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Livro Texto
2010
Capa e Diagramação: Cláudio Azevedo
Arte-finalização da Capa:
R:
Cláudio Azevedo
Copyright © 2008
ISBN: 85–60091–??–?
I. Título.
CDU 294.527
Capa:
Visite: http://www.editoraorion.com.br
2
Psicologia Transpessoal
Livro Texto
Organizadores
2010
3
Conselho Editorial
Alexandre Simão de Freitas – (Programa de Pós-Graduação em Educação UFPE-BRA)
4
AUTORES
André Feitosa de Sousa
Psicólogo (CRP-11/05064), com formação na Abordagem Centrada na Pessoa e no Método (Con)texto de Letramentos
Múltiplos, desenvolvendo trabalhos nas áreas da Psicoterapia, da Psicoeducação (Salutogênese) e da Psicologia do Traba-
lho. Professor no curso de Psicologia das Faculdades Nordeste (FANOR), pesquisador associado à “Rede Lusófona de
Estudos da Felicidade (RELUS)”, colaborador na “Liga Maria Villas-Bôas de Estudos em Abordagem Centrada na Pessoa”.
Sócio efetivo da “World Association for Person-Centered Approach and Experiential Psychotherapy” e da “Associação Pau-
lista da Abordagem Centrada na Pessoa”; membro da “Nordic Pragmatism Network” e da “Red Iberoamericana de Centrada
em las Personas”. Integrante da equipe gestora do Projeto Social “O Outro Brasil que Vêm Aí: Comunidades em Transição
para uma Sociedade Pós-Carbono”, formador e supervisor vinculado à “Confraria de Estudos Avançados em Carl Rogers e
na Abordagem Centrada na Pessoa (CearACP)”. Co-organizador do livro “Humanismo de Funcionamento Pleno” (2008,
Editora Alinea), dentre outras publicações científicas. Contato: andre_feitosa@msn.com
5
6
Sumário
PREFÁCIO ........................................................................................................................... 11
INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 13
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................ 15
PARTE I ................................................................................................................................ 17
1. Transcendência ............................................................................................................ 19
Histórico ................................................................................................................................ 62
Método .................................................................................................................................. 91
PARTE II ............................................................................................................................... 93
Transdisciplinaridade ............................................................................................................ 94
Espiritualidade ...................................................................................................................... 95
Unidade ................................................................................................................................ 96
I ......................................................................................................................................... 96
II ...................................................................................................................................... 103
7
III ..................................................................................................................................... 108
IV .................................................................................................................................... 109
V ..................................................................................................................................... 112
VI .................................................................................................................................... 114
IX .................................................................................................................................... 122
Referências:.................................................................................................................... 122
8
Modelo de desenvolvimento da consciência .................................................................. 153
A psicologia transpessoal: uma base para um novo modelo gerencial ......................... 170
9
CARTA AOS TERAPEUTAS .......................................................................................... 196
10
PREFÁCIO
Roberto Crema
11
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INTRODUÇÃO
Marlos Alves e Cláudio Azevedo
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14
APRESENTAÇÃO
Márcia Tabone
15
16
PARTE I
17
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Capítulo 1
Matrizes Conceituais
Transcendência, Espiritualidade e Tradições de Sabedoria no Oriente
1. Transcendência
Em seu sentido original o “trans” foi agregado ao pessoal na palavra “transpessoal” para si-
tuar uma ampla gama de pesquisas que indicavam a dimensão de transcendência humana ou o
1
“principio da transcendência” . Contudo, assim como a palavra transcendência está carregada de
múltiplos sentidos, o prefixo “trans” tem incorporado esta diversidade, requerendo uma explicitação
que nos ajude a melhor definir em que sentido está sendo utilizado, pois de acordo com o seu uso
poderá conduzir-nos a sentidos diversos, com implicações diretas para a Psicologia Transpessoal.
A interpretação mais antiga dada ao conceito transcendência deriva da relação dos ho-
mens com a idéia de divindade, em um sentido teológico. Assim, se considera o divino como ina-
cessível às coisas terrenas, pois seriam esferas totalmente distintas, manifestando uma relação
dialética permanente.
1 O principio da transcendência “indicaria um impulso em direção ao despertar espiritual que perpassa a humanidade do
ser, a própria pulsão de vida, morte e para além delas. O „principio da transcendência‟ envolve a natureza psicológica,
descrita por Freud, ampliada por Maslow e por Weil.” (SALDANHA, 2006, p. 109)
19
Outro sentido de transcendência se refere aos conceitos aristotélicos, difundidos na idade
média por São Tomás de Aquino, que definiam como transcendente tudo que se enquadra nas
categorias de unidade, verdade e bondade. O trans, neste sentido, põe-se como uma essência
permanentemente fixa e imutável quer seja ela platônica, kantiana, hegeliana ou husserliana, ex-
cluindo assim, a possibilidade para emergência de novas dimensões do ser.
Para Hume e Kant, transcendental é tudo aquilo que nossa mente constitui a priori, antes
mesmo de qualquer experimentação, havendo assim uma complexa interconexão entre a capaci-
dade de estar consciente de certo conceito e a habilidade de experimentar-se o universo das coi-
sas.
O transcendente estaria fora de nós, mas acessível pela capacidade intelectual em captar
sua essência. Hegel combateu, em parte, este conceito kantiano, pois argumentava que é preciso
ultrapassar a fronteira entre o conceitual e o experimental para sabermos ao certo onde este limite
se encontra, e assim, logicamente, já se constitui uma transcendência o fato de deter o conheci-
mento, independentemente de qualquer ação posterior.
O hiato entre transcendência e imanência, assim como, as diversas divisões tomadas pelo
senso comum como auto-existentes, são profundamente questionadas pela psicologia transpesso-
al. Nesta concebe-se a possibilidade de um “entre-deux” nestes aspectos, bem como nas múltiplas
20
2
interfaces humana , sem, no entanto, bipartir a concepção de existência. Para o filósofo francês
Merleau-Ponty, a identificação desse círculo abriu um espaço entre o homem e o mundo, entre o
interno e o externo. Esse espaço não era um abismo ou divisor: ele englobava a distinção entre
homem e mundo e, ainda, provia a continuidade entre eles. Sua abertura revela-se como um cami-
nho do meio, um entre-deux. Assim, no prefácio de sua Fenomenologia da Percepção, ele escreve:
Para psicologia transpessoal essa forma de refletir marca radicalmente a virada do pensa-
mento fenomenológico como uma busca de retorno ao mundo existencial, sendo um golpe nas
idéias do “trans” como um simples “além de” abstrato e teológico, pois o mundo é preexistente à
reflexão mas não separado de nós, conforme destacado por Varela, Thompson e Rosch (2003, p.
21):
2
Wilber (2000, p. 27) destaca cinco dimensões básicas: “matéria, corpo (no sentido de corpos vivos e vitais, o nível emo-
cional-sexual), mente (incluindo imaginação, concepções e lógica), alma (a fonte da identidade supra-individual) e espírito
(tanto o fundamento sem forma como a união não-dual de todos os outros níveis)”.
3
Merleau-Ponty (1999, p. 576).
21
[...] as mentes despertam em um mundo. Não projetamos nosso mundo.
Nós simplesmente nos descobrimos com ele; nós despertamos tanto para nós
mesmos quanto para o mundo que habitamos. Vimos a refletir sobre esse mun-
do à medida que crescemos e vivemos. Nós refletimos sobre um mundo que não
é feito, mas encontrado, e é também nossa estrutura que nos possibilita refletir
sobre esse mundo. Então, ao refletirmos, nós nos encontramos em um círculo:
estamos em um mundo que parece que já existia antes da reflexão ter-se inicia-
do, mas esse mundo não é separado de nós.
Assim, é como um pensamento aberto à interrogação permanente e que trabalha para não
se fechar nos dogmatismos e absolutismos, que se caracteriza a psicologia transpessoal; sendo a
transcendência reveladora de um projeto de formação humana que não cessa de ampliar, pois
revela o inacabamento do humano.
Referências bibliográficas
4
Ibid., loc. cit.
22
WEIL, P. A medida da consciência cósmica. Petrópolis: Ed. Vozes. 1978
VARELA, J. F.; THOMPSON, E.; ROSCH, E. Mente incorporada. São Paulo: Artes Médicas,
2003.
WILBER, K. Foreword. In: SCOTTON, B.W.; CHINEN, A. B.; BATTISTA, J. R. (Eds). Textbook of
transpersonal psychiatry and psychology. New York: BasicBooks, 1996.
Fawler, por exemplo, em seu trabalho sobre “Os estágios da fé", coloca a religião como
uma “tradição cumulativa”, marcada por textos, escrituras, leis, narrativas, mitos, profecias, relatos
de revelações, símbolos visuais, tradições orais, música, dança, ensinamentos éticos, teologias,
credos, ritos, liturgias, arquitetura. Enquanto a fé (espiritualidade) é mais profunda e pessoal, sen-
do a forma como a pessoa ou o grupo responde ao valor transcendente.
Seguindo esta linha de raciocínio, Koenig et al.(2001) definem religião como um sistema
organizado de crenças, práticas, rituais e símbolos delineados para facilitar a proximidade com o
sagrado e o transcendente e espiritualidade como a busca pessoal por respostas compreensíveis
para questões existenciais sobre a vida, seu significado e a relação com o sagrado ou transcen-
dente, podendo ou não estar atrelada a rituais religiosos ou a uma comunidade.
5
Wilber (2000, p. 27), destaca que a “Grande Cadeia do Ser” reflete a espinha dorsal da filosofia perene e apresenta uma
síntese de concordância quase unânime e intercultural quanto às dimensões gerais básicas do ser, assim expressas: “maté-
ria, corpo (no sentido de corpos vivos e vitais, o nível emocional-sexual), mente (incluindo imaginação, concepções e lógi-
ca), alma (a fonte da identidade supra-individual) e espírito (tanto o fundamento sem forma como a união não-dual de todos
os outros níveis)”.
24
não me identifico por inteiro serve para camuflar lados de mim que não consigo
ou não quero enxergar, e leva fatalmente a desequilíbrios internos e externos. As
certezas sobre a própria identidade não são de natureza racional, mas intuitiva.
Por isso chamo essa dimensão também de intuitivo-espiritual.
Em uma visão fenomenológica essas cinco dimensões apresentadas por Röhr, não consti-
tuem realidades ontológicas distintas e separadas, mas sim planos de significação ou formas de
unidade, nas quais “matéria, vida, espírito não poderiam ser definidos como três ordens de realida-
des ou três espécies de ser, mas como três planos de significações ou três formas de unidades”
(MERLEAU-PONTY, 1942, p. 14).
Essas dimensões ou estruturas básicas são percebidas como hólons potenciais e não co-
mo essências permanentemente fixas e imutáveis quer sejam elas platônicas, kantianas, hegelia-
nas ou husserlianas. Assim, abre-se a possibilidade para emergência de novas dimensões no futu-
ro. Wilber (2006) destaca que essa visão da “Grande Cadeia do Ser” é um dos modos de interpre-
tar a realidade, contudo para que alcance um status pós-metafísico é necessário realizar algumas
revisões e acréscimos, tais como:
Essas estruturas de consciência “não podem ser concebidas como as que são dadas eter-
namente – elas não são arquétipos, nem idéias eternas na mente de Deus, nem formas coletivas
fora da história, nem imagens eidéticas atemporais. [...] teriam de ser concebidos como formas que
se desenvolveram com o tempo, com a evolução e com a história” (WILBER, 2006, p. 293).
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Primeira Força – Behaviorismo
A primeira grande força do movimento psicológico foi o Behaviorismo que se organizou nos
EUA a partir do início do século XX e conjugou várias tradições filosóficas e científicas que se opu-
nham a qualquer idéia de subjetividade ou interioridade.
Outra grande influencia neste movimento foi “bahaviorismo radical” de Skinner que domi-
nou durante muitos anos o cenário do mundo psicológico, por atender ao ideal de ciência positivis-
ta e mecanicista da época. O trabalho de Skinner foi considerado um avanço em relação ao beha-
viorismo de Watson, por não negar a existência dos estados internos, contudo permanece fiel ao
ideal de que o comportamento observável deve ser o objeto de estudo da psicologia, não sendo
dado nenhum interesse a significados ou simbolos, mas as variáveis que afetam o comportamento.
No trabalho de Steven Haynes temos uma aproximação da primeira força com a espiritua-
lidade através do uso da meditação. Na década de setenta, Pierre Weil em seu livro “Mística e
ciência” já antevia esta aproximação, quando sugere que estudos na área do “behaviorismo” pode-
riam trazer grandes contribuições para o desenvolvimento da psicologia transpessoal, pois a partir
do estudo do controle de funções orgânicas involuntárias, tais como circulação sangüínea e ondas
26
eletroencefalográficas, realizado em iogues ou meditantes treinados poderíamos ter acesso a uma
melhor compreensão de fenômenos estudados na transpessoal.
O trabalho pioneiro de Fracine Shapiro (2007, p.43) com EMDR6 faz uso regular da medi-
tação e segundo sua autora “é, com certeza, coerente com as conjeturas de Maslow [...]”. David
Grand, um dos principais representantes do EMDR, em palestra em 2008 sobre “A essência do
EMDR” destaca o seu aspecto espiritual.
No meio transpessoal, os trabalhos pioneiros de C. A. Tart (1972, 2000) foram uma das
primeiras tentativas bem sucedidas de estudo dos estados alterados de consciência usando o ar-
senal metodológico comportamental, sendo seu trabalho referência nos estudos nesta área.
Apesar de ter o dualismo como marca fundante (spaltung) e não ter dado a atenção devida
7
ao fenômeno de consciência cósmica, denominado na época de “sentimento oceânico” , a psicaná-
lise resguardou para si um estatuto metapsicológico.
Rodrigué (1995) destaca a relação entre Freud, “o animal humano” e seu “amigo oceâni-
co”, Romain Rolland - ideólogo, pacifista, ganhador do Prêmio Nobel da Paz e autor de “Ghandi”-
como uma das possíveis causas para “o sentimento oceânico” ter ganho um espaço na teoria freu-
diana.
6
Dessensibilização e Reprocessamento Através de Movimentos Oculares
7
Consciência cósmica ou mais modernamente consciência transpessoal.
27
“As opiniões expressas por um amigo muito admirado (...) causaram-me muita
dificuldades. Não consigo descobrir em mim esse sentimento „oceânico‟. Não é
fácil lidar cientificamente com sentimentos” (...) Podemos considerar o primeiro
capítulo de “o mal-estar” uma carta aberta a seu amigo francês. Se ele não expe-
rimentou o sentimento oceânico, “pode, pelo menos, outorgar-lhe, um estatuto
metapsicológico”. Trata-se do retorno ao estado de fusão do ego primitivo do be-
bê a uma simbiose primordial com a mãe.” (RODRIGUÉ, 1995, vol.03, p. 162)
Destacaremos a seguir alguns dos pioneiros do estudo do psiquismo e seus interesses por
alguns tópicos que estão na meta de pesquisa da Psicologia Transpessoal. Daremos um destaque
especial a Carl Jung por ser considerado um de seus precursores.
Sigmund Freud
Bettelheim (1982, p.86), escreveu que Freud por várias vezes falou sobre a alma, mas es-
tas referências foram retiradas da tradução inglesa que se centralizou no “jovem Freud”. Para
Freud a alma se referia à psique como um todo, apesar de em muitos momentos ter usado estes
termos indistintamente, como se vê a seguir:
Além de seu interesse por temas como “alma”, pode-se ressaltar estudos de Freud (1963)
sobre telepatia e parapsicologia, bem como seu vínculo com a Sociedade de Estudos Psíquicos,
instituição de pesquisa de temas parapsicológicos e “ocultos”. Sendo relevante pontuar o conflito
com Romain Rolland acerca do “sentimento oceânico”.
Epstein, M., apud Scotton, B.W.; Chinen, A.B. e Battista, J.R. (1996), identifica três grandes
contribuições do pensamento freudiano para a Psicologia Transpessoal:
28
Freud oferece-lhe um estatuto metapsicológico, o que segundo Rodrigué (1995,
vol.03, p.162), não é pouco para alguém que não havia experimentado este fenô-
meno;
O desencontro de Freud com fenômenos que fugiam ao paradigma dominante à sua época
foi expresso no seu lapso de memória, assim apontado por Rodrigué (1995 vol 02, p.162, grifo
nosso):
O lapso freudiano marca um tempo, uma forma de pensar, expressando a ambivalência vi-
vida no meio científico em relação a fenômenos que ainda não podiam ser explicados. Ao mesmo
tempo traz a marca antecipadora de todo visionário, ou grande gênio, pois antecipa os interesses
de pesquisadores futuros, indicando uma imensa gama de possibilidades de investigação.
Sandor Ferenczi
A psicanálise durante um longo período ocupou um lugar de destaque nas pesquisas vol-
tadas ao psiquismo humano, por isso buscamos entre antigos “mestres” referências a uma dimen-
são além do pessoal. Nesta busca deparamo-nos com Ferenczi, “o vizir da psicanálise, o Heráclito
da psiquiatria húngura, o interlocutor de Freud em Siracusa”, nas palavras de Rodrigué (1995, vol
02, p. XXXI).
Nascido em Budapeste, em 1873, o oitavo de uma família de onze filhos, sua genialidade
não passou despercebida para Freud, de quem se tornou discípulo fiel, talvez um dos poucos das
primeiras gerações de grandes analistas a não romper com o professor.
Suas contribuições à teoria psicanalítica são inúmeras; aqui registramos o Ferenczi “Astró-
logo da Corte dos Psicanalistas”. (Ibid., p.162, vol.2)
Segundo Rodrigué (1995), Ferenczi publicou em 1898, na revista Gyógiászat, editada por
Miksa Schacter, grande figura paterna de sua vida, o ensaio intitulado “Espiritismo”, no qual o autor
29
narra um episódio que merece destaque, haja vista envolver um dos focos de pesquisa da Psicolo-
gia Transpessoal que são os estados alterados de consciência. Vejamo-lo:
Embora seja pouco provável que conforme pontua Rodrigué “o tema do oculto e das ciên-
cias parapsicológicas, em geral, ocupasse pouco espaço nos encontros das quartas-feiras do gru-
po freudiano, o assunto operava como contra-ponto. Nessa procura pelo “espiritual”, Ferenczi es-
tava à frente de Jung”, embora se mostrasse mais reticente.
Otto Rank
30
Além de considerar o nascimento como um dos eventos importantes na vida do indivíduo
8
em "A Interpretação dos Sonhos" (segunda edição), Freud assinalou que “o ato de nascimento é a
primeira experiência de ansiedade e, assim, passa a ser a fonte e o protótipo do entendimento da
ansiedade” - o trauma de nascimento despertou uma verdadeira guerra no meio psicanalitico, bem
como abriu margens para que pesquisadores desenvolvessem uma teoria mais ampla a partir des-
te fato, como é o caso das matrizes perinatais de Grof (1988, 2000).
Freud enviou uma circular aos membros do Comitê com o objetivo de aplacar os ânimos
acirrados. A citação de trechos desta circular depõe acerca da maturidade do “velho Freud”, atingi-
do pelo câncer. Como se pode conferir em citação de Rodrigué (1995, vol.3, p. 89-91) a seguir
transcrita:
Naturalmente, bem mais poderia ser dito sobre isso e espero que os
pensamentos despertados por Rank tornem-se objeto de muitas discussões frutí-
feras. Deparamo-nos aqui não com uma revolta, uma revolução, uma contradi-
ção de nosso conhecimento assegurado, mas com um interessante acréscimo
que nós e outros analistas temos de reconhecer.”
