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A CONSTRUÇÃO

, .
DA NOÇÃO DE ESPAÇO
PUBLICO:.notas de leituras sobre a construção do
espaço público burguês *

Este artigo trata da noção de espaço público construído no Estado moderno a partir do des­
envolvimento da sociabilidade capitalista. Salienta o caráter heterônomo das práticas que se
desenvolvem nesse espaço, determinadas pela lógica do mercado, como um desvirtuamento
do caráter democrático que as pressupõem, e, de passagem, aponta para o eqüívoco da alter­
nativa socialista que redundou no Estado totalitário. Finalmente, o artigo busca mostrar os
sinais de transformação da esfera pública como resultado da falência do Estado de Bem Es­
; '"
tar Social, fenômeno que aponta para as possibilidades de redefinição do espaço público
como espaço democrático.

Palavras-chave: Espaço público; Democracia; Cidadania.

uitos dos estudos atuais que buscam dade civil, estaria posta a idéia, também, de seu

M revalorizar a idéia de sociedade civil


têm sido, de um modo geral, motiva­
dos por acontecimentos políticos que,
afastamento do liberalismo, cuja integração social
se faria no mercado, como também de um tipo de
socialismo que viesse resultar em estatismo, como
inevitavelmente, colocaram em xeque a eficácia no exemplo já dado pelos países do Leste. O que
das formas de governo dos países do Leste, como cabe destacar para o propósito deste trabalho, é o
do Estado de Bem-Estar-Social. De um lado, a fato de que associada à idéia de sociedade civil está
falência do Estado de Bem-Estar-Social, nas suas a idéia de espaço público democrático, revitalizado
diversas versões, revelou a incapacidade do Estado pela noção de cidadania como um exercício políti­
em refinanciar o desenvolvimento interno em face co dos sujeitos sociais.
de sua crise fiscal, perdendo sua capacidade mobi­ O espaço público a que me refiro não se res­
lizadora (OLIVEIRA, 1988). Ademais, no Estado tringe às instituições da democracia representativa: '­
de bem-estar, "o recebimento passivo das benesses partidos e parlamento; nele deve haver lugar para
provindas do Estado teria minado a capacidade dos que os movimentos sociais e demais instituições
cidadãos de gerir suas propnas vidas" populares da sociedade civil tenham espaços de
(COSTA,1994, p. 39). De outro lado, a crise do reconhecimento, representação e negociação dire­
socialismo real teria provocado em suas sociedades tamente vinculados à efetivação das políticas públi­
a emergência de movimentos sociais pela reivindi­ cas; espaços necessários para a produção de con­
cação de direitos civis e políticos (LEFORT,1987), sensos, bem como de vigilância critica; espaços
nos moldes das democracias capitalistas, ensejando constituidos pela pluralidade dos grupos, classes e
a revitalização da sociedade civil. O que interes­ interesses correspondentes. É nessa perspectiva que
saria destacar é que na idéia presente de sociedade as reflexões do presente artigo devem ser conside­
civil, ou mais propriamente, num projeto de socie­ radas.

• Este texto é parte de um estudo em andamento sobre as possibilidades da constituição de um espaço público efetivamente democrático na socie­
dade brasileira.
•• Prof.do Deptepartamento de Ciências Sociais da Universidade Eatadual de Londrina.

