégia útil ao capitalismo para regular o
mercado a baixo custo (BOSCHETTI, 2012a, p. 54).

Apesar de concordarmos com os limites das mudanças empreendidas, como


procuramos apontar, consideramos que existem elementos novos que não podem ser
desconsiderados, inclusive em relação a desigualdade social, mesmo que sejam
insuficientes para falarmos em mudanças estruturais. De acordo com a PNAD, a

218
André Singer (2012) faz um interessante debate sobre o subproletariado e mostra como este teria sido a
principal base de sustentação do lulismo, em especial, nas eleições de 2006.
290

desigualdade de renda vem efetivamente caindo. “Entre 2001 e 2011, a renda per capita
dos 10% mais ricos aumentou 16,6% em termos acumulados, enquanto a renda dos mais
pobres cresceu notáveis 91,2% no período. Ou seja, a do décimo mais pobre cresceu 550%
mais rápido que a dos 10% mais ricos” (IPEA, 2012a, p. 6). Apesar do clima ufanista na
divulgação dos dados pelo IPEA, sabemos que é pouco para o tamanho das desigualdades
existentes no país. Sabemos também que parte do aumento da renda destes 10% mais ricos
não é capturada por este tipo de contabilização, o que gera uma distorção nestes dados.
Ainda assim, trata-se de uma alteração suficiente para melhorar o padrão de consumo de
uma parcela expressiva da população. A questão está nos limites das mudanças que
provocaram este resultado.
A este respeito, cumpre destacar ainda um pouco mais a importância dos programas
de transferência de renda nos governos do PT. Os recursos do Ministério de
Desenvolvimento Social (MDS) são praticamente todos voltados para estes programas.
Para se ter uma ideia, em 2010, o gastos com o BPC e o PBF representaram 92% dos
recursos executados por este Ministério. O Plano Brasil sem Miséria anunciado em meados
de 2011 pretende dar uma resposta às críticas que apontavam para a necessidade de ir para
além dos programas de transferência de renda, bem como procura viabilizar “portas de
saída” para seus beneficiários. Voltado para superar a extrema pobreza, o Plano busca
articular políticas, programas e ações em três dimensões. Além da garantia de renda, está
voltado também para propiciar um maior acesso às demais políticas sociais e para
viabilizar uma “inclusão produtiva” (IPEA, 2012b, p. 50).
Em relação à inclusão produtiva, o Plano prevê a “realização de ações de
qualificação profissional, intermediação de mão de obra, oferta de microcrédito e incentivo
à economia solidária” (IPEA, 2012b, p. 51-52). A intenção anunciada é a de ampliar as
possibilidades de (re)entrada no mercado de trabalho e a garantia da subsistência das
famílias sem a necessidade de recorrer ao programa. Entretanto, sabemos que não são
poucas as dificuldades do Sistema Público de Trabalho, Emprego e Renda. Como forma de
contorná-las, o plano abre a possibilidade de recorrer às escolas técnicas e do Sistema S,
para fornecer os cursos de qualificação. “Contudo, convém lembrar que estas instituições
não possuem tradição de atuação junto à população de baixíssima escolaridade e inserção
precária no mundo do trabalho” (IPEA, 2012b, p. 52). Como ressalta o trabalho do IPEA,
estas instituições são voltadas para os trabalhadores do setor formal.
291

Se formos pensar ainda nos limites impostos pelas regiões em que boa parte das
famílias beneficiadas está inserida – cidades pequenas, muitas rurais, e com pouca
capacidade de absorver um aumento do contingente de trabalhadores empregados –
veremos que as possibilidades de êxito desta dimensão são muito pequenas. Sabemos que a
expansão no mercado de trabalho dificilmente poderá incorporar toda a classe
trabalhadora, de modo que a transferência de renda realmente pode ser uma alternativa de
garantia de sobrevivência destas pessoas. A questão é que quando ela se torna o centro das
políticas sociais, consistindo na grande prioridade de atuação, as condições para o
provimento das demais políticas sociais ficam mais restritas. São estas políticas que
permitem o acesso não somente à saúde e à educação, mas a habitação, transporte, lazer e
cultura, por exemplo. Estas últimas hoje são quase que integralmente mediadas pelo setor
privado, tornando seu acesso praticamente exclusivo aos que podem pagar pelos serviços.
É o acesso a estas políticas, entretanto, que juntamente ao aumento da participação nos
ganhos produzidos pelo crescimento econômico, têm um maior potencial para
proporcionar uma melhoria nas condições de vida da população e promover uma efetiva
redistribuição de renda.
As transferências de renda deveriam, portanto, ser a exceção e não a regra. Mesmo
que isso não seja possível no curto prazo, dado que uma solução estrutural depende de
tempo para maturação de investimentos, existe a necessidade de medidas que caminhem
para avançar em relação a uma melhoria substantiva nas condições de vida. As políticas de
governo precisariam ter a perspectiva de se desdobrar em políticas de Estado, apontando
para a intenção de estabelecer mudanças permanentes, ampliando o caráter público e
gratuito dos serviços prestados pelo Estado. Dentre estas políticas de transferência de
renda, somente o BPC219 está garantido constitucionalmente, o que significa que as demais
podem ser alteradas ou retiradas ao sabor dos interesses do governo.
Estas políticas de transferência têm crescido e estão presentes em diversas áreas. Na
educação, a transferência de renda vem surgindo, em muitas universidades, como
alternativa à garantia de alojamentos e restaurantes universitários, por exemplo. É o caso
do programa Bolsa Permanência, criado em 2013 como sinalizamos no primeiro capítulo,
que transfere R$400,00 para estudantes que atenderem às condicionalidades do programa.
Este fato tem animado alguns estudantes por receberem um recurso que contribui para a

219
Também estão garantidos na Constituição os benefícios previdenciários, mas não fizemos referência a
estes dados, por possuírem um outro caráter.
292

continuidade dos seus estudos. Ela vem, entretanto, desmobilizando a luta estudantil e
indicando uma alternativa que pode passar pela precarização das condições de
permanência dos estudantes, dado que moradia e alimentação de qualidade, dentro da
universidade, tornam-se praticamente inviáveis somente com os recursos da transferência.
Os valores transferidos diretamente aos beneficiários não podem substituir políticas de
assistência estudantil consistentes para o atendimento das necessidades de estudantes de
baixa renda e que moram em localidades distantes da universidade.
Ainda no que diz respeito ao Plano Brasil sem Miséria, para ampliar o acesso às
demais políticas sociais, ele congrega programas, projetos e ações nos territórios marcados
pela extrema pobreza. Na área de saúde, por meio de diversos programas, como Saúde da
Família, Brasil Sorridente, Olhar Brasil, Rede Cegonha, distribuição de medicamentos para
hipertensão e diabetes e unidades básicas de saúde (UBS); educação com o Programa
Brasil Alfabetizado e Mais Educação; assistência social, com o Cozinhas comunitárias e
bancos de alimentos; segurança alimentar; e infraestrutura básica (habitação – Minha Casa,
Minha Vida –, energia – Programa Luz para Todos – e saneamento) (IPEA, 2012b). O
entendimento da necessidade de vinculação desta rede à transferência de renda passa pelo
fato de que, muitas vezes, as condições em que as pessoas em situação de extrema pobreza
vivem, as impede de acessar estas políticas. A limitação é que os recursos disponibilizados
para um melhor funcionamento destes programas são insuficientes para garantir uma maior
qualidade e cobertura nos atendimentos. Este limite mantém relação com as restrições
orçamentárias, fruto das escolhas, já discutidas, no que diz respeito à gestão dos recursos.
Um exemplo disso é que, nos últimos anos, o TCU apontou que a obrigatoriedade
do estabelecimento das prioridades na LDO não vêm funcionando como o esperado,
principalmente em razão da baixa execução financeira. A tabela 6 apresenta o nível de
execução das Ações Prioritárias definidas na LDO dos anos de 2009 a 2011.

