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A Sociedade dos Indivíduos

Norbert Elias (Resumo – 1.ª Parte)

O tema inicial é acerca do conceito de sociedade: uma vez que o mesmo apresenta definições
nem sempre muito claras. Há o questionamento da palavra “sociedade”, que todos utilizam e
que ninguém discute os significados. É quase como um axioma aceito. As mudanças nas formas
de vida em sociedade independem do planejamento individual, bem como também ele existe só
porque existe um grande número de pessoas e que ele só funciona porque muitas pessoas –
individualmente – querem e fazem certas coisas.

Pelas respostas dadas, temos dois caminhos:


 Um grupo concebe as formações sócio-históricas como estruturas pré-concebidas,
planejadas e criadas, semelhante aos projetos que fazem para a construção de um grande
edifício. Com isso, a evolução dos estilos artísticos ou o próprio processo civilizador
são questões sem resposta.
 O campo oposto afirma que o indivíduo não desempenha nenhum papel na sociedade.
Ela é uma unidade orgânica, acima do individual, com uma vida própria. As formas
culturais e as instituições econômicas possuem um papel fundamental.

Esta dualidade aparece também nas explicações das funções psicológicas sociais – há um lado
que afirma ser possível isolar o indivíduo das suas relações com as demais pessoas, por outro
lado, há os que afirmam que não existe lugar apropriado às funções psicológicas do indivíduo
singular.

Também nos deparamos com as mesmas dúvidas. Temos uma certa idéia de que somos
indivíduos e de que é a sociedade, porém, se tentarmos, em nosso pensamento, reconstruir
aquilo que vivenciamos na realidade, perceberemos que nosso fluxo de pensamento é
entrecortado e falho.

Isto é ocasionado pelo fato de não possuirmos modelos conceituais e tampouco uma visão
global mediante os quais possamos entender como é possível que indivíduos isolados possam,
sem sequer ter planejado ou pretendido, formar e transformar a sociedade.

A questão capital que permeia nossa sociedade é fato de como tornar possível criar uma
ordem social que possibilite a harmonização ente o desenvolvimento pessoal do indivíduo e,
por outro lado, pelas exigências feitas pelo trabalho coletivo de muitos no tocante à
manutenção do social como um todo.

Por mais que tentemos separar o indivíduo da sociedade, percebemos que o desenvolvimento de
um está intimamente ligado ao do outro. A dissociação é impossível. Porém, o que percebemos
é o fato de que os projetos que nos são ofertados como solução para pôr termo a essa questão
infelizmente sacrificam uma coisa à custa de outra.

Com isto, percebemos que qualquer idéia relacionada com o tema é tida como uma tomada de
posição para um dos lados, isto é, ou se fala que o indivíduo é mais importante que a sociedade,
ou que a sociedade é mais importante que o indivíduo. Os conflitos, portanto, são inevitáveis.

Há então o surgimento da dicotomia indivíduo e sociedade. Esquece-se que a questão não é


saber quem é o mais importante, mas sim em saber que nem o indivíduo, nem a sociedade
existem um sem o outro.
A vida social dos seres humanos não é nada harmoniosa: ela é repleta de contradições, tensões e
explosões. As pessoas também estão num movimento mais ou menos perceptível; os indivíduos
também não se unem com cimento: as maiorias das pessoas vão e vêm como lhes apraz.

Porém, embora exista a liberdade individual de movimento, há também uma ordem oculta e
aparentemente imperceptível. Cada pessoa nesse turbilhão, em algum lugar, em algum momento,
tem uma função, um trabalho específico, ou mesmo alguma tarefa par os outros, ou ainda, um
emprego perdido.

Com isso, como resultado de sua função, cada pessoa tem ou teve uma renda, da qual sobrevive
ou sobreviveu. Não é possível a qualquer uma delas pular fora disso de uma hora para outra.
Cada um está preso aos “formalismos” de cada ocasião – seja do trabalho ou de desemprego, de
uma festa ou de um velório. A ordem invisível dessa forma de vida em comum oferece ao
indivíduo uma gama mais ou menos restrita de funções e de comportamentos possíveis.