Rev. Mediações, Londrina, v.1, n.1, p.24-28, jan-jun. 1996 24


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A separação entre Estado e sociedade tem como
Uma aproximação à mediação a esfera pública burguesa, espaço de
noção de espaço público manifestação dos cidadãos como direito assegurado
juridicamente - direito positivo (prescritivo), cujo
burguês exercício garante a racionalização da política como
interesse geral. Conforme Kant, citado por Ha­
A emergência da sociedade moderna trouxe a bermas (1984), a mediação entre público e privado
separação entre sociedade e política - privado e é assegurada pela publicidade, princípio que garan­
público. te a comunicação entre todos, de tal forma que
O Estado absolutista, teorizado por Hobbes cada um pode dizer e ouvir o que todos ouvem e
como criação dos homens a partir do contrato so­ dizem, como uma condição necessária de interação
cial; é a construção racional que garante a paz e a para que se possam formar os juízos que corres­
liberdade "naturais''; no qual os homens alienam pondem às decisões que dizem respeito a todos.
suas vontades e submetem suas paixões. Nessa medida, toma-se imprescindível que os
O poder deslocado da sociedade para o Estado é indivíduos exerçam o direito de critica em público
pensado como um mal necessário para conter e e com total liberdade, pois, incondicionada, a li­
disciplinar juridicamente uma ordem natural, que berdade "é a pura forma dos atos que, se livres,
pela idéia de homens livres e iguais tornava amea­ tomam-se atos morais e ações virtuosas segundo o
yadora a inexistência de uma racionalidade unifi­ dever. "(CHAUÍ, 1992, p. 352).
cadora dos interesses de todos. O Estado moderno Tendo em conta a análise de Habermas do
surgia, assim, como o poder capaz de impedir que princípio da publicidade em Kant. a questão que
uns se tomassem "lobos" de outros (HOBBES; fica é: como garantir o mesmo comportamento
1979), virtuoso dos indivíduos (cidadãos) se esse compor­
Não há ainda aí, uma esfera pública burguesa; tamento seguindo a regras do mercado faz com que
até porque, não havia um mercado plenamente uns ganhem e outros percam? Em outras palavras,
constituído. A esfera pública burguesa começa a se como considerar que aquele que vende sua força de
desenhar em contornos mais nítidos quando o trabalho e aquele que compra tenham seus interes­
mercado capitalista foge ao controle do cálculo de ses reconciliados no Estado como interesse geral se
uma economia de troca que se desenvolvia no o produto das relações de mercado não reverte para
âmbito exclusivamente privado. Esse é um mo­ o bem comum?
mento que coincide com a formação do Estado A critica hegeliana aponta para o fato de que a
moderno absolutista, o qual assume o controle das opinião pública não pode resultar em razão univer­
mediações necessárias e demandadas pela expan­ sal porque não pode superar o antagonismo dos
são do intercâmbio de mercadorias. Por um longo interesses particulares no interior da sociedade sem
tempo, tempo da existência do Estado absolutista, a negar a si mesma. Com efeito, a opinião pública,
esfera pública burguesa, compreendida "como a constituída da opinião de homens privados reuni­
esfera de pessoas privadas reunidas em um públi­ dos num público, só pode expressar uma "opinião
co" (HABERMAS, 1984, p. 42), conflitará com subjetiva de muitos."
este Estado no sentido de se ver reconhecida soci­ "Se o sistema antagônico das necessidades está
almente e ter garantida a sua representatividade fragmentado em interesses particulares, uma
política. esfera pública das pessoas privadas politica­
A teoria política liberal ganha força na medida mente ativas levaria a um opinar e querer
que a esfera pública burguesa vai, paralelamente ao inorgânico e ao mero poder de massa contra o
desenvolvimento do mercado, desenvolvendo e Estado orgânico" (HABERMAS, 1984: 144).
tomando hegemônica uma sociabilidade que lhe é
própria e que tem expressão numa opinião pública, A solução hegeliana entre Estado e sociedade
apreendida como razão superior: medida e parâme­ passa pela mediação das corporações, que teriam o
, papel de freio e controle das paixões - existentes
tro da ação do Estado.
" O Estado liberal surge como o cristalizador do como preconceitos -, e nesse sentido, a corporação
interesse geral, depois que os interesses particula­ desempenha função educativa, pois transforma tais
res (capital, terra, trabalho), cujo lugar é a esfera interesses particulares em ''bom senso", e como tal,
privada, foram equalizados numa opinião pública apta a participar $ política através da formulação
(formada por cidadãos), numa reconciliação presi­ de leis. O Estado aparece aí não como Construção
dida pela idéia de que o mercado, "Deus", obser­ racional das opiniões particulares que se erigem em
vando a "naturalidade" das relações de propriedade razão superior, mas o contrário disso, como finali­
garante a todos a recompensa pelos seus esforços dade que nega e supera as particularidades pela
individuais de produzirem em função dos seus "universalidade do bem comum" (CHAUÍ, 1990, p.
interesses como garantia dos interesses de todos. 279).