As reações a esta circular foram exacerbadas, Ernest Jones afirma que Freud foi “por de-
mais tolerante”. O clima estava alterado e Freud nesta altura da vida reflete: “Meus discípulos são
mais ortodoxos do que eu” (ibid, p. 91). Poder-se-ia arriscar a hipótese de que ele estivesse preste
a continuar seu relacionamento com Rank, mas o movimento psicanalítico talvez pela inércia ine-
rente às instituições não lhe permitiu outra escolha senão o caminho da separação.
8
Nota de rodapé da 2a Edição
31
Assim “O Trauma do Nascimento”, que distanciou discípulo e mestre, levou Freud a revisar
sua teoria referindo-se a posição de Rank “que originariamente era a minha - de que o afeto da
angustia é conseqüência do ato do nascimento e uma repetição da experiência original, forçou-me,
uma vez mais, a revisar o problema da angústia”. (Ibid., vol.3, p.102)
Ora, isso significa que Freud admite o mérito de Rank quanto a travessia traumática do feto
pelo canal estreito da bacia, referindo-se ao evento como protótipo de angústia primeva para o
indivíduo à medida que se constitui em inevitável situação de ameaça à vida e ao mesmo tempo
um caminho único a ser percorrido. Para além dessa situação inicial de perigo, frente a outras fon-
tes geradoras de traumas, somando um total de quatro situações de perda a serem iniciadas pela
chamada “perda do nirvana intra-uterino”, temos na seqüência (ameaça de): perda da simbiose
materna, perda do pênis e perda do amor do superego.
Grof (1988) destaca o intenso trabalho de Rank, construindo a partir do mesmo um arca-
bouço teórico para dar conta das experiências que envolvem a gravidez e o nascimento. Este autor
elabora a teoria das matrizes perinatais e, em homenagem a Rank, denomina de nível rankiano do
processo terapêutico a fase da terapia na qual emergem conteúdos perinatais de forma mais con-
densada.
Carl Jung
9
Carl Gustav Jung, descendente do mítico Sigmund Jung, alquimista de Mainz , nasceu em
26 de julho de 1875 em Kesswil, pequeno povoado à beira do lago Constanza, no cantão de Thur-
govia. O interesse por fenômenos que estavam fora do âmbito de estudo da psiquiatria de sua
época, bem como suas ricas contribuições ao desenvolvimento de uma psicologia do sagrado,
põem este autor como um dos precursores da Psicologia Transpessoal.
A família de Jung parece ter estimulado amplamente seu mundo imaginário. Durante a sua
infância experiências transpessoais podem ser assinaladas, como por exemplo: sendo solicitado a
produzir um ensaio, Jung ficou bastante sobrecitado (estado alterado de consciência). Neste esta-
do produziu um excelente ensaio e foi acusado de plágio pelo professor. Sem conseguir convencê-
lo, e sofrendo por alguns dias, Jung escreveu acerca do contato com um „ser invisível‟ que o teria
ajudado a fazer o texto.
9
“Ancestral de Carl Gustav, ativo na primeira metade do século XVII, conhecedor de Paracelso.”
32
Na escola Médica de Zurich, Jung escreveu sua tese sobre transe e estados dissociativos,
a partir das experiências com sua prima e médium Helene Preiswerk. Depois de sua graduação
trabalhou com Eugen Bleuler, um dos maiores mestres da psiquiatria, no Hospital de Burgholzh em
Zurique, o que lhe deu uma vasta experiência com psicóticos e colocou-o em contato com o campo
do simbolismo tendo-se, por exemplo um dos seus casos em que um paciente falou de um sol
fálico, figura posteriormente encontrada por Jung na cultura egípcia.
Uma das possíveis causas para o rompimento entre Freud e Jung deveu-se ao fato de este
último insistir em destacar temas espirituais em seu foco de pesquisa.
Estas contribuições se expressam nos estudos junguianos acerca dos arquétipos e mitos,
inconsciente coletivo, sonhos, tipos psicológicos, da abordagem simbólica, da sincronicidade, e
das dimensões espirituais da psique, que serviram de base para a fundamentação da Psicologia
Transpessoal no Ocidente.
Jung também pode ser visto como um dos primeiros teóricos a estudar, numa perspectiva
psicológica, fenômenos como transes mediúnicos ou não, yoga, espiritualidade dos nativos ameri-
canos, xamanismo africano, o I Ching, alquimia e gnosticismo.
33
As publicações que mais destacam o aspecto transpessoal na obra de Jung são: Sete
Sermões para um Morto; Uma Resposta a Jó; Memórias, Sonhos e Reflexões (JUNG, 2002). É
possível perceber a ousadia de Jung frente ao meio acadêmico a partir de sua declaração a BBC,
quando questionado acerca da existência de Deus: “Eu não penso que ele existe, eu sei que ele
existe”.
Os trabalhos pioneiros de Maslow (apud Walsh e Vaughan, 1995) marcaram o início pro-
missor das pesquisas nesta área. Sendo possível encontrar nas obras finais de Carl Rogers (1983)
indícios de sua abertura para os estudos transpessoais. Em “Tornar-se Transpessoal” Boainain Jr.
(1998), destaca que Carl Rogers, na década final de sua vida, teria passado por um processo de
transformação transpessoal e, ultrapassando os modelos tradicionais da psicologia humanista,
teria oferecido fundamentos para criação de uma “Abordagem Transpessoal Rogeriana”. Este livro
resgata o momento de passagem do humanismo para o transpessoal.
Carl Rogers
Tornando relevante a possibilidade de abertura para novas idéias Rogers (1983, p. 26) va-
loriza àquelas que dizem respeito ao espaço interno – o chamado reino dos poderes psicológicos e
das habilidades psíquicas da pessoa humana.
34
Estou aberto a fenômenos ainda mais misteriosos - à premonição, à te-
lepatia, à clarividência, às auras humanas, às fotografias kirlianas, e até mesmo
às experiências que se dão fora do corpo. Estes fenômenos podem não corres-
ponder às leis científicas conhecidas, mas talvez estejamos no caminho da des-
coberta de uma nova ordem, regida por outros tipos de leis. Sinto que estou a-
prendendo muito com uma nova área de conhecimentos, e considero esta expe-
riência agradável e empolgante.
Esta abertura de Rogers marca uma passagem importante dentro do movimento psicológi-
co, pois mostra o interesse dos psicólogos humanistas por uma nova dimensão em psicologia, que
mais tarde passou a denominar-se Psicologia Transpessoal, e apontava novos rumos para a pes-
quisa.
Importante ressaltar que em “Reflexões sobre a Morte”, Rogers (1983, p. 29) nos ensina
um dos pontos considerados centrais da Psicologia Transpessoal: a morte.
35
ma região de valores superiores, especialmente de beleza, harmonia e amor. A
pessoa sente-se como se ela e o cosmos fossem um só. A realização obstinada
de pesquisas parece que vem confirmando as experiências de união dos místi-
cos com o universo.” (ROGERS, 1983, p.47)
Diante desse cenário, percebe-se que Rogers revela o contato com as produções científi-
cas da então nascente área de Psicologia Transpessoal, citando os trabalhos Grof, um de seus
expoentes, responsável por valorosa construção cartográfica da consciência nesta área.
A importância de Baldwin pode ser vista nas palavras Kohlberg (apud WILBER, 2002, p.
98) a seguir:
10
Diferenciação sobretudo da arte, da ética e da ciência que passam a seguir seus próprios caminhos,
livres das pressões e imposições das outras esferas.
36
“Quando eu li Baldwin mais profundamente, compreendi que Piaget de-
rivou de Baldwin todas as idéias básicas com as quais começou na década de
20: assimilação, acomodação, esquema e adualismo, „egocentrismo‟ ou o cará-
ter indiferenciado da mente da criança. Também reconheci que a obra global de
Piaget, a criação de uma epistemologia genética de uma ética que utilizariam a
epistemologia para apresentar problemas para a psicologia do desenvolvimento
e que utilizariam a observação desenvolvimentalista para ajudar a questões epis-
temológicas, também tiveram origem em Baldwin”
Kohlberg (apud WILBER, 2002, p. 98) reconhece que seu modelo dos seis estágios de de-
senvolvimento moral é fruto das contribuições de Baldwin, e aponta que os níveis básicos de de-
11
senvolvimento (pré-convencional, convencional e pós-convencional) também derivam das idéias
deste autor, como podemos ver na citação a seguir:
11
Biaggio (2002, p.24) destaca que no nível pré-convencional, “os indivíduos ainda não chegaram a
entender e respeitar normas morais e expectativas compartilhadas”, predominando atitudes pragmática e he-
donista. No nível convencional há uma concentração nos sentimentos coletivos dos demais, sendo que “o self
identifica-se com, u internaliza, as regras e expectativas dos outros, especialmetne das autoridades; e no pós-
convencional há uma construção pessoal do sujeito que define moral em termos universais de justiça, direitos
naturais e respeito à pessoas, independentemente de sexo, raça, crença e ou religião, ou seja, “diferencia o self
das regras e expectativas dos outros e define os valores morais em termos de princípios próprios”.
37
Deus, mas agora se vê que ela se refere a essa totalidade orgânica ou espiritual
em cujo âmbito o eu e o mundo podem finalmente ser conhecidos‟. Essa corren-
te estética também passa por um desenvolvimento em etapas, que culmina na
experiência consumada da consciência cósmica.”
Biaggio (2002, p. 29), indica que apenas “3% a 5% das pessoas” apresentam o raciocínio
do estágio pós-convencional seis, o que levou muitos teóricos a questionar sua validade, contudo
Kohlberg, além de defender o estágio 6, como realidade empírica e teórica, postula nos últimos
12
anos de sua vida a existência de um sétimo estágio, “no sentido lato, relacionado com orienta-
ções éticas e religiosas, que vão além de sua concepção de justiça. O sétimo estágio envolve a
construção de um senso de identidade ou unidade com o ser, com a vida, ou com Deus” (Ibid, p.
38).
Kohlberg aponta a necessidade do estágio sete como um caminho para resolver o impasse
presente no “relativismo colocado pela distinção entre princípios éticos e preocupações egoístas
ou hedonistas que existem no estágio 6” (Ibid, p. 40) e destaca o estóico Marco Aurélio como e-
xemplo deste último estágio.
O sétimo estágio, “Espiritual universal”, raramente aparece nas citações quando da apre-
sentação da teoria dos estágios do desenvolvimento moral, contudo o trabalho de James Fawler
(1992), sobre os “Estágios da Fé”, seguiu as pistas deixadas por Kohlberg e se destacou como
uma linha de estudos no campo da espiritualidade, apresentando seis estágios, que vão do primei-
ro, fé mágico-projetiva, até o sexto a “fé universalizante”.
12
Kohlberg morreu em 19 de janeiro de 1987, tendo convivido os últimos 16 anos de sua vida com
extrema dor, decorrente de uma infecção intestinal contraída quando realizava pesquisas em Belize, na Amé-
rica central.
38
do bem, a adoção de papéis, a capacidade sócio-emocional, a criatividade, o altruísmo, alegria,
competência para se comunicar, os modos de espaço e tempo, a tomada pela morte, as necessi-
dades, a visão de mundo, a competência lógico-matemática, as habilidades cinestésicas, a identi-
dade sexual e a empatia, entre outras que contam com suporte de pesquisas empíricas.
Wilber (2002, p. 43-44) destaca que essas linhas são “relativamente independentes”:
39
precipitadas da “Grande Cadeia do Ser”, e assim, termos uma perspectiva mais abrangente do
fenômeno humano.
A espiritualidade envolve os níveis mais elevados de qualquer uma das linhas de de-
senvolvimento.
A espiritualidade é a soma total dos níveis mais elevados das linhas de desenvolvi-
mento.
A espiritualidade é, ela mesma, uma linha de desenvolvimento separada.
A espiritualidade é uma atitude (tal como a sinceridade ou o amor) que você pode ter
em qualquer estágio em que esteja.
A espiritualidade, basicamente, envolve experiências de pico, e não estágios.
Estas cinco definições congregam aspectos importantes do fenômeno “espiritualidade” que
nos parece importantes para sua compreensão, dentro de um modelo integral, neste sentido ire-
mos abordá-las a seguir:
1. A espiritualidade envolve os níveis mais elevados de qualquer uma das linhas de desenvolvi-
mento.
Nessa perspectiva, a “espiritualidade” significa basicamente os níveis transpessoal, trans-
racional, pós-pós-convencional de qualquer uma das linhas de desenvolvimento, como podemos
perceber no exemplo abaixo:
40
Neste exemplo, as linhas de desenvolvimento interpessoal e afetivo seriam consideradas
espirituais, pois apresentam os níveis mais elevados de desenvolvimento, tendo evoluído do nível
pré-convencional ao convencional e deste ao pós-convencional até alcançar a sua dimensão mais
ampla no pós-pós-convencional. Esta visão, conforme destaca Wilber (2002, p. 148) é muito co-
mum e:
2. A espiritualidade é a soma total dos níveis mais elevados das linhas de desenvolvimento.
Esta definição é semelhante à definição anterior, mas com uma ênfase ligeiramente dife-
rente (porém importante). Essa definição enfatiza o fato de que, embora as linhas individuais se
desdobram de maneira hierárquica, a soma total dos estágios mais elevados dessas linhas não
apresentaria um tal desenvolvimento em estágios. No gráfico, logo abaixo, o somatório das linhas
interpessoal, espiritual e afetivo representam esta definição de espiritualidade total vivida pelo indi-
viduo. Como o “desenvolvimento total” e o desenvolvimento do “eu total”, o “desenvolvimento espi-
ritual total” não ocorreria em estágios.
41
3. A espiritualidade é, ela mesma, uma linha de desenvolvimento separada.
Nesta definição o desenvolvimento espiritual apresentaria algum tipo de desdobramento
em estágios, uma vez que uma linha de desenvolvimento, por definição, mostra desenvolvimento.
42
4. A espiritualidade é uma atitude (tal como a sinceridade ou o amor) que você pode ter em
qualquer estágio em que esteja.
Esta é a definição mais comum de espiritualidade, não obstante, como destaca Wilber
(2002, p. 151-152):
A visão romântica presente nos que usam esta definição indica que as crianças, por exem-
plo, tem maior capacidade de sinceridade, dada a fluidez com que a usam; contudo como se pode
ser sincera sem ainda conseguir adotar o papel do outro? Atribuir o termo espiritual a uma criança
vivendo o egocentrismo equivaleria transformar o espiritual em narcisismo. Neste sentido Wilber
(2002, p. 159) destaca:
Experiências de pico não requerem a noção de estágios e apontam para o acesso a níveis
transpessoais, contudo as experiências acessadas são geralmente interpretadas por meio de es-
truturas arcaicas, mágicas, míticas ou racionais, cada uma delas marcada por estágios, sendo a
meta do trabalho formativo, transformar estados em estruturas, pois “... à medida que esses esta-
dos temporários são convertidos em características duradouras, eles se tornam estruturas que
mostram desenvolvimento” (WILBER, 2002, p. 152).
43
Uma análise destas cinco definições nos aponta que a resposta para pergunta: a espiritua-
lidade se desenvolve ou não em estágios, feita no início deste trabalho, depende de que definição
estamos utilizando, pois nem tudo que chamamos de “espiritualidade” envolve estágios de desen-
volvimento.
Uma abordagem psicológica mais ampla deveria contemplar algumas destas perspectivas
de espiritualidade, assim como buscar explicitar o seu modelo de desenvolvimento, e, por conse-
guinte, do humano que vive o processo humanização. Todavia, quer se inclua ou não a presença
da espiritualidade como uma dimensão humana fundamental, as pesquisas apontam que o pro-
cesso de humanização é mais complexo de que supúnhamos, requerendo a vivência de “exercí-
cios espirituais” (HADOT, 2006), que objetivam “a busca, a prática, a experiência mediante as
quais o sujeito opera sobre si próprio as transformações necessárias para ter acesso à verdade”
(FOUCAULT, 2001, p16), que ajudam a pessoa a tornar-se receptiva a uma experiência direta da
dimensão do Espírito, e não meramente a crenças ou idéias a respeito do Espírito.
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Com a resolução 005/2002 do Conselho Federal de Psicologia que dispõe sobre a prática
da acupuntura pelo psicólogo tivemos oficialmente o reconhecimento das contribuições dos mode-
los de cura, posto em prática no Oriente, pelo órgão de regulação da psicologia no Brasil. Esta
decisão vem ratificar os debates sobre a ampliação da visão de saúde elaboradas nas Declarações
46
de Alma-Ata (Conferência das Nações Unidas, realizada em 1978, na URSS) e de Veneza (Patro-
cínio da UNESCO), que sinalizavam a necessidade de considerarem-se as contribuições de outras
visões de homem e mundo além da tradicional.
Refletindo sobre esta situação, Silva (2007, p. 420), destaca a importância da contribuição
de mais de 5 mil anos de experiência em processos de cura desenvolvidos pela cultura chinesa
para ampliar os horizontes da ciência Ocidental.
As críticas de que o contato com as contribuições orientais fazem parte das estratégias de
suturar a angustia cartesiana das incertezas ou como diz Zizek (2001, p. 12), uma última ironia
pós-moderna, tem sido duramente rebatidos. Revel; Ricard (1998), por exemplo, comparam a en-
trada do Budismo no Ocidente como uma revolução semelhante ao Renascimento ocorrido na
Europa. Já Costa (2004, p. 210) aponta que o diálogo com estas visões de homem e mundo po-
dem contribuir para resignificarmos o próprio existir dentro da nossa cultura, pois:
Uma longa tradição de filósofos e mestres orientais debruçou-se sobre a mente, produzin-
do uma longa literatura. No ocidente, Carl Jung, com a realização do prefácio do “Livros tibetano
dos mortos”, deu início ao reconhecimento do potencial presente nas formas de saber do oriente,
contudo o etnocentrismo, aliado à dificuldade de acesso à literatura oriental, tem nos conduzido a
uma visão limitada das contribuições orientais. No entanto, os modelos de desenvolvimento e as
teorias da mente produzidas nos meios transpessoais apontam para riqueza deste contato, que
precisa ser revista de forma autêntica e livre de preconceitos.
47
Os sistemas de cura oriental baseiam-se em sua grande maioria em conceitos de
13
energia sutil, no qual “sutil” , significa que a energia não é necessariamente men-
surável, mas plausível, pois mudanças ocorridas após o emprego da energia hipo-
tética em questão podem ser previstas e observadas, como no caso do uso da e-
nergia dos meridianos da acumputura;
Eficazes ou efetivos: estudos de caso ou evidências científicas devem demonstrar
resultados benéficos ao paciente ou cliente;
Resultados estáveis: os benefícios produzidos devem, em geral, se manter ao lon-
go do tempo sem a necessidade de qualquer tratamento adicional, ou por possibili-
tar que o cliente realize a auto-cura;
Seguras: os riscos de efeitos colaterais relacionados ao uso das técnicas devem
ser insignificantes ou totalmente ausentes;
Verificáveis: as técnicas devem prestarem-se a estudos sob condições científicas;
Teoricamente econômicas: os conceitos subjacentes às práticas devem adequar-
se à definição de uma teoria boa e parcimoniosa, além de guardar coerência com
as teorias da psicologia moderna, da nova biologia e da física quântica;
Validade de conteúdo: a técnica deve ser admissível por pessoas de diferentes et-
nias e orientações religiosas, educacionais, filosóficas ou culturais;
Empoderamento: a grande maioria das práticas promoverá a auto-aplicação, o
empoderamento e a cura natural através do emprego do sistema energético do
corpo da própria pessoa.