Tabela 6 – Nível de execução das Ações Prioritárias (2009-2011)


Nº de Ações Total empenhado em Execução Execução Execução Execução
Ano Prioritárias que Ações Prioritárias muito fraca razoável alta
receberam dotação (R$ bilhões) fraca (%) (%) (%) (%)
2009 375 44,4 16 8 28 48
2010 652 94,5 12 8 17 63
2011 92 14,5 9 11 26 54
Fonte: Relatório do TCU (BRASIL, 2011).
293

Tanto em 2010220 quanto em 2011, um quinto das ações consideradas prioritárias


pelo governo teve uma execução considerada muito fraca (menos de 25%) ou fraca (entre
25% e 50%). Em 2009, este percentual foi ainda maior, quase um quarto (24%). O
contingenciamento, segundo o relatório do TCU, foi a principal justificativa para este
resultado. A execução é considerada alta quando fica acima de 84%. Em 2009, menos da
metade dos recursos disponibilizados para as Ações Prioritárias foram empenhados. Em
2010, este percentual subiu para 63% das ações e em 2011 caiu para 54%. Este baixo
resultado foi obtido mesmo tendo sido reduzido sensivelmente o número de ações
elencadas como prioritárias, que passou de 652 em 2010 para apenas 92 em 2011.
Significa dizer que os recursos são aprovados no Legislativo para financiarem as
ações, mas o executivo não os mobiliza para viabilizá-las. Como as dotações orçamentárias
vinculam estes recursos às áreas definidas e aprovadas, o que não é utilizado muitas vezes
acaba servindo para garantir as metas de superávit primário estabelecidas pelo governo.
Em resumo, identificamos uma postura mais pró-ativa do governo para estimular o
crescimento econômico por meio do PAC, com destaque para a atuação do BNDES e de
alguns programas sociais como o Minha Casa, Minha Vida, além da política de valorização
do salário mínimo. Esta postura favoreceu os ganhos obtidos pelo grande capital, em que
se destaca a burguesia interna, mas também atingiu a classe trabalhadora, em especial o
subproletariado.
Este governo está longe, entretanto, de promover uma situação em que “todos
ganham”, pelo menos não em condições de igualdade, até porque isto seria impossível no
desenvolvimento em bases capitalistas. A proporção no ganho, como não poderia deixar de
ser, é muito maior para o capital. Principalmente porque não houve uma mudança
estrutural que atendesse aos interesses da classe trabalhadora. A continuidade na condução
da política econômica também impede uma ruptura com o padrão de desenvolvimento
anterior e impõe sérias restrições a uma dinâmica mais voltada para o investimento
produtivo, produzindo tensões e contradições no interior da base de apoio do governo.

220
No relatório de 2010, o TCU alerta que “o processo de planejamento do governo não provê canal de
comunicação eficiente de incentivo e conscientização à participação dos órgãos setoriais. Ademais, há
dificuldade na definição das ações realmente prioritárias do Estado. Além de graves problemas no processo
de construção de indicadores setoriais e de seu monitoramento. Recomenda-se ao Poder Executivo que
priorize a execução das ações identificadas como prioritárias frente às demais ações discricionárias”
(BRASIL, 2010).
294

Apesar da crise enfrentada em 2008 e 2009, as condições internacionais, em


especial o aumento no preço das commodities, estimularam as exportações e acabaram
orientando o destino de boa parte dos investimentos, fortalecendo nossa posição ocupada
na Divisão Internacional do Trabalho. Neste cenário, a maior parte dos empregos ofertados
seguem sendo aqueles de baixa remuneração e que exigem um menor nível de
escolaridade. A grande taxa de informalidade ainda é um problema a ser enfrentado,
embora seja possível observar uma maior formalização dos postos de trabalho.
As políticas sociais têm hoje uma maior importância no aquecimento do mercado
interno e funcionam como mecanismo no enfrentamento às crises, mas o horizonte da
universalidade está cada vez mais distante. A centralidade nas políticas de transferência de
renda é um dos grandes carros chefes deste governo que, ao mesmo tempo, vem
contribuindo para mercantilizar a prestação de diversos serviços sociais, com implicações
sérias sobre o formato e o caráter das políticas sociais.
Mesmo com todos os limites e contradições que permeiam este governo, parece que
as tímidas melhorias apresentadas podem abrir espaço para uma intensificação da luta no
próximo período. Uma das expressões desta possibilidade é o aumento de greves ofensivas
e a retomada do movimento sindical e de atos de rua. Somente a luta por melhores
condições de vida e de trabalho, promovidas pela classe trabalhadora organizada, é que se
terá poder para pressionar por avanços concretos e pela ampliação de direitos e de
mudanças estruturais. Ao confrontar diretamente o capital, esta luta pode vir a se constituir
no fermento necessário para a construção dos caminhos que apontem para superação deste
sistema.
295

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A utopia está lá no horizonte.


Aproximo-me dois passos,
ela se afasta dois passos.
Caminho dez passos
e o horizonte corre dez passos.
Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei.
Para que serve a utopia?
Serve para isso:
para que eu não deixe de caminhar.

Eduardo Galeano

Sabemos que a preocupação com a obtenção de margens de rentabilidade cada


vez maiores é o que norteia o processo de tomada de decisão dos proprietários dos meios
de produção desde o surgimento e consolidação do modo de produção capitalista.
Entretanto, dada a dinâmica que envolve todo o processo desta busca e as contradições que
são a ela inerentes, o tão desejado aumento da taxa de lucro nem sempre acontece, ao
contrário, a tendência, a longo prazo, é de que decresça. É a tentativa de se contrapor a esta
tendência que possibilita aos proprietários do capital desenvolver estratégias para contornar
as crises e identificar novas oportunidades de investimento.
O esgotamento do padrão de acumulação que vigorou durante o pós-segunda guerra
foi reflexo de um momento em que os limites para o crescimento econômico estavam
postos (tanto do ponto de vista econômico, quanto social e político) e a continuidade do
paradigma produtivo que vigorou durante aquele período, ameaçada. Tendo em vista a
dificuldade da classe trabalhadora em conduzir os efeitos da crise e assumir o controle
social da produção, o que podemos observar foi uma reorganização da produção baseada
na manutenção e intensificação da subsunção do trabalho ao capital.
O final da década de 1960 e início de 1970, marca o surgimento de uma etapa de
desenvolvimento em que a produção já não oferece o retorno nos mesmos patamares
auferidos nas décadas anteriores e é por meio da intensificação dos fluxos financeiros que a
rentabilidade pode ser, em grande parte, encontrada.
Desde o final do século 19 e do advento do que se convencionou chamar de
capitalismo monopolista, o processo de concentração e centralização do capital por meio
do estabelecimento da sociedade por ações, apontava para uma redefinição das estratégias
competitivas e para um imbricamento da produção com as finanças. Hilferding e Lenin
296

analisaram que é por meio do capital financeiro que identificamos a integração do grande
capital bancário com o grande capital industrial – em que há a predominância dos
banqueiros sobre os industriais.
A centralidade que este capital financeiro foi assumindo ao longo do século 20
conduziu, a partir da década de 1970, a um deslocamento dos recursos para o mercado de
capitais. Observa-se também a construção de um processo de mundialização financeira que
ainda iria incorporar diversas regiões do globo, impondo a adesão (ainda que de forma
diferenciada) a este padrão de acumulação.
Contraditoriamente, no Brasil, o final da década de 1960 e início de 1970 foram
anos de alto crescimento econômico e de grande truculência protagonizada pela ditadura
militar. O golpe instaurado como resposta à crise do bloco dominante e ao ascenso da luta
de massas representou a restauração do poder burguês e a consolidação do capitalismo
monopolista no país. Como aponta Ianni, “o ‘milagre econômico’ do ‘modelo brasileiro’
apoia-se na produção inclusive de mais valia extraordinária, propiciada pela amplitude da
brutalidade da atuação da ditadura contra operários e camponeses” (1981, p. 188). O
fortalecimento do planejamento estatal aparece como uma força importante para dinamizar
as relações de produção. Este planejamento associa-se ao uso da violência para dirimir as
possibilidades de resistência, combinado a uma “cultura da ditadura” que impõe uma
releitura da história passada e recente com um conteúdo legitimador e ufanista.
Foi também neste período que as tentativas de controle da inflação buscaram, como
uma de suas medidas, regulamentar o sistema financeiro nacional. O fortalecimento de um
sistema de crédito baseado no mercado de capitais e, portanto, desvinculado de fontes
inflacionárias de incentivo aos investimentos, foi uma das preocupações dos governos
militares, no tocante à produção. Nos anos 1960, foram feitas algumas reformas
institucionais neste sentido, em que destacamos a reforma bancária, no mercado de capitais
e tributária, todas com vistas a “promover a modernização” do país. A partir de 1968,
efetivamente se estrutura o mercado de capitais, fato que veio acompanhado de uma
reorganização do setor financeiro por meio de um processo de concentração e
desintermediação bancária.
Ao que tudo indica, ainda que tenha havido um aumento de atividades financeiras,
algumas de caráter puramente especulativo, não houve um maior atrelamento das
instituições financeiras – que se diversificaram e complexificaram – com a produção
industrial. Esta junção, nos países de capitalismo avançado contribuiu para o
297

fortalecimento do grande capital, dentre outras coisas, por meio de um maior controle
sobre o processo produtivo e uma redução nos custos de produção221. No Brasil, entretanto,
o mercado de capitais não se desenvolveu como nestes países e o aumento da concentração
de capital não esteve associada a um grau de centralização que proporcionasse um maior
atrelamento entre produção e finanças. A abertura do capital e o acesso ao mercado de
capitais teria se dado mais em função de uma busca por se aproveitar dos incentivos
concedidos pelo governo do que como parte de uma estratégia de intervenção planejada,
voltada para ampliar espaços de atuação.
Mesmo com as privatizações nos anos 1990, a maior parte das instituições
financeiras parece não ter aproveitado a oportunidade para diversificar seus negócios a
ponto de assumir o controle de empresas no setor produtivo. Uma das grandes exceções foi
a participação do Bradesco, em 1997, na compra da Companhia Vale do Rio Doce, atual
Vale. Este banco é, ainda hoje, um dos seus controladores. De uma maneira geral, até
aonde conseguimos apurar, as instituições financeiras que vêm tendo uma atuação
destacada na participação acionária de empresas produtivas são os fundos de pensão. Esta
participação começa a se dar de forma mais robusta na primeira década deste século,
depois de maturados os desdobramentos das reformas da Previdência, em que se observa
um aumento substantivo dos ativos em poder destes fundos. Acrescentamos a estes, a
participação do BNDESPar, que depois da reorientação sofrida pelo BNDES, tem usado a
participação acionária em grandes empresas como forma de reorganizar o capitalismo no
Brasil.
Nossa hipótese é a de que o comportamento destas instituições e o imbricamento
que produziram com o setor produtivo podem caracterizar um processo de constituição
endógena do capital financeiro no país. Até então, a presença desta forma de ser do capital
estaria presente em território nacional por meio da atuação do capital estrangeiro, o qual
teria se constituído desta maneira fora de nossas fronteiras. Trata-se, entretanto, da
formação por uma via não clássica, dada a presença forte do vínculo com o Estado. Não
que o Estado tenha, em algum momento, ficado de fora, mas o grau de sua intervenção e
participação, neste caso, assume proporções significativas.

