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ESPAÇO PÚBLICO E INTIMIDADE NA MODERNIDADE

Paulo Henriques da Fonseca*

Eveline Lucena Neri**

Sumário: Introdução; 1. O conceito de espaço público; 1.1 O espaço público segundo


Hannah Arendt; 1.2 O político e o social no espaço público; 2. O espaço público na
modernidade: o social e a intimidade; 2.1 A crise do espaço público: a intimidade e a
precarização das relações. A massa; 2.2. Modernidade, direito e intimidade; 3. Conclusões;
4. Referências.

RESUMO

O espaço público assume grande relevância na manutenção e renovação das democracias


representativas. Modernamente, reconhecido como lugar de interação entre indivíduos livres
e iguais, o espaço público desponta como contraponto ao poder central estatal, na medida em
que possibilita a tomada de decisões políticas descentralizadas, garantindo a livre expressão
dos cidadãos e estimulando a diferença. Para tanto, ele pressupõe mecanismos de
participação política organizados e os mais abertos possíveis, sob pena de ver-se subvertido
em instrumento de manipulação política da opinião pública ou do Estado. Tendo como
parâmetro metodológico a tese de Hannah Arendt de que a politicidade, mais que a
sociabilidade, é marca distintiva e propriamente humana, em que radica a liberdade,
discutiu-se o conteúdo e o alcance do espaço público na modernidade através da pesquisa
bibliográfica. A conjunção de Estado nacional e mercado, a ideologia burguesa de exaltação
à intimidade e a tradição cristã de recolhimento pessoal são alguns dos fatores que levaram
ao distanciamento dos cidadãos do espaço público no curso da Modernidade. Formou-se
uma tendência de síntese entre o público e o privado possibilitada pela valorização do social
e marcada pelo crescimento da intimidade. Esta, entendida como a radicalização da vida
privada e o desligamento do mundo exterior, processo pelo qual institutos tradicionais, como

*
Aluno do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências Jurídicas da UFPB, na área de concentração
em Direitos Humanos, bolsista da Fundação Ford/Carlos Chagas, advogado e professor.
**
Aluna do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências Jurídicas da UFPB na área de concentração
em Direitos Humanos e bolsista da Fundação Ford/Carlos Chagas.

1
a família e a propriedade, configuram-se, cada vez mais, pessoais. E esse modelo de relações
baseado na troca e partilha de intimidades (essencialmente não aditivas conforme Bauman)
conduz a uma precarização da condição humana. Na ausência de um espaço público
significativo e verdadeiro, a exposição da vida íntima parece ser o único meio de acesso ao
bem da honestidade e da verdade. Em conseqüência desse movimento de redução do público
ao privado e deste ao íntimo, o espaço público torna-se inóspito, não cotidiano e
crescentemente sujeito à regulação estatal e social, fazendo refluir a participação “autêntica”
dos diversos interlocutores, degradando-se, assim, o projeto emancipatório da modernidade
cuja execução previa um espaço público com indivíduos livres e iguais de afirmação do
plural e luta contra a regulação por um poder central. Partindo de uma análise crítica da
realidade e dos balizadores conceituais do espaço público e sua conexão com a intimidade,
buscou-se propor um lugar para o direito na modernidade, visto que esta tanto fundou uma
razão de Estado impessoal e burocrático quanto uma individualidade emancipada pelo
menos de jure.

Palavras-chave: ESPAÇO PÚBLICO – AÇÃO POLÍTICA. INTIMIDADE

ABSTRACT

Public space gets great relevance in the maintenance and renewal of representatives
democracies. Modernly recognized as a place of interaction among free and equal
individuals, the public space appears as an opposition to the State central power, as it makes
possible to take decentralized political decisions in a way of guaranteeing the freedom of
expression for the citizens and stimulates the difference. In this sense, it estimates the most
open and organized mechanisms of political participation, in a way to avoid being subverted
in an instrument for manipulation of State or public opinion. It was taken as methodological
parameter Hannah Arendt thesis, which says that human being more than social is a politic
animal and this is a distinctive and most properly human mark in which freedom
consolidates itself. It has been discussed the content and reach of public space in modernity
through bibliographical research.. The conjunction of national State and market, the
bourgeoisie ideology of intimacy exaltation and the christian tradition of personal retirement
are some of the reasons that lead to move away citizens from public space during modernity.
It was formed a tendency of synthesizing the public and the private, which was possible due
to the valorization of the social and was characterized by the intimacy increase. That

2
intimacy is known as the radicalization of private life and disconnection from the exterior
world. Through this process traditional institutes such as family and property become
increasingly personal. Also, this model of relationships, based on the change and sharing of
intimacies (according to Bauman essentially not additives), leads to an embrittlement of
human condition. In the absence of a significant and real public space, the exposition of
private life seems to be the only way of access to honesty and truth. In consequence of this
movement of reduction from public to private and from private to intimacy, the public space
becomes inhospitable, not common and increasingly subjected to state and social regulation,
making the autentic participation of several interlocutors flow back, in a way to degradate
the emancipatory project which execution foresee a public space that combines free and
equal individuals, affirmation of the plural and fight against the regulation by a central
power.