Estes norteadores ajudam a superar a idéia de que qualquer prática oriental é validade por
si mesmo, incentivando o diálogo e rompendo com a hegemonia de qualquer uma das formas de
saber. A idéia é conseguirmos oferecer as melhores contribuições das duas culturas para o cres-
cimento do ser humano integral. Exemplificando esta idéia com a acupuntura, Silva (2007, p. 428)
destaca:
13
Sobre a noção de “energia suil” sugerimos a leitura de Goswami (2006) e “Rumo a Uma Teoria Completa de Energias
Sutis” de Ken Wilber (http://www.ariray.com.br/saladeleitura.htm).
48
grande número de pesquisas que destacam seus mecanismos e benefícios (EKMAN, 2008; BE-
GLEY, 2008; GOLEMAN, 1999a, 1999b). A ressonância das temáticas desenvolvidas no abhi-
dharma com a física quântica (GOSWAMI, 2006) e novos modelos da psicologia (VARELA;
THOMPSON; ROSCH, 2003, GOLEMAN, 1996, 2003, WILBER, 2002) destacam sua atualidade.
Meditação
“Yogás citta-vrtti-nirodhah” (Sutra I-2 de Patañjali)
[...] permite compreender com maior facilidade que exercícios como es-
tes não são produtos apenas do pensamento, senão de uma totalidade psíquica
do indivíduo que, em especial, revela o autêntico alcance de tais práticas: graças
a elas o indivíduo acessa o círculo do espírito objetivo, o que significa que volta a
situar-se na perspectiva do todo (HADOT, 2006, p. 24).
14
Em sua origem no oriente, a meditação estava ligada à prática da Yoga , sendo esta pala-
15
vra derivada etimologicamente da “raiz yuj, „ligar‟, „manter unido‟, „atrelar‟, „jungir‟ [...]” . Contudo, o
seu sentido original de transformação de si através da “união” das dualidades e que permite “[...]
14
“O vocábulo yoga serve em geral para designar toda técnica de ascese e todo método de medita-
ção” (ELIADE, 1996, p.20)
15
Eliade, loc. cit.
49
16
uma morte seguida de um renascimento para outro modo de ser” parece que se perdeu no conta-
to com o mundo Ocidental, prevalecendo a busca por um estado alterado de consciência que con-
duza a um afastamento da realidade.
Em tibetano Yoga é traduzido como Naljor, no qual Nal significa normalidade e Jor significa
riqueza. Então, quando praticamos meditação, idealmente, o que supostamente estamos fazendo
é cultivar a riqueza da normalidade presente em tornamo-nos atentos, experienciando “[...] o que a
mente está fazendo enquanto ela o faz, estar junto com a própria mente” (Varela; Thompson e
Rosch (2003, p. 40).
Todas estas definições guardam entre si, a idéia de meditação como um estado alterado
de consciência, ou seja, um estado em que a pessoa que medita está fazendo algo para se afastar
de seu estado habitual de realidade mundano, não-concentrado, não relaxado, não-dissociado,
inferior. Mas na realidade a meditação é uma técnica para o despertar, para estar aberto e consci-
ente no aqui e agora do mundo vivido. Estando aberto para experimentar os fenômenos a nossa
volta com o olhar de lucidez e suspensão de prejulgamentos.
Os textos orientais tradicionais apontam dois estágios neste despertar: a) acalmar ou sua-
vizar a mente (em Sânscrito, shamata) e b) desenvolvimento do insight (em Sânscrito, vipashyana).
Nas práticas meditativas estes dois estágios são utilizados em conjunto, sendo o acalmar colocado
para tornar a mente capaz de estar presente em si mesma o tempo suficiente para obter insights
sobre sua própria natureza e funcionamento.
16
Ibid, p. 21.
50
Na prática clínica transpessoal a meditação é incluída geralmente como um recurso com-
plementar da psicoterapia, visando a flexibilização da mente e facilitando estados de consciência
mais claros e profundos. Contudo, o ponto central da meditação em Psicoterapia Transpessoal é
permitir a pessoa permanecer no presente, incorporada em mente/corpo e aberta para o fluxo de
todas as manifestações possíveis de contato com o mundo fenomenal.
As pesquisas cientificas sobre meditação aumentaram muito nas últimas três décadas,
Scotton; Chinen e Battista (1996) apontam que mais de mil estudos sobre meditação feitos em
laboratórios foram citados em revistas científicas, livros e teses acadêmicas. Testes feitos através
de eletroencefalogramas, tomografias cerebrais, dosagens de hormônios e inúmeros outros méto-
dos de pesquisa oferecem evidências dos benefícios da meditação. Análises detalhadas destas
técnicas mostraram importantes benefícios ao trato cardiovascular, ao cérebro e ao metabolismo,
além de provocar alterações benéficas no comportamento, na experiência interior, na percepção e
na imagem que temos de nós mesmos.
Wilber (1999) aponta que a meditação de um modo geral parece contra-indicada nas pato-
logias mais primitivas do nível pré-pessoal (F-1 e F-2) porque, nesses níveis, ainda não temos um
51
Self suficientemente estabilizado para suportar as experiências mobilizadas pela meditação. Jack
Engler, destacado por Wilber, indica, contudo, o fascínio exercido pela meditação budista para os
indivíduos limítrofes (F-2), que podem passar a usá-la como uma defesa para as vivências de es-
tados de “não-ego”.
A maioria das patologias do nível pessoal (F-4, F-5, F-6) se beneficia da meditação,
No meio psicológico, a psicanálise parece ser uma das escolas que mais veementemente
se opõe ao uso da meditação atrelada à terapia, sendo clássica a afirmação de Franz Alexander
que a meditação seria uma regressão narcisista. Wilber (1999, p.129) se opõe a esta visão afir-
mando:
postura corporal: sentar com pernas cruzadas na posição oriental, quando possí-
vel, coluna ereta, peito aberto, ombros sem tensão, corpo imóvel, relaxado e con-
fortável. Olhos fechados, abertos ou semi-abertos, dependendo da tradição. Tam-
bém de acordo com a abordagem, a língua fica voltada para a abóbada palatina,
evitando o excesso de salivação;
postura da fala: fala aqui tem o sentido de energia sutil, prana, bioenergia, seme-
lhante à manejada pela acupuntura. Em psicologia poderíamos associar com o or-
gônio de Reich ou a pulsão freudiana.
O controle da energia é feito a partir da respiração calma e abdominal, apenas se-
guir o ritmo natural da respiração é a recomendação básica.
postura de mente: aqui se pode realizar reflexões analíticas, como por exemplo
analisar um tema específico, buscando compreendê-lo nos mínimos detalhes. No
oriente esta prática é conhecida como Vipassana. Outro caminho de colocar a
mente em meditação é deixando-a em uma atitude aberta, observando o fluxo dos
pensamentos sem criar nenhum vínculo com eles. É uma atitude semelhante a do
observador transpessoal.
Abhidharma: tratado de psicologia oriental
52
O Abhidharma é um conjunto de textos que trata daquilo que no ocidente temos como psi-
cologia. Nele os níveis transpessoais de desenvolvimento da consciência são delineados, ofere-
cendo uma visão das emoções destrutivas e o percurso da formação da noção de identidade atra-
vés da “roda da vida”.
A “roda da vida” é um famoso quadro budista de uma roda com vinte e uma partes que es-
boçam o processo de surgimento das identidades mediante os renascimentos causais, ou seja “a
estrutura circular dos padrões habituais, o encadeamento no qual cada elo condiciona e é condi-
cionado pelos demais –, que constitui o padrão da vida humana como uma busca circular intermi-
nável na tentativa de ancorar a experiência em um self fixo e permanente” (VARELA, THOMPSON,
ROSCH, 2003, p. 121-122). O referido diagrama, chamado de “A Roda da Vida”, esboça uma cos-
mologia psicológica interior, um mapa de um processo interno e seus efeitos externos.
17
Esse quadro está praticamente na entrada de todos os templos no Tibete e naqueles que
foram construídos no Ocidente. Ele descreve vivamente como ficamos presos em um redemoinho
contraproducente de sofrimento, como esse processo pode ser revertido e como os budistas se
colocam num universo sempre cambiante de causa e efeito. Ao iluminar as causas das situações
de limitação e dor, a roda da vida revela como, pelo exercício de antídotos, podemos superar es-
sas situações, que são os seus efeitos.
Motivados pela ignorância das múltiplas separatividades realizamos ações virtuosas e não-
virtuosas, o que conduz a estados mentais diversos. As doze partes do aro externo da roda da vida
apresentam em detalhe os estágios de causa e efeito que levam às situações aflitivas da nossa
vida, servindo de guia norteador para entender os desafios apresentados no caminho de individua-
ção.
O surgimento dependente da existência cíclica começa com (1) a ignorância, que motiva
(2) uma ação. Ao final da ação, é estabelecida uma predisposição dentro da consciência, chamada
de (3a) consciência causal. Isto leva – depois de um tempo que pode ser longo – ao renascimento,
que é chamado de (3b) consciência resultante. O começo de uma nova vida é chamado de (4)
nome e forma. O estágio seguinte, o desenvolvimento do embrião, é chamado de (5) esfera dos
sentidos. Depois da formação do corpo, desenvolve-se (6) o contato; do contato, (7) a sensação;
da sensação, (8) o desejo; do desejo, (9) o apego; do apego, desenvolve-se no fim da vida um
estágio chamado de (10) existência, que é de fato o momento imediatamente anterior a uma nova
vida; a nova vida começa com (11) o nascimento e continua com (12) o envelhecimento e a morte.
18
Neste texto trataremos do primeiro elo da “roda da vida”, Avydia , pois é ele que nos im-
pede de reconhecermos nossa natureza ilimitada, assim como nos põem no ciclo existencial de
17
Vale salientar que a formação acadêmica no Tibete era realizada nos templos.
18
Vidya = sabedoria, visão, lucidez; Avydia = perda da visão.
53
insatisfação. Partindo das idéias de Padma Santem (2002), iremos apresentar a seguir as seis
características básicas de avydia: separatividade, criação, cegueira, experiência de mundo, experi-
ência de trancamento e perda da visão espiritual, com o intuito percebermos as contribuições que
as tradições orientais tem oferecido para o Ocidente através da psicologia transpessoal.
A experiência de separatividade
Utilizaremos o exemplo do “cubo” para introduzir a noção de separatividade conforme des-
tacado por Padma Santem (2002, s/p). Essa escolha deve-se, também, ao fato deste ser um e-
xemplo comum na fenomenologia (SOKOLOWSKI, 2004, p. 25-29) para explicar uma análise des-
critiva da consciência.
Vemos que o cubo está na folha de papel, pois, quando olhamos, vemos o
cubo na folha. Podemos observar ainda que nós estamos em um certo lugar e o cubo
sobre a folha de papel está em outro.
O cubo surge e temos a experiência de que ele está fora do nosso al-
cance. É muito fácil ver que esse não é o caso. Por que? Porque podemos rapi-
damente transformar o cubo em um hexágono novamente, ele não está separa-
do. Por outro lado, podemos transformar esse cubo em outro cubo. Se o cubo
estivesse em uma folha de papel, separado, não teríamos esse poder. Assim,
com essa palavra “separatividade” conseguimos introduzir a expressão “experi-
ência de cubo”. Temos a experiência de cubo sobre a folha de papel, temos a
54
experiência separativa, mas ela não é abrangente, não é segura. Na verdade,
essa separatividade não ocorre realmente.
Dessa forma, Padma Santem aponta que, pelo processo de separatividade, nos encontra-
mos presos à causalidade da “roda da vida”, contudo:
Experiência de Criação
A segunda característica ou atributo de avydia é a criação, a experiência da criação. Nesse
ponto, sujeito e objeto surgem inseparáveis.
Padma Santem destaca que a criação da experiência apresenta vários aspectos, sendo
mais fácil a percepção do surgimento do objeto do que do observador. Atribui esta dificuldade ao
automatismo de nos percebermos continuadamente como observadores separados do mundo.
Nessa perspectiva, “sem objeto, não há observador. Sem observador, não há objeto”, as-
sim, o observador surge ou co-emerge, como destacam Varela, Thompson e Rosch (2003), insepa-
rável do mundo, em uma interdependência.
55
de objeto e de sujeito. Tudo isso são „experiências de‟ (PADMA SANTEM, 2002,
s/p).
Estamos aqui sentados e vemos uma cobra, uma jibóia, entrando na sa-
la. Olhamos para a cobra e temos uma „experiência de jibóia‟, mas essa experi-
ência de jibóia não diz respeito propriamente à cobra que está entrando. Nós
temos uma experiência de acordo com a nossa matriz de jibóia. Nós olhamos
para a jibóia, avaliamos a distância e vemos as nossas possibilidades de fugir.
Temos, então, o aspecto de localização, temos o aspecto de paisagem e ainda o
aspecto de impulso de ação. Antes de raciocinarmos propriamente, já estamos
saindo pela outra porta da sala. Por quê? O impulso de ação surgiu! Mais tarde,
pode ser que desenvolvamos um outro tipo de relação. No entanto, estaremos
sempre sob o efeito de algo que é uma experiência. Uma pessoa que tem uma
jibóia domesticada em casa, teria uma reação diferente da nossa. Por que? A
matriz de jibóia dela seria diferente. Se ela fosse atacada pela sua jibóia, sua
matriz mudaria. Por que chamamos isso de experiência? Porque ela é móvel, é
plástica, podemos refazê-la, podemos recriá-la. Temos uma experiência separa-
tiva, temos a experiência de criação com esses itens vários e, ainda, temos três
experiências de fechamento. Todas as outras experiências são a contemplação
de como a cegueira se estabelece.
Experiência de Cegueira
A experiência de cegueira também pode ser percebida por meio do exemplo do cubo. Ago-
ra, Padma Santem (2002, s/p) introduz as letras “A” e “B” para indicar a experiência de percepção
de dois cubos, e assim nos diz que:
56
Quando vemos um cubo, não vemos o outro. Neste desenho, pode-se
ver dois cubos, um com vértice „A‟ na frente e outro com o vértice „B‟ na frente.
B
Estamos frente a uma cegueira convencional: porque vemos com o „A‟
na frente, não vemos mais com o „B‟ na frente. Quando vemos um, não vemos o
outro, mas esse processo fica oculto. Quando vemos um, nos ocupamos com ele
A e não nos damos conta que perdemos o outro. Esta é a primeira cegueira con-
vencional. Por que vemos um não vemos o outro. Quando vemos algo e temos o
impulso de ação correspondente ao que vemos, vamos nos movimentar segundo
aquela cegueira e vamos seguir assim.
Transpondo isto para a noção de sujeito que aqui estamos tematizando, fica claro que
quando priorizamos um dos aspectos do desenvolvimento humano, seja a cognição ou o afeto, por
exemplo, acabamos por criar uma cegueira semelhante. Um sujeito seria mais integral, quanto
menos cegueira apresentasse, de forma que seria cada vez mais inclusivo em todas as dimensões.
O conjunto de experiências de surgimento de “objetos” tal como explicado acima faz surgir
para nós a experiência de um “mundo inteiro”, no qual as nossas possibilidades de percepção fi-
cam estreitadas por uma “matriz sutil” que só nos permite pensar o que pode ser pensado e ver o
que pode ser visto dentro de um determinado contexto. Assim, a experiência de Loka produz uma
cegueira que nos aprisiona dentro de uma percepção natural.
57
em um sentido muito sutil. Quando uma cultura se estabelece, por exemplo, ela
se estabelece em um nível mais sutil do que o próprio acesso convencional, inte-
ligível, discursivo ou mental. (Op. cit., s/p).
A experiência de mundo brota de níveis mais sutis, nos quais o raciocínio lógico não inter-
fere, como as diferenças de alimentação entre culturas e o diálogo entre médicos tradicionais e
acupunturistas, segundo exemplo mencionado por Padma Santem (2002, s/p). Assim, por mais
justificativas que os últimos apresentem a respeito da fisiologia de canais sutis de energia do corpo
humano, há uma “matriz sutil” que impede a percepção, dificultando o processo de compreensão.
Loka é uma experiência que brota livre do raciocínio, mas essa experi-
ência não é dominada pelo raciocínio. A experiência de mundo é uma experiên-
cia que vem de um nível muito mais profundo. Quando reconhecemos o cubo,
essa experiência está se manifestando em um nível muito sutil. Não é uma opi-
nião de cubo que se manifesta, mas uma visão de cubo. Loka domina as mentes
que atuam junto com os sentidos físicos. [...] Nós temos cinco sentidos físicos e
um sentido mental. Loka define as possibilidades das experiências sensoriais.
Nós não percebemos que a experiência sensorial está filtrada por uma mente
específica.
Enfim, Loka funciona como filtros que impedem a percepção, requerendo um processo de
aprendizagem e também de abandono de padrões de visões já estabelecidos. Nesse sentido, o
uso da meditação e de outros ampliadores da consciência como um recurso terapêutico, apresen-
ta-se como um caminho de superação desta cegueira.
58
Um exemplo claro desse processo em andamento pode ser percebido no exemplo a se-
guir:
59
construímos diferente, dizemos “ele não é mais o mesmo!”. Atribuímos a função
a ele.
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61
Capítulo 2
Histórico
62
Capítulo 3
Dessa constelação de autores, Abraham Maslow (s/d) foi uma figura de destaque na orga-
nização e no desenvolvimento da Psicologia Humanista. Ainda que suas pesquisas sobre Motiva-
ção e Personalidades Auto-realizadas não gozassem, à época, de capilaridade científica nos gran-
63
des círculos acadêmicos, fato que o impulsionou na criação de uma Rede Eupsiquiana para con-
tornar estas dificuldades, Maslow (1970) e uma plêiade de outros psicólogos conseguiram firmar e
legitimar a Psicologia Humanista na APA.
Nessa vertente, não tardou para que grupos de psicólogos formulassem pesquisas e teori-
as sobre a estruturação e desestruturação da personalidade, enfocando o indivíduo em seu dina-
mismo pessoal de relação orgânica e subjetiva ao ambiente. A Psicologia “Personológica” ou da
Personalidade (HALL; LINDZEY, 1984) investigou os processos motivacionais adjacentes aos pro-
cessos organísmicos e psicológicos ligados entre si funcionalmente.
19
Rogers apenas se filiou à Associação de Psicologia Humanista em 1964. Até então, o criador da Terapia Centrada no
Cliente e da Abordagem Centrada na Pessoa, ao contrário de Maslow e May, não se vinculara diretamente à elaboração do
Movimento de Psicologia Humanista. Com a entrada de Rogers, devido as suas pesquisas reconhecidas e sua antiga presi-
dência na APA, houve um aumento do status acadêmico e científico dessa nova proposta em Psicologia.
64
Muitos estudos advindos da Psicologia da Gestalt serviram-se como fundamentação para
teorizações sobre personalidade, elaboradas por expoentes humanistas do calibre de Kurt Goldste-
in, Fritz Perls, além de Maslow e do próprio Rogers.
Ainda nesse campo, a Psicologia Existencial, encabeçada por May (1974), configurou-se
como uma perspectiva psicoterapêutica fundamentada diretamente pelas filosofias existenciais e
fenomenológicas para elaborar, nos Estados Unidos, uma nova atitude no relacionamento psicote-
rapêutico.
Essa última perspectiva distanciou-se das fundamentações organicistas presentes nas psi-
cologias norte-americanas para radicalizar a experiência interior e resguarda suas origens na da-
seinanalyse européia. Contudo, seu vocabulário, suas reflexões e atitudes, tendo se firmado em
solo norte-americano e havendo “impregnado-se” de numa nova tendência à psicologia e à psica-
nálise ortodoxas, findou por alinhar-se, em seus ramos de Psicoterapia, ao campo maior das Psico-
logias Humanistas.