Na verdade, o indivíduo está confinado à situação em que nasce, às funções e à situação de seus
pais, e à escolarização que recebe. Embora possa não conhecer ninguém no meio desse burbúrio,
ele possui, em algum lugar, um círculo de relações a que pertence, mesmo que esteja só, tem
conhecido perdidos ou mortos que vivem apenas em sua memória.

Cada pessoa, mesmo o monarca absolutista mais poderoso, representa uma função que só é
formada e mantida em relação a outras funções, as quais somente podem ser compreendidas em
termos da estrutura específica e do contexto em que estão.

Mas essa rede de funções existente nas associações humanas não surgiu à soma de vontades,
isto é, da decisão comum das pessoas individuais. E, no entanto, esse contexto funcional é algo
que existe fora dos indivíduos. Cada função é exercida de uma pessoa para outras. E cada uma
destas funções está relacionada com terceiros: cada uma depende das outras. Portanto, é essa
rede de funções que as pessoas desempenham umas em relação às outras, a ela e nada mais,
chamamos sociedade.

O hábito de analisarmos unidades compostas a partir de unidades menores e das suas inter-
relações, quando aplicado aos diferentes tipos de experiências que temos de nós mesmos, das
pessoas e das sociedades, originem anomalias específicas.

Esses hábitos mentais originam, de um lado, os grupos que sustentam a idéia de que a sociedade
é algo supra-individual (surgem os conceitos de mentalidade coletiva, organismo coletivo).
Opondo-se a isto, há os grupos que concentram as idéias nos indivíduos humanos.

Embora estes vejam que as estruturas e leis sociais nada mais são que estruturas e leis de relação
entre as pessoas, são incapazes de perceber que as próprias relações possuem estruturas e
regularidades próprias. Ambos os grupos, no entanto, enxergam o indivíduo isoladamente,
gerando, com isto, um abismo entre os fenômenos sociais e individuais.

A relação indivíduo-sociedade é algo singular: não existe comparação em nenhuma outra esfera
da existência. Para compreendê-la, é necessário começar a pensar em termos de relação e
funções, e não em termos isolados um do outro. Embora muitas pessoas, ao pensarem em sua
origem, imaginem que descenderam de um único ser humano já adulto, sabemos que todo
indivíduo nasce num grupo de pessoas que já existem antes dele e, das quais, ele
depende.Independentemente de sua constituição natural ao nascer, é somente no convívio com
outros seres humanos que a crença se transforma num ser mais complexo. E, é claro, jamais
duas histórias individuais são idênticas.
A constituição psíquica que cada ser humano traz ao mundo dá margem a uma grande profusão
de individualidades possíveis. As relações desse indivíduo com as outras pessoas, porém, terão
muito mais influência sobre ele que sua própria constituição.

A relação entre as pessoas é tão imprevisível que, numa conversa, cada um dos interlocutores
forma idéias que não existiam antes ou, até mesmo, leva adiante idéias que já estavam
presentes. Não há como prever, rigorosamente falando, o desfecho de uma conversa nem,
tampouco, a relação entre as pessoas, pois, estas estão continuamente moldando-se e
remoldando-se umas às outras.

Cada indivíduo traz consigo a marca de uma sociedade específica, de uma nação e de uma
classe específica. E está é a chave para compreendermos o que é sociedade: analisar a
historicidade do indivíduo e o fenômeno do seu crescimento até a idade adulta.

O atual isolamento das pessoas revela uma profunda conformação do indivíduo com relação às
situações de refreamento de instintos, controle afetivo e mutação da própria personalidade.

Isso tudo gera um profundo conflito no interior do indivíduo, que passa a achar que “dentro” de
si ele é algo que existe inteiramente só, e que só “depois” se relaciona com os outros “do lado de
fora”. Esta é uma expressão sumamente inadequada da verdadeira relação entre os seres
humanos.