Keywords: PUBLIC SPACE – POLITIC ACTION. INTIMACY

Introdução

O trabalho teórico sobre o tema do espaço público tem especial relevância para o
tema do direito e os mecanismos de sua efetivação. A implementação e proteção dos
mesmos pelo Estado, cada vez mais, une-se à necessidade de uma cultura social em que o
direitos sejam integrados ao cotidiano das práticas sociais de toda a coletividade. E o Estado,
com seus aparelhos e meios, está incumbido de possibilitar esse espaço público, aceitando,
por irrenunciável, atender as demandas dos indivíduos e suas necessidades muitas vezes
bastante circunscrita ao anelo mais íntimo e subjetivo. Exemplo disso são os chamados
direitos sexuais em que se postulam o reconhecimento público de orientações sexuais e a
patrimonialização da honra, da imagem e da boa fama, com o surgimento da indenização por
danos morais, dentre outros institutos jurídicos menos visíveis.
A liberdade de expressão e o exercício democrático do poder, que inclui o
monitoramento e controle, não prescindem de um espaço de uso irrestrito dos cidadãos. O
avanço estatal regulador sobre os espaços comuns e sobre a esfera privada realça a
necessidade de uma melhor configuração do espaço público. Este é essencialmente lugar de
emancipação e diversidade, não de regulação e conformação a uma visão unificadora ditado
pela Lei, pelo Estado ou classe ou raça.

3
A crise dos conceitos de classe, povo e nação e a própria fluidez da noção de
sociedade estimula a fixação de um conceito – e daí a realidade de um espaço público – que
tensione positivamente com o Estado e seus espaços regulados. Pretende-se, com isso, obter
um enriquecimento do aspecto republicano do Estado enquanto expressão política
organizada da sociedade e uma re-qualificação do modelo da democracia representativa.
A crise acima mencionada faz refluir a ação, a política,a liberdade, a satisfação
das necessidades dentre outros componentes da vida e relações humanas, para o âmbito
quase exclusivo da intimidade. O direito e a justiça vão deixando de ser expressão de uma
vivência coletiva, pública e política, espaço de interlocução e comunicação de valores e
interesses comuns, e mais recurso de defesa e afirmação da intimidade. O direito,
especialmente na vertente liberal e individualista em que foi gestado na modernidade,
debate-se diante das novas demandas da subjetividade (cada vez mais ampliadas quanto aos
seus titulares) e ao mesmo tempo não tem instrumental para atuar ante outra realidade sócio-
política que é produzida pela modernidade, a massa.
O presente trabalho tem por estrutura metodológica a análise conceitual em que
o espaço público e a esfera da intimidade dissecados em seus componentes, sirvam de
premissa para a crítica ao direito como saber e conjunto de práticas capaz de recepcionar a
intimidade como um de seus momentos.

1 – O conceito de espaço público

Inicialmente, convenciona-se uma correlação entre os termos “espaço público”,


“esfera pública” e “vida pública” que aparecerão neste trabalho como sinônimos, ao
contrário das expressões espaço civil, espaço comum e espaço estatal diferenciadas da noção
de espaço público. Também termo como “lugar público”, por sua alta definição prática e
conceitual, distingue-se de espaço público, embora este abranja aquele enquanto conjunto
que soma possibilidade e realidade em ato. Por espaço comum entende-se o lugar das trocas
e expressões definido por redes de solidariedade e familiaridade, sendo, simultaneamente,
físico e simbólico, como o mercado comercial ou o espaço do lar para os membros da
família e podendo ser privado e marcado por sinais de pertença e de segurança.
Outra noção que merece esclarecimento é a de espaço político. Este é o lugar da
decisão e especificamente vocacionado a gerir os assuntos da cidade, embora a extensão dos
direitos políticos na democracia moderna tenha ampliado essa noção para além do seu
significado original. Atualmente, o espaço político e o espaço público implicam-se

4
mutuamente, pois, nos regimes democráticos contemporâneos, a discussão (espaço público)
e a decisão (espaço político) aproximam-se quanto aos atores competentes e habilitados,
mesmo considerados os mecanismos da “representação”. Contudo, é possível dizer que o
espaço político por integrar poder, autoridade e território possui um caráter mais estrito que
espaço público.
A primeira aproximação sensível que se pode fazer do espaço público remonta à
praça, a rua, as praias, enfim, aos espaços urbanísticos construídos ou postos à disposição, os
quais a lei civil define como “bens de uso comum do povo”. Mas sociológica e
politicamente, o espaço público, para ser bem compreendido, requer uma mais completa
teorização que esclareça o seu verdadeiro alcance e a gama de interações que dele decorrem
ou que nele ganhe realidade.
Em meados da década de setenta, Habermas introduziu a expressão espaço
público na análise política. Daí por diante, disseminou-se a utilização do termo. O glossário
wolton1 o define “[...] como a esfera intermediária que se constitui historicamente, no
período das Luzes, entre sociedade civil e o Estado”. E tal espaço serve ao exercício das
liberdades cívicas e políticas.”É o lugar, acessível a todos os cidadãos, onde um público se
reúne para formular uma opinião pública”. É ainda um espaço simbólico gerado no curso do
processo de secularização e laicização, o qual, segundo Alain Touraine (1999), separa o
Estado e a Igreja na modernidade, pulverizando-se o poder, especialmente na sua vertente
democrática, pondo em descrédito princípios unificadores do Estado como a raça, religião,
razão, língua, modelo econômico.
O conceito de espaço público, historicamente, está ligado ao modelo da Polis e
da cidadania, e modernamente com o de democracia representativa. Tem um inafastável
ingrediente de politicidade e, simultaneamente, uma relação, embora não imprescindível,
com o social. Este pode ser exercitado contra ou indiferentemente à esfera pública da ação,
como o caso da atuação do Estado-Providência2 que, segundo Habermas (1990), perverteu o
mecanismo da publicidade e da politicidade próprios do espaço público ao assumir a tutela
das privações individuais. O social se liga muito proximamente à ‘necessidade’ e sua
superação, distanciando-se da ‘liberdade’ que é o valor característico do atual espaço
público. Hannah Arendt desenvolve melhor essa trialética do público-privado-social.