221
Não custa lembrar que este fortalecimento, paradoxalmente, aprofunda suas contradições, dado que
viabiliza o aumento da rentabilidade financeira e o deslocamento de recursos para esta esfera, o que impõe
limites à produção de mercadorias, espaço por excelência da produção de valor.
298

O grau de vulnerabilidade em relação às crises e a fragilidade do parque industrial


que possuem as economias dependentes acaba impondo ao Estado uma posição mais
atuante. Este é o caso da economia brasileira e de todo o processo que marca o surgimento,
consolidação e aprofundamento das relações capitalistas no país. O salto para a formação
do capital financeiro não foi diferente e a atuação de instituições do governo ou que
possuem forte relação com o governo, como os fundos de pensão, tiveram um papel
fundamental.
Esta hipótese está também fundamentada em outra constatação. Apesar de uma
aparente saída da participação do Estado na produção, o que as privatizações promoveram
foi o seu reposicionamento. Este foi em boa parte promovido ao longo do governo Lula e
teve na atuação do BNDES um componente fundamental, por meio do aumento da
participação acionária em um número significativo de empresas. Segundo Almeida (2009),
das 30 maiores multinacionais brasileiras, o BNDESPar tinha em 2008 participação direta
ou indireta em 22 delas.
Um exemplo do poder de influência do Estado sobre estas empresas foi o caso da
mudança de gestão na Vale, que, como dissemos, tem o Bradesco no grupo de
controladores. Esta empresa é controlada pela Valepar, que tem como principal acionista a
Previ, juntamente com a Bradespar, a trading japonesa Mitsui, e o BNDES. Em 2001, o
Brasesco indicou para ficar a frente da Companhia um de seus executivos de carreira,
Roger Agnelli. Dez anos depois, foram sentidos alguns episódios de desgaste com o
governo, como as demissões em 2008222 e a cobrança de R$5 bilhões de royalties que a
empresa se nega a pagar223. Além disso, o governo criticava a atuação da empresa, muito
voltada para a extração e exportação de minérios e avaliava que poderia haver um aumento
no investimento em siderúrgicas no interior do país. O resultado destas polêmicas é que,
embora em meio a muita resistência, o governo conseguiu trocar a presidência da Vale em

222
Segundo uma reportagem da Veja de 2011, no auge da crise, em 2008, “a Vale demitiu mais de 1 500
funcionários e paralisou algumas de suas plantas no sul do país, além de reduzir drasticamente a produção em
outras unidades. Na época, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez críticas públicas ao fato de a
companhia ir na contramão da política anticíclica do governo”. Disponível em:
http://veja.abril.com.br/noticia/economia/pressao-governista-vence-agnelli-deixa-a-vale. Acesso em:
28/07/2013.
223
A divergência se dá em virtude de formas diferentes de cálculo dos Royalties e a empresa alega que não
reconhece a dívida e que o caso está sendo resolvido pela justiça. Disponível em:
http://www.istoedinheiro.com.br/noticias/52051_O+QUE+ESTA+POR+TRAS+DA+FRITURA+DE+ROGE
R+AGNELLI. Acesso em: 28/07/2013.
299

abril de 2011, quando terminou o mandato de Agnelli e substituí-lo por Murilo Ferreira,
ex-funcionário da Vale e mais afinado com o governo.
O caso representou uma demonstração de força por parte do governo e indica que
este segue tendo poder de mando, mesmo depois da privatização. O processo de
constituição do capital financeiro endogenamente passaria, portanto, por uma forma de
fortalecer grandes grupos nacionais por um lado e, por outro, garantir uma nova maneira de
dar continuidade à capacidade do Estado de intervir nos rumos do desenvolvimento
capitalista no país.
Tratamos ainda esta ideia como uma hipótese, tendo em vista que sua comprovação
exige um aprofundamento na pesquisa sobre a configuração do parque produtivo e de sua
relação com as instituições financeiras. Pretendemos em estudos futuros dar
prosseguimento a este levantamento, o qual apresenta inúmeros desafios. É preciso
aprofundar a discussão sobre capital financeiro e estabelecer critérios para a definição do
grau de participação necessário para se configurar o controle sobre uma empresa. Sabemos
que isto significa muitas vezes não apenas mapear sua composição acionária, o que por si
só traz uma série de dificuldades dada a intrincada rede de propriedade das grandes
empresas na atualidade. Será também importante levantar os acordos feitos entre os
acionistas e a dinâmica que envolve o processo de tomada de decisão de uma empresa para
averiguar quem efetivamente está no comando. Muitas vezes, a participação acionária
representa mais uma iniciativa de diversificar a carteira de investimentos do que uma
preocupação concreta em assumir o controle político-adminsitrativo sobre ela.
Em outras palavras, será preciso dar mais concretude à ideia de junção entre
“instituições financeiras e indústrias” para escapar de definições superficiais que podem
comprometer a análise. De todo modo, estas elaborações iniciais representam uma
tentativa de apreender o sentido e o significado das mudanças em curso, dado que elas têm
implicações não apenas para a configuração do parque produtivo e de sua relação com as
finanças, mas também sobre o fundo público e as decisões no campo da atuação do Estado.
A respeito da atuação do Estado e de sua capacidade de atender às demandas da
classe trabalhadora, cabe destacar o momento de efervescência política que vigorou nos
anos 1980. Esta década foi marcada por intensas lutas sociais que resultaram, dentre outras
coisas, na promulgação da Carta Magna em 1988. Este processo poderia indicar um
contexto mais favorável para a garantia de direitos sociais universais e para um avanço nas
conquistas da classe trabalhadora, além de refletir uma intensificação da luta de classes. No
300

ano seguinte, entretanto, a vitória de Fernando Collor de Mello para as eleições


presidenciais expressou um novo momento da correlação de forças e se desdobrou em um
período de aumento da fragilidade reivindicativa dos trabalhadores.
A década seguinte foi marcada por um maior realinhamento às tendências
internacionais e se caracterizou por um processo de abertura comercial e financeira que
fragilizou o movimento operário e impôs sérios limites às possibilidades de implementação
do que preconizava a Constituição Federal, naquele momento, recém aprovada. Estas
mudanças foram aprofundadas na segunda metade da década e vieram acompanhadas de
um conjunto de mecanismos que garantiram a estabilidade monetária às custas dos
recursos do fundo público e da retirada de direitos duramente conquistados.
Sendo assim, os avanços na elaboração e implementação das políticas sociais
encontraram fortes entraves na política econômica para serem concretizados. A atuação do
Estado deveria levar em consideração a capacidade contributiva como forma de auxiliar na
promoção de uma redistribuição de renda, bem como precisava que fossem priorizados os
gastos na garantia de políticas universais que levassem a uma melhor qualidade de vida da
classe trabalhadora. No entanto, o que pudemos observar foi um aumento na regressividade
dos impostos e um privilegiamento do chamado ajuste fiscal.
A estabilidade econômica funcionou como base para a legitimação da venda de
patrimônio público, corte de gastos com as políticas sociais, isenções fiscais para os
grandes produtores e para transformar o país em um “paraíso” para aqueles que buscam
uma rentabilidade financeira. Os juros altos atraíram volumosos recursos com fins
puramente especulativos e começaram a absorver uma quantidade cada vez maior de
recursos do fundo público.
Para que as mudanças na condução da política econômica pudessem acontecer,
alguns mecanismos foram criados e destacamos, neste trabalho, as metas de superávit
primário, a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Desvinculação de Receitas da União. Todos
estes estão, de uma forma ou de outra, voltados para garantir prioridade para o pagamento
de juros, limitando a possibilidade de gastos nas áreas sociais. A estes podemos acrescentar
uma significativa política de contingenciamento, que também contribui para a restrição dos
gastos e disponibiliza uma reserva, muitas vezes, utilizada para compor o superávit
primário.
Estes mecanismos permaneceram nos governos do Partido dos Trabalhadores (nos
dois mandatos do presidente Lula e no da presidente Dilma), ainda que seja possível
301