Quanto mais intenso e abrangente é o controle dos instintos, quando mais domínio o indivíduo
deve ter sobre o desempenho de suas funções, maior se torna à distância entre o comportamento
do adulto e da criança; com isso, quanto mais difícil se torna o processo civilizador individual,
mais demorado é o tempo de preparação das crianças para estas desempenharem as funções
adultas.

Logo, os jovens são afastados da esfera dos adultos por um período longo de “treinamento” em
institutos, escolas e universidades, antes de começarem a desempenhar suas funções
propriamente ditas. E esse período tende a aumentar.

A especialização cada vez maior do trabalho em nossas sociedades restringe cada vez mais as
faculdades e inclinações do indivíduo.

O jovem é então iludido com as promessas de uma vida adulta cheia de sonhos e de alegrias. O
contraste com a realidade da vida adulta, com as limitações impostas pelos empregos, a
intensidade das competições e as tensões tornam muito difícil o condicionamento do indivíduo.
A probabilidade de que ele venha a sucumbir perante o rompimento de suas inclinações pessoais
e as tarefas sociais impostas, torna-se extremamente aguda.

O indivíduo passa a ver a sociedade como uma cela da qual não pode escapar.

Várias escolas de pensamento tentam explicar a questão da influência da sociedade “externa” na


formação do indivíduo. Subjacente a todas elas, a concepção da antítese ente o “eu puro” e a
sociedade revela-se insuficiente.

Similarmente a uma rede de tecido, os indivíduos entrelaçam-se entre si, conservando sua
individualidade. E essa rede está em constante movimento, como um tecer e destecer
ininterrupto de ligações. É assim que cresce o indivíduo: partindo de uma rede de pessoas que
existam antes dele para uma rede que ele ajuda a formar.

Imaginamos constantemente o ser humano dividido em compartimentos psíquicos, tais como:


“mente” e “alma”, “razão” e “sentimento”, “consciência” e “instinto”. Mas essa diferenciação
só ocorre no se humano quando ele cresce – criança – numa sociedade de pessoas.
Esses compartimentos psíquicos são termos que dão a impressão de substâncias, em vez de
funções, de algo estanque e não em movimento. São, porém, funções que se dirigem
constantemente par outras pessoas e coisas.

Há no organismo humano duas áreas de funções diferentes (porém interdependentes): existem


órgãos e funções destinados a manter e reproduzir constantemente o próprio organismo, e há
órgãos e funções que servem às relações do organismo com outras partes do mundo e a sua
auto-regulação nessas relações.

Estas últimas são funções relacionais, que sua expressão e maleabilidade determinam a demora
na preparação do ser humano, no tocante a molda da sua auto-regulação por outras pessoas, que
o fará assumir uma forma especificamente humana. Portanto, deve-se partir da estrutura das
relações entre os indivíduos para compreender a “psique” da pessoa singular.

Os seres humanos são parte de uma ordem natural e de uma ordem social. E esta é devida à
peculiaridade da natureza humana, que consiste na mobilidade e maleabilidade especiais pelos
quais o controle comportamental humano é diferente do animal.

Graças a essas qualidades, há ação de regularidades e processos automáticos sociais, que


permitem o acontecimento de processos e transformações não pré-programados na natureza
humana. Com isso, os indivíduos têm uma história que não é a história natural.

A divisão das funções sociais existe até nas sociedades mais simples. E quanto maior é essa
divisão, mais se acentua a dependência de uma pessoa para com as outras. Há, então, por parte
de alguns, a apropriação e uso da violência que se destina a negar aos outros aquilo de que estes
precisam para garantir e efetivar sua existência social, ou até subjugá-los e explorá-los
constantemente.

Ocorrem então tensões entre os grupos e há também a geração de impulsos por mudanças
estruturais na sociedade. Essas tensões não foram planejadas ou criadas por indivíduos isolados,
mas alteraram a forma e a qualidade do comportamento humano, além de toda a regulação
psíquica do comportamento, que impeliu os homens à civilização.

Portanto, a história é sempre história de uma sociedade, de uma sociedade de indivíduos.


