Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Tatiana Brettas
Rio de Janeiro
2013
Tatiana Brettas
Rio de Janeiro
2013
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/ BIBLIOTECA CCS/A
CDU 336.12(81)
Autorizo apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese, desde que citada a
fonte.
_____________________________________ ___________________________
Assinatura
Tatiana Brettas
Banca Examinadora
___________________________________________
Profª. Dra. Elaine Rossetti Behring (Orientadora)
Faculdade de Serviço Social - UERJ
___________________________________________
Profª. Dra. Silene de Moraes Freire
Faculdade de Serviço Social - UERJ
___________________________________________
Profª. Dra. Ivanete Salete Boschetti
Universidade de Brasília - UNB
___________________________________________
Profª. Dra. Sara Granemann
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
___________________________________________
Prof. Dr. Cézar Henrique Miranda Coelho Maranhão
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
2013
DEDICATÓRIA
À minha Mãe, com quem venho estabelecendo laços a cada dia mais sólidos de amizade e
parceria, resgatando uma relação de identidade e respeito às diferenças, indispensáveis
para seguir firme nesta caminhada. Seu apoio, disponibilidade e incentivo foram uma fonte
essencial de energia para superar todos os desafios que apareceram.
Às minhas irmãs Ana e Flávia, com quem partilhei momentos revigorantes de
descontração.
Ao Castelo, que contribuiu intensamente para que parte destas elaborações fossem
produzidas de forma menos solitária. Seu carinho, incentivo e companheirismo se
combinaram a profícuos debates teórico-metodológicos e políticos e foram fundamentais
para as análises que aparecem neste trabalho. Ao mesmo tempo, nossa relação me permitiu
viver na pele a beleza da transformação de uma longa e especial amizade em um delicioso
amor.
Aos meus amigos queridos de longa data, que a distância nunca conseguiu separar:
Rodrigo Marcelino, companheiro para todas as horas, pelos debates teóricos partilhados e
pela fiel amizade; João Hallak, pelas acaloradas discussões e pelos dados tão prontamente
disponibilizados, que contribuíram para fundamentar os argumentos aqui apresentados;
Raphael Muller, pelas conversas intermináveis que, não raras vezes, nos fizeram varar
madrugadas; Vanessa Bezerra, amiga querida e responsável pela minha aproximação com
o Serviço Social.
Às companheiras e interlocutoras do GOPSS: Juliana, Tainá, Aline Miranda, Aline Abreu
e Sandra, pessoas com quem aprendi muito. Em especial, à Giselle, com quem estabeleci
uma relação que ultrapassou os muros da UERJ e me possibilitou dividir muitas alegrias e
angústias ao longo destes últimos anos.
À Luciana Cantalice, uma pessoa imprescindível na minha vida, pelo carinho e por tudo
mais. Ao Rodrigo Lima, amigo que a vida reaproximou por meio do doutorado, e à Maria
do Rosário.
Aos companheiros e companheiras do Nepem: Marcio, Victor, Fernanda e, em especial,
Sara Granemann, amiga com quem partilho instigantes debates.
À amiga e (ex)colega de departamento (além de orientadora na monografia!), Telma
Gurgel, pessoa das mais generosas e solidárias que tive o prazer de conhecer, e com quem
aprendi não somente do ponto de vista teórico e acadêmico, mas também pessoal, me
mostrando a importância da leveza e do bom humor para enfrentar os desafios cotidianos.
Às companheiras com quem trabalhei no Departamento de Serviço Social da UERN:
Mirla, Rivânia, Samya, Iana, Glaucia, Fernanda e Aione, com quem tive uma convivência
muito valorosa e enriquecedora.
Aos companheiros e companheiras de militância, com quem tenho tido um imenso
aprendizado e que muito me inspiram e fortalecem na luta por uma nova sociedade.
Destaco Larisse, Boing, Rafa, Mariana, Talles, Rogério e Valéria. Além de referências na
militância, são conquistas preciosas que ajudam a fazer a nossa vida mais especial.
À Janaiky, Gabi, Val e Marcela, pessoas hoje essenciais na minha vida.
À Ivanete Boschetti, Cézar Maranhão e Silene Freire, pelas contribuições dadas à minha
formação e por terem se disponibilizado a contribuir com o meu trabalho.
À Maria Inês Bravo, professora, amiga e companheira de militância, com quem pude
estabelecer uma relação de imenso carinho, aprendizado e parceria.
Ao Aloísio Teixeira (in memorian), grande mestre e incentivador que acompanhou minha
formação desde o mestrado e será sempre uma referência forte pela sua imensa
generosidade e simplicidade.
À Elaine Behring, orientadora e amiga, pela sua paciência e sensibilidade, em todos os
momentos. Sua solidariedade e compromisso com tudo o que faz é uma grande fonte de
inspiração.
Ao Evilásio Salvador, pelas conversas, sugestões e dúvidas tiradas e pelos dados
fornecidos.
Ao IPEA pelos dados divulgados, em especial, Jorge Abraão, por ter generosamente me
recebido e conversado sobre a metodologia desenvolvida pela instituição e Eduardo Zen,
por ter facilitado o acesso a alguns dos documentos utilizados como fonte de pesquisa.
À Capes, pelo apoio financeiro para a realização desta pesquisa.
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.
Não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela.
Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida.
Não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente,
os homens [e mulheres!] presentes,
a vida presente.
BRETTAS, Tatiana. Capital financeiro, fundo público e políticas sociais: uma análise do
lugar do gasto social no governo Lula. 2013. 319 f. Tese (Doutorado em Serviço Social) –
Faculdade de Serviço Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2013.
BRETTAS, Tatiana. Financial capital, public fund and social policy: an analysis of social
spending in the Lula government. 2013. 319 f. Tese (Doutorado em Serviço Social) –
Faculdade de Serviço Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2013.
The budget is an essential tool for assessing the priorities of government and the
disputes between the different social classes with regard to the appropriation of funds from
the public fund. In this sense, a careful approach regarding the particularities that are
assuming the dynamics of capitalist accumulation, as well as the contradictions involved in
the process of struggle and implementation of social policies, elements that seem to
contribute to help us understand how this dispute has been going . The objective of this
work is to analyze the place of social spending in the Lula government. Therefore, we
consider it important to analyze the main elements of the dynamics of capitalist
accumulation with reference to the creation of financial capital and the process of
financialization of the economy, discussing the relationship between public debt, crisis and
financialisation of capital; grasp the trends of social policy, seeking identify its
configuration today; rescue training process to think of Brazil Lula and the dynamics of
class struggle today, and analyze the social spending of the federal government, based on
the methodology developed by IPEA, considering the period 2004 to 2011. Because we
understand social spending as a result of a process of correlation of forces that have, in the
relationship between capital and labor founding its size, this analysis can not be an end in
itself. Rather, to understand the peculiarities of the dynamics of accumulation at the
present time it is essential to grasp the movement of capital and its power to enforce their
interests in dealing with resistance imposed by the working class and thus to fight against
his shackles. The role of the state can only be understood in the midst of this plot of class
struggle and their decisions express the power of these classes to impose their demands,
and bring along the trace of the legacies of the past, especially the bonds of dependency
and subordination to imperialist interests. The absence of a break with the capital that
marks the rise of the Labor Party to the federal government is permeated by contradictions
and analysis of its results lies in a series of controversies, many of which only one will
assess greater historical distance. This does not mean it is not possible to undertake an
effort to identify the ongoing changes and raise the contradictions, limits and the
possibilities offered by the mandates of President Lula. In general, we can say that there
was no significant structural advances in this government and that the logic of resource
management that prioritizes the payment of public debt remains having undergone specific
changes. However, there are some differences in the composition of social spending. These
are more linked to the provision of programs for low-income people than for substantive
improvement in assuring universal social policies. Anyway, its effect on improving the
living conditions and access to the consumption of a portion of the population can be felt.
BRETTAS, Tatiana. Le capital financier, fonds public et la politique sociale: une analyse
des dépenses sociales dans le gouvernement Lula. 2013. 319 f. Tese (Doutorado em
Serviço Social) – Faculdade de Serviço Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2013.
Le budget est un outil essentiel pour évaluer les priorités du gouvernement et les
conflits entre les différentes classes sociales en ce qui concerne l'affectation des crédits du
fonds public. En ce sens, une approche prudente en ce qui concerne les particularités qui
sont en supposant que la dynamique de l'accumulation capitaliste, ainsi que les
contradictions impliquées dans le processus de lutte et de mise en œuvre des politiques
sociales, des éléments qui semblent contribuer à nous aider à comprendre comment ce
conflit dure depuis . L'objectif de ce travail est d'analyser la place des dépenses sociales
dans le gouvernement Lula. Par conséquent, nous considérons qu'il est important d'analyser
les principaux éléments de la dynamique de l'accumulation capitaliste en référence à la
création du capital financier et le processus de financiarisation de l'économie, de discuter
de la relation entre la dette publique, la crise et la financiarisation du capital; saisir les
tendances de la politique sociale, à la recherche identifier sa configuration aujourd'hui, le
processus de formation de sauvetage à penser du Brésil Lula et la dynamique de la lutte de
classe aujourd'hui, et d'analyser les dépenses sociales du gouvernement fédéral, basée sur
la méthodologie développée par l'IPEA, compte tenu de la période de 2004 à 2011. Parce
que nous comprenons les dépenses sociales à la suite d'un processus de corrélation des
forces qui ont, dans la relation entre le capital et le travail fonder sa taille, cette analyse ne
peut pas être une fin en soi. Au contraire, pour comprendre les particularités de la
dynamique d'accumulation à l'heure actuelle, il est essentiel de saisir les mouvements de
capitaux et de son pouvoir pour faire valoir leurs intérêts face à la résistance imposée par la
classe ouvrière et donc de lutter contre ses entraves. Le rôle de l'Etat ne peut être compris
dans le milieu de ce terrain de la lutte de classe et leurs décisions expriment la puissance de
ces classes d'imposer leurs exigences, et apporter le long de la trace de l'héritage du passé,
en particulier les liens de dépendance et de subordination à intérêts impérialistes. L'absence
d'une rupture avec le capital qui marque la montée du Parti travailliste au gouvernement
fédéral est imprégné par les contradictions et l'analyse de ses résultats réside dans une série
de controverses, dont beaucoup ne l'on va évaluer plus grande distance historique. Cela ne
signifie pas qu'il n'est pas possible d'entreprendre un effort pour identifier les changements
en cours et à augmenter les contradictions, les limites et les possibilités offertes par les
mandats du président Lula. En général, nous pouvons dire qu'il n'y avait aucun progrès
structurels importants dans ce gouvernement et que la logique de la gestion des ressources
qui privilégie le paiement de la dette publique reste ayant subi des modifications
spécifiques. Cependant, il ya des différences dans la composition des dépenses sociales. Ce
sont plus liés à la prestation de programmes destinés aux personnes à faible revenu que
pour l'amélioration de fond en assurant politiques sociales universelles. Quoi qu'il en soit,
son effet sur l'amélioration des conditions de vie et l'accès à la consommation d'une partie
de la population peut se faire sentir.
Mots-clés: capital financier. La financiarisation. Fonds publics. Les politiques sociales. Les
dépenses sociales.
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 2 – Taxa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) entre os anos 1991 e 2000
(em %) ............................................................................................................... 167
Gráfico 3 – Valor das empresas listadas na Bolsa de Valores de São Paulo em US$
(1995/2011) ....................................................................................................... 184
Gráfico 5 – Alocação dos ativos dos fundos de pensão no Brasil (2003-2010) ..................... 194
Gráfico 12 – Taxas de crescimento real do gasto social federal e do PIB de 1995 a 2010 .... 285
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Dívida total e gastos com o pagamento de juros em 2010 e 2011 (%) ................... 88
Tabela 3 – Desembolso anual por porte de empresa (valores relativos) ................................ 192
Tabela 4 – Estimativa da carga tributária brasileira, por base de incidência, em 2009 .......... 227
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 17
1 A DINÂMICA DE ACUMULAÇÃO CAPITALISTA NA ERA DO CAPITAL
FINANCEIRIZADO .................................................................................................. 30
1.1 Notas sobre o capital portador de juros em Marx ................................................... 32
1.1.1 A importância da dívida pública para a constituição do capitalista industrial ............. 33
1.1.2 O capital portador de juros ............................................................................................ 38
1.2 O fundo público ........................................................................................................... 50
1.3 O capital financeiro e a marca da financeirização no processo de
desenvolvimento capitalista ....................................................................................... 58
1.4 Financeirização, crise do capital e tendências das políticas sociais ........................ 82
1.4.1 Apontamentos sobre a reconfiguração das políticas sociais ......................................... 90
2 ESTADO E CAPITAL FINANCEIRO NO BRASIL ............................................ 103
2.1 As bases do desenvolvimento capitalista no Brasil .................................................. 103
2.1.1 A expansão industrial iniciada nos anos 1930 ............................................................. 107
2.1.2 A chegada do capitalismo monopolista ....................................................................... 118
2.2 Da reforma bancária nos anos 1960 à crise do endividamento nos 1980 ............. 125
2.2.1 A efervescência política dos anos 1980 e a Constituinte............................................. 147
2.3 Neoliberalismo e a constituição do capital financeiro brasileiro........................... 153
2.3.1 O neoliberalismo no Brasil .......................................................................................... 157
2.3.2 As alterações na estrutura produtiva e sua relação com as finanças ........................... 175
3 ESTADO, ORÇAMENTO PÚBLICO E GASTO SOCIAL NO BRASIL (2004-
2011) ........................................................................................................................... 188
3.1 Considerações de ordem teórico-metodológica....................................................... 203
3.1.1 Questão social, luta de classes, direitos e políticas sociais .......................................... 205
3.1.2 A necessária articulação entre financiamento e gastos no debate sobre as políticas
sociais ......................................................................................................................... 220
3.2.2 Percursos metodológicos para a análise dos gastos federais ...................................... 239
3.2 O Plano Plurianual (PPA) e as políticas sociais (2004/2011) ................................. 254
3.2.1 Os PPA (2004-2007 e 2008-2011) do governo Lula e a definição de prioridades ...... 254
3.2.2 O gasto público e as políticas sociais .......................................................................... 265
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 295
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 308
17
INTRODUÇÃO
Clarisse Lispector
A alocação de boa parte destes recursos nos circuitos que vão alimentar e ampliar
as possibilidades de rentabilidade financeira significa uma transferência de recursos
oriundos do trabalho para as mãos da burguesia financeira – nacional e internacional. Do
mesmo modo, as decisões que vêm sendo tomadas na condução da política econômica,
dentre as quais destacamos os juros altos e o superávit primário, caminham também na
direção de favorecimento deste capital rentista e expressam as dificuldades que os
trabalhadores vêm tendo em canalizar para si os recursos do fundo público.
O orçamento constitui um instrumento imprescindível para avaliarmos as
prioridades de um governo e as disputas existentes entre as diferentes classes sociais no
que diz respeito à apropriação dos recursos do fundo público. Neste sentido, uma
aproximação cuidadosa acerca das particularidades que vêm assumindo a dinâmica de
acumulação capitalista, bem como das contradições que envolvem o processo de luta e
implementação das políticas sociais, parecem elementos que contribuem para nos ajudar a
entender de que forma esta disputa vem acontecendo.
O objetivo deste trabalho é analisar o lugar do gasto social no período de 2004 a
2011. Para tanto, consideramos importante investigar os principais elementos da dinâmica
de acumulação capitalista tendo como referência a constituição do capital financeiro e o
processo de financeirização da economia; discutir a relação entre dívida pública,
financeirização e crise do capital; apreender as tendências da política social, buscando
identificar sua configuração na atualidade; resgatar o processo de formação do Brasil para
pensar o governo Lula e a dinâmica da luta de classes na atualidade; e analisar os gastos
sociais do governo federal, tendo como base a metodologia desenvolvida pelo IPEA,
considerando o período analisado.
Consideramos, portanto, ser necessário reconstituir o processo de reação burguesa à
crise internacional que se inicia no final dos anos de 1960, inserindo de forma mais
minuciosa as questões referentes ao papel do Estado e à gestão do fundo público. Em
outras palavras, mais do que identificar a intensificação dos fluxos financeiros como forma
de garantir a rentabilidade do capital, as alterações no mundo da produção e do trabalho, a
crise do Estado de Bem Estar Social e a ascensão do neoliberalismo - e os elos de ligação
existentes entre todos estes processos de mudança - torna-se indispensável pensar como o
orçamento público vem sendo planejado e executado, para entender a conjuntura atual.
Neste sentido, buscaremos perceber de que forma vem se dando a repartição do
fundo público no Brasil, destacando o volume de recursos direcionados para as políticas
19
sociais e o volume despendido com a dívida pública. Para tanto, faremos uma discussão
acerca dos elementos constitutivos do fundo público no Brasil e a forte marca da
regressividade na tributação, bem como analisaremos o caráter político do orçamento
público. Acreditamos que as medidas, adotadas no Brasil, vão na mesma direção de um
processo de mercantilização das políticas públicas e integração da periferia capitalista no
“mundo global das finanças”, como forma de garantir crescentes taxas de retorno ao
grande capital nacional e internacional. Ainda assim, vêm sendo tomadas medidas que
proporcionaram alguma melhora nas condições de vida da classe trabalhadora. Deste
modo, não seria possível uma aproximação com nosso objeto, sem retomar o movimento
do modo de produção capitalista nas últimas décadas e fazer uma fundamentação teórica
acerca das alterações econômicas, políticas e sociais vividas na contemporaneidade.
O final dos anos 1960 e início dos 1970 marcam um período em que a crise
estrutural vivenciada é enfrentada, dentre outras maneiras, pela intensificação dos fluxos
financeiros, principalmente nos países de capitalismo avançado. Estes fluxos passam a
funcionar como o espaço privilegiado na garantia da rentabilidade capitalista, de tal
maneira que muitos autores chegam a apontar um total descolamento entre produção e
finanças. Alguns dados concretos ajudam a fundamentar esta ilusão. Para termos uma
ideia, o total de ativos negociados representavam 120% da riqueza total produzida em
1980, e passaram para 380% em 20081. Acreditamos, entretanto, na impossibilidade de um
descolamento total, dado que a produção é o espaço por excelência da produção de valor.
Isto não significa que uma alteração quantitativa desta magnitude não tenha
desdobramentos qualitativos sobre a forma como se produz e distribui a riqueza social.
O processo de reestruturação produtiva observado nas últimas décadas do século
passado, estabeleceu uma mudança no padrão de acumulação que trouxe uma nova
configuração nas relações entre o capital e o trabalho, com vistas a intensificar as formas
de exploração do primeiro sobre o segundo. O aumento nas bases de extração de mais valia
funcionou como o recurso para viabilizar o aumento da punção da esfera financeira sobre
os valores gerados na produção, ampliando as contradições na dinâmica de acumulação
capitalista, levando a sucessivas crises de acumulação.
O Estado também sofreu alterações. O fundo público, que já possuía um lugar
estrutural na dinâmica de acumulação desde o pós-guerra, passou a ter na dívida pública
1
Dados divulgados pelo Brasil de Fato – Ano 7 – Número 339 – Julho/2009, p. 2.
20
uma das principais formas de transferência de recursos para o grande capital. Este
mecanismo transforma-se em uma importante ferramenta do Estado para garantir as
condições de funcionamento do sistema e alimentar a rentabilidade no circuito das
finanças. Neste sentido, o gasto com as políticas sociais, o financiamento ao investimento e
a participação direta do Estado na produção sofrem reconfigurações com vistas a liberar
recursos para alimentar a rentabilidade do capital portador de juros.
A busca por ampliar as fronteiras de acumulação avança sobre o meio ambiente, as
políticas sociais, o setor de serviços e sobre as economias dependentes. O final dos anos
1980 e 1990 marcam um aumento da ofensiva sobre diversos países, dentre eles os da
América Latina, com vistas a transformá-los em espaços mais atrativos ao capital fictício e
ao investimento externo direto (IED). Os países imperialistas buscam, desta maneira,
absorver os excedentes gerados fora de suas fronteiras e contrarrestar a tendência
decrescente na taxa de lucro.
No caso específico do Brasil, o processo de redemocratização é permeado por uma
intensificação da luta de classes que tem na vitória dos interesses capitalistas –
representada pela eleição de Fernando Collor de Mello em 1989 – um momento de refluxo
das lutas protagonizadas pela classe trabalhadora. Este contexto possibilitou um
fortalecimento das ideias neoliberais no país, consubstanciadas a este movimento mais
geral do grande capital internacional.
Embora a intensificação dos fluxos financeiros tenha se dado no país, de forma
mais visível, somente nos anos 1990, período também de crescimento exponencial da
dívida pública interna, suas raízes encontram-se nos anos 1960. As medidas
governamentais de incentivo à constituição de um mercado de capitais fizeram parte de
uma tentativa de buscar fontes não inflacionárias de estímulo ao crescimento econômico. A
solução encontrada passou pelo estímulo às empresas a abrirem seu capital, o que também
contribuiu para um aumento da concentração em diversos setores.
A sociedade anônima é uma forma de relação de propriedade que estimula o
processo de monopolização da economia por permitir o exercício do controle sobre o
capital sem a necessidade de se ter a propriedade de cem porcento deste. As decisões, em
última instância, ficam a cargo do acionista majoritário, o qual pode chegar a deter menos
da metade do total das ações. Fica mais fácil, assim, com um menor capital disponível,
determinar os rumos de um maior capital alheio, ampliando o potencial de controle sobre o
processo de produção no seu conjunto.
21
outras palavras, a política de valorização do salário mínimo, o aumento na média das taxas
de crescimento e a adoção de alguns programas sociais voltados para reduzir a pobreza
produziram um efeito, em alguma medida, redistributivo, o que garantiu ao governo Lula
um forte apoio popular. Entretanto, as possibilidades de avanço nestas políticas esbarram
nos elementos de continuidade em relação ao governo anterior e o impedem de promover
alterações efetivamente estruturais para romper com o modelo neoliberal.
A análise dos gastos sociais deve ser feita em meio a este contexto e aponta para a
existência de uma preocupação em utilizá-los como mecanismo para ampliação do
consumo interno e como elemento de contenção dos efeitos das crises econômicas. Este
fato produziu efeitos sobre a qualidade de vida da classe trabalhadora, em especial a mais
pauperizada. Encontrou limites, entretanto, dentre outras coisas, nas restrições
orçamentárias provocadas pela política de gestão da dívida, que seguiu promovendo uma
transferência de recursos das políticas sociais para alimentar o capital portador de juros.
Esta dinâmica, contraditória e complexa, envolve a necessidade de apreensão de um
conjunto de categorias teórico-metodológicas que vêm sendo assimiladas ao longo de
nossa trajetória acadêmica e profissional. Na verdade, o estudo desenvolvido na
monografia de graduação – apresentada como requisito de conclusão do curso de
Economia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) – sobre as mudanças
contemporâneas no mundo do trabalho, consistiu em uma primeira aproximação com a
obra teórica de Marx e da tradição marxista. Neste momento, percebemos a importância de
buscar apreender a realidade considerando o processo de luta de classes e a dinâmica
contraditória que envolve a produção e apropriação de riqueza nos marcos do capital.
Na dissertação de mestrado, desenvolvida no curso de Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o debate travado para discutir a
financeirização do capital foi o pano de fundo para um estudo das privatizações no Brasil e
as alterações que vieram acompanhadas ao processo de estabilização monetária. Fizemos
uma análise político-econômica do Plano Real para perceber as alterações na relação entre
o setor produtivo e financeiro no Brasil durante o governo FHC. Este trabalho nos chamou
a atenção para a magnitude dos desdobramentos causados pelas alterações em curso na
dinâmica de acumulação global e nos instigou a aprofundar a discussão acerca do fundo
público e o papel da dívida pública neste processo.
A opção pelo Serviço Social deveu-se à certeza da contribuição que esta
interlocução permitiria, no sentido de propiciar o aprofundamento no debate pautado na
24
Karl Marx
2
Convém destacar que, quando falamos em rentabilidade na esfera financeira, não estamos nos referindo à
produção de valores, mas tão somente à capacidade de promover uma punção nos valores gerados na
atividade produtiva propriamente dita.
31
Para começar, não é demais lembrar que no Brasil existem duas traduções de O
Capital3. Em uma delas, a de Reginaldo Sant’anna, o capítulo XIX do Livro Terceiro
aparece com o título de “Capital Financeiro”. No entanto, na outra tradução, posterior a
esta primeira, a de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe, este capítulo aparece com outro título:
“O capital de comércio de dinheiro”, tradução mais fiel à discussão travada neste momento
do desenvolvimento das ideias do autor.
O mais provável é que a origem deste problema esteja na tradução francesa, na qual
o título do referido capítulo aparece como “Le Capital Financier (Capital Marchant)”. É
possível que Reginaldo Sant’anna tenha sido influenciado por esta tradução e adiantado
uma categoria que, efetivamente, não foi elaborada, nem discutida pelo autor. Marx trata,
neste capítulo, de questões relacionadas ao comércio de dinheiro e não de capital
financeiro, no sentido que este conceito assume posteriormente na tradição marxista,
principalmente por meio do debate travado por Hilferding e Lenin.
Ainda que as análises marxianas tenham fundamentado e, em alguma medida,
proporcionado todo um arcabouço categorial para caracterizar e analisar o capital
financeiro, as condições histórico-concretas ainda não estavam suficientemente maduras
para que ele entrasse realmente neste debate, como fizeram os autores a que nos referimos.
O estudo do capital de comércio de dinheiro, as determinações do capital portador
de juros e sua forma mais “aloucada” – para usar os termos do próprio Marx – o capital
fictício, o desenvolvimento da sociedade por ações e a intensificação do processo de
concentração e centralização do capital, são alguns dos elementos indispensáveis para a
3
Existe ainda uma nova tradução feita pela Editora Boitempo, mas até o momento só foi publicado o Livro
Primeiro, de modo que não chegaram a público os demais Livros.
33
constituição do capital financeiro e discutidos pelo autor. Mas não nos autorizam a afirmar
que ele teria tratado desta categoria.
Consideramos oportuno, neste momento, recuperar este percurso de
desenvolvimento das ideias de Marx, fazendo uso, em especial, das seções IV e V do Livro
Terceiro4 e, no próximo ponto, o debate travado por Hilferding e Lenin acerca do capital
financeiro, tentando identificar em que estes últimos se aproximam e se afastam na forma
como conduzem suas argumentações. Pretendemos, assim, destacar a atualidade desta
categoria para a análise do capitalismo em sua fase atual, o imperialismo. Antes disso,
entretanto, faremos um breve resgate acerca das elaborações de Marx sobre a dívida
pública no período da acumulação primitiva.
Karl Marx
4
Não queremos, com isso, desconsiderar a importância da obra em seu conjunto. Sem atribuir graus de
importância às obras, em função de terem sido ou não publicadas por Marx em vida, acreditamos que a
leitura d’O Capital deve ser feita e valorizada em sua totalidade, sendo a articulação entre todos livros um
movimento sem o qual a análise fica comprometida. Vale ressaltar que, quando falamos em todos os livros,
incluímos também o Quarto, intitulado postumamente de Teorias da Mais-valia. Para Marx, todos estes
compõem a mesma obra, como ele deixou claro no prefácio à primeira edição do Livro Primeiro: “o segundo
volume desta obra vai tratar do processo de circulação do capital (Livro Segundo) e das estruturações do
processo global (Livro Terceiro); o terceiro (Livro Quarto), da história da teoria” ([1867] 1988a, p. 20).
34
não apenas conserva aquela separação, mas a reproduz em escala sempre crescente”
([1867]1988b, p. 252). Sendo assim, consideramos oportuno o resgate de alguns
pressupostos da acumulação primitiva para análise da dinâmica de desenvolvimento
capitalista e suas especificidades contemporâneas.
O autor destaca como meios propulsores da acumulação primitiva alguns sistemas:
o colonial, o das dívidas públicas, o moderno sistema tributário e o protecionismo. Para os
estudos que pretendemos desenvolver, vamos nos deter no segundo e terceiro sistemas
mencionados. Importa, entretanto, destacar que todos eles têm como marca o uso da força
e o poder do Estado e, no caso do sistema colonial, esta aparece de forma ainda mais
brutal. Nas palavras de Marx, “a violência é a parteira de toda velha sociedade que está
prenhe de uma nova” ([1867]1988b, p. 276).
É oportuno destacar que, segundo o autor, o sistema de crédito público tem suas
origens na Idade Média, em Gênova e Veneza, e se espalhou para a Europa no período
manufatureiro. Assim, foi significativamente impulsionado pelo sistema colonial e
contribuiu para dar origem ao capitalismo industrial (MARX, [1867]1988b). Mas ele
afirma que o primeiro lugar em que o regime da divida pública foi implantado foi a
Holanda e destaca que “a dívida do Estado, isto é, a alienação do Estado – se despótico,
constitucional ou republicano – imprime sua marca sobre a era capitalista” ([1867]1988b,
p. 278). Isto significa dizer que independentemente da forma como um governo está
organizado e do modo como se constituem os processos de tomada de decisão, o
mecanismo da dívida pública funciona como um importante instrumento de consolidação
das relações capitalistas de produção.
Como sinalizado na epígrafe, Marx afirma, com um tom bastante irônico, que
somente a dívida pública tem um caráter verdadeiramente coletivo quando falamos na
riqueza nacional ([1867]1988b, p. 278). Com essa análise, o autor enfatiza o apelo ao
sentimento de coletividade e de responsabilidade conjunta sobre seus rumos, com vistas a
garantir a esta uma certa legitimidade.
O processo de expropriação das terras de que trata o início da acumulação primitiva
demarca a separação entre o trabalhador e os meios de produção e a consolidação da
propriedade privada burguesa – de forma mais ou menos institucionalizada – por meio da
35
5
“A propriedade comunal [...] era uma antiga instituição germânica que continuou a viver sob cobertura do
feudalismo. Viu-se como a violenta usurpação da mesma, em geral acompanhada pela transformação da terra
de lavoura em pastagem, começa no final do século XV e prossegue no século XVI. Mas, então, o processo
efetivava-se como ato individual de violência, contra a qual a legislação lutou, em vão, durante 150 anos. O
progresso do século XVIII consiste em a própria lei se tornar agora o veículo do roubo das terras do povo,
embora os grandes arrendatários empreguem paralelamente também seus pequenos e independentes métodos
privados. A forma parlamentar do roubo é a das Bills for Inclousures of Commons (leis para o cercamento da
terra comunal), em outras palavras, decretos pelos quais os senhores fundiários fazem presente a si mesmos
da terra do povo, como propriedade privada, decretos de expropriação do povo” (MARX, [1867]1988b, p.
258-259).
36
Marx chama a atenção para a importância dos grandes bancos, que juntamente com
os governos, tiveram (e ainda têm!) um papel fundamental para a acumulação da dívida
pública. Ele destaca a contribuição do Banco da Inglaterra, fundado no final do século 17,
para alavancar este processo. “Não bastava que ele [o banco] desse com uma mão e
recebesse com a outra; ele, enquanto recebia, continuava eterno credor da nação até o
último tostão adiantado” ([1867]1988b, p. 278-279). Assim, por meio, de um lado, dos
empréstimos ao governo e, de outro, da criação de moeda fiduciária, em pouco tempo
tornou-se o “receptáculo inevitável dos tesouros metálicos do país” ([1867]1988b, p. 279).
Com o seu peculiar sarcasmo, o autor registra as mudanças que vão acontecendo neste
período:
Outro elemento que nos parece pertinente salientar é a relação entre a dívida
pública e o sistema internacional de crédito. É possível identificarmos – portanto, isto não
é um fenômeno recente – significativos processos de transferência de recursos, por meio da
dívida pública, de uma nação para outra. “Assim, as vilezas do sistema veneziano de rapina
constituem uma das tais bases ocultas da riqueza de capital da Holanda, a qual a decadente
Veneza emprestou grandes somas em dinheiro” (MARX, [1867] 1988b, p. 279). Marx
([1867] 1988b) identificou que estas relações já estavam presentes ainda na Idade Média e
analisava que, em seu tempo, muitas vezes, quando a produção já não atingia as exigências
de remuneração dos capitalistas, uma das principais atividades poderia ser a de emprestar
capital para países em ascensão.
37
Ao transpor este entendimento para o período em que viveu, ele aponta, de forma
bastante contundente, que “muito capital que aparece hoje nos Estados Unidos, sem
certidão de nascimento, é sangue infantil ainda ontem capitalizado na Inglaterra” ([1867]
1988b, p. 279). Como podemos perceber, o autor relaciona dívida pública e crédito
internacional, mas também ressalta as origens destes recursos, que aparece sempre
obscurecida. Ele nos lembra que estes, por mais que pareçam brotar da esfera da
circulação, advêm da produção e esta, além de acontecer por meio da exploração humana,
envolve também a utilização de uma força de trabalho precarizada e muitas vezes ainda em
idade infantil.
Feitas estas observações gerais sobre a dívida e o crédito, o autor chama a pensar a
relação com os impostos: “como a dívida do Estado se respalda nas receitas do Estado, que
precisam cobrir os juros e demais pagamentos anuais, o moderno sistema tributário tornou-
se um complemento necessário do sistema de empréstimos nacionais” (MARX, [1867]
1988b, p. 279).
O sistema tributário aparece, portanto, como uma poderosa engrenagem deste
sistema, o qual leva os governos a um círculo vicioso. Se por um lado, a possibilidade do
crédito permite o acúmulo de dívidas como forma de dar conta de despesas exorbitantes e
evitar o recurso do aumento de impostos, por outro lado, os governos acabam fazendo uso
deste recurso quando a dívida vai se avolumando. Neste sentido, o aumento de imposto,
decorrente da necessidade de arcar com a dívida, leva a um novo processo de
endividamento quando as despesas, por uma razão ou por outra, crescem além do esperado
(MARX, [1867] 1988b, p. 279).
Não nos parece desnecessário ressaltar que o alvo mais recorrente do aumento dos
impostos incida sobre o consumo dos bens de subsistência, fato que vai garantindo uma
certa tendência a existência de uma marca regressiva no sistema tributário de uma maneira
geral. Em outras palavras, recai para a classe trabalhadora o ônus de alimentar este
processo de endividamento, na medida em que se define uma estrutura tributária pautada
na tributação indireta. Assim, Marx afirma que “a supertributação não é um incidente,
porém muito mais um princípio” ([1867] 1988b, p. 279) e uma maneira de transferir
recursos dos trabalhadores para os capitalistas.
Estes sistemas de dívida pública e tributação, portanto, que se desenvolvem de
forma significativa no período infantil da indústria moderna, para usarmos os termos de
Marx, são, ainda hoje, elementos fundamentais para entendermos a dinâmica do modo de
38
No sistema de crédito,
tudo se duplica e triplica
e se converte em pura fantasmagoria
Karl Marx
6
“Valorizações fraudulentas de ações, falsos esquemas de enriquecimento imediato, a destruição estruturada
de ativos por meio da inflação, a dilapidação de ativos mediante fusões e aquisições e a promoção de níveis
de encargos de dívida que reduzem populações inteiras, mesmo nos países capitalistas avançados, a
prisioneiros da dívida, para não dizer nada da fraude corporativa e do desvio de fundos (a dilapidação de
recursos de fundos de pensão e sua dizimação por colapsos de ações e corporações) decorrente de
manipulações do crédito das ações – tudo isso são características centrais da face do capitalismo
contemporâneo” (HARVEY, 2004, p. 123).
39
compostas por uma parte de meios de produção (Mp) e força de trabalho (F). Somente a
partir daí é que acontece o processo de produção propriamente dito (P) por meio do qual
obtêm-se mercadorias cujo valor é acrescido de mais-valia (M’). A venda dessas
mercadorias permite a realização desse valor gerado e as transforma em dinheiro
novamente (D’). São portanto, dois estágios de circulação (D – M e M’ – D’) e um de
produção que compõem o que chamamos de tempo de rotação do capital. Temos,
resumidamente, o seguinte trajeto: D – M – P... M’ – D’.
Como ressalta Granemann, “Ao compreender-se a indissociável relação entre a
produção e a circulação na obra de Marx, impressiona a demonstração de unidade entre as
diversas e particulares formas de capital [...]” (2006, p. 66). Deste modo, o capital
industrial se expressa de diferentes formas, passando de capital monetário para capital
produtivo até chegar a capital comercial. Esses são desdobramentos de um mesmo capital,
o qual tem sua importância destacada por Marx: “O capital industrial é o único modo de
existência do capital em não só a apropriação da mais-valia, ou, respectivamente, mais
produto, mas, ao mesmo tempo, também sua criação é função do capital” ([1885] 1988c, p.
41).
Como dissemos, o tempo que as operações na esfera da circulação “custam é
aplicado em operações necessárias no processo de reprodução do capital, mas não agrega
valor ” (MARX, [1894] 1988d, p. 208). Este momento da circulação envolve o capital
comercial e comporta atos M – D e D – M, o que significa atos constantes de compra e
venda. Em outras palavras, o capital “se encontra continuamente ao mesmo tempo em
ambos os estágios” (MARX, [1894] 1988d, p. 225). Esta é, portanto, uma das fases em que
o capital opera uma mera mudança de forma, neste caso, com vistas a viabilizar seu
processo de reprodução. O capital de comércio de dinheiro e o capital de comércio de
mercadoria constituem momentos diferenciados do capital comercial, sendo o primeiro um
elemento fundamental para entendermos o sistema de crédito e o capital portador de juros.
A importância do crédito se intensifica principalmente no primeiro estágio da
circulação, D – M (Mp, fundamentalmente), em que é necessário que haja um capital
adiantado, cuja magnitude varia dependendo do fôlego existente na produção e das
condições em que ela acontece. Ele ajuda a acelerar esses momentos em que não se agrega
valor.
Em vista disso, para o capitalista, quanto menor for o tempo de rotação do capital,
e, nesse sentido, quanto mais rápido um ciclo produtivo for fechado, mais rapidamente ele
41
7
“Pagamento de dinheiro, cobrança, acerto dos balanços, operação de contas correntes, guarda do dinheiro
etc., separados dos atos pelos quais essas operações se tornam necessárias, convertem o capital adiantado
nessas funções em capital de comércio de dinheiro” (MARX, [1894] 1988d, p. 226).
42
Este fato, ao mesmo tempo em que beneficia o capitalista industrial, que conseguirá
agilizar os estágios de produção de sua mercadoria (e, com isso, reduzir seus custos),
constitui uma vantagem também para o comerciante de dinheiro, o qual receberá o D que
emprestou, acrescido de ΔD. “Assim, não parece correto dizer que o capital industrial sofre
oposição do capital portador de juros e ainda menos acertado seria tratá-los como capitais
excludentes entre si e a seus proprietários como classes em luta” (GRANEMANN, 2006, p.
21). Isto não significa, entretanto que não haja disputas pela apropriação da mais-valia,
como veremos adiante.
Na medida em que o comércio e as relações de produção capitalistas vão se
complexificando, estes mecanismos vão se ampliando e se generalizando e vão configurar
o sistema de crédito. Ao mesmo tempo, emprestar e tomar dinheiro emprestado passa a ser
o “negócio especial”, nos termos de Marx, dos comerciantes de dinheiro. No momento
histórico em que o autor escreve, podemos dizer que os bancos são os responsáveis por
centralizar os mutuários e cumprir o papel de “administradores gerais do capital
monetário”:
[...] o negócio bancário, sob este aspecto, consiste em concentrar em suas mãos o
capital monetário emprestável em grandes massas, de modo que, em vez do
prestamista individual, são os banqueiros, como representantes de todos os
prestamistas de dinheiro, que confrontam os capitalistas industriais e comerciais
(MARX, [1894] 1988d, p. 287).
Atualmente trata-se não apenas dos bancos, mas de diversas outras instituições
financeiras como os fundos de pensão e as seguradoras. Estas instituições financeiras, no
geral, contribuem para canalizar o capital monetário, que se encontra ocioso, e direcioná-lo
para a atividade produtiva. Esta é uma atividade fundamental, tendo em vista que,
“enquanto permanece na configuração monetária, não funciona como capital e, portanto,
não se valoriza; o capital permanece em alqueive” (MARX, [1885]1988, p.52). O capital
monetário, nas mãos do capitalista industrial é utilizado para produzir mais-valia, ou seja,
para dar continuidade ao processo de valorização do capital, base de funcionamento do
modo de produção capitalista. O que estamos querendo dizer é que o sistema de crédito,
uma vez consolidado, possui, no processo de reprodução do capital, diversos
desdobramentos. Um deles já foi mencionado, é a redução dos custos de circulação.
Gostaríamos de destacar outro aspecto: a formação da sociedade por ações. Este
mecanismo contribuiu para uma separação entre o capitalista funcionante, o dirigente do
43
capital alheio, e o proprietário de capital – o capitalista monetário. Para este último, sua
remuneração é o juro, pagamento pela “nua e crua” propriedade do capital, a qual passa a
estar totalmente separada do trabalho. Assim, este processo contribuiu, também, para a
reprodução de uma “nova aristocracia financeira, uma nova espécie de parasitas na figura
de fazedores de projetos, fundadores e diretores meramente nominais; todo um sistema de
embuste e de fraude no tocante à incorporação de sociedades, lançamentos de ações e
comércio de ações” (MARX, [1894] 1988d, p. 316).
A preocupação em encurtar os estágios da produção, cada vez mais acentuada,
contribui para aumentar o número de adeptos à especulação financeira na Bolsa de
Valores8 e, desse modo, a intensificar a autonomia relativa das finanças. Segundo ele:
“Uma vez que a propriedade existe aqui na forma de ação, seu movimento e transferência
tornam-se resultado puro do jogo de bolsa em que os peixes pequenos são devorados pelos
tubarões e as ovelhas pelos lobos da Bolsa” (MARX, [1894] 1988d, p. 317).
Desse modo, podemos dizer que o advento da sociedade por ações, se por um lado
permitiu a expansão em larga escala da produção, por outro, favoreceu um processo de
concentração e centralização do capital sem precedentes. Como já sinalizava Marx, “o
sucesso e o insucesso levam aqui simultaneamente à centralização dos capitais e, portanto,
à expropriação9 em escala mais alta” ([1894] 1988d, p. 317).
E este é um outro aspecto que gostaríamos de acrescentar: com o desenvolvimento
do crédito e das sociedades anônimas (S.A.), podemos observar o recrudescimento da
concentração industrial, o que aumenta a possibilidade do grande capitalista de comandar o
capital alheio. Isto quer dizer que aumentam as possibilidades de, com o menor capital
próprio possível, controlar o maior capital alheio disponível. Deste modo, a organização da
empresa na forma de sociedade anônima potencializa a capacidade de produção dos que
dominam o setor produtivo de uma forma muito mais intensa do que a empresa individual,
a qual precisaria acumular o seu próprio lucro para garantir as condições necessárias para
viabilizar a produção futura.
8
A bolsa é um mercado de títulos, que tem a função de dar liquidez aos mesmos, por meio da criação de um
mercado em que eles possam ser negociados.
9
“A expropriação estende-se aqui dos produtores diretos até os próprios capitalistas pequenos e médios. Essa
expropriação constitui o ponto de partida do modo de produção capitalista; sua realização é seu objetivo;
trata-se, em última instância de expropriar todos os indivíduos de seus meios de produção [...]” (MARX,
[1894] 1988d, p. 317).
44
mercadorias, irá obter uma mercadoria com valor acrescido, fato que o permitirá obter um
volume de dinheiro maior e usar uma parte dele para pagar a quem o emprestou.
O montante emprestado, portanto, assume a forma capital monetário nas mãos do
capitalista funcionante, que o converte em capital mercadoria10. Ao fim do processo, o
capital mercadoria acrescido assume a forma transmutada de capital dinheiro novamente.
Mas o que há neste ponto de retorno é D + ΔD, ou seja, a soma inicial acrescida de mais
valia. É deste valor adicional que se originam tanto o lucro do capitalista funcionante,
quanto os juros do capitalista monetário11.
Marx sintetiza este movimento de forma bem didática:
O possuidor de dinheiro que quer valorizar seu dinheiro como capital portador de
juros aliena-o a um terceiro, lança-o na circulação, torna-o mercadoria como
capital; não só como capital para si mesmo, mas também para os outros; não é
meramente capital para aquele que o aliena, mas é entregue ao terceiro de
antemão como capital, como valor que possui valor de uso de criar mais-valia,
lucro; como valor que se conserva no movimento e, depois de ter funcionado,
retorna para quem originalmente o despendeu, nesse caso o possuidor de
dinheiro; portanto, afasta-se dele apenas por um período, passa da posse de seu
proprietário apenas temporariamente à posse do capitalista funcionante,
não é dado nem vendido, mas apenas emprestado; só é alienado sob a
condição, primeiro, de voltar, após determinado prazo, a seu ponto de partida, e,
segundo, de voltar como capital realizado, tendo realizado seu valor de uso de
produzir mais-valia ([1894] 1988d, p. 244-245, grifos nossos).
10
“Mercadoria e dinheiro aqui são capital, não à medida que mercadoria se transforma em dinheiro e
dinheiro em mercadoria, não em suas relações reiais com o comprador ou vendedor, mas apenas em suas
relações ideais, ou com o próprio capitalista (do ponto de vista subjetivo) ou com momentos do processo de
reprodução (do ponto de vista objetivo) (MARX, [1894] 1988d, p. 244).
11
O caráter derivado dos juros não foi apontado somente por Marx. Antes dele Smith já chama a atenção
para este fato. Para ele, “os juros do dinheiro são sempre uma renda derivativa, a qual, se não for paga do
lucro auferido do uso do dinheiro, deve ser paga de alguma outra fonte de renda, a não ser que talvez o
tomador seja um esbanjador que contrai uma segunda dívida para pagar os juros da primeira” (SMITH,
[1776] 1988, p. 53). Aqui já estão, portanto, as bases para afirmarmos a impossibilidade de autonomia no
âmbito do capital portador de juros.
46
de D como capital, sobre o qual repousa o juro do capitalista prestamista de dinheiro, que o
juro se origina” (MARX, [1894] 1988d, p. 246).
Em sua análise acerca do capital portador de juros, o autor está recorrentemente
fazendo menção à sua relação com a produção e ressaltando o fato de que é da mais valia
que se originam tanto os juros quanto os lucros. Sua preocupação em fazer essa ressalva,
numerosas vezes, deve-se ao fato de que ele mesmo reconhece a aparente autonomia desse
processo. Em um determinado momento de sua análise, o autor afirma que “ponto de
partida e ponto de retorno, entrega e restituição do capital emprestado, aparecem assim
como movimentos arbitrários, mediados por transações jurídicas, e que ocorrem antes e
depois do movimento real do capital, e que nada têm a ver com o próprio” ([1894] 1988d,
p.248). Apesar de parecer, portanto, que não há relação entre os juros auferidos e o
processo de produção de mercadorias, eles estão intimamente vinculados, fato que impõe
sérios limites às possibilidades de remuneração do capital na esfera predominantemente
financeira.
As ilusões produzidas pelo capital portador de juros são de diversas ordens. Além
dele fazer parecer que o dinheiro se reproduz sozinho, também faz parecer que qualquer
rendimento monetário é proveniente de um capital. Este é o caso, por exemplo, dos juros
auferidos pelos credores do Estado. Os recursos emprestados ao Estado são gastos e, na
maioria das vezes, nem mesmo são investidos como capital. Os títulos da divida pública,
portanto, não representam capital algum, e estes recursos emprestados já nem existem mais
quando o pagamento é efetuado. Eles compõem o que Marx denominou como sendo
capital fictício. Não é a toa, como ele mesmo chama a atenção, que nos momentos de crise,
em que se questiona a capacidade do Estado de arcar com esta dívida, este “capital”, que
aparece sob a forma de títulos, simplesmente desaparece, desfazendo esta aparência de
capital.
A distorção, fruto de uma das formas “aloucadas” de capital, esconde o fato de que,
na verdade, estes juros pagos aos detentores de títulos da dívida, nada mais são do que
parte das receitas da União, ou seja, de impostos pagos pelos contribuintes, em especial a
classe trabalhadora. Mais que isso, a distorção chega ao ponto de fazer parecer que o
acúmulo de dívidas representa um acúmulo de capital. Assim,
O que o autor pretende salientar é que eles assumem, muitas vezes, um caráter
especulativo, de modo que constituem um capital ilusório, mesmo mantendo uma relação
com a base real. Eles representam um direito a rendimentos: no caso dos títulos da dívida,
direito a parte dos impostos pagos12, no caso dos títulos de propriedade – as ações –, direito
a uma parcela dos lucros (da mais-valia produzida).
Mas esta autonomia é apenas aparente, tendo em vista que a conexão com a base
real acaba em algum momento se impondo e definindo limites para as eventuais flutuações.
Isto porque como a “acumulação desses papéis expressa a acumulação de ferrovias, minas,
navios e etc, ela expressa a ampliação do processo real de reprodução, do mesmo modo
que a ampliação de uma relação de impostos sobre [...] bens móveis indica a ampliação
destes bens” (MARX, [1894] 1988e, p.13).
12
Como veremos mais detalhadamente na seção sobre o fundo público, estes impostos pagos são, na
verdade, recursos oriundos do trabalho humano e correspondem a parcelas do trabalho excedente (ou mais
valia) e do trabalho necessário (salários pagos aos trabalhadores).
48
Esse quadro vem gerando uma situação em que a riqueza financeira parece ter se
descolado das condições postas pela riqueza real, gerando uma hipertrofia financeira que
tem conduzido à existência de inúmeras “bolhas especulativas” e a um enorme
descompasso no mercado de câmbio. Para se ter uma ideia, o PIB mundial estava em torno
de US$ 10 trilhões em 1980 e, em 2008 passou para cerca de US$ 48 trilhões. Os ativos
financeiros negociados, entretanto, passaram de US$ 12 para 167 trilhões
aproximadamente13. Isto significou um aumento do total de ativos financeiros negociados
da ordem de 1.391,66% no período destacado. Mas não se trata apenas do aumento dos
fluxos: os valores fictícios passaram de algo em torno de 120% para 348% da riqueza de
todas as nações juntas.
O volume e o significado que este processo assume nos nossos dias não foram
vivenciados por Marx. Apesar disso, ele já sinalizava que “[...] como duplicatas que são,
em si mesmas, negociáveis como mercadorias e, por isso, circulam como valores-capitais,
elas são ilusórias e seu montante de valor pode cair ou subir de modo inteiramente
independente do movimento do valor do capital real, sobre o qual são os títulos” ([1894]
1988e, p. 13).