1
Cf: www.wolton.cnrs.fr/glossaire/port_espaço_pub.htm
2
Ou também o Estado totalitário ou autoritário que usa da necessidade de sobrevivência e reação ante às
ameaças como elemento agregador, inclusive sendo comum a generosidade desses regimes com a promoção do
‘social’.

5
Ele pressupõe o consenso e a interação entre indivíduos livres em uma sociedade
autônoma, em que as possibilidades de participação política estejam presentes nos diversos
mecanismos, como eleições, instituições e meios, embora não se confunda com estas.
Envolve o domínio e a legitimidade no uso da palavra que emancipa o indivíduo dos
interditos e dominações, sintetizando os aparentemente opostos de uma liberdade individual
e, ao mesmo tempo, capacidade/necessidade de dar publicidade ao que é privado. Assim,
embora não sendo posto por um ato de vontade, o espaço público deve possibilitar a
expressão dele enquanto permanece como mera constatação. O espaço público construído
por uma vontade pode vir a ser tão somente espaço estatal, muito diferente daquele que
surge em conseqüência do exercitar livre das suas opiniões e aberto às demandas plurais e
que tem na coexistência dos diferentes sua própria razão de ser.
Não sendo mais o lugar da manifestação hegemônica do Estado, mas ambiente
plural de manifestação de diversos atores e novas forças sociais, o novo espaço público se
radica na realidade da pulverização dos centros de poder. Não será mais apenas o lugar da
mera “publicidade” dos atos do governo, Estado ou da sociedade em seus diversos grupos,
mas de elaboração de decisões. A canalização e a manipulação da opinião pública nutre-se
dessa característica do espaço público, talvez a mais bem desenvolvida até agora, o chamado
Quarto Poder, o das mídias.
Essas diversas forças e atores não podem conviver no espaço público como mera
justaposição de entes privados, pois isso não qualificaria o espaço público, por si só. Há um
salto que se antevê sobre a posição foucaltiana dos vários microcentros de poder, pois estes
coexistem no espaço público e não se resumem a exercer uma função disciplinar sobre seus
componentes internos apenas. Há uma regulação que mais que a disciplinar de Foucault se
exerce como controle.

1.1 – O espaço público segundo Hannah Arendt

A politóloga germano-americana e judia cuja obra política é das mais originais


na atualidade, a despeito das acusações de um saudosismo da antigüidade, desenvolveu uma
das mais penetrantes e profundas análises política e social e com forte reflexão filosófica.
Hannah Arendt ambientou seu pensamento na luta contra os totalitarismos e o pavor diante
do holocausto e do prejuízo que uma opção anti-democrática traz para a razão e ao
pensamento acadêmico. Assim, precisa-se dar o devido desconto relativo ao contexto

6
especial em que teorizou sobre o trabalho e uma sociedade salarial que para ela era o
paroxismo da exclusão.
O pensamento de Hannah Arendt, em sua obra, A Condição Humana (2004) foi
chão fecundo para as mais instigantes teorias acerca da democracia e dos direitos humanos.
Para Arendt, a convivialidade é a condição para o humano e ela se funda na pluralidade e na
intersubjetividade. Aprofundando criticamente a política de Aristóteles, ela encontra mais
fundamento para a condição humana na politicidade do que na sociabilidade que é
característica vinculada à animalidade e que faz o homem comum nisso, aos animais.

1.2 – O político e o social no espaço público

A politicidade mais que a sociabilidade é marca distintiva e propriamente


humana, pois naquela se radica a liberdade e nesta a união pela sobrevivência da espécie se
macula de necessidade. Se a política, como acontece no Estado Social moderno passa a
gerir a esfera da sobrevivência, então para Arendt (2004, p. 40) “se for verdadeiro que a
política nada mais é do que algo infelizmente necessário para a conservação da vida da
humanidade, então de fato ela mesma começou a se riscar do mapa, ou seja, seu sentido
tornou-se em falta de sentido”. Nisso resido a característica ‘saudosista’ que muitos vêem
em Hannah Arendt. Foi a experiência totalitária que ameaçando a sobrevivência da espécie
humana não deixou opções para a política que assim deixou de sê-lo. O Labor, a atividade
para a sobrevivência do corpo passa à prioridade.
Arendt, ao dividir a atividade humana em labor, trabalho e ação, acentua nesta
última as características mais fortemente constitutivas da condição humana. A ação é a que
se exerce na esfera pública, espaço da liberdade e convivialidade criativa e plural, por
pessoas que o fazem não premidas por necessidade (sobrevivência, segurança) e nem ligadas
por afeto. É por isso expressão do político.
Importante é a contestação que Arendt faz a uma ‘naturalização’ da política que
se operou a partir de uma equivocada interpretação do pensamento de Aristóteles. Segundo a
autora, ele nunca pensou no caráter político do homem como algo ‘natural’: politikon é o
adjetivo de polis. O homem político é então o grego que é liberado para a liberdade do agir
público e livre porque o completo domínio sobre a sua casa e um sistema de escravidão, ao
satisfazer-lhe as necessidades, o libera para a agora. Não é algo natural mas condicionado e
possibilitado por uma construção humana bem específica, a polis.