observar uma sensível redução da taxa de juros. Como demonstramos, a dívida pública
possui uma centralidade em relação à gestão dos recursos públicos. Existem países que
possuem uma dívida maior do que a nossa, mas fazem uso de um aporte menor de recursos
para arcar com as despesas dela decorrentes. Trata-se de uma questão que envolve,
portanto, não apenas o montante da dívida, mas o quando se gasta com ela. No Brasil, a
dívida compromete, ao ano, cerca de 30% do orçamento da União.
Neste governo, por ser mais contraditório, podemos observar que mesmo com esta
taxa permanecendo em patamares considerados altos, o aumento com o pagamento da
dívida sobe ao mesmo tempo em que sobem também os gastos com as políticas sociais.
Deste modo, embora mantendo o mesmo padrão de gastos e a estrutura tributária
regressiva, estes últimos governos vêm encontrando formas de dar algumas respostas às
demandas da classe trabalhadora.
Do ponto de vista dos gastos sociais, se há uma mudança mais significativa, esta
situa-se na sua utilização como uma medida anticíclica para contornar os efeitos da crise
econômica. Esta postura pode ser identificada pelo aumento dos gastos sociais em 2009,
contexto marcado pelo baixo crescimento, com desdobramentos sobre o nível de emprego.
O auge da crise no Brasil foi o final de 2008 e o início do ano seguinte e já no segundo
semestre começa a apresentar sinais de melhora. A resposta do governo foi uma clara
política expansionista em que o aumento dos gastos sociais se combinou a um conjunto de
outras medidas, dentre as quais, o incentivo ao crédito, redução da taxa de juros e do
superávit primário, desonerações fiscais e aumento do salário mínimo. O resultado foi um
maior crescimento econômico e a recuperação do nível de emprego, promovidos em
grande parte, pelo consumo interno. No entanto, como sinalizamos, as contradições que
envolvem o governo são de difícil sustentação no longo prazo e a redução nas taxas de
crescimento a partir de 2011224 pode indicar um certo esgotamento deste padrão.
Este quadro de crescimento em 2010 foi possível, em grande medida, pela adoção
de medidas emergenciais de enfrentamento à crise, bem como de algumas decisões
anteriores a esta, voltadas para estimular o consumo das famílias. A redução da taxa de
desemprego e a política de valorização do salário mínimo foram alguns dos fatores mais
importantes, aliados aos programas de transferência de renda, que já vinham sendo
implementados anos antes.

224
O PIB cresceu 2,7% em 2011, 0,9% em 2012, segundo o IBGE, e a previsão é de que fique abaixo de 3%
em 2013.
302

É bem verdade que o aumento do consumo interno está muito vinculado ao


crescimento do endividamento das famílias. Segundo uma matéria da Agência Brasil, em
2005, quando o Banco Central começou a registrar os dados deste tipo de endividamento,
ele representava 15,29% da renda das famílias, sem contar o crédito imobiliário225. Em
abril de 2013, a dívida total das famílias (incluindo o crédito imobiliário) equivalia a
44,46% da renda acumulada nos últimos 12 meses, maior do que em junho de 2009,
quando representava 34,8%226. Ainda de acordo com a Agência Brasil, com a retirada da
dívida imobiliária, o percentual em abril de 2013 é de 30,47%. Embora o endividamento
das famílias esteja aumentando, boa parte dele vem sendo puxada pelo financiamento da
casa própria e uma outra pela compra de eletrodomésticos e automóveis.
Se por um lado, o endividamento mantém relação com a melhoria no padrão de
vida e com as possibilidades abertas pela relativa estabilidade monetária, por outro,
contribui para alimentar o capital portador de juros e compromete parcelas expressivas da
renda da classe trabalhadora. Para termos uma ideia do volume total dos empréstimos no
país, este número saltou de 28,1% do PIB, em 2005, para 54,1% em 2013227.
Ainda em relação ao aumento do consumo, cabe registrar que, por mais que haja
um impacto na vida das pessoas, principalmente em um país de dimensões continentais e
com alto grau de desigualdade como o nosso, este pode ser obtido sem que isto implique
em alterações substantivas do ponto de vista de como a riqueza é produzida e distribuída.
Neste sentido, uma análise mais global do governo nos permite avaliar que não houve
avanços estruturais significativos e que a lógica da gestão dos recursos permanece tendo
sofrido alterações pontuais.
Em relação ao planejamento, este governo apresenta uma maior preocupação com a
indução do crescimento por meio do aumento dos investimentos e do incentivo ao crédito.
Além disso, explicita um interesse na promoção de um aumento da demanda agregada
vinculada também a programas sociais. A questão é que, por não provocar uma alteração
substantiva na política econômica, estas intenções entram em contradição com juros em

225
Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-06-24/endividamento-das-familias-em-abril-
foi-recorde-diz-banco-central. Acesso em 30/07/2013.
226
Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Economia_Negocios/0,,MUL1208946-9356,00-
ENDIVIDAMENTO+DAS+FAMILIAS+ATINGE+QUASE+DE+SUA+RENDA+DIZ+BC.html. Acesso
em: 30/07/2013.
227
Disponível em: http://oglobo.globo.com/economia/endividamento-das-familias-bate-recorde-4399-da-
renda-8516655. Acesso em 30/07/2013.
303

patamares ainda muito altos e com uma responsabilidade fiscal que inibe as possibilidades
de crescimento. Sua atuação, portanto, se equilibra em torno de uma política econômica
ainda muito conservadora e uma série de medidas que buscam, em alguma medida,
amenizar seus efeitos.
As restrições ao investimento se combinam a empréstimos a taxas subsidiadas para
o grande capital e à participação acionária em empresas, com vistas a estimular um
processo de multinacionalização das “empresas líderes”. O incentivo à produção tem
apresentado resultados no crescimento econômico, mas ao mesmo tempo, fortalecido nossa
posição como exportadores de produtos semielaborados e de baixo valor agregado. O lucro
das grandes empresas produtivas e financeiras tem aumentado, mas vem acompanhado de
políticas sociais pontuais e aumento do salário mínimo. Estas políticas sociais têm impacto
sobre as condições de vida da população, mas favorecem o capital portador de juros (dada
a sua crescente monetarização) e se inserem cada vez mais em um processo de
mercantilização, que abre novas fronteiras de acumulação capitalista.
Quem mais tem sido beneficiada é a grande burguesia interna que, tutelada pelo
BNDES, vê neste governo possibilidades de se fortalecer e enfrentar em condições um
pouco mais favoráveis o capital internacional, embora siga atrelado a ele. Nossa posição
nas relações internacionais ainda é de subalternidade e dependência, por mais que a as
grandes condições macroeconômicas estejam em patamares mais estáveis e que tenhamos
uma margem maior de segurança para enfrentar as crises internacionais. O fortalecimento
desta burguesia interna produz as condições para uma maior concorrência com o
imperialismo, mas não rompe com ele, dado que aprofunda nossa posição na Divisão
Internacional do Trabalho.
Entretanto, a pressão dos movimentos sociais e das lutas populares, assim como a
participação de pessoas identificadas com estas lutas no governo, vêm trazendo algumas
diferenças na composição do gasto social. Estas diferenças estão mais atreladas ao
provimento de programas voltados para a população de baixa renda do que a um
investimento substantivo na garantia das políticas sociais universais. São priorizados
programas que demandam um aporte de recursos pequeno diante do grande impacto que
produzem, do ponto de vista do apoio popular, e que tencionam menos com os interesses
do capital, por não promoverem uma alteração mais efetiva na distribuição da riqueza. De
qualquer forma, seu efeito sobre a melhoria nas condições de vida e de acesso ao consumo
304

de uma parcela da população pode ser sentido e se expressa em uma melhora (tímida) na
distribuição de renda em favor da classe trabalhadora.
O fundamental para se pensar aqui, para além das polêmicas que existem na análise
do quanto este governo é suscetível à pressão popular, é conseguir perceber que a luta pela
ampliação dos direitos e por políticas sociais universais – e, portanto, de reformas
estruturais – tem, cada vez mais, o poder de confrontar os interesses do capital. Quanto
mais difícil for vislumbrar a possibilidade de implementá-las, mais necessárias elas são
para fortalecer a classe trabalhadora e seguir no sentido de possibilitar sua unidade. O
grande desafio é conseguir explorar as contradições de cada governo para fazer avançar a
luta.
Deste modo, as campanhas pelos 10% do PIB para a educação pública e a que
reivindica 10% de recursos do orçamento da União para a saúde, parecem ser uma
expressão de como a luta pode ganhar concretude e abrir espaço para um amplo debate na
sociedade. Estas são campanhas abraçadas pelos movimentos populares que têm a
perspectiva de aumentar o volume de recursos para estas políticas e, portanto, para o
atendimento às necessidades da classe trabalhadora. Há nestas o pressuposto do
entendimento da disputa de interesses que permeia o trato do orçamento público.
Estas campanhas trazem bandeiras que confrontam os interesses do grande capital
na medida em que questionam os recursos públicos que são “sangrados” para o pagamento
de juros. Embora seja uma pauta restrita aos limites da ordem capitalista, pressupõe o
Estado como um espaço de disputa de classes e reivindica deste uma atuação mais voltada
para garantir os interesses da classe trabalhadora. Além de ser uma luta que põe a classe
em movimento, com perspectivas de estabelecer uma unidade, abre espaço para conquistas
concretas, que alimentam a disposição para avançar, o que pode vir a aumentar o potencial
ofensivo dos movimentos sociais. Isto não necessariamente acontecerá. O resultado desta
disputa dependerá da capacidade organizativa dos trabalhadores e da configuração da luta
de classes no decorrer deste enfrentamento.
O transporte público também vem demonstrando ser uma questão capaz de
promover uma intensa mobilização. E, mais que isso, de se desdobrar em outras bandeiras
de reivindicação. As massivas manifestações que ocorreram em junho de 2013
surpreenderam o país e os próprios manifestantes. Inicialmente acionada pelo aumento no
preço das passagens de ônibus, a mobilização foi ganhando força e projeção, explicitando
305