Um dos elementos fundamentais para se pensar esses fluxos financeiros é o papel
que a dívida pública assume nesse processo. Passaremos por este debate na seção 1.2, mas
nos deteremos neste ponto na seção 1.4. Desde já adiantamos que, se levarmos em
consideração que esse título público, como sinalizamos, assegura ao seu proprietário a
possibilidade de receber parte das receitas do Estado e se acrescentarmos a isso a
significativa e crescente participação da dívida no Produto Interno Bruto (PIB) da maioria
dos países industrializados, veremos que o debate sobre o fundo público é indispensável
para compreendermos as particularidades da dinâmica de acumulação capitalista na
atualidade.
13
Dados divulgados pelo Brasil de Fato – Ano 7 – Número 339 – Julho/2009, p. 2.
50
O debate sobre o fundo público muitas vezes é conduzido como se fosse uma
questão puramente técnica. Esta abordagem faz parecer que tratam-se de recursos
arrecadados por meio dos impostos pagos pelos contribuintes que precisam ser gastos de
forma eficiente e responsável. Assim, todas as pessoas que, de alguma forma, pagam
impostos são vistas em pé de igualdade, tanto do ponto de vista da contribuição, quanto da
capacidade de definição na forma como deve ser seu dispêndio.
Esta perspectiva, de alguma maneira, estimula também o entendimento de uma
suposta neutralidade no que diz respeito a estes gastos e acarreta uma limitação do debate,
o qual fica restrito a uma preocupação em reduzir o desvio de recursos e a uma necessidade
de adequação entre receitas e despesas. Como se o problema fosse “saber gastar”, ou seja,
administrar a escassez, o problema da tributação e do orçamento é tratado sem considerar o
conteúdo político por trás destas afirmações.
Consideramos importante ressaltar que os chamados “contribuintes” não constituem
um conjunto homogêneo de pessoas que pagam da mesma forma e têm os mesmos direitos
em relação à forma como eles serão despendidos. Ao mesmo tempo, tanto a arrecadação
quanto o gasto, não se resumem a uma questão técnica e têm como pano de fundo a forma
como a sociedade se organiza e a correlação de forças existentes. Mais do que isso, ao
contrário de neutralidade, a forma como isso acontece, ao mesmo tempo em que é
resultado da luta de classes, interfere nela, podendo contribuir para produzir condições
mais ou menos favoráveis aos trabalhadores.
Partimos do entendimento de que o fundo público é composto por recursos
arrecadados sob a forma de impostos e contribuições pagos tanto pela classe trabalhadora,
quanto por capitalistas. Principalmente nos países em que há uma grande desigualdade de
renda e riqueza, como é o caso brasileiro, esta arrecadação não se dá de forma igualitária,
muito menos progressiva, de modo que a maior parte advém de parcelas significativas do
salário recebido pela classe trabalhadora. Para se ter uma ideia, do total de recursos do
fundo público, mais da metade é arrecadada por meio de impostos indiretos14
14
A tributação indireta é considerada regressiva tendo em vista que recai sobre os contribuintes na mesma
medida, independente do nível de renda de cada um. Sendo assim, o imposto pesa mais no orçamento das
51
famílias que detêm os níveis de renda mais baixos. São considerados impostos indiretos aqueles que incidem
sobre a produção, circulação e consumo de bens e serviços.
15
Muitas foram as contribuições de Mandel para o debate acerca da caracterização do Estado. Uma de suas
preocupações consistiu em analisar como o Estado pode contribuir para interferir de modo a garantir taxas de
retorno mais favoráveis ao capital. As possibilidades elencadas por ele são inúmeras, dentre elas destacamos:
aumento da indústria bélica; ampliação das possibilidades de planejamento e dos mecanismos de socialização
de custos e de perdas nos processos produtivos; garantia das oportunidades de investimento que propiciem
uma valorização mais rápida do capital excedente; utilização de instrumentos que vão desde o manuseio de
políticas anticíclicas até a manipulação ideológica da classe trabalhadora para evitar todo o tipo de revoltas
populares (MANDEL, [1972] 1985).
52
editais realizados com o setor privado, disponibilidade de crédito para as empresas etc.
Este fato repõe o fundo público em um outro patamar, com repercussões sobre os
processos estabelecidos no âmbito do circuito do valor.
Uma das formas em que podemos observar as mudanças na condução do fundo
público diz respeito à ampliação dos gastos com a reprodução da força de trabalho. Este
fato, como já mencionamos, possui um conteúdo contraditório. Se por um lado, representa
uma demanda da classe trabalhadora por melhoria na qualidade de vida, por outro,
De qualquer forma, podemos perceber que “ao lado do déficit público e das receitas
e despesas estatais como proporção do PIB [...] as proporções e o lugar da dívida pública
dos principais países confirmam o lugar estrutural do fundo público na sociabilidade geral”
(OLIVEIRA, Francisco, 1998, p 24). O autor articula, portanto, a importância que o fundo
público passa a ter para a reprodução ampliada do capital ao aumento da dívida pública,
explicitando que este é um dos principais mecanismos do Estado na garantia das condições
de acumulação capitalista.
Para ele, os limites da regulação keynesiana se devem fundamentalmente à
internacionalização financeira e produtiva da economia capitalista. A desterritorialização,
ao promover uma internacionalização da produção, reduz os ganhos fiscais relativos aos
investimentos e a renda, que passam a se dar em diversos países. Ao mesmo tempo, as
demandas, que pesavam sobre o fundo público no sentido de articular e financiar a
reprodução do capital e da força de trabalho, permanecem, embora contem com uma base
de arrecadação menor. Este fato “gera uma crescente incompatibilidade entre o padrão de
financiamento público e a internacionalização produtiva e financeira” (1998, p. 27).
Os elementos teóricos para entender a crise, portanto, estariam centrados no que o
padrão de financiamento público teria produzido, e é aí que aparecem nossas diferenças em
relação à análise do autor. “No fundo, levado às últimas consequências, o padrão do
financiamento público ‘implodiu’ o valor como único pressuposto da reprodução ampliada
do capital, desfazendo-o parcialmente enquanto medida da atividade econômica e da
sociabilidade em geral” (OLIVEIRA, Francisco, 1998, p. 27).
A argumentação de Francisco de Oliveira (1998) passa pelo fato de que a
particularidade da relação contemporânea entre fundo público e cada capital em particular
(no sentido de potencializar a acumulação), teria feito com que o primeiro funcionasse
como um “anticapital”16, assim como os bens e serviços prestados pelo Estado teriam se
tornado “antimercadorias”17. A fundamentação em torno dos reflexos que a mudança do
lugar do fundo público tem sobre a teoria do valor vai longe e ele chega a afirmar que este
16
O fundo público se comportaria como um anticapital tendo em vista que “essa contradição entre um fundo
público que não é valor e sua função de sustentação do capital destrói o caráter auto-reflexivo do valor,
central na constituição do sistema de valorização do valor” (OLIVEIRA, Francisco, 1998, p. 29, grifo do
autor).
17
“Esses bens e serviços [públicos] funcionaram, na verdade, como antimercadorias sociais, pois sua
finalidade não é a de gerar lucros, nem mediante sua ação dá-se a extração de mais valia” (OLIVEIRA,
Francisco, 1998, p. 29, grifo do autor).
55
duas formas: uma parcela vem da mais valia produzida e recai sobre os donos do capital e
a outra consiste em parte do trabalho necessário, parcela do salário pago pelos
trabalhadores na forma de impostos, sobretudo indiretos. Quando falamos em tributação
regressiva, esta última parcela tende a ser maior do que a primeira.
Neste caso, Behring adverte que “a exploração do trabalho na produção é
complementada pela exploração tributária crescente nesses tempos de intensa crise”
(2010, p. 21, grifo da autora), em que a classe trabalhadora, dada a correlação de forças
desfavorável, acaba sendo mais onerada e tendo um menor poder de pressão para
empreender suas disputas pelo fundo público. Esta exploração a que se refere a autora
advém do fato de que a burguesia encontra formas cada vez mais sofisticadas de se
apropriar do valor gerado pela classe trabalhadora.
Não é novidade, para quem tem alguma aproximação com a teoria do valor
desenvolvida por Marx, que a classe trabalhadora contribui para o processo de valorização
por receber um valor menor do que o valor que gera no circuito de produção de
mercadorias. A questão que estamos querendo enfatizar é que, na atualidade, os detentores
do capital vem se apropriando, por meio do Estado, cada vez mais do trabalho necessário.
Significa dizer que, mesmo a parte do valor gerada pela classe trabalhadora que fica sob
seu poder, acaba sendo, em alguma medida, redirecionada para o Estado, sob a forma do
pagamento de impostos. Segundo um documento do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA), com base em dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), intitulado Receita pública: quem paga e como se gasta no Brasil
(BRASIL, 2009), famílias com renda mensal de até 2 (dois) salários mínimos gastam, em
média, 50% de sua renda com o pagamento de tributos, ao passo que aquelas com renda de
mais de 30 salários, pagam menos de 30%.
O investimento em políticas sociais consistiria em uma forma de fazer retornar
parte desses recursos para a classe trabalhadora, por meio da prestação de serviços públicos
voltados para o atendimento das necessidades desse segmento. A universalidade na
prestação desses serviços foi uma característica perseguida de forma mais intensa nos
países europeus do pós-guerra, mas era de alguma forma, o horizonte buscado pelos
Estados mesmo fora desse seleto grupo, ainda que limitado ao plano da retórica.
Como veremos nas seções seguintes, com a crise dos anos 1970, podemos observar
uma alteração significativa na configuração dessas políticas sociais, tanto do ponto de vista
da sua abrangência, quanto dos instrumentos mais utilizados para sua implementação. Em
58
linhas gerais, podemos observar uma redução nas políticas de caráter universal e um
avanço da iniciativa privada na gestão destas políticas18, ao passo que ganham maior
fôlego as políticas de assistência, em especial, as transferências de renda, tendo essas um
papel fundamental no deslocamento de fundo público para as instituições financeiras19
(para maiores detalhes ver, GRANEMANN, 2007; SILVA, 2010).
A parte mais significativa dos recursos públicos, entretanto, retorna para a classe
dominante por meio das ações do Estado para garantir as condições gerais de produção e,
com isso, contrarrestar a tendência decrescente da taxa de lucro. Essas ações podem
acontecer via intervenção direta nos moldes destacados por Mandel ([1972] 1985), mas
vêm se dando fundamentalmente por meio das decisões na condução da política econômica
no sentido de garantir e ampliar a rentabilidade financeira.
Trata-se agora de discutirmos de forma mais cuidadosa o processo de
financeirização, identificando suas raízes e contradições, para que possamos voltar ao
debate das políticas sociais e suas tendências contemporâneas.
18
Um exemplo disso são as Organizações Sociais (OS), mecanismo criado pelo governo Fernando Henrique
Cardoso, em 1998, e que vem crescendo nos últimos anos, usado para passar à iniciativa privada a gestão de
unidades da área da saúde, educação, cultura, dentre outras.
19
Gisele Silva, ao fazer uma análise dos programas de transferência de renda brasileiros, destaca que, “por se
constituírem por meio de repasses monetários não operados diretamente pelo aparato estatal, ambos
remuneram terceiros para a realização destes serviços. Neste caso, remuneram bancos para a realização
destas operações” (2010, p 141). A autora chama, com isso, a atenção para o fato de que parcelas
consideráveis do fundo público são deslocadas para instituições financeiras públicas e privadas, com a
finalidade de operar programas que integram as políticas sociais desenvolvidas pelo governo federal, além de
inserirem os usuários destas políticas no circuito financeiro .
59
O capital financeiro, deste modo, constitui-se por meio da participação ativa dos
bancos na transformação do capital monetário em capital produtivo e não da sua atuação
através da simples concessão do crédito. Lenin complementa a definição de Hilferding
ressaltando que não se trata apenas da relação entre o capital bancário e o capital industrial,
mas de uma determinada forma de junção, que acontece em período histórico específico:
“concentração da produção; monopólios resultantes dela; fusão ou junção dos bancos com
a indústria: tal é a história do aparecimento do capital financeiro e do conteúdo deste
conceit” ([1917] 2012, p. 75).
Este fato se dá, dentre outras formas, por meio da aquisição de ações. O banco-
acionista, uma vez tendo disponibilizado seu capital à empresa, uma sociedade anônima20,
passa a ter direito a uma participação no rendimento desta. Seu retorno não é, portanto,
estabelecido previamente, como acontece com o empréstimo, que é feito como capital
bancário. Na realidade, seu retorno não é nem garantido.
Este rendimento, no entanto, não é completamente indeterminado e as estimativas
são calculadas com base em um estudo pormenorizado da situação da empresa. Hilferding
ressalta que “de modo geral, a insegurança relativa do acionista, talvez maior que a do
20
“[...] a sociedade anônima compõe seu capital juntando porções individuais de capital que, separadamente,
talvez sejam pequenas demais para desempenhar uma função industrial – seja de modo geral, seja no ramo
industrial específico ao qual se restringe a sociedade anônima” (HILFERDING, [1910] 1985, p.124). Neste
sentido, “o capital fragmentado é reunido em forma de um capital fictício. Não se deve pensar, aliás que a
reunião de pequenos capitais, fragmentos eventuais de capitais maiores, tenha a mesma participação que a
dos pequenos capitalistas. Capitais pequenos podem pertencer a capitalistas bem grandes. Os pequenos
capitais dos pequenos capitalistas são mais reunidos pelos bancos do que pela sociedade anônima”
(HILFERDING, [1910] 1985, p. 126).
60
capitalista monetário, rende-lhe certo prêmio de risco” ([1910] 1985, p.112). O banco,
nesta condição, passa a ter acesso à participação direta no lucro da empresa e não a um
fragmento deste sob a forma de juros.
Este poder dos grandes capitalistas é aumentado, por um lado, porque ampliam-se
as possibilidades de investimento e, deste modo, de crescimento e aprimoramento da
capacidade produtiva, e, por outro lado, a fragmentação da propriedade da empresa
aumenta o poder de mando do grande acionista. Este já não precisa mais deter todo o
capital necessário para produzir, basta que detenha a maioria das ações para exercer o total
controle sobre a produção. A situação indicada pode favorecer ainda mais o grande capital,
caso atraia novos investidores, estimulando a intensificação da concentração industrial, o
que acontece com bastante frequência. Como destaca Lenin, “a ‘democratização’ da posse
das ações – da qual os sofistas burgueses e os ‘pseudossocial-democratas’ oportunistas
esperam (ou dizem que esperam) [...] é na realidade um dos meios de reforçar o poder da
oligarquia financeira” ([1917] 2012, p. 77).
O acionista, de uma maneira geral, não precisa ser um capitalista industrial, nem
mesmo entender muito sobre produção para adquirir suas ações. Basta que disponibilize o
capital-dinheiro de que deseja dispor para o capitalista industrial. Este sim vai usar todos
os seus conhecimentos na área para tomar as decisões que lhe cabem. É ele quem tem o
poder de mando sobre o capital.
Sendo capaz de reunir um volume bem maior de capital, estas empresas ampliam as
possibilidades de investimento se inserindo em setores que eram viáveis apenas para o
21
Muitas vezes, não precisa deter nem mesmo a metade do capital. A maioria das ações pode consistir em
maioria absoluta (metade mais um, no caso 51%). Na prática, de uma maneira geral, ela é bem menor, 20 ou
30%, podendo ser até menos, se as ações estiverem muito pulverizadas (nas mãos de muitos pequenos
acionistas).
61
Estado, por conta da magnitude do capital exigido. O investimento pesado em capital fixo
e a ampliação das escalas de produção passam a ser corriqueiros neste estágio de avanço
das forças produtivas, caracterizando o que chamamos de capitalismo monopolista. Um
estágio que, como Netto aponta:
22
Para maior aprofundamento, ver Marx ([1867] 1988a, cap. 23); Marx ([1894] 1988d; [1894] 1988e); Lenin
([1917] 2012); Mandel, ([1972] 1985); Harvey (2004), dentre outros.
62
23
Em termos gerais, chamamos de movimentos cíclicos o que Marx denominou de ciclo industrial; “o curso
característico da indústria moderna, um ciclo decenal, com a intercorrência de movimentos oscilatórios
menores, constituído de fases de atividade média, de produção a todo vapor, de crise e de estagnação [...]”
(MARX, 1980, p. 734).
24
Tomamos hegemonia aqui no sentido gramsciano, ou seja, entendemos que a hegemonia está pautada,
dentre outras coisas, no fato de um grupo ser capaz de universalizar seus interesses particulares.
64
No que toca à Alemanha e ao Japão, por exemplo, o objetivo implícito era, senão
a sua desindustrialização, ao menos a desconcentração do poder econômico, em
mãos dos grandes grupos financeiros daqueles países.
Esta política tinha uma contrapartida em relação aos próprios aliados
americanos, evidenciada nos acordos de Bretton Woods. As regras que dali
resultaram, por sua rigidez, criavam sérias dificuldades para a recuperação
daqueles países. As consequências desta atitude não se fizeram sentir, no
entanto, apenas no plano econômico, mas sobretudo no plano político. E foi,
talvez, movido principalmente por razões políticas que os Estados Unidos se
viram obrigados a alterar sua posição (1994, p. 28).
Pouco tempo depois, em 1947, foi necessário redirecionar o curso das políticas
adotadas. O contexto da guerra fria e a fragilidade com que os países europeus e o Japão se
deparavam acabaram contribuindo para a definição de planos mais efetivos de
reconstrução européia. Tais planos, no entanto, acabaram por impor certos limites ao
poderio norte-americano e à sua capacidade de ditar regras que, como as de Bretton
Woods, reforçavam a posição de subalternidade dos demais países.
Teixeira (1994) ressalta três elementos que caracterizam esta “reviravolta”: a
aprovação do Plano Marshall, voltado para a reconstrução da Europa, envolvia não só a
destinação de recursos, como também criava as condições para uma futura integração
européia (entre os países capitalistas, é claro); aceitação do não-cumprimento de algumas
das regras estabelecidas em Bretton Woods no que diz respeito ao controle cambial, de
modo a permitir que diversos países efetuassem desvalorizações significativas em relação
ao dólar, como forma de garantir a competitividade externa; aceitação, por parte dos
65
Estados Unidos, de algum tipo de protecionismo nas economias européia e japonesa, bem
como a redução do protecionismo na sua economia.
Refeitas as relações do pós-guerra, estavam dadas, no âmbito internacional, as
condições para um processo de crescimento mundial sem precedentes na história do
capitalismo. Processo este em que as bases do pensamento liberal – que propunha a
autorregulação dos mercados e a tendência natural ao equilíbrio e à harmonia – foram
substituídas por um novo paradigma em que se aceitava, por parte da própria elite
capitalista, a existência de mecanismos de regulação não só nas relações internacionais,
como também no interior do Estado-Nação25.
Ainda que esta ideia tenha encontrado forte resistência no pensamento mais
conservador, o fato é que teve força suficiente para criar, no interior dos principais países
capitalistas, instrumentos de indução do crescimento econômico e de minimização dos
efeitos das crises. A busca generalizada dos capitalistas de obter uma rentabilidade segura
impôs limites ao propalado livre-mercado e garantiu uma dose de tolerância à – até então
famigerada – intervenção estatal.
Por outro lado, o movimento operário realizou algumas conquistas e tornou-se
também, menos radical em suas proposições, abrindo mão de lutas mais efetivas em prol
da transformação societária para enveredar por uma luta pautada na garantia de direitos já
adquiridos e pela satisfação de demandas pontuais e fragmentadas (ANTUNES, 1999).
Este quadro, marcado em alguma medida por uma amenização dos conflitos de
classes, estabeleceu-se juntamente com a consolidação do paradigma fordista26 de
produção e constituiu a base de desenvolvimento deste período, cujos efeitos, para o
desenvolvimento do capitalismo, Harvey aponta:
Assim, o período que vai de 1945 a 1970 foi a segunda etapa do regime político
27
da burguesia funcionando sob a égide do domínio e da hegemonia globais-
25
Estas mudanças foram operadas sob a “gestão social” da social-democracia, tendo como pano de fundo,
como já mencionado, uma ordem geopolítica bipolar. Segundo Netto, o desenvolvimento prático-político da
social-democracia se realizou sob pressão em dois níveis “internacional, com a existência do ‘campo
socialista’, com apelo sobre ponderáveis segmentos de trabalhadores e de intelectuais; nacional, com a
existência de núcleos comunistas disputando a direção do movimento operário” (1995, p. 49).
26
Sobre este assunto ver Antunes (1995 e 1999), Gounet (1999), Harvey (1992).
27
A primeira etapa destacada por Harvey (2004) vai do período de 1870 a 1945, a segunda de 1945 a 1970 e
a terceira de 1970 até os dias de hoje.
66
28
Esta dificuldade de conciliação ficou conhecida como “paradoxo de Triffin” em homenagem a Robert
Triffin, primeiro estudioso a identificá-la.
29
Vale lembrar que um dos pontos do acordo firmado em Bretton Woods é a paridade dólar-ouro, de modo
que deveria haver, no território estadunidense, ouro em quantidade suficiente para garantir a paridade.
30
Dentre os principais problemas internos, podemos destacar: no plano produtivo, a redução do impulso
dinâmico, que marcou o período de expansão, decorrente do esgotamento do padrão industrial vigente; com
relação ao setor público, a redução da atividade econômica contribui para diminuir a base de arrecadação ao
mesmo tempo em que aumenta as demandas que recaem sobre o Estado; “quanto aos salários, sempre
apresentados como responsáveis pelas tendências aparentes de profit squeeze, experimentavam um duplo
movimento: os salários nominais subiam, em consequência do último miniboom sincronizado antes do
choque do petróleo (1970-1973), quando se verificou uma modificação dos preços relativos favorável às
matérias-primas e aos alimentos (TEIXEIRA, 1994, p. 33).
67
americana. Este fato influenciava todos os países com reservas em dólar, de modo que a
crise doméstica estava sendo exportada para os demais países que dependiam desta moeda
para efetuar as transações internacionais. Em outras palavras, havia um excesso de liquidez
no mercado de dólares do mundo e um sistema artificial de manutenção do valor dessa
moeda. Este quadro parecia difícil de ser alterado. As dificuldades em se desvalorizar o
dólar unilateralmente residiam no fato de que vários países já haviam alertado que
desvalorizariam suas moedas na mesma intensidade, anulando deste modo, o efeito que se
pretendia obter.
Se, para o governo dos Estados Unidos, a situação exigia cautela, para as empresas
multinacionais norte-americanas, por outro lado, havia um crescente estímulo para
aumentar o investimento e a produção no exterior, dado o desequilíbrio entre a paridade
oficial e a cotação de mercado do ouro em dólares. Deste modo, esta situação favorecia a
saída de capital produtivo dos EUA, intensificando o quadro de inflação e de desemprego
neste país. Ao mesmo tempo, este contexto contribuía para um desestímulo cada vez maior
às exportações e estímulo às importações, o que agravava ainda mais o desequilíbrio do
Balanço de Pagamentos desta superpotência.
Está presente aqui a intensificação de uma contradição apontada por Harvey (2004)
na análise do “imperialismo capitalista”, no que diz respeito à lógica territorial do poder e a
lógica capitalista do poder. Esta seria a contradição fundamental presente na constituição
do imperialismo e abarca a interrelação entre o domínio econômico e político. Uma de suas
expressões passa pelo fato de que o capitalista procura vantagens individuais e deseja
aplicar seu capital onde quer que vislumbre possibilidades de lucro. Já o homem de Estado
busca manter e aumentar o poder de seus próprios Estados. Ele “procura vantagens
coletivas, vendo-se restringido pela situação política de seu Estado, sendo em algum
sentido responsável perante uma comunidade de cidadãos ou, o que é mais frequente,
perante um grupo de elite, uma classe, uma estrutura de parentesco ou algum grupo social”
(2004, p. 32). Cabe ao Estado imperialista, por meio das estruturas institucionais, procurar
estabelecer um direcionamento ao processo de tomada de decisões, procurando atenuar
esta contradição e estabelecer o cenário em que se favoreça a acumulação capitalista
juntamente com o aumento do poder político31.
31
Ainda assim, em muitos momentos esta contradição aparece de forma inconteste. O autor cita o exemplo
da Guerra no Vietnã ou a invasão no Iraque, como momentos que passam mais pela necessidade de
demonstração de força por parte do Estado, do que de uma demanda da acumulação capitalista. “A relação
68
Sendo assim, diversas foram as medidas adotadas para conter o fluxo de saída de
capitais, uma das mais significativas na direção de um controle efetivo deste desajuste foi a
criação do Imposto de Equalização dos Juros (IEJ) em 1963. O IEJ surgiu como forma de
conter os empréstimos que estrangeiros contraíam nos Estados Unidos, através do
estabelecimento de um acréscimo para a taxa de juros, na tentativa de restringir a função de
“banqueiro do mundo” e, deste modo, impor limites à sangria de recursos que assolava a
economia norte-americana.
Podemos observar, a partir deste momento, a ida dos bancos para o exterior. A
abertura de filiais fora do território nacional, se já era um movimento comum entre as
empresas do setor produtivo (e que estava se intensificando), passou a proliferar também
no setor bancário32.
Esta foi a estratégia encontrada para fugir da regulamentação econômica cada vez
maior do governo. Tivemos, a partir daí, a consolidação de um mercado de dólares fora dos
Estados Unidos, o chamado euromercado, o qual não tinha nenhum tipo de regulamentação
e que passou a movimentar bilhões33 de dólares, constituindo o que Chesnais coloca como
sendo o “primeiro elo no nascimento dos todo poderosos mercados financeiros de hoje”
(1996, p. 251). Sua expansão representou uma considerável ampliação do sistema bancário
privado, fato que acentuou o processo de transnacionalização do sistema capitalista e
refletiu uma busca, por parte dos bancos norte-americanos, em se manter como mediadores
das relações de produção34.
entre estas duas lógicas deveria, pois, ser vista como problemática e muitas vezes contraditória (ou seja,
dialética) em vez de cooperativa ou unilateral. Essa relação dialética cria o arcabouço para uma análise do
imperialismo capitalista em termos da interseção destas duas lógicas diferentes mas interligadas. A
dificuldade que afeta análises concretas de situações concretas é manter os dois lados dessa dialética em
movimento simultâneo, sem cair no modo de argumentação puramente político ou predominantemente
econômico” (HARVEY, 2004, p. 34).
32
A atuação de bancos norte-americanos fora dos Estados Unidos estava presente antes da Segunda Guerra
Mundial, mas depois da guerra, ela cresceu significativamente. No entanto, foi apenas em meados da década
de 1960 que começou a ganhar força. “Em 1963, de acordo com informação do Morgan Guaranty Trust Co.,
cerca de 72 por cento dos títulos internacionais foram emitidos nos Estados Unidos. Em 1964, a percentagem
caiu para 55 por cento, e em 1968 baixou mais: 28 por cento” (MOFFIT, 1984, p. 45).
33
Para Chesnais, “a diferença [do euromercado em relação aos demais mercados] está relacionada à
existência de um multiplicador de criação de crédito, baseado nas longas e imbricadas cadeias de operações,
bem como na pirâmide de créditos e dívidas que ia sendo montada, graças ao caráter interbancário do
mercado e à ausência de reserva obrigatória e de mecanismos de controle” (1996, p. 255).
34
O objetivo destes bancos, inicialmente, era não perder seus clientes preferenciais — as grandes corporações
que passaram a tomar empréstimos junto a bancos europeus.
69
35
“Na prática, isso só é normalmente possível no caso do capital constante circulante, e não do capital
constante fixo – em outras palavras, quando o capital de uma firma ou de uma indústria ou um país tem
acesso a matérias-primas que são mais baratas do que aquelas com que outros capitais se veem obrigados a
operar” (MANDEL, [1972] 1985, p. 53).
70
36
A este respeito Mandel faz uma ressalva que consideramos oportuno resgatar: “É evidente que estas ‘ondas
longas’ não se manifestam de maneira mecânica, mas operam através da articulação dos ‘ciclos clássicos’.
Numa fase de expansão, os períodos cíclicos de prosperidade serão mais longos e mais intensos, e mais
curtas e mais superficiais as crises cíclicas de superprodução. Inversamente, nas fases da onda longa, em que
prevalece uma tendência à estagnação, os períodos de prosperidade serão menos fervis e mais passageiros,
enquanto os períodos das crises cíclicas de superprodução serão mais longos e mais profundos. A ‘onda
longa’ é concebível unicamente como resultado destas flutuações cíclicas, e jamais como uma espécie de
superposição metafísica dominando essas flutuações” ([1972] 1985, p. 85).
71
37
Com relação a alteração na correlação de forças entre o capital e o trabalho a partir do esgotamento do
padrão de acumulação vigente ver, Antunes (1995 e 1999) e Harvey (1992).
72
EUA deixam de ter uma posição industrial incontestável pelos outros países e, ao
mesmo tempo, deixam de cumprir o papel que lhes tinha sido atribuído em
Bretton Woods (1996, p. 250).
38
As mudanças implementadas no Japão deram origem ao modelo de acumulação flexível, que
posteriormente foi exportado para os demais países, sofrendo alterações em função das particularidades de
cada região. Ver Harvey (1992).
73
vez maior, ainda que esta autonomia permaneça relativa (DUMÉNIL ; LEVY, 2003;
CHESNAIS, 2003 , 1996).
Braga chama a atenção para alterações importantes nos mecanismos existentes para
financiar a produção, os quais, durante muito tempo, estiveram baseados “nos lucros
internos das empresas, no crédito bancário de curto e médio prazos e no funding estável do
mercado acionário de títulos, proporcionado pelos fundos de pensão e seguradoras” (1997,
p. 201). Os “anos dourados” marcaram um período em que uma série de regras e
comportamentos contribuíam para imprimir um caráter, de certa forma, disciplinado ao
mercado financeiro. Isto pode ser percebido tendo em vista que sua estabilidade estava, em
grande parte, fundada no controle inflacionário e na resistência a grandes movimentos de
cunho especulativo, através da manutenção das ações em carteira por longos períodos.
Depois da crise que pôs fim a este período – cujos elementos foram, em linhas
gerais, mencionados anteriormente –, Chesnais (1996) aponta que houve uma
intensificação da preocupação em dar às finanças o mesmo tratamento dado à outra
indústria qualquer39. Elas passaram, cada vez mais, a se distanciar do papel de instrumento
para melhorar a alocação de recursos produtivos e se aproximaram da função de geradoras
de lucros como qualquer outro setor. Propagou-se, cada vez mais, um entendimento de que
a atividade financeira deve ser marcada pelo caráter transnacional, competitivo e que deve
gerar lucro como forma de estimular a abertura dos mercados, em especial o de capital, ao
mercado internacional.
Para alimentar este processo, tomou força, de forma indiscutível, um movimento
voltado para tornar imperativos diversos mecanismos em direção à liberalização de capitais
e à desregulamentação. Podemos observar uma quantidade cada vez maior e mais variada
de “produtos financeiros”, o que demarca o aumento no volume e a complexificação das
transações financeiras que são efetuadas. Esta dinâmica específica das finanças alimenta-se
39
Chesnais regata que “foram necessários mais de dois séculos, desde o escândalo de Law até as medidas
estabelecidas após a grande onda de falências bancárias dos anos 30, para criar um conjunto de regras
enquadrando, tanto quanto possível, a atividade financeira; em particular, estabelecendo estrito controle sobre
a criação de moeda de crédito pelos bancos. Para acabar com elas, foram suficientes uns vinte anos”. O autor,
ao qualificar as finanças como “indústria” retoma as palavras de Régnier e ressalta, como característica deste
momento que: “o comércio de dinheiro e valores é encarado como atividade transnacional, objeto de
competição, no plano mundial, entre agentes que procuram explorar da melhor forma suas próprias
vantagens comparativas. Elas não são diretamente encaradas como meio de melhorar o processo de alocação
de recursos no interior da economia britânica, e sim – tal como uma indústria de exportação – de explorar um
certo know-how, a fim de extrair uma parte da renda mundial” (1996, p. 240).
74
40
É importante destacar que este é um processo aconteceu principalmente nos Estados Unidos em razão da
forte regulamentação bancária.
41
Braga aponta que: “Num sistema baseado no crédito bancário, [...] a parceria entre financiador e financiado
é maior, reduzindo os riscos de imobilização do capital, de iliquidez e de insolvência, e encurtando as
manobras de ganhos especulativos” (1997, p. 202).
75
[...] a posição hegemônica americana tornou possível, nos últimos anos, operar a
lógica da financeirização e as políticas de globalização em favor de sua
performance econômico-financeira, ao passo em que a difusão deste padrão de
financeirização global não tem revelado nos demais países o mesmo “sucesso”
do país central, nos últimos anos (1997, p. 211).
42
Nas palavras do autor: “o termo ‘mundialização do capital’ designa um quadro político e institucional no
qual um modo específico de funcionamento do capitalismo foi se constituindo, desde o início dos anos
[19]80, em decorrência das políticas de liberalização e de desregulamentação das trocas, do trabalho e das
finanças adotadas pelos governos dos países industriais, encabeçados pelos Estados Unidos e pela Grã-
Bretanha” (CHESNAIS, 1997, p. 7).
43
Vale ressaltar que o autor entende o capital financeiro como sinônimo do capital portador de juros, em uma
concepção, portanto, diferente da que discutimos neste trabalho. Em um de seus artigos, esta denominação
fica clara: “o capital portador de juros (também designado ‘capital financeiro’ ou simplesmente ‘finança’)”
(CHESNAIS, 2005, p. 35).
77
com os desdobramentos que ele vem dando aos seus estudos, sobretudo no que diz respeito
ao lugar que as finanças têm hoje na dinâmica de acumulação capitalista.
Em que pese a preocupação constante, em suas obras iniciais, em articular as
mudanças na produção com a intensificação dos fluxos financeiros e de, por vezes,
salientar o caráter relativo da autonomia das finanças, acreditamos que existem algumas
contradições na sua argumentação. Ao que nos parece, além de ser tímido o seu esforço de
explicar as determinações que levaram a um regime de predominância financeira, ele põe
tanto peso no controle das finanças que chega a afirmar que “a acumulação industrial não
está mais orientada, no centro do sistema, para a reprodução ampliada” (1997, p. 28).
Esta análise vai ganhando mais força na sua argumentação ao longo do tempo,
fazendo com que o autor vá paulatinamente se afastando da discussão, baseada em Marx,
da indissociável relação entre produção e finanças (1996, p. 146-147, por exemplo), para
uma análise em que afirma serem as finanças exteriores à produção44 (2005, p. 52-56).
Ele mesmo sinaliza, no prefácio de um de seus livros, um momento desta mudança:
44
O curioso é que o autor fundamenta sua análise com base no Livro Terceiro d’O Capital de Marx. Segundo
Chesnais (2005, p. 53), o autor nesta obra “desenvolve uma teoria da ‘autonomia’ da finança que é
acompanhada de uma problemática de sua ‘exterioridade à produção’”. Como procuramos demonstrar,
discordamos radicalmente desta interpretação.
78
Este fato vem conduzido a discussão do economista francês para uma certa
oposição entre finanças e produção, que aponta para uma autonomização da primeira em
relação à segunda. Não queremos, com esta crítica, dizer que esta oposição não exista.
Como ambas se alimentam da mesma fonte, existe entre elas uma disputa pela apropriação
da mais valia, que pode, inclusive, levar a conflitos entre as frações de classe burguesas.
Mas produção e finanças formam uma unidade dialética que impõe um objetivo comum
qual seja, o aumento da exploração do trabalho no âmbito da produção, dado que este é o
lócus por excelência do processo de valorização do capital. Fora dele, o aumento da
rentabilidade representa tão somente uma punção da mais valia já produzida ou uma
expectativa em relação a mais valia futura, nunca um processo de valorização.
Sendo assim, a financeirização carrega em si não somente uma intensificação dos
fluxos financeiros sem precedentes45, mas uma pressão para aumentar as bases de extração
da mais valia que dê conta de alimentar a rentabilidade financeira. A grande contradição
que este processo encerra é que, mesmo estando nas finanças a rentabilidade mais atraente
– o que mobiliza uma parte cada vez mais significativa de recursos nesta direção – é
somente o investimento produtivo que pode sustentar esta dinâmica.
Em outras palavras, ainda que estejamos vivendo um período de hegemonia do
capital rentista, a centralidade na acumulação segue sendo do capital produtivo. É esta a
tensão que marca o período atual e que precisa ser enfatizada na análise. Nossa
preocupação é que a ideia de um “regime de acumulação de dominância financeira”, dada
a sua imprecisão, possa levar a uma interpretação de que a finança prescinde da produção
por ter se tornado o espaço privilegiado da acumulação capitalista contemporânea. Nos
parece que Chesnais vêm caminhando a passos largos nesta direção.
Reconhecer o significativo crescimento dos fluxos financeiros – e o direcionamento
que este novo padrão de acumulação vem atribuindo à relação entre o setor produtivo e o
financeiro –, sem se deixar seduzir pelo canto da autonomização, requer firmeza na
compreensão da teoria do valor de Marx. Suas elaborações permanecem atuais e as crises
45
Chesnais traz dados consistentes que ajudam a ilustrar o crescimento exagerado das finanças. Segundo ele,
“no fim dos anos [19]90, o volume de ativos em posse do conjunto dos investidores institucionais
ultrapassava U$36 trilhões. Esses haveres representavam em torno de 140% do PIB dos países da zona da
OCDE [Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico]. Mas, em alguns países, a relação
entre ativos financeiros e o PIB – que representa as pretensões de apropriação da produção econômica
presente e futura – é muito mais elevada: 226% no caso do Reino Unido, 212% nos Países Baixos, 207% nos
Estados Unidos, 200% na Suíça. Ao longo da década, o crescimento do valor dos ativos dos investidores
institucionais se fez a um ritmo sustentado, mais de 11% em média durante o período” (2005, p. 43-44).
79
recentes são uma prova de que, ainda que o crescimento quantitativo (volume) e qualitativo
(sua diversificação e complexificação) das finanças pareça descolar do mundo produtivo, a
lei do valor acaba se impondo em algum momento e “estourando” as enormes bolhas
especulativas, fazendo desaparecer milhões e transformando em pó uma rentabilidade que
era, na realidade, puramente fictícia.
Este deve ser o fio condutor das análises acerca da intensificação das transações
financeiras presentes desde o início da década de 1980. Sabemos que esta teve, como
marco, a implantação dos governos neoliberais de Thatcher (1979) e Reagan (1980), na
Inglaterra e nos EUA, respectivamente. São os governos destes dois países os detentores da
paternidade do que podemos chamar de sistema contemporâneo de finanças, tendo os EUA
um papel preponderante46.
As mudanças, entretanto, não se restringiram à liberalização dos fluxos financeiros.
Passaram também pela imposição de ajustes fiscais e de uma reconfiguração do Estado no
sentido de liberar recursos para arcar com a dívida pública, que passa a crescer em espiral,
alimentando os ganhos do capital rentista. Deste modo, esta década foi marcada, também,
assim como as que se sucederam, por alterações consistentes na concepção de Estado e de
seu papel regulador. As políticas keynesianas e desenvolvimentistas foram
responsabilizadas pela inflação e por boa parte dos problemas existentes no campo
político-econômico.
A ideia de um excessivo gasto público, principalmente no que diz respeito aos
gastos sociais, e que teria conduzido os países a uma “crise fiscal”, tomou força e colocou
na ordem do dia as discussões relativas à necessidade de promover políticas de equilíbrio
fiscal, privatização e abertura econômica. Esta seria a forma de aumentar a competitividade
e devolver aos mercados o seu dinamismo, bem como a capacidade de ditar as regras e
trazer de volta a “eficiência”. A redução do Estado na área social, associada a medidas
como a flexibilização das leis trabalhistas, tornaram-se, supostamente, um imperativo para
sair da crise vivida na década de 1970.
Ao mesmo tempo, o aumento da pressão por ampliar as bases de extração de mais
valia contribuíram para aumentar a exploração e por uma busca crescente de impor limites
46
O governo Thatcher teve um papel fundamental na legitimação do neoliberalismo, mas não dispunha do
mesmo poder que Reagan, nos Estados Unidos, para impor aos demais países as mudanças requeridas por
este novo padrão de acumulação.
80
à capacidade de resistência dos trabalhadores. Tivemos, durante este período, uma redução
significativa do poder dos sindicatos e dificuldades cada vez maiores a serem enfrentadas,
dadas pelo aumento crescente do desemprego, da precarização do trabalho e da
fragmentação da classe trabalhadora (aumento do trabalho terceirizado, subcontratado,
temporário, parcial e todas as suas variações).
Harvey chama a atenção para o fato de que as lutas de classe passam a ser pautadas
pelos ajustes estruturais impostos pelas organizações multilaterais e pelas privatizações. “O
tom do antiimperialistmo começou a deslocar-se para o antagonismo aos principais agentes
da ‘financeirização’ – com o FMI e o Banco Mundial apontados diretamente” (2004, p.
61). A classe trabalhadora encontrou uma grande dificuldade para travar suas lutas, muitas
vezes se limitando a buscar reduzir o ritmo das mudanças ou a garantir os direitos já
conquistados do que a avançar nas suas reivindicações.
Percebemos, portanto, uma forte relação entre a crise do capital e sua forma de
buscar superá-la, trilhando os caminhos da financeirização, e as alterações no chamado
“mundo do trabalho”, com desdobramentos significativos sobre as mais variadas
expressões da questão social e sobre a forma como o Estado responde a estas expressões.
Foi neste contexto, que podemos observar novas configurações na inserção de parte
dos países dependentes47. Estas alterações constituíram uma etapa importante neste
processo de (re)integração por viabilizar de forma inconteste a expansão financeira e
garantir um vasto mercado a ser ocupado. Fiori ressalta muito bem esta preocupação em
incorporar um número cada vez maior de mercados a fim de ampliar as possibilidades de
ganho do capital. Ao mencionar o período pós-1990, ele fala da incorporação dos
chamados “mercados emergentes”:
47
Convém ressaltar que esta (re)inserção não engloba todos os países dependentes. Estamos falando
basicamente de alguns países da América Latina e Ásia.
81
1980 passou sempre pela imposição de uma série de medidas que explicitavam a
“necessidade” de um redirecionamento político e econômico que conduziria à resolução de
todos os problemas e traria de volta o tão sonhado crescimento.
A nova estratégia dos Estados Unidos para as economias dependentes pode, em
linhas gerais, ser traduzida pela passagem de Fiori:
mais uma vez, o imperativo em se abrir novos espaços de acumulação capitalista para
conter a crise e uma eventual contestação do poder imperialista.
A grande questão que aparece para pensarmos é: por quanto tempo será ainda
possível sustentar este padrão de acumulação, dado que ele aprofunda as contradições
essenciais deste modo de produção? Ao se sustentar nas finanças – hipertrofiadas – e
impor, ao processo de produção de mercadorias, bases de extração de mais-valia cada vez
mais acentuadas (em uma combinação de mais-valia relativa e absoluta), amplia e
complexifica as expressões da questão social, contribuindo para que a organização coletiva
da classe trabalhadora se torne tanto mais difícil quanto necessária.
48
Para citarmos o caso brasileiro, podemos dizer que, dada a imensa regressividade que caracteriza a nossa
estrutura tributária, parte significativa do fundo público é composta por recursos vindos do trabalho
necessário. Em outras palavras, dos valores produzidos pela classe trabalhadora, parte é apropriada pelo
capitalista, sob a forma de mais valia (trabalho excedente). Do que a classe trabalhadora recebe, ou seja, de
seu salário (trabalho necessário), parte se destina ao pagamento de impostos (sejam eles diretos ou indiretos).
Se levarmos em consideração que quase metade do orçamento anual do governo federal é utilizada para o
pagamento de juros e amortizações da dívida pública, vemos o imenso papel do Estado no sentido de
alimentar o capital que porta juros e que isso é feito as custas de recursos da classe trabalhadora.
84
capital, ganha ares de benefícios para toda a coletividade, universalizando interesses que
são, na verdade, exclusivos à grande burguesia.
No caso brasileiro, podemos destacar diversos mecanismos, criados no Governo
Fernando Henrique Cardoso, com o objetivo de favorecer o pagamento de juros e,
portanto, a rentabilidade auferida na esfera financeira. Dentre eles destacamos: a política
de juros altos, a definição de metas de superávit primário (1998), a Lei de
Responsabilidade Fiscal (LRF/2000) e a Desvinculação de Receitas da União
(DRU/2000)49. Medidas que favorecem a alocação de boa parte dos recursos públicos no
pagamento de juros e amortizações da dívida pública, como veremos mais detalhadamente
no último capítulo.
A DRU, por exemplo, permite que até 20% das receitas de contribuições sociais
(excetuando as previdenciárias) – ou seja, parte significativa das receitas do orçamento da
Seguridade Social –, seja desvinculado e repassado para o orçamento fiscal para ser
destinado às despesas, por exemplo, com o serviço da dívida, comprometendo os gastos
com Saúde, Assistência Social e Previdência Social50. Para se ter uma ideia do montante de
recursos, de 2007 a 2010, a DRU desvinculou R$ 195,3 bilhões, segundo dados divulgados
no site do Senado Federal51.
Os grandes beneficiados por estas medidas podem ser identificados quando
examinamos os principais credores do Estado, ou seja, os que detêm os títulos da dívida e
que, portanto, têm acesso aos recursos públicos por meio do pagamento dos juros da
dívida. O gráfico 1 mostra os principais detentores da Dívida Pública Mobiliária Federal
Interna em 2011:
49
Ainda quef a DRU seja de 2000, ela tem sua origem em 1994, por meio da criação do Fundo Social de
Emergência (FSE). Em 1996 passa a se chamar Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) e somente em 2000 é
que recebe o nome que vigora até hoje.
50
“As contribuições sociais fazem parte do Orçamento do setor público, e financiam os gastos com saúde,
assistência social e previdência social. Em 2012, estão estimadas em R$ 522 bilhões. Todavia, desse total,
272 são as previdenciárias (que não são submetidas aos efeitos da DRU). Ou seja, a DRU incide sobre 302
bilhões, que é o que totalizam as contribuições sociais exceto as previdenciárias. A desvinculação em 2012
vai ser, portanto, de R$ 60 bilhões, ou seja, 20% dos 302 bilhões”. Disponível em:
http://www12.senado.gov.br/noticias/entenda-o-assunto/dru. Acesso em 20/05/2012.
51
Disponível em: http://www12.senado.gov.br/noticias/entenda-o-assunto/dru. Acesso em 20/05/2012.
86
Como podemos ver, mais de 70% dos títulos da dívida estão sob o poder de
Instituições Financeiras (31,5%), Fundos de Investimento (25,3%) e Fundos de
Previdência (15,4%). Estes têm acesso a parcelas expressivas do fundo público e é na
garantia de seus interesses de classe que muitos recursos são drenados das políticas sociais
para assegurar os compromissos assumidos com a dívida pública.
Um outro argumento que nos ajuda a pensar o lugar que a dívida pública tem hoje
na reprodução do capital foi a reação à última crise mundial, que “estourou” no final de
2008. Ainda em 2007 o Banco Central Europeu destinou o equivalente a R$ 405 bilhões
para empresas em dificuldade. Este valor correspondia a cerca de metade das reservas
daquele ano, segundo João Alexandre Peschanski (2012).
A maneira encontrada por diversos países, principalmente na Europa, de conter
esta crise e o consequente repasse de recursos para o setor privado, foi o aumento brutal da
dívida pública, fato que fez com que esta passasse a ocupar uma posição privilegiada nos
noticiários de todo o mundo. “A dívida global da União Europeia em 2010 chegou a 80%
52
A categoria “Governo” abrange todos os fundos cuja gestão é de responsabilidade do setor público,
inclusive aqueles que envolvem recursos privados.
87
53
“Na União Europeia, a taxa média de desemprego aumentou cerca de um ponto percentual entre 2005 e
2011, quando chegou a 10%. Na Grécia, Espanha e Portugal, chegou respectivamente a 14%, 17% e 21%; em
países do Leste europeu, como Estônia, Letônia e Lituânia, o desemprego chegou a seus níveis mais altos
desde os anos 1980. Em toda a Europa, o desemprego atingiu 22% da população entre 18 e 24 anos,
chegando a 46% na Espanha e 40% na Grécia” (PESCHANSKI, 2012) .
54
“As contrarreformas no âmbito dos sistemas de proteção social atingiram todos os países europeus na
década de 1990-2000 e alteraram profundamente sua lógica redistributiva, afetando a potencialidade
histórica, ainda que limitada, de redução da desigualdade social no capitalismo. A crise 2007/2008 e o
agravamento da pobreza e das desigualdades, conforme demonstrado, já são analisados como resultado das
mudanças do papel do Estado na regulação econômica e social, mesmo pelos analistas mais refratários à
crítica marxista” (BOSCHETTI, 2012b, p. 778).
88
Por meio da relação entre a dívida pública e o PIB de um país temos um indicador
que procura tornar mais comparáveis as dívidas de países de dimensões muito diversas.
Assim, a magnitude da dívida articula-se à capacidade de produção. Este é um elemento
que nos parece muito significativo para analisarmos a iniciativa dos Estados de tentar
garantir a rentabilidade do capital fictício, mas insuficiente para identificarmos o quanto
exatamente isto significa em termos de recursos que são destinados para arcar com os
compromissos decorrentes da dívida.
Se quisermos identificar a relação entre a dívida e o fundo público, precisamos
investigar o quanto dos recursos são efetivamente destinados para este fim. Para tanto, é
preciso ver o quanto cada país tem despendido com a dívida. A tabela 1 ilustra este fato
com um pouco mais de precisão. Ela nos mostra a dívida total em relação ao PIB e os
gastos com o pagamento de juros, em 2010 e 2011, dos cinco países mais endividados e do
Brasil55.
Tabela 1 – Dívida total e gastos com o pagamento de juros em 2010 e 2011 (%)
2010 2011
País Dívida Pgto de juros da Dívida Pgto de juros da
total/PIB (%) dívida/PIB (%) total/PIB (%) dívida/PIB (%)
Japão 199 1,43 209,20 0,80
Grécia 143 5,47 154,80 6,50
Itália 119 4,53 119,80 4,20
Irlanda 95,7 3,20 112,60 3,20
Portugal 93 3,04 103,50 3,40
Brasil 59 5,10 57,40 4,90
Fonte: Economist Intelligence Unit (EIU), divulgados pela BBC Brasil. Elaboração nossa.