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A critica marxista à esfera pública burguesa se sociedade que tem seus valores associados ao mer­
apresenta como critica radical por demonstrar, de cado. Num primeiro momento esse exercício é
saída, a falsidade do pressuposto sobre o qual a conferido àqueles cuja opinião corresponde aos
esfera pública se constrói: a idéia de homens livres valores dominantes, de forma a que tenha um sen­
e iguais. Não haveria liberdade nas relações soci­ tido cívico-pedagógico. Num segundo momento,
ais de produção, pois as categorias que a constitu­ até por força do caráter de mercadoria que assume
em: trabalho e capital, personificados em proletari­ a opinião/infonnação, a opinião pública passa a
ado e burguesia, estariam, ambos, alienados ao corresponder tanto à opinião emitida pelo Estado,
movimento de valorização do capital. Nessas cuja função tem o caráter cívico-pedagógico e tam­
condições, a liberdade que daí resulta é uma liber­ bém normativo, como às opiniões da sociedade
dade formal: todos são livres e iguais perante a lei. civil que corroboram na afinnação da opinião do
Assim, o poder público que resulta da opinião Estado como a que se contrapõe criticamente aos
pública só pod~ ser o poder derivado dos interesses valores e normas vigentes. (HABERMAS, 1984;
da acumulação. CHAUÍ, 1990).
Nessa perspectiva, Marx faz tanto a critica à te­ Não por acaso, ficam excluídos da esfera públi­
orização liberal, fundamentada em Kant através do ca burguesa (homens privados reunidos num públi­
princípio da publicidade na constituição da esfera co que pensa politicamente) aqueles que dependem
pública, quanto à solução corporativista hegeliana, de outros para a sua sobrevivência, entre os quais,
posto que esta não nega as particularidades dos as mulheres, as crianças, e aqueles cuja única pro­
interesses privados, antes, os reforça como interes­ priedade é sua força de trabalho.
ses de classe. É que com a "racionalização" da política, os
Não obstante, é importante destacar o fato de conflitos no interior da sociedade tendem a explo­
que a constituição da esfera pública burguesa e a dir na esfera pública, potencializados que são pela
consolidação hegemônica da burguesia com a to­ ampliação dos direitos políticos. Nessa perspecti­
rnada do poder do Estado compreende um longo va, a dominação racional (burguesa) de conforma­
processo cultural de desenvolvimento da sociabili­ ção dos interesses na esfera pública ficaria amea­
dade burguesa, que se engendrou nos espaços pú­ çada pela presença de uma maioria de não propri­
blicos, através das conversar e discussões entre tários privados de meios de produção, o que levaria
homens privados, nos cafés, nos salões de leituras, a subverter a democracia, conforme a concepção