uma diversidade de posições e de pautas, que deixou atordoados analistas, militantes e o


próprio governo.
Sem uma direção claramente definida, as pessoas foram às ruas protestar e
demonstrar sua insatisfação com pautas que variavam do combate abstrato à corrupção e
de uma declarada aversão à política e aos partidos a reivindicações por investimentos nas
políticas sociais, em especial, saúde, educação, mas também habitação, transportes, dentre
outras. Os movimentos sociais organizados e sindicatos também participaram destas
manifestações, mas foram se agregando aos poucos e aproveitaram o clima para puxar atos
de rua e paralisações no mês de julho. Estas tiveram um caráter mais claro do ponto de
vista de suas pautas, que incluíram a redução da jornada de trabalho para 40 horas
semanais, sem redução de salários, fim do fator previdenciário, 10% do orçamento da
união para a saúde, 10% do PIB para a educação pública, reforma agrária e urbana, dentre
outras.
Ainda é muito cedo para avaliar o conteúdo e os desdobramentos destes últimos
acontecimentos. Ao que parece, eles tiveram uma participação majoritária de setores da
classe média, a qual foi pouco contemplada pela política adotada nos últimos anos. Os
setores populares foram se agregando e fortalecendo as reivindicações mais progressistas.
A truculência da polícia e o conservadorismo da cobertura da grande mídia funcionaram,
muitas vezes, como potencializadores das insatisfações e fomentaram os atos de rua.
Esta reviravolta massiva, embora com alta dose de espontaneísmo, parece
demonstrar os limites das contradições enfrentadas pela gestão Lula/Rousseff. De uma
maneira geral, em meio à diversidade de cartazes e vozes que ocuparam as ruas de todo o
país, é possível perceber que havia uma demanda pelo avanço de medidas voltadas para o
investimento nos gastos com as políticas sociais e um questionamento das despesas que
giram em torno dos Mega-eventos.
A base de apoio do governo, composta pela burguesia e setores populares, começa
a dar sinais mais claros de sua fragilidade. Um forte indício são as pesquisas recentes que
apontam para uma brusca queda na satisfação em relação ao governo. Parece que estamos
diante de uma situação em que a presidenta e seus aliados terão que apresentar alguma
proposta para enfrentar esta mudança na conjuntura. As iniciativas até agora estão longe de
indicar um novo rumo.
Os movimentos populares têm agora o imenso desafio de dar continuidade a esta
pressão pelo avanço na conquista de direitos. Esta é uma poderosa arma para confrontar os
306

interesses do capital. Mas sabemos que não será uma tarefa simples. O Estado no
capitalismo centra todos os seus esforços em garantir a produção e reprodução das relações
capitalistas como um todo. Apesar de aparentemente estar fora da sociedade e, por isso,
supostamente neutro, ele existe para garantir a dominação de uma classe sobre a outra.
Para tanto, faz valer todos os seus recursos, os quais vão desde a utilização de seu braço
coercitivo, até as estratégias de manipulação ideológica executadas pelos “aparelhos
privados de hegemonia”. O importante é garantir que os conflitos de classe estejam sob
controle e viabilizar as condições gerais de produção, ou seja, manter a lucratividade da
burguesia em margens aceitáveis para os padrões capitalistas de acumulação.
Compreendemos, portanto, que a sociabilidade capitalista é incompatível com a
construção de relações sociais plenas de igualdade e liberdade substantivas à medida que
este sistema alimenta a justiça no âmbito formal como instrumento mistificador para a
manutenção da desigualdade, esta sim, real e substantiva.
A luta por direitos e por políticas sociais vive, neste contexto, em uma constante
tensão. Se por um lado são instrumentos utilizados pelo Estado a serviço da classe
dominante, por outro expressam o descontentamento e o potencial reivindicativo e
combativo da classe trabalhadora. Deixar de lado qualquer uma destas perspectivas pode
levar a equívocos, os quais possuem desdobramentos sérios para a configuração da luta de
classes.
Perceber estas lutas somente como fruto das ações da classe trabalhadora ou mesmo
como uma responsabilidade do Estado, pode atribuir a elas um fim em si mesmas. Este fato
acaba contribuindo para que esta luta se resuma a reivindicações dentro da ordem, como se
fosse possível resolver todos os problemas da classe trabalhadora por meio da conquista de
direitos. Por outro lado, o entendimento de que estas lutas estão restritas à lógica do
capital, tem o perigoso desdobramento de advogar em torno do abandono deste tipo de
enfrentamento, abrindo o espaço de dominação burguesa para um terreno sem disputas.
Em contraposição a estas duas perspectivas, acreditamos que a luta por direitos
deve ser encarada como um meio de confrontar o capital, aglutinar forças e obter pequenas
conquistas que contribuam para avançar nas reivindicações tendo como horizonte a
construção de uma sociedade efetivamente livre.
Caminhar no sentido de aproximações sucessivas à realidade e articular o
conhecimento à busca por estabelecer formas de enfrentamento ao capital é um imenso
desafio. Este estudo está longe de esgotar esta necessidade. Nossa pretensão foi apenas
307

trazer algumas reflexões para o debate e buscar chamar a atenção para a importância de se
pensar o lugar que o gasto social ocupa no seio das decisões governamentais na atualidade,
buscando identificar seus avanços e continuidades na perspectiva de fomentar a luta pela
ampliação de direitos.
Acreditamos, portanto, que o compromisso político com uma sociedade igualitária,
onde não caibam traços de subordinação, exploração e opressão, exige uma ordem social
qualitativamente diferente, o que demanda a construção de um projeto alternativo de
sociedade. Este projeto deve fazer parte de um movimento que busque o rompimento com
as bases em que este modo de produção se apoia e com as particularidades que marcam sua
etapa de desenvolvimento contemporâneo, dentre as quais destacamos a condução da
política econômica e a contrarreforma do Estado, bem como os reflexos que estas têm
sobre a classe trabalhadora.
Consideramos necessário fomentar e alimentar os laços de pertencimento de classe
e da radicalidade, em contraposição ao “voluntariado” e à “solidariedade” transclassista.
Esta busca impõe o entendimento dos direitos sociais não como um ideal, muito menos um
fim, mas como o mínimo necessário para garantir as condições de sobrevivência para lutar
por uma igualdade real, que, diferentemente da formal (sempre associada à desigualdade
real), não se limita à esfera política, permitindo a existência de seres integrais, socialmente
livres e emancipados.
308

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Mansueto. Desafios da real política industrial brasileira do século XXI. Texto
para Discussão, nº1452, dezembro. Brasília: IPEA, 2009.

ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir ; GENTILI, Pablo


(Org.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. 6.ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, [1995] 2003.

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a negação do


trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999.

______. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do


trabalho. São Paulo: Cortez/Unicamp, 1995.

BARBOSA, Fernando de Holanda. O Sistema Financeiro Brasileiro. Mimeo, [1995].


Disponível em: <http://www.fgv.br/professor/fholanda/Arquivo/Sistfin.pdf.>Acesso em:
25 mar. 2013.

BARBOSA, Nelson ; SOUZA, José Antônio Pereira de. A inflexão do governo Lula:
política econômica, crescimento e distribuição de renda. In: GARCIA, Marco Aurélio ;
SADER, Emir. (Org.). Brasil, entre o passado e o futuro. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo: Boitempo, 2010.

BEHRING, Elaine Rossetti. Crise do capital, fundo público e valor. In: BOSCHETTI,
Ivanete et al (Org.). Capitalismo em crise, política social e direitos. São Paulo: Cortez,
2010.

______. Acumulação capitalista, fundo público e política social. In: BOSCHETTI, Ivanete
et al (Org.). Política social no capitalismo: tendências contemporâneas. São Paulo: Cortez,
2008.

______. Brasil em contra-reforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. São


Paulo: Cortez, 2003.

______. Política social no capitalismo tardio. São Paulo: Cortez, 2002.

______; BOSCHETTI, Ivanete. Política social: fundamentos e história. São Paulo: Cortez,
2010.

BNDES. Privatização no Brasil– 1990-1994; 1995-2002. Rio de Janeiro, 2002a.

______ . Privatizações no Brasil – 1990/2002. Rio de Janeiro, 2002b.

BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do


desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.

BOITO Jr., Armando. Governos Lula: a nova burguesia nacional no poder. In: BOITO Jr.,
Armando ; GALVÂO, Andréia (Org.). Política e classes sociais no Brasil dos anos 2000.
São Paulo: Alameda, 2012.
309

BOITO Jr., Armando ; MARCELINO, Paula. O sindicalismo deixou a crise para trás? um
novo ciclo de greves na década de 2000. Caderno CRH, Salvador, v.23, n.59, maio/ago.,
p. 323-338, 2010. [on line]

BOSCHETTI, Ivanete. América Latina, política social e pobreza: “novo” modelo de


desenvolvimento? In: SALVADOR, Evilásio et al (Org.). Financeirização, fundo público e
política social. São Paulo: Cortez, 2012a. p. 31-58.