55
Os dados são referentes a uma pesquisa realizada pelo Economist Intelligence Unit (EIU) e divulgados
pela BBC Brasil. Nela foram pesquisados 25 países, além de feita uma compilação dos dados da União
Europeia. Os países pesquisados, em ordem descrescente de endividamento foram: Japão, Grécia, Itália,
Irlanda, Portugal, Canadá, Alemanha, União Europeia, França, Grã-Bretanha, Estados Unidos, Espanha,
Brasil, Índia, Argentina, Turquia, México, África do Sul, Indonésia, Venezuela, Austrália, Coreia do Sul,
China, Arábia Saudita, Chile, Rússia. Disponível em:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/07/110727_divida_brasil_juros_rw.shtml#pagamentos.
Acesso em 26/02/2012.
89
exemplo, país que tinha uma dívida equivalente a mais de duas vezes o seu PIB em 2011
(209,20%), gastou menos de 1% com o pagamento de juros. O Brasil, que está em 12º
lugar no ranking dos países mais endividados, é o segundo país que mais gasta com os
juros da dívida em relação ao PIB, 4,9%. Perde somente para a Grécia, com 6,5%, um dos
países mais afetados pela crise e que vem sofrendo uma enorme pressão para efetuar um
duríssimo ajuste fiscal, o qual já se encontra em andamento.
Estes dados nos ajudam a perceber que, embora possamos observar uma tendência
nos países capitalistas como um todo de buscar transferir os prejuízos do setor privado para
os Estados e, mais do que isso, de usar o recurso à dívida para realizar este objetivo,
existem contornos diferenciados em cada país. Nos Estados que ocupam uma posição, em
alguma medida, mais dependente frente ao imperialismo e em que há maiores fragilidades
inclusive do ponto de vista da organização dos trabalhadores, a sangria de recursos para o
pagamento de juros é maior em relação ao orçamento total.
No caso do Brasil, por exemplo, as altas taxas de juros, o parco sistema de controle
de capitais e todo um aparato legislativo contribuem para que os objetivos de arcar com as
obrigações financeiras se sobreponham a todas as outras “prioridades” definidas pelo
governo.
Para se ter uma ideia, Maria Lúcia Fattorelli Carneiro fez um estudo acerca da
carga tributária no período de 1995 a 2005, e concluiu que “praticamente todo o aumento
da carga tributária ocorrido nos últimos anos foi destinado ao cumprimento da meta de
superávit primário” (CARNEIRO, 2007, p. 147). De lá para cá, não houve nenhuma
mudança, do ponto de vista estrutural, na condução da política econômica governamental.
Trata-se portanto, de uma decisão política que expressa as prioridades do governo com o
pagamento da dívida em detrimento de gastos que beneficiem a classe trabalhadora.
Em suma, tanto o tamanho da dívida quanto sua gestão não envolvem questões
puramente técnicas. Ao contrário, tratam-se de decisões políticas que envolvem a defesa
dos interesses do grande capital e que têm por base uma determinada correlação de forças
entre estes e a classe trabalhadora. O grande desafio que encontramos é o de expor o
significado desta política de pagamento de juros e questionar o caráter inexorável que é
dado a esta. Por mais que existam limites na possibilidade de canalizar os recursos do
fundo público para atender às demandas da classe trabalhadora, consideramos que esta luta
é fundamental, tendo em vista que confronta diretamente os interesses do grande capital.
90
Mas sabemos que nem todos os recursos nas mãos destas instituições vão para a
esfera financeira. Especialmente no caso do Estado, uma parte vai para financiar o gasto
com políticas sociais. Entretanto, dado o caráter contraditório das políticas sociais e as
dificuldades que a classe trabalhadora vem enfrentando para fazer valer seus interesses, a
forma como estas políticas vem sendo geridas tem sofrido uma forte reconfiguração,
abrindo espaço cada vez maior para a iniciativa privada. Deste modo, ao mesmo tempo em
que atendem, de alguma forma, às reivindicações da classe trabalhadora, servem como
base para garantir a rentabilidade do capital, de forma que o Estado vai complexificando
cada vez mais sua capacidade de garantir as “condições gerais da produção”, nos termos de
Mandel ([1972] 1985) e remodelando sua forma de configurar e implementar as políticas
sociais.
56
O capitalismo tardio, nos termos em que Mandel se refere e que dão título a sua obra mais madura, faz
parte de uma periodização do desenvolvimento capitalista e identificaria o período que vai do pós-segunda
guerra até os dias de hoje. O sentido, portanto, é diferente do atribuído por João Manuel Cardoso de Melo em
livro homônimo. Nesta, o termo capitalismo tardio, apesar de dar nome a sua obra, quase não aparece no
texto, preferindo o autor utilizar o termo capitalismo retardatário. O significado também é diferente e refere-
se ao processo de constituição do capitalismo na América Latina, sendo o foco de análise a particularidade
brasileira. Assim, o termo não está relacionado a uma periodização da história do capitalismo, mas a uma
forma específica de gestação e consolidação deste modo de produção na periferia do sistema (ver MANDEL,
[1972] 1985; MELO, 1991).
57
“O Estado burguês é um produto direto do Estado absolutista, gerado pela tomada do poder político e de
sua maquinaria institucional pela classe burguesa. Mas é também uma negação deste último, pois o Estado
burguês clássico da época da ascensão vitoriosa do capital industrial era um estado ‘fraco’ por excelência –
porque se fazia acompanhar pela demolição sistemática do intervencionismo econômico dos Estados
absolutistas, que impedira o livre desenvolvimento da produção capitalista enquanto tal” (MANDEL, [1972]
1985, p. 335).
58
Harvey parece reforçar esta análise de Mandel, ao afirmar que: “Depois de ler Marx, é muito difícil
imaginar o nascimento do capitalismo sem o exercício do poder estatal e sem a criação de instituições
estatais, que prepararam o terreno para a emergência das relações sociais capitalistas inteiramente
desenvolvidas. Contudo, estamos muito seduzidos pela imagem de uma base econômica (e de uma
superestrutura que meramente reflete a base), e tendemos a pensar a respeito do Estado num papel totalmente
passivo em relação à história capitalista” (2006, p. 92).
92
59
Segundo Mandel ([1972] 1985), esta autonomização é decorrente de dois fatores: a predominância da
propriedade privada e a concorrência capitalista. Mas esta autonomia é sempre relativa, dadas as disputas
intra e entre as classes sociais, as quais acabam pressionando o Estado em favor de uma ou de outra decisão
na busca pela satisfação dos seus interesses.
93
significativo aumento da indústria bélica que, além de ampliar o aparato estatal, cumpre
uma dupla função: funciona como uma fonte de acumulação de capital e contribui na
defesa dos interesses de uma potência em relação às outras;
II) crescimento do movimento operário e de sua influência política. Temos, com isso, a
necessidade de aumento da função integradora do Estado, fato que leva a uma aparente
sensação de acesso da classe trabalhadora ao processo de tomada de decisões. Ao mesmo
tempo, assistimos a um deslocamento do centro da dominação política – que deixa de estar
no parlamento e direciona-se para os escalões superiores da administração estatal e,
portanto, menos acessível para a classe trabalhadora;
III) ampliação geral da legislação social. Esta ampliação contém um elemento contraditório
à medida que, se por um lado é fruto de uma concessão da classe dominante decorrente de
um processo de luta dos(as) trabalhadores(as), por outro contribuiu com o capital para
conter a superexploração que ameaçava as condições de reprodução da força de trabalho;
IV) redução da rotação do capital fixo, aceleração da inovação tecnológica e aumento dos
custos da acumulação de capital. Estas características contribuem para o aumento dos
riscos de atraso ou insucesso na valorização do vultoso capital investido para corresponder
a estas mudanças. Assim, o Estado é impelido a ampliar não só suas possibilidades de
planejamento, como também, os mecanismos de socialização de custos e de perdas nos
processos produtivos. Em outras palavras, ele pode proporcionar ao capital investimentos
lucrativos de modo a garantir as “condições gerais de produção”60;
V) dificuldades crescentes de valorização do capital (supercapitalização e
superacumulação). Para conter estas dificuldades, o Estado é chamado a viabilizar
oportunidades de investimento que propiciem uma valorização mais rápida do capital
excedente;
VI) tendência crescente a crises econômicas e políticas que ameaçam a sobrevivência do
sistema. Cabe ao Estado administrar estas crises, contê-las ou, ao menos, minimizar seus
efeitos sobre as possibilidades de lucratividade do capital. Para isso, ele deve fazer uso de
instrumentos que vão desde a utilização de políticas anti-cíclicas até a manipulação
ideológica da classe trabalhadora para evitar todo o tipo de revoltas populares.
60
“Exemplos diretos dessa tendência são o uso crescente dos orçamentos do Estado para o financiamento de
pesquisas e dos custos do desenvolvimento e as despesas estatais destinadas a financiar ou subsidiar usinas
nucleares, aviões a jato e grandes projetos industriais de todos os tipos. Exemplos indiretos são o
fornecimento de matérias primas baratas mediante a nacionalização das indústrias particulares que as
produzem, subvencionando assim, de forma dissimulada, o setor privado” (MANDEL, [1972] 1985, p. 340).
94
Todas estas funções são de grande importância para o capital, mas a atenção que é
dada a elas, bem como o grau de importância que uma assume em relação às outras
depende do momento histórico. Assim,
Mandel, em sua obra, lança luzes sobre algumas áreas em que isto pode acontecer
como por exemplo o setor de transportes, o comércio e o serviço de crédito. Neste sentido,
61
Dentre elas podemos destacar a de 1929, cujo estopim foi a quebra da bolsa de Nova Iorque e a dos anos
1970. A mais recente, de 2008, começou no mercado imobiliário, também nos Estados Unidos, mas seus
efeitos estão sendo sentidos com maior intensidade nos países mais frágeis que compõem a União Europeia,
como Grécia, Portugal e Espanha.
62
Mandel chama a atenção para a característica já apontada por Lenin ([1917] 2012): “o surgimento dos
monopólios gerou uma tendência à superacumulação permanente nas metrópoles e à correspondente
propensão à exportar capital e a dividir o mundo em domínios coloniais e esferas de influência sob o controle
das potências imperialistas” (MANDEL, [1972] 1985, p. 337).
96
Ainda que ele tenha se limitado a mencionar estas áreas, acreditamos que esta
mesma lógica pode ser usada para entendermos um processo que não foi vivenciado por
ele, mas marca a forma como tem se dado a condução das políticas sociais. Com o
desenvolvimento das forças produtivas, o capital passa a avançar não apenas “no lugar do
trabalho privado e da pequena empresa”, como aponta o autor, mas também sobre as
políticas sociais. Estas têm passado, cada vez mais, a funcionar como um mecanismo
fundamental de garantia da rentabilidade nos moldes capitalistas.
Fala-se muito em algumas características das políticas sociais atualmente, como o
caráter pontual, fragmentado, focalizado e descontínuo, que vem restringindo o acesso e
tornando a universalização um sonho distante, muitas vezes nem mencionado. Mas não é
apenas disso que se trata quando vamos analisar o quadro atual destas políticas. Mesmo as
áreas da educação ou da saúde, só para darmos alguns exemplos, que ainda são um pouco
mais abrangentes, vêm funcionando como espaços para garantir a rentabilidade do capital.
De acordo com a Constituição Federal brasileira, os serviços prestados nestas áreas
consistem em direito dos cidadãos e dever do Estado, funcionando o setor privado como
complementar à prestação do serviço público. Entretanto, atualmente existem mecanismos
que fomentam uma concepção de público não-estatal, a qual dilui a separação entre o
público e o privado, minimizando a responsabilidade do Estado com a garantia dos direitos
sociais.
A base de sustentação do conceito de “público não-estatal” está ancorada na defesa
de que uma instituição pública, diante da falta de condições de financiamento público, não
pode (e nem deve!) recusar fontes alternativas, oriundas de instituições privadas, famílias,
organizações não-governamentais, ou quem quer que tenha interesse em disponibilizar
97
63
O debate sobre autonomia, que desde a década de 1980 está presente nos discursos de grupos que
compõem diferentes correntes políticas, foi iniciado no seio da luta contra a ditadura militar e a conseqüente
intervenção na vida universitária, tanto no que diz respeito à liberdade de pensar quanto na própria condução
da dinâmica interna da universidade.
98
legitima a ideia de que o Estado deve garantir apenas o “básico”, dado que existem poucos
recursos disponíveis para atender às demandas da classe trabalhadora. Ao mesmo tempo –
e de forma complementar – este discurso permite e estimula a entrada cada vez mais
significativa do setor privado nesta área, mercantilizando a prestação destes serviços e
submetendo-os à lógica mercantil, não apenas do ponto de vista da sua execução, mas
também de sua concepção. Assim a intervenção privada sobre as expressões da questão
social – ainda que não seja nenhuma novidade e que sempre tenha precisado da atuação do
Estado para acontecer e se expandir –, vem crescendo por dentro do Estado e, portanto, de
forma menos clara para a população usuária, adquirindo contornos novos e cada vez mais
contraditórios.
Tratam-se de mudanças que abarcam diversas áreas sociais: na educação cria-se
uma falsa dicotomia entre investimento no ensino fundamental e no universitário,
relegando ao Estado uma dedicação prioritária ao primeiro; na saúde, a diferença entre o
atendimento de baixa complexidade e o de alta já não é mais suficiente e até na atenção
básica já se justifica a entrada do setor privado, dado que o público é visto como
inoperante; na previdência, o argumento falacioso da existência de um déficit justificou o
estabelecimento de tetos que fizeram migrar os possuidores de maiores rendimentos para a
previdência complementar; na Assistência, o SUAS, mesmo possuindo um caráter bastante
inovador, tem dificuldades de sair do papel e tem sua política cada vez mais identificada
aos programas de transferência de renda; e assim por diante.
O quadro mais geral, portanto, aponta para um avanço da participação do setor
privado na prestação de serviços sociais, sob o aval do Estado, que busca, por meio de
políticas cada vez mais inventivas, burlar o caráter público e de responsabilidade estatal
conquistado por intensas lutas travadas e acumuladas no período da Constituinte e antes
dela.
No Brasil, as Organizações Sociais (OS) são um grande exemplo desses
mecanismos voltados para garantir a inserção do setor privado em espaços que até então
eram ocupados pelo Estado. A lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998, dispõe sobre a
qualificação de entidades como OS. Em seu artigo 1º, define:
Como podemos ver, elas abarcam diversas áreas e, ainda que sob a gestão privada,
podem receber recursos e bens públicos e deles dispor como considerarem mais
conveniente. Além disso, por não serem entidades públicas, não precisam fazer licitação,
nem concurso público, flexibilizando a forma de contratação e de aquisição de materiais e
equipamentos. Da mesma forma, não precisam prestar contas publicamente, o que fere
frontalmente o princípio da transparência na gestão dos recursos públicos.
Trata-se, portanto, de um mecanismo que passa para as mãos da iniciativa privada a
responsabilidade de administrar o patrimônio público, tornando o atendimento às
demandas e direitos sociais cada vez mais inserido na lógica mercantil, mudando a
concepção da prestação do atendimento e descaracterizando a política social como um
todo.
Isto sem mencionar as denúncias de fraudes, que cercam muitas destas
organizações ditas de caráter social. Assim, as políticas de saúde, educação, cultura,
ambiental são transformadas em espaços rentáveis ao grande capital, o qual, por meio de
organizações consideradas institucionalmente como “sem fins lucrativos”, passa a ter
poder de mando sobre vultosos recursos64 arrecadados fundamentalmente com as
contribuições da classe trabalhadora.
Existe, entretanto, toda uma polêmica em torno da (in)constitucionalidade desta lei,
tendo em vista que ela comprometeria diversos artigos da Constituição Federal vigente,
dentre eles a responsabilidade do Estado de zelar pelo patrimônio público (art. 23-I);
proteger documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural (art. 23-
III); proteger o meio ambiente (art. 23-VI); contratar por meio de concurso público (art.37-
II); fazer licitação (art.37-XXI) (BRASIL, 1988). Por esta razão está correndo hoje na
justiça uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN)192365. Apesar disso, podemos
observar uma franca expansão das Organizações Sociais em todo o país, o que mostra a
força que o capital tem para fazer valer seus interesses.
64
Segundo documento produzido pela Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde intitulado Contra
fatos não há argumentos que sustentem as Organizações Sociais no Brasil, somente em São Paulo, apenas
uma organização social, na área da saúde, recebeu cerca de R$1 bilhão de reais nos últimos 5 anos. Além de
ser significativo o valor por ela recebido, existem sobre esta OS denúncias de fraudes envolvendo desvio de
recursos (disponível em http://pelasaude.blogspot.com/p/contra-fatos-nao-ha-argumentos-que.html, acesso
em 10/01/2012).
65
Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=393820&tipo=TP&descricao=ADI/1923. Acesso
em 10/02/2012.
100
Para nós não resta dúvida de que “a hipertrofia e a autonomia crescentes do Estado
capitalista tardio são um corolário histórico das dificuldades crescentes de valorizar e
realizar a mais-valia de maneira regular”. Neste sentido, “refletem a falta de confiança
cada vez maior do capital em sua capacidade de ampliar e consolidar sua dominação por
meio de processos econômicos automáticos”, para usarmos os termos de Mandel ([1972]
1985, p. 341). Trata-se, portanto, de viabilizar espaços ainda não explorados pelo capital
para garantir a ampliação das fronteiras de acumulação e, com isso, contrarrestar a
tendência de queda na taxa de lucro.
Especificamente sobre as OS, para ficarmos em apenas um exemplo, o Governo do
Estado do Rio de Janeiro inaugurou em março de 2013 o Hospital Estadual da Criança,
uma unidade exclusiva para casos pediátricos de cirurgia de transplante, ortopedia e
oncologia em Vila Valqueire. Foram feitos investimentos de “R$ 5 mihões em
equipamentos e obras de adaptação” e entregues nas mãos da Rede D’or, por meio da
Organização Social Instituto D’Or de Gestão em Saúde Pública66. Esta que já é a maior
operadora independente de hospitais no Brasil67 não constituiria o Instituto D’or para,
dentre outras coisas, disputar a gestão de unidades de saúde, se não visse ali um negócio
extremamente rentável.
Podemos dizer que as políticas sociais, que até bem pouco tempo atrás tinham sua
contradição marcada pelo fato de, ao atenderem às necessidades da classe trabalhadora,
contribuírem também para a acumulação capitalista – por reduzirem o custo de reprodução
da força de trabalho e por apaziguarem as tensões sociais –, têm agora novos elementos
contraditórios. Elas podem funcionar diretamente como espaços rentáveis e atrativos ao
capital, dentre outras formas, ao disponibilizarem infraestrutura e recursos públicos para a
iniciativa privada prestar diretamente o serviço. Desta forma, podemos dizer que :
66
Disponível em: http://www.rededor.com.br/clipping/hospital-estadual-da-crianca-tera-gestao-da-rede-dor.
Acesso em 10/04/2013.
67
Disponível em: http://www.rededor.com.br/a-rede. Acesso em 10/04/2013.
101
As OS são apenas um dos mecanismos que temos hoje no Brasil para funcionar no
sentido em que aponta Mandel, permitindo que sejam experimentados novos produtos e
garantindo margens generosas de lucratividade para o capital privado.
Gostaríamos também de mencionar a importância que têm assumido os programas
de transferência de renda – cada vez mais identificados como sendo a política social no seu
conjunto. Por meio do cartão bancário, estes programas contribuem para inserir milhões de
pessoas no sistema de crédito, além de disponibilizarem generosas quantias para os bancos,
que ficam a disposição destes até que os usuários do programa retirem todo o benefício.
Tratam-se de programas presentes em diversas áreas. Na educação, por exemplo, mais
precisamente na assistência estudantil, foi criada em 2013 a Bolsa Permanência. Esta bolsa
transfere R$400,00 para estudantes das universidades e institutos federais por meio de um
cartão do Banco do Brasil68– somente para aqueles com renda familiar por pessoa de até
1,5 salário mínimo. O principal programa de transferência de renda, o Programa Bolsa
Família (PBF), além de também garantir o acesso à política por meio do cartão bancário, é
operado pela Caixa Econômica Federal (CEF), que recebe recursos do fundo público para
desempenhar esta função, como destaca Gisele Silva (2010). Ainda que os referidos
programas sejam viabilizados por bancos públicos, avaliamos que se inserem nesta lógica
mais geral da financeirização por canalizarem recursos para instituições financeiras, além
de privilegiarem rendimentos monetários para um perfil muito específico de usuários, em
detrimento de garantias universais aos direitos sociais.
O caso da Previdência também é bastante ilustrativo. As contrarreformas
conduzidas em 1998 e 2003, pelos presidentes FHC e Lula contribuíram, por um lado, para
tornar o acesso ao benefício mais difícil, mudando a lógica de tempo de serviço para tempo
de contribuição, além da utilização do fator previdenciário e outras medidas que tendem a
retardar a aposentadoria. Por outro lado, ao estabelecerem tetos para o valor dos benefícios
praticamente obrigam os beneficiários que ficariam acima deste teto a contribuir com a
previdência complementar69. Nos últimos anos, os chamados Fundos de Pensão, cresceram
e se fortaleceram, movimentando um volume cada vez mais significativo. Para se ter uma
68
Segundo reportagem de Demétrio Weber, publicada no jornal O Globo em 10 de maio de 2013, na seção O
País, página 4. A matéria destaca também que estudantes indígenas e quilombolas terão direito a uma bolsa
no valor de R$900,00, desde que venham de aldeia indígena ou remanescente de quilombo.
69
Para uma análise da previdência complementar ver Granemann (2002; 2003).
102
ideia, somente o Fundo de Pensão do Banco do Brasil, a Previ tem um total de R$ 160
bilhões investidos, destes 60% estão em ações de empresas como a Vale do Rio Doce e a
Brasil Foods70.
Por fim, podemos dizer que, apesar de observarmos uma organização da classe
trabalhadora contra algumas destas medidas, como as OS, por exemplo, ou as “reformas”
da Previdência, ela não tem sido suficiente para travar o avanço do capital na área social. A
atual dinâmica capitalista é bastante agressiva e tem, por meio da interferência do Estado,
contribuído no sentido de favorecer a iniciativa privada, avançar sobre o fundo público,
integrar todo o sistema a esta lógica das finanças mundializadas, ampliar as possibilidades
de extração de mais-valia – em uma combinação entre a absoluta e a relativa – e fragilizar
a capacidade organizativa da classe trabalhadora. E assim, as políticas sociais que são, ao
mesmo tempo, uma forma de enfrentamento à questão social e bandeira de luta e
reivindicação, sofrem uma reconfiguração que as permite atender às demandas dos
trabalhadores funcionando diretamente como espaço de garantia da rentabilidade do grande
capital.
Mas o avanço na precarização das políticas sociais não apaga o fato de que elas
possuem a capacidade de, mesmo neste contexto adverso, produzir melhoras nas condições
de vida das pessoas e, deste modo, contribuir para engendrar melhores condições de luta da
classe trabalhadora. A luta por políticas sociais universais, financiadas e geridas pelo
Estado, e com qualidade é, cada vez mais, uma luta que confronta os interesses do grande
capital. Esta é a grande contradição que o padrão de acumulação atual produz: quanto mais
lucrativas forem as políticas sociais, mais indispensável é a sua luta para a classe
trabalhadora e maior o seu potencial de ameaçar a ordem estabelecida.
70
Disponível em: http://economia.estadao.com.br/noticias/economia-geral,maior-fundo-de-pensao-do-pais-
investe-em-acoes-de-empresas-estrangeiras,150875,0.htm. Acesso em 25/04/2013.
103
Francisco de Oliveira
A análise dos avanços e dos entraves que vivemos no presente, assim como das
perspectivas que se abrem para o futuro, pressupõem um cuidadoso resgate de nosso
passado e das marcas deixadas pelas particularidades de nossa formação sócio-histórica.
104
71
“Essa não era uma posição consensual entre os marxistas, pelo menos até os anos 1960. Ignorando a
problemática das formas ‘não clássicas’ de transição para o capitalismo (e as peculiaridades da formação
capitalista que dela resulta), os marxistas brasileiros – sobretudo os ligados ao PCB – afirmaram durante
muitos anos que o Brasil era um país ‘semifeudal’ e ‘semicolonial’, que se defrontava ainda, por conseguinte,
com a tarefa de efetuar uma ‘revolução democrático-burguesa’ ou de ‘libertação nacional’” (COUTINHO,
1990, p. 173).
72
A CEPAL foi criada em 1948 e era uma das cinco comissões econômicas da Organização das Nações
Unidas (ONU). Dentre seus principais expoentes no Brasil estão Celso Furtado, Maria da Conceição Tavares,
Carlos Lessa, Antônio Barros de Castro e João Manuel Cardoso de Mello.
73
O ISEB foi criado em 1955, vinculado ao Ministério de Educação e Cultura e foi extinto após o golpe
civil-militar de 1964. Alguns dos intelectuais de maior destaque foram Hélio Jaguaribe, Álvaro Vieira Pinto,
Guerreiro Ramos, Ignácio Rangel, Cândido Mendes, Roland Corbisier e Nelson Werneck Sodré. A este
respeito ver Rocha (2011).
106
Ao longo de toda a sua obra o autor demonstra como esta preocupação com a
acumulação de capital, já presente de alguma forma desde 1930, ganha força nos anos
1950. O Estado atuou de forma decisiva – não apenas por meio da política econômica –
para viabilizar o avanço das relações capitalistas de produção, a tal ponto que “o
desenvolvimento econômico se transformou na problemática maior, para todas as classes
sociais” (1965, p. 23).
Para que fosse possível alterar a forma de organização da base produtiva era
necessário deslocar recursos, ou seja, canalizar o excedente agrícola para estimular o
estabelecimento e consolidação de um novo padrão de acumulação de base industrial. Para
tanto, a política cambial74 foi um recurso utilizado com vistas a proteger a renda da
cafeicultura e favorecer a inversão na indústria. Apesar da importância dada à consolidação
da indústria no país, e justamente por ela, a agricultura teve um papel de destaque. Por
fornecer produtos para exportação, ela foi indispensável para conseguir divisas que
viabilizaram a importação de bens de capital e intermediários, ao invés de garantir apenas a
importação dos bens de consumo, como era anteriormente.
A questão central passou a ser promover a continuidade deste setor e, ao mesmo
tempo, deixar de tê-lo como a base de expansão do sistema. Além disso, a agricultura tinha
a responsabilidade de abastecer os centros urbanos sem ampliar os custos de reprodução da
força de trabalho, o que poderia inviabilizar o processo de acumulação que se gestava.
Assim, a consolidação da indústria seguiu reforçando o traço de ruptura não-clássica com o
passado na constituição do novo, uma forte marca da formação sócio-histórica brasileira.
É, portanto, por meio da intervenção do Estado e da expansão da produção
marcadamente intensiva em trabalho, com baixos coeficientes de capitalização, que
podemos perceber o desenvolvimento da agricultura neste período. Deste modo, a
constituição da força de trabalho urbana contribuiu também para a consolidação do
proletariado rural, penalizado por altas taxas de exploração e muito funcional à
acumulação.
A agricultura contribuiu significativamente para o crescimento da indústria e dos
serviços, tanto por favorecer o deslocamento de pessoas do campo para as cidades,
alimentando o “exército industrial de reserva”, quanto por produzir um excedente de
74
Por meio da desvalorização do câmbio e, portanto, do rebaixamento do preço da moeda nacional, a política
do governo favorecia o setor exportador e encarecia as importações, estimulando a produção interna.
109
Este fato se deu tendo em vista que igualava a remuneração de trabalhadores com
diferentes níveis de qualificação, evitando o pagamento de melhores salários para algumas
categorias mais especializadas. Deste modo, “a regulamentação das leis do trabalho operou
a reconversão a um denominador comum de todas as categorias, com o que, antes de
prejudicar a acumulação, beneficiou-a” (OLIVEIRA, Francisco, [1972] 1981, p. 17, grifo
do autor).
Ainda sobre os altos custos pagos pela classe trabalhadora para garantir o
“desenvolvimento da nação”, consideramos importante mencionar o papel das altas taxas
de inflação do período, demarcando o que Ianni caracterizou como um “processo
espoliativo” (1965, p. 153). Dada a avançada perda no poder de compra que esta situação
impunha, as pessoas que tinham um rendimento fixo – em especial as que viviam do seu
salário – acabavam sendo induzidas a poupar. Esta poupança, aliada aos lucros auferidos
pelos capitalistas, era uma dimensão importante dos recursos que seriam transformados em
capital produtivo, à medida que, por meio da intermediação bancária, eram postos a serviço
dos investimentos industriais que precisavam ser feitos para garantir a acumulação.
Em outras palavras a fixação de baixos salários, a formação de um significativo
exército industrial de reserva e a depreciação monetária resultante da inflação constituíram
elementos fundamentais sobre os quais se assentou o processo de “modernização” do país.
Ao mesmo tempo, a definição do salário mínimo e a adoção de algumas políticas, inclusive
recreativas, destinadas à classe trabalhadora, além de um discurso populista destinado às
massas, buscavam conter as constantes tensões entre as classes e viabilizar um convívio
“harmonioso” entre elas, ante à concentração de renda que marca o período.
A utilização do braço repressivo do Estado é também uma marca forte do processo
de acumulação capitalista no Brasil. Esta se deu de forma mais visível durante a ditadura
do Estado Novo – no governo Vargas (1937-1945) –, e a ditadura civil-militar (1964-
1985), mas também esteve presente, ainda que de maneira reduzida e menos clara, no
período de democracia representativa.
Mattos (2011) possui um interessante artigo em que analisa os relatos de militantes
que foram presos durante o período ditatorial do primeiro governo Vargas, juntamente com
textos literários e produções sobre a experiência prisional no período. Presos políticos
como Graciliano Ramos, Apolônio de Carvalho e Patrícia Galvão, a Pagu, estão entre os
que tiveram seus escritos analisados por Mattos. São os presídios de Fernando de Noronha
(PE) e o de Ilha Grande (RJ), os principais palcos das experiências relatadas.
111
Por outro lado, mesmo sem romper com o imperialismo, ao se voltar para o
mercado interno, a estrutura produtiva redefiniu esta relação, impondo uma nova
configuração da relação com o mercado externo e, portanto, com as grandes potências. Nas
palavras de Ianni “eis aí como a crise do imperialismo, traduzida na guerra, foi aproveitada
por uma nação semicolonial” (1965, p. 69). É claro que este “aproveitamento” se deu
reestabelecendo os vínculos de dependência e subordinação, marca do nosso processo
sócio-histórico até os dias atuais.
Fundamentalmente, a entrada do capital externo vai paulatinamente deixando de se
dar por meio da importação de bens de consumo e passa a se materializar na entrada de
bens de capital, máquinas e equipamentos necessários à produção interna das mercadorias.
Na linha do avanço do imperialismo ao qual se refere Lenin ([1917] 2012), o domínio
sobre as nações dependentes passa cada vez menos pela exportação de mercadorias e mais
pela exportação de capitais75. No território nacional, esta foi uma mudança vista com bons
olhos pela ideologia “nacionalista”, dado que significava uma redução na compra de
produtos importados já acabados e prontos para o consumo.
Este era o limite do conceito de “nacional” que acompanhava a ideia de
desenvolvimento. O capital externo continuou sendo muito bem recebido e incentivado,
desde que favorecesse a produção interna, daí por que muitas análises do período falam em
desenvolvimento “associado”, como Ianni, por exemplo, ou desenvolvimento “induzido”,
como é o caso de Florestan. Principalmente a partir do final dos anos 1950, podemos falar
em uma reintegração ao sistema internacional, tendo esta funcionado como uma das
principais alavancas do desenvolvimento interno. A interiorização dos centros de decisão
não significou, de forma alguma, o rompimento com o exterior. Nas palavras de Florestan
“a dominação imperialista externa cresce (e não diminui, como se esperava) com a
diferenciação e a aceleração do desenvolvimento capitalista” ([1975] 2005, p. 291).
O fato é que, no final dos anos 1940 a possibilidade da industrialização já havia
conquistado corações e mentes76. Neste momento, a conversão do capital agrário em
75
Não estamos, com isso, querendo dizer que a exportação de mercadorias deixa de ser importante, muito
menos que haja, necessariamente, uma redução quantitativa. A questão é que a exportação de capitais assume
centralidade nas relações internacionais, constituindo-se como uma das principais formas de dominação
imperialista.
76
Em meados da década de 1940 o tema da industrialização e desenvolvimento já começa a render
acalorados debates. Exemplo disso foi a polêmica instaurada no interior do governo Vargas entre o industrial
Roberto Simonsen – membro do Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial, vinculado ao
114
fez uma forte crítica aos limites do padrão vigente e, portanto, aos posicionamentos que
predominaram ao longo do período de exaltação ao desenvolvimentismo.
Estes autores contestaram a tese de existência de uma burguesia nacional que
poderia romper com o imperialismo e com os “entraves ao desenvolvimento” e
denunciaram a dificuldade teórica da classe trabalhadora de analisar a conjuntura e se
posicionar de forma mais independente em relação à dominação a que estava submetida.
Muitas das críticas chegaram a ser excessivamente duras. Para Caio Prado Jr., “não é de se
admirar que as esquerdas brasileiras, privadas de uma teoria satisfatória e capaz de as
conduzir com segurança a seus objetivos, se tivessem deixado levar pelas seduções de
demagogos instalados no poder” ([1966] 2004, p. 23).
Em que pese acreditarmos ser necessária uma avaliação mais cuidadosa do papel da
esquerda neste período – dado que esta avaliação, por exemplo, feita no calor do golpe,
dificulta uma análise mais cuidadosa das contradições que permearam os posicionamentos
no período – é fato que setores organizados da classe trabalhadora apoiaram as medidas
desenvolvimentistas por acreditarem que seria uma etapa importante na construção do
socialismo. Mas existe uma dimensão contraditória neste apoio, que precisa ser melhor
estudada e discutida. Não temos condições, neste trabalho de avançar neste ponto, mas
gostaríamos de ressaltar uma avaliação de que a luta da classe trabalhadora pelas reformas
de base contribuiu para conduzir a um período de efervescência política que fortaleceu
algumas tensões no interior da burguesia. Consideramos esta uma das determinações que a
levou a optar pelo golpe como forma de “restaurar a ordem”79.
De todo o modo, a crítica destes autores ao suposto protagonismo da burguesia
nacional tinha como pano de fundo a compreensão da existência de uma interação dialética
entre o comportamento dos setores agrário e industrial e destes com o setor externo. Ianni,
assim como os autores citados, fundamenta sua crítica à perspectiva de uma dualidade
estrutural entre os setores “moderno” e “atrasado”. Para ele, o processo de
desenvolvimento impôs uma nova racionalidade que fosse capaz de permitir o avanço das
forças produtivas. Ele lembra que neste momento, ganhou força o debate acerca da
necessidade de uma maior articulação e integração nacional que enfrentasse as
“descontinuidades e desequilíbrios da economia nacional”. Difundiram-se análises que
79
Discutiremos melhor os antecedentes ao golpe no início da próxima seção.
116
Ainda no início dos anos 1970, Francisco de Oliveira também publica um ensaio
em que aborda esta questão, A economia brasileira: crítica a razão dualista, no qual
afirma que “longe de ser um crescente e acumulativo isolamento, há relações estruturais
entre os dois setores [agrário e industrial] que estão na lógica do tipo de expansão
capitalista [...] no Brasil” ([1972] 1981, p. 25).
A análise desenvolvida por Francisco de Oliveira, assim como a dos demais autores
citados, busca fazer uma crítica à teoria do subdesenvolvimento e ao dualismo, defendido
por intelectuais tanto da CEPAL, quanto do ISEB, sob o argumento da necessidade de
pensarmos este processo entendendo-o como um momento particular da luta de classes.
Não é a toa que a referida teoria funcionou como um suporte para o
desenvolvimentismo, que, nas palavras de Ricardo Bielschowsky, destacado economista da
CEPAL, deve ser entendido como sendo “a ideologia de superação do subdesenvolvimento
nacional com base numa estratégia de acumulação de capital na indústria” (2004, p. 250).
117
estes serviços têm o importante papel de contribuir com a acumulação industrial e reforçar
a concentração de renda.
Para finalizar, gostaríamos de destacar o que Francisco de Oliveira considera
original no processo vivenciado no Brasil e que incorpora todos os elementos até aqui
discutidos:
Sabemos que a definição de marcos históricos não é feita sem polêmicas e que
muitas são as possíveis referências para cada definição. Neste sentido, apesar de muitos
estudiosos tomarem os anos 1930 como um marco que inaugura uma nova etapa do
desenvolvimento do capitalismo brasileiro, como é o caso de Octavio Ianni, Francisco de
Oliveira e tantos outros, Florestan Fernandes dá a este momento menor importância,
privilegiando os acontecimentos da década de 195080. Nós nos juntamos aos primeiros e
defendemos que esta década constitui um momento de inflexão no nosso processo de
formação, ainda que estejamos de acordo com a interpretação de que são os anos 1950
decisivos para o entendimento da nossa entrada nos marcos do capitalismo monopolista.
80
Para Florestan o desenvolvimento capitalista deve ser pensado em três fases: “a) fase de eclosão de um
mercado capitalista especificamente moderno; b) fase de formação e expansão do capitalismo competitivo; c)
fase de irrupção do capitalismo monopolista” ([1975] 2005, p. 263). A primeira vai da Abertura dos Portos
até 1860, a segunda vai até 1950 e a terceira começa em 1950, mas só adquire caráter estrutural depois de
1964.
119
substituição de importações81. Ainda que este debate seja importante para discutir a forma
do processo de industrialização, faltariam, nesta perspectiva teórica, algumas categorias
fundamentais para capturar o seu conteúdo.
O pressuposto de que as dificuldades de importação levam à necessidade de
produção interna inverte a análise, fazendo parecer que o fundamento do processo está no
consumo e não na produção. A valorização da influência do contexto externo dá pouca
importância ao que procuramos enfatizar na análise dos aspectos que impulsionaram a
acumulação, nos quais temos como pressuposto as possibilidades de extração da mais valia
e a estrutura de classes no país. Segundo o autor, o problema está em pensar que “começa-
se a produzir bens sofisticados de consumo, e essa produção é que ‘perverte’ a orientação
do processo produtivo, levando no seu paroxismo à recriação do ‘atrasado’ e do
‘moderno’” (OLIVEIRA, Francisco, [1972] 1981, p. 27).
As necessidades de acumulação impunham a urgência em produzir os bens
necessários para rebaixar o custo de reprodução da força de trabalho, portanto, bens não
duráveis, destinados ao consumo das classes populares (Departamento III)82. É a produção
destes bens que inaugura o processo industrializador a que estamos nos referindo. Isto não
significa que, num segundo momento, não se tenha avançado para os bens duráveis
(Departamento II).
81
Como não cabe, dadas as possibilidades deste trabalho, entrar em uma análise pormenorizada do processo
de industrialização por substituição de importações, vamos nos restringir a resgatar sua ideia geral, muito
bem sintetizada por Francisco de Oliveira: “a crise cambial encarece os bens até então importados e, no
limite, a não disponibilidade de divisas e a II Guerra Mundial impedem, até do ponto de vista físico, o acesso
aos bens importados; isso dá lugar a uma demanda contida ou insatisfeita, que será o horizonte de mercado
estável e seguro para empresários industriais que, sem ameaça de competição, podem produzir e vender
produtos de qualidade mais baixa que os importados e a preços mais elevados. Posteriormente, a adoção de
uma clara política alfandegária protecionista ampliará as margens de preferência para os produtos de
fabricação interna” ([1972] 1981, p. 25). Para maiores esclarecimentos, ver Tavares ([1963] 1976).
82
Kalecki resgata a divisão marxista da economia em departamentos, faz pequenas modificações e sintetiza:
“o Departamento I representa a produção total de todos os bens finais não utilizados para o consumo”
(compreendendo os bens de produção e as matérias-primas respectivas). Além deste, são distinguidos mais
dois: “Departamento II, que produz bens de consumo para os capitalistas, e Departamento III, que produz
bens de consumo para os trabalhadores” ([1968] 1977, p. 1).
121
não é fácil especificar quando uma empresa, conglomerado, holding, grupo, etc é
simplesmente estatal, nacional ou imperialista. Nem sempre os vínculos
econômicos e políticos são visíveis, mesmo depois de muita pesquisa. Além do
mais, na prática, os três setores da economia, ou o tripé, sempre se acham
articulados, reciprocamente determinados, em uma totalidade que também possui
suas especificidades.
83
O que importa aqui é destacar que só faz sentido falar em competitividade no que diz respeito aos preços,
se estivermos tratando de bens destinados à exportação. Para os bens produzidos para o mercado interno em
um contexto de grande concentração de renda e demanda das classes altas aquecida, “nenhuma importância
tem o fato de que os automóveis nacionais sejam duas ou três vezes mais caros que seus similares
estrangeiros” (OLIVEIRA, Francisco, 1981, p. 29).
123
84
“Criou-se, para atender às demandas nascidas na própria expansão industrial, vista do lado das populações
engajadas nela, isto é, urbanizadas, uma vasta gama de serviços espalhados pelas cidades, destinado ao
abastecimento das populações dispersas: pequenas mercearias, bazares, lojas, oficinas de reparos e ‘ateliers’
de serviços pessoais. Estes são setores que funcionaram como satélites das populações nucleadas nos
subúrbios, e portanto, atendem as populações de baixo poder aquisitivo (OLIVEIRA, Francisco, [1972] 1981,
p. 43-44).
124
2.2 Da reforma bancária nos anos 1960 à crise do endividamento nos 1980
Como já foi dito, desde os anos 1930 no Brasil, são operadas profundas
transformações na base urbano-industrial, com desdobramentos também sobre a
agricultura. Podemos observar um processo de consolidação do capital industrial como
fundamento da acumulação capitalista, que trouxe consigo a concentração de renda e o
aumento do pauperismo, ao ampliar sobremaneira as bases da exploração da força de
trabalho.
A articulação entre latifundiários, burguesia industrial e os capitais estrangeiros foi
capaz de, por meio da atuação do Estado, alterar a estrutura produtiva brasileira.
Conduzidas de forma fundamentalmente autocrática, as mudanças “pelo alto” se
caracterizaram por uma baixa participação das “massas”, hegemonizadas por discursos
populistas e pela truculência mais ou menos ostensiva da repressão policial. Nesse
contexto, instalou-se uma espécie de “pacto” entre as classes sociais, que permitiu um
avanço significativo das relações sociais de produção e das forças produtivas tipicamente
capitalistas.
Este avanço não se deu sem contradições, de modo que o período entre os anos
1961 e 1964 foi marcado por uma crise do Estado burguês, pressionados tanto pelo
imperialismo, pelo nacionalismo econômico, quanto pela politização dos trabalhadores e
camponeses. Como lembra Ianni, “nessa época, as opções capitalismo dependente,
capitalismo nacional, socialismo por via pacífica e socialismo por via revolucionária
tornaram-se bastante reais, ainda que em distintas gradações, como possibilidades do
processo político” (1981, p. 197). As possibilidades estavam em aberto e presenciamos um
aumento da participação popular na cena política. Houve um fortalecimento do movimento
sindical, com aumento de greves, uma maior organização de camponeses e trabalhadores
rurais, uma efervescência no movimento estudantil, para citar alguns dos movimentos que
passaram a aparecer de forma mais efetiva e organizada em torno de propostas de
mudanças. Como resgatam Sônia Mendonça e Virginia Fontes,
A crise continha elementos econômicos, dado que podia ser observada uma redução
no crescimento85, acompanhada de uma crescente inflação – que contribuía para a
defasagem real nos salários. E continha também elementos políticos, os quais impunham
pressões por todos os lados. Mendonça e Fontes (2004) destacam duas grandes polêmicas
sobre as quais houve uma certa polarização das forças políticas, chegando a provocar um
embate entre os poderes Executivo e Legislativo: as reformas de base e a luta
aintiimperialista.
O golpe empresarial-militar de 1964 representou, deste modo, uma
contrarrevolução, que atentava contra o avanço das conquistas – por mais limitadas que
fossem – democrático-burguesas, portanto, “dentro da ordem”, e contra as possibilidades
abertas para “fora da ordem”, que inspiravam alguns segmentos da esquerda brasileira86.
Por trás do lema “segurança e desenvolvimento” a grande burguesia integrou o poder
militar e econômico e garantiu a sua hegemonia na condução do capitalismo dependente
brasileiro, fortalecendo os processos de concentração do capital e aprofundando as bases
para extração de mais-valia. “A ditadura instalada foi induzida a por-se a serviço do capital
monopolista de modo direto, aberto, ostensivo e repressivo” (IANNI, 1981, p. 34).
Ianni (1981, p. 42-43) destaca três traços marcantes da “economia política da
ditadura”: 1) a importância que o planejamento estatal assume durante o período por
viabilizar o “desenvolvimento”, subordinando todas as formas de organização social da
produção às exigências da acumulação monopolista. Para ele, este planejamento
transforma-se em uma importante força produtiva e expressa dois significados
fundamentais: permite a transformação de mais valia potencial em efetiva, via um
crescente domínio do capital sobre o trabalho e funciona como “uma esfera privilegiada
das articulações e metamorfoses entre a economia política do capital monopolista e a
economia política da ditadura” (1981, p. 25); 2) a violência estatal torna-se também uma
85
“Enquanto no período de 1957-1961, a taxa média de crescimento se situou em 6,9% ao ano, no período de
1962-1964 caiu para 3,4% ao ano” (MARTONE, 1975).
86
“A burguesia que se havia beneficiado do populismo não estava interessada em arriscar uma luta que
poderia transformar-se em revolução popular. Não queria um governo de base popular, muito menos de base
operária. Aceitou o golpe de Estado. Golpe providencial, para certos setores do bloco populista, que estavam
aflitos com o ascenso popular e operário no processo político brasileiro” (IANNI, 1981, p. 210). Mendonça e
Fontes (2004, p. 20) resgatam que o golpe “significou o fim do direito de greve, das associações de
camponeses e da estabilidade no emprego através da criação do FGTS [Fundo de Garantia por Tempo de
Serviço]; a anulação da Lei de Remessas de Lucros e a nacionalização das refinarias de petróleo; o
impedimento a todas as formas de organização popular”.
127
força produtiva a serviço do capital, dada sua capacidade de controlar a classe trabalhadora
e dirimir as possibilidades de resistência à ampliação das taxas de extração da mais valia
que, em outras condições, seriam praticamente inviáveis; 3) a subalternização do Estado ao
capital financeiro sob o predomínio dos interesses imperialistas.
Deste modo, para que esta contrarrevolução pudesse ter continuidade, o novo
governo tinha em suas mãos a responsabilidade de enfrentar a crise que assolou a
economia brasileira. Uma crise que, de acordo com Tavares e Serra, no importante ensaio
Além da Estagnação, “esteve estritamente relacionada, a nível [sic] estrutural, com o
esgotamento do dinamismo da industrialização baseada na substituição de importações”
([1971] 1976, p. 168). Segundo eles, as dificuldades para incrementar o nível de
investimentos estavam relacionadas menos com limitações na capacidade produtiva e mais
com questões estruturais na demanda e no financiamento. Martone acrescenta ainda o
“estrangulamento periódico da capacidade de importar, em boa parte motivado pelo
agravamento da situação financeira externa do país” (1975, p. 72).
O Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG – 1964/1966), implementado
após o golpe, definiu uma política para enfrentar o gargalo na demanda que deixa clara a
preocupação do Estado ditatorial de “dinamizar a produção de mais-valia absoluta e
relativa [...], em favor da grande empresa privada nacional e estrangeira [...]” (IANNI,
1981, p. 24). A solução encontrada, como apontam Tavares e Serra ([1971] 1976), passou
por uma redistribuição de renda para setores médios e altos em detrimento da renda da
classe trabalhadora, por meio de um arrocho salarial. Uma solução viabilizada por um
aumento da concentração da renda e pela dificuldade organizativa dos trabalhadores, fruto,
dentre outros elementos, do aumento da repressão e da cooptação que marca o período
ditatorial87. A saída mostra também, de forma bem clara, a busca pelo fortalecimento do
poder da burguesia monopolista, em processo de consolidação. Sob o manto da
neutralidade do planejamento, difundido como uma questão puramente técnica, o
“político” e o “econômico” vão se articulando e conferindo ao poder estatal as ferramentas
para atender aos interesses do capital monopolista.
O ponto, entretanto, que pretendemos nos dedicar a analisar melhor é a questão do
financiamento. No período anterior, este foi, em grande parte, garantido pela expansão
87
Sobre a organização sindical e as lutas da classe trabalhadora no período ver Mattos (2009), Gianotti
(2009), Ianni (1981), dentre outros.
128
primária dos meios de pagamento, o que teria contribuído para propiciar uma alta na
inflação. Como já mencionamos, o processo inflacionário cumpria também o papel de
impor uma postura voltada para poupar e permitia que esta poupança fosse canalizada para
a realização do investimento. Com o tempo, este esquema perdeu sua funcionalidade, ao
assumir proporções gigantescas, e acabou por produzir estrangulamentos financeiros nas
empresas. Ao mesmo tempo, a crise por um lado, e a Lei de Remessa de Lucros (vigente
desde 1962), por outro, restringiram os investimentos externos no país, de modo que a
estrutura existente para viabilizar os investimentos precisava ser revista com o objetivo de
propiciar novas condições para um impulso à industrialização (TAVARES ; SERRA
([1971] 1976); MARTONE (1975); MENDONÇA E FONTES (2004); WERNECK
VIANNA (1987)).
Segundo Tavares ([1971] 1976, p. 218) os “esquemas de financiamento público e
privado haviam utilizado, até o limite do possível, os mecanismos inflacionários interno e
de endividamento externo”. Assim, um dos principais objetivos do governo passou a ser
construir os mecanismos para estimular o financiamento do investimento na quantidade
necessária para garantir as bases da acumulação industrial. Era necessário construir uma
forma que não acelerasse o processo inflacionário, ou seja, que não demandasse a emissão
de moeda. Em 1964 a inflação já era considerada o “mal maior da economia” e estava
próxima a uma taxa anual de 100%.
Assim, o principal objetivo anunciado do PAEG – e que poderia garantir certo grau
de legitimação popular, dado o ônus político enfrentado com o golpe e o forte arrocho
salarial – era garantir a retomada do crescimento (foram estabelecidas metas de 6% para
cada ano do plano) e para tanto, precisava concentrar suas forças em controlar a inflação88.