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O labor e o trabalho são atividades da vida privada e ligam-se à satisfação das
necessidades básicas, não tendo, para Arendt, valor político que se radica na liberdade e
criatividade. Estão na seara do social, na era moderna, pois esta após uma valorização do
homo faber pela revolução do trabalho industrial a formação de uma sociedade de
trabalhadores assalariados, ‘evoluiu’ para o animal laborans, o trabalhador expropriado do
fruto do trabalho. A este resta tentar sobreviver com a sua família. Esse é o último estágio e
só o milagre da ação poderá a partir e contra ele reconstruir o espaço de liberdade política
operando sobre o campo da improbabilidade e da inovação na História.
Na Antigüidade clássica, na Republica Romana e na Polis grega, especialmente
nesta última, o exercício da cidadania era expressão e condição de liberdade, que não existia
fora do convívio da cidade. A vida familiar privada, tinha relevância enquanto possibilitava
ao chefe da família que, tendo satisfeitas as suas necessidades pelo labor e pelo trabalho de
mulheres e escravos, podia se lançar livremente no debate da ágora. O espaço público
integrava a própria condição humana segundo a discípula de Heidegger.
Na experiência grega da Polis, segundo a análise de Arendt, a liberdade consistia
em poder ficar na cidade. Bem diversa é a concepção moderno-liberal em que se celebrou no
poder ir e vir a liberdade. Para o grego antigo era poder ficar no seu espaço de memória.
Quando por uma necessidade do Estado se implantava uma tirania (sensata) para o bem
estar da cidade, segundo Arendt (2004, p.50) “Os cidadãos eram desterrados em suas casas e
era isolado o espaço no qual se realizavam o livre trânsito entre iguais, a agora. A liberdade
não tinha mais nenhum espaço e isso significava: não havia mais liberdade política”.
O espaço da intimidade vai surgindo na crise da Polis e o advento do
cristianismo trouxe uma nota historicamente muito forte. O cristianismo vai transformar a
liberdade exatamente no oposto do conceito grego: a liberdade será a renúncia à Polis e um
sentimento interior de satisfação com essa renúncia3. A Vita Activa vai ser substituída pelos
valores da vita contemplativa. A valorização do espaço privado da família e do trabalho
lança as bases da modernidade que alça a intimidade a um nível de importância que antes
não tinha.

2 – O espaço público na modernidade: o social e a intimidade

3
Embora no nosso entendimento isso se deva conjunturalmente à crise do sistema citadino do Mediterrâneo e
às dificuldades para a comunidade cristã decorrente primeiro das perseguições do Dominato romano e depois
as invasões bárbaras, especialmente os vândalos no norte da África, na difícil experiência de Santo Agostinho.

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Mas na modernidade essa distinção entre público e privado tende a desaparecer.
Conforme Arendt: “[...] sabemos que a contradição entre privado e o público, típica dos
estágios iniciais da era moderna foi um fenômeno temporário que trouxe a completa
extinção da própria diferença entre as esferas pública e privada, e a submersão de ambas na
esfera do social” (2004,p. 79). O caráter “líquido” da modernidade, que será bem
desenvolvido por Zygmunt Bauman adiante, vai tornando fluidas todas as realidades, que
devem ser adaptáveis ao máximo.
No social se uniram as esferas antes distintas do público e do privado numa
síntese que fez nascer a intimidade, como última alternativa a uma esfera privada perdida. A
dimensão social vai referir-se já uma etapa da vida coletiva em que foi perdida a ação
política como elemento axial. A antiga liberdade da ação que supunha cidadãos
“despreocupados” com a vida de necessidades (supridas pela casa: domésticos, escravos e
família), vai, na modernidade, transmudar-se em vivência coletiva da necessidade.
A radicalização da vida privada se chama intimidade. Esta é fuga do mundo
exterior, quando se perde a proteção da vida privada e sua esfera própria. A fenomenologia
da família como instituição autoriza pelo menos supor que os valores ancestrais dessa (lugar
de afeto, satisfação das necessidades, instância de submissão, unidade econômica básica...)
foram profundamente mudados e transferidos para uma esfera que Arendt chama de
“social”, não mais público. A propriedade passa por esse mesmo processo, deixando de ser
coisa e passando, cada vez mais, a algo pessoal, como o trabalho, a força e o talento. Os bens
imóveis se “mobilizam” (nos títulos, por exemplo), a distinção entre propriedade e riqueza
desaparece, assim como a distinção entre bens ‘fungíveis’ e ‘consumíveis’, o consumo vai se
tornando a marca dominante da relação com os bens (antes era a posse, a retenção
patrimonial desses).