______. A insidiosa corrosão dos sistemas de proteção social europeus. Serviço Social e
Sociedade, São Paulo, n.112, out./dez., 2012b. p.754-803.

______. Seguridade social e trabalho: paradoxos na construção das políticas de


previdência e assistência social no Brasil. Brasília: UnB, 2006.

BRAGA, José Carlos de Souza. Financeirização global: o padrão sistêmico de riqueza do


capitalismo contemporâneo. In: TAVARES, Maria da Conceição ; FIORI, José Luís
(Org.). Poder e dinheiro: uma economia política da globalização. Petrópolis: Vozes, 1997.

______. Inserção financeira internacional e capitalismo no Brasil (1989/2006). Mudanças


nas relações internacionais e na inserção do Brasil. Cadernos do Desenvolvimento, n. 2.
Rio de Janeiro: Centro Celso Furtado, 2006. p. 96-113.

BRAGA, José Carlos de Souza ; PRATES, Daniela. Todos os bancos do presidente? In:
Praga – Estudos Marxistas 6. São Paulo: Hucitec, 1998.

BRASIL. Dívida pública federal brasileira. Tesouro Nacional. Brasília: TN, 2012.

______. Relatório e parecer prévio sobre as contas do governo da república. Tribunal de


Contas da União. Brasília: TCU, 2011.

______. Relatório e parecer prévio sobre as contas do governo da república. Sumário


Executivo. Tribunal de Contas da União. Brasília: TCU, 2010.

______. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Manual técnico do Orçamento


MTO. Versão 2010. Brasília, Secretaria de Orçamento Federal, 2009.

______. Plano plurianual 2008-2011: mensagem presidencial. Ministério do


Planejamento, Orçamento e Gestão, Secretaria de Planejamento e Investimentos
Estratégicos. Brasília: MP, 2007.

_______. Ministério da Fazenda. Gasto Social do Governo Central: 2001 e 2002. Brasília,
Secretaria de Política Econômica, 2003a.

_______. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Secretaria de Orçamento


Federal. Assessoria Técnica. Vinculações de receitas dos orçamentos fiscal e da seguridade
social e o poder discricionário de alocação dos recursos do governo federal. Brasília:
Secretaria de Orçamento Federal, 2003b.

_______. Plano plurianual 2004-2007: mensagem presidencial. Ministério do


Planejamento, Orçamento e Gestão, Secretaria de Planejamento e Investimentos
Estratégicos. Brasília: MP, 2003b.
310

______. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988. Disponível


em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm.>
Acesso em: 27 fev. 2010.

BRAVO, Maria Inês Souza ; MATOS, Maurílio Castro de. O potencial de contribuição do
Serviço Social na Assessoria aos Movimentos Sociais pelo Direito à saúde. In: Assessoria,
consultoria e serviço social. São Paulo: Cortez, 2010.

BRUNHOFF, Suzanne de. A hora do mercado: crítica do liberalismo. São Paulo:


Universidade Estadual Paulista, 1991.

BRUNO, Miguel. Endividamento do Estado e setor financeiro no Brasil: interdependências


macroeconômicas e limites estruturais ao desenvolvimento. In: MAGALHÃES, João Paulo
de Almeida et al (Org.). Os anos Lula: contribuições para um balanço crítico 2003-2010.
Rio de Janeiro: Garamond, 2010.

CANO, Wilson ; SILVA, Ana Lúcia Gonçalves da. Política industrial do governo Lula. In:
MAGALHÃES, João Paulo de Almeida et al (Org.). Os anos Lula: contribuições para um
balanço crítico 2003-2010. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. p. 181-208.

CARDOSO, Fernando Henrique. Empresário industrial e desenvolvimento econômico no


Brasil. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, [1963] 1972.

CARNEIRO, Maria Lucia Fattorelli. O manejo da dívida pública. In: SICSÚ, João.
Arrecadação (de onde vem?) e gastos (para onde vão?). São Paulo: Boitempo, 2007.

CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis,


Vozes, 1998.

CASTELO, Rodrigo. O social-liberalismo: auge e crise da supremacia burguesa na era


neoliberal. São Paulo: Expressão Popular, 2013.

______. Carlos Nelson Coutinho e a controvérsia sobre o neoliberalismo. In: BRAZ,


Marcelo (Org.). Carlos Nelson Coutinho e a renovação do marxismo no Brasil. São Paulo:
Expressão Popular, 2012.

CASTRO, Jorge Abrahão de et al. Análise da evolução e dinâmica do gasto social federal:
1995-2001. Texto para discussão, n. 988, outubro. Brasília: IPEA, 2003.

______. Gasto Social Federal: prioridade macroeconômica no período 1995-2010. Nota


Técnica, nº11, setembro. Brasília: IPEA, 2012.

CASTRO, Antônio Barros de ; SOUZA, Francisco Eduardo Pires. A economia brasileira


em marcha forçada. São Paulo: Paz e Terra, [1985] 2004.

CESAR, Monica de Jesus. “Empresa-cidadã”: uma estratégia de hegemonia. São Paulo:


Cortez, 2008.

CHAVES, José Valente ; RIBEIRO, José Aparecido Carlos. Gasto Social Federal: uma
análise da execução orçamentária de 2011. Nota Técnica, nº13. Brasília: IPEA, 2012.
311

CHESNAIS, François. A proeminência da finança no seio do “capital em geral”, o capital


fictício e o movimento contemporâneo de mundialização do capital. In: BRUNHOFF,
Suzanne de et al. A finança capitalista. São Paulo: Amaleda, 2010.

______. O capital portador de juros: acumulação internacionalização, efeitos econômicos


e políticos. In: CHESNAIS, F. (Org). A finança mundializada. São Paulo: Boitempo,
2005.

______. A “Nova Economia”: Uma conjuntura própria à potência econômica


estadunidense. In: CHESNAIS, François et al. Uma nova fase do capitalismo?. São
Paulo: Xamã, 2003.

______. Mundialização: o capital financeiro no comando. Outubro, n.5, Revista do


Instituto de Estudos Socialistas, 2001.

______. Prefácio à edição brasileira. In: CHENAIS, F. (Org). A Mundialização


Financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã, 1998.

______. Mundialização do capital, regime de acumulação predominantemente financeira e


programa de ruptura com o neoliberalismo. Revista da Sociedade Brasileira de Economia
Política, ano I. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997. p.7-34.

______. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.

COSTA, Fernando Nogueira da. Brasil dos bancos. São Paulo: Universidade de São Paulo,
2012.

COUTINHO, Carlos Nelson. A hegemonia da pequena política. In: OLIVEIRA, Francisco;


BRAGA, Ruy ; RIZEK, Cibele. Hegemonia às avessas: economia política e cultura na era
da servidão financeira. São Paulo: Boitempo, 2010. p.29-43.

______. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003.

______. Democracia e socialismo no Brasil de hoje. In: COUTINHO, Carlos Nelson.


Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo. São Paulo: Cortez, 2000.

______. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. Belo Horizonte:
Oficina de livros, [1988] 1990.

DAIN, Sulamis. Reformas tributária e da Previdência: muito mais do mesmo. In:


MAGALHÃES, João Paulo de Almeida; MINEIRO, Adhemar dos Santos ; ELIAS, Luis
Antônio (Org.). Vinte anos de política econômica. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999.

DIEESE. Balanço das negociações dos reajustes salariais em 2011. Estudos & pesquisas,
São Paulo, n. 59, mar., 2012.

______. Rotatividade e mercado de trabalho. São Paulo: DIEESE, 2011.


312

DUMÉNIL, Gerard ; LEVY, Dominique. Superação da crise, ameaças de crises e novo


capitalismo. In: CHESNAIS, François et al. Uma nova fase do capitalismo?. São Paulo:
Xamã, 2003.

ENGELS, Friedrich. A Origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo:


Global, [1884] 1984.

FATTORELLI, Maria Lúcia. A dívida pública em debate: saiba o que ela tem a ver com a
sua vida. Caderno de Estudos. Auditoria Cidadã da Dívida. Brasília: Inove, 2012.

_______. “A dívida é um mecanismo que se autorreproduz e autoalimenta”. Entrevista ao


Jornal Brasil de Fato, por Viviane Tavares. 23/09/2013.

FIORI, José Luís. Um governo contra o povo e a nação. In: Praga – Estudos Marxistas 6.
São Paulo: Hucitec, 1998.

______. Globalização, hegemonia e Império. In: TAVARES, Maria da Conceição ; FIORI,


José Luís (Org.). Poder e dinheiro: uma economia política da globalização. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1997. (Coleção Zero a Esquerda).

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação


sociológica. São Paulo: Globo, [1975] 2005.

______. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. Rio de Janeiro:


Zahar, 1975.