Por fim, como alguns desdobramentos do campo psicoterapêutico, surgiram, ainda, novas
abordagens de trabalhos corporais, grupais, experienciais e de desbloqueio de tensões psíquicas,
muitas tomando como fundamentação os trabalhos de Wilhelm Reich e sua Bioenergética, o So-
ciodrama de Jacob Moreno e os T-Groups de Kurt Lewin (BOAINAIN, 1998).
Observamos, deste modo, que essas três concentrações de estudo (Psicologia, Filosofia e
Psicoterapia) estão no âmago da Psicologia Humanista. Todavia, muitas dessas incursões apre-
sentadas são equivocadamente apresentadas como sinônimas de “Psicologia Humanista”.
20
O pensamento de Buber foi enquadrado como existencialista pelos Humanistas. Porém, este situa-se mais como um
Filósofo Hassidista em que os temas sobre a Dialogicidade interessaram à Psicologia.
65
Ainda que, de fato, tenham servido como influências e fundamentações, podemos argüir o
que difere a Psicologia Humanista dessas respectivas perspectivas, ao ponto da APA estabelecer
uma nova Divisão, com um novo objeto de estudo (a experiência humana) legítimo ao conhecimen-
to Psicológico? Qual seria a inovação conceitual e metodológica que confere, ao Humanismo, uma
matriz própria e o distingue dessas perspectivas gerais, anteriores e posteriores?
Muito embora aos campos das Filosofias, não tenhamos, fundamentalmente, inovado a
partir da Psicologia Humanista, sem dúvida trouxemos, por outro lado, uma elaboração e desdo-
bramento críticos, voltados para a Ciência ortodoxa e para a Psicoterapia de vertentes positivistas,
expandindo suas reflexões para outros campos.
Se pudermos, contudo, falar de uma grande inovação, tal faceta deu-se predominantemen-
te no campo da Psicoterapia, seja como teoria, método, prática, pesquisa e ética. Em seu desen-
volvimento e suas aplicações, a Psicoterapia e os Psicoterapeutas (sobretudo, Psicoterapeutas de
formação científica na Psicologia), graças às pesquisas e aos embates políticos de Rogers, deixa-
ram de ser exclusividade da medicina e da psicanálise, e passou a tornar-se parte do exercício,
domínio e reflexão da Psicologia, permitindo, ulteriormente, uma abertura explosiva para o desen-
volvimento de novas Abordagens.
Sobre essa nova prática e concepção galgadas, Maslow e Mittlemann (1965) frisam que as
metas dinâmicas da psicoterapia focam-se: no aumento dos sentimentos de auto-estima e segu-
66
rança, na libertação das inclinações para se manifestar, maiores insights, maior aceitação de si,
integração e tendência para metas positivas.
De tal modo,
Posto que o homem é um organismo que ocupa um lugar mais elevado na escala de de-
senvolvimento intelectual, uma das finalidades de toda psicoterapia é liberar as funções inte-
lectuais até suas mais plenas potencialidades, ou seja, lograr que o indivíduo integre suas ativi-
dades emocionais e intelectuais numa unidade harmoniosa (MASLOW; MITTLEMANN, 1965, p.46,
grifo nosso).
Muito embora estes avanços tenham legitimado um lugar acadêmico e clínico para a gera-
ção inicial da Psicologia Humanista, foi o mesmo Maslow (s/d), ainda na década de 1950, que
também aludiu que essa nova Psicologia, ainda recém-criada e buscando oferecer respostas sis-
tematizadas a uma série de desafios culturais, já continha, em si mesma, o prenúncio ou o embrião
para desenvolver-se através de uma nova proposta para além dos aportes Humanistas já ressalta-
dos.
Nessa perspectiva, Maslow (s/d) construiu um cenário de propósito onde figura o desen-
volvimento de um novo campo fronteiriço à própria Psicologia Humanista, um campo que ele proje-
ta intuitivamente como além de uma Psicologia que ele mesmo ajudou a construir (Humanista) e
que, à época, dado o frescor recente de sua concepção, não se tinha clareza a respeito de suas
delimitações.
67
Como superar e consolidar um novo campo, que não se contrapõe ao anterior mas avança
em relação aos seus escopos, quando este campo originário ainda não poderia ser apreendido em
sua robustez e arquitetura de intervenções? Maslow, nesse contexto escasso de respostas, inscre-
ve a Psicologia Humanista como uma Psicologia das Transições, enquanto que a sua nova filha,
uma Psicologia denominada TransHumanista, possibilitar-nos-ia satisfazer nossa “necessidade” de
“algo maior do que somos”.
Maslow prestou-nos um ajuda de via dupla: autorizou o Humanismo como uma ferramenta
própria das Travessias e das Transições, cabível aos Tempos das Mudanças, a partir de um lugar
inclusivo das experiências humanas, que não era, por isso mesmo, dada sua abertura irretorquível,
suficiente para impor-se como uma resposta razoável à “promessa de desenvolvimento de uma
filosofia de vida, de um substituto da religião” (Maslow, s/d, p.12).
68
vida diferenciados, existências que vão assumindo caminhos e contornos diferenciados, muito
embora permanecendo ligados, indelevelmente, por seus pontos comuns de nascença.
Ainda que essa nova perspectiva não buscasse opor-se à Psicologia Humanista, mas, na
verdade, dela valer-se, incluindo-a em sua ampliação e expansão próprias, seguiram-se, na práti-
ca, o desenvolvimento paralelo de uma nova visão de Psicologia com outra leitura de Ciência, de
Mundo e de Humano. Ampliou-se, por completo, muito rápido e dramaticamente, o repertório de
experiências “centrada mais no cosmo do que nas necessidades e interesses humanos” (MAS-
LOW, s/d, p.12).
69
Vejamos, no próximo tópico, utilizando o exemplo de Carl Rogers, como podemos encon-
trar, a partir do fundamento da Tendência Formativa, uma fronteira conceitual e experiencial da
Psicologia Humanista que dialoga com uma perspectiva TransHumanista.
(1) Carl Rogers é legitimado pelos inúmeros representantes deste Movimento como
um dos mais importantes expoentes da Psicologia Humanista, freqüentemente
citado como um dos pesquisadores mais relevantes no trabalho em Psicotera-
pia, além de ser reconhecido e respeitado pelas outras diversas abordagens
em Psicologia. Neste sentido, congrega, em seu trabalho, um amplo público
que conhece, lê e debate, ainda que difusamente, as suas idéias e teorias;
(2) A sua profícua produção científica, distribuída nas mais diversas áreas de atuação,
juntamente com a vasta literatura produzida por colaboradores diretos, seguido-
res e atualizadores do seu pensamento, mesmo após a sua morte, oferece-nos
um amplo material teórico e prático, bem sistematizado, que nos possibilita uti-
lizar essa perspectiva como uma distinta representante da Psicologia Humanis-
70
ta de uma forma precisa e coerente; e, por último, sendo talvez o ponto mais
importante;
Nascido em 1902, numa cidade nos arredores de Chicago, Rogers com doze anos se mu-
da com a família para uma fazenda, já que seus pais tinham a “intenção oficial de fazer uma agri-
cultura „científica´” (HIPÓLITO, 1999). Já nesta época, Rogers iniciava sua relação empírica com a
ciência através de pesquisas noturnas para investigar e sistematizar a vida dos vaga-lumes (RO-
GERS, 1980). Não sem razão, Rogers matricula-se, em 1919, influenciado por sua experiência na
fazenda, no curso de Agronomia na Universidade de Wisconsin. Estamos, portanto, nos dez anos
que antecedem a finalização dos seus estudos de Doutoramento, em 1928/29. Uma primeira dé-
cada onde sua vida irá migrar por várias experiências.
Da sua experiência com uma educação libertadora, Rogers transfere-se para o Teacher´s
College, da Universidade de Colúmbia, iniciando, oficialmente, sua formação como Counsellor e
Psicoterapeuta. É nesta mesma Universidade que ele finaliza seu Doutorado. Durante doze anos,
contados após a obtenção do seu título acadêmico máximo, Rogers segue realizando práticas e
pesquisas no Centro de Observação e Orientação Infantil da Sociedade para a Prevenção da Cru-
eldade Sobre as Crianças.
71
Este período foi de extrema importância na elaboração de uma prática e perspectiva singu-
lar no campo da Psicologia. Todavia, Carl Rogers apenas percebeu que havia criado uma nova
abordagem quando proferiu a palestra “Novos Conceitos em Psicoterapia”, em 1940, na Universi-
dade de Minnesota.
É importante observar que, dos anos de 1929/30, 1940 até 1950/60, com o surgimento do
Movimento Humanista, Rogers já está construindo seu pensamento por quase três décadas de
trabalho acadêmico. A partir daí, aprofundando na Abordagem que, inicialmente, foi denominada
de Não-Diretiva, Rogers inicia uma série de pesquisas, procedimentos de investigação e refina-
mento metodológico que irão ter influências marcantes em seu pensamento e na Psicologia Ameri-
cana em geral.
Uma das importantes descobertas destas pesquisas foi a constatação de que os clientes
em psicoterapia remetiam-se, recorrentemente, a um “Si Mesmo” aparentemente substancializado,
tornado referência para a sua experiência. Rogers e seus colaboradores utilizaram o conceito de
Self para caracterizar essa experiência de coerência de Si, afirmando neste conceito que o Self
possui uma tendência inerente para se auto-regular.
Esta dinâmica relacional entre Self e Organismo – que irá derivar conceitos, por exemplo,
como processos de Congruência e de Incongruência – será mantido como um aspecto preponde-
rante até o momento teórico em que o Self passa a ser compreendido não enquanto estrutura
substancial, mas um fluxo relacional simbólico.
Como afirma Seeman (2008), “enquanto a ênfase inicial na teoria humanista tendia em di-
reção ao desenvolvimento do Self como uma entidade, uma ênfase emergente tem aumentado o
foco na intersubjetividade e nos aspectos relacionais da psicoterapia” (p.41, grifo nosso).
É através da contribuição de Eugene Gendlin (IKEMI, 2005) e sua críticas filosóficas à con-
cepção do Self enquanto entidade/estrutura que Rogers irá alterar a visão geral sobre a personali-
dade, caracterizando-a, posteriormente, enquanto um processo experiencial ao invés de uma con-
juntura estrutural.
72
próximos, Rogers passa a desenvolver diversas outras práticas, principalmente no que tange a
trabalhos com novos grupos por meio de novos enfoques.
Rogers não demorou em aplicar as idéias e conceitos vislumbrados nesta prática em me-
todologias terapêuticas inovadoras, como os chamados Grandes Grupos, contando com mais de
500 pessoas, e experiências de formação de Comunidades Centradas na Pessoa, realizadas num
tempo bem mais prolongado do que apenas um final de semana (ROGERS, 1977).
A partir da sua atividade nestes grupos, Rogers passa a delinear com maior precisão con-
ceitual uma qualidade de experiência que já se fazia observável desde o início da sua prática en-
quanto terapeuta. Ele afirma:
Rogers irá, então, formular que não existe apenas uma Tendência inerente ao ser humano
para se modificar, se adaptar e se tornar mais complexo, em grande parte a partir de um Self auto-
organizado, como postulado na Tendência à Auto-regulação; como também não existe apenas
uma Tendência para a atualização dos potenciais inerentes em todos os seres orgânicos, como
afirmado na Tendência a Atualização; mas existe, perpassando essas Tendências, existe outra
convergência de forças, frequentemente desconsiderada no trabalho terapêutico, elucidada como
uma Tendência Formativa presente nos níveis orgânicos e não-orgânicos, “uma tendência criativa
poderosa, que deu origem ao nosso universo, desde o menor floco de neve, até a maior galáxia,
da modesta ameba a mais sensível e talentosa das pessoas” (ROGERS, 1980, p. 134).
73
Destes conceitos, desdobra-se o substrato teórico mais importante da Abordagem Centra-
da na Pessoa: uma compreensão das relações organísmicas entre as três tendências da vida que
se manifestam no indivíduo humano. São estas, por assim dizer, as tendências ou os ganchos com
os quais se operam os loops experienciais em uma Psicoterapia das Transições e das Travessias,
uma Psicoterapia Humanista, conforme o legado “maslowiano”.
Neste sentido, se é cabível afirmar que a Tendência Formativa nos traz aspectos qualitati-
vos experienciais do Mistério, da expansão cósmica, do fluxo indiferenciado da Vida, a Tendência
a Auto-Regulação, enquanto uma faceta ou tendência desta, exercendo sua função de absorver
esta experiência em contornos de manutenção, no contexto das múltiplas relações concretas do
organismo – ou seja, na sua função de singularizar e diferenciar – necessariamente está atuando
na experiência, em maior ou menor grau.
No geral, poderíamos afirmar que Rogers mantém, a partir de uma perspectiva consolidada
em Psicologia, interfaces de diálogos robustos com outras disciplinas. Devido à conjunção dessas
disciplinas, numa perspectiva de justaposição de áreas de conhecimentos diversas entre si, pode-
mos afirmar que a ACP sustenta-se num território multidisciplinar (PIRES, 1998). Implica dizer, em
outras palavras, que a Psicoterapia Humanista, promovida no âmbito da ACP, convoca ao diálogo
entre estes diferentes atores teóricos.
Trânsito livre entre as disciplinas, trocas abertas e complexas, entretanto, não pressupõe a
dissolução das fronteiras entre estes diversos saberes. Neste mesmo exemplo, o do conceito de
Tendência Formativa, fica evidente que estes métodos e conceitos foram transpostos resguardan-
do suas particularidades. Significa essa compreensão aludir que estas influências plurais foram
incluídas, interligadas e “digeridas” a partir de uma territorialidade psicológica da Abordagem Cen-
trada na Pessoa, mantendo uma coerência interna interdisciplinar.
74
A evidência de que este conceito foi incluído de tal maneira nas fronteiras da Psicoterapia
e da Psicologia, a partir de uma perspectiva eminentemente científica e de um grau particular de
sofisticação conceitual, sem diluir os contornos que separam os diferentes saberes, encontra-se na
seguinte afirmação de Ellingham (2002):
Cena 1.
Ambiente terapêutico de grupo, espaço de workshop intensivo e residencial. Algumas trinta e cinco
pessoas, adultos com idades e formações variadas (estudantes e profissionais de nível superior),
reunidos em um salão de hotel. Paisagem agradável, no litoral tropical nordestino. Alguns mari-
nheiros de primeira viagem, outros poucos mais ou menos familiarizados às remexidas vertiginosas
de grupos terapêuticos. Uma larga parcela de gente que, ao certo, não se via dentro ou fora da-
quele grupo – estavam ali, talvez, para descobrir suas próprias expectativas que pareciam diluídas
e difusas. Facilitadores, psicólogos, de gerações diferentes, apresentam-se, breve e gentilmente,
externando o suficiente para somente localizar, no grupo, palavras que transmitissem sua disponi-
bilidade e alegria comedida. Silêncio. Não há uma agenda. Não há currículos nem programas, nem
destinos, nem jornadas. Não há o silêncio como instituição, não há o requisito do registro, do diálo-
go, da simpatia, da generosidade. Não há testemunho de compreensões. Não há um ordenamento
para, quer mesmo, que o “não há” antecipado seja mantido como um processo duradouro. Não se
quer dizer que não há correntezas, redemoinhos, presenças. Duas luas, dois sois, quarenta e pou-
cas horas de convivência, estrelas e mar, alternados entre movimentos espontâneos que ocupam
a grande sala principal e os diferentes espaços que a mobilidade individual alcança. Deslocamen-
tos físicos e lingüísticos vão se dando – tímidos e exíguos. Uma ansiedade zombeteira, impaciên-
cia, risos de incompreensão e de impossibilidade de sustentação. Rubores. Dia seguinte, uma
mulher, com suas cinqüenta e pouca, ou talvez sessenta primaveras. Maravilhada com o lugar e a
beleza abundante do horizonte, externa sua necessidade de relembrar e compartilhar as paisagens
saudosas que ficaram para trás, as lembranças de sua casa e dos entornos no seu lugarejo. Joa-
chim, como outros, mantém-se numa sintonia mista de curiosidade e interesse cordiais. Nada de
extraordinário, aparentemente nada de proposital. Ainda desconhecidos, indiferença travestida.
Uma escuta que oscila com os sussurros e ressonâncias da experiência terceira em si mesmo, no
seu corpo de memórias, com suas provocações, desafios e inesperados. Jocélia (nome fictício), a
madura senhora, menciona algumas pedras grandes, as velhas montanhas. Fala de uma Floresta,
situando-a em um território de Reserva Ecológica. Algo se emaranha nos pensamentos do Sr.
´Quim, suscitando uma fala de conexão e alusão à experiência anterior, descrita pela Sra. ´Célia.
Na voz irrompida do rapaz, fez-se escutar imagens recém chegadas de um lugar estranho, muito
embora confortável para ele, que parecia também incluir árvores grandes e velhas, tão grandes e
tão moventes na copa estrelada que nos faziam também sentir, nós, audiência, que se tratavam de
animadas pelo vento. Árvores gigantes, como espíritos antigos encravados nos sulcos de sais e
líquidos da terra, daqueles intangíveis pelo abraço de um homem, tão largas são as proporções de
suas existências. Escutávamos, como que através da retração acurada de um pintor impressionis-
ta, os movimentos de pedras e pássaros que o passar da história impunha o nascer e o morrer. A
21
Vinhetas são retratos antropológicos, freqüentemente empregados para honrar aos detalhes de uma cena cultural com-
plexa apreendida através de observações de campo e outras técnicas da metodologia etnográfica. Com sua variedade de
recursos para as Ciências Humanas, os contornos de suas descrições foram ampliados no trabalho de Harry Wolcott e de
Ruth Behar em suas distintas propostas de Antropologias em Primeira Pessoa. Tratam-se, pois, de vinhetas que permitem a
implicação analítica, sensível e estética daquele que se insere no contexto pesquisado.