Em relação ao financiamento, o plano apontava a necessidade de rever a política de crédito
ao Estado e ao setor privado e aumentar a tributação indireta, como maneira de substituir a
forma até então encontrada de cobrir os déficits do governo, que era a emissão de moeda.
A inflação e o financiamento foram, portanto, os grandes gargalos identificados
como obstáculos ao desenvolvimento e estavam ligados um ao outro, dados os moldes em
que se baseou o crescimento do período anterior. Além disso, o plano procurava atenuar os
88
“O PAEG optou por um combate progressivo ou gradual do processo inflacionário, fixando como meta um
crescimento de preços da ordem de 80% em 1964, 25% em 1965 e 10% em 1966, último ano do plano”
(MARTONE, 1975, p. 75).
129
89
“O Brasil necessitava de cerca de um milhão e cem mil novos empregos por ano, a fim de absorver a mão-
de-obra que anualmente aflui ao mercado. Paradoxalmente, o ritmo de expansão do emprego, particularmente
nos setores mais dinâmicos da economia, tem sido feito a uma taxa muito inferior à necessária, criando
assim, um índice elevado de desemprego estrutural” (MARTONE, 1975, p. 75).
90
O PAEG procurou “criar um sistema de incentivo às exportações, inclusive pela simplificação do sistema
cambial, garantindo simultaneamente um nível de importações que não impeça o crescimento da produção
interna e, de outro lado, revigorar a entrada de capitais estrangeiros no país como meio complementar de
alcançar a taxa de investimento necessária à meta de crescimento fixada” (MARTONE, 1975, p. 76).
130
91
A SUMOC foi criada em 1945 e funcionou como uma espécie de embrião do futuro Banco Central, cuja
direção estava a cargo de um conselho dirigido pelo Ministro da Fazenda. “Era responsável pela formulação
da política monetária mas na prática não tinha controle da sua execução, que estava dispersa por vários
órgãos: i) Banco do Brasil através de suas Carteiras de Redesconto (CARED), de Câmbio e Comércio
Exterior (CACEX); ii) da Caixa de Mobilização Bancária (CAMOB), uma instituição administrada pelo
diretor da CARED; e da Caixa de Amortização, do Ministério da Fazenda. A Caixa de Amortização emitia
moeda, quando solicitada pela CARED ou pela CAMOB, depois da autorização do Conselho da SUMOC”
(BARBOSA, [1995]). Segundo Werneck Vianna (1987, p. 98-99), o BB “operava como principal executor
das instruções da SUMOC [...] na prática, [possuía] poder superior ao da própria SUMOC”.
92
O Banco do Brasil, mesmo com a criação do BACEN, continuou funcionando como um banco que
acumulava atividades de um banco comercial com algumas de banco do governo. Para maiores informações
sobre o BB e sobre a história dos bancos no Brasil, ver Costa (2012).
131
93
As aspas referem-se a citações de trechos de entrevistas ao membros do CMN na época, realizadas pela
autora durante a pesquisa que deu origem a obra assinalada.
132
94
Nos detivemos a um estudo mais geral deste movimento no primeiro capítulo.
95
É importante sinalizar que este processo já vinha acontecendo desde 1958, quando ainda haviam 399
estabelecimentos, como aponta Tavares ([1971] 1976, p. 226).
96
O registro obrigatório vem apenas em 1966, o que explica o aparecimento de tantas corretoras em 1967 e a
“inexistência” delas antes disso. Mas na verdade, é somente a partir desta data que se tem um enquadramento
legal mais claro da sua atuação.
133
Até aqui, estamos inteiramente em acordo com a análise. Acrescentamos ainda que
esta reconcentração financeira, que se inicia no final dos anos 1950, mas ganha força nos
anos 1960, é um elemento indispensável para entendermos as bases da consolidação do
capitalismo monopolista no Brasil. Nossa discordância aparece no trecho seguinte:
avançam no sentido de criar as condições para que a fusão do grande capital bancário com
o grande capital industrial possa acontecer. Até então, a presença do capital financeiro
existe, mas daquele que se originou no exterior e que já chega aqui formado. Trataremos
melhor deste ponto um pouco mais adiante.
De qualquer forma, o crescimento das finanças e seu processo de concentração, ao
ganharem força, já são capazes de aumentar e intensificar as contradições do sistema. A
este respeito, nos parece bastante intrigante a forma como Tavares analisa esta dinâmica. A
autora, ainda que fale em uma autonomia relativa das finanças e perceba a relação entre
esta e a produção propriamente dita97 e, portanto, esteja, de uma maneira geral, em sintonia
com as análises feitas pela tradição marxista, não faz referências explícitas às categorias
utilizadas por Marx para análise deste fenômeno. Na verdade, seu texto não traz uma
discussão mais consistente sobre este debate, o que a leva a algumas imprecisões e
contradições, como veremos.
Na obra que analisamos, a categoria marxiana que aparece, e mesmo assim, uma
única vez de forma explícita, é capital fictício. Primeiramente, ela usa o termo “capital”
(entre aspas), quando afirma que os títulos financeiros “constituem ‘capital’ apenas no
sentido genérico de um direito de propriedade sobre uma renda” (TAVARES, [1971] 1976,
p. 234). Esta avaliação segue no mesmo sentido da realizada por Marx, que adverte ser este
um direito de apropriação da mais-valia produzida, ou seja, uma ação, por exemplo, “nada
mais é do que um título de propriedade, pro rata, sobre a mais valia a realizar por aquele
capital” (MARX, [1894] 1988e, p. 5). Como podemos ver, entretanto, ela fala em renda e
não em mais-valia, sendo esta última, categoria central para entender a acumulação
capitalista e o caráter relativo da autonomia das finanças, debate sobre o qual nos
debruçamos mais detidamente no primeiro capítulo.
Logo em seguida, a autora aponta que “se pode entender a acumulação financeira
como um processo de criação de capital ‘fictício’, que repousa no desenvolvimento de
relações jurídicas que permitem a separação de funções entre empresários e capitalistas”
([1971] 1976, p. 234-235, grifo nosso). Não há nenhuma referência a Marx neste trecho,
mas podemos ver que sua análise, mesmo não desenvolvendo a ideia de capital fictício,
possui uma abordagem que lembra as sínteses apresentadas pelo autor.
97
Tavares identifica sua relação com a produção: “a realização desta renda [obtida a partir dos títulos
financeiros] não repousa, diretamente, no processo de produção, mas em um direito de participação no
excedente gerado por uma empresa ou pela economia em seu conjunto” ([1971] 1976, p. 234).
135
Entretanto, a categoria capital portador de juros, por exemplo, não aparece uma
única vez. Neste sentido, observamos uma certa confusão na referida análise. Marx afirma,
no capítulo 21 do Livro Terceiro, intitulado Capital Portador de Juros, que o ato de tomar
dinheiro emprestado e emprestar, ou seja, “entrega e restituição do capital emprestado,
aparecem assim como movimentos arbitrários, mediados por transações jurídicas e que
ocorrem antes e depois do movimento real do capital, e que nada têm a ver com o próprio”
([1894] 1988d, p. 248, grifo nosso). O autor está aqui discutindo a aparência do fenômeno
e não a sua essência. Este é um elemento fundamental.
Na verdade, o que aparece como sendo puramente uma “relação jurídica”,
obscurece as relações de produção que sustentam o processo. A análise de Marx se propõe
justamente a desvendar a relação com o capital real que estas “relações jurídicas” ocultam.
Por todos os capítulos em que ele discute este tema, procura demonstrar o processo de
produção de mais-valia que está presente entre o ato de tomar emprestado e o de restituir
este capital sob a forma monetária, acrescido dos juros. Não se trata, portanto,
simplesmente de uma relação jurídica, mas de produção de valor. Sem este entendimento,
fica difícil inclusive analisar a demanda por ampliar as bases de extração de mais-valia e,
portanto o aumento da exploração, que o capital portador de juros impõe ao “capitalista
funcionante” para usarmos os termos de Marx.
Seguindo na análise do trecho que destacamos de Tavares, sentimos a necessidade
de recorrer ao capítulo 23, também do Livro Terceiro d’O Capital, intitulado Juro e Ganho
Empresarial. Nele, Marx aponta que “é somente a separação dos capitalistas em
capitalistas monetários e capitalistas industriais que converte parte do lucro em juros e cria,
em geral a categoria juro” ([1894] 1988d, p. 263). Sendo assim, podemos dizer que o
capital portador de juros – e é esta a principal categoria e “a matriz de todas as formas
aloucadas” ([1894] 1988e, p. 4) –, advém da separação entre capitalistas monetários e
capitalistas industriais e não entre empresários e capitalistas. A base aqui é o capital de
comércio de dinheiro, ou seja, como o dinheiro se transforma em mercadoria e passa a ser
objeto especifico da atuação do capitalista monetário, que Marx desenvolve melhor o
capítulo 19. O capital fictício seria uma destas formas “aloucadas” que assume o capital
portador de juros, categorias que parecem se misturar na exposição da autora, o que
dificulta que ela tenha uma análise mais consistente deste processo e de seus limites. Ainda
assim, nos parece oportuno lembrar que Marx escreve em um momento em que estes
processos estão ainda em nível embrionário. Com o avanço do processo de financeirização
136
podemos ver, cada vez mais, o capital fictício como sendo a principal forma de ser do
capital portador de juros.
Mesmo vendo proximidade com o debate trazido por Marx, as diferenças acabam
por abrir espaço para confusões e, em alguns momentos, levam a análises diferentes. Este é
o caso da discussão sobre a presença do capital financeiro, por exemplo. Marx, como
sinalizamos no primeiro capítulo, não tratou de capital financeiro quando discutia o
crescimento das finanças98. Quem tratou disso foi Lenin([1917] 2012). Mas não fomos
capazes de perceber um diálogo da autora com o debate trazido por ele. É recorrente em
sua abordagem, a indicação da necessidade de reconversão do capital financeiro em capital
produtivo, deixando claro que, para ela, tratam-se de formas diferentes do capital.
Entretanto, encontramos uma passagem em que ela afirma que “o caráter
fundamental do capitalismo financeiro no Brasil adquire, de partida, uma funcionalidade
distinta do velho ‘capital financeiro’ alemão ou do vertiginoso crescimento da acumulação
financeira americana do começo do século” (TAVARES, [1971] 1976, p. 255, grifo
nosso). Este fato sugere que ela tinha um conhecimento da categoria. No seu esforço de
entender o que se passava no final dos anos 1960 e início dos 1970 no Brasil, optou por
associar o crescimento da autonomia relativa das finanças a uma espécie de capital
financeiro à brasileira, ao invés de identificar este crescimento como sendo parte dos
antecedentes que levaram à constituição do capital financeiro propriamente dito, opção que
nos parece mais correta.
Além disso, é importante ressaltar que Lenin ([1917] 2012), mesmo dando
centralidade ao capital financeiro, caracteriza a etapa de desenvolvimento capitalista como
sendo imperialista e fundada nos monopólios. Para ele “a base econômica mais profunda
do imperialismo é o monopólio” (LENIN, [1917] 2012, p. 137). A referência ao
capitalismo financeiro pode dar a entender um certo privilegiamento das finanças e sua
autonomização da produção. Como a autora oscila entre a vinculação das finanças com a
produção e uma certa autonomização da primeira, não está claro para nós se esta referência
foi intencional. Advogamos, em todo caso, pela centralidade da produção de mais valia
para a acumulação capitalista, fato que impossibilita a superação do desenvolvimento
98
Cumpre lembrar que uma das edições d’O Capital mais difundidas no Brasil, traduziu erroneamente o
capítulo 19 como Capital Financeiro. Como apresentamos no capítulo anterior, Marx está ali tratando do
capital de comércio de dinheiro.
137
realidade produtiva e, portanto, com os valores que estes ativos financeiros representam.
Nos parece que a falta de uma análise sob o ponto de vista da lei do valor e uma melhor
caracterização categorial dos processos que acontecem na órbita das finanças acabam
levando a autora a contradições e a uma tendência a autonomização do capital portador de
juros.
Consideramos, entretanto, que o fundamental que Tavares parece querer salientar –
e ponto sobre o qual temos acordo – é que esta relativa autonomia vem transferindo
recursos excedentes para as finanças e pondo em risco a capacidade do capital de sustentar
esta rentabilidade, levando a uma tendência constante a crises. Os números ajudam a
ilustrar o processo e seus limites:
O que precisa ser enfatizado, e ao que nos parece esta é uma análise que escapou às
possibilidades da autora, é que a base de sustentação destes lucros das instituições
financeiras é a mais-valia gerada no processo de produção. Estas disparidades expressam
uma capacidade do capital portador de juros de absorver parcelas crescentes do excedente
em detrimento do capital produtivo, ou seja, apontam para uma repartição da mais-valia a
favor dos juros e não do lucro. Reside aí uma contradição importante para entendermos os
limites da acumulação neste estágio de desenvolvimento capitalista.
Este é também o pano de fundo sobre o qual precisamos entender as iniciativas de
ampliação das bases de extração de mais valia, em sua combinação absoluta e relativa,
vividas a partir daí. Na indústria, a busca por abocanhar parcelas do excedente e, ao mesmo
tempo, alimentar a rentabilidade do capital fictício, tem conduzido ao aumento da
exploração em proporções significativas, o que tem implicações sobre as expressões da
questão social, como discutiremos no próximo capítulo.
Para finalizar, em que pese a análise de um suposto capital financeiro no Brasil, os
dados da autora não nos autorizam a falar na existência desta forma de ser do capital
durante este período. Por mais contraditório que pareça, são suas próprias afirmações que
nos levam a esta conclusão:
139
Sendo assim, até este momento, a concentração na esfera financeira ainda não havia
desencadeado uma centralização suficiente para que possamos falar em capital financeiro
brasileiro, mesmo que o capital financeiro constituído nos países de capitalismo mais
avançado já estivesse presente em nosso território.
Ao analisar o desenvolvimento do capitalismo no Brasil neste período (anos 1960 e
1970), Aloísio Teixeira (1983) também afirma a ausência de uma articulação definida entre
produção e finanças99, concluindo que não havia elementos suficientes para se falar na
presença do capital financeiro endogenamente constituído. Para ele, “o capital bancário
não parece assim, disposto a trocar sua posição de credor pela de proprietário e empresário
produtivo”. Ele acrescenta que “as grandes empresas, por sua vez, não se dispõem a abrir
seu capital de forma a perder o controle para os grandes grupos bancários” (1983, p. 103).
Este ponto parece não ser consensual. Paul Singer, ao falar do estímulo estatal à
formação dos conglomerados financeiros, adverte para a possibilidade de associação com o
capital industrial e afirma a existência de fusões “de modo a constituir autênticos
conglomerados industrial-financeiros, de acordo com o modelo japonês” (1977, p. 69, grifo
nosso). Como é possível falar em autenticidade nesta relação, na análise de um período em
que Aloísio Teixeira (1983) e Conceição Tavares ([1971] 1976) falam em inexistência, é
algo que precisaria de uma investigação mais cuidadosa, que não teremos como fazer neste
trabalho.
De todo modo, consideramos importante registrar, ainda que parcialmente, os
exemplos dados pelo autor para ratificar sua afirmação:
99
“Paralelamente aos grandes grupos ‘financeiros’, com nítido predomínio de capital nacional, operam as
grandes empresas industriais, em sua maioria estrangeiras. Estas detêm um grau de autofinanciamento
elevado [...], não apresentando dependência visível do sistema financeiro privado [...]. Por outro lado, as
inúmeras empresas, de menor porte e em sua maioria nacionais, cujo poder financeiro e de mercado é menor,
apresentando por isso forte necessidade de recursos externos, não contam com o apoio do setor bancário para
se modernizar e expandir” (TEIXEIRA, 1983, p. 102-103).
140
Exemplos desta tendência são a fusão do grupo da Refinaria ‘União’ com bancos
Irmãos Guimarães, Brasul, Investbanco e outros e a constituição do grupo
‘Brascan’, organizado ao redor do Banco Brascan de Investimentos, que controla
companhias de eletricidade (São Paulo Light e Rio Light), uma financeira (a
Crefinan – Crédito, Financiamento e Investimentos), diversas firmas industriais
[...], de serviços [...] e de mineração [...] (1977, p. 88).
atingido sua fase monopolista – acabamos saltando mais rapidamente, via intensa
concentração do capital, da consolidação do capitalismo concorrencial para o monopolista.
Florestan ([1975] 1995), embora caracterize o período concorrencial no Brasil de fins do
século 19 até 1950, procura demonstrar como o processo “descontínuo e demasiado débil”
da transição para o capitalismo de base urbano-industrial se consolida somente nos anos
1930.
A partir daí, a passagem para o capitalismo monopolista se dá de forma mais rápida
em virtude das particularidades da nossa formação social e seu caráter dependente. Por esta
razão, boa parte da estrutura produtiva do país vem a se constituir já no contexto
monopolista. De modo um pouco mais lento do que o setor produtivo, o financeiro viveu o
processo de concentração um pouco depois e se intensifica no final dos anos 1960 e início
dos 1970, como assinalamos.
Mas, parece não ter havido, no momento inicial e visto de forma mais ampla, um
movimento de centralização concomitante ao de concentração. A concentração estava se
dando de forma relativamente independente em cada ramo de atividade. Em outras
palavras, ainda que estes dois processos possam se dar ao mesmo tempo (e, no geral, se
dão), a centralização pressupõe um certo nível de concentração do capital, mas o inverso
não acontece. Os elementos que estimulam a centralização, ou seja, a entrada em diferentes
ramos de atividade, estão relacionados à necessidade de ampliar o controle sobre o
processo produtivo como um todo e de reduzir os custos de produção e impõem, para que
esta redução possa se dar desta forma, que o capital esteja suficientemente robusto. Não é a
toa que falamos na fusão do grande capital bancário com o grande capital industrial.
Como veremos na próxima seção, ao que nos parece, movimentos significativos de
centralização e, portanto, capazes de desaguar nas condições para engendrar um processo
endógeno de constituição do capital financeiro, só estarão presentes nas décadas seguintes.
Procuraremos demonstrar nossa hipótese de que a nova etapa de acumulação
capitalista no Brasil, a etapa monopolista, tem início em meados da década de 1950,
aprofunda-se em 1960, mas a principal forma que assume o capital nesta etapa, o capital
financeiro, só se constitui endogenamente nos anos 1990/2000, ainda que já pudéssemos
contar com a presença do capital financeiro internacional. Isto nos leva a avaliar que esta
etapa se fortalece recentemente, em que pese o fato de estar sendo gestada há mais de meio
século.
143
100
Escapa às possibilidades deste trabalho uma análise mais minuciosa do II PND. A este respeito ver Castro
e Souza (2004).
101
A liquidez deveu-se principalmente aos excedentes do petróleo decorrentes da subida do preço do barril
(os chamados Petrodólares).
144
102
A este respeito, consideramos indispensável a leitura de Paul Singer (1977). Ianni (1981, p. 188) também
aborda esta questão e afirma: “o ‘milagre econômico’ do ‘modelo brasileiro’ apoia-se na produção inclusive
de uma taxa de mais valia extraordinária, propiciada pela amplitude e brutalidade da atuação da ditadura
contra operários e camponeses”.
145
porque o longo período de arrocho salarial vivido no país estava sendo levado ao limite e
as mobilizações populares voltavam a se fortalecer.
Segundo Mendonça e Fontes (2004, p. 61),
103
A proposta seria de conceder ajuda financeira temporária para crises de curto prazo que, por ventura,
ameaçassem se proliferar para o restante das economias mundiais.
104
Brunhoff alerta que foi como se “uma espécie de ‘New Deal’ financeiro internacional tivesse sido
instaurado em 1982, entre bancos credores, países endividados e Fundo Monetário Internacional, para
impedir que as tensões financeiras degenerassem em crise de pagamentos internacionais. Ele refletia, no
plano da finança, o novo lugar dos ‘PDV’ [países em via de desenvolvimento] na acumulação capitalista
internacional, como locais de valorização do capital. A solvabilidade desses países seria então um objetivo
estratégico da reprodução de capital financeiro em escala mundial” (1991, p. 164, grifos da autora). É
importante acrescentar que o capital financeiro, stricto sensu, estava aplicado no mercado de eurodólares, e, a
partir daí, atingia a periferia. Quando o mercado de eurodólares desabou, a rota da periferia foi deslocada
para o grande mercado americano, tornado atrativo pelas altas taxas de juros. O FMI e suas recomendações,
aparecem para dar conta da questão da dívida, que tinha de ser paga.
146
105
Filgueiras aponta que a preocupação era a de que esses países passassem “da condição de importadores de
capital para a de exportadores de capitais, garantindo assim, uma travessia da crise mais tranquila para o
sistema financeiro internacional – sobrecarregado com créditos duvidosos das dívidas dos países do terceiro
mundo” (2000, p. 75).
147
À crise econômica somou-se uma crise política de legitimidade que abriu espaço
para um avanço no processo de redemocratização, formalmente iniciado no Governo
Geisel (1974-1978), por meio de sua defesa por uma abertura “lenta, gradual e segura”107.
Tratou-se de uma transição que enfrentou bastante resistência por parte de setores militares
106
Aloísio Teixeira ressalta, como decorrência deste período, um “processo de transferências de renda do
setor público para o setor privado e dos salários para os lucros, agravando as condições estruturais do
funcionamento da economia, com a deterioração do poder de compra da população assalariada e a
degradação física da infraestrutura dos serviços públicos” (1992, p. 119).
107
“Temos aqui a essência do projeto político implementado pelos generais Geisel e Golbery, cujo mote
parece ter sido ditado pelo famoso personagem de Lampedusa: é preciso mudar para que o fundamental se
conserve” (COUTINHO, 2000, p. 90).
148
e burgueses e que foi, em grande parte, forçada pela crescente mobilização popular e pela
decorrente criação de algumas importantes organizações de esquerda no início dos anos
1980.
Na verdade, o regime ditatorial, para além das dificuldades econômicas que
enfrentava desde meados nos anos 1970, continha uma contradição que acabou tornando
sua continuidade insustentável. Se por um lado, foi a maneira encontrada pela grande
burguesia para consolidar o capitalismo e impulsioná-lo nos trilhos da etapa dos
monopólios, por outro, ao fazer isso, impulsionou também as contradições deste sistema e
as forças que poderiam contestá-lo, tornando insuficiente o recurso à repressão como
forma principal de conter as reivindicações.
O processo de abertura, portanto, passou a ser fundamental para a garantia das
condições de acumulação, desde que fosse conduzido “pelo alto”, respondendo aos anseios
populares, sem que estes assumissem o controle. Tratava-se de buscar, na transição
democrática, restringir o uso da repressão a setores mais radicais e estabelecer estratégias
de cooptação para os moderados. Mas, em diversos momentos, esta iniciativa da burguesia
encontrou limites na disposição dos setores populares de assumir o comando.
Para Coutinho (2000, p. 91, grifo do autor), “esse projeto de abertura pelo alto
chocou-se com o processo de abertura, sendo frequentemente alterado e mesmo derrotado
por ele, ou seja, pela movimentação real da sociedade civil, pela pressão que vinha de
baixo para cima”. Esta pressão foi ganhando força na segunda metade da década de 1970 e
na seguinte apresentava um quadro mais organizado, traduzido no surgimento de novas
instâncias organizativas da classe trabalhadora.
Expressaram este novo quadro de disputas políticas, a criação de um partido
formado por trabalhadores, católicos (em sua maioria vinculados à Teologia da
Libertação), ex-guerrilheiros e intelectuais de esquerda: o Partido dos Trabalhadores
(PT/1980). Foram criadas também a Central Única dos Trabalhadores (CUT/1983) e a
Central Geral dos Trabalhadores (CGT/1986), além do Movimento de Trabalhadores sem
Terra (MST/1984). Podemos observar ainda o fortalecimento dos movimentos das
mulheres, dos negros, sem-teto e diversos outros que se aglutinavam em torno da luta pela
democracia. Isto sem falar no movimento de Reforma Sanitária, que se iniciou nos anos
1970 e se fortaleceu nos anos 1980, reunindo um forte grupo de profissionais de saúde e
usuários em torno da luta pela universalização e descentralização do sistema de saúde.
149
108
Coutinho, ao comparar a ditadura brasileira com aquela implementada pelo fascismo clássico, a qual,
dispondo de bases de massas organizada, era capaz de subordinar a sociedade civil ao Estado de forma
totalitária, afirma: “ o tipo de ditadura que nos foi imposto revelou a possibilidade – que me parece nula no
fascismo clássico – de ser superado mediante um processo pacífico, ou, mais precisamente, mediante uma
transição que se materializa em rupturas parciais e progressivas, muitas vezes ‘negociadas’, e não numa
ruptura única e explosiva” (2000, p. 92).
150
O ziquezague da burguesia mostra que ela não contava com nenhum partido
suficientemente forte para imprimir uma direção clara aos embates de
recomposição do poder civil. No outro polo político, o movimento popular,
embora aguerrido, também não tinha condições de radicalizar sua pressão, de
modo a promover uma ampla democracia (2009, p. 40).
109
“Sem claras orientações das suas lideranças e expostos a um desgaste enorme pelas organizações
populares – Central Única dos Trabalhadores (CUT) à frente –, grande parte dos constituintes de direita
deixou de comparecer às sessões da Assembleia, preferindo cuidar de suas bases eleitorais, tendo em vista a
eleição municipal marcada para outubro de 1988” (SAMPAIO, 2009, p. 44).
151
Deve ser descartado o Estado provedor. Não pode o sistema de seguridade social
tornar-se sorvedouro de recursos, que não são infindáveis, do Tesouro e do
contribuinte. [...] Não há porque desconhecer a importância da colaboração da
110
É curioso destacar que o primeiro esboço de Seguridade Social integrava somente as políticas de
Assistência e Previdência. A Saúde figurava como uma política em separado. Foi o senador Almir Gabriel,
do PMDB, relator da comissão, que incluiu a saúde no conceito de seguridade social (BOSCHETTI, 2006).
111
Para um estudo mais detalhado dos textos originais voltados para a Seguridade Social e de como eles
foram sendo, paulatinamente, alterados, ver Boschetti (2006).
152
112
Trata-se de um ataque muito centrado no plano da retórica dado que, na verdade, não se trata de uma
defesa pelo Estado mínimo. Como procuraremos demonstrar, o Estado precisava ser forte e seguir atuante na
garantia das condições de acumulação capitalista, embora tenha passado por um intenso processo de
reconfiguração.
154
Medeiros e Emir Sader, para ficarmos em alguns. Estes, sem perder de vista aspectos
políticos, econômicos e culturais, ressaltam o conteúdo de dominação ideológica da
burguesia que este termo encerra. O segundo grupo assinalado por Castelo (2013), com o
qual nos identificamos, privilegia os aspectos políticos, identificando o neoliberalismo
como uma estratégia de recomposição do poder burguês e de enfrentamento aos
movimentos contestatórios que se fortaleciam como possibilidade de enfrentamento à crise
do capital. Neste grupo estão autores como François Chesnais, David Harvey, Atílio Boron
e, no Brasil, Carlos Montaño, Elaine Behring, Kátia Lima, dentre outros.
Ainda que somente no início da década de 1970 estas ideias tenham encontrado as
condições materiais para a sua difusão e implementação, a concepção se deu cerca de trinta
anos antes. Um dos grandes marcos desta trajetória foi a reunião sediada na Suíça, mais
precisamente em Mont Pelèrin, em 1947. Participaram deste encontro Frederich Hayek,
que em 1944 havia escrito O Caminho da Servidão ([1944] 1990) – no qual já deixava
claro o seu combate à intervenção do Estado nos mecanismos de mercado –, juntamente
com intelectuais como Milton Friedman, Ludwig Von Mises e Karl Popper (ANDERSON,
[1995] 2003; HARVEY, 2008). Suas propostas, entretanto, foram respondidas de forma
muito concreta: as altas taxas de crescimento decorrentes da intervenção estatal, promovida
pela implementação do Estado de Bem Estar Social. Este fato contribui para explicar a
baixa adesão que suas teses tiveram neste período.
Foi somente com a crise neste padrão de acumulação que se vivenciou a primeira
experiência de implementação das propostas neoliberais. A ditadura instaurada com o
golpe de Estado do general Pinochet, no Chile em 1973, mostrou ao mundo que a tão
proclamada defesa pela liberdade estava centrada no supostamente “livre jogo do
mercado”, de modo que não precisava vir acompanhada das liberdades civis, nem dos
direitos políticos. As medidas adotadas foram marcadas pela truculência no enfrentamento
às manifestações da classe trabalhadora e no desmonte das suas organizações,
desregulamentação das relações trabalhistas, privatização de empresas, de recursos naturais
e das políticas sociais, liberalização da economia, dentre outras, tendo como resultado uma
forte concentração de renda e riqueza nas mãos da burguesia.
Esta experiência foi, poucos anos depois, replicada na Inglaterra (1979) e nos
Estados Unidos (1980), desta vez sob o mistificador véu da “democracia burguesa”. Para
Harvey, “não pela primeira vez, uma experiência brutal realizada pela periferia
transformou-se em modelo para a formulação de políticas no centro [...]” (2008, p. 19).
155
Para o autor, a crise do Estado de Bem Estar Social foi o grande pretexto para o ataque ao
planejamento estatal e a neoliberalização, apontada como a saída, numa tentativa também
estimulada pela necessidade de evitar uma resposta organizada da classe trabalhadora, que
ameaçava os interesses das elites burguesas.
Ao longo dos anos 1970 e 1980, portanto, fazendo uso de uma dialética
combinação entre coerção e consenso, ora com peso maior em um, ora em outro – a
depender da correlação de forças de cada país –, o neoliberalismo foi sendo encampado por
diversas regiões do globo. A truculência das armas por vezes foi substituída por aquela que
advoga a ausência de alternativa, condenando ao isolamento toda a forma de pensamento
que a contrarie. Para Harvey (2008, p. 97),
De todo modo – ainda que guardadas as devidas proporções em cada local em que o
neoliberalismo foi ganhando materialidade –, as mudanças implicaram, para além da
adoção de medidas privatizantes e liberalizantes, em um reforço à busca por saídas
individuais e a um tratamento fragmentado das expressões da questão social, privatizando
também as formas de enfrentamento dadas a esta. A busca por construções coletivas foi
caracterizada como ultrapassada e utópica e as análises baseadas na totalidade,
consideradas inviáveis, sendo difundido o recurso a um conhecimento parcial e efêmero,
muitas vezes calcado no subjetivismo em oposição à objetividade dos fenômenos.
No campo da produção, a reestruturação produtiva neoliberal abriu caminho para
um padrão de acumulação flexível (HARVEY, 1992) que, mesmo contribuindo
significativamente para desarticular o movimento sindical e rompendo com a rigidez
característica do fordismo-taylorismo, não foi suficiente para recuperar as margens de
lucratividade dos chamados “anos gloriosos”. A desregulamentação financeira apareceu,
como procuramos demonstrar no capítulo anterior, como uma alternativa para ampliar a
rentabilidade do capital, o que alimentou as iniciativas de aumento da exploração do
156
trabalho no âmbito da produção, dado que este último é o espaço de extração da mais valia
de onde se originam os ganhos obtidos nas finanças.
O avanço às economias dependentes se deu por meio da imposição por parte dos
organismos multilaterais de políticas de estabilização econômica e da adesão das grandes
burguesias internas a esta proposta. Estas vieram sempre acompanhadas da intensificação
dos fluxos financeiros em direção a estes países e funcionaram como uma estratégia
fundamental de apropriação da mais valia ali extraída. A ruptura de limites anteriormente
existentes para a mobilidade de capitais financeirizados passa a se constituir como uma
alternativa para contornar a tendência decrescente da taxa de lucro, enfrentada nos países
de capitalismo avançado. Aos Estados dependentes, cabia uma reconfiguração que passava
pelo aumento da dívida pública como forma de alimentar a rentabilidade financeira e, ao
mesmo tempo, de justificar sucessivos ajustes fiscais, os quais legitimaram a canalização
de recursos para o capital, a condução de “reformas” na administração pública e a
contenção de gastos sociais.
Os Estados, portanto, longe de se tornarem mínimos – como muitos procuraram
sintetizar –, precisavam ser fortes e robustos o suficiente para conseguirem implementar
estas mudanças e sustentá-las, a despeito dos questionamentos que pudessem advir da
classe trabalhadora ou mesmo de setores da burguesia (em especial a pequena burguesia),
atingidos pelas medidas.
Como dissemos, a forma como se deu a composição de classe e até aonde foi
possível avançar nas mudanças variou em cada país. Seu processo de implementação não
foi linear, nem mesmo “puro”, no sentido de que não abarcaram o conjunto das propostas
recomendadas. Os embates entre as classes sociais, e até mesmo entre frações de uma
mesma classe, foram contribuindo para rechear de um conteúdo próprio o sentido da
chamada ofensiva neoliberal. Deste modo, cabe agora analisarmos as especificidades que
este processo assumiu no Brasil.
157
113
A este respeito, ver Filgueiras (2000); Teixeira (1994); Tavares, Teixeira e Pena (1991).
158
privatização” (CARDOSO apud SADER, 1994, p. 162). Aqui também, como nas décadas
anteriores, estava presente a ideia de que a política monetária, voltada para a estabilização
de preços, deveria vir acompanhada por um forte ajuste fiscal, dado que o gasto público é
tido como o principal causador da inflação.
De uma maneira geral, podemos dizer que o Plano Real estava em completa
sintonia com as recomendações do Consenso de Washington e, por meio dele, estávamos
fazendo todos os “deveres de casa” impostos pelo receituário do FMI, transformando nossa
economia em um espaço amplamente rentável para as aplicações financeiras do capital
financeiro e impondo limites cada vez maiores ao capital produtivo nacional.
Neste sentido, precisamos entender o Plano não apenas como um meio para garantir
a estabilização monetária, mas como parte de um projeto estratégico, visando uma nova
inserção da economia brasileira em um contexto de financeirização da economia mundial.
O caráter dependente segue sendo o caminho para entendermos os moldes desta reinserção
e a busca por ampliação das fronteiras de rentabilidade financeira do grande capital, o
objetivo que orientou as mudanças.
Em relação à estabilização monetária, podemos dizer que as medidas adotadas para
conter a inflação, no início do processo de implementação do Plano Real, foram, sem
dúvida nenhuma, eficazes na obtenção do que seria o objetivo fundamental alegado por
seus formuladores: a drástica redução da inflação. Esta passou de 46,60% em junho de
1994 para 3,34% em agosto e veio acompanhada por uma fase de rápido aumento da
produção e do consumo, que se expressou em uma taxa de crescimento do Produto Interno
Bruto (PIB) de 5,8% neste mesmo ano (FILGUEIRAS, 2000).
Os resultados iniciais, por trás da aparente melhora, têm por base alguns efeitos
perversos114. Um primeiro efeito que gostaríamos de destacar diz respeito à reestruturação
financeira decorrente do aumento do crédito provocado pela estabilização e pela abertura
financeira. Para Braga & Prates (1998), a expansão do crédito, por ser pautada em recursos
externos, se, por um lado, contribui para a expansão da demanda, por outro, conduz a um
desequilíbrio em conta corrente e ao surgimento de bolhas especulativas, tanto no mercado
de ações, quanto de imóveis. Isto sem mencionar os efeitos da entrada de divisas sobre a
taxa de câmbio, de juros, a balança comercial e os empréstimos, como veremos mais
114
Estes efeitos, posteriormente, contribuíram para agravar o desequilíbrio das contas públicas, desequilíbrio
este que o Plano, supostamente, se dedicava a resolver, ou, ao menos, minimizar.
159
adiante. Em resumo, eles afirmam que este movimento, da forma como aconteceu, trouxe
para o sistema bancário um aumento de sua fragilidade.
Além disso, as receitas inflacionárias eram uma das principais fontes de
rentabilidade dos bancos e a redução da inflação tornou este ganho irrisório. “As receitas
inflacionárias, que correspondiam a 4% do PIB, em média, no período de 1990-93,
diminuíram para 2% do PIB em 1994, e se tornaram desprezíveis em 1995” (BRAGA ;
PRATES, 1998, p. 36).
É este o contexto em que se “impôs”115 a necessidade de uma série de ajustes que
envolveram não só o redimensionamento dos bancos e de sua estrutura operacional, quanto
o redirecionamento de suas atividades (expansão das operações de crédito116) e, como não
poderia deixar de ser, um reordenamento do Sistema Financeiro Nacional (SFN), com a
eliminação de bancos menores, o fortalecimento dos maiores e o aumento da participação
estrangeira.
As dificuldades vividas por diversos bancos levaram o governo a criar, em
novembro de 1995, o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do
Sistema Financeiro Nacional (Proer)117, logo após a crise do Banco Econômico (22º banco
em intervenção desde o início do Plano Real), em agosto do mesmo ano. De acordo com
afirmações do governo na época, a função do Proer era a de ordenar as fusões e
incorporações de bancos, a partir de regras ditadas pelo Banco Central.
O fato é que a concentração e desnacionalização bancária se intensificaram de
forma inconteste. Gonçalves, em seus estudos, nos traz dados bastante esclarecedores ao
mostrar que, em 1994 havia, no Brasil, 230 bancos, ao passo que, em 1998, este número foi
reduzido para 179. O autor destaca também que, deste universo de 179 bancos, os
115
Braga & Prates são taxativos ao afirmarem, e nós concordamos com eles, que a privatização e a
internacionalização do sistema bancário consistiram em uma escolha de política financeira e não uma
inexorabilidade (1998, p.42).
116
Este esforço por parte dos bancos para expandir as operações de crédito, aliado a um aumento da demanda
de crédito pelas famílias – em decorrência da estabilidade econômica – estimularam um correspondente
aumento da demanda da indústria e do comércio. A avaliação incorreta do risco destes empréstimos, tanto
pelo lado da demanda quanto da oferta, contribuiu para levar a uma crise de inadimplência que se agravou
com a crise do México, no final de 1994, dada a dependência dos voláteis fluxos de capitais, própria de uma
economia estabilizada por meio da âncora cambial (BRAGA & PRATES, 1998, p. 37).
117
Não pretendemos fazer uma avaliação crítica minuciosa a respeito deste programa, mas vale a pena
lembrar que ele atuou em meio a muita polêmica e que muitos foram os economistas que alertaram para o
alto custo pago por toda a sociedade para sua implementação.
160
118
“A abertura financeira de uma economia envolve dois processos independentes: a liberalização da conta
de capital do balanço de pagamentos (ou seja, dos movimentos de capitais) e a permissão de transações
monetárias e financeiras em moeda estrangeira no espaço nacional” (FREITAS & PRATES, 2001, p. 84, nota
5).
161
‘mentalidade de rebanho’ dos financistas (ninguém deseja ser o último a manter estoques
de uma dada moeda antes da desvalorização desta) pode produzir expectativas auto-
realizadoras, com manifestações tanto agressivas, quanto defensivas” (2008, p. 105).
Estas crises, ao provocarem a fuga em massa de capitais do Brasil, colocavam em
pauta a questão do (des)equilíbrio do Balanço de Pagamentos, dada a importância destes
capitais para o fechamento das contas nacionais. A receita para conter as crises possuía
sempre, em maior ou menor dosagem, o aumento da taxa de juros como forma de garantir
a sustentação da âncora cambial119, e medidas de cunho recessivo voltadas para reduzir a
demanda por importação e garantir “excedentes”120 exportáveis. O recurso à utilização de
títulos da dívida pública como forma de atrair capitais a juros altíssimos, levou a um brutal
aumento do endividamento. Em 1994, ano anterior ao início do governo FHC, a Dívida
Pública Federal era de R$ 61,8 bilhões. Ao final dos dois mandatos (2002), ela havia
saltado para R$ 624,1 bilhões (LESBAUPIN ; MINEIRO, 2002, p. 17).
As medidas de caráter recessivo se expressavam em uma política fiscal restritiva,
marcada pelo corte de gastos – fundamentalmente com a folha de pagamentos (incluindo
contenção salarial e demissões) e investimentos – e aumento da carga tributária. Estas
medidas foram tornando-se mais rigorosas a cada crise pela qual passava a economia
brasileira. A intenção era a de demonstrar para os investidores estrangeiros a capacidade de
financiamento tanto interno quanto externo.
Os resultados sinalizavam sempre para um retorno do capital especulativo e para
uma redução das possibilidades de crescimento da economia. Esta redução do crescimento,
se por um lado, contribuía para melhorar o saldo da Balança Comercial (em função da
redução das importações), por outro, comprometia a produção e o consumo internos.
Em virtude das medidas tomadas, podemos observar uma queda na utilização da
capacidade instalada na indústria, redução nas vendas, tanto no setor industrial quanto no
comércio e aumento do desemprego. Um dos indicadores da queda na capacidade de
119
Esta sustentação se dá por meio do potencial atrativo de capital de curto-prazo, decorrente das altas taxas
de juros. A atração permite que a entrada de dólares se mantenha e garanta, deste modo, a manutenção das
reservas cambiais.
120
Usamos excedentes entre aspas tendo em vista que trata-se de uma redução da capacidade interna de
absorver a produção, e não exatamente de uma produção em excesso.
162
consumo foi a crise de inadimplência em 1995121, ano que se seguiu à crise do México e ao
pacote de medidas para sair da crise. O problema da inadimplência se relaciona também ao
aumento do endividamento das famílias, estimulado pela redução da inflação e pelo
aumento do crédito que marca o período.
Os períodos de desaceleração da economia, pelo seu caráter recessivo, acabavam
por criar as condições para um certo ajuste na Balança Comercial. Depois que as crises
externas eram contornadas, podíamos observar uma relativa retomada do crescimento, a
qual conduzia, novamente, ao desajuste externo. Este fato apontava para o impasse a que a
condução da política econômica havia nos levado:
Era, portanto, em cima desta “corda bamba” que o governo procurava se equilibrar,
produzindo uma política econômica do tipo stop and go, que consistia em pequenos
períodos de aquecimento, logo seguidos por desaquecimento e recessão, em geral,
acionados por uma crise externa e uma subsequente fuga de capitais.
A resposta econômica do governo à crise russa, entretanto, foi a mais rígida do
primeiro mandato. A situação de instabilidade, tanto nacional quanto internacional, e as
estratégias adotadas para o enfrentamento da crise nos conduziram, mais uma vez, ao
Fundo Monetário Internacional. Deste novo acordo, saímos com o compromisso de
estabelecer metas de superávit primário, além de reafirmarmos a intenção de estabelecer
um ajuste fiscal para enfrentar o déficit público, que crescia em proporções gigantescas.
Dentre as soluções para enfrentar o déficit estavam as privatizações. Na verdade, no
Plano Real, o processo de desestatização acabou por se constituir como uma de suas
dimensões fundamentais, podendo ser entendido como uma das bases para o “sucesso” na
sua implementação. Além do equilíbrio nas contas públicas, os argumentos a seu favor se
pautaram na necessidade de racionalização do Estado, no estímulo a um aumento da
competitividade da economia e na atração de investidores estrangeiros para permitir a
121
Tivemos neste período um “crescimento de todos os indicadores de inadimplência – cheques sem fundos,
prestações em atraso, títulos protestados, concordatas e falências” (FILGUEIRAS, 2000, p. 128-129).
163
122
O Programa Nacional de Desestatização (PND) foi instituído no governo Collor, no dia doze de abril de
1990, por meio da Lei nº 8.031 (BNDES, 2002a).
123
Com relação às ECE, cumpre identificar a definição existente no Censo de Capitais Estrangeiros no
Brasil, realizado pelo Banco Central do Brasil: “A população abrangida pelo Censo compreendeu as
empresas receptoras de investimentos estrangeiros diretos e as captadoras de créditos externos, que
usualmente solicitam registro dessas operações junto ao Departamento de Capitais Estrangeiros (FIRCE) do
Banco Central do Brasil (Bacen), na forma da Lei nº4.131/62, bem como as detentoras de participação
estrangeira direta. [...] Neste sentido, no que tange às empresas receptoras de investimento estrangeiro,
instituiu-se a obrigatoriedade de resposta àquelas com participação direta ou indireta de não residentes
em seu capital social representando, em 31/12/95, no mínimo 10% das ações ou quotas com direito a
voto ou, então, 20% ou mais do capital total” (apud GONÇALVES, 1999, p.202-203, grifo nosso).
164
Paulani, (1998, p.53) “[...] A antiga Telebrás, que bem poderia ter sido transformada numa
empresa capaz de, em pouco tempo, competir no mercado internacional, acabou tratada
como se fosse uma massa falida, fatiada que foi em 12 empresas [...]”. Das 12 empresas
holdings, criadas após a cisão do sistema, quatro delas se constituíam em empresas de
telefonia fixa e serviços de longa distância. No que diz respeito às empresas estaduais, o
setor elétrico teve um peso significativo. Das 20 empresas privatizadas, 14 foram vendidas
nestes anos, o que representa um total de US$ 19,148 bilhões, quase 80% do total das
receitas acumuladas com as vendas neste setor (BNDES, 2002b, p. 144-145).
Mas não foram só as privatizações que buscavam respaldo na necessidade de
contenção do déficit. Uma série de medidas voltadas para “dar maior agilidade à
administração pública” e para sanear as contas do governo foram implementadas, dentre
elas, as “reformas” da Previdência e da Administração Pública. Em relação à Previdência,
mudanças como a substituição do tempo de serviço por tempo de contribuição, a limitação
para aposentadorias especiais, definição de um teto para o valor dos benefícios e alteração
do cálculo nos seus valores contribuíram para, em nome de um suposto déficit124, retirar
direitos e empurrar boa parte dos “contribuintes” para a Previdência Complementar 125. No
que diz respeito às mudanças na Administração Pública, capitaneadas pelo Ministério de
Administração e Reforma do Estado (MARE)126, estavam, dentre outras, o incentivo às
privatizações, parcerias público-privadas de vários tipos, as organizações sociais (OS) e a
introdução de critérios de avaliação e indicadores de desempenho. Estabelece-se assim,
uma diluição das fronteiras entre o público e o privado em que, além de ficar cada vez mais
difícil saber aonde um termina e o outro começa, o primeiro vai adotando a mesma lógica
de funcionamento do segundo.
A “reforma gerencial”, como aponta Behring (2003, p. 177) foi voltada para “o
controle dos resultados e baseada na descentralização, visando a qualidade e produtividade
do setor público”. A fundamentação de sua necessidade passava pelo argumento da “crise
do Estado”, que teria feito com que este se desviasse de suas funções básicas, deteriorando
os serviços públicos, produzindo a chamada crise fiscal e alimentado a inflação. A este
124
Sobre a reforma da Previdência no governo FHC, ver Dain (1999). Uma crítica contundente ao suposto
déficit da previdência foi feita por Gentil (2007).
125
Para uma análise do significado da Previdência Complementar, ver Granemann (2002;2003).
126
Um cuidados estudo da reforma do Estado foi feito por Behring (2003).
165
respeito a autora alerta que “deve-se distinguir a reforma do Estado, como um projeto
político, econômico e social mais amplo, da reforma do aparelho do Estado, orientada
para tornar a administração pública mais eficiente” (2003, p. 178, grifo da autora).
Neste sentido, a “reforma administrativa” é apenas um dos elementos que caracterizam um
processo, bem mais amplo, de reformulação do papel do Estado .
Um balanço das mudanças iniciais, aprofundadas no governo seguinte, nos permite
analisar que trataram-se de alterações marcadas por uma decisão política interna –
associada aos interesses externos – de tornar o país mais atrativo ao investimento
internacional. A liberalização do fluxo de capitais, a privatização, o aumento do
endividamento interno e externo, a prioridade com o pagamento de juros em detrimento de
gastos com o funcionalismo e com as políticas sociais consistiram em um conjunto
integrado de mudanças para servir aos interesses do capital portador de juros e do grande
capital internacional. Foram mudanças em total sintonia com a conjuntura externa e com a
necessidade de ampliação das fronteiras de rentabilidade financeira dos países imperialistas
e que aprofundaram significativamente nossos laços de dependência.
Trataram-se de medidas fortemente viabilizadas pelo clima favorável interno
trazido em função da redução da inflação que, ao garantir uma maior estabilidade,
conseguiu o apoio popular e uma espécie de permissão – ou, ao menos, legitimidade – para
que qualquer medida fosse tomada em nome da manutenção deste quadro. E foi sempre em
função da “garantia da estabilidade” que a implementação das “reformas” neoliberais
foram justificadas. O medo generalizado do retorno à inflação foi usado com grande
habilidade pela equipe do governo.
Os contratempos enfrentados, entretanto, não foram poucos. Podemos atribuir boa
parte destes – sua intensidade e repercussão interna – à grande vulnerabilidade externa a
que este Plano nos conduziu. Os desdobramentos da moratória russa são um exemplo de
como o clima de instabilidade internacional pode ter rebatimentos sérios sobre a economia
brasileira, marcada por uma inconsistente estabilidade.
A cada crise, o pacote de medidas, propostas e implementadas para contornar seus
efeitos, era mais rígido. A crise da Rússia, terceira em menos de quatro anos, mostrou que
o “remédio” já não tinha mais o mesmo efeito. O país ainda nem havia se recuperado da
crise asiática e se viu precisando enfrentar uma nova turbulência. As desconfianças dos
especuladores aumentaram e a elevação da taxa de juros perdeu eficácia. Havia ainda um
outro elemento que garantia uma certa particularidade a esta crise: o processo eleitoral.
166
Gráfico 2 – Taxa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) entre os anos 1991 e
2000 (em %)
127
Taxa de crescimento no terceiro trimestre de 0,5% e de (-) 0,75% no último trimestre do ano (IBGE,
2003).
168
128
Existem basicamente duas pesquisas mensais de emprego no Brasil, uma realizada pelo IBGE – a
Pesquisa Mensal de Emprego (PME) – e outra realizada pelo Departamento Intersindical de Estatística e
Estudos sócio-econômicos (DIEESE) e da Fundação SEADE (Sistema Estadual de Análise de dados/SP) – a
Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED). A primeira, e mais antiga, centra-se mais nos dados sobre
emprego e seu indicador de desemprego aborda apenas o desemprego aberto. A segunda, mais recente,
considera também o desemprego oculto (tanto pelo trabalho precário quanto pelo desalento) (MATTOSO,
2001, p. 12-13).
170
129
Não custa lembrar uma conhecida passagem de Marx e Engels em que eles destacam a importância do
homem estar vivo para poder fazer história: “Mas, para viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter
habitação, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios que
171
permitam a satisfação destas necessidades, a produção da própria vida material, e de fato este é um ato
histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, como há milhares de anos, deve ser
cumprido todos os dias e todas as horas, simplesmente para manter os homens vivos” ([1846] 1999, p. 39).