FREITAS, Maria Cristina Penido de ; PRATES, Daniela Magalhães. Abertura financeira


no governo FHC: impactos e consequências. Economia e Sociedade Campinas, v.17, n 1.,
p. 81-111, 2001.

GENTIL, Denise Lobato. A política fiscal e a falsa crise do sistema de seguridade no


Brasil: análise financeira do período recente. In: SICSÚ, João. Arrecadação (de onde
vem?) e gastos (para onde vão?). São Paulo: Boitempo, 2007.

GIANOTTI, Vito. História das lutas dos trabalhadores no Brasil. 3.ed. Rio de Janeiro:
Mauad X, 2009.

GONÇALVES, Reinaldo. Governo Lula e o nacional-desenvolvimentismo às avessas.


Revista Sociedade Brasileira de Economia Política, São Paulo, n.31, fev, p. 5-30. 2012a.

______. Novo desenvolvimentismo e liberalismo enraizado. Serviço Social e Sociedade,


São Paulo, n.112, p.637-671, out./dez. 2012b.

______. Globalização e desnacionalização. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

GOUNET, Thomas. Fordismo e toyotismo na civilização do automóvel. São Paulo:


Boitempo, 1999.

GRAMSCI, Antônio. Maquiavel, a política e o Estado moderno. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1984.
313

GUIMARÃES, Juarez. A esperança equilibrista: o governo Lula em tempos de transição.


São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004. (Coleção cadernos da Fundação Perseu
Abramo).

GRANEMANN, Sara. Trabalho, sobretrabalho e financiamento das políticas sociais.


Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n.94, p. 60-72, 2008a.

______. Fundação, políticas sociais e aumento da exploração da classe trabalhadora.


Universidade e Sociedade, Brasília, n.42, p.105-115., 2008b.

______. Políticas Sociais e financeirização dos Direitos do Trabalho. Revista Em Pauta,


Rio de Janeiro, n.20, p. 57-68, 2007.

______. A reforma da previdência do governo Lula: argumentos e perspectiva de classe.


Revista Outubro, São Paulo, v. 09, p. 113-124, 2003.

______. Trabalho e previdência privada: a (im)possível solidariedade do capital financeiro.


Temporalis, Brasília, v. 06, p. 82-97, 2002.

______. Para uma interpretação marxista da previdência privada. 2006. 268 f. Tese
(Doutorado em Serviço Social) – Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

HALLAK NETO, João. A distribuição funcional da renda e a economia não observada


no âmbito do Sistema de Contas Nacionais do Brasil. 2013. 166 f. Tese (Doutorado em
Economia) – Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2013.

HAYEK, Frederich. O caminho da servidão. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, [1944]


1990.

HARVEY, David. Neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Loyola, 2008.

______. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2006.

______. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2004.

______. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.

HILFERDING, Rudolf. O capital financeiro. São Paulo: Nova Cultural, [1910] 1985.

IAMAMOTO, Marilda. Serviço social em tempos de capital fetiche: capital financeiro,


trabalho e questão social. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2008.

IANNI, OCTÁVIO. Estado e planejamento econômico no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ,


[1971] 2009.

______. Ditadura do grande capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.

______. Estado e capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1965.

IASI, Mauro. As metamorfoses da consciência de classe: o PT entre a negação e o


314

consentimento. São Paulo: Expressão Popular, 2006.

IBGE. Brasil em números. Centro de Documentação e Disseminação de Informações.


V.11. Rio de Janeiro, 2003.

IBGE. Anuário estatístico do Brasil. Rio de Janeiro, 2002. v.62.

IPEA. A década inclusiva (2001-2011): Desigualdade, Pobreza e Políticas de renda.


Comunicados do IPEA, no 155. Brasília, Secretaria de Assuntos Estratégicos da
Presidência da República, 2012a.

______. Políticas sociais: acompanhamento e análise. Número 20. Brasília, Secretaria de


Assuntos Estratégicos da Presidência da República, 2012b.

______. 15 anos de gasto social federal: notas sobre o período de 1995 a 2009.
Comunicados do IPEA, no 98. Brasília, Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência
da República, 2011a.

______. Políticas sociais: acompanhamento e análise. Número 19. Brasília, Secretaria de


Assuntos Estratégicos da Presidência da República, 2011b.

KALECKI, Michal. Crescimento e ciclo das economias capitalistas. São Paulo: Hucitec,
[1968] 1977.

KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

LAZZARINI, Sérgio G. Capitalismo de laços: os donos do Brasil e suas conexões. Rio de


Janeiro: Elsevier, 2011.

LENIN, Vladimir Ilitch. O Imperialismo: estágio superior do capitalismo. São Paulo:


Expressão Popular, [1917] 2012.

LESBAUPIN, Ivo & MINEIRO, Adhemar. O desmonte da nação em dados. Petrópolis/RJ:


Vozes, 2002.

LESSA, Sergio. A emancipação política e a defesa dos direitos. Serviço Social e


Sociedade, São Paulo, ano 27, n.90, jun. 2007.

MARSHALL, Thomas Humphrey. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro:


Zahar, [1950] 1967.

MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. São Paulo: Nova Cultural, [1972] 1985.

MARTONE, Celso L. Análise do Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG) (1964-


1966). In: LAFER, Betty Mindlin. Planejamento no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1975.

MARX, Karl. Para a questão judaica. São Paulo: Expressão Popular, [1843] 2009.

______. O capital. Livro Primeiro, vol. I. São Paulo: Nova Cultural, [1867] 1988a.

______. O capital. Livro Primeiro, vol. II. São Paulo: Nova Cultural, [1867] 1988b.
315

______. O capital. Livro Segundo, vol. III. São Paulo: Nova Cultural, [1885] 1988c.

______. O capital. Livro Terceiro, vol. IV. São Paulo: Nova Cultural, [ 1894] 1988d.

MARX, Karl. O capital. Livro Terceiro, vol. V. São Paulo: Nova Cultural, [1894] 1988e.

______. ; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, [1846] 1999.

MATTOSO, Jorge. O Brasil desempregado: como foram destruídos mais de 3 milhões de


empregos nos anos 90. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001. (Coleção Brasil
Urgente).

MATTOS, Marcelo Badaró. Trabalhadores e sindicatos no Brasil. São Paulo: Expressão


Popular, 2009.

______. Memórias da prisão política sob o regime de Vargas. In: SIMPÓSIO NACIONAL
DE HISTÓRIA, 26., 2011, São Paulo. Anais do... São Paulo: ANPUH, 2011.

MELO, João Manuel Cardoso de. O capitalismo tardio. São Paulo: Brasiliense, [1975]
1991.

MENDONÇA, Sônia Regina de ; FONTES, Virginia Maria. História do Brasil recente


(1964-1992). São Paulo: Ática, 2004.

MÉZÁROS, Istivan. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002.

MIRANDA, José Carlos ; TAVARES, Maria da Conceição. Brasil: estratégias de


conglomeração. Estados e moedas no desenvolvimento das nações. Petrópolis: Vozes,
1999. (Coleção Zero a Esquerda).

MOFFIT, Michael. O dinheiro do mundo: de Bretton Woods à beira da insolvência. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1984.

MONTAÑO, Carlos. Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão emergente de


intervenção social. São Paulo: Cortez, 2002.

MOTA, Ana Elizabete (Org). Desenvolvimentismo e construção de hegemonia:


crescimento econômico e reprodução da desigualdade. São Paulo: Cortez, 2012.

_______. MOTA, Ana Elizabete. Cultura da crise e seguridade social: um estudo sobre as
tendências da previdência e assistência social brasileira nos anos 80 e 90. São Paulo:
Cortez, 2011.

NERI, Marcelo. A nova classe média: o lado brilhante da base da pirâmide. São Paulo:
Saraiva, 2011.

NETTO, José Paulo. Cinco notas a propósito da “Questão Social”. Temporalis: Revista da
Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social, Brasília, ano. 2, n.3,
jan./jul. 2001.
316

______. FHC e a política social: um desastre para as massas trabalhadoras. In:


LESBAUPIN, Ivo (Org). O desmonte da nação: balanço do governo FHC. Petrópolis:
Vozes, 1999.

______. Capitalismo monopolista e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1996.

______. Crise do socialismo e ofensiva neoliberal. São Paulo: Cortez, 1995.

NETTO, José Paulo. Ditadura e serviço social: uma análise do serviço social no Brasil
pós-64. São Paulo: Cortez, 1991.

NOVO, Aguinaldo. Na era Lula, bancos tiveram lucro recorde de R$199 bi, com crédito
farto. O Globo, Rio de Janeiro, 26 fev. 2011. Economia.

OLIVEIRA, Fabrício Augusto de. Economia e política das finanças públicas no Brasil.
São Paulo: Hucitec, 2010.

OLIVEIRA, Francisco de. Hegemonia às avessas. In: OLIVERIA, Francisco de; BRAGA,
Ruy ; RIZEK, Cibele (Org.). Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da
servidão financeira. São Paulo: Boitempo, 2010.

______. Os direitos do antivalor: a economia política da hegemonia imperfeita. Petrópolis:


Vozes, 1998.

______. A economia brasileira: crítica à razão dualista. Petrópolis: Vozes, [1972] 1981.

ORDOÑEZ, Ramona ; ROSA, Bruno. Petrobras tem lucro recorde. O Globo, Rio de
Janeiro, 26 fev. 2011. Economia.