76
mulher, atenta ao diálogo emergente de suas palavras originais, meio que acolhe um vínculo lan-
çado de interesse e de cumplicidade. Ela confirma: de fato, lá existem tribos sagradas, remanes-
centes de aborígenes. É uma Reserva onde criaturas mágicas também habitam os mitos indíge-
nas. O diálogo precipita-se em gotejos de intensidades que adentram a sala, semelhantes, talvez,
à invasão de mensagens cristalizadas de um passado estacando, de um fluxo represado. Os olhos
afinam-se entre si, e qualquer coisa da ordem de uma temporalidade suspende-se. A distância
entre os corpos esvanece. As sombras no olhar aprofundam-se? Os facilitadores morrem para as
distintas realidades abertas – não sabem mais onde todos estão; imersos, quem sabe, grupo e
facilitadores, em seus caminhos próprios. E por alguns breves minutos a tempestade de fatos e
ocorrências mentais provocam inundações de sentimentos e imagens pessoais. A mulher comple-
menta, referindo-se ao nome e à experiência ancestral do lugar: é o “Vale das Feridas” (nome fictí-
cio), informou-nos. E como um símbalo cuja melodia atravessa realidades espessas, distintos per-
sonagens aprochegam-se em suas almofadas azuladas que se tornaram abrigos insulares nesse
oceano desconhecido. O ar parece também mais denso, impondo respirações mais curtas – bus-
cas, em vão, por uma reserva gasosa que não se localiza em crateras tão profundas. “Eu vejo os
Povos da sua Terra”, exclama Joachim, utilizando-se de uma língua nativa ao coração e à cultura
de Jocélia. E prossegue a narrativa, visivelmente mobilizado em seu corpo, com lágrimas que frou-
xamente banham sua pele e suavemente incandescem suas palavras. Como uma locomotiva pas-
sante e extensa, o relato não é interrompido em nenhum momento, sem que para isso fosse hipo-
teticamente necessário impor um controle arbitrário à expressão viva das ondas e das águas que
vertem dos seus dois mundos, seus dois globos (oculares). A mulher, do outro lado de uma sala
cumprida, muito embora resguardada pelo barulho do ar-condicionado, também se encontra im-
pactada por um calor proximal de natureza muito singular. Ambos, ´Célia e ´Quim, parecem cami-
nhar sobre um mesmo solo, aproximados pela força de um mesmo cajado, de um encontro trans-
dimensional. Vários conteúdos, em um processo de trinta minutos, são abordados e demarcados
nessa experiência de partilha: falam-se de todos que foram extintos na Floresta, do rufar de folhas
e de espingardas, de irmandades entre sangues e raças, lá e cá, e longe de qualquer possibilidade
de apreensão linear, as falas salteiam entre pontes intuitivas e ampliadas, de pertencimento con-
junto e de efetiva relocalização em território-outro impossível de ser delimitado. Pedidos mútuos e
amiúdes de paz, súplicas de redenção pela dor infringida pelos corpos de colonizadores são formu-
ladas sob a descarga de uma emoção aguda e torrencial. (Posteriormente retomado, alguns parti-
cipantes observam-nas como relatos de pico, de momentos incríveis, situações de unidade e de
comunhão incomuns). A mulher, entregue à força desse encontro entre experiências e situações
não antes descritas, menciona a sincronicidade do fato de, ela mesma, em gerações passadas,
que não mais se fazem observáveis em seu fenótipo, descender de parentes remotos daquela
“Floresta de Feridas”. Diz, afinal, a genealogia da mulher que, ela própria, todas as noites, implora
o descanso e a cura pelas dores daquelas gentes, dores que ela própria e sua ascendência perpe-
tuaram. Joachim compartilha do sentimento, recita poesias, e os canais de lírios e cristais dos seus
olhos não cessam. Facilitadores emudecidos. Participantes tomados por silhuetas de não confor-
midade. Rearranjos nos corpos, outros afluentes de lágrimas aportam nesse mar comum. Jovens e
velhos, paralisados? Processo reacomodado nos respectivos corações e experiências, intervalo
para almoço. Do lado de fora, questionado sobre a posição teórica que nos abalize o ocorrido, um
participante relembra que, nos espaços de Grandes Grupos (Humanistas), que superam a possibi-
lidade de uma terapêutica semanal e da pontuação localizada, de fato ocorrem mudanças e resso-
nâncias entre os diferentes processos. Entretanto, por não se tratar de um movimento focado na
mudança de questões próprias da Personalidade (v.g., uma dificuldade específica), em vista de
promover a Atualização de situações conflituosas, no ambiente do Grupo é também possível um
florescer cuja qualidade é propriedade de uma Mudança Formativa. E o mesmo participante conso-
lida sua observação articulando que, nas experiências Formativas, para além de uma mera recon-
77
figuração de objetos do manejo da Personalidade (com suas prioridades e refrações), laços ampli-
ados entre as expressões e fluxos organísmicos ressoam entre si, tangencialmente às captações e
produções de significados imediatos da personalidade. Nestes casos, processos de intensidades
profundas podem surgir e manifestar seus orbitais, mobilizando atores e recursos, sem que isso
seja catalisado por uma travessia convencional da identidade, das suas escolhas e da personali-
dade como um todo. Existiam, sim, temas prévios que estavam disponibilizados pela personalidade
para o contexto do trabalho terapêutico, seguindo a confirmação atenta de Joachim e Jocélia, que
acompanhavam o círculo da conversa. Contudo, para a surpresa de ambos, os desdobramentos e
os contextos experienciais que foram suscitados, naquela relação possibilitada entre Joachim e
Jocélia, resgatou e movimentou dimensões que não estavam, se quer, acessíveis às suas consci-
ências. Alguns, aspectos, dos quais, não sabiam se quer existir. E mais do que isso, o processo
transcorreu-se por meio de um formato ou qualidade de movimento que parecia “não ter a ver” com
a capacidade de controle ou intervenção de ambos – sendo, portanto, melhor descrito como um
mergulho ou a participação de um fluxo.
Cena 2.
Joachim, quinta-feira, cedo de uma manhã convencional. Horário que antecede início do trabalho.
Direção sem esforço para a sala de psicoterapia. Há três anos esse é o seu domicílio semanal de
realinhamentos experienciais. Porta branca cruzada, cheiro de uma essência de carvalho; do lado
direito, um painel que recobre toda uma parede e paisagens de Floresta. Duas poltronas, água e
aquário, móvel, livros, janela e almofadas recostadas. “Você hoje está aqui ou ali?”, pergunta a
terapeuta, após as saudações e acolhidas habituais, com a mão a sinalizar o sofá (largo, com uma
manta) ou uma maca (como que a de trabalhos de acupuntura). Com um leve sorriso, as mãos de
Joachim tocam a maca. Sorriso de saudade, talvez. Está coberta com um lençol fino, de um ama-
relo delicado. Escuta-se o lavar das mãos da mulher não alta, em um pequeno banheiro, enquanto
Joachim dobra sua camisa, deixando-a sobre a cadeira. Deitado, sobre a maca, de peito nu e com
pelos, as correntes elétricas do espaço são reduzidas (ar-condicionado, motor do aquário, luzes,
celular, todos desligados). Estamos, por assim dizer, numa zona de penumbra e de confiança,
laterados por quadros e paisagens arquetípicas. “Joachim, vamos começar”, anuncia a terapeuta.
Mulher de olhos profundos, perfilando uma amorosidade que não se torna invasiva. Criatura dinâ-
mica, viajada, articuladora de vários Movimentos Sociais, espaços de cuidado e atenção em saú-
de, participante de várias associações e contextos de formação profissional de novos terapeutas. A
terapia já começou. Alguns sons foram formulados, calibrados com exímia maestria para ocupar a
sala inteira e não atravessar o pórtico, infiltrando-se os corredores externos e assépticos daquele
condomínio. Não há melodia prévia, nem ritmos identificáveis. Não há palavras e talvez poucas
letras. É um som também doce. Parece alguma coisa da ordem de um convite sonoro. Um convite
para Joachim adentrar o seu espaço terapêutico, um convite para abandonar a rua, um convite de
preparo, um rito como símbolo de início. Jamais saberemos ao certo: estamos imersos, afinal, nos
silêncios e nos espaços dilatados entre ruídos mais e mais escassos. Os dedos da terapeuta mo-
vimentam-se no ar, ensaiam padrões ou sincronias, parecem tocar, abrir, retirar ou empurrar algo
nesse espaço intangível e não identificável que plaina sobre as vizinhanças do corpo de Joachim.
Um único dedo realiza acrobacias e com esse mesmo dedo, na vertigem de uma mão que despen-
ca lentamente sobre um mesmo eixo vertical dessa reta percorrida no invisível de um dedo, indica-
dor, direito e esquerdo por vez, a mão estaciona a alguns poucos centímetros de um corpo que se
mantém intocável. É um corpo que se torna anteparo, que recebe o calor direcional invisível de
mãos que jamais o viram na intimidade sensorial. Corpo como zona costeira onde colidem as on-
das e freqüências da eternidade. Contrações involuntárias no corpo, reajustes, espasmos, e a mão
guiada pelas direções e pontos firmes de um dedo, executam uma sinfonia completa de marcações
78
no espaço, ancoradas, uma a uma, como super-cordas e espirais, que pendem da eternidade so-
bre pontos de unificação à vida do corpo. Vários pontos nesse corpo, do tórax, pés, mãos, pernas,
pescoço, às vezes também na cabeça. Cordas de uma harpa que, uma vez estabelecidas, uma por
uma, distendidas entre o sutil das aberturas e a densidade das localizações corpóreas, tornam
possível o percorrer tácito de um dedilhar suave que se acopla, aos poucos e vagarosamente, aos
ritmos impronunciáveis que vão ganhando um sentido e uma melodia somática, muito embora i-
naudíveis. O corpo, intacto pela realidade física, adormece em uma transição que não o desabilita
da percepção – é como se transcorresse, na observação de Joachim, um sonho lúcido que se pro-
jeta sobre um corpo absolutamente mergulhado em calafrios e dormências. Ainda consciente, mui-
to embora aberto para mundos, paisagens e visualizações, às vezes insights, respostas, procedi-
mentos, guianças, a terapêutica transcorrida parece demarcar, no corpo ileso, uma cartografia
visual para caravelas distantes. De longe, as naus cósmicas parecem seguir o destino de estrelas
criadas pela explosão de calor dessas mãos de luz. Mãos que fazem parir estrelas-guia no corpo
de um cliente. Estrelas de referência, sinalizadores dérmicos, pontos de travessia. Em cinqüenta
minutos, intervalo médio dessas jornadas semanais, às vezes suficientes para uma demarcação,
às vezes tempo dilatado a ponto de ancoragens completas, e aterrissagens, desembarques reali-
zarem-se no mundo ampliado que se abre na tela da consciência e na experiência direta do clien-
te. Palavras de ordem, duas ou três vezes são anunciadas, ao longo da sessão, como um veleja-
dor experiente que anuncia ou registra, no discurso, a passagem realizada por uma fenda glacial
ou o prenúncio de um cenário possível na visada da luneta. Outra sinalização lançada, dessa vez,
não para aqueles do além-mar, mas para uma consciência concreta que, aos poucos, vai retor-
nando. Ela, a consciência que, outrora, partiu por si mesma, ou, quando muito, embalada por uma
sonata cósmica de mãos invisíveis. “Joachim, acabou. Aos poucos, no seu tempo, você pode ir se
levantando”, comunica a terapeuta. O cliente senta-se, recebe um copo de água, enquanto ouve
“existe alguma coisa desse processo, desse momento, que você gostaria de compartilhar?”, e es-
cuta-se o eco distante de um “não”. A camisa retorna para o corpo, como proteção e mortalha de
algo que parece ter-se ido. Assinatura no prontuário, como registro de uma presença: data, nome,
descrição do procedimento a parte. “Até a próxima semana”. Joachim reencontra-se com as esca-
das que o trouxeram, poucos degraus e a ascese para um mundo de relações profissionais. Pare-
ce uma longa viagem, mas foram apenas degraus, e uma modesta escada que o separa do intan-
gível de uma mão, do bailar de um corpo que parece exercitar sintonias sutis, como num ballet de
oscilações e vórtices, do céu e da terra, aninhados em um centro ou plexo que não é, apenas, de
equilíbrio corporal. As luzes foram reacesas, mas Joachim vai levar um tempo considerável para
retomar as cores, as formas e as direções há pouco deixadas para trás. Às vezes, levam minutos,
e ele precisa comer; outras vezes horas inteiras, mas já houve dias e noites completos, vivencia-
dos como jornadas facilitadas por aquilo que apenas com olhos fechados Joachim descreveu. Às
vezes, sonhos chegam, miragens dissolvem-se. “Beba água, Joachim, vai te ajudar a integrar o
processo”. Quem o tocou, quando não há toques? Quem o visitou, quando não há portas, mensa-
gens e encontros? Quem o acompanha, quando não há presenças visíveis e línguas distinguíveis?
É preciso dar nomes para isso? A intervenção parece transcorrer no espaço-tempo outro, e apenas
o corpo acolhe os registros, ou os sintomas tardios de alhures. A terapêutica funciona a despeito
do entendimento sobre a mesma? Que descrição de vida e de homem comportaria uma interven-
ção e uma forma de cuidado que, uma vez não realizada pelas mãos e comportamentos de ho-
mens, também não marca e não transita pelo humano – mas a eles, os dois humanos, terapeuta e
cliente, parece deixar um rastro inalienável, inevitável, um exaurimento de convivências que não
podem ser marginalizadas? Com quem, além de um painel para as Florestas? Com o quê, além
dos peixes de um aquário, quando tudo, ademais, foi desligado? As forças das pedras, do próprio
granito que asfalta o chão da sala? O quê impõe o estado intermediário de sonâmbulo, e o quê
resgata Joachim de lá? Nestes meses de terapêutica, Joachim não se recorda de ter dirigido qual-
79
quer solicitação de explicações e fundamentações à terapeuta. Questionado a esse respeito, expli-
ca-me ele que os mapas do seu corpo são mais reais e visíveis que suas tatuagens imaginárias e
feridas de qualquer passado recente. E com estas marcas e localizadores tenta construir intera-
ções e transições entre realidades tomadas como paralelas. Sua experiência, que às vezes não
formula um caráter de inteligibilidade para tais travessias, demonstra uma capacidade resiliente,
madura e criativa de não se precipitar banalmente em busca de perfazer substratos intelectuais
que, eventualmente, já constatou amadurecem em ciclos próprios, como se nas estações apropri-
adas de seus movimentos organísmicos. Racionalidades e desdobramentos conceituais só acon-
tecem no Outono Organísmico. Na Primavera, Joachim descobriu, existe apenas, somente e radi-
calmente, beleza farta e abundante, para inebriá-lo de fortaleza e nutrir de confiança. Mas há tam-
bém o frio, onde a morte visita, provoca rachaduras e fissões, e o que de verdadeiro subsiste e
regenera-se no verão, enquanto que o excesso ao simples liquefez-se, tragado pelos córregos.
22
O objetivo dessa subseção não é, considerando que também a estrutura de páginas não comportaria, realizar diagnósti-
cos epistêmicos mais duradouros para horizontes do conhecimento mais amplos, no que viria a concernir, por exemplo, às
argüições de fundo mais genérico (e não menos legítimas) acerca da compatibilidade dos relatos acima transcritos enquan-
to categorias válidas de um tipo específico de modelo vigente de “ciência”, ou, mais particularmente, contextualizá-los nos
debates a respeito das “psicologias” e suas pretensões nacionais, ou, ainda, problematizar sua validação como metodologia
“psicoterápica”. Nosso objetivo, realmente mais modesto, foi o de instigar a curiosidade do leitor, deslocando-o de um olhar
convencional a partir dos relatos nos respectivos dois campos, conforme as impressões e vicissitudes de um colaborador
(Joachim). Esse texto também assume a vocação de permanecer suas raízes na ciência da Psicologia e derivar sua racio-
nalidade do campo da Psicoterapia, numa adesão iconoclasta que refrata o tratamento preponderante da experiência tera-
pêutica alheia às suas teorias de origem. Não obstante, por não termos a motivação de realizar um estudo comparativo
mais denso e específico entre Escolas, Abordagens ou Modalidades de serviço terapêutico, optamos por restringirmo-nos
às discussões no campo de duas das Forças/Correntes tradicionais nessa grande arena das Psicoterapias Americanas do
século XX. Não iremos, portanto, detalhar cada modelo terapêutico, tanto menos contrastá-los entre si. Tais empreendimen-
tos, a nosso ver, exigiram peritos de uma e de outra Força/Corrente cujas expertises avalizassem uma caracterização de-
longada e minimamente adequada. Nesta oportunidade, para efeito do recorte proposto, nossa seleção buscou conceder
voz ao relato pós-colonialista de duas experiências terapêuticas não-hegemônicas em seus contextos nativos, por enten-
dermos que tais enquadramentos vivenciais melhor testemunhariam acerca das teses com as quais estaríamos discorren-
do.
80
nestes recortes, que se trata de cenários que viabilizaram a oferta de uma continência psicoterápi-
ca para o funcionamento de redes ampliadas no circuito experiencial do cliente.
Foram tessituras, inclusive, das quais em uma delas se foi capaz de desdobrar-se nos es-
paços atuais da Psicologia Humanista – por exemplo, sob um conceito de ampliações e acopla-
mentos formativos, segundo a teoria de Carl Rogers.
Se for verdade que a mera qualificação de uma experiência, a partir de seus adjetivos
(“ampliada” ou não), tornou-se insuficiente para corretamente localizá-la em um ou outro território,
por sabermos que vários nomes e conceitos seriam possíveis (na verdade, infinitos deles) adota-
mos, entretanto, uma margem política em conformidade às ilações de Santos (2008) para que os
nossos saberes críticos não aquiesçam à imposição ideológica que reduz suas propostas não-
hegemônicas a meros apensos, derivativos ou complementos dos primeiros. Nos comentários des-
se analista, “há um déficit de comunhão e de presença no modo como a ciência moderna nos in-
terpela e se nos apresenta. Ela embrenha-se num auto-exílio arrogante para não ter de enfrentar o
que nela não cabe e é valioso” (SANTOS, 2008).
Quer isso sugerir, por exemplo, que as exigências de rigor e consistência, obturadas no
âmbito das cercanias estritamente Disciplinares, não estão investidas de qualquer propósito e utili-
dade operacional no contexto de práticas e teorias que, obrigatoriamente para resguardar sua coe-
rência e propósito internos, requisitam uma matriz de análise não-linear e não reducionista.
Nessa ótica, que busca não solapar as diferenças e oportunidades de enxergar além dos
mundos e experiências de realidade incognoscíveis para muitos dos saberes instituídos, gostaría-
mos de propor que, mais do que novos adjetivos (“ampliadas”, “incomuns”, “espirituais” etc), preci-
samos de substantivos próprios que margeiem os percursos de uma e de outra proposta, que as
identifiquem e localizem não apenas a realidade vivencial dos clientes, como, também, a materiali-
dade experiencial dos psicoterapeutas e das suas formações específicas.
81
cia com a qual se trabalha, mas com as plataformas Intra/Inter/multireferenciais e Transdisciplina-
res que se utiliza em seus manejos.
Aqui, de modo particular, queremos propor que: as Psicologias Humanistas (e suas pro-
postas de Psicoterapia) tratam, eminentemente, de uma articulação de grandeza InterDisciplinar
(geralmente) e multireferencial (em termos de saberes e processos concomitantes de ordem Intra e
InterDisciplinares), enquanto que as Psicologias TransHumanistas (necessariamente) são de or-
dem TransDisciplinar.
82
seria capaz de decodificá-la, em suas nuances e especificidades, exige um plano de referência
TransDisciplinar.
Sob esse prisma, mais do que um conjunto de autores ou teorias específicas, uma das fa-
cetas da singularidade da Psicologia Humanista é sua adesão política Intra-Inter/multireferenciais,
enquanto que na Psicologia TransHumanista, todas as vezes que se reduziu a compreensão a um
modelo fixo de qualquer Disciplina, perdeu-se, também, a possibilidade de acompanhar a comple-
xidade de interações e interfaces que alcançam esse humano e o superam.
Cada uma dessas propostas de Psicoterapia, em sintonia, portanto, com as suas especifi-
cidades, traria, para si e seu conjunto de ferramentas, o compromisso ético-científico de traduzir
sua Epistemologia dentro de uma referência duplamente coerente aos postulados tanto de sua
Escola como de seu Movimento.
Nicolescu (1999), retomado da exposição anterior, elenca que, no rol dos posicionamentos
TransDisciplinares, verifica-se a compleição dos três seguintes requisitos: uma prática complexa,
de contornos por múltiplas realidades e, finalmente, a opção por um terceiro incluído. Será possível
satisfazer parcialmente tais requisitos, ou, mesmo, atender a um e não a outro? Intrincadas entre
si, quer o autor explicitar, pela direção inversa, que a superação de um princípio (aristotélico) de
terceiro excluído, permite-nos também contemplar a face de realidades e objetos múltiplos e, de-
correntemente, a produção de um conhecimento inclusivo e complexo.
83
Do ponto de vista de uma corrente tipificada como Humanista, temos evidências para quali-
ficar sua prática, em vários aspectos, como sendo de base complexa e de terceiro incluído – um
exemplo disso seriam experiências de sintonia e ressonância aos campos formativos do universo.