172
A análise de conjunto que Marx oferece n’O capital revela, luminosamente, que
a “questão social” está elementarmente determinada pelo traço próprio e peculiar
da relação capital/trabalho – a exploração. A exploração, todavia, apenas remete
à determinação molecular da “questão social”; na sua integralidade, longe de
qualquer unicausalidade, ela implica a intercorrência mediada de componentes
históricos, políticos, culturais etc. Sem ferir de morte os dispositivos
exploradores do regime do capital, toda a luta contra as suas manifestações
sócio-políticas e humanas (precisamente o que se designa por “questão social”)
está condenada a enfrentar sintomas, consequências e efeitos (2001, p.45-46).
130
Discutiremos as orientações constitucionais para a tributação no próximo capítulo.
131
“O intitulado ‘terceiro setor’ alimenta-se da opinião, mais ou menos notória, da necessidade de aprimorar
a gestão da política social. Nele se buscam resultados, participação, eficiência, eficácia nos programas
sociais, por intermédio da atuação conjunta do Estado e de ‘setores’ da sociedade. Com o ‘terceiro setor’,
retomam-se as antigas práticas da filantropia e do voluntariado, agora com trajes empresariais, decretando um
novo mundo, livre de antagonismos e de conflitos entre classes sociais, mesmo com a injustiça, a
desigualdade e a miséria que nos olham” (VIEIRA, 2004, p. 112-113).
132
Para uma discussão mais aprofundada sobre o terceiro setor, ver Montaño (2002).
173
políticas sociais que contribuam para uma efetiva redução das desigualdades. Privatiza-se,
deste modo, boa parte da política de assistência, chegando a descaracterizá-la como uma
política de Estado.
Os desdobramentos da atuação das ONGs constituem, fundamentalmente, no
reforço à fragmentação das políticas sociais – na medida em que servem, inclusive, como
instrumentos da intervenção estatal, ainda que atuando de forma desorganizada e
descontínua – e de descaracterização dos movimentos sociais – pela institucionalização de
muitos destes movimentos e adoção de uma postura voltada para a negociação em
detrimento de um caráter reivindicatório, tendo em vista a perda de sua autonomia via
dependência dos financiamentos133 para garantir sua operacionalização.
Atuando conjuntamente com as ONGs nas expressões da questão social, temos
também nesta década o crescimento do apelo ao voluntariado e à responsabilidade
social134. Netto resgata, já no primeiro ano do mandato de FHC, a constituição do Grupo de
Institutos, Fundações e Empresas (GIFE), composto por empresas como o Banco Itaú,
Unibanco e IBM, voltado para a promoção de “atividades comunitário-assistenciais a partir
do que chamam de cidadania empresarial” (1999, p. 88, grifo do autor). Assim, toda a
sociedade, desde indivíduos até as empresas, é conclamada a “fazer a sua parte” e
contribuir para “melhorar o país”. Esta forma – despolitizada e individualizada – de
atuação se contrapôs ao clima de organização coletiva vivenciado na década anterior e
apontou uma alternativa de (i)mobilização, que contribuiu para adequar a classe
trabalhadora aos “novos tempos”135.
As mudanças, sumariamente elencadas acima, fazem parte de um processo de
recomposição da ordem burguesa e convergem na direção de uma reconfiguração do
Estado brasileiro, caracterizada por alguns autores como uma contrarreforma 136, como
133
Estes financiadores, a exemplo do FMI e do Banco Mundial, passam a não apenas controlar, como
também, direcionar politicamente, de acordo com seus interesses, a ação destas ONGs.
134
Programas como Amigos da Escola (projeto criado em 1999 pela Rede Globo, no qual ela atua em
parceria com: o Instituto Faça Parte [o nome já é bem elucidativo], o Fundo das Nações Unidas para a
Infância (UNICEF), o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Educação (CONSED) e a União
Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME)) e o Criança Esperança, promovido pela Rede
Globo em parceria com a UNICEF.
135
Para análise da intervenção social do empresariado por meio da “responsabilidade social” e da “empresa
cidadã”, ver Cesar (2008).
136
Esta interpretação, entretanto, não é consensual. A controvérsia que aponta para a caracterização do
neoliberalismo como revolução passiva ou contrarreforma foi analisada por Castelo (2012).
174
Coutinho (2010) e Behring (2003). Para o autor, este termo seria mais adequado do que o
de revolução passiva, dado que tratam-se de mudanças que estariam longe das concessões
incorporadas no bojo das alterações que marcam o período varguista, ou mesmo da
ditadura militar. A grande marca do período atual seria muito mais a retirada de direitos do
que a concessão de novos137. Behring segue um caminho diferente e fundamenta a
caracterização deste processo por meio do debate da modernização conservadora que
marca nosso processo de formação. Articulando elementos políticos e econômicos à
análise, a autora destaca que a particularidade das mudanças na década de 1990 consiste no
fato de que estas não promoveram o “salto para adiante”, que possibilitaria um espaço para
efetivas reformas, como aconteceu em outros momentos de nossa história138.
É, portanto, neste sentido de retrocesso que as, tão mencionadas, “reformas” foram
discutidas ao longo do Governo Fernando Henrique Cardoso. Apesar disso, seus principais
pontos foram sempre apresentados pelo governo como indispensáveis para a retomada do
crescimento e para a consolidação do processo de estabilização monetária. Ao contrário do
que o governo afirmava, o crescimento econômico não voltou e as relações de trabalho, a
Previdência Social e outros tantos pontos das “reformas” foram traduzidos em perdas de
direitos e redução das possibilidades de uma luta de contestação ao capital.
Em resumo, os encaminhamentos da política econômica conduziram a um
estrangulamento das possibilidades de crescimento, um aumento da vulnerabilidade
137
“Não creio que se possa encontrar no que chamei (de modo um pouco simplista) de ‘época neoliberal’
essa restauração-revolução que caracteriza as revoluções passivas. [...] As chamadas reformas [...] têm por
objetivo a pura e simples restauração das condições próprias de um capitalismo ‘selvagem’, no qual devem
vigorar sem freios as leis do mercado. [...] É por isso que me parece mais adequado, para uma descrição dos
traços essenciais da época contemporânea, utilizar não o conceito de revolução passiva, mas sim o de
contrarreforma” (COUTINHO, 2010, p. 37, grifos do autor). Além disso, ao contrário do que acontece no
caso de uma revolução passiva, “a contrarreforma neoliberal não tem como pano de fundo nenhuma questão
da grande política [...], não está em jogo nenhuma opção entre diferentes modelos de sociedade. Podemos
assim, dizer que, na era da contrarreforma neoliberal, predomina sem grandes contrastes a hegemonia da
pequena política” (COUTINHO, 2010, p. 40).
138
As mudanças que caracterizam o neoliberalismo, “embora mantenha elementos em comum com períodos
históricos anteriores, a exemplo do conservadorismo político na condução dos processos decisórios e do
patrimonialismo, é muito diferente daqueles ‘saltos para adiante’, modernizações conservadoras ou processos
de revolução passiva e ‘pelo alto’ que engendraram a industrialização e a urbanização brasileiras,
acompanhados da formação de um mercado interno significativo, embora sempre estreito em relação às
possibilidades. Diferença que reside no fato de que se tratou de um salto para trás, sem o sentido da
ampliação das possibilidades de autonomia ou de inclusão de segmentos no circuito ‘moderno’, diferente das
transformações estruturais anteriores, apesar dos limites também destas últimas. Este retrocesso é o que se
configura uma contrarreforma, por meio da qual houve quebra de condições historicamente construídas de
efetivas reformas, dentro de um processo amplo de profundas transformações (BEHRING, 2003, p. 282).
175
Ainda que o Plano Real tenha como mérito uma certa capacidade inventiva no que
diz respeito ao processo de estabilização monetária, as medidas tomadas em seu nome não
tiveram nada de muito original. Ao contrário, elas se encontram no bojo de uma
reorganização do capitalismo mundial, que trouxe consigo um aumento na flexibilidade
das bases de acumulação.
A perseguição dos capitalistas por aumentar o controle sobre as etapas da produção
e recompor suas margens de lucratividade os levou a uma ofensiva em dois sentidos
fundamentais. Em primeiro lugar, no que diz respeito à base produtiva, foi preciso romper
com a rigidez que marca o período fordista e flexibilizar o processo de produção de
mercadorias fazendo uso de novas tecnologias, descentralizando a produção,
desterritorializando, desregulamentando as formas de contratação, ampliando a
terceirização e repassando para a classe trabalhadora o ônus das descontinuidades que
marcam a produção neste período.
Em segundo lugar, foi preciso avançar sobre espaços até então menos aproveitados
pela rentabilidade capitalista, industrializando esferas que funcionavam mais como uma
base de apoio para a trajetória da acumulação no âmbito da produção-circulação-consumo
das mercadorias. O crescimento e complexificação do setor de serviços, das finanças e da
privatização das políticas sociais se apresentam como marcas deste novo momento do
capitalismo, impondo mudanças não apenas quantitativas, mas também qualitativas para o
desenvolvimento do sistema, que tem na ampliação das fronteiras de acumulação as
possibilidades de ganhar um novo fôlego.
A concentração e centralização do capital, acentuadas em períodos de crise,
fortalecem o capital financeiro – forma de ser do capital mais afeita a flexibilidade, dado
176
nos fluxos deste capital rentista, que já vinha crescendo – principalmente nos países de
capitalismo avançado – desde o início dos anos 1970.
Isto não significa que o processo de abertura tenha começado neste período. Como
aponta Braga (2006), desde o final dos anos 1980 ele já vinha acontecendo. Em um
primeiro momento, de 1987 até 1993, mais voltado para o mercado de capitais por meio,
dentre outras coisas, da aquisição de ações e debêntures de empresas brasileiras por não
residentes. Podemos dizer que buscou-se facilitar as inward transactions, ou seja, “a
entrada de não residentes no mercado financeiro doméstico e captação de recursos externos
pelos residentes” e, embora em menor intensidade, as outward transactions, que consistem
na “saída de capitais pelos residentes e endividamento de não-residentes no mercado
financeiro doméstico” (BRAGA, 2006, p. 99). Tentando simplificar a linguagem, a
abertura econômica no Brasil consistiu em dois momentos: a liberalização da entrada e da
saída de capitais139, sendo a primeira mais estimulada no momento inicial da abertura e a
segunda intensificada em um momento posterior.
É neste período que começam a aparecer, por dentro dos grupos industriais
nacionais, a presença de instituições financeiras (bancárias e não bancárias). Para Miranda
e Tavares (1999, p. 336) “a extinção da carta-patente-instrumento de autorização da
abertura e funcionamento de novas instituições financeiras pelo governo federal em 1988
constitui um dos incentivos para os grupos nacionais abrirem financeiras e bancos
próprios”140. Neste mesmo ano, foi autorizada pelo Banco Central a formação de bancos
múltiplos, o que para os autores significou apenas a formalização da existência destes, que
já se dava desde os anos 1970.
Ainda neste período, Paulani ([2004] 2008, p. 41-42) destaca a mudança nas contas
CC5141, em 1992, que facilitaram a saída de recursos do país. Para a autora, “esta resolução
passou não apenas pela securitização da dívida externa, como pela abertura do mercado
139
Existe ainda um terceiro nível de abertura que consiste na “conversibilidade interna da moeda, ou seja, a
permissão de transações em (ou denominadas em) moeda estrangeira no espaço nacional, como depósitos no
sistema bancário doméstico e emissão de títulos indexados à variação cambial” (BRAGA, 2006, p. 99). Mas
não chegamos a este nível no país.
140
“Em 1989, iniciaram as atividades do Banco Fibra como banco múltiplo do grupo Vicunha. Nos anos
1990, foram constituídos o Banco ABC Roma da Globopar, o Banco Votorantim e os da Fiat e WV”
(MIRANDA ; TAVARES, 1999, p. 336).
141
“Contas exclusivas para não residentes, que permitem a livre disposição de recursos em divisas”
(PAULANI, [2004] 2008, p.41).
178
142
Discutiremos em detalhes estes mecanismos no próximo capítulo.
179
priorização no pagamento da dívida, mesmo que isto envolva sacrificar recursos destinados
para outros fins, como as políticas sociais, por exemplo.
De uma maneira geral, podemos dizer que as mudanças elencadas têm
desdobramentos significativos sobre a base produtiva no país. Como procuramos
demonstrar, a abertura comercial e financeira desarticulou o parque industrial brasileiro,
promovendo uma reorganização que passou também por um amplo processo de
privatização das empresas estatais como forma de atrair investimentos externos e aumentar
a competitividade.
Miranda e Tavares (1999), ao fazerem uma cuidadosa análise da constituição dos
grandes conglomerados industriais e financeiros no Brasil, desde 1930 até o final dos anos
1990, traçam algumas linhas gerais do processo que consideramos oportuno destacar. A
preocupação dos autores é compreender o caráter patrimonialista e rentista da atuação das
empresas no Brasil e o sentido da rearticulação patrimonial em curso nos anos 1990.
Até os anos 1980 não havia uma articulação definida entre os grandes grupos
industriais e os bancários nacionais. Em sua argumentação, os autores destacam o papel do
financiamento público na formação destes grupos e o seu caráter familiar. Mesmo com a
constituição do mercado de capitais nos anos 1960, estes abrem o capital de suas empresas
como forma de absorver as vantagens trazidas por este modelo de relação de propriedade,
mas seguem funcionando como “sociedades limitadas” (1999, p. 341), mantendo o
controle da empresa no seio da família. A concentração bancária, por outro lado, permitiu
ampliar a escala de atuação de alguns bancos, que até então limitavam-se a uma
intervenção local ou regional, mas estes seguiam com uma postura conservadora de
diversificação143 dos investimentos.
Mesmo com a abertura comercial e a liberalização financeira, o que os autores
observaram foi a existência de um limite às possibilidades de diversificação dos negócios
dos grandes grupos industriais, levando-os a buscar a especialização produtiva, em muitos
casos, voltadas para as commodities. Além disso, a adoção do regime de câmbio flutuante e
a desvalorização cambial comprometeram o rendimento de alguns grandes grupos
endividados em dólar.
143
Algumas atuações são, entretanto, dignas de nota. O Bradesco (maior banco privado nacional no período)
chegou a “adquirir participações acionárias minoritárias em algumas empresas brasileiras nos anos 1980
somente por razões patrimonialistas. Nessa estratégia geral do capital bancário privado, diferenciou-se o
Banco Itaú, que operou pioneiramente como banco de negócios na articulação de interesses
industriais/bancários” (MIRANDA ; TAVARES, 1999, p. 335).
180
144
Este primeira fase foi centrada na indústria de transformação, em especial siderúrgico e petroquímico,
com destaque para as siderúrgicas Aços Finos de Minas Gerais (Açominas-MG), Companhia Siderúrgica
Paulista (Cosipa-SP) e a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN-RJ) (BNDES, 2002b).
145
“Embora seja através de posições negociadas, os fundos de pensão – via as centrais sindicais – estão
inseridos dentro do aparelho institucional que o Estado brasileiro consegue manejar; sendo que no caso dos
fundos de pensão de empresas públicas, de fato, o poder executivo tem capacidade de nomeação dos
conselheiros das empresas fechadas de previdência complementar através das empresas estatais” (ROCHA,
2013, p. 75).
182
foram os responsáveis pelo desembolso de 40% do total do valor pago pelas empresas,
US$ 3.393 milhões, a maior parte no setor de siderurgia (BNDES, 2002a).
Soma-se a estas características uma outra que é a baixa participação do investidor
estrangeiro nesta primeira fase, ficando este com apenas 5% do total da receita de vendas
(BNDES, 2002a). Rocha (2013) destaca o fato de estarem acontecendo, neste mesmo
período, processos semelhantes no restante da América Latina e no leste da Europa, além
da expansão do mercado asiático, o que contribuiria para explicar a baixa participação
externa.
A segunda etapa do processo de privatizações concentrou-se no setor de serviços
públicos, indústria extrativa e infraestrutura. Esta fase é marcada pelo fim da distinção
entre empresa nacional e estrangeira, o que contribuiu para o aumento da participação do
capital externo, pela transferência do controle de concessionárias – nas áreas de transporte,
rodovias, saneamento, portos e comunicações – ao setor privado e pela quebra de
monopólios públicos.
Do ponto de vista do valor arrecadado, os setores que merecem maior destaque
foram o elétrico e de telecomunicações. Juntos, eles somaram 66% das privatizações, tendo
movimentado um volume de US$ 52,049 bilhões, sem levar em consideração as dívidas
transferidas. O terceiro setor em volume de vendas foi o financeiro, com a arrecadação de
mais de US$ 6 bilhões. As empresas e o setor financeiro nacionais tiveram sua participação
relativa consideravelmente reduzida neste período, representando apenas 26% e 7%,
respectivamente, do total de compradores (BNDES, 2002b). Podemos observar, entretanto,
que a participação dos investidores externos se concentrou muito no setor de
telecomunicações e em parte no de energia. Nos demais setores, foi intensa a participação
dos grupos econômicos nacionais, refutando as teses de uma total desnacionalização do
parque produtivo.
O período posterior às privatizações foi marcado por uma significativa
reestruturação. Foi um processo de reacomodação, que Paulani (2008) chamou de “dança
dos capitais” e somente se consolidou na década seguinte. Como aponta Rocha (2013),
além da já mencionada saída de parte das instituições financeiras, pode-se identificar a
busca destes ativos renegociados (em função da saída das instituições financeiras) pelos
grupos econômicos nacionais e uma renegociação de posições entre estes, possibilitando
uma nova rodada de fusões, aquisições e descruzamentos acionários, no sentido de uma
verticalização. Isto porque a tentativa de diversificação das atividades foi frustrada no final
183
146
“[...] O valor capitalizado pela Bolsa de Valores subiu de forma considerável, levando a Bovespa a ocupar
a décima posição entre as bolsas mundiais (terceira maior entre os ‘emergentes’) em volume de capitalização
no mercado. O que fornece uma dimensão qualitativa do crescimento dos fundos envolvidos no mercado
acionário brasileiro” (ROCHA, 2013, p. 72).
184
Gráfico 3 - Valor das empresas listadas na Bolsa de Valores de São Paulo em US$
bilhões (1995/2011)
Como podemos ver, o valor sobe de forma bastante intensa a partir de 2003, sofre
uma brusca redução em função da crise de 2008/2009 e retoma o crescimento desde então.
Estes dados apontam para a consolidação do processo que se inicia nos anos 1990, mas que
seguia se alterando no momento posterior às privatizações, ganhando um incentivo no
aumento da participação dos fundos de pensão e na mudança de postura do BNDES, a
partir do governo Lula. Para Rocha (2013, p. 74), estes “tornaram-se atores chave no
processo de reestruturação dos grupos econômicos e estão entre os principais sócios dos
grupos que apresentaram maior crescimento patrimonial”.
O gráfico 4 demonstra a evolução dos ativos financeiros das empresas de
Previdência Complementar fechada durante os dois primeiros governos do Partido dos
Trabalhadores.
185
Como é possível observar, a curva é também ascendente, não sofrendo redução nem
mesmo no auge da crise, diferentemente do que indicamos a respeito do valor das
empresas de capital aberto. Este fato aponta para o fortalecimento dos fundos de
previdência privada, o que aumenta sua importância, capacidade de influência e articulação
com as empresas do setor produtivo. Sabemos que boa parte destes ativos são títulos da
dívida privada, mas pode-se observar uma tendência ao aumento da procura por ações de
empresas, principalmente na área de infraestrutura.
Os fundos de pensão da Petrobras (Petros), do Banco do Brasil (Previ) e da Caixa
Econômica Federal (Funcef), controlavam, em conjunto, US$ 131 bilhões, em 2012.
Segundo informações de José de Souza Mendonça, presidente da Associação Brasileira de
Previdência Privada (Abrapp), divulgadas pela revista Exame no final de 2012147, estes
fundos “estão comprando fatias de até 25 por cento em empresas que atuam na construção
de hidrelétricas, estradas, linhas de transmissão e aeroportos”. Para Mendonça, “em vez de
especular no mercado acionário, os grandes fundos estão participando diretamente nas
empresas”. As razões estão em parte na queda da taxa de juros, bem como nas expectativas
147
Disponível em: http://exame.abril.com.br/mercados/noticias/fundos-de-pensao-investem-em-
infraestrutura. Acesso em: 02/03/2013.
186
de lucratividade futura destas empresas, em virtude dos Mega-eventos esportivos que estão
aquecendo estes setores, mas caminham no mesmo sentido já sinalizado desde os primeiros
anos deste século.
Sendo assim, este período de acomodação permitiu a consolidação das posições de
instituições financeiras como fundos de investimento e pensão e das companhias holdings
(formação típica das empresas em seus conglomerados), e apresenta, em geral, um
significativo aumento da vinculação entre o grande capital produtivo e instituições
financeiras148. Cumpre destacar, entretanto, que este comportamento parece estar muito
mais relacionado às instituições financeiras do Estado ou a algum grau de vinculação a
este, do que às privadas.
Segue, deste modo, forte a presença do Estado, constituindo-se como um terceiro
elemento. Nesta intrincada rede de articulações entre diferentes frações da burguesia
(produtiva e rentista) e o Estado, diluem-se parcialmente as diferenças entre estes três
segmentos. Mantém-se, apesar disso, a influência direta do poder executivo sobre o
processo de tomada de decisões, em especial nos governos do Partido dos Trabalhadores,
principalmente por meio do BNDESPar e da sua relação com os gestores dos fundos de
pensão. Tem-se também, mesmo que em boa parte proprietários minoritários de ações, a
participação do capital estrangeiro em diversos setores de atuação do grande capital
nacional.
Para termos uma ideia da importância da atuação do BNDESPar:
148
O site da campanha Quem são os proprietários do Brasil? (www.proprietáriosdobrasil.org.br) elaborou um
ranking dos proprietários do Brasil, além de ter desenvolvido uma metodologia que nos permite visualizar o
controle acionário das empresas, desnudando uma intrincada rede de propriedade que envolve empresas
nacionais, estrangeiras e o Estado. A campanha é organizada pelo Instituto Mais Democracia e a cooperativa
Educação, Informação e Tecnologia para a Autogestão (EITA).
187
Estes dados demonstram como, mesmo após as privatizações, houve uma postura
ativa do Estado no sentido de fortalecer a atuação dos grandes grupos nacionais,
rearticulando a base produtiva e estimulando processos de concentração e centralização
capitalistas. Este fato nos faz lembrar a já mencionada dificuldade em se especificar
quando uma empresa é claramente estatal, privada nacional ou estrangeira. Como sinalizou
Ianni (1981) em seus estudos sobre a acumulação capitalista no período da ditadura civil-
militar, mesmo com muito estudo, estabelecer estes vínculos é um desafio. Acreditamos
que, na atualidade, esta dificuldade é ainda maior dado que muitas empresas, mesmo não
sendo mais formalmente estatais, seguem sob influência do Estado, embora de maneira
diversa.
Assim, o capital financeiro no Brasil se forma endogenamente de uma maneira,
digamos, “não clássica”, assumindo um caráter hibrido dado o grau de envolvimento do
Estado na dinâmica que constituiu a articulação entre produção e finanças no país. Mais
uma vez, o salto para uma nova etapa de desenvolvimento capitalista se dá por meio da
forte atuação do Estado que, já tendo sido o impulsionador do capitalismo monopolista em
meados dos anos 1950, atua agora como o mecanismo pelo qual se engendra o capital
financeiro.
As privatizações consistiram na ponta de lança deste processo, em uma trajetória
que, entre idas e vindas, se consolida na primeira década deste século, sob a batuta do
governo conduzido pelo Partido dos Trabalhadores. Os instrumentos são em grande parte
fundos de pensão e o BNDESPar, sem os quais as empresas nacionais – fragilizadas pela
abertura comercial e com sérios problemas de endividamento (externo), agravados pela
política cambial dos anos 1990 –, não teriam como se capitalizar para tirar proveito das
vendas das estatais e talvez teriam que optar por uma associação ainda mais subalternizada
com o capital estrangeiro, o que de fato aconteceu nos setores mais intensivos em
tecnologia.
Uma análise mais completa dos desdobramentos desta particularidade na
constituição endógena do capital financeiro ainda precisaria ser elaborada. Mas já podemos
sinalizar que este processo tem repercussões sobre a configuração do Estado e sobre o
papel da dívida pública. Este fato se deve, por um lado, à possibilidade de alavancar
recursos para o investimento público e, por outro lado, alimentar a rentabilidade financeira
de seus credores, que abocanham parcelas significativas do fundo público. É sobre este
aspecto que nos debruçaremos no próximo capítulo.
188
Epicuro
mudanças no início dos anos 1990, trazidas pela adesão ao receituário neoliberal de
parcelas do grande capital que atua no país, aos interesses do capital internacional, que
buscava ampliar suas fronteiras de atuação, estando esta orientada pela necessidade de
maximizar a rentabilidade financeira e contrarrestar a tendência decrescente da taxa de
lucros.
Mas a entrada do Brasil de forma mais aprofundada no circuito mundial das
finanças não foi fruto “apenas” dos interesses externos. Ela beneficiou frações da
burguesia que atuam em nosso território de forma mais atrelada ao capital financeiro
internacional e dependeu de um conjunto de mudanças implementadas pelos governantes
nos anos 1990. Demonstramos como a estabilização monetária foi fundamental para
garantir um ambiente mais estável e sedutor para o capital especulativo e a importância das
alterações feitas na política econômica para assegurar o pagamento de juros e a liberdade
de capitais.
A ausência de uma política industrial, o câmbio sobrevalorizado, a liberalização
financeira, as altas taxas de juros, dentre outras medidas, foram recursos utilizados sob a
justificativa de viabilizar a estabilidade monetária e ampliar a competitividade, mas que
trouxeram consigo um aumento da vulnerabilidade externa, fragilização do parque
industrial, dependência do capital de curto prazo e aumento exponencial da dívida pública.
O processo de privatizações, neste contexto, não seria suficiente para dar novo fôlego ao
grande capital interno, que também sofreu o impacto não apenas destas medidas, como
também da desvalorização cambial após a adoção do regime de câmbio flutuante no final
da década149.
Foi preciso um amplo apoio do Estado, principalmente via recursos
disponibilizados pelo BNDES, para que o grande capital pudesse tirar um maior proveito
desta situação. E assim foi tornado possível levar a cabo um conjunto de fusões e
aquisições em que foram absorvidas as empresas com maior fragilidade, bem como a
ampliação das possibilidades de compra das estatais por parte do grande capital. O
financiamento das privatizações e de operações de fusões e aquisições foi a principal tarefa
deste banco de desenvolvimento na referida década.
Esta recomposição da base produtiva, entretanto, não foi suficiente para reverter a
especialização regressiva em curso. Não se verificou uma centralização significativa
149
Como discutido no segundo capítulo, boa parte dos grandes capitalistas possuía significativas dívidas em
dólar, o que representou um aumento do endividamento quando houve a desvalorização cambial.
190
pautada na busca pela diversificação dos negócios e muitas vezes, quando houve, esta foi
marcada pela entrada de outros setores, como da construção civil, na produção de
commodities. Continuamos sem grandes perspectivas de uma atuação efetiva nos setores
mais dinâmicos da economia como os intensivos em capital e tecnologia de ponta. Em
outras palavras, o que houve foi um reforço à nossa posição na Divisão Internacional do
Trabalho (DIT) e uma atuação mais conservadora do grande capital, voltada para fortalecer
posições já conquistadas. Também não podemos verificar, em meio a esta recomposição, a
formação de grandes conglomerados produtivo-financeiros típicos das formações
capitalistas nos países imperialistas. Este salto qualitativo na conformação do grande
capital interno, segundo nossa hipótese, começa a ser verificado na década seguinte, por
meio da implementação do projeto de desenvolvimento conduzido pelo Partido dos
Trabalhadores.
Sobre esta mudança, destacamos novamente o papel preponderante do Estado. Sem
deixar de considerar a importância que este tem desde a própria constituição do modo de
produção capitalista – como procuramos resgatar no início do primeiro capítulo, por meio
do debate de Marx acerca da acumulação primitiva –, consideramos fundamental ressaltar
a particularidade de sua atuação nas economias dependentes.
Como destaca Ianni, nas crises inerentes ao modo de produção capitalista o Estado
é chamado a intervir de forma mais ativa para conter seus efeitos. Esta ideia serve tanto
para os países dominantes quanto para os dependentes. A diferença é que nos elos mais
fracos da cadeia, muitas destas crises tendem a vir de fora e a assumir grandes proporções
internamente, o que demanda uma atuação mais ofensiva para dirimir seus
desdobramentos. Quanto maior o nível de dependência externa, mais suscetível está um
país a crises de longo alcance. “Em consequência, o Estado se insere cada vez mais no
centro do sistema econômico, isto é, desenvolve-se mais e mais um dos seus conteúdos
essenciais, como expressão e síntese do regime político-econômico” ([1971] 2009, p. 283).
No Brasil, o Estado sempre possuiu um papel preponderante para a garantia das
condições gerais de acumulação capitalista. Sua atuação foi decisiva para viabilizar os
saltos de desenvolvimento experimentados ao longo de nossa história. Por exemplo, “a
transição para a fase de bens de produção esteve associada a transformações qualitativas,
isto é, estruturais; e estas não ocorrem sem saltos” (IANNI, [1971] 2009, p. 285). A
particularidade de uma formação dependente passa pelo fato de “queimar” algumas etapas
e, para isso, a presença do Estado sempre foi fundamental. “As transformações de tipo
191
150
Este aspecto será retomado na segunda seção deste capítulo.
192
151
Segundo Tautz et al, “[...] o capital estrangeiro também se fez presente nestas redes [de proprietários], mas
normalmente de modo minoritário, exceção para o setor bancário e de telefonia, onde o capital estrangeiro
assumiu posições de controle” (2010, p. 251).
193
seria muito mais barato comprar barris de petróleo no mercado externo. Esta decisão
viabilizou o fornecimento de insumos básicos a preços subsidiados, além de um
investimento em tecnologia de ponta que permitiu, posteriormente, a exploração em alto-
mar. A criação desta empresa foi um dos pontos altos de enfrentamento aos interesses
imperialistas do período nacional-desenvolvimentista, com fortes impactos sobre a
produção nacional.
O que podemos observar no último período é a privatização da lógica que rege a
intervenção do Estado na economia. Esta não desaparece, mas assume novas configurações
em uma conjuntura de alteração nas relações de poder sobre a empresa. O Estado aparece
agora como sócio-proprietário de empreendimentos privados. Este fato contribui para
reforçar a confusão e a dificuldade de discernimento entre o público e o privado, de modo
que a atuação do Estado está cada vez mais submetida à lógica que rege a iniciativa
privada152. São, portanto, as possibilidades de defender os “interesses públicos” muito mais
pontuais, por mais que se mantenha, ainda, alguma capacidade.
Do mesmo modo, os fundos de pensão – regidos por frações dos trabalhadores,
muitas vezes sob a influência do Estado –, assumem também a capacidade de gerirem os
recursos sob a ótica do capital, investindo nas empresas mais rentáveis e se beneficiando
dos ganhos de quem dispõe de recursos para emprestar ao Estado. Assim, tanto o Estado
quanto esta aristocracia operária se apropriam do aumento da rentabilidade advindos de
demissões e do aumento da exploração da classe trabalhadora, financiando o capital
privado e obtendo cargos de gestão que os possibilita, inclusive conduzir estes processos.
Como sinalizamos no capítulo anterior, além de terem participado do processo de
privatizações, estes fundos vêm recentemente ampliando sua participação em
investimentos de infraestrutura de grande porte e longa maturação, atraídos pelas
possibilidades de ganhos, em especial em função dos Mega-eventos esportivos e do PAC.
O gráfico 5 apresenta a alocação dos ativos dos fundos de pensão no período de 2003 a
2010.
152
Em 2009, a Vale “recebeu o maior financiamento já dado pelo Banco a uma empresa, R$7 bilhões. Esta
mesma empresa tem participação do BNDESPar, incluindo golden shares que, contudo, nunca foram usadas
pelo Banco, nem mesmo quando a Vale realizou demissões em massa, no contexto da crise” (TAUTZ et al,
2010, p. 254).
194
Como podemos ver, em todos os anos da série, houve cerca de 60% dos ativos
aplicados em renda fixa, ou seja, títulos da dívida. O segundo investimento de maior vulto
é em renda variável – ações compradas na bolsa de valores. Em 2010 começam a aparecer
os investimentos estruturados, que representam os investimentos de grande porte a que nos
referimos (sinalizados pela pequena linha azul escuro, logo acima da lilás). Um dos
elementos que podemos perceber é que a lógica que rege as decisões pela aplicação dos
recursos, baseada na expectativa do ganho e no menor risco – lógica que orienta o
capitalista individual –, conduz os investimentos aos setores e empresas mais consolidados
no mercado.
Também a atuação do BNDES vem obedecendo a esta orientação com o objetivo
explícito de fortalecer as “empresas nacionais líderes globais”, de modo que pouco tem se
feito para alterar a posição do país na DIT, fortalecendo setores exportadores de baixo
valor agregado, ao passo em que os setores industriais tradicionais seguiram perdendo
posições153. O pesquisador do IPEA, Mansueto Almeida, destaca que “a exportação de
153
No primeiro governo Lula, a indústria “foi o setor que mais cresceu, em termos absolutos e relativos, no
que diz respeito ao patrimônio líquido, à receita operacional líquida e ao lucro líquido. No entanto, essa
evolução positiva não se deu de forma homogênea entre os segmentos industriais; pelo contrário, o que se
verificou foi uma expansão elevada, em termos absolutos e relativos, dos grupos econômicos industriais
produtores de commodities (fortemente influenciados pelos efeitos Vale e Petrobras) destinadas, em boa
medida, ao mercado externo; ao passo que os setores industriais tradicionais e difusores de tecnologia – que
195
destinam sua produção ao mercado interno – decresceram em termos absolutos e relativos. Isso evidencia que
o processo de mudança estrutural da indústria brasileira, denominado de especialização regressiva da
indústria, em curso desde os governos FHC, se acelerou durante do governo Lula. Em outras palavras,
ocorreu um avanço de segmentos industriais intensivos em recursos naturais e produtores de commodities,
intensivo em capital, que tiveram como contrapartida a redução absoluta e relativa de outros segmentos
industriais” (PINTO, 2010, p. 165).
154
O grupo Bertin possui controle 100% nacional e “tem investimentos nos setores agroindustrial, de higiene
e limpeza, infraestrutura e energia, destacando-se por sua participação nas indústrias de couro e carne no
Brasil e no mundo. O grupo está entre os 100 maiores em atividade no Brasil [...]. Em 2008, a maior
aplicação direta do BNDES em um grupo industrial (R$ 2,5 bilhões) foi para este grupo, que conta também
com uma elevada participação do BNDES na sua composição acionária.” (ALMEIDA, 2009, p. 29).
155
“No ranking das 200 maiores corporações empresariais em atuação no Brasil, o grupo JBS/Friboi passou
da posição 61 em 2006 para a posição 31 em 2007, sendo que, até 2002, a empresa não aparecia nem mesmo
entre as 400 maiores empresas em atividade no Brasil. O grupo iniciou seu processo de internacionalização
em 2005 com a aquisição da empresa Swift na Argentina por meio de financiamento do BNDES [...]. No
início de 2009, o grupo JBS/Friboi [...] [havia se tornado o] maior exportador mundial de carne processada, o
terceiro maior produtor de carne bovina [..] e o terceiro maior produtor de carne de porco [...]. Esta empresa
nacional, além das plantas no Brasil, tem unidades de produção nos EUA, Argentina, Itália e Austrália”
(ALMEIDA, 2009, p. 29-30).
156
Fruto da fusão da Sadia com a Perdigão em 2008, duas grandes empresas exportadoras, a Brasil Foods é
líder nacional, “com uma participação de mercado acima de 50% nos segmentos de carnes refrigeradas,
carnes congeladas, massas e pizzas semiprontas. [...] Juntas, estas duas companhias [Sadia e Perdigão]
receberam R$ 672,5 milhões do BNDES apenas em 2008, o que as colocaria no quarto lugar entre as maiores
operações diretas do BNDES, atrás apenas das que envolveram os grupos Bertin, JBS/Friboi e Marfrig”
(ALMEIDA, 2009, p. 31).
196
(FAT), que está com déficit em caixa, não podendo repassar além do limite constitucional
de 40% para o Banco. Significa que a continuidade da política industrial por meio do
fortalecimento do BNDES tem sido garantida pelo endividamento do Estado. Em 2009, o
governo emprestou R$100 bilhões ao Banco. Isto sem mencionar a contradição existente
no fato de serem usados recursos da classe trabalhadora, por meio do FAT, para financiar a
acumulação capitalista e, portanto, a exploração da própria classe.
Como podemos ver, esta lógica de apropriação do trabalho necessário vem
assumindo contornos bastante diversificados no contexto da financeirização. Cada vez
mais, fundos compostos por parcelas dos salários são formados e disponibilizados
diretamente para investimentos produtivos ou postos a serviço do capital fictício,
alimentando o circuito das finanças157. No caso do BNDES e dos fundos de pensão, é
possível constatar um imbricamento entre estas instituições financeiras e o grande capital
produtivo, constituindo endogenamente, e por uma via não clássica, o capital financeiro no
Brasil.
Esta atuação do Estado e o incentivo para que os fundos de pensão atuem neste
mesmo sentido, tem contribuído para fortalecer e incentivar as “campeãs nacionais”. O
governo Lula, ao retomar a política industrial, relegada pelo governo FHC, e reorientar a
atuação estatal, deixa clara sua preocupação em não apenas não romper com o capital, mas
de fortalecê-lo. O faz, todavia, de maneira diferente da que se definiu nos governos
anteriores. Como analisa Boito Jr. (2012), ao priorizar investimentos às empresas
nacionais, o governo vem contrariando frações da burguesia mais diretamente atreladas ao
imperialismo – a chamada burguesia compradora – e melhorando a posição da burguesia
interna no bloco do poder158. Esta burguesia interna ocuparia “uma posição intermediária
entre dois extremos – entre a burguesia nacional e a burguesia compradora – teria base de
acumulação própria e poderia buscar, ao mesmo tempo, associar-se ao capital imperialista
e limitar sua expansão no interior do país” (2012, p. 68-69).
157
Como já discutido, nos referimos a parcelas do salário que compõem fundos como o FAT ou os fundos de
pensão e são utilizados para financiar a acumulação capitalista. Um outra parcela da remuneração dos
trabalhadores compõe o fundo público por meio do pagamento de impostos e contribuições sociais e é usado,
dentre outras coisas, para pagar os credores da dívida pública.
158
Para fazer a distinção entre burguesia interna e compradora o autor se baseia nas formulações de Nicos
Poulantzas, em A crise das ditaduras: Portugal, Grécia e Espanha. Segundo ele, “nos países dependentes,
essa burguesia [interna] ocuparia, na análise de Poulantzas, uma posição intermediária entre a antiga
burguesia nacional, passível de adotar práticas anti-imperialistas, e a velha burguesia compradora, mera
extensão do imperialismo no interior desses países” (BOITO Jr., 2012, p. 68).
197
para a burguesia interna. Pelo contrário, estes continuam no bloco de poder. A condução da
política econômica seguiu sem alterações substantivas. Como foi feita, por parte do
governo, a escolha de assumir o poder sem ruptura com o capital (e garantindo a
manutenção da estabilidade econômica), o que ele fez foi buscar brechas para flexibilizar
um pouco a ortodoxia do receituário e procurar as compensações “possíveis” (no interior
deste padrão de acumulação), para traçar uma alteração tímida no rumo do
desenvolvimento no país.
Sendo assim, segue o compromisso com a obtenção de superávits primários,
inicialmente assumidos por FHC, quando enfrentou a crise em 1998. Mas são elaboradas
estratégias para, em alguma medida, burlar seus cálculos e atenuar parcialmente seus
efeitos. Não é a toa que, em 29 de setembro de 2010, a coluna Opinião do jornal Estado de
São Paulo159 denunciou que o governo estaria usando botox nas contas públicas. A
intenção era denunciar a “maquiagem” – feita pelo recurso a algumas artimanhas contábeis
– usada para atingir a meta de superávit primário, criticar os considerados excessivos
gastos do governo e reivindicar o compromisso com a austeridade que, supostamente, todo
o governo “sério” deveria ter.
As metas de inflação são também heranças do passado que ainda permanecem nos
governos petistas, embora flexibilizadas, tendo em vista que não há mais uma preocupação
obsessiva com o centro da meta, sendo considerado suficiente não ultrapassar o seu teto.
De qualquer forma, o economista Miguel Bruno afirma que “o chamado novo consenso de
política econômica com sistemas de metas de inflação [inaugurado nos anos 1990 e
mantido até hoje] inaugura, assim, [...] uma época singular de conservadorismo da política
econômica e, particularmente, da política monetária” (2010, p. 99, grifo do autor).
As taxas de juros de uma maneira geral diminuíram significativamente, mas além
de permanecerem altas, o recurso a aumentá-las por vezes ainda é considerado o mais
eficaz para conter a inflação160. Como forma de compensar os entraves que a taxa de juros
alta cria, o governo, por meio do BNDES, dispõe de recursos a taxas de juros subsidiada
para emprestar ao grande capital, permitindo a este grupo de capitalistas uma certa
159
Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,botox-nas-contas-publicas,616988,0.htm.
Acesso em: 14/07/2013.
160
O Banco Central segue praticando – e é pressionado pelos setores rentistas a aprofundar – “uma política
monetária gerida de acordo com a hipótese de neutralidade da moeda e sob o pressuposto, sem comprovação
empírica, de que não importa qual origem tenha, toda inflação pode ser assimilada à inflação de demanda e
deve ser combatida com aumentos da taxa de juros” (BRUNO, 2010, p. 98, grifo nosso).
200
proteção. A maioria das pequenas e médias empresas, assim como boa parte classe
trabalhadora, seguem se endividando sem mecanismos que os preservem das taxas de juros
vigentes.
A questão da taxa de juros, entretanto, está longe de se restringir aos obstáculos
impostos ao investimento produtivo. Ela nos remete ao problema da dívida pública,
mecanismo pelo qual se alimenta o capital portador de juros e se drena parte substantiva
dos recursos do fundo público. A condução da política econômica efetuada pelo governo
Lula – e que tem continuidade com a presidenta Dilma – não alterou o padrão de gestão da
dívida, mantendo-se não apenas as metas de superávit, mas também a Desvinculação de
Receitas da União (DRU) e a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Uma das iniciativas alegadas para conter o aumento da dívida nos anos 1990, como
discutimos no capítulo anterior, foi a venda das empresas estatais. Ao contrário de
diminuir, seu valor aumentou de forma acelerada no período. Este aumento se deveu, em
grande parte, ao forte aumento da taxa de juros, um dos pilares usados para garantir a
estabilidade monetária via atração de significativos montantes de recursos externos, em
grande parte com aspirações puramente especulativas. Já registramos a articulação desta
decisão aos interesses do capital financeiro internacional, que buscava ampliar suas
possibilidades de rentabilidade por meio da absorção dos excedentes produzidos nas
economias dependentes.
O mais grave a se considerar é que, ao contrário dos argumentos liberais, pautados
na ideia de que o Estado gasta mal ou de que ele seria perdulário e por isso estaria
endividado, o aumento da dívida tem base financeira (aumento dos juros). Não se trata de
gastar muito ou gastar mal, aliás, pouco se gastou. Em outras palavras, do montante total
da dívida, apenas uma parcela de recursos foram emprestados e efetivamente gastos. A
maior parte desta consiste em juros em cima de juros. O endividamento praticamente não
possui contrapartida em termos de desenvolvimento e, muitas vezes, é utilizado para pagar
a própria dívida161 (FATTORELLI, 2012).
Como discutimos nos capítulos anteriores, o brusco aumento da taxa de juros
estadunidense em 1979, comprometeu enormemente os países dependentes. Para Chesnais,
161
“Cabe ressaltar que a Constituição Federal, art. 167, autoriza a emissão de dívida somente para pagar
amortizações (despesas de capital), vedando porém, a emissão de dívida para pagar juros (despesa corrente).
Entretanto, a contabilização irregular de parte dos juros nominais (atualização monetária) como se fossem
“rolagem” vem burlando esta vedação constitucional” (FATTORELLI, 2012, grifo da autora).
201
162
“Sob condições macroeconômicas que caracterizam um processo de financeirização por renda de juros, o
endividamento público interno contribui muito mais para reproduzir os limites estruturais ao
desenvolvimento econômico brasileiro do que para superá-los, caso em que seria necessário que os déficits
públicos tivessem como contrapartida o aumento do investimento do governo” (BRUNO, 2010, p. 102).
202
Consideramos importante resgatar este pano de fundo para a análise do gasto social,
tendo em vista que é fundamental, para a discussão das prioridades do governo, entender o
“sequestro” da política econômica. A política monetária é vista como imutável e submete
as políticas fiscal e cambial a um engessamento com forte expressão no gasto público.
Assim, o Estado tem suas possibilidades de intervenção bastante limitadas, equilibrando-se
em torno de políticas paliativas que atenuam apenas parcialmente os efeitos de suas
decisões econômicas.
Se por um lado o governo Lula se pôs a serviço da burguesia interna, por outro não
deixa de beneficiar a burguesia compradora. Ao mesmo tempo, vem habilmente operando
algumas importantes concessões à classe trabalhadora. Para tanto, recorre com frequência à
adoção de medidas ambíguas e limitadas no seu potencial ofensivo. Mantém altas as taxas
de juros, mas concede créditos a juros subsidiados. Cria programas sociais que atingem
considerável parcela da população, mas o faz cheio de restrições e condicionalidades e, na
maior parte deles, por meio de transferência direta de renda, o que beneficia também o
capital portador de juros.
No caso específico das políticas sociais, suas contradições são aprofundadas ao
passo em que estas, além de servirem ao capital por reduzirem o custo de reprodução da
força de trabalho e atenuarem os conflitos de classe – elementos contraditórios presentes
na gênese destas políticas – servem, cada vez mais, à acumulação capitalista de modo
direto. Estas se tornam espaços lucrativos tanto na prestação dos serviços diretamente (por
meio de contratos de gestão privada, planos de saúde e previdência e etc), quanto por
viabilizar a inclusão de parcelas significativas da população no sistema bancário e
financeiro, via transferência de renda efetivada por cartão de banco e empréstimos
consignados de todo o tipo.
A partir destas considerações, neste capítulo, nos dedicamos à análise do gasto
social nos dois mandatos do presidente Lula. Para tanto, fizemos, na primeira seção, um
debate introdutório de caráter metodológico como forma de subsidiar a discussão. Nele
203
tratamos de elementos que sustentam nosso referencial teórico e apontam para o lugar que
a luta por políticas sociais assume no processo de enfrentamento ao capital, na perspectiva
de superação desta sociedade. Abordamos também a importância de se pensar o gasto
público de forma articulada ao seu financiamento, bem como aspectos metodológicos e
técnicos presentes na contabilização dos gastos sociais que tomamos como referência.
Na segunda seção, apresentamos uma análise inicial dos dois Planos Plurianuais
elaborados, bem como avaliamos alguns de seus resultados, tendo por base dados sobre
parte das variáveis macroeconômicas que contribuem para ilustrar o sentido das alterações
produzidas. Em especial, nos dedicamos a discutir os gastos sociais em sua dimensão
quantitativa e qualitativa, procurando apreender as contradições, avanços e continuidades
destes governos.
“A despolitização cria, assim, um imenso vazio nas consciências, vazio que só pode ser útil
à classe dominante, que recheia as consciências com atos, preconceitos, hábitos, lugares
comuns e preocupações que, enfim, contribuem fortemente para manter a ordem social
vigente” (VÁZQUEZ, 1977, p. 12-13).
Partimos do pressuposto de que o mundo real não é, deste modo, algo estático “uma
variante secularizada do paraíso, de um estado já realizado e fora do tempo”. Seu
dinamismo está em ser “a compreensão da realidade humano-social como unidade de
produção e produto, de sujeito e objeto, de gênese e estrutura” (KOSIK, 1976, p. 18, grifo
do autor). Por estar continuamente em movimento, existem sempre questões a serem
apreendidas. “[...] o conhecimento de fatos ou de conjuntos de fatos da realidade vem a ser
conhecimento do lugar que eles ocupam na totalidade do próprio real” (KOSIK, 1976, p.
41).
Este mundo, regido pelas necessidades práticas imediatas, acaba afastando os
homens da práxis163 revolucionária, criando uma ilusão de que chegamos ao fim da
história. Entendemos a teoria como condição indispensável para o processo de politização
da análise da realidade e subsídio para a ação de homens e mulheres. A teoria, portanto, em
sua integração com o método, possui um caráter de classe que pode contribuir para a
transformação das condições sócio-estruturais existentes. Deste modo, “[...] a teoria, que
por si só não transforma o mundo real, torna-se prática quando penetra na consciência dos
homens” (VÁZQUEZ, 1977, p. 127).
O caminho percorrido ao longo do desenvolvimento desta pesquisa envolve, por
conseguinte, a análise de documentos e de dados inseridos em um determinado contexto
histórico sobre o qual nos debruçamos desde o primeiro capítulo deste trabalho e que
abordamos em suas especificidades neste. Acreditamos que “todo o conhecimento é uma
oscilação dialética [...] entre os fatos e o contexto (totalidade), cujo centro ativamente
mediador é o método de investigação” (KOSIK, 1976, p. 48).
Portanto, faremos uma discussão inicial acerca da Questão social, luta de classes,
direitos e políticas sociais, buscando apreender seus elementos contraditórios e o lugar da
luta por políticas sociais e por direitos, no contexto de luta de classes, bem como suas
163
Assim como Vázquez, “inclinamo-nos pelo termo ‘práxis’ para designar a atividade humana que produz
objetos, sem que por outro lado, essa atividade seja concebida com o caráter estritamente utilitário que se
infere do significado do ‘prático’ na linguagem comum. Assim entendida, a práxis é a categoria central da
filosofia que se concebe ela mesma não só como interpretação do mundo, mas também como guia de sua
transformação” (1977, p.5).
205
164
Dados publicados no O Globo on line em 05/12/2006, no caderno de Economia.
Disponível em http://oglobo.globo.com/economia/nacoes-unidas-apenas-1-da-populacao-mundial-detem-40-
da-riqueza-do-planeta-4542153. Acesso em 15/02/2012.