PAULA, João Antônio de. Política econômica e transformação social. In: SICSÚ, João.
Arrecadação (de onde vem?) e gastos (para onde vão?). São Paulo: Boitempo, 2007.

_______ (Org). Adeus ao desenvolvimento: a opção do governo Lula. Belo Horizonte:


Autêntica, 2005.

PAULANI, Leda. Alternativas para o Brasil no início do século XXI. In: SICSÚ, João.
Arrecadação (de onde vem?) e gastos (para onde vão?). São Paulo: Boitempo, 2007.

______. O Brasil como plataforma de valorização financeira internacional (um balanço da


política econômica do primeiro ano do governo Lula. In: ______. Brasil delivery. São
Paulo: Boitempo, [2005] 2008. (Coleção Estado de Sítio).

______. Sem esperança de ser país: o governo Lula dezoito meses depois. In: ______.
Brasil delivery. São Paulo: Boitempo, [2004] 2008. (Coleção Estado de Sítio).

______. A dança dos capitais. In: Praga – Estudos Marxistas 6. São Paulo: Hucitec, 1998.

______ ; PATO, Christy G. G. Servidão financeira: o Brasil no ultimo quarto do século.


In:______. Brasil delivery. São Paulo: Boitempo, [2005] 2008. (Coleção Estado de Sítio).
317

PESCHANSKI, João Alexandre. Crise europeia e austeridade fiscal. In: Blog da Boitempo.
12/03/2012. Disponível em: <http://blogdaboitempo.com.br/2012/03/12/crise-europeia-e-
austeridade-fiscal/?shared=email&msg=fail.> Acesso em: 15 abr. 2012.

PINTO, Eduardo Costa. Bloco no poder e governo Lula: grupos econômicos, política
econômica e novo eixo sino-americano. 2010. 306 f. Tese (Doutorado em Economia) –
Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

POCHMANN, Marcio. Políticas públicas e situação social na primeira década do século


XXI. In: SADER, Emir (Org). 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e
Dilma. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: FLACSO Brasil, 2013.

______. Nova classe média? O trabalho na base da pirámide social brasileira. São Paulo:
Boitempo, 2012.

______. Gasto social, o nível de emprego e a desigualdade da renda do trabalho no Brasil.


In: SICSÚ, João. Arrecadação (de onde vem?) e gastos (para onde vão?). São Paulo:
Boitempo, 2007.

______ ; BORGES, Altamiro. “Era FHC”: a regressão do trabalho. São Paulo: Anita
Garibaldi, 2002

PRADO Jr., Caio. A revolução brasileira. São Paulo: Brasiliense, [1966] 2004.

ROCHA, Marco Antônio da. Grupos econômicos e capital financeiro: uma história recente
do grande capital brasileiro. 2013. 183 f. Tese (Doutorado em Economia) – Instituto de
Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas/SP, 2013.

_______. Revolução brasileira, dualidade e desenvolvimento: do nacional-


desenvolvimentismo à Escola de Sociologia da USP. In: MALTA, Maria (Org.) Ecos do
desenvolvimento: uma história do pensamento econômico brasileiro. Rio de Janeiro: Ipea;
Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, 2011.

______ ; SILVEIRA, José Maria Ferreira. Propriedade e controle dos setores privatizados:
uma avaliação da reestruturação societária pós-privatização. In: XXXVII ENCONTRO
NACIONAL DE ECONOMIA, 37., 2009, Foz do Iguaçu. Anais do... Foz do Iguaçú :
ANPEC, 2009. Disponível em:
http://www.anpec.org.br/encontro2009/inscricao.on/arquivos/000-
7974b8e4196423d11735fd974c864a54.pdf. Acesso em: 30 maio 2013.

ROSANVALLON, Pierre. A nova questão: repensando o Estado providência. Brasília:


Instituto Teotônio Vilela, 1998.

SADER, Emir. A construção da hegemonia pós-neoliberal. In: SADER, Emir (Org.). 10


anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma. São Paulo: Boitempo; Rio de
Janeiro: FLACSO Brasil, 2013.

______. O anjo torto: esquerda (e direita) no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1995.

SAMPAIO, Plínio de Arruda. Para além da ambiguidade: uma reflexão histórica sobre a
CF/88. In: CARDOSO Jr., José Celso. A constituição brasileira de 1988 revisitada:
318

recuperação histórica e desafios atuais das políticas públicas nas áreas econômica e social.
Vol1. Brasília: IPEA, 2009.

SAMPAIO Jr., Plínio de Arruda ; SAMPAIO, Plínio de Arruda. Apresentação. In:


PRADO Jr. Caio ; FERNANDES, Florestan. Clássicos sobre a revolução brasileira. São
Paulo: Expressão Popular, 2007.

SANTOS, Silvana Mara Morais dos. Questões e desafios da luta por direitos. Revista
Inscrita, Brasília, ano 7, n.10, nov. 2007.

SALVADOR, Evilásio. Fundo público e seguridade social. São Paulo: Cortez, 2010.

______. Crise do capital e socorro do fundo público. In: BOSCHETTI, Ivanete et al (Org.).
Capitalismo em crise, política social e direitos. São Paulo: Cortez, 2010.

______. A distribuição da carga tributária: quem paga a conta?. In: SICSÚ, João.
Arrecadação (de onde vem?) e gastos (para onde vão?). São Paulo: Boitempo, 2007.

SICSU, João; VIDOTTO, Carlos. Administração fiscal no Brasil e taxa de juros. In:
SICSÚ, João. Arrecadação (de onde vem?) e gastos (para onde vão?). São Paulo:
Boitempo, 2007.

SINDIFISCO. O sistema tributário: diagnóstico e elementos para mudanças. Como reduzir


a carga tributária sobre consumo e produção, investindo no crescimento do país. Brasília:
Sindifisco, 2010.

SINGER, André. Os sentidos do Lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.

SINGER, Paul. A crise do “milagre”. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

______. A raiz do desastre social: a política econômica de FHC. In: LESBAUPIN, Ivo
(Org). O desmonte da nação: balanço do governo FHC. Petrópolis: Vozes, 1999.

SILVA, Giselle Souza da. Transferência de renda e capital portador de juros: uma
insidiosa captura. 2010. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Faculdade de Serviço
Social, Rio de Janeiro, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2010.

SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. São
Paulo: Nova Cultural, [1776] 1988. v.1.

TAUTZ, Carlos et al. BNDES e a reorganização do capitalismo brasileiro: um debate


necessário. In: MAGALHÃES, João Paulo de Almeida et al (Org.). Os anos Lula:
contribuições para um balanço crítico 2003-2010. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.

TAVARES, Maria da Conceição. A retomada da hegemonia norte-americana. In:


TAVARES, Maria da Conceição ; FIORI, José Luís (Org). Poder e Dinheiro: uma
economia política da globalização. Petrópolis: Vozes, 1997. (Coleção Zero a Esquerda).
319

______ ; TEIXEIRA, Aloisio ; PENA, Maria Valéria Junho (Org.). Aquarella do Brasil:
ensaios políticos e econômicos sobre o governo Collor. Rio de Janeiro: Rio Fundo Ed,
1991.

______ . Da substituição de importações ao capitalismo financeiro: ensaios sobre


Economia Brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, [1972] 1976.

______. Auge e declínio do processo de substituição de importações no Brasil. In:


TAVARES, Maria da Conceição. Da substituição de importações ao capitalismo
financeiro: ensaios sobre Economia Brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, [1963] 1976.

______. Natureza e contradições do desenvolvimento econômico recente. In: TAVARES,


Maria da Conceição. Da substituição de importações ao capitalismo financeiro: ensaios
sobre Economia Brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, [1971] 1976.

TAVARES, Maria da Conceição ; SERRA, José. Além da estagnação. In: TAVARES,


Maria da Conceição. Da substituição de importações ao capitalismo financeiro: ensaios
sobre Economia Brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, [1971] 1976.

TEIXEIRA, Aloísio. O ajuste impossível, seis anos depois. Uma reapresentação. Rio de
Janeiro: IEI/UFRJ, 2000. Mimeo.

______. O ajuste impossível .Rio de Janeiro: UFRJ, 1994.

______. O Império contra-ataca: notas sobre os fundamentos da atual dominação norte-


americana. Economia e Sociedade, Campinas, n.1, ago. 1992.

______. Capitalismo monopolista de Estado: um ponto de vista crítico. Revista de


Economia Política, v.3, n.4, out./dez. 1983.

TONET, Ivo. Democracia ou liberdade? Maceió: Edufal, 1997.

VÁZQUEZ, A. Sanchez. Filosofia da práxis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

VIEIRA, Evaldo. Os direitos e a política social. São Paulo: Cortez, 2004.

VILLAS BÔAS, Bruno. Uma era de outro para a Bolsa. O Globo, Rio de Janeiro, 04 out.
2010. Economia.

WERNECK VIANNA, Maria Lúcia. A administração do milagre: o Conselho Monetário


Nacional (1964-1974). Petrópolis: Vozes, 1987.

WOOD, Ellen. Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo histórico.


São Paulo: Boitempo, 2003.

Você também pode gostar