Entretanto, seu objeto permanece afiançado a uma única realidade, qual seja, aquela da experiên-
cia humana – ainda que esse objeto, a “experiência” seja, por vezes, de uma magnitude excessiva
aos crivos de razoabilidade da Ciência. É verdade que a experiência comporta inúmeras qualida-
des, atitudes, percepções, além de interpretações técnicas diferenciadas – entretanto, todas sob a
referência de um mesmo objeto comum de trabalho.
Esta aparente contradição, que se postula enquanto complexa e inclusiva, mas não permi-
te variabilidades do seu objeto e enfoque, só é possível, exatamente, na superposição de aportes e
conceitos de projetos distintos do conhecimento, convergidos numa base comum interdisciplinar.
Fora dessa permissão operativa, restar-nos-ia argüir não apenas a incompatibilidade entre inclu-
são-complexidade e adesão de um objeto restrito, bem como a impossibilidade de uma manifesta-
ção de terceiro incluído.
Não quer essa constatação sugerir que todo o saber TransDisciplinar baseie-se, necessa-
riamente, em uma Epistemologia do Sul, e que todo processo de conhecimento In-
tra/InterDisciplinar fundamente-se, obrigatoriamente, em uma Epistemologia do Norte – é possível,
sim, a formulação de saberes contra-hegemônicos ainda que sob o escopo reduzido disciplinar ou
intradisciplinar. Não se quer, ademais, inferir que todo saber TransDisciplinar requisite, em absolu-
to, uma base teórica TransHumanista – ainda que o inverso seja correto.
84
reduzir a realidade a um só nível, regido por uma lógica única, não se situa no campo da trans-
disciplinaridade” (FREITAS; MORIN; NICOLESCU, apud WEIL, 2002, p. 112-13, grifo nosso).
Qualquer interpretação de fundo TransHumanista, que seja capaz, por exemplo, de acom-
panhar e categorizar alguns dos movimentos terapêuticos que estão descritos na Cena 2, pare-
cem, no lastro desse argumento exposto, conspirar no sentido de uma matriz de conhecimento
potencialmente mais diversa e robusta, concomitantemente inspirada em várias disciplinas outras.
Também não se trata, ainda, de afirmar que, em sendo originário de uma Epistemologia do
Sul, os saberes TransHumanistas devam apresentar-se, essencialmente, como Saberes Comple-
xos – é possível formular saberes contra-hegemônicos que não tenham uma matriz de complexi-
dade. Linearidade ou complexidade não são, invariavelmente, as estacas nessa demarcação. Nas
palavras do sociólogo crítico, as matizes Conhecimento do Sul emprestam-se como metáfora para:
E quais seriam, se é que haveriam, “critérios” objetivos, de uma única disciplina validada,
que nos assegurariam a legitimidade possível de uma base TransDisciplinar? Como verificar sua
correição ou adequação às nossas demandas? Ora, em sendo as Vozes do Sul, as Vozes decor-
rentes das práticas múltiplas dos Povos, é razoável entender os TransHumanistas trazem um novo
estatuto transdisciplinar de vida possível, refratário do imperialismo tecnicista, contrário à superfici-
alidade privatista da vida industrial e hiperindividualizada, avessos ao desencantamento sistemáti-
co alavancado nos séculos XVII-XXI.
85
Inteireza, da Vida-Boa, do Funcionamento Pleno, das Pessoas do Amanhã são questões absolu-
tamente legítimas, por exemplo, numa formação em Abordagem Centrada na Pessoa.
Se for verdade, por um lado, que a Psicologia Humanista foi capaz de trabalhar com o Or-
ganismo e os Fluxos da Organicidade Humana, é também verídico sublinhar que a Psicologia
TransHumanista inaugurou uma reflexão singular em termos de Estações Organísmicas, de pro-
cessos que não foram “humanistas” ainda que os impliquem em suas contingências.
86
que a ela sejam compatíveis (entretanto, os conhecimentos não estão suscetíveis a fusões ou im-
plosões).
Na Psicologia TransHumanista, por sua vez, sob uma perspectiva eminentemente Trans-
Disciplinar, são os conhecimentos que são magnetizados e imantam-se na seiva e na variedade de
experiências (portanto, as quinas experiênciais, de uma forma geral, não são deixadas de lado, na
medida em que recaem sobre os conhecimentos e as instituições o exercício de uma permanente
flexibilização e recriação).
Para que Maslow (s/d) permaneça correto em sua observação de que a Psicologia Huma-
nista é uma fase ou uma etapa que estaria inclusa no TransHumanismo, precisaríamos de hercú-
leas adequações de mão-dupla: para o Humanismo, o desenvolvimento de uma capacidade de
suportar o movimento e o desequilíbrio para suas certezas e vocações consolidadas, a partir de
um Saber TransDisciplinar com suas finalidades e a pertinência do mesmo para o enfrentamento
de questões da urgência social e planetária; para o TransHumanismo, a sabedoria e o desafio de
conseguir acolher e desdobrar-se junto às facetas dos conhecimentos de base Humanistas que
apontam silhuetas disciplinares da técnica, do rigor, da consistência e da coerência como categori-
as a serem consideradas no mar aberto de inovações experienciais.
87
no Brasil – é importante que os instrumentos de avaliação, os critérios de formação e de fiscaliza-
ção da qualidade na formação, produção de indicadores e monitoramento para “boas práticas”,
levem também em consideração o conjunto de diferenças explicitadas.
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90
Capítulo 4
Método
91
Capítulo 5
Pesquisas em Consciência
92
PARTE II
93
Capítulo 6
Transdisciplinaridade
94
Capítulo 7
Espiritualidade
95
Capítulo 8
Unidade
Gratidão,
À Vida, assim como é;
À Theda Basso, amiga generosa e profunda;
À Luciana, minha mulher e companheira querida; e
À Lara Nandini, minha filha e inspiração afetuosa para a vida
.
Olhar para o céu azul, para as nuvens altas e bem delineadas; para as
colinas verdes bem desenhadas contra o céu; para o capim viçoso e a flor mur-
cha – olhar sem nenhuma palavra de ontem, a mente completamente quieta, si-
lenciosa, não perturbada por nenhum pensamento, o observador completamente
ausente –, assim é unidade. Não é que você está unido à flor, ou à nuvem, ou
àquelas colinas arrebatadoras; é um completo não-ser, no qual toda divisão ces-
sa.
J.Krishnamurti
I
Unidade. O que é a Unidade? Pode o ser humano, envolvido nas múltiplas demandas da
vida moderna conhecer a Unidade? Cheio de compromissos, familiares, profissionais, financeiros,
emocionais, cada um a puxá-lo em uma direção diferente, fragmentando sua vida em múltiplos
interesses? Com seus muitos gostos, muitas desejos, muitas vezes contraditórios e excludentes?
Ele mesmo dividido entre o que é e o que gostaria de ser; entre o que é e o que imagina que os
outros gostariam que ele fosse; com muitos medos se sobrepondo, cada um com sua pressão,
medo de não conseguir realizar-se, medo de não ser reconhecido e respeitado, medo de não ser
amado... Pode o ser humano conhecer a Unidade? O que é a Unidade? É a união de todos os
fragmentos?
Não. Unidade não é a junção de fragmentos. Unidade não é o fim de um processo de unifi-
cação. Começamos com a Unidade. E terminamos com a Unidade. O um, inteiro. Que abrange
tudo que existe, tudo que existiu e tudo que venha a existir. Um campo de infinitas possibilidades.
Potencial criador sem limites. A totalidade. E a totalidade nunca se desfaz. A totalidade é onde
tudo acontece. É maior que a soma das partes, e não existe nada que esteja fora dela. A totalidade
não é uma coisa, como um vaso que contém todas as coisas. É um vasto movimento, sem começo
96
e sem fim, onde tudo se forma e se dissolve; onde tudo aparece e desaparece; e é sempre a
mesma totalidade. É o que é. Imutável, onde toda mudança acontece. Onde a Vida acontece, e o
inteiro permanece.
Unidade é o que veio antes e permanece depois, sempre presente. Antes do próprio tempo
e do espaço. E depois de tudo acontecer. A variedade da Vida acontece na Unidade. Vida que
aparece como um movimento perene de transformação, destruição e criação incessante. Criando e
destruindo tudo que existe. Para tornar a criar e destruir. Gerando formas e mais formas, abando-
nando-as e destruindo-as, renovando-se e inovando. Fluindo, fluindo sempre. A Vida nunca pára.
Nunca morre. Um movimento perene de transformação.
A Vida não está nas formas que gera, as formas é que aparecem na Vida. A Vida não é o
pássaro voando, é o vôo sem o pássaro, como na imagem comunicada por um amigo muito queri-
do e distante. É a respiração e circulação do sangue: é a Vida que respira na respiração; é a Vida
que circula na circulação do sangue. O sangue circulando e a respiração aparecem na Vida, como
o pássaro no vôo. A Vida veio antes. Incriada, cria tudo o que aparece e que desaparece.
Ser é o movimento sem nome e sem forma da Vida. Vida é o nome do Ser. Sem nome é o
princípio de tudo, por trás ou por dentro de tudo, a base de tudo. Com nome é criadora de tudo.
Ser é verbo infinitivo. Vida é substantiva. Ser é Pai desconhecido, e incognoscível. Vida é Mãe
criadora de toda variedade. Mas não são dois, não são muitos; é apenas Um. Inteiro. Unidade e
totalidade. Nunca deixa de Ser.
Como na tragédia de Prometeu, que reconto livremente. O imortal Prometeu, ele mesmo
um deus, roubou o fogo dos deuses no Olimpo e deu-o aos seres humanos na Terra, ensinando-os
a forjar o ferro e fazer armas e ferramentas; ensinando-os a plantar e a colher. Os deuses não
gostaram nada disso, e por esse crime Prometeu foi punido severamente. Fora ele mortal e teria
sido condenado à morte, mas sendo um deus e imortal foi agrilhoado ao Cáucaso, com correntes
de ferro, para sofrer uma tortura eterna: durante o dia uma águia vinha e comia seu fígado, à noite
o fígado se refazia; repetindo-se dia após dia esse sofrimento que parecia não ter fim.
97
Essa é uma linda imagem para o drama do fluxo consciência e do fluxo de vitalidade. Fíga-
do é o órgão da vitalidade por excelência, aproveitando as substâncias que vêm da alimentação,
separando o tóxico do nutritivo, processando açucares e gorduras, proteínas e minerais, construin-
do um plasma sanguíneo que pode nos alimentar e renovar; a noite é uma imagem da inconsciên-
cia, ao cairmos no sono e nos desligarmos dos acontecimentos externos: o fígado se refaz a noite,
na inconsciência, o corpo se renova no sono profundo. A águia é uma excelente imagem do fluxo
de consciência, com seus olhos agudos e seu bico poderoso, percebendo um animalzinho, seu
alimento, à quilômetros de distância enquanto voa nas alturas; assim como a luz do dia é imagem
da luz da consciência; a águia come o fígado, a consciência desgasta a vitalidade. Estão sempre
juntas, mas parece que onde uma está, a outra desaparece. Parecem forças contrárias. Consciên-
cia parece fluir da mente em direção à matéria; vitalidade parece fluir da matéria em direção à
mente. Mas é um único fluxo, com essa estranha característica. Talvez faça mais sentido se dis-
sermos que a consciência é o movimento perceptivo da mente; e a vitalidade é o movimento subs-
tancioso da matéria. Um só movimento que é Vida.
98
operacional que, em seu movimento contraente e desgastante, cria limites à expansão e dissolu-
ção promovidas pela vitalidade, in-formando o organismo. A consciência se serve do cérebro hu-
mano e com ele se identifica, percebendo-se como sujeito das ações e atividades corporais. Apa-
rentemente separada no acontecer da Vida.
As duas correntes juntas, sem que uma prevaleça sobre a outra, criam no organismo o seu
sistema rítmico; sangue e nervo cooperando para que coração e pulmão estabeleçam a pulsação
da Vida. O coração certamente não é uma bomba a impulsionar a circulação sanguínea, mas é
criado na circulação sanguínea como órgão perceptor e regulador da sua relação com o pulmão e
mundo externo, determinando o pulsar cardio-respiratório, o pulmão respondendo às necessidades
gasosas do sangue. A saúde orgânica é palpável no ritmo cardio-respiratório. Ritmo, relação, alter-
nância e pulsação são a dinâmica da saúde e da Vida. Onde existe a paralisação, a fixação e o
enrijecimento, aí a vitalidade não circula; onde existe a dissolução e a deformação e o movimento
e expansão aleatória aí a consciência não circula. Saúde é a harmonia das correntes da Vida, à
serviço do organismo e da totalidade da Vida.
O movimento da Vida deixa rastros: resíduos materiais e registros mentais. Cria formas e
mais formas e as abandona. A Vida nunca abandona, é a vitalidade que abandona a transforma-
ção perene, deixando formas materiais; deixando na matéria a matéria inanimada e sem vida, co-
mo memória no espaço; e deixando informações inscritas na mente como registro inanimado, co-
mo memória e tempo, a memória de seu acontecimento passado. É a própria matéria inanimada
que se acumula e cria na consciência observadora a noção de espaço; e a memória acumulada na
mente cria na consciência observadora a noção de tempo. Um campo material se distingue de um
campo de memórias. O que é apenas um novamente aparece com dois. Ambos campos inanima-
dos de resíduos, rastros do movimento da Vida, influenciando e condicionando o movimento da
Vida. Tempo e espaço e seus movimentos aparentes. O espaço inanimado tendendo à conserva-
ção e à inércia, aparecendo como base de tudo, e como substância. E o tempo aparecendo como
movimento que a tudo transforma, criando e destruindo, palco de lembranças e do esquecimento,
crenças e impregnações duradouras. A Vida acontecendo aparece à consciência como um movi-
mento no tempo, onde a morte se dá quando o movimento da Vida abandona sua forma, que as-
sim inanimada, tende ao repouso, morta, no espaço. A Vida não morre, as formas abandonadas e
inanimadas aparecem como mortas. A memória do acontecido fica guardada, registrada no tempo.
Um campo de memórias influenciando o espaço e o próprio tempo. Influenciando o acontecer da
Vida, como padrões que tendem a se repetir, e que reagem ao movimento da própria Vida.
99
vem e se desenvolvem. Dá os símbolos à consciência, como uma forma de operar e se comunicar.
Uma forma de operar e se comunicar entre muitas outras. O corpo humano, ou organismo humano
é todo ele memória, processador de informações e comunicação simultaneamente, seus aminoáci-
dos e catecolaminas, hormônios, neurotransmissores, peptídeos e proteínas fazem do organismo
todo uma rede comunicadora de primeira linha. O impulso elétrico e eletrônico nervoso, e periner-
voso, transferem informação com precisão e eficiência. Sua própria forma corporal mecânica, como
estrutura geodésica, se presta à circulação e transferência de informação. Essa rede comunicado-
ra é expressão da inteligência e sabedoria universal. O corpo é instrumento e expressão do campo
de sabedoria universal.
Como todos organismos vivos, o corpo humano passa por um processo de maturação no
tempo. Não nasce pronto. Concepção, nascimento, infância, adolescência, idade adulta, velhice e
morte: é o seu ciclo vital. É o processo de maturação do organismo e em especial do sistema ner-
voso e cérebro, em seus aspectos reptiliano, límbico, hemisfério direito e esquerdo e pré-frontal,
que permite à consciência humana o seu aparente desenvolvimento, passando de uma fase pré-
pessoal à uma fase pessoal. O desenvolvimento cognitivo e da capacidade de observação da pes-
soa, aliado a um “trabalho de consciência” em si mesma, abre-a à possibilidade transpessoal.
100
maior, com enredos específicos; cada vez que a consciência se sintoniza com esses enredos, ela
sofre a influência e cumpre esse karma. Toda e qualquer pessoa está sujeita a cumprir esses pa-
drões kármicos, desde que vibre sintonicamente com eles.
O trabalho de consciência permite que esses padrões se revelem e percam sua carga con-
dicionadora do fluxo de consciência e vitalidade. Em geral se encontram impregnados em cada
nível da manifestação humana, espírito, alma e corpo, condicionando e limitando o fluxo da Vida,
distorcendo a vitalidade e a consciência, levando às mais diversas patologias, sejam do organismo,
sejam nos grupos, atingindo a sociedade e suas instituições, assim como o todo da cultura; o que
por sua vez atua sobre a consciência e sobre a vitalidade intensificando as distorções e patologias,
como num círculo vicioso. O trabalho de consciência que é um trabalho simultâneo de vitalidade e
consciência, permite a interrupção desses círculos viciosos e até a instalação de círculos virtuosos.
Mas é preciso entender os limites desse trabalho, senão estaremos vendendo, ou comprando, gato
por lebre. Nenhum trabalho nos levará à Unidade, simplesmente porque nunca saímos da Unida-
de, apenas acreditamos que estamos fora dela, pela circunscrição corporal e espiritual, pela cons-
ciência identificada consigo mesma e com o corpo. O trabalho de consciência, como o estamos
chamando aqui, pode levar a consciência a se desidentificar de todos os objetos e crenças, produ-
zindo uma vida aparentemente muito mais confortável e eficiente, mas não pode ajudá-la a desi-
dentificar-se de si mesma, uma vez que é realizado pela própria consciência identificada consigo
mesma. Como Ken Wilber falou em seu “A Consciência sem Fronteiras” (1991): “É por isso que
tudo que se tenta fazer, ou não fazer, é enganoso, e representa apenas mais resistência e mais
separação. Tudo que o indivíduo faz é enganoso porque ele o está fazendo. Seu eu é resistência
e, portanto, não pode por fim à resistência”. Além do que, “podemos levar o cavalo à beira dágua,
mas não podemos fazê-lo beber”, segundo bom senso popular.
101
O fim de todas as coisas,
Eu sempre soube.
Liberto eu sou,
assim eu nasci
no oceano da libertação.
Assim eu entrei
No mundo da libertação.
E continuou vivendo por mais 60 anos até morrer em 1986. Aquilo que ficou conhecido
como “seus ensinamentos” aconteceram nas inúmeras palestras, livros, encontros e diálogos que
ofereceu durante esses anos; falando sempre o mesmo essencialmente, que “a verdade é uma
terra sem caminho” e preconizando o que entendia como “única revolução” (Krishnamurti, 2001)
102
com uma paciência infinita, e uma delicadeza e atenção para com todos os seres vivos e inanima-
dos.
II
A consciência é uma função da mente na matéria. Função de percepção e experimentação
e registro. Não existe por si mesma, mas apenas como função. Consciência é o movimento que
separa, ao cindir o acontecer com sua luz distintiva, e sua capacidade de circunscrever-se em si
mesma, criando a noção de “si mesma” e aparecer como consciência de si mesma. Quando nos
perguntamos pela Origem de tudo, é fácil projetarmos a gênese como gênese pela consciência.
Contemplamos o vasto movimento da totalidade, sem começo e sem fim, projetamos e encontra-
mos a grandiosa imagem do vasto movimento da totalidade aparecendo como mente e matéria
simultaneamente, semelhante à luz, que é uma só, um fluxo só que aparece simultaneamente co-
mo onda e partícula; consciência e vitalidade simultaneamente; o vasto movimento circunscreven-
do-se sobre si mesmo, dando-se conta de si mesmo, tornando-se consciente de si mesmo, como
um Deus criador que aparece no movimento indistinto da totalidade criando uma bolha de consci-
ência de Si mesmo onde todo universo aparece, com todas suas criaturas. Um gesto autocriador
magnificente que faz surgir Brahman em Parabrahman, para os hindus; faz surgir o Tai Chi no Tao,
para os taoístas; faz surgir o Cosmos no Caos, para os gregos; faz surgir o Deus criador em Deus
sem nome e sem forma, para a cultura judaico-cristã; faz surgir a Vida no Ser, essencialmente
falando. É claro que não aconteceu assim, pois não houve um começo lá atrás, distante no tempo.