2.1 – A intimidade e a precarização das relações. A massa

A intimidade que “não é um substituto muito seguro” (ARENDT, 2004, p.80) da


esfera privada, restou como um último espaço do sujeito. É um espaço precário, transitório a
tentar salvar os bens da intimidade (a honra, vergonha, pudores, desejos...), mas o fazendo
no espaço empobrecido do “eu”. Resta perigosamente desvalorizada a alteridade e como
isso, no específico mais emblemático da experiência eclesial, o compromisso social, em si
mesmo, generoso. Vê-se, assim, a possibilidade de tipificar esse movimento “entrópico” do
público ao privado e deste ao íntimo, como, o “espírito do Reino” que se traduz

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historicamente em “espírito de família” e tende ao “reinado do Eu”. Embora este seja
problemático como lugar de satisfação, pois, conforme Alain Touraine (1999, p. 68), há uma
radical afirmação do indivíduo e seu processo de ‘fabricação’ contra toda sorte de
comunitarismo e submissão a um sistema social ou moral, um extremo de abordagem
sociológica do indivíduo:
Chegamos a abandonar a idéia do ego, pois descobrimos que a sua
unidade não era senão a projeção sobre o indivíduo da unidade e da
autoridade do sistema social, do príncipe transformando em pai e
internalizando em normas morais.

Esse movimento de esvaziamento ou fuga da vida pública pode se situar


historicamente na valorização do trabalho pelo cristianismo e na igualdade e elevação do
status dos escravos e das mulheres e em conseqüência, das atividades que os caracterizavam
na economia da Polis. O receio burguês dos espaços públicos e a sentimentalização da
educação leva Costa (1999, p. 47) a vislumbrar o seguinte jogo sob o qual refluiu a vida
pública.

A tradição cristã de renúncia ao mundo, o culto romântico da auten-

ticidade sentimental e a dedicação burguesa à intimidade nos leva-

ram a ver o mundo como um “lugar do exílio”. Viver plenamente é

viver fora da visibilidade pública na qual tudo parece frio e artifici-

al. Em público fingimos ser o que não somos e apenas no exílio in-

terior recobramos a espontaneidade recalcada pelo “inferno” do o-

lhar do outro.

O desencantamento foi o resultado desse movimento que, Richard Sennett,citado


por Costa (id., p. 44), em sua obra viu quando o homem sucumbiu aos “encantos do mundo
interior” que se somou ao surgimento de um mecanismo poderoso, global e impessoal de
manipulação da realidade econômica, que foi a conjunção de Estado nacional e mercado na
modernidade. O exílio na intimidade própria do homem burguês está na gênese desse
processo que J. F. Costa (1999, p. 48) define esse itinerário assim:

10
Foi preciso o romantismo de Rousseau, a educação sentimental bur-

guesa e a invenção do “homem trabalhador” para que a sociabilida-

de fosse reduzida a dois domínios separados: o domínio afetivo, re-

servado aos afetos interpessoais, no qual podemos ser sinceros e ho-

nestos; e um domínio público impessoal no qual dissimulamos o que

sentimos para melhor exercer a função de cidadão.

Longe do saudosismo arendtiano, Costa faz, no entanto, um elogio do Ancién


Règime cuja nobreza, dentre as suas muitas competências, conseguiu uma perfeita
acomodação ao espaço público e habilidade na manipulação dos mecanismos de poder. E, ao
mesmo tempo, sabia unir as virtudes políticas com os prazeres privados, o que soaria imoral
numa perspectiva de ação no espaço público burguês e puritano. Havia um “amor ao
mundo”, segundo ele, no Antigo Regime: “[...] uma experiência de sociabilidade em que
política e afeto, honra e glória, poder e prazer caminhavam juntos” (ib., p. 48). A
culpabilização do indivíduo pela ideologia moral burguesa o fez abdicar do espaço público e
das práticas virtuosas da cidadania, passando esta a ser um catálogo de “direitos” perante um
Estado agora “controlado”.

O espaço público torna-se, assim, inóspito, não cotidiano e sujeito cada vez mais
a uma regulação estatal e social que faz refluir a participação “autêntica” dos diversos
interlocutores. A privatização passa a ser uma regra no ethos liberal burguês. Diz Costa (id.
p. 44):

Na modernidade ocidental, como fez ver Sennett, ocorreu uma radi-


cal alteração do ethos antigo: o cuidado com o caráter deu lugar a
uma preocupação com a “personalidade” [...] A privacidade burgue-
sa criou a “tirania da intimidade” e nos levou a crer que a felicidade
consiste, quase exclusivamente, em satisfazer as aspirações da vida
afetiva. O bem viver não era mais descrito como a realização das
virtudes públicas, mas como satisfação sentimental [...] A cultura da
intimidade, ao deslocar o centro da identidade pessoal do público

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para o privado, gerou um fator de instabilidade permanente na
consciência de si.