nas festas e eventos culturais, publicizados através liberal, por uma "ditadura da maioria" - de fato,
da imprensa, tendo, portanto, uma visibilidade uma real ameaça aos interesses capitalistas.
pública de criticas e opiniões sobre questões sociais Assim, a cidadania, nos termos do liberalismo,
e políticas para além do âmbito privado da vida só podia ser pautada pelo mercado. Com efeito, se
cotidiana; experiência que Habermas chama de os direitos civis são estendidos a todos, já no sécu­
constituição do "espaço público literário". lo XVIII, isso se deve às necessidades do capital
O destaque desse processo é importante porque que precisa de homens livres e iguais para se re­
nos indica a construção da hegemonia burguesa a produzir. Quanto aos direitos políticos, já numa
partir da politização das questões sociais; ademais, economia capitalista plenamente desenvolvida, sua
marcou uma fase de ampliação do espaço público ampliação ao conjunto da população só foi ocorrer
que passa a ter como referência a opinião pública. no Século XX, após intensas lutas durante todo o
Entretanto, torna-se compreensível, dada a Século XIX. O mesmo se pode dizer dos direitos
dominação de classe da esfera pública, que uma sociais, cuja extensão ao conjunto da população (e
vez construída de fonna critica e em oposição ao ainda de forma seletiva), só se viabilizou nos mar­
Estado absolutista, instituindo-se como Estado de cos do Welfare State.
Direito liberal - como democracia representativa -, Mas, isso não significa dizer, entretanto, que a
tenha se convertido numa ambivalência entre criti­ constituição da esfera pública decorre de uma de­
ca racional (idéia) e ideologia, assinalando, por terminação unilateral do mercado, até porque, se
conseguinte, a decadência da esfera pública como assim fosse a ampliação dos direitos de cidadania
espaço político de discussão pública: jamais evoluiria do patamar logrado no final do
Século XVIII. (MARSHALL,1977).
"ela penetra esferas cada vez mais extensas da
O liberalismo, desenvolvido com intensidade
sociedade e, ao mesmo tempo, perde sua fun­
durante a revolução industrial, deixou um rastro de
ção política, ou seja, submeter os fatos torna­
violência e exclusão, e chegou ao seu limite com a
dos públicos ao controle de um público crítico"
oligopolização da economia, já na segunda metade
(HABERMAS, 1984, p . 167) .
do Século XIX, com uma esfera pública transfigu­
É próprio a esse processo que a opinião pública, rada de interesse geral em interesses de grupos e
que antes correspondia ao exercício da razão como países detentores da hegemonia numa economia
direito de opinião de todo cidadão, passe, progres­ internacionalizada.
sivamente, a ser restringida pela mediação de uma

