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Processo de personificação de um inimigo popular, visto

pela ótica da bruxa

A bruxa em algumas sociedades pode ter o papel social de representar o vilão em comum
da comunidade; pode-se fazer uma relação entre a bruxa e o personagem de 1984,
Goldstein. Repare que, no livro, ninguém nunca viu esse tal inimigo do Partido. Não se
sabe a idade, de onde veio, o que faz e nem mesmo se esse é seu verdadeiro nome, assim
como as tais bruxas malignas que assassinam virgens e se relacionam com animais. Mas,
a verdade é que, ninguém precisa ver de verdade esses personagens, que no imaginário
popular tornam-se entidades (não no sentido religioso como um espírito, mas uma
existência acima da realidade que é maleável a imaginação e os interesses da
comunidade). Essas entidades são o inimigo necessário para o controle da massa, um líder
político por exemplo, pode usar um inimigo idealizado para colocar-se como a solução
ou mesmo o menos pior se comparado ao tal vilão, (a ameaça comunista nunca existiu,
nunca houve uma "contaminação" da ideologia marxista no Brasil, muito menos nos anos
1960, e mesmo assim, ao inventar esse terrível inimigo que corrompe a família, é contra
os valores do bom cidadão e até mesmo abusa de crianças, os militares conseguiram sua
chancela moral para dar o golpe de 1964). Voltando a imagem da bruxa, esta ainda está
relacionada ao contexto religioso, que possui um tipo de "imunidade de lógica" (ou seja,
está acima da razão e da ciência, tendo o trunfo de alegar que a fé é algo pessoal e mais
ligado aos sentimentos e interesses pessoais, e por isso não depende de coerência com a
realidade), isso só aumenta ainda mais o leque de interpretações e associações que se pode
fazer da bruxa, e ainda dificulta a desconstrução de preconceitos e estereótipos por ter a
alcunha de "opinião pessoal". Dentro de uma sociedade fundamentalista e com estruturas
sociais enraizadas na religiosidade (que acabam pautando o senso moral da população, e
também a própria construção das leis), a bruxa pode ser simplesmente tudo o que esta
sociedade considerar por consenso "imoral". No Brasil, por exemplo, fundamentado no
cristianismo europeu (que possui diversas variações, no caso do Brasil, o evangelho
neopetencostal é mais popular que o catolicismo tradicional) nudez, comportamento
agressivo e poligamia são práticas por consenso imorais (exemplo disso é que existem
leis contra a nudez explícita em locais públicos, e que proíbem poligamia dentro de um
casamento civil, este inclusive é passível de encarceramento) e comumente associados a
pessoas sem pudor ou escrúpulos, e que provavelmente não seguem a religião
predominante que ensina o jeito correto de viver em sociedade. Há mais um perigo além
da associação de comportamentos diferentes da norma social a algo errado; o senso
comum de moralidade é replicado em diversos espaços e instituições, pelos mais variados
tipos de pessoas, na escola, por um professor, em casa, por um parente ou amigo, nas
ruas, por meio de interações sociais como trabalho ou comércio e hoje em dia, pela
internet com seu leque quase infinito de perfis de pessoas. No caso de um professor ou
parente próximo como pai e mãe, existe uma hierarquia social que coloca essas entidades
(entenda como a posição de pai, mãe ou professor, e não a pessoa individualmente que
ocupa esse "cargo") acima de nós no assunto de moral. Nossos pais viveram mais e por
isso sabem melhor o que é certo e errado, bom e ruim, além de serem eles que nos deram
a vida e nos sustentam e por isso exercem essa autoridade ao nos impor o que é ou não
moral. E o professor estudou e estuda (teoricamente) além de ter se formado e ocupa seu
cargo de educador de acordo com o protocolo da lei, por isso, pode nos ensinar o que é
moral. Essas entidades vão impondo ao indivíduo (não necessariamente de forma
agressiva) as normais morais todos os dias por meio de todas as formas de expressão
dessa mesma sociedade. Nesse processo, o indivíduo começa a se acostumar com essas
normas, e perde algo essencial, o senso crítico. Isso porque, torna-se cada vez menos
necessário questionar as normas, visto que essas são aceitas por toda a sociedade, em
todos os lugares, ninguém mais questiona esse indivíduo, colocando-o numa situação em
que ele deve refletir e estudar para responder. Esse efeito pode ser identificado dentro do
contexto religioso, ainda no exemplo do neopetencostalismo brasileiro, ora, se todas as
pessoas seguem essa minha religião, e o que eu acredito e pratico é aceito e replicado por
todos, por que preciso questionar as estruturas? Esse perigo está no fato de uma grande
parte da sociedade concordar nos fundamentos e seguir a vida em consenso baseado nos
mesmos, e o sintoma desse efeito é que ao aparecer uma manifestação de oposição ou
mesmo de convergência com esses fundamentos, a reação da massa é de alguma forma
hostil. Isso ainda garante que a massa deixe de identificar os defeitos dos seus próprios
fundamentos, e disso comecem a agir de forma incoerente com o que defendem ou mesmo
não perceberem que estão prejudicando aos outros. No Brasil, dizer-se evangélico não
causa nenhuma estranheza da massa, não há questionamentos quanto ao seu
conhecimento, fé nem nada do tipo. Enquanto, dizer-se bruxo causa hostilidade, e ainda,
questionamentos sobre suas capacidades, ou sobre a veracidade do que acredita. Isso
porque, a massa já parte do princípio de que seus fundamentos são reais e válidos, e que
para além disso, existem estranhos que não aceitam o que já é inicialmente considerado
fato.

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