Essa insuficiência do privado íntimo, que prepondera até nos aparelhos


propriamente públicos, como o Estado e seus órgãos, pode gerar espaços marginais das
“inscrições pouco significativas”, como teoriza Robert Castel (1995). O modelo de relações
baseado na troca e partilha de intimidades (essencialmente não aditivas conforme Bauman)
conduz a uma precarização da condição humana. Na ausência de um espaço público
significativo e verdadeiro, a exposição da vida íntima vai se tornando, cada vez mais, o
único meio de acesso ao bem da honestidade e verdade. Costa assevera a esse respeito que
(ib. p. 44-45):

A vida emocional intima, ao contrário da vida pública, é aquela em


que podemos exercer livremente, o direito à experimentar em maté-
ria de estilização de preferências ou inclinações. Essa é a marca ori-
ginal e irrepetível da “personalidade” privada. A liberdade íntima,
entretanto, tem um ônus. Decidir, sozinhos, se o que vivemos emo-
cionalmente é bom ou mau pode ser uma tarefa hercúlea. [...] O e-
feito cultural da “tirania da intimidade” não foi, portanto, a autono-
mia em relação ao “outro público”, mas a dependência transferida
para os técnicos em normalidade psicológica.

A trama de dependências que a modernidade prometeu superar na sua promessa


emancipatória se desmancha ante a assunção de um indivíduo que precisa ser contido (e
dramaticamente sem que antes tenha sido livre!).
Há com isso, um esgarçamento das relações sociais, trazendo a necessidade de
uma ordem cada vez mais coercitiva que, na tese de Boaventura de Sousa Santos, fez as
energias emancipatórias da modernidade mudarem em uma crescente e escorchante
regulação. A atividade dos “técnicos em normalidade psicológica” enquadra-se nesse
movimento de crescente regulação que chega, com Foucault, ao hospício e à prisão como os
microssistemas disciplinares em que se degradou o projeto emancipatório da modernidade
quando opôs o indivíduo fragilizado ante o poder.
Arendt (2004), que teoriza o fenômeno não a partir da impostação psicológica
de Costa ou sociológica de Touraine e Bauman, mas no campo da ciência política (como ela
mesma define-se: cientista política apesar da riqueza filosófica de sua obra), vê a crise do
espaço público não no fenômeno da “individualização”, mas no surgimento da “massa” e na
substituição da “grandeza” do público pelo que é irrelevante e encantador. Ao falar da
atrofia do espaço público, na França, Hannah Arendt diz que este foi preenchido pela arte

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das “pequenas coisas” a ser vivido dentro de casa, no recesso do lar e da vida privada, o petit
bonheur.
Segundo a sua concepção de um espaço público não natural (Ver a leitura que
Arendt faz do Zoon politikon de Aristóteles) mas construído, produto de uma
intencionalidade faz com que “[...] conviver no mundo significa essencialmente ter um
mundo de coisas interpostas entre os que nele habitam em comum, como uma mesa se
interpõe entre os que se assentam ao seu redor” (id. p. 62). Segundo a tradição política
agostiniana, é um mundo que existe, mas também que é construído, “tolerado”, sustentando-
se pela comunhão (ver a comensalidade cristã) cujo ícone é a mesa. O fim dessa comunhão,
o retirar essa mesa do meio dos que estão reunidos, transforma o espaço público da
convivialidade na realidade da massa. Assim, para Hannah Arendt (2004, p.62) “O que torna
tão difícil suportar a sociedade de massas não é o número de pessoas que ela abrange, ou
pelo menos não é este o fator fundamental: antes, é o fato de que o mundo entre elas perdeu
a força de mantê-las juntas, de relacioná-las umas às outras e de separá-las” (ib. p. 62).

2.2 - Modernidade, direito e intimidade

A modernidade sólida é a primeira modernidade, das grandes e vastas estruturas


de produção que demandavam grande território (ligava-se a conquista deste) e teve, na
revolução industrial, ápice no modelo de produção fordista. Tal modernidade, que é minada
de modo irreversível, é substituída por uma modernidade líquida, de realidades mutáveis e
cambiantes, em que a regra passa a ser a adaptação e a versatilidade numa infinidade de
arranjos (características das moléculas de água). Para Bauman (2001, p. 10) “ Os primeiros
sólidos a se derreter e os primeiros sagrados a profanar eram as lealdades tradicionais, os
direitos costumeiros e as obrigações que atavam pés e mãos,impediam os movimentos e
restringiam as iniciativas”. Na progressão desse movimento de fluidez e mutação da
modernidade, o “nexo dinheiro” (muito líquido) foi o primeiro a ser liberado das amarras
éticas, políticas e culturais, surgindo uma economia sem fronteiras. Na história o
mercantilismo e a primeira expansão marítima atendem a esse primeiro movimento.
Uma das características dessa modernidade é a destruição de fronteiras e o
dinheiro internacionalizado é a sua melhor expressão. As fronteiras internacionais devem
ceder a esse fluxo e quando o sistema se torna sólido e compacto, segundo Bauman (2001, p.
19), a guerra não se volta mais à:

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[...] conquista de novo território,mas a destruição das muralhas que
impediam o fluxo dos novos e fluidos poderes globais; expulsar da
cabeça do inimigo o desejo de formular suas próprias regras [...] A
guerra hoje, pode-se dizer (parafraseando a famosa fórmula de
Clausewitz) parece cada vez mais uma promoção do livre comércio
por outros meios.