Nada começou. A Origem é a consciência observadora que imagina ao contemplar a imensidão
sem começo e sem fim. Imagina, assim como faz tudo o que faz: para não desaparecer imediata-
mente.
103
bém recorta o fluxo da Vida ao se deter em algum fenômeno em especial, separando-o do fluxo
vivo onde acontece, como quando arrancamos uma árvore da terra, ou arrancamos um peixe da
água. Como compreender uma árvore sem a terra onde está plantada e sem o ambiente que a
envolve? Como entender um peixe fora dágua? A consciência recorta os fenômenos, estabelecen-
do começos e meios e fins. A consciência enxerga mundos no Universo, cria níveis de expressão
de si mesma, com suas exigências e necessidades. Cria complexidades e se embriaga de si mes-
ma. Quer ser a totalidade, quer ser a solução final. Não é. É o fator divisivo e separatista. O olhar
da consciência identificada consigo mesma se separa no Universo; separa-se na Unidade, aparen-
temente fragmentando-a. E perdendo-a. A culpa atávica que carrega desde a sua origem. E o iní-
cio de toda busca, que não é senão a busca da Unidade; a busca da religação com o Todo ou
Deus, a busca de Deus, do ser essencial. Brahman em busca de Parabrahman; Tai Chi em busca
do Tao; o Cosmos em busca do Caos; a Vida em busca do Ser.
Acreditamos que não vivemos na Unidade porque vivemos isolados na consciência de nós
mesmos. Na consciência buscamos a Unidade “perdida”; e nesse jogo nos enredamos entre dores
e prazeres. Sofremos.
Com as palavras, a consciência tateia o absoluto, que não cabe nas palavras. Aponta para
algo intangível e incognoscível; aponta para o desconhecido na esperança de capturá-lo. Aponta
para o invisível, na esperança de torná-lo visível. Quer conhecer, quer saber, acredita que sabendo
chegará lá; a separação se tornará Unidade.
Sem palavras a consciência escuta o sussurro, e respira o perfume disso que anseia pro-
fundamente. Ouve a voz do Silêncio. Mas as mãos continuam vazias. “E quando vou tirar o papel
de prata, que é de folha de estanho, deito tudo ao chão, como tenho deitado a vida” canta Fernan-
do Pessoa pela voz de Álvaro de Campos em seu poema “A Tabacaria”.
Algo nunca acontece; algo sempre falta acontecer; algo sempre permanece desconhecido.
Por mais que nos esforcemos e empreguemos nossos recursos materiais, mentais e econômicos,
nosso tempo e disposição investigativa, nossa mística, nossa religião, nossa ciência e tecnologia: o
desconhecido permanece. Intocável. Por mais que nessa busca muita coisa se revele, e o poder
de controlar fenômenos e eventos aparentemente se amplie; por mais que um avanço tecnológico
104
se estabeleça, gerando confortos e ameaças sem precedentes, o mistério permanece. Desvenda-
mos segredos que se mostram apenas parciais, nunca abarcam a coisa toda. O mistério permane-
ce.
A entidade humana tem sido compreendida desde tempos muito antigos como cidadã de
três mundos, ou de três dimensões: corpo, alma e espírito. No que discorremos acima temos um
esboço do que corpo e espírito significam, mas e a alma? O que é alma? Psicologia é a ciência da
alma. Psique é a palavra grega para alma. Alma vem do latim anima. Mas o que é isso que os gre-
gos chamam psique e os latinos anima?
O que é esta "coisa"? Até o século IX a Igreja Católica reconhecia o ser humano como um
ser trimembrado, compondo-se de corpo, alma e espírito. Por "alma" entendia aquilo que existia
entre o corpo, estrutura física como a conhecemos, e o espírito, a consciência individualizada, o
"Eu sou". Falava-se então que imortal era o espírito, e o espírito habitava um corpo mortal. Desse
encontro entre o imortal e o mortal, surgia, como que entre os dois, a “coisa” chamada alma, onde
se reconheciam todos as sensações e emoções, os sentimentos e pensamentos, idéias e ideais;
os medos e os desejos, as simpatias e as antipatias.
Depois disso, a Igreja deixou de ver o ser humano como trimembrado, passando a vê-lo
apenas como alma e corpo, ou espírito e corpo; sendo que as palavras "alma" e "espírito" passa-
ram a ser como que sinônimas, designando uma mistura de espírito e alma, sendo vista como a
parte imortal e imaterial do ser humano e também onde vivem as sensações e emoções, os senti-
mentos e pensamentos, as idéias; os desejos mais abjetos e as aspirações mais nobres; e sobre-
tudo o medo.
A alma, consciente da separação, busca sua integração com Deus. A chamada evolução
da alma é seu encontro com Deus, visto como a Unidade. Evolução ascendente é o caminho da
alma na sua peregrinação à Deus. A totalidade caiu e se espedaçou em níveis dentro de níveis, no
que se chama a involução do espírito, ou causação descendente. E a vida na terra é a sua escola
de aprendizado e evolução. Entre o Bem e o Mal ela busca o Bem. Entre o certo e o errado ela
busca o certo. Pois o Deus é visto e entendido como supremo Bem, sempre certo. Mas é Deus a
Unidade? Não. A Unidade inclui tudo, o certo e o errado, o Bem e o Mal. Deus é o supremo espírito
ou “Anima Mundi”, Alma do Mundo, o supremo Ser substantivo, que orienta a evolução da alma em
sua direção. A consciência centrada em si mesma e sua projeção linear: primeiro um movimento
105
descendente e depois outro movimento, desta vez ascendente, chegando no fim ao ponto de parti-
da.
O fato é que a alma nunca evolui. Evolução da alma é o que reza o Pai Nosso: fazer se-
gundo a vontade de Deus – infinitivo –, aceitar o pão de cada dia como nos é dado, e perdoar dívi-
das e devedores. Ou seja: não separação; ou melhor: Unidade. A Alma flutua entre pólos, entre o
corpo e o espírito, e julga um mais importante do que o outro, entendendo o espírito como a evolu-
ção do corpo: o corpo evoluído se torna espírito; e entendendo corpo como espírito decaído, invo-
luído. Assim, quando predominam as sensações, a alma é tida como menos evoluída, já que sen-
sações são bastante terrenas e carnais; quando predomina a consciência a alma é tida como mais
evoluída, uma vez que consciência é a “substância” do espírito, pois já entendemos que o que é
chamado de espírito é uma circunscrição de consciência na mente, é uma individualização da
consciência. Às vezes a alma é mais racional, às vezes é mais sentimental, e isso muitas vezes é
também avaliado como mais ou menos evoluído: a razão tendendo à consciência e ao espírito, por
isso mais evoluída; e o sentimento tendendo às sensações e ao corpo, por isso menos evoluído.
A alma existe entre opostos, que longe de se excluírem, complementam-se uns aos outros;
mais do que complementos, vivendo a separação, não se dá conta que espírito e corpo são Um só,
parecendo dois. A alma não é senão “um corpo” de reações, com sua existência entre espírito e
corpo tidos como opostos. Sonhando ser espírito e negando o corpo, pois toma o espírito como o
essencial e mais alto que pode chegar; acredita e identifica o espírito como se ele fosse a unidade;
orienta-se para o “Eu sou” espiritual que considera o supremo bem, ou Unidade, e coloca para si
mesma, como meta da evolução, o desaparecimento do seu pólo inferior, mais próximo do corpo,
para o predomínio final e definitivo do pólo superior, o mais próximo do espírito. O que nunca vai
acontecer. Pois ela existe entre espírito e corpo, vive da tensão entre os opostos. Opostos cujos
pólos não existem um sem o outro. Um aparece como bem e o outro aparece como mal, de acordo
com o ponto de vista que julga; se um é o certo, o outro deve ser o errado. Mas bem e mal são
irmãos siameses. Certo e errado são gêmeos univitelíneos.
106
mesmo e contra seus irmãos, contra o ambiente e contra a sociedade, em toda a extensão da His-
tória conhecida.
Expressão disso é o fato de nunca deixarmos de guerrear uns com os outros, seja porque
nossa oferenda não foi aceita, como no caso bíblico de Caim e Abel; seja para conquistar o que
queremos do outro, terras, riquezas, hegemonia e poder; ou pelo “bem” dos nossos protegidos. Os
motivos variam mas as guerras são sempre iguais, matança e destruição para nada, como nos
casos históricos de Napoleão, Hitler e Bush, por exemplo. Caim matou Abel nos tempos Bíblicos
de antanho, e continuamos matando do mesmo jeito, pelos mesmos motivos: o meu, o seu, o dele!
Desde que o mundo é mundo fazemos guerras; guerras santas, guerras profanas, guerras
conquistadoras, guerras punitivas, guerras! Cujo resultado é sempre expressão de desentendimen-
to, intolerância, ressentimento, ódio, medo, violência e destruição; expressão de uma convivência
tornada impossível, pedindo a exterminação do outro, do que não é eu. Coisa da alma por exce-
lência; a consciência de si mesmo intolerante para com o que não é si mesmo. Um pólo querendo
a extinção do outro. Nunca a extinção mútua, mas certamente levando à destruição mútua. O jogo
dramático da comédia de erros e enganos. Jogo das paixões humanas. Que também nos levam a
idolatrar as oposições e a buscar o pólo oposto em busca da Unidade perdida, em busca da com-
plementação, do casamento ideal, da satisfação plena de completar-se no tempo, do gozo assegu-
rado da companhia certa, que aparentemente faz de “mim” um inteiro. Assim, com sorte, encon-
tramos conforto e contentamento, mas nunca a Unidade. Onde estou eu, consciência de mim
mesmo, não existe Unidade, embora eu, consciência envolta em si mesma, mim mesmo, pareço
uma unidade. Mesmo que eu esteja feliz. Isso só me faz aparentemente mais tolerante, compreen-
sivo, solidário, cooperativo e até compassivo, mas contrarie-me e você verá do que sou capaz!
107
III
Unidade se mostrou uma vez, sem que eu tivesse feito alguma coisa para isso. Tinha de-
zoito anos, talvez dezenove, estava guiando meu fusca na marginal Pinheiros em São Paulo,
quando desapareci completamente, não mais havia eu separado, eu era tudo, tudo; o fusca, o es-
pelhinho, os carros que passavam, o terreno baldio ao lado cheio de mato crescendo viçoso, o
canteiro central, o viaduto, o rio Pinheiros, o céu poluído, os pássaros, os edifícios e além. Não que
“eu” fosse tudo, ou que tudo fosse eu; na verdade tudo era Um só; e sempre fora assim, eu é que
nunca tinha visto; não era eu, era uma única força por trás de tudo; muitas coisas diferentes, ani-
madas e inanimadas, e uma única força que impulsionava tudo, que estava por dentro e por fora
de tudo, todas as coisas nessa força, ou melhor, um único movimento aparecendo como a infinida-
de de coisas diferentes. Esse movimento era uma Presença que abarcava a totalidade, onde tudo
acontecia e nada estava acontecendo de fato.
Havia consciência, mas não consciência de mim mesmo como entidade separada, como
pessoa observando esse movimento; havia apenas o movimento e a consciência era o próprio
movimento. A consciência não estava no corpo, na cabeça, estava em tudo, inclusive no corpo.
Havia o corpo, mas não era o “meu” corpo, era um corpo vivo, entre tudo o mais igualmente vivo. A
mesma força que o vivificava, vivificava tudo o mais. Era uma coisa só. Mas não era “uma coisa”,
era apenas movimento. Um vasto movimento sem causa. Um campo imenso onde tudo pareci
existir. O tempo desapareceu, e todo movimento desapareceu com ele, ficando só Presença, sem
eira nem beira. Consciência e vitalidade eram apenas aspectos, que não pertenciam a ninguém, e
faziam parte, ou melhor, apareciam na Presença, que a tudo abarcava. Nada era pessoal, indivi-
dual, era um único campo; havia distinções no campo, como sub-campos por assim dizer, mas isso
não fazia daquilo multiplicidade; como a luz, por exemplo, que “contém” todas as cores, mas é uma
“única” luz. Não existiam coisas separadas, tudo era apenas Presença. E plenitude. Unidade.
Eu não tinha palavras para descrever o que ocorrera então; as palavras vieram com os a-
nos, embora a compreensão tenha sido imediata. Não é preciso dizer que minha vida deu uma
guinada de 360º, ou seja, continuei o mesmo e fazendo as mesmas coisas por fora, mas por dentro
era totalmente outro, para nunca mais ser o mesmo, sendo o que sou desde então. Embora eu
tenha reaparecido, como um eu que se percebe como que separado do resto, embora fale de mim
como de uma pessoa, e tenha sentimentos pessoais em muitas ocasiões, nunca mais pude acredi-
tar na separação como realidade, nem no sentimento de separação que a “consciência de mim
mesmo” produz, nem me deixar enganar pelas sutilezas e armadilhas dessa ilusão de ser a mim
mesmo.
Desde então compreendi a Unidade como a Realidade comum a todos nós. A Realidade
que não aparecia para a consciência identificada consigo mesma. Para a consciência de mim
mesmo, o eu, o mim, a realidade eram os objetos do mundo, as plantas, os animais, o mundo mi-
108
neral, os seres humanos, os relacionamentos, as emoções e sentimentos, os pensamentos e idéi-
as, os relacionamentos, a cultura, os valores, as religiões, as escolas, os negócios, as profissões,
os bens de consumo, o conhecimento, títulos, posições, dinheiro, a busca incessante de felicidade
e prazer, e a própria consciência de mim mesmo, eu. Com a revelação da Unidade, no desapare-
cimento da consciência de mim mesmo, vi que o que considerava realidade não era senão aparên-
cia e efemeridade, e entendi o que os hindus queriam dizer quando diziam que o mundo e as coi-
sas do mundo eram Maya, ou Ilusão.
Quando o eu desaparece, o que surge é o que sempre esteve presente, por isso podemos
chamar de “Presença”. Presença é isso. É Presença que percebe e age. Não é que alguém esteja
presente, um Ser divino, ou um indivíduo, alguém consciente e experimentando algo acontecendo.
Presença não é experiência, e não é nem divina nem individual ou pessoal. Presença não é um
estado que se vivencia. Presença não é “estar”, é “ser”. Presença é o que é. Um movimento sem
objetos se movendo e sem sujeito a produzir o movimento. Um movimento sem começo e sem fim.
Infinitivo. Sem ninguém presente praticando ou experimentando a ação. Nenhum eu. O “completo
não-ser” da nossa epígrafe krishnamurtiana.
A melhor palavra para descrever isso que não é um estado, pois estados são passageiros,
são experiências temporais, e isso não é uma experiência, nem no tempo nem fora do tempo, pois
não tem quem experimente e acumule a memória como experiência, isso “é”. Isso é o que é. A
melhor palavra para apontar para isso é mesmo o verbo no infinitivo “Ser”. Ser é essa palavra. Ser,
como verbo infinitivo, repito, sem me cansar de repetir. Ser é a palavra que aponta para essa reali-
dade essencial, que é a única Realidade, de fato. É a Totalidade, é Unidade. Nem vazio nem chei-
o. Simplesmente Amor.
IV
Unidade é anseio mais profundo de todos nós. Sentindo-nos incompletos, insuficientes,
como se sempre nos faltasse algo a ser adquirido: seja experiência, seja conhecimento, seja habi-
lidade; que esperamos conseguir em uma escola, em um curso, com um mestre, com uma prática,
um estudo, um aprendizado, ou uma graça. Assim como somos não serve, não é o bastante, te-
mos que ser outra coisa, nos tornarmos mais, ou melhor do que somos agora. E para isso preci-
samos nos esforçar, trabalhar duro, ser perseverantes, madrugar, pensar positivo, rezar por ajuda,
encontrar o mestre. E nunca chegamos lá. Estamos sempre aquém. Sempre a espera de alguém
que nos diga quando estaremos prontos e finalmente nos sentiremos inteiros; mas não tem jeito,
sempre falta alguma coisa. Podemos ter muito sucesso na nossa profissão; muito reconhecimento
social, um bom casamento, filhos maravilhosos, conta bancária polpuda, bens, propriedades, boa
formação, educação e cultura, conhecimento, filosofias profundas, e ainda assim, falta alguma
109
coisa. Buscamos outros companheiros ou companheiras, criamos outra família, trocamos de em-
prego, de profissão, buscamos outros grupos, mudamos de cidade, de país, tentamos outra religi-
ão, outra escola, outro mestre. Tentamos de tudo. E nada. Continuamos nos sentindo de fora, es-
trangeiros, sem ingresso para o espetáculo da vida, sem a carteirinha do clube, charlatões, uma
fraude. Queremos participar e estamos como observador, ou narrador. Todos parecem fazer parte
e nós não. Dentro de nós mil vozes falam o que deveríamos ter feito, ou fazer para ser diferentes e
nos sentirmos incluídos, ser protagonistas e não só figurantes clandestinos. Mil vozes de toda a
humanidade e todos os campos de conhecimento humano; mil vozes de todos os medos e todos
os desejos da nossa natureza humana multifacetada. Conscientes de nós mesmos sentimo-nos
separados de tudo. Conscientes de nós mesmos nos sentimos separados do todo. Não estamos
advogando a inconsciência, por favor! A inconsciência não é a solução, pois consciência e incons-
ciência fazem parte da mesma bolha de consciência que se circunscreveu em si mesma, e o que é
inconsciência, só é inconsciência para a consciência circunscrita em si mesma. E, no entanto, so-
mos parte do Todo; existimos no Todo; a Unidade nunca foi desfeita; mas não sabemos disso.
Sentimo-nos separados do Todo, fora da Unidade. Sofremos.
Não vivemos em um mundo fragmentado. O mundo é uma totalidade que não compreen-
demos. Vivemos na Unidade. Falamos isso, mas não sabemos o que é isso. A Vida flui na Unida-
de. Não sabemos como começou e não sabemos se terminará. Vemos que aparece em formas e
mais formas, mas não vemos a Vida, vemos a transformação e reconhecemos nela a substância
formada e um princípio informacional modelando a forma a partir de dentro; portanto forma e infor-
mação. Substância é matéria, informação é da mente; assim aparece como duas correntes de
energia, a corrente quente da vitalidade, o fogo da vida; e a corrente fria da consciência, a luz da
percepção. Vitalidade e consciência constituem o mundo como o conhecemos. Estão sempre jun-
tas embora tenham características opostas. A vitalidade expande a substância e diminui a consci-
ência, funcionando na inconsciência. A consciência paralisa e limita a vitalidade, diminuindo a in-
110
consciência. Assim as formas são criadas no fluxo da transformação que é a Vida. Consciência e
vitalidade substancializam, movem e informam a transformação e, se em determinado momento, a
vitalidade se retira, a transformação cessa e as formas quedam abandonadas, como substância
inanimada que se deposita na terra, e como memória e informação que se deposita na mente. A
Vida nunca abandona o Universo, seguindo, seguindo sempre. Forma é o que aparece quando na
transformação que é a Vida a corrente da vitalidade se interrompe naquele local.
É o nosso olhar que secciona e fragmenta o mundo. Nosso olhar fraciona a Vida em seg-
mentos no tempo localizados no espaço. Nosso olhar é um olhar com ponto de vista e ponto de
fuga. Sem consciência de si mesmo não existe o ponto de referência para a visão, e na inconsci-
ência não existe visão alguma. É a consciência de mim mesmo que, em mim, aparentemente
fragmenta a Unidade. Aliás, outra palavra para Unidade é a palavra Universo, o verso único, sem
dorso.