206
Ainda que estes dados sejam, por si só, alarmantes, não se trata apenas de um
aumento quantitativo. A forma como a desigualdade aparece ao longo de um determinado
período histórico sofre mudanças também de natureza qualitativa. O entendimento de suas
determinações envolve um longo trajeto. Nas palavras de Netto,
tecnologias. Assim, por meio da combinação de extração de mais valia absoluta e relativa,
as condições de trabalho e de vida são gravemente atingidas. Estas mudanças refletem uma
fragilidade na organização sindical e sua possibilidade de se contrapor a este quadro, ao
mesmo tempo em que agravam esta realidade (ANTUNES, 1999; IAMAMOTO, 2008;
PASTORINI, 2004).
As medidas acontecem em meio a uma suposta “sociedade global”, em que crescem
as desigualdades não apenas no interior dos países, mas também entre eles. Uma espécie de
diluição de fronteiras para garantir o avanço das grandes corporações internacionais choca-
se, paradoxalmente, ao avanço da xenofobia e aumento das exigências para entrada de
estrangeiros que migram em busca de melhores condições de vida, observada em diversos
países. E assim, com o avanço da liberdade para que o capital transite e uma maior
restrição para o deslocamento de pessoas, observamos o crescimento do capital em busca
de novos espaços de valorização e o crescimento das contradições que este processo
engendra.
Comuuo decorrência deste processo, apesar das possibilidades crescentes de criação
de riqueza, o que temos é a impossibilidade de se satisfazer as necessidades de todos. É no
modo de produção capitalista que torna-se possível, pela primeira vez na história, criar
uma identidade entre o aumento da produção de riqueza e o pauperismo crescente. Assim,
Marx afirma, ao tratar da lei geral de acumulação capitalista – base em que se sustenta a
questão social –, que “acumulação da riqueza num polo é, ao mesmo tempo, acumulação
de miséria, de trabalho atormentante, de escravatura, ignorância, brutalização e degradação
moral, no polo oposto, constituído pela classe cujo produto vira capital”([1867] 1985, p.
749).
Isto se dá tendo em vista que as bases para a acumulação capitalista – e a decorrente
produção de riquezas –, vista no seu conjunto, se assenta no uso intensivo do capital e na
absorção de parcelas menores da força de trabalho, acompanhadas de formas cada vez mais
intensas e diversificadas de extração de mais valia (tanto absoluta quanto relativa),
precarizando as condições de vida dos trabalhadores e comprometendo as possibilidades de
reprodução da vida material dos que não conseguem vender sua força de trabalho.
Deste modo, ainda que possamos demarcar uma posição contrária aqueles que
reivindicam a existência de uma nova questão social – como Castel (1998) ou Rosanvallon
(1998), mesmo que com argumentos diferentes entre si –, salientamos que o tempo
presente é marcado por uma maior complexificação, tanto do ponto de vista dos elementos
208
que a determinam, quanto dos que a expressam. Neste sentido, estamos de acordo com
Alejandra Pastorini ao afirmar que:
O que queremos destacar é que as raízes da questão social seguem sendo as mesmas
e fundam-se nos elementos centrais que marcam o modo de produção capitalista, os quais
também permanecem, em essência, os mesmos, quais sejam: a subsunção real do trabalho
ao capital, a qual relaciona-se ao fato de termos uma produção cada vez mais social e uma
apropriação cada vez mais privada. Esta é a base sobre a qual podemos dizer que a
acumulação de riqueza gera, no outro polo, a miséria. Para usarmos as palavras de Marx:
As mudanças em curso não derivam de alterações estruturais nesta relação, mas têm
desdobramentos significativos sobre ela. Na verdade, estas mudanças possuem
continuidades e rupturas e estão articuladas a questões técnico-organizativas, político-
econômicas e ideo-culturais, que vêm se constituindo ao longo de um determinado
processo sócio-histórico. A dinâmica da base produtiva mantém uma interação dialética
com a capacidade reivindicativa da classe trabalhadora e com as suas condições de vida e
de trabalho, de modo que provocam mudanças que abarcam o conjunto da vida social,
produzindo mais diversificadas e complexas expressões da questão social.
Marilda Iamamoto chama a atenção para o fato de que “a mundialização
financeira sob suas distintas vias de efetivação unifica, dentro de um mesmo
209
movimento, processos que vêm sendo tratados pelos intelectuais como se fossem
isolados ou autônomos” (2008, p. 114, grifo da autora). Dentre estes, ela destaca:
165
“É exatamente esta forma acabada – a forma dinheiro – do mundo das mercadorias que objetivamente
vela, em vez de revelar, o caráter social dos trabalhos privados e, portanto, as relações sociais entre os
produtores privados” (MARX, [1867] 1988a, p. 73).
210
166
Com base em Silvana Mara dos Santos, gostaríamos de destacar que “o direito a que estamos nos
referindo é aquele que se efetiva de modo institucional, definindo norma, critérios e um corpo técnico
responsável para regular as relações entre os indivíduos e seu sistema de propriedade” (2007, p. 25).
211
167
“O direito de propriedade privada constitui a base do poder econômico, mas, sob o sufrágio universal, os
privilégios da propriedade privada são substituídos pelo poder correspondente a ‘uma pessoa, um voto’, que
constitui a base imediata do poder político. Sob estas condições, o relacionamento entre interesses de classe
economicamente concebidos e o Estado enquanto entidade política se torna especialmente nebuloso, o que,
naturalmente, é vantajoso, pois é muito mais fácil para o Estado manter a aparência de árbitro neutro entre
todos os interesses” (HARVEY, 2006, p. 86).
212
o direito de todos ao trabalho só existe como direito porque ele não pode ser
realizado. A sua plena efetivação só seria possível mediante a eliminação da
compra-e-venda da força de trabalho, com todas as suas consequências, ou seja,
a superação da sociedade regida pelo capital. O mesmo raciocínio pode ser
aplicado ao direito de propriedade, à educação, à saúde, etc. Ora, um direito que
não existe como direito porque existe como realidade efetiva, não pode chamar-
se direito. A ninguém ocorreria instituir o direito a respirar (1997, p. 173).
Podemos dizer, deste modo, que, quanto menos estes direitos ganham concretude
na realidade, mais a defesa destes aparece no plano da retórica, da igualdade e justiça
formais; quanto maior a degradação da vida humana e o individualismo, maior o apelo à
ajuda, à solidariedade, à preocupação com o “bem comum”. Nesta perspectiva, afirma
Mészáros: “A promessa de ‘imparcialidade’ e ‘justiça’ em um mundo dominado pelo
capital só pode ser o álibi mistificador para a permanência da desigualdade substantiva”
(2002, p. 305). Neste sentido, apesar da existência de direitos formais, a efetivação destes
direitos na sua totalidade é incompatível com a lógica deste sistema.
É justamente pelo fato de entendermos que a efetivação dos direitos na sua
totalidade é inviável nos marcos do capital, que consideramos importante – no contexto da
213
luta de classes – explorar esta contradição. Em outras palavras, consideramos que, mesmo
com limites, a luta por direitos não deve ser abandonada. Ao contrário, se deixá-la de lado,
a classe trabalhadora perde um importante instrumento de tensionamento com o capital e
garante a burguesia um ambiente muito mais favorável para sua ofensiva.
Ao mesmo tempo, sabemos que esta luta possui limites. As possibilidades de
interferir na distribuição de renda não dependem exclusivamente da vontade da classe
trabalhadora, nem poderão se dar de forma efetiva em uma sociedade sob o domínio do
capital. Mandel afirma que:
centralidade da atuação gira em torno do Estado, como se este fosse capaz de promover
uma conciliação entre acumulação e igualdade. A proposta se dá como se fosse possível
resolver, na esfera da circulação, uma desigualdade oriunda no processo produtivo.
Uma outra interpretação bastante recorrente é aquela que se propõe a utilizar na
análise um arcabouço teórico pautado na tradição marxista, mas encaminha sua discussão e
suas propostas tendo como referência o enfoque distributivista. Deste modo, apesar de um
potencial crítico-analítico, os desdobramentos da análise acabam não ultrapassando as
fronteiras do capital.
Para finalizar, Behring (2002) chama a atenção para uma forma de tratar a política
social que é decorrente de uma concepção de Estado com a qual temos desacordo. A
perspectiva de que o Estado seria uma instância acima das relações sociais e, portanto, fora
da sociedade. Nesta concepção, a política social parece ser explicada somente pelo papel
do Estado, como se não houvesse interferência possível fora dele, como a atuação dos
movimentos sociais, por exemplo.
Consideramos que, para escapar destas análises parciais e avançar no sentido de
buscar a perspectiva da totalidade, é fundamental um domínio dos pressupostos da crítica
da economia política desenvolvida por Marx. A articulação dialética entre o econômico e o
político é indispensável para entendermos as contradições e as possibilidades no interior da
luta por políticas sociais.
Do ponto de vista do capital, uma das principais funções das políticas sociais
consiste em regular o processo de reprodução da força de trabalho. Isto se dá por que, por
um lado, a oferta de serviços como moradia, saúde e educação168 garantem à classe
trabalhadora condições mínimas de reprodução da vida material. Por outro lado, liberam
recursos para o consumo dos bens produzidos pelos detentores do capital, o que,
juntamente com as políticas de Previdência e Assistência (que atuam mais diretamente
sobre a população que não está inserida no mercado de trabalho e, portanto, não recebe
salário), contribuem para evitar a queda da demanda efetiva nos momentos de crise.
168
A educação cumpre ainda uma importante tarefa no sentido de fornecer “recursos humanos” perfeitamente
adaptados a lógica do capital e com a qualificação necessária para atender aos seus interesses. Assim, ela
tende a assumir, tanto no que diz respeito ao ensino básico e fundamental, quanto ao superior – isto
dependerá da correlação de forças e das condições materiais existentes –, a dimensão e o formato exigidos
para garantia do processo de produção e reprodução capitalistas.
215
Existem também outras políticas setoriais169 como transportes, saneamento básico que,
dentre outras funções, contribuem significativamente para ampliar as possibilidades de
valorização capitalistas (NETTO, 1996; BEHRING, 2002).
Dado que o Estado tem como uma de suas grandes tarefas administrar as crises,
podemos dizer que as políticas sociais integram a estratégia anti-cíclica, mas muitas vezes
não são capazes de obter resultados satisfatórios se atuarem sozinhas. Neste sentido, a
política social não atua de forma isolada, ao contrário, ela “aparece associada a um
conjunto de estratégias anticrise, especialmente a intumescência dos orçamentos militares,
que caracterizou o período de expansão pós-45, em nome da Guerra Fria” (BEHRING,
2002, p. 168).
Aliado a isso, se tentarmos ir além das suas estratégias exclusivamente econômicas,
veremos que a implementação destas ações vem sempre acompanhada de mecanismos de
controle da classe trabalhadora e de construção de consensos. O Estado é legitimado como
uma instância a serviço dos interesses de toda a coletividade e, deste modo, legitima o
próprio modo de produção capitalista, obscurecendo seu caráter de classe e
hiperdimensionando suas possibilidades de incorporação de demandas e ações no sentido
da melhoria da qualidade de vida de todas as pessoas. Nas palavras de Engels
para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes
não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, torna-se
necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a
amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da ‘ordem’. Este poder,
nascido da sociedade, mas posto acima dela e distanciando-se cada vez mais, é o
Estado (ENGELS, [1884] 1984, p. 227).
É justamente a falsa noção de que ele estaria acima destes interesses que permite
tomar partido da luta de classes, ao mesmo tempo em que evita o acirramento dela. Na
intenção de mediar os conflitos de classe e defender os interesses da burguesia é que o
Estado aparece como sendo o responsável pelo tão difundido “bem comum”. Mas afinal,
como é possível defender o “bem comum” em uma sociedade dividida em classes e,
portanto, com interesses contraditórios e conflituosos? É neste sentido que esta afirmação
169
“Enquanto intervenção do Estado burguês no capitalismo monopolista, a política social deve constituir-se
necessariamente em políticas sociais: as sequelas da ‘questão social’ são recortadas como problemáticas
particulares (o desemprego, a fome, a carência habitacional, o acidente de trabalho, a falta de escolas, a
incapacidade física etc) e assim enfrentadas (NETTO, 1991, p. 28, grifos do autor).
216
não pode ter outra função que não seja a de deixar velada a verdadeira motivação que
fundamenta a existência e a manutenção do Estado: a garantia da dominação de uma classe
sobre a outra.
A responsabilidade pela defesa e implementação das políticas sociais não pode,
portanto, ficar restrita ao Estado. É possível identificar, no debate da tradição marxista,
uma articulação entre o público e o privado que inviabiliza a existência do Estado como
uma instância independente de interesses e de uma posição de classe. Em outras palavras,
as disputas acontecem em virtude da configuração da luta de classes, de modo que
possibilidades de avanço e de retrocesso na implementação das políticas sociais dependem
também das condições materiais de produção e, portanto, dos ciclos econômicos. Deste
modo, Behring afirma de forma bastante enfática que:
O significado da política social não pode ser apanhado nem exclusivamente pela
sua inserção objetiva no mundo do capital, nem apenas pela luta de interesses
dos sujeitos que se movem na definição de tal ou qual política, mas
historicamente, na relação destes processos na totalidade (2002, p. 174).
esta perspectiva já bastante discutida, de modo que não pretendemos nos estender neste
debate.
Nossa preocupação neste momento é centrar forças em um segundo grupo da
esquerda, que acaba incorrendo em outro equívoco: o de acreditar que a luta por direitos e
por políticas sociais cumpre um único papel, qual seja, o de fortalecer o projeto burguês de
sociedade. Não há, para os defensores deste ponto de vista, na conquista de direitos, nada
que mereça comemoração por parte da classe trabalhadora.
Sérgio Lessa, um importante filósofo e estudioso da teoria crítica pautada no
referencial teórico marxista, chega a dizer, por exemplo, que “o Estado de Bem Estar não
pode ser considerado uma vitória dos trabalhadores” (LESSA, 2007, p. 53). Para ele, o
período pós-guerra trouxe ganhos somente para a burguesia e expressou a fragilidade
política da classe trabalhadora.
É claro que pactuamos da análise de que o Estado de Bem Estar foi fundamental
para dar novo fôlego à acumulação capitalista, mas consideramos que é resultado também
de lutas empreendidas pela classe trabalhadora, e teve como resultado significativas
melhoras para esta classe, se tomarmos como parâmetro o período que o antecedeu. Não
queremos com isso dizer que esta melhora se deu de forma homogênea, ou que tenha se
dado sem contradições ou sem exploração de trabalhadores, mas houve melhorias e é
importante que reconheçamos isso.
Sabemos que as conquistas empreendidas não teriam sido possíveis se não fosse a
capacidade de articulação e de lutas que, de alguma forma, pressionaram o capital a dar
respostas. No entanto, este grupo defende que a luta pela cidadania ou pela democracia,
contribui para fortalecer os princípios da propriedade privada e reforçam os valores
burgueses. “Por isso, na crítica ao Estado “político”, da cidadania, e da ‘sociedade
burguesa’, não devemos propor [...] o revigoramento da cidadania, a democratização da
democracia etc. [...]” (LESSA, 2007, p.49).
Acreditamos que é importante encararmos a democracia como uma luta
indispensável e o reconhecimento de que somos sujeitos de direitos contribui para darmos
concretude às nossas reivindicações. De outra forma, acabamos caindo em abstrações que
não favorecem a organização coletiva. Lessa, ao contrário, afirma que:
218
170
Ao utilizar esta expressão “por meio do Estado” o autor faz referência a Marx em A Questão Judaica
([1843] 2009). Consideramos que esta obra, ainda que indispensável para o debate sobre a superação desta
sociedade e os limites da luta pela emancipação política, precisaria ser melhor contextualizada pelo autor,
que faz uma transposição, a nosso ver mecânica, para a compreensão do contexto atual em que a luta é
travada.
171
Consideramos que Gramsci cumpre, com relação a Teoria Marxista do Estado, um importante papel de
atualizá-la e ampliá-la, inserindo novas determinações. Mas este avanço não se deu às custas de negações ou
contradições a respeito das análises clássicas, ou seja, “Gramsci não inverte nem nega as descobertas
essenciais de Marx, mas ‘apenas’ as enriquece, amplia e concretiza, no quadro de uma aceitação plena do
método do materialismo histórico” (COUTINHO, 2003, p. 123). Gramsci não nega o caráter de classe do
Estado, muito menos a importância da utilização de seu braço repressivo. A percepção do processo de
socialização da política e de ampliação da participação das massas, entretanto, chamou sua atenção para a
necessidade de discutir a hegemonia e a utilização dos “aparelhos privados de hegemonia” na construção de
consensos.
219
limite, não seja capaz de romper com a ordem estabelecida. Em outras palavras, “no
pensamento marxiano não se trata da derivação mecânica entre o sistema jurídico-político
e a estrutura da sociedade, mas de estabelecer, por um conjunto de mediações, a relação
entre a sociabilidade e o direito, entre a universalidade e a singularidade” (SANTOS, 2007,
p. 28). Sendo assim,
Acreditamos, portanto, que a luta por políticas sociais e pelos direitos é um instrumento
indispensável ao enfrentamento às diversas formas de exploração presentes no capitalismo,
embora não elimine as bases desta exploração. Somente assim é possível garantir um
acúmulo ideológico e material a favor da classe trabalhadora e fortalecer sua disputa pela
hegemonia.
Nesta disputa pela hegemonia, o acesso a informações nos parece um elemento
indispensável. Quando falamos em acesso não nos referimos exclusivamente à
possibilidade de buscar ou levantar dados, mas de produzir um conhecimento que torne
estas informações passíveis de serem compreendidas e traduzidas em demandas que
atendam aos interesses da classe trabalhadora. O acompanhamento e monitoramento da
implementação das políticas sociais deve ser uma das principais ferramentas para
estabelecer reivindicações e traçar os caminhos a serem perseguidos para sua efetivação e
ampliação. O debate sobre o financiamento e os gastos governamentais assume, deste
modo, um caráter político sobre o qual nos debruçaremos neste capítulo.
fundamental que nos interessa aqui é entender de onde vêm e para onde vão os recursos e
de que modo este quadro se articula à disputa existente entre as diferentes classes sociais
pelos recursos do fundo público. Trata-se, portanto, da disputa pela condução das ações do
Estado.
Mais uma vez, ressaltamos a importância da relação entre o debate sócio- político e
os elementos trazidos pela crítica da economia política. Este é o pano de fundo da análise
que pretendemos empreender acerca do orçamento público. Sua configuração e as
definições em torno deste tema mantêm íntima relação com as bases do modo de produção
capitalista, mas também dizem respeito à forma como as distintas classes sociais se
enfrentam e atuam no cenário político.
Uma outra questão que precisamos destacar é a importância de pensarmos os gastos
de forma articulada à origem dos recursos. Muitas vezes, mesmo quando se procura entrar
neste debate, estes dois elementos aparecem de forma dissociada. Existem aqueles que
estudam as fontes de financiamento e os que se dedicam à análise da execução
orçamentária, ou seja, dos recursos públicos sob a ótica dos gastos. Consideramos que é
justamente a relação entre os dois que pode nos dar uma visão mais geral das contas
governamentais.
A análise do orçamento nos permite identificar as receitas e despesas do governo,
de modo que registra também a dívida e o tratamento que se dá a ela. Este é um ponto
importante de nossa análise, dado que permite verificar o montante de recursos
disponibilizado para alimentar o capital portador de juros. É possível, deste modo,
visualizar a classe que mais financia os gastos e aquela que se beneficia deles,
identificando o sentido da distribuição de renda operada por um governo, o que contribui
para apontar a resultante obtida no confronto entre os interesses de classe que marca o
modo de produção capitalista.
Para entendermos a estrutura de financiamento dos gastos governamentais,
precisamos nos apropriar do debate acerca da tributação. Fabrício de Oliveira destaca que,
em termos conceituais, a carga tributária é “um indicador que expressa a relação entre o
volume de recursos, que o Estado extrai da sociedade para financiar as atividades que se
encontram sob sua responsabilidade, e o produto ou a renda nacional de um determinado
país” (OLIVEIRA, Fabrício, 2010, p. 167).
Já discutimos que, na perspectiva marxiana, o que está sendo denominado
abstratamente de recursos extraídos da “sociedade” significa parcelas do trabalho
222
172
O artigo 145 da Constituição define que: “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
poderão instituir os seguintes tributos: I - impostos; II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou
pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte
ou postos a sua disposição; III - contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas” (BRASIL, 1988).
223
O imposto proporcional tem, como o próprio nome já diz, uma relação proporcional
entre a contribuição e o nível de renda, de modo que não produz alterações no nível de
distribuição de renda. Um exemplo deste tipo de imposto é a extinta Contribuição
Provisória sobre Movimentação Financeira173 (CPMF), que incidia, por meio de um
percentual, sobre o valor de cada movimentação financeira, independentemente da
magnitude desta.
Um sistema tributário conta, em geral, com uma combinação destes três tipos de
contribuição. A sua composição vai depender da capacidade que os capitalistas têm de
evitar a tributação e, ao mesmo tempo, da classe trabalhadora de garantir que ele funcione
como um mecanismo de redistribuição de renda. Sendo assim, as definições no âmbito do
Estado vão depender desta correlação de forças.
Mas esta disputa não começou hoje. Ela é um processo e teve, no Brasil, um
momento importante na constituinte, que desembocou na elaboração da Constituição
Federal de 1988 (CF88). Nela foram definidos alguns preceitos que contribuiriam para
atribuir ao sistema tributário um caráter mais distributivo. Em outras palavras, a
Constituição (BRASIL, 1988) define alguns princípios que devem funcionar como a base
de sustentação da estrutura tributária do país, dentre eles, podemos destacar:
1) Capacidade contributiva. O artigo 145, em seu § 1º define que, “sempre que possível, os
impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do
contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a
esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o
patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”(grifo nosso);
2) Isonomia. O artigo 150 proíbe, no inciso II, “instituir tratamento desigual entre
contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em
razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da
denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”;
3) Progressividade. O artigo 153 prevê que compete à União instituir impostos dentre
outros sobre: inciso III, “renda e proventos de qualquer natureza” e, segundo o § 2º, inciso
I, “será informado pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade,
173
Embora a CPMF possa ser identificada como uma tributação proporcional, Salvador nos alerta que, “de
acordo com o Ministério da Fazenda (2007), 72% da arrecadação era recolhida por PJ [Pessoa Jurídica], o
que significa repasse aos preços de bens e serviços, sendo então também um tributo indireto e regressivo”
(2010, p. 218).
224
na forma da lei”; inciso VI, “propriedade territorial rural”, que deve ser, segundo o § 4º,
inciso I “progressivo e terá suas alíquotas fixadas de forma a desestimular a manutenção de
propriedades improdutivas”; inciso VII, “grandes fortunas, nos termos de lei
complementar” (que nunca foi definida).
No entanto, estes princípios estão longe de orientarem efetivamente a condução da
política tributária. Sua garantia no texto constitucional é apenas mais um momento do jogo
das forças sociais em disputa. O grande desafio desde então, passou a ser conseguir fazer
valer o que está escrito e isto depende também das condições materiais em que se
processam os enfrentamentos necessários à sua implementação.
O início dos anos 1990 foi marcado por uma série de mudanças que influenciaram o
processo de democratização no Brasil. Estas mudanças caminharam no sentido de
restabelecer as margens de lucratividade do capital – que amargou baixíssimas taxas de
crescimento nos anos 1980 – por meio da abertura comercial e financeira, privatizações e
todo um conjunto de medidas que, além de beneficiar o capital, fortaleciam nossa inserção
dependente no mercado mundial. Além disso, todo um discurso em torno de uma suposta
crise fiscal e do combate à inflação funcionava como base de legitimação para corte nos
gastos sociais. Com isso, dificultava-se a implementação de direitos que haviam sido
conquistados formalmente e, dada a conjuntura pós-1988, acabaram tendo muita
dificuldade para sair do papel.
Salvador (2010) alerta que, no mesmo ano em que foi promulgada a CF88, a
regressividade do Imposto de Renda (IR) foi ampliada, passando a tabela do IR de 9 para
apenas 2 faixas salariais em 1989. E assim, dos anos 1990 para cá, toda a reorientação
sofrida pela política tributária caminhou no sentido oposto às prerrogativas constitucionais,
como mostram os estudos de Fabrício de Oliveira (2010) e Salvador (2010), tendo sido os
governos do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) os que mais agravaram o
quadro:
Não custa lembrar também que os anos 1990, principalmente a segunda metade,
foram anos em que vivenciamos uma política econômica que beneficiava o grande capital
225
174
Uma das medidas foi a isenção de imposto de renda da remessa de lucros e dividendos ao exterior, como
destaca Salvador (2010).
175
“[...] Uma das renúncias fiscais implantadas em 1995 é a dedução dos juros sobre o capital próprio das
empresas do lucro tributável do Imposto de Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL)”
(SALVADOR, 2010, p. 201). Em outras palavras, parte do lucro passa a ser contabilizado como despesa e
deixa de aparecer como lucro líquido, ficando isento de imposto.
176
Outra medida foi “a isenção de imposto de renda à distribuição de lucros a pessoas físicas, eliminando o
imposto de renda na fonte sobre lucros e dividendos [...]” (SALVADOR, 2010, p. 196).
226
salários sejam reajustados com certa frequência. Estes reajustes, mesmo que não
signifiquem aumentos reais no salário, podem tirar da faixa de isentos muitos
trabalhadores, caso não haja uma atualização do valor da tabela do imposto de renda que
acompanhe a alta inflacionária.
A partir de 1996, a tabela deixou de ser ajustada anualmente e, mesmo quando o
ajuste acontece (entre 1996 e 2001 não houve reajuste), ele é insuficiente para repor os
efeitos da inflação, o que indica que o imposto foi perdendo progressividade. Em 2007, a
tabela voltou a ser reajustada anualmente, mas o reajuste foi de 4,5%, taxa que corresponde
ao centro da meta de inflação, sendo que esta ficou acima desta média em todos estes anos.
Segundo dados do Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco)177, em
1996, quem recebia até nove salários mínimos estava isento do Imposto de Renda de
Pessoa Física (IRPF). Em 2013, quem ganha mais de 2,52 salários mínimos já precisa
contribuir.
Ao mesmo tempo, a tributação indireta consiste na maior fonte de financiamento
dos recursos do governo. Em 2009, mais da metade dos recursos obtidos por meio de
impostos, um total de 54,9%, advém da tributação sob o consumo, de modo que recaem de
forma mais significativa sobre as pessoas com remuneração mais baixa. Este é um forte
indício de que a maior parte dos recursos do fundo público vem das contribuições da classe
trabalhadora.
Os impostos sobre a renda, por consistirem em uma forma de tributação direta, são
os mais indicados pela Constituição e os que têm um maior potencial distributivo.
Entretanto, eles representam apenas cerca de um quarto dos recursos do fundo público
(26,94%). O que torna esta questão ainda mais séria é que, se analisarmos a composição
destes tributos sobre a renda, a distorção é ainda maior. Destes valores, 10,68% são
oriundos da renda do trabalho e apenas 12,40% de renda do capital. Este fato mostra que,
apesar deles terem uma perspectiva progressiva – cobrar mais de quem tem mais – o que é
arrecadado diretamente pelos trabalhadores e pelo capital está muito próximo. Se houvesse
uma política tributária efetivamente redistributiva, o percentual da renda do capital deveria
ser bem maior.
177
Disponível em:
http://www.sindifisconacional.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=21833:imposto-de-
renda&catid=45:na-midia&Itemid=73. Acesso em 20/06/2013.
227
178
Disponível em: http://www.ibpt.com.br/img/_publicacao/14191/196.pdf. Acesso em 13/02/2012.
179
Segundo o documento, o IDH “é uma medida comparativa de riqueza, alfabetização, educação, esperança
de vida, natalidade e outros fatores para os diversos países do mundo. É uma maneira padronizada de
avaliação e medida do bem-estar de uma população, especialmente bem-estar infantil. O índice foi
desenvolvido em 1990 pelo economista paquistanês Mahbubul Haq, e vem sendo usado desde 1993 pelo
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em seu relatório anual. [...] Este índice é
calculado com base em dados econômicos e sociais. O IDH vai de 0 (nenhum desenvolvimento humano) a 1
(desenvolvimento humano total). Quanto mais próximo de 1, pode-se afirmar que esse país é o que atingiu
maior grau de desenvolvimento”. O documento aponta que o IDH brasileiro de 2011 foi 0,718.
180
Tendo como referência Santos, Salvador afirma que “[...] uma análise da carga tributária líquida com base
nas contas nacionais, isto é, a carga tributária bruta menos os subsídios dados pelo governo aos produtores
privados e as transferências de previdência e assistência social feitas pelo governo às famílias e às
instituições privadas sem fins lucrativos, que significa uma transferência quase imediata de renda, mostra que
229
mas de onde eles saem, ou seja, quem paga a conta. Em todo caso, os dados da pesquisa
ajudam a sinalizar que existe um descompasso entre o que é arrecadado e a disponibilidade
do Estado para atender às demandas da classe trabalhadora.
Para pensarmos os gastos de forma um pouco mais aprofundada, precisamos fazer
uma breve discussão mais geral acerca do orçamento público. A Constituição trouxe
significativas mudanças no tocante ao trato orçamentário. Salvador (2010), com base em
Eduardo Refinetti Guardia, elenca três grupos de mudanças: “a) a tentativa de recuperar o
papel de planejador do Estado com a integração entre plano e orçamento; b) a conclusão do
processo de unificação orçamentária; e c) a recuperação da competência do Congresso
Nacional para dispor de matéria orçamentária” (2010, p. 175).
Em relação ao planejamento, além da Lei Orçamentária Anual (LOA), a CF88
determina a criação do Plano Plurianual (PPA) e da Lei de Diretrizes Orçamentárias
(LDO). Este ordenamento jurídico permite uma maior integração no processo que vai do
planejamento à execução das políticas, além de melhorar a possibilidade de dar maior
transparência à gestão dos recursos públicos.
No PPA são estabelecidas as diretrizes, objetivos e metas do governo (em âmbito
federal, estadual e municipal) por um período de quatro anos. Este período começa no
segundo ano do mandato e vai até o primeiro ano do mandato seguinte, facilitando uma
maior continuidade no processo de alternância de um governo para o outro. Salvador
afirma, com base em documento produzido pelo Instituto de Estudos Sócio-Econômicos
(INESC) que:
esta é bem menor que a carga tributária bruta no período de 1995 a 2007” (2010, p. 209). E o autor continua
analisando que “se somarmos a isso o que fica retido pelos credores do Estado na forma de pagamento de
juros, a carga tributária líquida tem permanecido, desde 2000, estabilizada em 12% do PIB, o que transforma
em ‘mito’ a elevada tributação no Brasil [...]” (2010, p. 209).
230
unidades orçamentárias que serão responsáveis por sua realização. Significa dizer que tanto
a LDO quanto a LOA precisam estar em consonância com o PPA. Mais do que isso, são
estas peças que viabilizam a definição das especificidades deste planejamento mais geral e
que vão dando corpo às ações propostas pelo governo para sua implementação.
A LDO tem como objetivo estabelecer diretrizes para elaboração e execução da
LOA, funcionando como a ligação entre o PPA e o orçamento propriamente dito. Mas ela
não se restringe a isso. Contribui para racionalizar e disciplinar as finanças públicas, além
de apontar as prioridades que serão definidas em um determinado exercício orçamentário.
Em um de seus anexos, ela estabelece as metas para a administração pública, como a meta
de superávit primário e de crescimento econômico, por exemplo, como orienta a Lei de
Responsabilidade Fiscal a qual analisaremos adiante.
Estas diretrizes também definem as questões relacionadas ao tratamento da dívida
pública, orientando o pagamento de juros e encargos, emissão de títulos, dentre outros.
Além disso, a LDO trata, como alerta Fabrício de Oliveira (2010), das alterações na
legislação tributária, da política de aplicação de recursos das agências financeiras de
fomento (como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e da
Caixa Econômica Federal (CEF)) e autoriza a criação de cargos e carreiras, concessão de
vantagens ao funcionalismo e contratação de pessoal. Para Oliveira (2010, p. 100-101) ela
significa “a arena de negociação do orçamento, podendo, por esta razão, ser apontada
como a fase mais importante de todo o processo”. Assim para que a necessidade de sua
aprovação possa promover uma discussão substantiva, é necessário, dentre outras coisas,
que os prazos e o tempo de tramitação no Legislativo sejam respeitados.
Salvador destaca que uma das grandes contribuições da LDO é recolocar o
Legislativo na discussão do orçamento e impor limites ao poder Executivo na gestão dos
recursos, aumentando o tempo para o debate sobre as contas públicas e permitindo uma
maior participação de deputados e senadores. Na verdade, todas as peças orçamentárias
devem ser apresentadas pelo Executivo e aprovadas pelo Legislativo, promovendo uma
maior interação entre estes dois Poderes.
A LOA diz respeito a três segmentos: Orçamento de Investimento das Empresas
Estatais, que trata separadamente o orçamento das empresas estatais; o Orçamento da
Seguridade Social, que envolve os recursos relacionados à Saúde, Previdência Social,
Assistência Social e Trabalho; e o Orçamento Fiscal, no qual são computados todos os
outros registros, que vão desde os gastos com a máquina administrativa do Estado até as
231
despesas com educação, energia, transportes, serviço da dívida, dentre outros. A LOA deve
ser elaborada tendo em vista as definições feitas pela LDO e nela devem estar identificados
todos os gastos planejados para o exercício do ano seguinte ao que ela foi aprovada.
Depois de executado o orçamento, o Executivo precisa elaborar um documento
denominado de Balanço Geral da União (BGU), o qual deve ser apreciado pelo Tribunal de
Contas da União (TCU) – órgão auxiliar do Legislativo –, que emite um relatório em que
sugere sua aprovação ou rejeição. Ao Legislativo cabe analisar e definir pela aprovação ou
não da prestação final das contas181. Mais uma vez a interação entre o poder Legislativo e
Executivo é fundamental, tendo em vista a necessidade do primeiro analisar a execução
orçamentária realizada pelo segundo.
Estes são os documentos que compõem o ciclo orçamentário e, apesar de todas as
inovações trazidas pela CF88, este processo ainda funciona de forma precária, ocorrendo
atrasos na aprovação das leis, sem mencionar os problemas com desvios de recursos,
dentre outros que dificultam o controle sobre as contas públicas.
Mas os desafios para um maior controle na aplicação dos recursos não se esgotam
na busca por dar materialidade a estas prerrogativas constitucionais. De 1994, início da
implementação do Plano Real, até o ano 2000, foram criados alguns mecanismos que
comprometem as ações no campo das políticas sociais em benefício do capital portador de
juros. São mecanismos que confrontam de forma institucionalizada os preceitos que
mencionamos. Dentre eles, gostaríamos de destacar três: as metas de superávit primário, a
Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e a Desvinculação de Receitas da União (DRU).
A realização do superávit primário significa produzir uma poupança primária no
orçamento para dar garantia aos credores da dívida de que o país possui condições de arcar
com o pagamento dos juros. Ele é calculado somando o total das receitas e excluindo as
despesas não financeiras, ou seja, retirando do cálculo das despesas o que é gasto com o
pagamento do serviço da dívida.
A preocupação em gerar superávits primários ganhou força por meio de um acordo
firmado com o FMI em 1998 – logo após a vitória nas urnas para o segundo mandato de
FHC –, em que se estabeleceu a elaboração de metas como uma condicionalidade para o
recebimento do repasse de recursos. A política de metas de superávit primário, portanto,
começou em 1999 e não saiu de cena desde então.
181
Vale destacar que o acompanhamento da execução não é feito somente no final. Ao longo de todo o
exercício são elaborados pelo Executivo relatórios periódicos e apreciados pelo Legislativo.
232
Este acordo com o FMI, assinado em novembro de 1998, ratificava o caminho até
então adotado no governo FHC para a saída da crise182 e retomada do crescimento.
Filgueiras resume alguns dos compromissos firmados, dentre eles, destacamos:
[...] prosseguir com a abertura comercial, não impondo restrições comerciais que
fossem incompatíveis com os compromissos da OMC [Organização Mundial do
Comércio] [...]; acelerar as privatizações e a aprovação das reformas liberais e
realizar um programa de ajuste fiscal para três anos (1999/2001), assumindo
metas com relação à obtenção de superávits primários fiscais e ao pagamento de
juros (2000, p. 143).
Este acordo nos mostra uma preocupação governamental centrada no ajuste externo
e na busca por dar todas as garantias possíveis ao capital financeiro. Uma preocupação,
portanto, que se sobrepôs à busca por melhorar as condições internas de crescimento e de
redução do índice de desemprego, um dos maiores problemas enfrentados ao longo dos
anos 1990, em virtude da política econômica adotada.
Como discutimos no capítulo anterior, no final do primeiro mandato do presidente
Fernando Henrique Cardoso, a dívida pública cresceu de forma explosiva em virtude da
política de juros altos. Esta foi uma das razões alegadas para encaminhar as privatizações,
apesar de pouco terem contribuído para a redução deste déficit.
Em outras palavras, quanto mais o governo avançava nos ajustes fiscais e na
preocupação em dar garantias de que honraria seus compromissos, mais a dívida
aumentava, dado que a política econômica adotada seguia aumentando o montante dos
serviços desta dívida. Sendo assim, foi necessário, no segundo mandato do governo, lançar
mão de outros instrumentos para assegurar os credores e garantir uma sangria de recursos
ainda maior em direção a eles.
A DRU recebeu este nome em 2000, mas tem sua origem em 1994, por meio da
criação do Fundo Social de Emergência (FSE). Portanto, é um pouco anterior ao
estabelecimento das metas de superávit primário e permite a desvinculação de recursos das
contribuições sociais e sua utilização para outros fins. Filgueiras resgata a Exposição de
Motivos nº 395, divulgada no dia em que foi anunciado o Plano, e destaca que o FSE:
182
Logo no início da implementação do Plano Real o país enfrentou os efeitos da crise mexicana, o “efeito
tequila”, como ficou popularmente conhecido. Em 1997, uma crise na Ásia e em 1998 na Rússia acabaram
levando o governo brasileiro a procurar socorro no FMI.
233
Como é sabido, este fundo não foi utilizado de acordo com o que foi definido como
sendo o objetivo principal: “equacionar o financiamento dos principais programas sociais”.
Desde o início, foi o objetivo estabelecido como complementar quem orientou as ações
voltadas para a utilização destes recursos, ou seja, o “pagamento de despesas relacionadas
com outros programas especiais”. A grande questão é que estes programas de “relevante
interesse econômico e social” são, na maior parte das vezes, identificados com o
pagamento de juros. Assim, o FSE foi recorrentemente utilizado com os mais variados
objetivos, principalmente o de atingir o chamado equilíbrio fiscal. Mais uma vez aqui,
vemos interesses individuais aparecendo como se representassem o interesse de toda a
coletividade.
Pelas suas características, ele permitia a utilização dos recursos com uma maior
flexibilidade e rapidez, o que contribuiria para amenizar os efeitos da suposta excessiva
“rigidez nas contas públicas”. Uma “rigidez” fruto do avanço conquistado com a
Constituição de 1988, que buscou amarrar melhor o trato dos recursos públicos e submetê-
los à discussão no Legislativo, como forma de evitar o uso indevido por parte do poder
Executivo, prerrogativa que foi contornada, ao menos parcialmente, por meio deste
mecanismo. Sendo assim, ao desvincular recursos que estão definidos para uma
determinada dotação orçamentária, permite-se que estes sejam gastos com o pagamento
dos serviços da dívida, sem nenhum controle e passando por cima das definições
orçamentárias aprovadas pelo Legislativo.
Não por acaso ele foi, posteriormente (1996), rebatizado com o nome de Fundo de
Estabilização Fiscal (FEF), uma denominação mais próxima de sua efetiva função. Este
Fundo vigorou, com este nome, até 31 de dezembro de 1999. A partir do ano 2000 foi
reformulado183 e passou a se chamar Desvinculação de Receitas da União (DRU) –
denominação ainda mais adequada para o objetivo efetivamente dado a este mecanismo.
183
“A principal diferença da DRU é o fato de que esta não reduz o valor de transferências constitucionais por
repartição de receitas a Estados e Municípios” (BRASIL, 2003b, p. 17).
234
No final de 2011 foi promulgada uma Emenda Constitucional que prorrogou a DRU até
2015.
Salvador (2010, p. 370) tem uma definição bastante oportuna acerca do seu
significado: “a DRU é a alquimia que transforma recursos que pertencem à Seguridade
Social em receitas do orçamento fiscal”. Isto porque permite que até 20% das receitas de
contribuições sociais (excetuando as contribuições de empregados e empregadores para a
Previdência) seja desvinculado. Estas receitas consistem em parte significativa dos
recursos da Seguridade Social e, depois de desvinculadas, podem ser repassadas para o
orçamento fiscal, no intuito de efetuar despesas com o serviço da dívida, ou serem
contingenciados para o superávit primário.
Em outras palavras, podemos dizer que a Seguridade Social vem financiando boa
parte do pagamento de juros, ao contrário da realidade apresentada pelos que afirmam ser
ela deficitária. Na verdade, a Seguridade além de não possuir um déficit, acaba
contribuindo para financiar gastos do orçamento fiscal. Uma outra questão que contribui
para onerar o orçamento da Seguridade é que existem algumas despesas que são
computadas de forma equivocada (SALVADOR, 2010, p. 372). Não nos alongaremos
nesta discussão, mas gostaríamos de destacar uma das críticas levantadas pelo autor e que
nos parece muito pertinente: “as despesas com ‘assistência do servidor’ correspondente ao
auxílio-creche, alimentação, moradia, transporte etc, que consumiram R$ 934 milhões [em
2007], não deveriam ser, em hipótese alguma, despesas da assistência social e sim do
vínculo empregatício” (2010, p. 372) e, portanto ser contabilizadas no orçamento fiscal.
Assim como esta situação, existem diversas outras em que o orçamento da Seguridade é
inchado por despesas que não são decorrentes das atividades que caracterizam as políticas
que a compõem.
A criação deste instrumento de desvinculação orçamentária compromete as
definições constitucionais acerca deste tema, desconsiderando o debate feito no
Legislativo, como já dissemos, além de desvirtuar a definição de alocação de recursos,
limitar as possibilidades de investimentos na área social, comprometer a clareza da
prestação de contas184, dentre vários outros efeitos danosos para o cumprimento das
prerrogativas da Carta Magna.
184
A LDO de 2005 determinou que o montante de recursos desvinculados da Seguridade Social deveriam ser
explicitados. Em vista disso, a Secretaria do Tesouro Nacional passou a divulgar os dados, mas ainda
permanece a falta de clareza na definição da origem dos recursos presente na execução do orçamento.
235
Em resumo, podemos dizer que a DRU foi criada para contribuir na promoção do
“equilíbrio fiscal”, ainda que o caminho encontrado para isso seja o de retirar recursos que
deveriam ser utilizados para as políticas sociais. Sendo assim, ela fere não apenas as
definições constitucionais, mas também as definições orçamentárias aprovadas no
Legislativo, sem falar que desconsidera as lutas e pressões empreendidas pela classe
trabalhadora pela ampliação no acesso a direitos e melhoria da qualidade dos serviços
prestados. Em 2000, os recursos desvinculados pela DRU representavam 72,66% do
superávit primário. Mesmo este percentual tendo sido reduzido até 2005, ele volta a subir
em 2006, chegando a 65,15% do total do superávit primário em 2007 (SALVADOR,
2010).
A LRF foi criada neste mesmo sentido. Sobre esta, o que mais se difunde é o limite
de gastos com o funcionalismo público. Como veremos, este é apenas um dos pontos da
lei. Oficialmente, alega-se a necessidade em se gastar de forma “responsável” e evitar os
excessos. Na verdade, se analisarmos de forma cuidadosa, veremos que o real objetivo – e
que não aparece no discurso oficial – é o de reduzir a capacidade que o Estado tem na
implementação de políticas sociais e no investimento, para garantir que ele arque com suas
obrigações financeiras. É isto que não aparece no debate: que este limite foi criado
justamente para contribuir com a geração do superávit primário.
Esta lei foi definida por meio da Lei Complementar nº101, de 4 de maio de 2000185,
mesmo ano da DRU, e reforça a ideia de que a política fiscal é quem deve avalizar o
espaço de valorização do capital portador de juros. Nas palavras de Salvador (2010, p.
382), “a política fiscal é a guardiã da expectativa de rentabilidade de capitais estrangeiros
[e nacionais!], e a realização de superávits primários para honrar o pagamento dos juros da
dívida é um dos atrativos para o capital externo [e nacional]” e assim reduzir seus riscos.
O autor destaca ainda, com base em Lopreato, a obrigatoriedade, definida pela
LRF, de estabelecer as metas de superávit primário na LDO, deixando bem clara a
prioridade do governo no que diz respeito ao tratamento da política fiscal. Estas metas
devem constar no Anexo de Metas Fiscais, que passa a compor a LDO. No artigo 4,§ 1º, a
lei define que no anexo “serão estabelecidas metas anuais, em valores correntes e
constantes, relativas a receitas, despesas, resultados nominal e primário e montante da
Persiste, portanto, uma dificuldade de identificar com exatidão todos os desdobramentos da desvinculação
dos recursos.
185
Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp101.htm. Acesso em 12/02/2012.
236
dívida pública, para o exercício a que se referirem e para os dois seguintes”. O parágrafo
seguinte define que este anexo deve conter também:
Além disso, a LDO deve apresentar um anexo de riscos fiscais, avaliando passivos
e demais riscos que possam afetar as contas públicas, e um outro anexo específico para
definir os objetivos da política monetária, creditícia e cambial.
O artigo que mais impressiona é o 9º. Nele estão indicados os procedimentos que
devem ser tomados, caso seja verificada uma dificuldade em relação ao cumprimento das
metas:
Na prática, significa dizer que o governo deve deixar de usar um recurso, que foi
definido para uma dotação orçamentária, para garantir que as metas sejam atingidas. O
mais grave, e que não deixa dúvidas acerca das reais intenções desta lei, é que o § 2o
estabelece que esta limitação não vale para o pagamento de juros. Este parágrafo diz o
seguinte: “não serão objeto de limitação as despesas que constituam obrigações
constitucionais e legais do ente, inclusive aquelas destinadas ao pagamento do serviço da
dívida, e as ressalvadas pela lei de diretrizes orçamentárias”. Significa dizer que os cortes
devem ser feitos desde que não comprometam os recursos voltados para a remuneração do
capital portador de juros. Salvador observa ainda que o “corte não precisará ser aprovado
pelo Legislativo, enquanto [se] uma expansão ou melhoria de um serviço público for feita
237
Para os fins do disposto no caput do art. 169 da Constituição, a despesa total com
pessoal, em cada período de apuração e em cada ente da Federação, não poderá
exceder os percentuais da receita corrente líquida, a seguir discriminados: I -
União: 50% (cinquenta por cento); II - Estados: 60% (sessenta por cento); III -
Municípios: 60% (sessenta por cento).
Deste modo, os gastos com pessoal têm seus limites muito claramente
estabelecidos, ao passo que as despesas financeiras, além de não terem limites, têm enorme
prioridade de recursos. Isto sem falar que este percentual é definido sem levar em
consideração as diferenças regionais, típicas de um país de dimensões continentais como o
Brasil.
186
Art.17, § 1o “Os atos que criarem ou aumentarem despesa de que trata o caput deverão ser instruídos com
a estimativa prevista no inciso I do art. 16 e demonstrar a origem dos recursos para seu custeio”.
238
teria se o recurso fosse contingenciado. Na prática, estes dois casos permitem que a
liberação de gastos seja feita a depender do cumprimento das metas econômicas e fica
condicionado à realização destas. Em ambas as situações, os valores ficam no caixa único
do Tesouro Nacional “contribuindo para a realização do resultado financeiro do governo
federal” (SALVADOR, 2010, p. 190). Ou seja, podem ser direcionados para o pagamento
de juros da dívida.
Em linhas gerais, estes são alguns elementos importantes de se ter em mente no
momento de analisar o destino dos recursos governamentais. Trata-se, portanto, não apenas
de analisar o que foi gasto, mas o que não foi e porquê. Trata-se também de identificar qual
classe social arca com a maior parte do financiamento destes gastos. Mais do que isso, de
perceber a lógica que orienta a gestão destes recursos e as prioridades definidas. A análise
sobre o financiamento e os gastos governamentais nos traz pistas importantíssimas acerca
da correlação de forças entre as diferentes classes sociais que compõem a sociedade, além
de servir como munição para as lutas e uma referência para a definição de pautas e
reivindicações.
Mas existem também questões metodológicas importantes para definir o que deve
ser considerado como gasto com as políticas sociais. Para isso, é necessário ter clareza no
que se entende por política social e as variáveis que devem ser consideradas, além de um
certo rigor no cômputo das dotações orçamentárias. A intenção é não “inflar” o cálculo
com despesas que não dizem respeito à implementação destas políticas e, ao mesmo
tempo, conseguir acompanhar os recursos utilizados para este fim. Nos dedicaremos a
fazer algumas considerações a este respeito no próximo ponto.
das políticas sociais, (3) a política tributária e a composição do fundo público, (4) a
definição dos critérios utilizados para a alocação dos recursos, (5) procedimentos
metodológicos adotados para efetuar a mensuração dos gastos e (6) comparações e
variáveis correlacionadas utilizadas para fundamentar as reflexões.
Em relação à primeira questão, reforçamos a análise do caráter contraditório das
políticas sociais. Por um lado, representam um esforço do Estado em garantir as condições
de reprodução do capital por, ao mesmo tempo, funcionarem como uma forma de
rebaixamento do custo de reprodução da força de trabalho (salário indireto) e de ampliação
das margens de lucratividade do capital, além de contribuírem para redução de conflitos e
legitimação da ordem. Por outro lado, são resultado de lutas e conquistas da classe
trabalhadora no sentido de garantir melhores condições de vida e, ao fazer isso, podem
contribuir para gerar uma situação mais favorável para novas reivindicações e, no limite,
tensionar o capital a ponto de fortalecer um processo revolucionário. É nesta arena de
contradições que se dá a luta por direitos e o processo de implementação das políticas
sociais, de modo que, ainda que esteja restrita aos limites da ordem burguesa, pode
contribuir para sua superação a depender da correlação de forças e da intencionalidade
atribuída a esta luta, em uma articulação dialética entre as condições objetivas e subjetivas.