O deslocamento do estilo produtor para o estilo consumidor cria uma


possibilidade de relativizar os espaços, aumentando o hedonismo e diminuindo a
popularidade do engajamento, num primeiro momento. Mas não é só isso: o totalitarismo de
uma sociedade sólida, a burocracia e o modelo ‘fordista’ que expulsava toda a iniciativa
individual na grande linha de montagem, são os primeiros alvos de uma afirmação das
individualidades: “As causas das mudanças vão mais a fundo; estão enraizadas na profunda
transformação do espaço público e, de de modo mais geral, no modo como a sociedade
moderna opera e se perpetua” (id., p. 33). O desprestígio do público e do social dá no
fenômeno da privatização e da desregulamentação4 que transferiu a administração dos
indivíduos o que antes era confiado ao Estado, o “Grande Irmão”.
Para o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2001), uma modernidade líquida
que desfaz todas as solidariedades aprisiona os desejos individuais em seu isolamento, pois,
ao contrário da modernidade “sólida” que pretendia superar todas as necessidades da pessoa
humana pela produção em larga escala, a modernidade “líquida” é a do consumo e do
desejo. As novas privações, as dos desejos, não podem ser somadas, diferentemente dos
“interesses comuns” da primeira modernidade. Nesta os produtores, trabalhadores podiam se
organizar em classes e defender-se corporativamente a partir de uma soma de interesses por
ações coletivas.
Na nova modernidade, em que o processo de individualização avançou célere,
embora desigual: o processo de individualização dos mais pobres, sendo mais difícil, pois a
estes são negados alguns subsídios de acesso à modernidade como a autonomia, a
subjetividade, a emancipação, difere dos mais ricos. Para estes os processo de
individualização é mais intenso, podem prescindir com mais liberdade do aparato da classe
que só é invocado quando a desigualdade é contestada pelos mais pobres.

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Esse pensamento parece destoar e contradizer o sentido do movimento conforme Boaventura de Sousa
Santos, de uma passagem das energias emancipatórias da modernidade para a regulação. Mas é que o foco de
Bauman é uma sociologia do indivíduo para quem a emancipação é uma espécie de abandono, ao passo que
Sousa Santos analisa mais a sociedade em seu aspecto jurídico. Nota dos Autores.

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Ao mesmo tempo em que na modernidade se erigiu um monumento ao indivíduo
(embora que este seja apenas de jure segundo Bauman, e não de facto), política e
juridicamente se consolidaram as razões do Estado, da coletividade política, em um nível de
sofisticação e impessoalização antes inimaginável. O arcabouço jurídico e político da
modernidade, a se constituir a partir de duas tradições totalmente diferentes segundo Prado
(2003) vai revelar uma série de tensões e paradoxos.
Para o autor citado, a ocidentalização do mundo na modernidade e a forma
política da sociedade que se quer constituir a partir de duas tradições totalmente diferentes, a
liberal e a democrática, propõem uma série de incompatibilidades muito onerosamente
administráveis entre o indivíduo e o bem comum. Em círculos periféricos a essa questão
central, o autor debate outras controvérsias como o caráter pretensamente universal do
modus vivendi e faciendi do Ocidente liberal e democrático, sua pretensa neutralidade ante
as diversas culturas e ainda a perene indagação sobre ser possível ou não a coexistência entre
vida em comunidade e liberdade individual.
Na esfera jurídica da abordagem transdisciplinar que faz o autor, outro paradoxo
se revela quanto à serem os direitos e sua percepção subjetiva operações ligadas a uma
essencialidade de traço naturalista, algo essencial na pessoa humana,ou se são produtos
históricos, culturais, frutos das lutas. Coloca ele que, se por um lado é bastante visível nas
consciências individuais a percepção dos direitos “o meu direito”, por outro lado não há
como desvincular essa consciência individual dos direitos de uma consciência coletiva que
se forma exatamente na luta por implementação dos mesmos. Para os naturalistas, as lutas
históricas pela efetivação dos direitos procedem da inata disposição essencial da pessoa que
os sente como seus, co-naturais ao seu próprio ser. Já os culturalistas positivistas acreditam
não numa natureza jurídica nos indivíduos, algo natural e essencial neles, mas numa
construção social, cultural e histórica que explicita os direitos que em outras fases da história
não lograram ser explicitados e nem havia demanda tampouco para isso.
Para Prado (2003, p. 68) o reencontro do indivíduo e seus interesses com o bem
comum se dará com o alargamento do exercício político no espaço publico democrático
“radicalizado”. É a reabilitação desse espaço público que trará possibilidade de reencontro
dos interesses individuais com o bem comum, rearticulando as esferas individuais e
coletivas. Para ele a modernidade nos seus diversos saberes especializados como a
psicologia, ajudou a deslegitimar o espaço público e a política, como se fossem algo
estranho na construção dos sujeitos e de sua intimidade, esta valorizada pelo projeto
antropológico liberal burguês.