Elimina-se, assim, o pensamento de que as mudanças são externas ao ser humano, quando, na
verdade, a única coisa que mudou foi a forma da vida comunitária, a estrutura da sociedade e,
com ela, a influência social sobre o indivíduo e sobre a forma de suas funções psíquicas.
Quando eliminamos os desejos imediatos e as simpatias pessoais do nosso pensamento,
percebemos que a história nada mais é que um sistema de pressões exercidas por pessoas vivas
sobre pessoas vivas.

As características principais da sociedade são: a fixidez e a elasticidade. Ocorrem,


constantemente, espaços para decisões individuais, das quais dependem os destinos pessoais e
imediatos do indivíduo, ou o de uma família inteira, ou até de nações inteiras.

Mas estas oportunidades, entre as quais aqueles que devem tomar as decisões se vêem forçados,
não são, em si mesmas, criadas por eles. São prescritas e limitadas pela estrutura específica de
sua sociedade e pela natureza das funções que as pessoas exercem dentro dela. Independente da
atitude tomada, esta originará outra seqüência de ações, cuja direção e resultado provisório
dependerá da distribuição de poder e da estrutura das tensões em toda a rede humana móvel,
mas não dependerá do indivíduo.

O que caracteriza o lugar do indivíduo em sua sociedade é a extensão da margem de decisão que
lhe é conferida pela estrutura e pela constelação histórica da sociedade em que ele vive e age. E
aquilo que denominamos “poder” não passa da amplitude dessa margem de decisão.
Debate-se atualmente se a história é feita por grandes homens isolados ou se todas as pessoas
tem igual importância para o curso da história. Ambas as opiniões são infrutíferas, pois, no
primeiro caso, por mais influente que seja a pessoa, maior ainda foi às influências exercidas
sobre ela pela sociedade em que ela atua.

No segundo caso, a importância de certos indivíduos para o curso dos acontecimentos históricos
é indiscutida. A atividade individual de uns é a limitação social, de outros.

O modo como um indivíduo decide e age desenvolve-se sempre nas relações com outras
pessoas, tendo uma modificação de sua natureza pela sociedade.

Porém, não há passividade nisso, isto é, ao contrário, o centro ativo do indivíduo. Aquele que é
transformado pela sociedade também a transforma.

O problema está em que o indivíduo enxerga as pessoas que o rodeiam como seres que não
possuem nenhuma ligação ou influência sobre sua personalidade. Somente quando esta atitude
for superada, e só então, é que se eliminará o seu sentimento de ser uma coisa isolada.

Existe muito fortemente arraigada em nossa autoconsciência, a idéia de que somos os únicos
transformadores de nossos pensamentos e ações. Imaginar a presença de “outros” – alheios a
mim – intervindo na formação da minha individualidade é quase uma transgressão dos meus
direitos.

Ou ainda: parece uma desvalorização que priva de sentido minha existência. É, portanto, mais
seguro, creditar minha existência a Deus.

O que denominamos “individualidade” de uma pessoa é uma expressão que se refere a uma
qualidade estrutural de sua auto-regulação em relação a outras pessoas e coisas.

Essa diferença específica não seria possível se a auto-regulação das estruturas psíquicas das
pessoas e coisas fosse determinada por estruturas herdadas, da mesma forma, e na mesma
medida, em que o é a auto-regulação do organismo humano, por exemplo, na reprodução de
órgãos e membros. A “individualização” das pessoas só é possível porque o primeiro controle é
mais maleável que o segundo.

Mas, muitas vezes, não se levam em conta esta diferenciação, pois, pensa-se, intui-se e até
deseja-se que a individualidade de uma pessoa exista de forma independente e isolada de todas
as relações, em outras palavras, o ser humano nada teve, originalmente, a ver com o restante da
natureza ou dos demais seres humanos.

Isto tudo é tão equivoco, que somente se pode conceber a idéia de uma individualidade humana
se este ser humano com muito esforço, moldar suas maleáveis funções psíquicas na interação
com outras pessoas.

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