Em relação à segunda questão, a caracterização das políticas sociais, salientamos
que o artigo 6º da Constituição, de acordo com a redação dada pela Emenda Constitucional
nº 64, de 2010187, assegura que “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o
trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Sendo assim, em
linhas gerais, podemos dizer que as políticas sociais envolvem o conjunto de ações e
programas desenvolvidos pelo Estado nestas áreas, com caráter público e continuado, no
sentido de atender, garantir e ampliar os direitos da população.
A exceção é apenas a segurança no seu aspecto mais relacionado à questão policial-
militar. Esta exclusão se baseia no fato de que, mesmo sendo um direito, sua execução se
dá por uma política de segurança, sendo esta mais vinculada à função coercitiva do que
integradora do Estado, para usar os termos de Mandel (1985). A dimensão da segurança
abarcada pelas políticas sociais refere-se a questões como alimentação, condições de
saúde, saneamento básico, políticas de transferência de renda, combate ao preconceito e
187
Disponível em http://www.soleis.com.br/ebooks/Constituicoes5-6.htm. Aceso em: 30/06/2011.
241
garantia de igualdade racial e de gênero, dentre outras, ou seja, tratam da segurança em seu
sentido mais amplo.
Ao definirmos as políticas sociais como sendo as ações desenvolvidas pelo Estado,
de caráter público e continuado, estamos querendo dizer que as ações desenvolvidas pelo
setor privado ou por organizações do terceiro setor, não se configuram como políticas
sociais, a menos que sejam definidas como rede conveniada para a prestação de serviços
públicos. As ações fragmentadas desenvolvidas pelas organizações não governamentais ou
pelo empresariado “com responsabilidade social”, embora atuem nas refrações da questão
social, no nosso entendimento não se configuram como uma política dado seu caráter
descontínuo, descentralizado, focalizado e descolado de um planejamento governamental
mais intencionalizado.
Sobre a terceira questão, destacamos o dito anteriormente: no Brasil possuímos uma
estrutura tributária extremamente regressiva, em que mais da metade dos recursos
arrecadados vem de impostos e contribuições indiretas. Sabemos que a Constituição de
1988 define alguns princípios tributários como o da igualdade e da capacidade contributiva
(artigo 150) e da progressividade (artigo 153), mas eles têm uma incidência minoritária no
total da arrecadação tributária. Isto por si só compromete as possibilidades de
redistribuição de renda. Em outras palavras, se considerarmos que a classe trabalhadora – a
que mais contribui para a magnitude de volume de recursos do fundo público – paga seus
impostos com parte do seu salário (trabalho necessário), temos que os limites para a
redistribuição de renda em favor desta classe assume proporções significativas quando
estes recursos não retornam para ela sob a forma de políticas sociais universais. Trata-se da
“exploração tributária” denunciada por Behring (2010) e a que nos referimos no primeiro
capítulo.
Quanto aos critérios utilizados para a alocação dos recursos, é preciso considerar
que a definição hegemônica procura defender a ideia de que seriam baseados em princípios
técnicos e neutros, tendo como base a noção da escassez de recursos. Já questionamos esta
análise, argumentando o caráter político destas definições e o quanto estão imbricados em
uma disputa entre as classes sociais pelo fundo público, de modo que a correlação de
forças e o poder de pressão de uma classe pode contribuir para canalizá-los em um ou
outro sentido. Significa dizer que a gestão dos recursos por parte do Estado, ainda que
tenda a servir predominantemente aos interesses do capital, não está imune às lutas
conduzidas pela classe trabalhadora e, mais do que isso, está longe de representar os
242
interesses do que abstratamente se denomina nas análises mais conservadoras como sendo
o “bem comum”.
Estes são, resumidamente, alguns dos elementos que discutimos ao longo da
fundamentação teórica e que precisamos resgatar para apresentar o marco teórico-
metodológico das análises que procuramos empreender. O central que precisamos discutir
aqui reside, basicamente, nas duas últimas questões que apresentamos: os procedimentos
metodológicos adotados para efetuar a mensuração dos gastos e as variáveis
correlacionadas que pretendemos utilizar para fundamentar as nossas reflexões.
Para começar, gostaríamos de destacar que não encontramos nenhum órgão de
pesquisa ou estudos sobre orçamento público que contabilizasse o gasto com políticas
sociais usando explicitamente o termo “política social”. O que mais se aproxima disso,
pelo que pudemos levantar, é a noção de orçamento social segundo uma classificação
desenvolvida pelo Ministério da Fazenda, e a de gasto social, na qual destacamos a
metodologia de contabilização desenvolvida pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA). Nossa intenção, por ora, mais do que discutir os números apresentados, é
analisar a forma como estes números são produzidos e buscar avaliar se existe uma
metodologia de cálculo que contemple a discussão sobre políticas sociais nos moldes que
estamos indicando ou se haveria a necessidade de elaborar uma mais adequada.
Sobre a primeira, a noção de orçamento social, encontramos uma reportagem
divulgada em 2008 no site oficial do Panorama Brasil188, em que se afirma que: “o
conceito de orçamento social ainda é pouco usado no País e engloba [...] as áreas de
previdência social, assistência social, saúde, educação e cultura, proteção do trabalhador e
emprego, habitação e saneamento, e organização agrária”. Procuramos algum documento
recente que explicitasse a metodologia utilizada para o cálculo, mas não encontramos.
O que conseguimos apurar em relação à contabilização feita pelo governo federal
foi um documento, de novembro de 2003, em que estão registrados os gastos sociais,
intitulado Gastos Sociais do Governo Central: 2001 e 2002. Trata-se de um material
produzido pela Secretaria de Política Econômica, vinculada ao Ministério da Fazenda, sob
188
Disponível em: http://www.panoramabrasil.com.br/orcamento-social-para-2009-cresce-17-e-privilegia-
educacao-id11566.html. Aceso em: 30/06/2011.
243
o comando do então ministro Antônio Palocci. Nele, além de gastos com as políticas
sociais, são contabilizados os gastos com o Sistema S189. De acordo com o documento,
189
O Sistema S é composto por instituições classistas financiadas por contribuições para-fiscais e é integrado
pelo Serviço Social da Indústria (SESI); Serviço Social do Comércio (SESC); Serviço Nacional de
Aprendizagem Comercial (SENAC); Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI); Serviço
Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR); Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (SENAT);
Serviço Social do Transporte (SEST) Serviço Social do Comércio (SESC); Serviço Nacional de
Aprendizagem do Cooperativismo (SESCOOP).
244
Existe também um grupo de publicações que sai com o nome específico de políticas
sociais e não de gasto social: Políticas Sociais: acompanhamento e análise. Este
documento possui, em geral, periodicidade anual, com exceção do número 17, uma edição
especial publicada em 3 volumes e uma introdução, que buscou fazer um balanço dos 20
anos pós-Constituição. Recorremos, desta publicação, aos números 17, 18, 19 e 20, sendo
este último o mais recente e referente ao ano de 2010. Tivemos por meio destas,
informações mais específicas sobre cada uma das políticas, possibilitando-nos acompanhar
sua evolução no período definido para nosso estudo.
Entretanto, eles não indicam de forma mais precisa a metodologia utilizada para o
cálculo. Tendo em vista as distintas metodologias possíveis para definir e mensurar estes
gastos, consideramos que esta informação seria fundamental para a análise e definição
acerca da possibilidade de adotarmos estes dados como referência para nossa pesquisa.
O documento em que encontramos uma descrição metodológica mais detalhada foi
publicado em 2003 como um Texto de Discussão (TD). No anexo 2 do TD 988 (CASTRO
et al, 2003), existe um detalhamento minucioso da metodologia adotada para a
contabilização dos gastos sociais federais (GSF) e procuraremos fazer uma apresentação
desta, bem como sua análise. Acrescentaremos as contribuições contidas no TD 1324
(CASTRO et al 2008), em que os autores, não destacando de forma mais cuidadosa a
metodologia utilizada, fazem referência à metodologia apresentada no TD 988. O TD 1324
traz algumas informações complementares em relação ao texto de 2003, as quais
procuraremos demonstrar. Mais recentemente, a Nota Técnica nº11 (CASTRO et al, 2012),
apesar de também não especificar a metodologia adotada, faz algumas observações novas.
A ausência de uma descrição metodológica completa nas publicações posteriores a 2003
deve-se ao fato de não ter havido mudanças posteriores significativas. Sendo assim, muitas
vezes quando tratam deste tema, fazem apenas considerações pontuais e complementares
ao que já foi registrado anteriormente.
Para começar, os autores (CASTRO et al, 2003) fazem referência à dificuldade de
se chegar a uma definição de gasto público social (GPS) e explicam que adotaram a
conceituação de M. A. Fernandes190, em um documento do IPEA, do ano 2000, sobre a
190
FERNANDES, M. A. Mensuração do Gasto Público Social: a metodologia desenvolvida na Diretoria de
Estudos Sociais do Ipea. Brasília: Ipea, setembro de 2000 (mimeo).
245
mensuração dos gastos sociais, e uma publicação da CEPAL, assinada por Comenetti e
Ruiz191, de 1994. Esta definição foi sintetizada da seguinte forma, o GPS:
compreende os recursos financeiros brutos empregados pelo setor público no
atendimento de necessidades e direitos sociais e que corresponde ao pagamento
dos custos de bens e serviços – inclusive bens de capital – e transferências, sem
deduzir o valor de recuperação (depreciação e amortização dos investimentos em
estoque, ou recuperação do principal de empréstimos anteriormente concedidos)
192
(CASTRO et al, 2003, p.7).
Sendo assim, podemos observar que a definição de gasto social parte da análise dos
recursos efetuados pelo governo e envolve transferências a outros níveis do governo ou a
instituições privadas. Este fato poderia se contrapor à nossa definição de que o gasto a ser
considerado envolve recursos públicos e ações efetuadas pelo próprio governo. Entretanto,
pelo que pudemos identificar, estas transferências a instituições privadas estão restritas a
rede conveniada, em ações que complementam os serviços públicos, portanto, cabem no
conceito que estamos adotando.
Feitas estas aproximações, o documento procura precisar melhor o que entendem
por políticas sociais e novamente ressaltam as diferenças de concepção e as imprecisões
conceituais que envolvem o debate sobre políticas sociais. Ao mesmo tempo, a discussão é
191
COMINETTI, R & RUIZ, G. Evolucion del gasto social en América Latina, 1980-1995. Cuadernos de la
Cepal. Santiago de Chile: Cepal, 1994.
192
Em uma nota de rodapé, os autores fazem referência a um outro conceito que é o de Gasto Social Fiscal,
que seria “uma depuração do primeiro, pois retira do gasto público social o valor das contribuições dos
beneficiários e/ou os valores de recuperação mencionados. Porém, a operacionalização de um sistema de
acompanhamento do gasto social em torno desse conceito está muito além dos recursos atuais disponíveis,
caso tal tarefa fosse de fato possível. Essa questão, aliada à necessidade de compatibilidade internacional,
justifica a opção pelo conceito mais abrangente, de gasto público social” (CASTRO et al, 2003, p.7).
246
muito genérica e, na definição apresentada, não parece fazer diferenciação entre política
social e política pública193, como podemos ver nos trechos que destacamos:
Para esse intuito, a política social deve ser entendida como um conjunto de
programas e ações do Estado, em geral de forma continuada no tempo, que tem
como objetivo o atendimento de necessidades e direitos sociais fundamentais que
afetam vários dos elementos que compõem as condições básicas de vida da
população, principalmente aqueles que dizem respeito à pobreza e à
desigualdade.
[...] As políticas públicas que buscam esses objetivos circunscrevem-se no
interior de organismos estatais que estão minimamente preparados para efetuar
regulação, provisão, produção e transferência de dinheiro para a formulação e
implementação de programas e ações, principalmente de Educação, Saúde,
Alimentação e Nutrição, Saneamento Básico, Previdência Social, Assistência
Social, Emprego e Defesa do Trabalhador, Organização Agrária e Habitação
(CASTRO et al, 2003, p 9, grifos nossos).
Ainda que sem fazer uma diferenciação mais precisa entre política pública e
política social, as áreas de atuação identificadas são as mesmas por nós elencadas, como
podemos ver no último trecho citado. Estes são os gastos públicos identificados pelo IPEA
para as políticas sociais e reafirmados no documento de 2008. Além disso, eles
diferenciam, de acordo com Flood, as formas de atuação do Estado (CASTRO et al, 2003).
Seriam elas:
(a) Regulação: mantém relação com o conjunto de normatização e regulação do
comportamento dos agentes econômicos (exemplo: controle de qualidade sobre a produção
e a comercialização de medicamentos, alimentos, etc.);
(b) Produção: envolve a participação direta do governo na fabricação de bens e oferta de
serviços (exemplo: educação pública);
(c) Provisão de bens e serviços: garantia, com recursos públicos, de prestação de serviços
ou de bens públicos, independentemente de serem produzidos diretamente pelo Estado
(exemplo, financiamento público de um atendimento de saúde oferecido pela rede
privada);
(d) Transferências de dinheiro: inclui as transferências de renda, como o Bolsa Família, ou
recursos como seguro-desemprego e aposentadorias.
193
No TD 1324, de 2008, esta confusão permanece, dando a entender, em diversos momentos, que
consistiriam em sinônimos.
247
O escopo e a escala de cobertura dos bens e serviços sociais que podem ser
ofertados pelo Estado mediante políticas sociais estão diretamente relacionados
às condições econômicas estruturais, bem como conjunturais, que determinam a
disponibilidade de recursos, e ainda ao arranjo político de uma sociedade, pois é
justamente a tensão entre o arranjo político e a escassez de recursos que
define opções de ação, direção e cobertura financeira às ações sociais do Estado,
as quais resultam no Gasto Público Social (CASTRO et al, 2003, p.10, grifo
nosso).
A noção de arranjo político nos parece bastante vaga e não indica exatamente o que
está sendo considerado. Apesar de sugerir que esta definição não envolve apenas uma
dimensão técnica, não ressalta a dimensão da luta de classes na disputa pelo fundo público.
Pode estar se referindo apenas à dimensão político-institucional, alianças partidárias feitas
pelo governo, incidências de uma miríade de sujeitos no melhor espírito pluralista, ou
coisas deste tipo, abordagem que consideramos insuficiente para uma análise mais
cuidadosa dos elementos que contribuem para determinar a alocação de recursos.
A ausência desta dimensão de classe na análise tem, como um de seus
desdobramentos, certa exaltação das mudanças vivenciadas na atualidade na condução das
políticas sociais. A identificação do aumento da participação do setor privado e a diluição
das diferenças entre este setor e o público, aparece como um fato consumado e não é feita
nenhuma problematização acerca do seu significado. Sendo assim, a seção em que se
discute a relação entre política social e gasto público termina com a seguinte citação de
Draibe sobre as mudanças em curso:
O seu significado maior são profundos processos sociais que tendem à alteração
das relações entre o Estado e o Mercado; o público e o privado; os sistemas de
produção, de um lado, e os de consumo, de outro. As assim chamadas formas
alternativas – os mutirões, as diversas experiências de ajuda mútua, práticas
comunitárias e de vizinhança (na guarda de crianças, no setor de alimentação, na
248
194
Além destas duas existem ainda as classificações segundo a fonte de recursos, a natureza das receitas e a
natureza das despesas.
249
Ainda que esta classificação seja um bom ponto de partida, ela possui alguns
problemas por estar presa à instituição responsável. Assim, os gastos com hospitais
universitários, por exemplo, por estarem vinculados ao Ministério da Educação, aparecem
na função educação e não na saúde, comprometendo uma visualização mais precisa da área
a que estão efetivamente ligados.
A classificação institucional, relaciona os órgãos orçamentários e suas unidades
orçamentárias:
Sendo assim, funciona como um registro de despesas por órgão setorial, mas
também apresenta imprecisões em razão da forma como são registrados. Caso a
contabilização considerasse apenas a classificação funcional,
ele não permitiria uma visualização correta da finalidade dos gastos, pois, entre
outros inconvenientes: i) atribuiria parte dos dispêndios em saúde
(funcionamento de hospitais de ensino e residência médica) ao Ministério da
Educação; ii) subestimaria os gastos relativos a projetos de saneamento básico,
por se inserirem em diversos órgãos dos Ministérios da Saúde, do Meio
Ambiente e do Planejamento e Orçamento; e iii) impossibilitaria a identificação
das despesas relativas a benefícios previdenciários (pensões e aposentadorias) e
assistenciais (assistência médica e social, auxílio creche, entre outros) pagos a
servidores públicos, diluídos em cada um dos órgãos da estrutura dos Poderes
Legislativo, Judiciário e Executivo (CASTRO et al, 2003, p. 11).
Os dados relativos aos recursos humanos alocados nas áreas de atuação refletem
os gastos com pessoal ativo e são computados exclusivamente para aqueles
órgãos ou programas que desenvolvem ações de cunho social. Já os dispêndios
com inativos e pensionistas, referentes a pagamento de aposentadorias, reformas
e pensões de antigos servidores (e/ou seus beneficiários) dos três poderes e dos
antigos territórios, salário-família e outros benefícios (que fazem parte da rubrica
de pessoal, no conceito contábil de natureza de gasto dos registros oficiais) estão
alocados na área de atuação Benefícios a Servidores Públicos Federais
(CASTRO et al, 2003, p. 49).
Em relação ao levantamento dos dados, existe um outro aspecto que merece nossa
atenção. De acordo com o anexo 2 do TD988 (CASTRO et al, 2003), para evitar a dupla
contagem dos gastos, a agregação é feita de 3 diferentes formas: a classificação funcional-
programática, a classificação por grupos de natureza da despesa (GND) e pela fonte de
financiamento. A vantagem é que, desta forma, é possível identificar, dentre outras coisas,
as transferências feitas pelo governo federal e os custos diretos com a máquina
governamental relacionados ao provimento das políticas sociais.
Outro destaque diz respeito aos valores contidos na execução orçamentária e que
foram definidos para a utilização no levantamento. De acordo com o documento, o IPEA
trabalha com os valores liquidados. Consideramos ser este o maior problema da
metodologia utilizada. O valor liquidado significa que houve a confirmação do empenho,
mas não foi efetuado o pagamento ainda. Principalmente se observarmos os valores do
orçamento fiscal, a diferença entre o liquidado e o pago é significativa. Como estamos nos
propondo a analisar os recursos que efetivamente saem do fundo público para garantir o
funcionamento das políticas sociais, consideramos que o mais adequado seria utilizar, para
efeitos de contabilização dos gastos, os valores pagos.
O último aspecto trazido pelo documento de 2003 que gostaríamos de destacar em
relação ao tratamento dos dados feito pelo IPEA é o deflator utilizado, Índice Geral de
195
“Salienta-se que a análise [...] procura cobrir tanto as ações sociais da administração direta quanto aquelas
desenvolvidas e executadas por órgãos da administração indireta que dispõem de recursos próprios. Assim,
evitou-se a perda de informações das entidades com atuação social descentralizada da administração”
(CASTRO et al, 2003, p. 12).
252
A Nota Técnica nº11 (CASTRO et al, 2012) traz mais duas complementações
acerca da metodologia utilizada. Um primeiro aspecto é sobre as despesas previdenciárias.
Dadas as diferenças jurídico-institucionais entre a Previdência destinada aos trabalhadores
do setor privado e a dos funcionários públicos, mesmo sabendo que existe uma
aproximação entre estas, considerou-se que seria melhor tratá-las em separado. Assim, a
primeira está contemplada na área de atuação Previdência e a segunda foi incluída
juntamente com os demais Benefícios a Servidores Públicos Federais.
O segundo aspecto diz respeito às chamadas políticas transversais (gênero,
igualdade racial, dentre outras). Esta contabilização não considera o gasto específico com
estas políticas. A justificativa apresentada nos parece bastante oportuna e contém dois
argumentos: a) seu registro não poderia ser feito apenas com base no orçamento
diretamente vinculado as estas políticas, dado que a pretensão é de que ela influencie todas
as outras políticas setoriais; b) se fossem incorporar todas as políticas tensionadas, de
alguma forma, pelas políticas transversais, acabaria ocorrendo o problema da dupla
contagem, dado que uma mesma política setorial “clássica” seria contabilizada em várias
políticas transversais. Estas dificuldades acabariam comprometendo uma visualização mais
geral do gasto social, de modo que optou-se por não lidar (diretamente) com elas.
Sendo assim, é preciso reconhecer o cuidado e as minúcias consideradas pelos
pesquisadores do IPEA para definir sua metodologia de contabilização dos gastos federais.
Apesar disso, a utilização dos valores liquidados, pelas razões que já apontamos, nos
parece um problema que tem implicações no levantamento da magnitude dos recursos
envolvidos com as políticas sociais. Consideramos, entretanto, que esta diferença não
justificaria a elaboração de um novo cálculo, de modo que decidimos pela adoção dos
dados levantados por esta instituição.
253
Gostaríamos de lembrar que nosso objetivo é analisar o lugar do gasto social nas
definições feitas pelo governo federal nos anos de 2004 a 2011, em sua relação com o
debate sobre o fundo público, a dinâmica da financeirização do capital e o nosso processo
de formação sócio-histórico. Este recorte temporal foi definido em função da periodicidade
dos Planos Plurianuais estabelecidos pelo governo federal. Estes consistem em um
planejamento feito para 4 anos e são elaborados no primeiro ano de governo. Sendo assim,
abarcam o segundo ano de um governo e vão até o primeiro ano do governo seguinte. O
período de 2004 a 2011 refere-se, fundamentalmente aos dois mandatos do governo Lula e
vai do segundo ano de seu primeiro mandato (2004) até o primeiro ano do mandato de sua
sucessora (2011), a presidente Dilma Rousseff.
Procuraremos, deste modo, fazer uma análise dos gastos deste período abarcando o
planejamento da atuação governamental, expresso nos PPA, e a execução orçamentária
destes anos, mediante a análise dos dados consolidados pelo IPEA. Acreditamos que esta
preocupação facilitará a visualização das diferenças e identidades entre o que foi planejado
e o efetivamente gasto, sinalizando possíveis alterações nas prioridades de gestão e
adequações que forem feitas pela administração federal.
Os dados apresentados acerca dos gastos sociais estão organizados por área de
atuação, como já mencionamos. Como material de suporte e de fundamentação dos dados,
utilizamos as Leis Orçamentárias Anuais (LOA), as Leis de Diretrizes Orçamentárias
(LDO) e os Relatórios do Tribunal de Contas da União (TCU) quando necessário. Para
consultas muito pontuais foram utilizados também o Balanço Geral da União (BGU) e os
Manuais Técnicos do Orçamento (MTO). Recorremos, entretanto, fundamentalmente, às
publicações do IPEA e aos Relatórios do TCU.
Como empreendemos as análises da política social tendo como pano de fundo o
processo de financeirização, os dados levantados além de levarem em consideração o
Produto Interno Bruto (PIB), também foram comparados aos recursos utilizados para o
pagamento da dívida (juros e amortizações), com os recursos remanejados pelo mecanismo
da DRU e o superávit primário. Estes são os dados orçamentários e contábeis que
contribuíram para a articulação à dinâmica de financeirização e ao capital portador de
juros, e que nos ajudaram a analisar as prioridades do governo e a forma como o fundo
público, de uma maneira geral, é gerido.
254
seria possível construir as bases sólidas para a modernização da sociedade, da justiça social
e gerar empregos e riquezas.
O crescimento econômico, segundo o plano governamental, pauta-se na expansão e
consolidação de um mercado de consumo de massa e no decorrente círculo virtuoso que
ele proporciona. A ampliação nos rendimentos das famílias leva a um aumento no
consumo, que estimula o investimento. Este investimento conduz a um aumento da
produtividade e da competitividade, o que produz efeitos sobre o poder aquisitivo das
famílias e amplia suas possibilidades de consumo, e assim sucessivamente. Trata-se da
perspectiva de defesa de uma política expansionista, objetivando obter os ganhos advindos
do multiplicador keynesiano da renda. De acordo com o Plano, “o Brasil é um dos poucos
países do mundo que dispõe de condições para crescer por essa estratégia, devido ao
tamanho de seu mercado consumidor potencial” (BRASIL, 2003b, p. 17).
Os seus formuladores percebem, entretanto, algum limite neste círculo virtuoso. Em
outras palavras, o papel do Estado como indutor do desenvolvimento não poderia ficar
restrito às políticas de incentivo ao investimento. Por maior que seja o ritmo do
crescimento decorrente destes estímulos, o aumento no nível de emprego será insuficiente
para absorver todo o contingente de pessoas desempregadas ou subempregadas – em
especial as que possuem menos qualificação – dado que os setores mais dinâmicos tentem
a ser intensivos em capital e, portanto, empregam menos. O repasse dos aumentos de
produtividade às famílias trabalhadoras é obstaculizado não apenas pela falta de postos de
trabalho suficientes. Considera-se também que, por um lado, “devido ao elevado grau de
oligopólios na economia, os ganhos de produtividade não necessariamente se traduzem em
queda de preços de bens de consumo popular”, por outro lado, “a absorção, pelo Estado, de
parte do excedente por meio de tributação não tem se traduzido até agora em aumento da
quantidade e da qualidade dos gastos sociais essenciais” (BRASIL, 2003b, p. 18).
É justamente para dar resposta a estas dificuldades que se situa a necessidade de
políticas sociais. Estas seriam capazes de enfrentar as fragilidades no círculo virtuoso de
crescimento e funcionariam como um mecanismo complementar à operação do “modelo”
de consumo de massa. Como podemos ver, trata-se de uma abordagem de inspiração
Marshalliana, baseada na noção de que cabem às políticas sociais resolver, no plano da
distribuição, o que não é possível ser garantido por meio da produção de riquezas nos
moldes capitalistas. Assim, este objetivo redistributivista das políticas sociais, de acordo
256
a) contas externas sólidas, ou seja, um saldo em conta corrente que não imponha
restrições excessivas à política monetária nem torne o país vulnerável a
mudanças nos fluxos de capitais internacionais; b) consistência fiscal
caracterizada por uma trajetória sustentável para a dívida pública; e c) inflação
baixa e estável (BRASIL, 2003b, p. 15).
II) crescimento com geração de emprego e renda, ambientalmente sustentável e redutor das
desigualdades regionais, referente às dimensões econômica, regional e ambiental; III)
promoção e expansão da cidadania e fortalecimento da democracia, referente à dimensão
democrática196.
Está presente neste Plano a necessidade de articulação entre desenvolvimento
econômico e social, como fica claro no seguinte trecho:
196
Estes três megaobjetivos se desdobram “em 30 desafios, a serem enfrentados por meio de 374 programas,
que abarcam aproximadamente 4.300 ações” (BRASIL, 2003b, p. 20).
258
para além da real melhoria que traz aos seus beneficiários, uma opção por uma política
pontual em detrimento das políticas universais. Esta definição favorece uma lógica de
assistencialização das políticas sociais (MOTA, [1995] 2011) que faz com que muitas
vezes o conjunto destas políticas seja identificado ao programa de transferência de renda,
desvirtuando uma concepção mais ampla do que seriam as possibilidades de enfrentamento
à questão social.
De acordo com o documento, a referida agenda social “promoverá as alternativas
de emancipação para as famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família por meio da
integração de políticas de acesso à educação, à energia, aos produtos bancários, ao
trabalho e à renda” (BRASIL, 2007, p. 14, grifo nosso). Acreditamos não ser necessário
tecer uma longa crítica ao uso da ideia de emancipação para tratar dos beneficiários do
PBF. Basta registrarmos que se trata de uma “palavra de efeito” para valorizar o programa,
mas está muito longe de representar uma emancipação no sentido rigoroso do termo,
mesmo se nos mantivermos no limite da ideia de emancipação política197. O destaque
considerado oportuno é para a busca de integração aos produtos bancários. Como
mencionamos, esta é mais uma das formas em que o governo parece ter bastante habilidade
para atender a uma demanda da classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, ampliar as
fronteiras da rentabilidade do setor financeiro, adequando o provimento das políticas
sociais às necessidades atuais da dinâmica de acumulação capitalista (ver GRANEMANN,
2007 ; SILVA, 2010).
Embora haja uma ênfase na transferência de renda, a agenda social não se limita a
esta. São pensadas formas de integração à educação, esporte, cultura, lazer, cidadania,
direitos humanos, dentre outras, com especial atenção à situação dos jovens, crianças,
mulheres, pessoas com deficiência, quilombolas, índios e negros. Além disso, busca dar
conta da violência e insegurança por meio do Programa Nacional de Segurança Pública
com Cidadania (PRONASCI), que articula políticas de segurança pública às políticas
sociais.
O segundo eixo, educação de qualidade, é operacionalizado por meio do Plano de
Desenvolvimento da Educação (PDE). O plano identifica uma articulação entre educação e
desenvolvimento de modo que, a “educação de qualidade representa [...] um objetivo
estratégico sem o qual o projeto de desenvolvimento nacional em curso não se viabiliza”
197
Para uma discussão acerca da emancipação política e da emancipação humana, ver Marx ([1843] 2009).
262
198
“Em março de 2010, nove meses antes do prazo previsto para o término do PAC, foi lançado um segundo
programa, que ficou conhecido como PAC 2. Diferentemente do PAC original, que se articulava ao longo de
três grandes eixos, as ações do PAC 2 se articulam ao longo de seis eixos: Energia, Transportes, Minha Casa
Minha Vida, Água e Luz para todos, Cidade Melhor e Comunidade Cidadã, estes quatro últimos são um
desmembramento do Eixo Social Urbano, do PAC 1, com a inclusão de mais tipos de ações, como construção
de Unidades de Pronto Atendimento (UPA), Unidades Básicas de Saúde (UBS) e construção de quadras
esportivas.
Os objetivos do PAC 2 são basicamente os mesmos do programa antecessor, incorporando, no entanto, um
maior enfoque em ações de infraestrutura social e urbana, voltadas para o enfrentamento dos problemas das
grandes aglomerações urbanas brasileiras, conforme consta no balanço inicial do Programa. Esse caráter de
continuidade pode ser corroborado pelo fato de que aproximadamente doze mil projetos que estavam
contidos no âmbito do PAC 1 (76% do total) foram transferidos para o novo programa” (BRASIL, 2011, p.
173-174).
263
199
Dentre o legado deixado pelos anos 1990 os autores destacam que “foram extintas ou esvaziadas muitas
das instâncias de coordenação e planejamento que desempenharam um papel importante ao longo do
processo de industrialização: conselhos interministeriais, órgãos de planejamento etc., além das instâncias
que existiam no interior das empresas públicas de infraestrutura que foram privatizadas” (CANO ; SILVA,
2010, p. 186).
264
da vulnerabilidade externa, dentre outras marcas deixadas pelas definições tomadas neste
período.
A ascensão de Lula à presidência representou um retorno à definição de uma
política industrial voltada para estimular a produção interna e apresenta uma preocupação
em fomentar a inovação tecnológica, a qual entretanto, não teve resultados significativos.
Cano e Silva (2010) analisam a Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior
(PITCE)200 adotada no primeiro governo Lula e seu aprofundamento, a Política de
Desenvolvimento Produtivo (PDP), do segundo mandato. Ao analisar seus objetivos,
abrangência e profundidade ressaltam a importância destas políticas para incentivar o
crescimento econômico, demonstram como a crise internacional que atingiu o segundo
governo comprometeu o cumprimento das metas, e como esta teve seus efeitos reduzidos
pela existência destas políticas201. Eles apontam também uma grande contradição que
marca o governo e afeta o impacto que estas políticas podem ter: a ausência de mudanças
na condução das políticas macroeconômicas. O câmbio valorizado, os juros altos, as metas
para inflação e superávit primário e a manutenção da chamada responsabilidade fiscal
seguiram sem alterações substantivas, o que compromete significativamente as
possibilidades de uma mudança estrutural no padrão de desenvolvimento.
Em resumo, trata-se de um planejamento voltado para conciliar os interesses das
diferentes frações da grande burguesia e, ao mesmo tempo, garantir algumas concessões à
classe trabalhadora, aprofundando os aspectos contraditórios que permeiam a garantia das
políticas sociais, ao passo em que viabiliza a manutenção do apoio popular que permitiu a
ascensão do Partido dos Trabalhadores ao governo federal. Há um aumento dos gastos com
as políticas sociais, mas com foco nos programas de transferência de renda, continuidade
200
“O padrão de competitividade e especialização da balança comercial brasileira é típico de um país rico
em trabalhadores não qualificados e recursos naturais. Entre 1996 e 2008, não houve grandes mudanças
setoriais. Os setores industriais mais competitivos da indústria brasileira em 2008, medidos pelo saldo
comercial, são exatamente os mesmos de 1996, apesar do esforço de política industrial do governo brasileiro
desde 2003 para fomentar os setores intensivos em tecnologia” (ALMEIDA, 2009, p. 24-25, grifo do autor).
Como uma das possíveis explicações para a dificuldade em avançar nos setores intensivos em tecnologia que
caracteriza a PITCE, Almeida aponta uma das contradições: “a atuação do BNDES é incompatível com a
própria definição de política industrial. A formação de empresas líderes nos setores de baixa e média-baixa
tecnologia torna estas empresas mais competitivas, consolidando a estrutura produtiva atual da economia
brasileira” (2009, p. 32).
201
A PDP e o PAC funcionaram como referências para o enfrentamento à crise de 2008/2009. “Por exemplo,
as desonerações tributárias ocorreram, quase sempre, nos setores estratégicos da PDP; assim como o
principal programa fiscal anticíclico (‘minha casa, minha vida’) revelou fortes interações com o
desenvolvimento do PAC” (CANO ; SILVA, 2010, p. 195).
265
202
“O novo desenvolvimentismo não apresenta nenhuma concepção distinta de desenvolvimento. Ele é
fortemente crítico em relação ao nacional-desenvolvimentismo, e as convergências com a ortodoxia
convencional são evidentes” (GONÇALVES, 2012b, p. 664).
267
justificando que estas possuem forte relação o com setor primário da economia. Ainda
assim, desconsiderando as três maiores empresas nacionais, o que avaliamos em certa
medida sem sentido, a participação das empresas estrangeiras no valor das vendas das 497
maiores empresas no país subiu de 47,8% em 2002 e 48,5% em 2010, aumento “pouco
expressivo”, como o próprio autor avalia.
De qualquer forma, é pertinente a avaliação deste economista e importante o seu
trabalho de levantamento de dados para contribuir em uma caracterização do governo.
Entretanto, sua análise desconsidera um conjunto de elementos contraditórios presentes no
governo e que apontam para alterações que não podem ser postas de lado, como
procuraremos demonstrar.
Ainda que com os limites apresentados acima e também discutidos na introdução
deste capítulo, a política de incentivos implementada principalmente por meio do BNDES
– mas com atuação significativa também da Caixa Econômica (em especial no crédito
imobiliário) e do Banco do Brasil –, contribuiu para que verificássemos uma taxa média de
crescimento de 4,2% do PIB, no período de 2004 a 2011. O gráfico 6 apresenta as taxas
obtidas desde 1995 para que seja possível uma visualização mais ampla deste indicador do
crescimento econômico.
Como podemos ver, o primeiro ano do governo Lula obteve uma taxa de
crescimento do PIB de apenas 1,2%. Este fato decorreu, em grande parte, das opções
feitas para conter a crise cambial enfrentada no ano anterior. A taxa de juros subiu de 23%,
em dezembro de 2002, para 26,4% em janeiro de 2003. Também a meta de superávit
268
primário subiu de 3,75% para 4,25%. Foram medidas restritivas adotadas para passar uma
mensagem clara, já sinalizada na Carta ao povo brasileiro, de que seria mantida a política
de responsabilidade fiscal e de superávit primário.
Dado este “recado” inicial, houve uma redução das especulações em torno do novo
governo e um afrouxamento nas medidas restritivas. A taxa de crescimento foi para 5,7%
em 2004 e voltou a cair em 2005 para 3,2%. Os dados mostram a dificuldade em manter
um ritmo de crescimento, sendo possível observar apenas dois anos seguidos de aumento
na taxa (2006 e 2007). O ano de 2009 apresenta o forte impacto no crescimento decorrente
da grave crise financeira mundial e uma recuperação significativa em 2010, mas que não se
sustentou em 2011, ano que amargou um crescimento de apenas 2,7%. A taxa continuou
caindo e em 2012 tivemos um “pibinho” de 0,9%.
Uma das diferenças que podemos constatar entre este governo e o que o antecedeu
é a forma como foi conduzido o enfrentamento à crise que se inicia no final de 2008. A
adoção de medidas como desonerações fiscais e incentivo ao consumo, substituiu um
aumento acentuado na taxa de juros, o que permitiu uma alavancagem nas taxas de
crescimento em 2010. O gráfico 7 traz o comportamento da taxa do Sistema Especial de
Liquidação e de Custódia (SELIC) durante todo o governo Lula e do primeiro ano do governo
Dilma.
Fonte: Nota de Política Fiscal do Bacen, série histórica (apud BRASIL, 2011)
269
Este fato ajuda a explicar, por um lado, porque as economias dependentes gastam
muito mais com a dívida pública do que os países avançados e a centralidade nas metas de
superávit primário que marcam as políticas de ajuste fiscal dos organismos multilaterais.
Explica também porque nestes países, a taxa de juros alta e o baixo crescimento econômico
são muito mais a regra do que a exceção. Ao contrário, nos países avançados, as taxas de
juros tendem a ser mais baixas e o mercado de capitais é o foco da rentabilidade financeira.
Não por acaso, suas últimas crises tiveram o epicentro nestes mercados. Não estamos
dizendo que a dívida pública não tenha um papel estrutural nas economias mais avançadas.
A intenção é tão somente acentuar a diferença em relação às economias dependentes, que
dada a sua fragilidade e subalternidade em relação aos interesses do grande capital
internacional. Estas têm, no gasto com a dívida, uma forma mais acentuada de garantir a
rentabilidade na esfera financeira.
Para termos uma ideia do custo com o pagamento da dívida, considerando as
despesas com juros, encargos e amortizações, a tabela 5 apresenta o percentual do
orçamento gasto com estas despesas financeiras.
Em 2004 este percentual era de 26,86 e passa para 30,57, ficando em média, para o
período considerado em 28,57. Cumpre ressaltar que nestes valores não estão incluídas as
despesas com o refinanciamento. Estes referem-se à chamada “rolagem” da dívida e não
foram considerados por não representarem recursos efetivamente despendidos. Trata-se da
emissão de novos títulos para pagar os que estão vencendo, constituindo-se, portanto, em
um mecanismo contábil. Mas tem implicações econômicas, posto que representam
“despesas que o governo tem de liquidar semanalmente via emissão de novos títulos que
271
203
Esta é a razão da diferença entre o cálculo feito por outras organizações, como por exemplo, a Auditoria
Cidadã, por meio do qual estes percentuais ficam sempre próximos a 50% dos recursos do orçamento.
Consideramos, entretanto, que para ter uma ideia dos recursos que efetivamente são disponibilizados ano a
ano para o pagamento da dívida, estes não devem ser considerados.
272
outro lado, deixa bem clara a prioridade do governo, quando limita recursos para gastos
sociais e com pessoal e facilita o deslocamento de recursos para o pagamento de juros da
dívida.
Esta reinserção internacional também não indica uma ruptura com o padrão
anterior, apesar de sinalizar mudanças. Existe um maior apoio do Estado para o
investimento e uma postura de favorecer o capital nacional, o que se desdobra em um
processo de multinacionalização de grandes empresas. Mas esta dinâmica não está voltada
para melhorar nossa participação na DIT, ao contrário, vem reforçando esta participação,
como já discutimos. Muitas das políticas de incentivo acabam perdendo a eficácia em
virtude da política econômica adotada.
Marcio Pochmann (2013) também integra o grupo de analistas que defendem a
ideia de que estaríamos diante do pós-neoliberalismo. Ele chega, inclusive, a afirmar a
existência de um Estado de Bem Estar no Brasil nos últimos anos204. A ruptura com o
neoliberalismo se sustentaria em quatro eixos: 1) abandono da ideia de que a estabilidade
econômica levaria automaticamente à melhora nas condições de vida; 2) a ênfase dada às
políticas sociais; 3) fortalecimento do mercado interno como forma de garantir maior
autonomia na governança interna da política econômica nacional; 4) a existência de um
reposicionamento diante da geopolítica mundial. O autor destaca os programas de governo
como o PAC, Minha Casa, Minha Vida, PBF, aumento do salário mínimo e da contratação
do funcionalismo público, a paralisação das privatizações205, a redução da vulnerabilidade
externa e a passagem de devedor a credor internacional 206. Como podemos ver, em sua
análise, parece que o problema da dívida foi equacionado e não há menção às políticas
204
“O impacto econômico do avanço recente do Estado de bem-estar social no Brasil não tem sido
geralmente muito bem percebido” (POCHMANN, 2013, p. 151). Não custa deixar claro que discordamos
desta caracterização do Estado brasileiro.
205
A pesar do autor mencionar a paralisação das privatizações, gostaríamos de lembrar que o governo Lula
foi marcado por concessões de rodovias e o governo Dilma já anuncia concessões de aeroportos, além de
leilões do pré-sal.
206
Consideramos esta ideia uma grande falácia. Segundo Fattorelli (2013), “O que o presidente Lula em 2005
pagou foi apenas a dívida externa com o FMI [Fundo Monetário Internacional]. Na época, existiam 300
milhões de dólares de dívida externa e foram pagos U$15 milhões de dólares. Esse pagamento representou
2% da dívida, se somarmos a interna e a externa. Para pagar isso, o Brasil fez emissão de títulos da dívida
interna em reais para pagar em dólar. O que houve não foi pagamento, foi troca. [...] Mas alguém pode
argumentar que não devemos ao FMI, e isso é um ponto positivo. Mas, no dia desse pagamento, o [Antonio]
Palocci publicou uma carta na página do Ministério da Fazenda argumentando que o pagamento ao FMI não
significaria o rompimento dos compromissos do estatuto do Fundo, que vincula as políticas ao Fundo, dá a
ele o direito a todas as informações do país, inclusive aquelas a que não temos acesso – o FMI tem porque
fica dentro do Ministério da Fazenda.
273
econômicas conservadoras que foram mantidas pelos governos no PT. Trata-se de uma
avaliação parcial do processo de tomada de decisão que tem o objetivo de supervalorizar as
mudanças (que por outro lado não podem ser desconsideradas) para justificar uma ideia de
ruptura.
Estas medidas, muitas delas paliativas, têm produzido, entretanto, um resultado
sobre a taxa de crescimento, como demonstramos, e também sobre a redução do
desemprego e uma melhora na distribuição de renda. A taxa de desemprego subiu no
primeiro ano de governo, influenciada pelas medidas restritivas já mencionadas. Nos anos
subsequentes, manteve uma tendência de queda, só elevada no ano de 2009, em virtude da
crise, mas voltou a cair no ano seguinte chegando a 6,7% em 2010 e 2011, como mostra o
gráfico 8.
este piso, como destaca Castro et al (2012, p. 20), além de boa parte dos que recebem o
seguro-desemprego e todos os beneficiários do Benefício de Prestação Continuada (BPC).
Ela está, entretanto, longe de ser capaz de sustentar a ideia de que estaríamos diante
do aumento da classe média, como apontam alguns dos defensores do governo, como
Marcelo Neri, atual presidente do IPEA. Para este economista, “a nova classe média
brasileira é filha da combinação do crescimento com a equidade, que difere de nossa
história pregressa e daquilo que ocorre nas últimas décadas em países emergentes e
desenvolvidos nos quais a concentração de renda sobe” (NERI, 2011, p. 14).
Esta avaliação é rechaçada até por analistas do PT, como o Pochmann. Para ele, a
mudança não autoriza a constatação da emergência de uma nova classe média. Por trás
deste debate, “está uma opção política rasteira que certos intelectuais engajados à lógica
mercantil associam com uma retórica de classe de rendimento desprovida de qualquer
sentido estrutural”. Para o autor, estas afirmações significam a “tradução do caráter
meramente propagandista dos imperativos do mercado” (POCHMANN, 2012, p. 7).
Além disso, ele chama a atenção para o fato de que pode não se tratar de um mero
equívoco conceitual, dado que a defesa da nova classe média se configura em meio a uma
disputa sobre o caráter das políticas sociais. A articulação entre o desgaste das políticas
públicas e o estímulo ao recurso às políticas oferecidas pelo setor privado nos parece trazer
pistas do que está realmente em questão diante desta polêmica. Afinal, a classe média
historicamente se dispõe a pagar por planos privados de saúde, previdência, educação. O
esforço midiático para construir esta identidade entre novos segmentos da classe
trabalhadora, que de fato obteve um maior acesso ao consumo, abre novas possibilidades
para a mercantilização da vida de um número ainda maior de trabalhadores e trabalhadoras.
A este respeito, Neri (2011, p. 19) não usa de subterfúgios para afirmar: “ser nova
classe média é também consumir serviços públicos de melhor qualidade no setor privado,
aí incluindo colégio privado, planos de saúde e o produto do prêmio, que é a previdência
complementar”. Trata-se, portanto, de uma análise funcional à transformação dos serviços
públicos em mercadoria. Ela se apoia na possibilidade de se aproveitar do significado que
uma melhoria nas condições de vida dos trabalhadores traz, do ponto de vista subjetivo e
objetivo, induzindo-os a buscar, no mercado, o acesso ao que, na realidade, são direitos
sociais de responsabilidade do Estado.
A ideia de nova classe media está ancorada em um maior acesso ao consumo. Não
apenas um consumo de bens duráveis, que antes eram proibitivos para estes segmentos,
275
mas também de bens e serviços sociais. Este novo cidadão-consumidor é induzido a pensar
que a melhoria no padrão de vida está associada à possibilidade de comprar tudo o que
precisa e de que não deveria mais “depender” do Estado. Com isso, o debate sobre o acesso
aos direitos sociais é despolitizado, a responsabilidade do Estado no provimento de bens e
serviços sociais é desconfigurada e a luta por políticas sociais públicas, gratuitas e de
qualidade, enfraquecida. Isto sem falar no deslocamento que produz sobre o debate das
classes sociais, que tem o seu centro na propriedade privada dos meios de produção, e,
portanto, nos conflitos entre trabalhadores e capitalistas. É justamente na construção de
vínculos de identidade entre a classe trabalhadora e suas diferentes frações que a apologia à
nova classe média pretende atuar, fragmentando seus sujeitos e, por conseguinte, suas
lutas.
Dito isso, é importante destacar que o aumento do salário mínimo, acompanhado do
aumento nas taxas de ocupação, teve um impacto bastante significativo em diversos
setores, sendo poucos os trabalhadores que tiveram reajustes abaixo da inflação. O gráfico
9 mostra o percentual de categorias laborais afetadas pelos reajustes salariais.
207
Nota metodológica: “As informações que embasam este estudo foram extraídas de acordos e convenções
coletivas de trabalho registradas no Sistema de Acompanhamento de Salários – SAS-DIEESE. Os
documentos foram remetidos ao Departamento pelas entidades sindicais envolvidas nas negociações
276
O gráfico demonstra que, desde 2005, mais de 70% das categorias laborais tiveram
aumentos acima da inflação, chegando a 88,2% em 2010 e 86,8% em 2011. Este fato deixa
claro o impacto desta mudança e sinaliza para um conjunto bastante expressivo de
trabalhadores atingidos, principalmente se considerarmos o aumento da formalização dos
trabalhadores nos últimos anos. Em 2011, o setor de comércio foi o que apresentou um
maior percentual de reajustes acima do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC),
ou seja, da inflação, ficando em torno de 97%. Na indústria, 90% das negociações
registraram aumentos reais na data-base. Destacam-se os segmentos da construção e
mobiliário, indústria extrativa e indústria do papel, papelão e cortiça, que registraram
aumentos reais em todas as negociações neste ano. As atividades na indústria da
alimentação, metalúrgica e gráfica apresentaram percentuais de negociação com aumentos
reais acima da média do setor. Os serviços obtiveram o menor índice, cerca de 76%
(DIEESE, 2012).
Estas são importantes informações para uma análise da configuração do mercado de
trabalho recente, mas insuficientes. É preciso também avaliar a qualidade dos postos de
trabalho que estão sendo gerados e sua remuneração média. Segundo Pochmann, dos 21
milhões de postos de trabalho gerados na primeira década do século 21, 94,8% foram com
rendimento de até 1,5 salário mínimo mensal (2012, p. 27). Em outras palavras, são
ocupações de baixa remuneração e que exigem, em média, pouca qualificação. Se por um
lado isto significa que foram postos de trabalho que absorveram segmentos da classe
trabalhadora mais pauperizados, por outros nos dá uma ideia das bases em que estão
ancoradas o aumento do investimento. Ou seja, trata-se de um padrão de crescimento que
requer uma força de trabalho de baixa escolaridade e com remunerações próximas ao piso
salarial.
O nível de escolaridade dos trabalhadores ocupados, entretanto, vem aumentando.
Pochmann (2012, p. 39-40) aponta que em 2009, aproximadamente 43% dos ocupados
possuíam 9 anos de estudo ou mais. Em 1999 este número era de cerca de 23%. É preciso
considerar também que o percentual de trabalhadores com carteira assinada ainda é baixo,
coletivas ou pelos escritórios regionais e subseções (unidades de trabalho do DIEESE que funcionam dentro
de entidades sindicais). Complementarmente, também foi considerado o noticiário da imprensa escrita e dos
veículos impressos ou virtuais do meio sindical – jornais e revistas de sindicatos representativos de
trabalhadores e de entidades sindicais empresariais” (DIEESE, 2012, p. 32).
277
embora venha aumentando. Em 2009 os trabalhadores sem carteira ou por conta própria
ficaram em torno de 55%, contra 44% com carteira assinada.
Além disso, o índice de rotatividade vem crescendo desde a década passada. Este
índice que era de 45,1%, em 2001, passou para 46,8, em 2007 e 49,4%, em 2009, segundo
o DIEESE (2011, p. 13). Mesmo quando descontados os desligamentos por transferência,
desligamento a pedido do trabalhador, aposentadoria e falecimento, as taxas foram 34,5%,
34,3%, 36,0%, em 2001, 2007 e 2009, respectivamente. Em 2010 este percentual
continuou subindo, chegando a 37,28%. Este é um índice que aponta para a grande
instabilidade do emprego. Em 2009, cerca de 60% dos vínculos de trabalho não chegaram
a completar dois anos208.