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Poder-se-ia dizer que a alternativa socialista, do desmercantilização das relações sociais. O extra­
socialismo real, como contra-hegemonia foIjada no ordinário, no entanto, é que a desmercantilização
processo de construção da esfera pública burguesa, passa a ser menos resultado da ação deliberada do
mostrou-se incompetente para garantir e aprofun­ Estado e mais um efeito do caráter estrutural que
dar um espaço público que representasse, em sínte­ assume o fundo público na reprodução do capital.
se, um espaço de critica e de permanente exercício Conforme Francisco de Oliveira (OLIVEIRA,
democrático. 1988), a transformação provocada na esfera pública
A prática política seguida em geral pelo socia­ pela constituição do fundo público como necessário
lismo real teria, a nosso ver, reproduzido de forma para viabilizar a acumulação a partir de patamares
invertida a heteronomia da esfera pública construí­ tecnológicos mais desenvolvidos significou uma
da com o surgimento da sociedade industrial capi­ "revolução copernicana". Uma mudança radical
talista. E isso porque construiu artificialmente uma nas relações de produção, na qual o fundo público
personalidade coletiva pela despersonalização da passa a funcionar não como um ex-post - resultado
vida privada; uma desmercadorização das relações do processo produtivo e recurso complementar
sociais com a construção igualmente artificial de para oportunidades de investimento, com o objetivo
uma imensa "sociedade comunal ", ou seja, um de garantir o pleno emprego - mas, um ex-ante, um
Estado totalitário. elemento estruturaI fundamental à acumulação
capitalista, dada a proporção que assume e a rela­
ção orgânica que o determina, tendo em vista seu
Sinais de transformação caráter vital ao desenvolvimento das relações de
produção.
na esfera pública O autor relata uma série de dados relativos aos
países industrializados, sobre despesas sociais
As análise do Welfare State, segundo o modelo públicas, receitas dos governos, déficit público,
keynesiano do pós-45, nos mostra ter havido uma dívida pública, que bem demonstram o IÚvel de
transformação significativa na esfera pública. Mas importância assumida pelo fundo público na eco­
essa transformação se mostra menos pela politiza­ nomia capitalista. É ilustrativo, por exemplo, que o
ção das questões sociais e mais por um real proces­ salário indireto significava, em 1981, para sete
so de desmercantilização das relações sociais. grandes países industrializados, com as exceções
No contexto do desenvolvimento industrial­ do Japão e dos Estados Unidos, um percentual que
tecnológico avançado, o modelo keynesiano veio a vai de um mínimo de 33% a um máximo de 45%
se constituir como tábua de salvação da economia em relação ao salário direto. O que revela a impor­
capitalista: tância das despesas sociais públicas para viabilizar
o consumo de massa.
"foi o keynesianismo que forneceu os funda­
Com relação à crise do Estado de Bem Estar
mentos ideológicos e políticos para o com­
Social, denunciada pelos problemas fiscais do Es­
promisso da democracia capitalista. Ele man­
tado e alardeada pelo neoliberalismo com o opor­
teve a expectativa de que o Estado poderia tunismo das palavras de ordem "privatização" ou
harmonizar a propriedade privada dos meios
"desestatização", atribuindo ao déficit público
de produção com a gestão democrática da eco­
excessivos gastos sociais, mostra Francisco de
nomia" (pRZEWORSKI & W ALLERSTEIN, Oliveira que a crise é "apenas e esse apenas é
1988, p. 31) muito forte, a expressão da abrangência da socia­
Obedecendo a lógica da acumulação capitalista, lização da produção, num sistema que continua
a intervenção estatal teve um efeito duplo extraor­ tendo como pedra angular a apropriação privada
dinário, tanto no aspecto econômico como no polí­ dos resultados da produção social. Mas, de certo
tico. Desenvolvendo políticas de pleno emprego modo, ela expressa também a retração da base
através de investimentos em infraestrutura, tecno­ social de exploração ..." (OLIVEIRA, 1988, p. 12).
logia e equipamentos de consumo coletivo, atuou A compreensão do problema está em que a teo­
tanto para potenciar a acumulação, ao garantir a ria keynesiana, na qual se baseiam os Estados de
realização do valor dos bens socialmente produzi­ Bem Estar, não responde mais ao caráter de inter­
dos, quanto para reproduzir a força de trabalho, nacionalização da economia. Ela teria funcionado
através de salários diretos para setores organica­ se obtivesse, circunscrita à sua territorialidade
mente mais ligados aos interesses da acumulação, nacional para financiar a reprodução do capital e
como também de salários indiretos, abrangendo os da força de trabalho, retornos fiscais que permitis­
setores mais amplos e menos qualificados, com sem realimentar o sistema. Uma vez alcançada a
relação à previdência, habitação, transportes, edu­ internacionalização produtiva e financeira em IÚvel
cação, etc. elevado, o que foi proporcionado pelo próprio pa­
Assim, ainda que indo ao encontro da acumu­ drão de financiamento do Estado de Bem Estar, o
lação, a reprodução da força de trabalho significa a processo entra em crise. Crise, portanto, que deve-