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No campo específico da teoria do direito as traduções da intimidade para dentro
do campo referencial são muito problemáticas. A expressão disso é que no corpo das leis a
intimidade quase sempre evoca o limite do direito, o silêncio da razão jurídica perante uma
des-razão incômoda, mas poderosa, a da intimidade.
A ponte epistemológica para o direito atento à nova subjetividade proposta pela
revolução moderna encontra-se exposta em Kehl (2004). A autora radica a subjetividade e
sua importância no campo do direito a partir de um conceito também do período das
“Luzes”, o de igualdade. Tivesse buscado no de liberdade e teria encontrado o mesmo
período histórico. Foi nesse período que um espaço público ou republicano foi tematizado,
não se esqueça desse elemento de conexão que aponta para o coração da modernidade.
Nesse contexto das “Luzes” os pilares da construção moderna são a razão e a
consciência. Sobre esse binário se fará toda a criação que constitui o núcleo duro do projeto
da modernidade. Na seara jurídica a razão será o Código e o sistema legal abstrato e
universalizado, que junto com a consciência do Contrato, do papel das partes no negócio
entre pares e livres cidadãos autônomos e auto-legislados, fará o melhor dos mundos
jurídicos.
A inconsciência e a des-razão serão descartadas por inúmeros procedimentos e
instituições profiláticos da nova ordenação do mundo racionalizada e apta a se tornar
universal: o projeto social, econômico e político da modernidade ocidental. O inconsciente
só será recuperado como forma política e jurídica pelos regimes totalitários mais
contemporaneamente pelos procedimentos e planejamentos de Marketing eleitoral e do
mercado.
A modernidade vai propor e construir uma individualidade emancipada (que
depois será minuciosamente regulada para assim poder se manter) o que pressupõe uma
pessoa livre de condicionamentos e necessidades não queridas e aceitas por ela. Se uma
pessoa, segundo Kehl (id. p. 34) referindo-se ao pensamento de Hannah Arendt, não pode
ser desobrigada de uma tarefa única que é prover a própria sobrevivência então ela não tem
cidadania. E não teria uma intimidade que possa ser politicamente relevante. Faltar-lhe-ia a
liberdade que é poder agir no espaço público, nele intervindo e assim superando dois traços
da condição humana: a mortalidade e a pluralidade. Perpetuar-se-ia pelo exercício do
discurso e da ação e distinguir-se-ia.

3 – Conclusões

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O direito tem uma dificuldade de tratar seja do espaço público, tendo se
restringido a uma técnica privatística de composição de conflitos e questões em que a
dimensão do público é secundária, seja de tratar a intimidade, percebida como uma
dimensão problemática. A prova disso pode ser recolhida na tópica da Lei quando se refere à
esse componente, en passant, o artigo 363 do Código de Processo Civil, CPC, a considera
quando da recusa em exibir documento ou coisa; noutro artigo, o 135, o coloca como motivo
para a suspeição de um juiz, o fato de ser “amigo íntimo...” de uma das partes. Sempre a
intimidade é considerada no mesmo topoi da discricionariedade, da arbitrariedade; ou seja,
sendo produto da modernidade, lançam-se sobre ela na área do direito, as pechas típicas do
Antigo regime pré-moderno.
Uma recuperação “feliz” da intimidade se dá de uma forma menos feliz: a
patrimonialização da honra e da imagem, expressões “pouco íntimas” da intimidade que
agora poderão gerar demandas indenizatórias, como faz ver o artigo 5°, inciso V da
Constituição brasileira; “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da
indenização por dano material, moral ou à imagem.” Os artigos de 11 a 21, do novo Código
Civil, inovaram ao trazer positivados os direitos da personalidade e assim aos poucos no
ordenamento, os direitos relativos à intimidade vão ganhando corpo para além da
consideração penal.
Mas não serão esses passos que garantirão uma consideração satisfatória da
intimidade no conjunto jurídico e político, mas sim uma recuperação da posição dos sujeitos
na esfera pública. Essa sim, ao ser lugar exponencial das liberdades, recuperando a
politicidade do agir e do discurso, propiciará a intimidade a integração que possivelmente a
libertará das regulações dos técnicos em normalidade psíquica, como definiu Costa, em
passagem acima.

4 – Referências

www.wolton.cnrs.fr/glossaire/port_espaço_pub.htm

ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2004.

BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

_________. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

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CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2005.

COSTA, Jurandir Freire. Razões públicas, emoções privadas. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

HABERMAS, Jürgen. Soberania popular como procedimento: um conceito normativo de


espaço público. Novos estudos CEBRAP. São Paulo, 1990.

FONSECA, Márcio Alves da. Michel Foucault e o direito. São Paulo: Max Limonad,
2002.

PRADO, Marco Aurélio Máximo. Psicologia política e direitos humanos: tensões da relação
indivíduo e bem comum. In: GUERRA, Andréa M. C.; KIND, Luciana (Orgs.).Psicologia
social e direitos humanos. Belo Horizonte: Campo Social/UFMG, 2003. p. 65-75.

KEHL, Maria Rita. Subjetividade, política e direitos humanos. In: IV SEMINÁRIO


NACIONAL DE PSICOLOGIA E DIREITOS HUMANOS. Anais. São Paulo: Casa do
psicólogo, 2004. p.29-40.

SANTOS, Boaventura Sousa (Org.).Conhecimento prudente para uma vida decente. Um


discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez, 2004.

_________. Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. 7. ed. São Paulo:
Cortez, 2000.

SAWAIA, Bader(org). As artimanhas da exclusão - análise psicossocial e ética da


desigualdade social. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

TOURAINE, Alain. Poderemos viver juntos?. Iguais e diferentes. Petrópolis: Voze

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