Os dados contribuem para mostrar que ainda estamos longe de possuir uma
configuração do mercado de trabalho que aponte para alterações substantivas no padrão de
uma economia dependente e desigual. Os traços de nossas heranças do passado seguem
fortes e apresentam limites ao estabelecimento de relações de trabalho menos desiguais e
que garantam o acesso aos direitos trabalhistas e previdenciários à maior parte da
população.
Esta nova conjuntura contribuiu para dinamizar o movimento sindical e fortalecer a
capacidade reivindicativa da classe trabalhadora. Boito Jr. e Marcelino (2010) analisam
que houve uma recuperação do movimento sindical desde 2004. Com base em um
levantamento do Dieese, os autores afirmam que, embora o número de greves seja menor
do que o verificado em média nos anos 1990, existe um percentual maior de greves
ofensivas, ou seja, aquelas voltadas para novas conquistas, como aumento real de salário.
Em outras palavras, o que marcou o movimento grevista na última década do século
passado, foram iniciativas voltadas para resistir às mudanças impostas e defender direitos
conquistados. Nos anos 2000 ao contrário, uma análise das greves entre 2004 e 2008
permite afirmar que “as reivindicações ofensivas estiveram presentes na grande maioria
das greves – em porcentagem, 65% ou mais do total de greves de cada ano” (BOITO Jr.;
MARCELINO, 2010, p. 331). Além disso, em todos estes anos, a maior parte das greves
tiveram suas reivindicações total ou parcialmente atendidas. Isto pode significar que as
208
Um outro aspecto a se considerar é que em 2010, “126 mil estabelecimentos (5,8%) foram responsáveis
por 14,4 milhões (63%) dos 22,7 milhões de desligamentos no ano. Dessa forma, constata-se que pouco
menos de 2/3 dos desligamentos anuais foram realizados por cerca de 6% do total dos estabelecimentos, que
demitiram trabalhadores durante esses exercícios” (DIEESE, 2011, p. 13).
278
209
Hallak Neto explica que, por questões metodológicas (não há dados disponíveis de ocupações
desagregadas por tipo de inserção), não foi possível fazer a análise do período de 1995 a 1999.
280
A sua redução, observada no último ano da série, entretanto, não estaria ligada a
uma reversão nestes fatores e sim à forte política de isenção fiscal, utilizada como uma
medida para conter os efeitos da crise internacional. A redução ou isenção de impostos, em
especial o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para uma série de produtos, com
destaque para automóveis e eletrodomésticos (a linha branca), teriam tido impacto sobre a
arrecadação tributária, o que explicaria esta diminuição observada para o ano de 2009.
Os dados apresentados até aqui contribuem para mostrar que, apesar de alguma
melhora, tratam-se de mudanças que não vieram acompanhadas de alterações de fundo
estrutural. Uma reforma tributária voltada para ampliar a progressividade na arrecadação
de impostos, que teria um impacto expressivo sobre a desigualdade de renda, não foi feita.
Também não houve uma mudança significativa da política econômica adotada no início
dos anos 1990. Estes fatos impedem a adoção de medidas com um maior potencial de
alteração na estrutura produtiva e na redistribuição de renda. As prioridades do governo
seguem sendo a chamada responsabilidade fiscal, o que significa um compromisso com o
pagamento de juros que limita as possibilidades de gasto público, dado que uma parcela
substantiva é drenada para arcar com as despesas da dívida.
Existe, entretanto, uma maior preocupação com a indução do crescimento, que tem
se expressado em taxas maiores no aumento do PIB, com desdobramentos sobre a
configuração do mercado de trabalho. São mudanças em parte propiciadas pela situação do
mercado internacional em que o alto preço das commodities tem puxado as exportações e
estimulado a produção interna. Mas também propiciadas pelo aumento do consumo das
famílias, decorrente dos ganhos nos rendimentos do trabalho a que nos referimos (bem
como do aumento no endividamento destas famílias). Estes ganhos são significativos para
a classe trabalhadora, principalmente se considerarmos sua memória recente.
Em parte, o que garantiu um considerável apoio popular ao governo FHC nos
primeiros anos de seu mandato – e que chegou a levá-lo ao segundo mandato no primeiro
turno das eleições – foi o controle da inflação. A população, de uma maneira geral
massacrada pelas longas décadas vividas em um nível acelerado da elevação dos preços,
281
aceitou todos os “efeitos colaterais” do plano de estabilização monetária 210. Assim, durante
um tempo, esteve disposta a conviver com o desemprego e a precarização das condições de
vida que este trouxe. O medo do retorno à inflação – depois de tantos anos considerando
esta como a principal razão de seus infortúnios – parecia ser o suporte subjetivo que a
classe precisava para enfrentar o quadro que foi se configurando ao longo da década.
Passado um tempo, foi-se percebendo que, ao contrário do que se sonhava viver com o fim
da inflação, as dificuldades aumentaram e o desemprego foi se tornando o principal
assunto entre os que viviam da venda da sua força de trabalho.
A questão presente no governo Lula é que, mesmo aprofundando alguns vínculos
de dependência com o exterior e com a ausência de uma ruptura estrutural com o padrão
anterior, existem algumas mudanças concretas que impuseram melhoria nas condições de
vida. Estas mudanças não são fruto de uma grande ilusão ou de uma propaganda muito
bem sucedida. Entretanto, os ganhos sentidos pela classe trabalhadora, embora
significativos e suficientes para garantir um forte apoio popular ao governo, não significam
que este tenha sido voltado para os interesses prioritariamente populares. Em outras
palavras, este não foi um governo a serviço dos interesses da classe trabalhadora.
A governabilidade atual não teria se dado da mesma forma se o grande capital não
tivesse sido ainda mais agraciado pelas políticas conduzidas pela ampla coligação
partidária sob o comando do Partido dos Trabalhadores. O crescimento econômico
permitiu que os ganhos fossem repartidos entre as classes, mas não de forma igualitária. O
apoio de parte expressiva da burguesia ao governo ajuda a perceber que sua satisfação
expressa ganhos reais obtidos.
Segundo dados publicados no caderno de Economia do Jornal O Globo, “o lucro
líquido de uma amostra de nove bancos (entre eles, Banco do Brasil, Itaú e Bradesco)
somou R$174,075 bilhões entre 2003 e 2010, em valores nominais”. A matéria explica que
atualizados estes valores sobem para R$199 bilhões, “[...] batendo de longe os resultados
registrados durante a gestão do tucano Fernando Henrique Cardoso” (NOVO, 2011, p. 31).
O desempenho financeiro da Vale e da Petrobras também foi bem melhor do que o
verificado no governo FHC. “Entre 2003 e 2010, o lucro líquido acumulado da Petrobras
foi de R$245,9 bilhões, salto de 231% sobre os R$74,1 bilhões obtidos entre 1995 e 2002.
210
Como já discutimos, o Plano Real foi muito mais do que um plano de estabilização monetária pura e
simples, embora tenha sido apresentado como tal.
282
211
Números corrigidos pelo IGP-DI.
283
Chaves e Ribeiro (2012), é de que este percentual tenha subido para pouco mais de 16%.
Podemos dizer, portanto, que houve uma certa manutenção no padrão do gasto, o qual,
mesmo tendo aumentado no que diz respeito ao aporte de recursos, não sofreu uma
mudança que possamos identificar como sendo estrutural.
Mas existem alterações. A mais forte delas diz respeito ao comportamento do GSF
durante a crise financeira de final de 2008 e 2009. Como dissemos, uma das medidas
adotadas pelo governo foi a de estimular o crédito e conceder isenções fiscais 212. Apesar
disso, o relatório do TCU alerta que
212
Algumas desonerações tributárias adotadas fazem parte do PAC e outras foram feitas temporariamente,
em virtude da crise, como as reduções no IPI para automóveis e bens duráveis.
285
Gráfico 12 – Taxas de crescimento real do gasto social federal e do PIB de 1995 a 2010
Com a crise, o PIB passou de um crescimento de 5,17% em 2008 para uma redução
de 0,33%, em 2009. O GSF, entretanto, sofreu um aumento de 6,3% para 11,67%, o maior
da série histórica que estamos analisando. Mesmo tendo diminuído, sua taxa de
crescimento no ano seguinte ficou em 10,75%. Este fato indica uma postura mais
expansionista, muito diferente do comportamento anterior, em que podemos verificar uma
redução brusca nos gastos durante as crises de 1998/1999 e de 2002/2003, quando o
crescimento do GSF foi de 2,43% e 1,15%, respectivamente.
Esta postura contribuiu para reaquecer o mercado interno e foi um dos fatores
fundamentais para a recuperação do PIB, que voltou a crescer e fechou o ano de 2010 a
uma taxa de cerca de 7,5%. Além do aumento nos gastos sociais, da valorização do salário
mínimo e das isenções fiscais, no período da crise, o governo manteve também seu
programa de investimentos planejado no PAC. “Em números, os investimentos da União e
da Petrobras continuam a crescer, mesmo durante a crise, atingindo 1% e 1,6% do PIB em
2009, respectivamente” (BARBOSA ; SOUZA, 2010, p. 87). Entretanto, esta taxa de
investimento em relação ao PIB ainda é muito baixa. O relatório do TCU de 2010 indica a
necessidade de “urgente melhoria da eficiência do gasto governamental – em 2010, apenas
9% da dotação orçamentária federal foi destinada a investimentos (BRASIL, 2010, p. 2).
286
213
“Com esse movimento, evitou-se o decréscimo no crédito na economia brasileira: em dezembro de 2007,
as operações de crédito somavam 34,2% do PIB; em setembro de 2008, 38,7%; e em fevereiro de 2009,
41,9%” (CASTRO et al, 2012, p. 17).
214
“A meta para o quadriênio 2011-2014 era conceder empréstimos no valor de R$ 176,0 bilhões, dos quais
R$ 44 bilhões em 2011, sem a inclusão de contrapartidas. Essa meta se manteve até o 3º Balanço do PAC 2,
287
tendo sido superada. Ao final do exercício [de 2011], haviam sido firmados 472.038 contratos, totalizando
R$ 75,1 bilhões, o que representa 70% a mais que o originalmente planejado” (BRASIL, 2011, p. 190).
215
Ao procurar caracterizar o que chama de reformismo fraco, o autor o compara com o programa do PT nos
anos 1990, o qual consistiria em um reformismo forte e afirma: “[...] ao tomar as propostas originais do PT
aquilo que não implicava enfrentar o capital como seja o caso da tributação das fortunas, revisão das
privatizações, redução da jornada de trabalho, desapropriação de latifúndios ou negociação de preços por
meio dos fóruns e cadeias produtivas, o lulismo manteve o rumo geral das reformas previstas, não obstante
aplicando-as de forma muito lenta. É a sua lentidão que permite interpretá-lo como tendo um sentido
conservador” (SINGER, A., 2012, p. 192-193).
216
O Programa Luz para Todos foi lançado em novembro de 2003. Segundo o site oficial do Ministério de
Minas e Energia, “a meta inicial de atender a 10 milhões de pessoas foi alcançada em maio de 2009 e até
março de 2012, o Programa já chegou para cerca de 14,4 milhões de moradores rurais de todo o país. Os
investimentos chegam a R$ 20 bilhões, dos quais R$ 14,5 bilhões são do Governo Federal”. Disponível em:
http://luzparatodos.mme.gov.br/luzparatodos/Asp/o_programa.asp. Acesso em: 01/08/2013.
288
217
Em 2010, o programa beneficiou 12.778.220 famílias (IPEA, 2012b, p. 66).
289
218
André Singer (2012) faz um interessante debate sobre o subproletariado e mostra como este teria sido a
principal base de sustentação do lulismo, em especial, nas eleições de 2006.
290
desigualdade de renda vem efetivamente caindo. “Entre 2001 e 2011, a renda per capita
dos 10% mais ricos aumentou 16,6% em termos acumulados, enquanto a renda dos mais
pobres cresceu notáveis 91,2% no período. Ou seja, a do décimo mais pobre cresceu 550%
mais rápido que a dos 10% mais ricos” (IPEA, 2012a, p. 6). Apesar do clima ufanista na
divulgação dos dados pelo IPEA, sabemos que é pouco para o tamanho das desigualdades
existentes no país. Sabemos também que parte do aumento da renda destes 10% mais ricos
não é capturada por este tipo de contabilização, o que gera uma distorção nestes dados.
Ainda assim, trata-se de uma alteração suficiente para melhorar o padrão de consumo de
uma parcela expressiva da população. A questão está nos limites das mudanças que
provocaram este resultado.
A este respeito, cumpre destacar ainda um pouco mais a importância dos programas
de transferência de renda nos governos do PT. Os recursos do Ministério de
Desenvolvimento Social (MDS) são praticamente todos voltados para estes programas.
Para se ter uma ideia, em 2010, o gastos com o BPC e o PBF representaram 92% dos
recursos executados por este Ministério. O Plano Brasil sem Miséria anunciado em meados
de 2011 pretende dar uma resposta às críticas que apontavam para a necessidade de ir para
além dos programas de transferência de renda, bem como procura viabilizar “portas de
saída” para seus beneficiários. Voltado para superar a extrema pobreza, o Plano busca
articular políticas, programas e ações em três dimensões. Além da garantia de renda, está
voltado também para propiciar um maior acesso às demais políticas sociais e para
viabilizar uma “inclusão produtiva” (IPEA, 2012b, p. 50).
Em relação à inclusão produtiva, o Plano prevê a “realização de ações de
qualificação profissional, intermediação de mão de obra, oferta de microcrédito e incentivo
à economia solidária” (IPEA, 2012b, p. 51-52). A intenção anunciada é a de ampliar as
possibilidades de (re)entrada no mercado de trabalho e a garantia da subsistência das
famílias sem a necessidade de recorrer ao programa. Entretanto, sabemos que não são
poucas as dificuldades do Sistema Público de Trabalho, Emprego e Renda. Como forma de
contorná-las, o plano abre a possibilidade de recorrer às escolas técnicas e do Sistema S,
para fornecer os cursos de qualificação. “Contudo, convém lembrar que estas instituições
não possuem tradição de atuação junto à população de baixíssima escolaridade e inserção
precária no mundo do trabalho” (IPEA, 2012b, p. 52). Como ressalta o trabalho do IPEA,
estas instituições são voltadas para os trabalhadores do setor formal.
291
Se formos pensar ainda nos limites impostos pelas regiões em que boa parte das
famílias beneficiadas está inserida – cidades pequenas, muitas rurais, e com pouca
capacidade de absorver um aumento do contingente de trabalhadores empregados –
veremos que as possibilidades de êxito desta dimensão são muito pequenas. Sabemos que a
expansão no mercado de trabalho dificilmente poderá incorporar toda a classe
trabalhadora, de modo que a transferência de renda realmente pode ser uma alternativa de
garantia de sobrevivência destas pessoas. A questão é que quando ela se torna o centro das
políticas sociais, consistindo na grande prioridade de atuação, as condições para o
provimento das demais políticas sociais ficam mais restritas. São estas políticas que
permitem o acesso não somente à saúde e à educação, mas a habitação, transporte, lazer e
cultura, por exemplo. Estas últimas hoje são quase que integralmente mediadas pelo setor
privado, tornando seu acesso praticamente exclusivo aos que podem pagar pelos serviços.
É o acesso a estas políticas, entretanto, que juntamente ao aumento da participação nos
ganhos produzidos pelo crescimento econômico, têm um maior potencial para
proporcionar uma melhoria nas condições de vida da população e promover uma efetiva
redistribuição de renda.
As transferências de renda deveriam, portanto, ser a exceção e não a regra. Mesmo
que isso não seja possível no curto prazo, dado que uma solução estrutural depende de
tempo para maturação de investimentos, existe a necessidade de medidas que caminhem
para avançar em relação a uma melhoria substantiva nas condições de vida. As políticas de
governo precisariam ter a perspectiva de se desdobrar em políticas de Estado, apontando
para a intenção de estabelecer mudanças permanentes, ampliando o caráter público e
gratuito dos serviços prestados pelo Estado. Dentre estas políticas de transferência de
renda, somente o BPC219 está garantido constitucionalmente, o que significa que as demais
podem ser alteradas ou retiradas ao sabor dos interesses do governo.
Estas políticas de transferência têm crescido e estão presentes em diversas áreas. Na
educação, a transferência de renda vem surgindo, em muitas universidades, como
alternativa à garantia de alojamentos e restaurantes universitários, por exemplo. É o caso
do programa Bolsa Permanência, criado em 2013 como sinalizamos no primeiro capítulo,
que transfere R$400,00 para estudantes que atenderem às condicionalidades do programa.
Este fato tem animado alguns estudantes por receberem um recurso que contribui para a
219
Também estão garantidos na Constituição os benefícios previdenciários, mas não fizemos referência a
estes dados, por possuírem um outro caráter.
292
continuidade dos seus estudos. Ela vem, entretanto, desmobilizando a luta estudantil e
indicando uma alternativa que pode passar pela precarização das condições de
permanência dos estudantes, dado que moradia e alimentação de qualidade, dentro da
universidade, tornam-se praticamente inviáveis somente com os recursos da transferência.
Os valores transferidos diretamente aos beneficiários não podem substituir políticas de
assistência estudantil consistentes para o atendimento das necessidades de estudantes de
baixa renda e que moram em localidades distantes da universidade.
Ainda no que diz respeito ao Plano Brasil sem Miséria, para ampliar o acesso às
demais políticas sociais, ele congrega programas, projetos e ações nos territórios marcados
pela extrema pobreza. Na área de saúde, por meio de diversos programas, como Saúde da
Família, Brasil Sorridente, Olhar Brasil, Rede Cegonha, distribuição de medicamentos para
hipertensão e diabetes e unidades básicas de saúde (UBS); educação com o Programa
Brasil Alfabetizado e Mais Educação; assistência social, com o Cozinhas comunitárias e
bancos de alimentos; segurança alimentar; e infraestrutura básica (habitação – Minha Casa,
Minha Vida –, energia – Programa Luz para Todos – e saneamento) (IPEA, 2012b). O
entendimento da necessidade de vinculação desta rede à transferência de renda passa pelo
fato de que, muitas vezes, as condições em que as pessoas em situação de extrema pobreza
vivem, as impede de acessar estas políticas. A limitação é que os recursos disponibilizados
para um melhor funcionamento destes programas são insuficientes para garantir uma maior
qualidade e cobertura nos atendimentos. Este limite mantém relação com as restrições
orçamentárias, fruto das escolhas, já discutidas, no que diz respeito à gestão dos recursos.
Um exemplo disso é que, nos últimos anos, o TCU apontou que a obrigatoriedade
do estabelecimento das prioridades na LDO não vêm funcionando como o esperado,
principalmente em razão da baixa execução financeira. A tabela 6 apresenta o nível de
execução das Ações Prioritárias definidas na LDO dos anos de 2009 a 2011.
220
No relatório de 2010, o TCU alerta que “o processo de planejamento do governo não provê canal de
comunicação eficiente de incentivo e conscientização à participação dos órgãos setoriais. Ademais, há
dificuldade na definição das ações realmente prioritárias do Estado. Além de graves problemas no processo
de construção de indicadores setoriais e de seu monitoramento. Recomenda-se ao Poder Executivo que
priorize a execução das ações identificadas como prioritárias frente às demais ações discricionárias”
(BRASIL, 2010).
294
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Eduardo Galeano
analisaram que é por meio do capital financeiro que identificamos a integração do grande
capital bancário com o grande capital industrial – em que há a predominância dos
banqueiros sobre os industriais.
A centralidade que este capital financeiro foi assumindo ao longo do século 20
conduziu, a partir da década de 1970, a um deslocamento dos recursos para o mercado de
capitais. Observa-se também a construção de um processo de mundialização financeira que
ainda iria incorporar diversas regiões do globo, impondo a adesão (ainda que de forma
diferenciada) a este padrão de acumulação.
Contraditoriamente, no Brasil, o final da década de 1960 e início de 1970 foram
anos de alto crescimento econômico e de grande truculência protagonizada pela ditadura
militar. O golpe instaurado como resposta à crise do bloco dominante e ao ascenso da luta
de massas representou a restauração do poder burguês e a consolidação do capitalismo
monopolista no país. Como aponta Ianni, “o ‘milagre econômico’ do ‘modelo brasileiro’
apoia-se na produção inclusive de mais valia extraordinária, propiciada pela amplitude da
brutalidade da atuação da ditadura contra operários e camponeses” (1981, p. 188). O
fortalecimento do planejamento estatal aparece como uma força importante para dinamizar
as relações de produção. Este planejamento associa-se ao uso da violência para dirimir as
possibilidades de resistência, combinado a uma “cultura da ditadura” que impõe uma
releitura da história passada e recente com um conteúdo legitimador e ufanista.
Foi também neste período que as tentativas de controle da inflação buscaram, como
uma de suas medidas, regulamentar o sistema financeiro nacional. O fortalecimento de um
sistema de crédito baseado no mercado de capitais e, portanto, desvinculado de fontes
inflacionárias de incentivo aos investimentos, foi uma das preocupações dos governos
militares, no tocante à produção. Nos anos 1960, foram feitas algumas reformas
institucionais neste sentido, em que destacamos a reforma bancária, no mercado de capitais
e tributária, todas com vistas a “promover a modernização” do país. A partir de 1968,
efetivamente se estrutura o mercado de capitais, fato que veio acompanhado de uma
reorganização do setor financeiro por meio de um processo de concentração e
desintermediação bancária.
Ao que tudo indica, ainda que tenha havido um aumento de atividades financeiras,
algumas de caráter puramente especulativo, não houve um maior atrelamento das
instituições financeiras – que se diversificaram e complexificaram – com a produção
industrial. Esta junção, nos países de capitalismo avançado contribuiu para o
297
fortalecimento do grande capital, dentre outras coisas, por meio de um maior controle
sobre o processo produtivo e uma redução nos custos de produção221. No Brasil, entretanto,
o mercado de capitais não se desenvolveu como nestes países e o aumento da concentração
de capital não esteve associada a um grau de centralização que proporcionasse um maior
atrelamento entre produção e finanças. A abertura do capital e o acesso ao mercado de
capitais teria se dado mais em função de uma busca por se aproveitar dos incentivos
concedidos pelo governo do que como parte de uma estratégia de intervenção planejada,
voltada para ampliar espaços de atuação.
Mesmo com as privatizações nos anos 1990, a maior parte das instituições
financeiras parece não ter aproveitado a oportunidade para diversificar seus negócios a
ponto de assumir o controle de empresas no setor produtivo. Uma das grandes exceções foi
a participação do Bradesco, em 1997, na compra da Companhia Vale do Rio Doce, atual
Vale. Este banco é, ainda hoje, um dos seus controladores. De uma maneira geral, até
aonde conseguimos apurar, as instituições financeiras que vêm tendo uma atuação
destacada na participação acionária de empresas produtivas são os fundos de pensão. Esta
participação começa a se dar de forma mais robusta na primeira década deste século,
depois de maturados os desdobramentos das reformas da Previdência, em que se observa
um aumento substantivo dos ativos em poder destes fundos. Acrescentamos a estes, a
participação do BNDESPar, que depois da reorientação sofrida pelo BNDES, tem usado a
participação acionária em grandes empresas como forma de reorganizar o capitalismo no
Brasil.
Nossa hipótese é a de que o comportamento destas instituições e o imbricamento
que produziram com o setor produtivo podem caracterizar um processo de constituição
endógena do capital financeiro no país. Até então, a presença desta forma de ser do capital
estaria presente em território nacional por meio da atuação do capital estrangeiro, o qual
teria se constituído desta maneira fora de nossas fronteiras. Trata-se, entretanto, da
formação por uma via não clássica, dada a presença forte do vínculo com o Estado. Não
que o Estado tenha, em algum momento, ficado de fora, mas o grau de sua intervenção e
participação, neste caso, assume proporções significativas.
221
Não custa lembrar que este fortalecimento, paradoxalmente, aprofunda suas contradições, dado que
viabiliza o aumento da rentabilidade financeira e o deslocamento de recursos para esta esfera, o que impõe
limites à produção de mercadorias, espaço por excelência da produção de valor.
298
222
Segundo uma reportagem da Veja de 2011, no auge da crise, em 2008, “a Vale demitiu mais de 1 500
funcionários e paralisou algumas de suas plantas no sul do país, além de reduzir drasticamente a produção em
outras unidades. Na época, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez críticas públicas ao fato de a
companhia ir na contramão da política anticíclica do governo”. Disponível em:
http://veja.abril.com.br/noticia/economia/pressao-governista-vence-agnelli-deixa-a-vale. Acesso em:
28/07/2013.
223
A divergência se dá em virtude de formas diferentes de cálculo dos Royalties e a empresa alega que não
reconhece a dívida e que o caso está sendo resolvido pela justiça. Disponível em:
http://www.istoedinheiro.com.br/noticias/52051_O+QUE+ESTA+POR+TRAS+DA+FRITURA+DE+ROGE
R+AGNELLI. Acesso em: 28/07/2013.
299
abril de 2011, quando terminou o mandato de Agnelli e substituí-lo por Murilo Ferreira,
ex-funcionário da Vale e mais afinado com o governo.
O caso representou uma demonstração de força por parte do governo e indica que
este segue tendo poder de mando, mesmo depois da privatização. O processo de
constituição do capital financeiro endogenamente passaria, portanto, por uma forma de
fortalecer grandes grupos nacionais por um lado e, por outro, garantir uma nova maneira de
dar continuidade à capacidade do Estado de intervir nos rumos do desenvolvimento
capitalista no país.
Tratamos ainda esta ideia como uma hipótese, tendo em vista que sua comprovação
exige um aprofundamento na pesquisa sobre a configuração do parque produtivo e de sua
relação com as instituições financeiras. Pretendemos em estudos futuros dar
prosseguimento a este levantamento, o qual apresenta inúmeros desafios. É preciso
aprofundar a discussão sobre capital financeiro e estabelecer critérios para a definição do
grau de participação necessário para se configurar o controle sobre uma empresa. Sabemos
que isto significa muitas vezes não apenas mapear sua composição acionária, o que por si
só traz uma série de dificuldades dada a intrincada rede de propriedade das grandes
empresas na atualidade. Será também importante levantar os acordos feitos entre os
acionistas e a dinâmica que envolve o processo de tomada de decisão de uma empresa para
averiguar quem efetivamente está no comando. Muitas vezes, a participação acionária
representa mais uma iniciativa de diversificar a carteira de investimentos do que uma
preocupação concreta em assumir o controle político-adminsitrativo sobre ela.
Em outras palavras, será preciso dar mais concretude à ideia de junção entre
“instituições financeiras e indústrias” para escapar de definições superficiais que podem
comprometer a análise. De todo modo, estas elaborações iniciais representam uma
tentativa de apreender o sentido e o significado das mudanças em curso, dado que elas têm
implicações não apenas para a configuração do parque produtivo e de sua relação com as
finanças, mas também sobre o fundo público e as decisões no campo da atuação do Estado.
A respeito da atuação do Estado e de sua capacidade de atender às demandas da
classe trabalhadora, cabe destacar o momento de efervescência política que vigorou nos
anos 1980. Esta década foi marcada por intensas lutas sociais que resultaram, dentre outras
coisas, na promulgação da Carta Magna em 1988. Este processo poderia indicar um
contexto mais favorável para a garantia de direitos sociais universais e para um avanço nas
conquistas da classe trabalhadora, além de refletir uma intensificação da luta de classes. No
300
observar uma sensível redução da taxa de juros. Como demonstramos, a dívida pública
possui uma centralidade em relação à gestão dos recursos públicos. Existem países que
possuem uma dívida maior do que a nossa, mas fazem uso de um aporte menor de recursos
para arcar com as despesas dela decorrentes. Trata-se de uma questão que envolve,
portanto, não apenas o montante da dívida, mas o quando se gasta com ela. No Brasil, a
dívida compromete, ao ano, cerca de 30% do orçamento da União.
Neste governo, por ser mais contraditório, podemos observar que mesmo com esta
taxa permanecendo em patamares considerados altos, o aumento com o pagamento da
dívida sobe ao mesmo tempo em que sobem também os gastos com as políticas sociais.
Deste modo, embora mantendo o mesmo padrão de gastos e a estrutura tributária
regressiva, estes últimos governos vêm encontrando formas de dar algumas respostas às
demandas da classe trabalhadora.
Do ponto de vista dos gastos sociais, se há uma mudança mais significativa, esta
situa-se na sua utilização como uma medida anticíclica para contornar os efeitos da crise
econômica. Esta postura pode ser identificada pelo aumento dos gastos sociais em 2009,
contexto marcado pelo baixo crescimento, com desdobramentos sobre o nível de emprego.
O auge da crise no Brasil foi o final de 2008 e o início do ano seguinte e já no segundo
semestre começa a apresentar sinais de melhora. A resposta do governo foi uma clara
política expansionista em que o aumento dos gastos sociais se combinou a um conjunto de
outras medidas, dentre as quais, o incentivo ao crédito, redução da taxa de juros e do
superávit primário, desonerações fiscais e aumento do salário mínimo. O resultado foi um
maior crescimento econômico e a recuperação do nível de emprego, promovidos em
grande parte, pelo consumo interno. No entanto, como sinalizamos, as contradições que
envolvem o governo são de difícil sustentação no longo prazo e a redução nas taxas de
crescimento a partir de 2011224 pode indicar um certo esgotamento deste padrão.
Este quadro de crescimento em 2010 foi possível, em grande medida, pela adoção
de medidas emergenciais de enfrentamento à crise, bem como de algumas decisões
anteriores a esta, voltadas para estimular o consumo das famílias. A redução da taxa de
desemprego e a política de valorização do salário mínimo foram alguns dos fatores mais
importantes, aliados aos programas de transferência de renda, que já vinham sendo
implementados anos antes.
224
O PIB cresceu 2,7% em 2011, 0,9% em 2012, segundo o IBGE, e a previsão é de que fique abaixo de 3%
em 2013.
302
225
Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-06-24/endividamento-das-familias-em-abril-
foi-recorde-diz-banco-central. Acesso em 30/07/2013.
226
Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Economia_Negocios/0,,MUL1208946-9356,00-
ENDIVIDAMENTO+DAS+FAMILIAS+ATINGE+QUASE+DE+SUA+RENDA+DIZ+BC.html. Acesso
em: 30/07/2013.
227
Disponível em: http://oglobo.globo.com/economia/endividamento-das-familias-bate-recorde-4399-da-
renda-8516655. Acesso em 30/07/2013.
303
patamares ainda muito altos e com uma responsabilidade fiscal que inibe as possibilidades
de crescimento. Sua atuação, portanto, se equilibra em torno de uma política econômica
ainda muito conservadora e uma série de medidas que buscam, em alguma medida,
amenizar seus efeitos.
As restrições ao investimento se combinam a empréstimos a taxas subsidiadas para
o grande capital e à participação acionária em empresas, com vistas a estimular um
processo de multinacionalização das “empresas líderes”. O incentivo à produção tem
apresentado resultados no crescimento econômico, mas ao mesmo tempo, fortalecido nossa
posição como exportadores de produtos semielaborados e de baixo valor agregado. O lucro
das grandes empresas produtivas e financeiras tem aumentado, mas vem acompanhado de
políticas sociais pontuais e aumento do salário mínimo. Estas políticas sociais têm impacto
sobre as condições de vida da população, mas favorecem o capital portador de juros (dada
a sua crescente monetarização) e se inserem cada vez mais em um processo de
mercantilização, que abre novas fronteiras de acumulação capitalista.
Quem mais tem sido beneficiada é a grande burguesia interna que, tutelada pelo
BNDES, vê neste governo possibilidades de se fortalecer e enfrentar em condições um
pouco mais favoráveis o capital internacional, embora siga atrelado a ele. Nossa posição
nas relações internacionais ainda é de subalternidade e dependência, por mais que a as
grandes condições macroeconômicas estejam em patamares mais estáveis e que tenhamos
uma margem maior de segurança para enfrentar as crises internacionais. O fortalecimento
desta burguesia interna produz as condições para uma maior concorrência com o
imperialismo, mas não rompe com ele, dado que aprofunda nossa posição na Divisão
Internacional do Trabalho.
Entretanto, a pressão dos movimentos sociais e das lutas populares, assim como a
participação de pessoas identificadas com estas lutas no governo, vêm trazendo algumas
diferenças na composição do gasto social. Estas diferenças estão mais atreladas ao
provimento de programas voltados para a população de baixa renda do que a um
investimento substantivo na garantia das políticas sociais universais. São priorizados
programas que demandam um aporte de recursos pequeno diante do grande impacto que
produzem, do ponto de vista do apoio popular, e que tencionam menos com os interesses
do capital, por não promoverem uma alteração mais efetiva na distribuição da riqueza. De
qualquer forma, seu efeito sobre a melhoria nas condições de vida e de acesso ao consumo
304
de uma parcela da população pode ser sentido e se expressa em uma melhora (tímida) na
distribuição de renda em favor da classe trabalhadora.
O fundamental para se pensar aqui, para além das polêmicas que existem na análise
do quanto este governo é suscetível à pressão popular, é conseguir perceber que a luta pela
ampliação dos direitos e por políticas sociais universais – e, portanto, de reformas
estruturais – tem, cada vez mais, o poder de confrontar os interesses do capital. Quanto
mais difícil for vislumbrar a possibilidade de implementá-las, mais necessárias elas são
para fortalecer a classe trabalhadora e seguir no sentido de possibilitar sua unidade. O
grande desafio é conseguir explorar as contradições de cada governo para fazer avançar a
luta.
Deste modo, as campanhas pelos 10% do PIB para a educação pública e a que
reivindica 10% de recursos do orçamento da União para a saúde, parecem ser uma
expressão de como a luta pode ganhar concretude e abrir espaço para um amplo debate na
sociedade. Estas são campanhas abraçadas pelos movimentos populares que têm a
perspectiva de aumentar o volume de recursos para estas políticas e, portanto, para o
atendimento às necessidades da classe trabalhadora. Há nestas o pressuposto do
entendimento da disputa de interesses que permeia o trato do orçamento público.
Estas campanhas trazem bandeiras que confrontam os interesses do grande capital
na medida em que questionam os recursos públicos que são “sangrados” para o pagamento
de juros. Embora seja uma pauta restrita aos limites da ordem capitalista, pressupõe o
Estado como um espaço de disputa de classes e reivindica deste uma atuação mais voltada
para garantir os interesses da classe trabalhadora. Além de ser uma luta que põe a classe
em movimento, com perspectivas de estabelecer uma unidade, abre espaço para conquistas
concretas, que alimentam a disposição para avançar, o que pode vir a aumentar o potencial
ofensivo dos movimentos sociais. Isto não necessariamente acontecerá. O resultado desta
disputa dependerá da capacidade organizativa dos trabalhadores e da configuração da luta
de classes no decorrer deste enfrentamento.
O transporte público também vem demonstrando ser uma questão capaz de
promover uma intensa mobilização. E, mais que isso, de se desdobrar em outras bandeiras
de reivindicação. As massivas manifestações que ocorreram em junho de 2013
surpreenderam o país e os próprios manifestantes. Inicialmente acionada pelo aumento no
preço das passagens de ônibus, a mobilização foi ganhando força e projeção, explicitando
305
interesses do capital. Mas sabemos que não será uma tarefa simples. O Estado no
capitalismo centra todos os seus esforços em garantir a produção e reprodução das relações
capitalistas como um todo. Apesar de aparentemente estar fora da sociedade e, por isso,
supostamente neutro, ele existe para garantir a dominação de uma classe sobre a outra.
Para tanto, faz valer todos os seus recursos, os quais vão desde a utilização de seu braço
coercitivo, até as estratégias de manipulação ideológica executadas pelos “aparelhos
privados de hegemonia”. O importante é garantir que os conflitos de classe estejam sob
controle e viabilizar as condições gerais de produção, ou seja, manter a lucratividade da
burguesia em margens aceitáveis para os padrões capitalistas de acumulação.
Compreendemos, portanto, que a sociabilidade capitalista é incompatível com a
construção de relações sociais plenas de igualdade e liberdade substantivas à medida que
este sistema alimenta a justiça no âmbito formal como instrumento mistificador para a
manutenção da desigualdade, esta sim, real e substantiva.
A luta por direitos e por políticas sociais vive, neste contexto, em uma constante
tensão. Se por um lado são instrumentos utilizados pelo Estado a serviço da classe
dominante, por outro expressam o descontentamento e o potencial reivindicativo e
combativo da classe trabalhadora. Deixar de lado qualquer uma destas perspectivas pode
levar a equívocos, os quais possuem desdobramentos sérios para a configuração da luta de
classes.
Perceber estas lutas somente como fruto das ações da classe trabalhadora ou mesmo
como uma responsabilidade do Estado, pode atribuir a elas um fim em si mesmas. Este fato
acaba contribuindo para que esta luta se resuma a reivindicações dentro da ordem, como se
fosse possível resolver todos os problemas da classe trabalhadora por meio da conquista de
direitos. Por outro lado, o entendimento de que estas lutas estão restritas à lógica do
capital, tem o perigoso desdobramento de advogar em torno do abandono deste tipo de
enfrentamento, abrindo o espaço de dominação burguesa para um terreno sem disputas.
Em contraposição a estas duas perspectivas, acreditamos que a luta por direitos
deve ser encarada como um meio de confrontar o capital, aglutinar forças e obter pequenas
conquistas que contribuam para avançar nas reivindicações tendo como horizonte a
construção de uma sociedade efetivamente livre.
Caminhar no sentido de aproximações sucessivas à realidade e articular o
conhecimento à busca por estabelecer formas de enfrentamento ao capital é um imenso
desafio. Este estudo está longe de esgotar esta necessidade. Nossa pretensão foi apenas
307
trazer algumas reflexões para o debate e buscar chamar a atenção para a importância de se
pensar o lugar que o gasto social ocupa no seio das decisões governamentais na atualidade,
buscando identificar seus avanços e continuidades na perspectiva de fomentar a luta pela
ampliação de direitos.
Acreditamos, portanto, que o compromisso político com uma sociedade igualitária,
onde não caibam traços de subordinação, exploração e opressão, exige uma ordem social
qualitativamente diferente, o que demanda a construção de um projeto alternativo de
sociedade. Este projeto deve fazer parte de um movimento que busque o rompimento com
as bases em que este modo de produção se apoia e com as particularidades que marcam sua
etapa de desenvolvimento contemporâneo, dentre as quais destacamos a condução da
política econômica e a contrarreforma do Estado, bem como os reflexos que estas têm
sobre a classe trabalhadora.
Consideramos necessário fomentar e alimentar os laços de pertencimento de classe
e da radicalidade, em contraposição ao “voluntariado” e à “solidariedade” transclassista.
Esta busca impõe o entendimento dos direitos sociais não como um ideal, muito menos um
fim, mas como o mínimo necessário para garantir as condições de sobrevivência para lutar
por uma igualdade real, que, diferentemente da formal (sempre associada à desigualdade
real), não se limita à esfera política, permitindo a existência de seres integrais, socialmente
livres e emancipados.
308
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Mansueto. Desafios da real política industrial brasileira do século XXI. Texto
para Discussão, nº1452, dezembro. Brasília: IPEA, 2009.
BARBOSA, Nelson ; SOUZA, José Antônio Pereira de. A inflexão do governo Lula:
política econômica, crescimento e distribuição de renda. In: GARCIA, Marco Aurélio ;
SADER, Emir. (Org.). Brasil, entre o passado e o futuro. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo: Boitempo, 2010.
BEHRING, Elaine Rossetti. Crise do capital, fundo público e valor. In: BOSCHETTI,
Ivanete et al (Org.). Capitalismo em crise, política social e direitos. São Paulo: Cortez,
2010.
______. Acumulação capitalista, fundo público e política social. In: BOSCHETTI, Ivanete
et al (Org.). Política social no capitalismo: tendências contemporâneas. São Paulo: Cortez,
2008.
______; BOSCHETTI, Ivanete. Política social: fundamentos e história. São Paulo: Cortez,
2010.
BOITO Jr., Armando. Governos Lula: a nova burguesia nacional no poder. In: BOITO Jr.,
Armando ; GALVÂO, Andréia (Org.). Política e classes sociais no Brasil dos anos 2000.
São Paulo: Alameda, 2012.
309
BOITO Jr., Armando ; MARCELINO, Paula. O sindicalismo deixou a crise para trás? um
novo ciclo de greves na década de 2000. Caderno CRH, Salvador, v.23, n.59, maio/ago.,
p. 323-338, 2010. [on line]
______. A insidiosa corrosão dos sistemas de proteção social europeus. Serviço Social e
Sociedade, São Paulo, n.112, out./dez., 2012b. p.754-803.
BRAGA, José Carlos de Souza ; PRATES, Daniela. Todos os bancos do presidente? In:
Praga – Estudos Marxistas 6. São Paulo: Hucitec, 1998.
BRASIL. Dívida pública federal brasileira. Tesouro Nacional. Brasília: TN, 2012.
_______. Ministério da Fazenda. Gasto Social do Governo Central: 2001 e 2002. Brasília,
Secretaria de Política Econômica, 2003a.
BRAVO, Maria Inês Souza ; MATOS, Maurílio Castro de. O potencial de contribuição do
Serviço Social na Assessoria aos Movimentos Sociais pelo Direito à saúde. In: Assessoria,
consultoria e serviço social. São Paulo: Cortez, 2010.
CANO, Wilson ; SILVA, Ana Lúcia Gonçalves da. Política industrial do governo Lula. In:
MAGALHÃES, João Paulo de Almeida et al (Org.). Os anos Lula: contribuições para um
balanço crítico 2003-2010. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. p. 181-208.
CARNEIRO, Maria Lucia Fattorelli. O manejo da dívida pública. In: SICSÚ, João.
Arrecadação (de onde vem?) e gastos (para onde vão?). São Paulo: Boitempo, 2007.
CASTRO, Jorge Abrahão de et al. Análise da evolução e dinâmica do gasto social federal:
1995-2001. Texto para discussão, n. 988, outubro. Brasília: IPEA, 2003.
CHAVES, José Valente ; RIBEIRO, José Aparecido Carlos. Gasto Social Federal: uma
análise da execução orçamentária de 2011. Nota Técnica, nº13. Brasília: IPEA, 2012.
311
COSTA, Fernando Nogueira da. Brasil dos bancos. São Paulo: Universidade de São Paulo,
2012.
______. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003.
______. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. Belo Horizonte:
Oficina de livros, [1988] 1990.
DIEESE. Balanço das negociações dos reajustes salariais em 2011. Estudos & pesquisas,
São Paulo, n. 59, mar., 2012.
FATTORELLI, Maria Lúcia. A dívida pública em debate: saiba o que ela tem a ver com a
sua vida. Caderno de Estudos. Auditoria Cidadã da Dívida. Brasília: Inove, 2012.
FIORI, José Luís. Um governo contra o povo e a nação. In: Praga – Estudos Marxistas 6.
São Paulo: Hucitec, 1998.
GIANOTTI, Vito. História das lutas dos trabalhadores no Brasil. 3.ed. Rio de Janeiro:
Mauad X, 2009.
______. Para uma interpretação marxista da previdência privada. 2006. 268 f. Tese
(Doutorado em Serviço Social) – Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
HILFERDING, Rudolf. O capital financeiro. São Paulo: Nova Cultural, [1910] 1985.
______. 15 anos de gasto social federal: notas sobre o período de 1995 a 2009.
Comunicados do IPEA, no 98. Brasília, Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência
da República, 2011a.
KALECKI, Michal. Crescimento e ciclo das economias capitalistas. São Paulo: Hucitec,
[1968] 1977.
MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. São Paulo: Nova Cultural, [1972] 1985.
MARX, Karl. Para a questão judaica. São Paulo: Expressão Popular, [1843] 2009.
______. O capital. Livro Primeiro, vol. I. São Paulo: Nova Cultural, [1867] 1988a.
______. O capital. Livro Primeiro, vol. II. São Paulo: Nova Cultural, [1867] 1988b.
315
______. O capital. Livro Segundo, vol. III. São Paulo: Nova Cultural, [1885] 1988c.
______. O capital. Livro Terceiro, vol. IV. São Paulo: Nova Cultural, [ 1894] 1988d.
MARX, Karl. O capital. Livro Terceiro, vol. V. São Paulo: Nova Cultural, [1894] 1988e.
______. ; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, [1846] 1999.
______. Memórias da prisão política sob o regime de Vargas. In: SIMPÓSIO NACIONAL
DE HISTÓRIA, 26., 2011, São Paulo. Anais do... São Paulo: ANPUH, 2011.
MELO, João Manuel Cardoso de. O capitalismo tardio. São Paulo: Brasiliense, [1975]
1991.
_______. MOTA, Ana Elizabete. Cultura da crise e seguridade social: um estudo sobre as
tendências da previdência e assistência social brasileira nos anos 80 e 90. São Paulo:
Cortez, 2011.
NERI, Marcelo. A nova classe média: o lado brilhante da base da pirâmide. São Paulo:
Saraiva, 2011.
NETTO, José Paulo. Cinco notas a propósito da “Questão Social”. Temporalis: Revista da
Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social, Brasília, ano. 2, n.3,
jan./jul. 2001.
316
NETTO, José Paulo. Ditadura e serviço social: uma análise do serviço social no Brasil
pós-64. São Paulo: Cortez, 1991.
NOVO, Aguinaldo. Na era Lula, bancos tiveram lucro recorde de R$199 bi, com crédito
farto. O Globo, Rio de Janeiro, 26 fev. 2011. Economia.
OLIVEIRA, Fabrício Augusto de. Economia e política das finanças públicas no Brasil.
São Paulo: Hucitec, 2010.
OLIVEIRA, Francisco de. Hegemonia às avessas. In: OLIVERIA, Francisco de; BRAGA,
Ruy ; RIZEK, Cibele (Org.). Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da
servidão financeira. São Paulo: Boitempo, 2010.
______. A economia brasileira: crítica à razão dualista. Petrópolis: Vozes, [1972] 1981.
ORDOÑEZ, Ramona ; ROSA, Bruno. Petrobras tem lucro recorde. O Globo, Rio de
Janeiro, 26 fev. 2011. Economia.
PAULA, João Antônio de. Política econômica e transformação social. In: SICSÚ, João.
Arrecadação (de onde vem?) e gastos (para onde vão?). São Paulo: Boitempo, 2007.
PAULANI, Leda. Alternativas para o Brasil no início do século XXI. In: SICSÚ, João.
Arrecadação (de onde vem?) e gastos (para onde vão?). São Paulo: Boitempo, 2007.
______. Sem esperança de ser país: o governo Lula dezoito meses depois. In: ______.
Brasil delivery. São Paulo: Boitempo, [2004] 2008. (Coleção Estado de Sítio).
______. A dança dos capitais. In: Praga – Estudos Marxistas 6. São Paulo: Hucitec, 1998.
PESCHANSKI, João Alexandre. Crise europeia e austeridade fiscal. In: Blog da Boitempo.
12/03/2012. Disponível em: <http://blogdaboitempo.com.br/2012/03/12/crise-europeia-e-
austeridade-fiscal/?shared=email&msg=fail.> Acesso em: 15 abr. 2012.
PINTO, Eduardo Costa. Bloco no poder e governo Lula: grupos econômicos, política
econômica e novo eixo sino-americano. 2010. 306 f. Tese (Doutorado em Economia) –
Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
______. Nova classe média? O trabalho na base da pirámide social brasileira. São Paulo:
Boitempo, 2012.
______ ; BORGES, Altamiro. “Era FHC”: a regressão do trabalho. São Paulo: Anita
Garibaldi, 2002
PRADO Jr., Caio. A revolução brasileira. São Paulo: Brasiliense, [1966] 2004.
ROCHA, Marco Antônio da. Grupos econômicos e capital financeiro: uma história recente
do grande capital brasileiro. 2013. 183 f. Tese (Doutorado em Economia) – Instituto de
Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas/SP, 2013.
______ ; SILVEIRA, José Maria Ferreira. Propriedade e controle dos setores privatizados:
uma avaliação da reestruturação societária pós-privatização. In: XXXVII ENCONTRO
NACIONAL DE ECONOMIA, 37., 2009, Foz do Iguaçu. Anais do... Foz do Iguaçú :
ANPEC, 2009. Disponível em:
http://www.anpec.org.br/encontro2009/inscricao.on/arquivos/000-
7974b8e4196423d11735fd974c864a54.pdf. Acesso em: 30 maio 2013.
______. O anjo torto: esquerda (e direita) no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1995.
SAMPAIO, Plínio de Arruda. Para além da ambiguidade: uma reflexão histórica sobre a
CF/88. In: CARDOSO Jr., José Celso. A constituição brasileira de 1988 revisitada:
318
recuperação histórica e desafios atuais das políticas públicas nas áreas econômica e social.
Vol1. Brasília: IPEA, 2009.
SANTOS, Silvana Mara Morais dos. Questões e desafios da luta por direitos. Revista
Inscrita, Brasília, ano 7, n.10, nov. 2007.
SALVADOR, Evilásio. Fundo público e seguridade social. São Paulo: Cortez, 2010.
______. Crise do capital e socorro do fundo público. In: BOSCHETTI, Ivanete et al (Org.).
Capitalismo em crise, política social e direitos. São Paulo: Cortez, 2010.
______. A distribuição da carga tributária: quem paga a conta?. In: SICSÚ, João.
Arrecadação (de onde vem?) e gastos (para onde vão?). São Paulo: Boitempo, 2007.
SICSU, João; VIDOTTO, Carlos. Administração fiscal no Brasil e taxa de juros. In:
SICSÚ, João. Arrecadação (de onde vem?) e gastos (para onde vão?). São Paulo:
Boitempo, 2007.
SINGER, André. Os sentidos do Lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.
______. A raiz do desastre social: a política econômica de FHC. In: LESBAUPIN, Ivo
(Org). O desmonte da nação: balanço do governo FHC. Petrópolis: Vozes, 1999.
SILVA, Giselle Souza da. Transferência de renda e capital portador de juros: uma
insidiosa captura. 2010. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Faculdade de Serviço
Social, Rio de Janeiro, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2010.
SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. São
Paulo: Nova Cultural, [1776] 1988. v.1.
______ ; TEIXEIRA, Aloisio ; PENA, Maria Valéria Junho (Org.). Aquarella do Brasil:
ensaios políticos e econômicos sobre o governo Collor. Rio de Janeiro: Rio Fundo Ed,
1991.
TEIXEIRA, Aloísio. O ajuste impossível, seis anos depois. Uma reapresentação. Rio de
Janeiro: IEI/UFRJ, 2000. Mimeo.
VILLAS BÔAS, Bruno. Uma era de outro para a Bolsa. O Globo, Rio de Janeiro, 04 out.
2010. Economia.