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se ao fato de que "a circularidade anterior pressu­ sinais de uma crise que se explicita com a falência
punha ganhos fiscais correspondentes ao investi­ do Estado de Bem Estar Social. Cabe, por fim,
mento e à renda que o fundo público articulava e pensando a realidade brasileira, destacar uma
financiava; a crescente internacionalização reti­ questão que me parece sumamente pertinente, e
rou parte dos ganhos fiscais, mas deixou aos fun­ que por se tratar de uma abordagem geral sobre o
dos públicos nacionais a tarefa de continuar arti­ espaço público ficou à margem das considerações
culando e financiando a reprodução do capital e anteriores. Trata-se do seguinte: a marca determi­
daforça de trabalho" (OLIVEIRA, 1988). nante da heteronomia na existência social e políti­
O fato relevante, no entanto, é que o capital não ca, de que fala Marilena Chauí (1990), não vem
pode prescindir dos fundos públicos, o que implica, apenas da imposição de "imperativos do mercado"
em consequência, uma disputa pelo fundo público que reduz o espaço público, nem da "despolitização
entre grupos e classes cujos interesses se explicitam dos sujeitos sociais" transformádos em objetos do
na esfera pública. Por outro lado, o fundo público Estado autoritário e tecnocrático pelo discurso da
não se constituindo em valor, ainda que seja supor­ eficiência. Pertinente a essa questão é o caráter
te da valorização do capital, ele não se reproduz patrimonialista e prebendalista da sociedade brasi­
enquanto valor. Com efeito, a baixa tendencial da leira que remonta ao período colonial. Cultura que,
taxa de lucro, que resulta do aumento da composi­ como destaca a mesma autora, em Conformismo e
ção orgânica do capital, não é revertida, antes, se Resistência, atravessou a primeira e segunda Re­
acentua, uma vez que a taxa de mais valia resulta, públicas e chegou até os anos 80 sem que a equiva­
no final do processo, diminuída. E essa redução lência jurídica, própria do Estado de direito liberal
tem a ver com o fato de que parte do produto no fosse, de fato, reconhecida como direito de todos.
final da relação produtiva se constitui em antimer­ Essa é, sem dúvida, uma das questões a ser en­
cadoria, e também volta a reiniciar o processo frentada ao se tematizar o espaço público como
como antimercadoria. "A consequência teórica essencial à constituição de uma sociedade efetiva­
mais profunda é que a lei da tendência declinante mente democrática. Senão, como explicar a persis­
da taxa de lucro se afirma pela retração da base tência do clientelismo nas relações de poder, do
social global de exploração ... "(OLIVEIRA, 1988, nepotismo e prebendalismo, numa confusão entre
p. 18). público e privado, como marcas que recusam a se
Essa questão, a nosso ver, potencializa a esfera afastar das práticas sociais e políticas que constitu­
pública como espaço político, pois o eixo do confli­ em a realidade brasileira. Esses são obstáculos que,
to de classes tende a se deslocar para o âmbito do se não superados não há como se vislumbrar um
Estado; tal mudança, no entando, não nos parece espaço público efetivamente democrático - autô­
ser suficiente para a politização das questões soci­ nomo.
ais.
O Estado, atuando como agente no processo de
produção e consumo, tende a destacar-se, além das Referências bibliográficas
suas funções normativas, por uma lógica de merca­
do, na qual aparece mais como elemento que impe­ CHAUÍ, M. Cultura e Democracia. São Paulo,
de do que facilita a participação dos setores excluí­ Brasiliense, 1990.
dos nos processos de discussão política. E essa _ _ "Público privado e despotismo". In:
tendência é tanto mais enfatizada quanto mais a NOVAES, A. Ética. São Paulo, Companhia das
esfera pública (Estado) se vê comprometida com Letras, 1992.
investimentos externos. Assim, parece-me correta COSTA, S. "Esfera pública, redescoberta da socie­
esta leitura se atentarmos para a realidade política dade civil e movimentos sociais no Brasil". No­
brasileira, cujo modelo de desenvolvimento (e aqui, vos Estudos CEBRAP, São Paulo, n° 38, 1994.
longe de pensar em Estado de Bem Estar) privile­ HABERMAS, J. Mudança estrutural da Esfera
giou sobremaneira a concentração da acumulação Pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
como bem demonstram os indicadores de concen­ HOBBES, T. Leviatã. São Paulo, Abril Cultural,
tração de renda, denunciando a esfera pública 1979. (Os Pensadores).
como espaço privatizado.
LEFORT, C. A invenção democrática, os limites
do totalitarismo. São Paulo: Brasiliense, 1987.
MARSHALL, T.H. Cidadania, classe social e
À guisa de conclusão status. Rio de Janeiro, Zahar: 1967.
OLIVEIRA, F. "O surgimento do antivalor". Novos
Finalizando este texto, o que aqui se buscou foi, Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 22, 1988.
a partir de uma rápida leitura da constituição do PRZEWORSKI, A. & WALLERSTEIN, M. "O
espaço público burguês, assinalar o seu caráter capitalismo democrático na encruzilhada". Novos
heterônomo, enquanto espaço pautado pelos inte­ Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 22, 1988
resses do mercado. Buscou-se, também, salientar os

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