Não é a mente que fragmenta o Universo. Mente é o vasto campo informacional do fluxo
da Vida e matéria é o vasto campo substancial do fluxo da Vida. Mente e matéria são face e dorso
do Mesmo. Mente é também conhecida como campo espiritual, ou mundo espiritual, ou “campo
Ponto Zero, o campo dos campos” (Laszlo, 2008). O campo mental, com sua inteligência universal
e impessoal, sensível e perceptiva, que flui como consciência, junto da vitalidade – fluxo do campo
material. Tampouco é a consciência que fragmenta o viver. Minerais, plantas e animais vivem na
consciência e estão perfeitamente integrados no Todo. É a “consciência de si mesmo”, ou consci-
ência pessoal que divide o Universo em dois: eu e o resto! E nesse estado de consciência, um
estado de ser que parece fora do Ser, toda a dor e fragmentação aparente do mundo. É na consci-
ência de mim mesmo que a multiplicidade se cria.
111
são expressões desse estado de separação. Religiões e a busca da Unidade, chamada busca
espiritual, são o coroamento desse estado de separação.
V
Vida, em seu fluir, é um movimento criador infinito, criando formas e mais formas; repetin-
do-se e sendo sempre diferente. Metamorfoseando-se e trazendo uma variedade infinita, sempre
com o mesmo princípio. Mente e matéria aparecem na Vida ao olhar observador da consciência
individualizada, ou consciência pessoal: a pessoa.
Consciência e vitalidade aparecem juntas, como uma só energia, mas vistas como diferen-
tes por apresentarem diferentes dinâmicas no fluir, assim aparecendo como duas correntes dife-
rentes de energia manifesta, como já mencionamos acima. Para fins didáticos podemos dizer que
uma vai da mente para a matéria e a outra vai da matéria para a mente. Lembrando mais uma vez
que as duas vão sempre juntas, mas parece que predomina a vitalidade na corrente energética
que vai da matéria em direção à mente; e parece que predomina a consciência na corrente energé-
tica que vai da mente em direção à matéria. Devido a essa predominância, dizemos que são duas
correntes, uma ascendente e outra descendente, pois tomamos como referência a cabeça e as
pernas com os pés. Os pés na terra e a cabeça no céu; a terra está embaixo dos nossos pés, e o
céu está acima de nossas cabeças. Experimentamos, assim, a noção espacial de um eixo vertical
da cabeça aos pés, ou ainda mais profundo: do espírito ao corpo.
À propósito, a terra é material, sólida, escura e pesada, rígida e fixa ao nosso olhar; e o
céu é leve, transparente, luminoso, quase imaterial, cheio de movimento e plasticidade, ilimitado à
nossa visão. Se os tivéssemos que representar geometricamente, escolheríamos o quadrado para
representação da terra, e o círculo para representação do céu; também representaríamos o espíri-
to como círculo, e o corpo como quadrado, seguindo o mesmo raciocínio. Essa informação nos
será muito útil abaixo.
A corrente da vitalidade, sensível à mente e à consciência que vive nela carrega e organiza
a matéria em direção ao espírito, aprimorando-o como instrumento vivo. A corrente da consciência
sensível à matéria e à vitalidade que vive nela carrega e substancializa o espírito permeando-o de
matéria formando corpos e aprimorando-os como instrumento para a consciência. Repetindo: as
duas correntes são simultâneas, não é primeiro uma e depois a outra, embora à nossa visão possa
parecer assim. Uma não existe sem a outra em si. Como o símbolo chinês do Tai Chi, conhecido
de todos, onde um círculo apresenta-se com duas “baleias se acasalando”, uma preta e a outra
branca, na preta um ponto branco, e na branca um ponto preto; a figura toda simbolizando as duas
correntes de energia yin e yang, que em seu fluir constroem o universo e todos os seres, estando
sempre juntas, uma dentro da outra, como uma coisa só. Consciência e vitalidade são o yin e o
yang da Vida, e criam todas as coisas e seres vivos.
112
Ao observarmo-nos e observarmos outros seres humanos, reconhecemos o corpo, como
algo individual e separado dos outros corpos; mas também reconhecemos que a biografia de cada
um é algo único e singular, apontando para um princípio que a individualiza e distingue de todas as
outras histórias pessoais. Fica assim evidente a presença de um princípio individualizante que se
expressa no corpo como um “Eu” ao longo de toda sua biografia. Esse é o princípio espiritual, ou
espírito que já falamos. O “Eu sou” no ser humano. Um “núcleo individualizado de consciência” –
termo cunhado por Theda Basso e Aidda Pustilnik nas aulas da escola iniciática que fundaram, a
Dinâmica Energética do Psiquismo (Basso e Pustilnik, 2000).
Assim, podemos dizer que em todo ente humano vemos sempre esses dois aspectos que
o identificam e o individualizam: uma consciência de si mesmo, ou princípio espiritual, que o leva a
reconhecer-se como distinto e separado dos outros e dizer “Eu sou” para si mesmo; e um corpo
físico, ou princípio material que lhe dá substância e corporalidade, que pode ser identificada e re-
conhecida pelos outros.
A vitalidade e a consciência, fluindo a partir do corpo e do espírito coloca cada ente huma-
no em relação uns com os outros. A relação estabelece um diferente nível de experiência para a
cada um. Na corrente ascendente cria-se o vínculo emocional e todas suas mazelas, como aceita-
ção e abandono, acolhimento e rejeição, cuja gama de reações se apresentam como as distintas
emoções. Na corrente descendente cria-se o vínculo espiritual ou kármico, influência do campo de
memórias, com suas leis e padrões de relacionamento.
Vemos assim que onde se configura o ser humano, oito níveis estão presentes, em quatro
pares simultâneos, segundo os fluxos descendente e ascendente. Podemos numerá-los aos pares,
cada par expressando um mesmo nível, em seus aspectos espiritual e corporal dependendo da
113
orientação do olhar: “Identidade espiritual” e “corpo” como primeiro par; “vínculos kármicos” e “vín-
culos emocionais”, segundo par; “expressão individual e responsabilidade” e “ordem e leis sociais”,
o terceiro par; e “egoidade” e “ideais” como quarto par. Visto de forma esquemática, teríamos o
seguinte:
2 – Vínculos Kármicos
VI
No nosso livro “Triângulos – Estruturas de Compreensão do Ser Humano” (Basso e Ama-
ral, 2007), apresentamos esses níveis como triângulos, de acordo com a percepção interior de
Theda Basso, que reconheceu em seu próprio corpo esses níveis, como locais de expressão de
padrões estruturadores, como princípios informativos não-locais impregnados em cada região do
114
corpo, condicionando e condicionados pelas vivências do ser humano como consciência individua-
lizada corporificada.
Representamos esses níveis como triângulos porque assim apareceram em seu corpo, na
percepção interior de Theda. E de fato, foi uma representação acurada de cada um desses níveis.
Triângulos, quando isósceles, são figuras geométricas que provocam a impressão de movimento, e
indicam movimento em uma direção ao apontar na direção de seu ângulo diferente – triângulo i-
sósceles é aquele que tem dois ângulos iguais e o terceiro, diferente. Representando cada triângu-
lo isósceles com uma base horizontal onde estão adjacentes seus dois ângulos iguais (visíveis ou
virtuais) e seu ângulo oposto apontando para cima ou para baixo, de acordo com o fluxo que quei-
ramos representar, pudemos criar assim a imagem de um fluxo ascendente e de um fluxo descen-
dente, obedecendo o mesmo eixo vertical. Temos então quatro triângulos “ascendentes” e quatro
triângulos “descendentes” (cuja base e ângulos iguais são virtuais, aparecendo como que “aber-
tos”, intencionalmente apoiados no círculo).
115
Triângulos, estruturas de compreensão do ser humano.
O primeiro triângulo descendente, cujo ângulo descendente repousa acima da coroa cefáli-
ca e se abre para o círculo, representando o princípio identificador e individualizador do espírito, a
consciência que se circunscreve, o “Eu sou”. Enquanto o primeiro triângulo ascendente cuja base
repousa no quadrado e sobe pelas pernas até a base do períneo, representa a base que é o pró-
prio corpo e as forças da vitalidade; pernas que nos carregam pela vida afora, assim como nosso
corpo nos situa no mundo.
Os ideais humanos mais elevados não são atributos da consciência que se individualizou.
Os ideais humanos mais elevados, como a Unidade, a liberdade, a confiança, o amor, a compai-
xão, a paz, a solidariedade e a cooperação verdadeiras, não vive no âmbito desses níveis ou qua-
tro pares de triângulos. São absolutos, não-condicionados, incondicionais, sem motivo e sem fina-
lidade posto que só acontecem em liberdade, e onde há qualquer condição, por mínima que seja,
não é liberdade, não é amor. Os ideais humanos mais elevados não são ideais; só são ideais para
a consciência que se separou ao isolar-se em si mesma identificando-se onde deveria estar ausen-
te. Os ideais humanos mais elevados são realidades na Unidade, no Ser infinitivo e Presente; além
do tempo e do espaço, sem começo e sem fim, na Vida que acontece, fluindo em transformação
perene, indivisa e inteira.
116
Para nomear o inominável e representá-lo no âmbito dos triângulos percebemos um quinto
triângulo descendente e ímpar, cujo ângulo descendente e seus lados adjacentes tocam o quadra-
do e o redondo simultaneamente, nos pontos em que estes se cruzam, e se prolongam ao infinito,
como o Um que aparece como dois. O quinto triângulo é um paradoxo, pois representa o que não
pode ser representado: o campo de infinitas possibilidades do Tao, ou Deus, aquele que não tem
nome nem forma, incognoscível e imanifesto, onde toda manifestação aparece e parece acontecer.
Ser essencial da própria Vida, fluxo perene de transformação, verbo infinitivo. A Unidade.
O ser humano inteiro representado nos triângulos; corpo, alma e espírito representados
nos triângulos. O primeiro descendente traz as coisas do espírito; o primeiro ascendente traz as
coisas do corpo. Os segundos e terceiros e quartos triângulos, descendentes e ascendentes, tra-
zem as coisas da alma, sendo que os quartos triângulos trazem o perfume da Unidade à alma, e
os anseios da alma pela Unidade, mascarados pelo ego e pelos ideais.
Assim podemos entender o que fica óbvio: o que buscamos nunca iremos encontrar no
âmbito dos quatro pares de triângulos, ou seja, no âmbito de corpo, alma e espírito. O que busca-
mos, a Unidade e seus absolutos, como a liberdade, a confiança, o amor e a paz, jamais estarão
no âmbito do corpo, da alma ou do espírito; nem na consciência autoidentificada nem na consciên-
cia corporificada, em nenhum estado de consciência, nem na inconsciência. O que buscamos não
é um estado de espírito tampouco; não é um determinado estado especial entre estados, a ser
alcançado através de uma prática, ou de um método, nem de um processo no tempo. Buscamos
Ser, a Unidade, o fim da ilusão de separação. Buscamos o que é; o que sempre foi e sempre será,
o que sempre é, sem depender de pré-requisitos ou pré-condições. Não devemos comprar, nem
vender, gato por lebre. Como disse Jesus, chamado Cristo, “a César o que é de César e a Deus o
que é de Deus”. Devemos dar aos quatro pares de triângulos o que é do tempo e do espaço, o que
é condicionado e preso na roda de causa e efeito, entre causas e conseqüências; e dar ao quinto
triângulo o que é da Totalidade, ou Unidade, e que nenhuma ação no tempo irá produzir, pois não
existe caminho para o que é. O que é, já é. Isso é Ser.
VII
É no âmbito dos quatro pares de triângulos que a pessoa se forma, como reflexo do que é
chamado de “desenvolvimento da consciência”. Quando por volta do terceiro ano de idade a cons-
ciência na criança se dá conta de si mesma e a criança passa a falar “Eu” ao referir-se a si mesma,
diz-se que ela começa a entrar no estado pessoal de consciência, saindo de um estado pré-
pessoal. Nesse novo estado ela passa a ser uma referência para si mesma, e a psique ganha mai-
or estabilidade e consistência. Esse passo tem a ver com a maturação cerebral, que se prolonga
até o fim do desenvolvimento do lobo pré-frontal por volta dos 21 anos de idade, quando se diz que
o jovem entrou na idade adulta.
117
A consciência pessoal passa por um longo treinamento para se adequar às normas sociais,
desenvolver seus dons em talentos e habilidades, ganhar uma profissão e encontrar o seu lugar na
sociedade em que vive. Ao lado do seu condicionamento genético (primeiro triângulo ascendente)
e seu condicionamento espiritual que o impulsiona para a individuação (primeiro triângulo descen-
dente) – sendo que o processo de individuação é entendido como o ápice do desenvolvimento
humano, para algumas correntes de conhecimento, por se confundir com a busca da Totalidade –,
a consciência pessoal recebe um condicionamento social pela educação; seja a educação laica ou
religiosa, formativa ou profissionalizante.
Acredita-se que o espírito imortal guia a pessoa em sua vida terrena para o desenvolvi-
mento da alma. Cada acontecimento da vida como desafios e exercícios para o desenvolvimento
de novas capacidades e novos estados de ser, em um processo que não se interrompe com a
morte do corpo e a morte da pessoa. De fato, a pessoa morre, mas o espírito continua, passa por
experiências no pós-morte, voltando a reencarnar para completar suas lições inacabadas, enfren-
tar novas lições vindas do futuro, a aprender e realizar seus ideais, em um processo contínuo, até
atingir a Unidade como espírito pleno. Espírito que é visto como a essência da pessoa e que so-
brevive à pessoa, como realidade transpessoal, a reencarnar seguidamente, tantas reencarnações
quanto necessárias até atingir a plenitude do espírito realizado, em um mundo puramente espiritu-
al, entre seres puramente espirituais, que já completaram seu desenvolvimento e vivem na Unida-
de do mundo espiritual. Que pode então encarnar livremente, para ajudar os outros no caminho, e
é visto na terra como indivíduo pleno, que é o “Eu sou”, um Deus encarnado, que está no corpo,
mas é além do corpo, que é imortal e eterno, vivendo ao lado de Deus, como seu igual. Crença
que nos prende na armadilha do tempo e da continuidade, acenando com a imortalidade no fim de
um processo de desenvolvimento contínuo; imortalidade que é vista como o fim da busca, posto
que traz a felicidade eterna, e a tão sonhada Unidade. Prometendo gato e entregando lebre. Todo
processo ocorre no tempo. Um tempo infinito não faz o atemporal. Unidade não é do tempo, assim
como a liberdade, a confiança e o amor. Temporal é tudo aquilo que começa e acaba. Atemporal é
o fim do tempo. O verdadeiro des-envolvimento não é um processo no tempo, é a morte do tempo.
Tempo é o conhecido. É um acordar. Quando estamos sonhando, acordar não é um processo no
tempo, é um ato súbito e descontínuo, é o fim do sonho. Acordar é ver o que é. Semelhante ao
autoconhecimento.
118
Autoconhecimento é ver o que se é. Conhecer-se a si mesmo. Educação verdadeira é o
autoconhecimento. É além do corpo, da alma e do espírito. Não é pré-pessoal, nem pessoal, nem
transpessoal. Só acontece no momento presente, nem antes nem depois. Nenhum processo no
tempo pode realizar. É além da arte, da religião e da ciência. Embora seja uma arte. A arte de dis-
tinguir o gato da lebre. A arte de distinguir o verdadeiro do falso e o falso do verdadeiro, e não to-
mar um pelo outro.
Unmani Liza Hyde, diz em seu site na Internet (2009), traduzido livremente por mim:
Reconheça quem você é, e saiba que não existe, nem nunca existiu
nenhuma separação. Absoluta Totalidade, absoluta Unidade, absoluto Amor, isto
é o que você é. Ainda assim, buscar é um jogo dramático que a vida joga consi-
go mesma. Buscar preencher aquele vazio na minha vida que parece ser tão do-
loroso. Buscar algum tipo de segurança ou satisfação permanente, na esperança
de que um dia eu vou encontrar o que estou buscando. O que quer que seja, o
que está acontecendo agora nunca parece ser suficiente...
“Homem: conhece-te a ti mesmo” exortam os sábios de todas as eras. “Penso, logo existo”
e Descartes pensou que estava a conhecer-se a si mesmo. Autoconhecimento não é pensar em si
mesmo nem sobre si mesmo. Autoconhecimento não é pensar. Conhecer-se a si mesmo e reco-
nhecer a ilusão de si mesmo, e a verdade de si mesmo. É ver o que é. É reconhecer os condicio-
namentos e impregnações que iludem a consciência; reconhecer os desejos e os medos, a busca
de prazer e o evitar a dor; a busca de segurança e permanência na identificação consigo mesma e
prisão na roda da fortuna, a roda da sorte e do azar, da causa e do efeito. É ver-se como pessoa
insatisfeita e incompleta em busca da Unidade, que é além do pessoal e do transpessoal. A Unida-
de não se relaciona com a pessoa de forma alguma, nem com o corpo, nem com o espírito trans-
pessoal. É acordar para o que é, é o fim da consciência pessoal. É Presença.
119
Autoconhecimento é acordar para o quinto triângulo. É a morte do eu, do primeiro ao quar-
to triângulo descendente e do primeiro ao quarto triângulo ascendente. Simultaneamente. O corpo
continua vivo, expressando a Realidade, a Unidade. Presença caminhando pela terra. Um corpo
aberto à Presença. Um campo aberto ao amor. Confiança é total. Expressão única, singular, sem-
pre nova, momento por momento, da Verdade eterna de Ser. Até o dia em que desaparece tam-
bém o corpo. Então o que resta é o que sempre esteve presente. O fim da ilusão de ser um indiví-
duo, uma pessoa. É o desaparecimento da consciência de si mesmo, pessoal e transpessoal. É a
jóia da humanidade. O que todos buscam e ninguém encontra.
VIII
Como é isso? Então o que estamos fazendo aqui? Para que estudar, conhecer, experimen-
tar, praticar? Para que observar, investigar, aprender? Para que fazer um caminho de conhecimen-
to, um trabalho de consciência? Tem sentido isso? Se nenhum caminho leva a Roma, para que
viajar? A consciência identificada consigo mesma tem muitas perguntas e nenhuma resposta.
Ah!... Quer dizer que é só para os escolhidos, os eleitos, os que nasceram para isso? Tão
bem expresso na Tabacaria: “O mundo é para aquele que nasce para o conquistar, não para os
120
que pensam que podem fazer isso, ainda que tenham razão” – é verdade isso que Fernando Pes-
soa escreve? Afinal, é ou não é possível a Unidade? O que devemos fazer então?
Reconto aqui, livremente, uma conversa de Krishnamurti com um amigo, de seu livro “A
Única Revolução” (2001). É assim:
"Parece uma coisa interminável esta busca inglória, esta constante in-
trospecção e análise, esta vigilância. Já tentei de tudo; todos os ensinamentos
de muitas escolas, muitos sistemas de meditação – você sabe, todas as pro-
messas disponíveis. Continuo incompleto, vazio por dentro".
Por que você não começa pelo outro lado, o lado que você não conhe-
ce? Da outra margem, a qual você não tem possibilidade de ver desta margem?
Comece do desconhecido, ao invés de começar do conhecido; pois esse cons-
tante exame e análise somente fortalecem e condicionam ainda mais o conheci-
do. Se a mente vive a partir do outro lado, então esses problemas não existem.
"Mas, como vou começar do outro lado? Eu não o conheço, não sei on-
de está, não posso vê-lo”.
Quando você pergunta: “Como vou começar do outro lado?” – você está
ainda perguntando a partir deste lado. Portanto, não pergunte isto, mas comece
do outro lado; do lado que você não conhece nada; comece de outra dimensão,
que o pensamento, por mais astuto que seja, não pode apreender.
Mas, o que é que você conhece? Você só conhece o que já está aca-
bado, concluído. Você só conhece o passado. E estamos dizendo: comece da-
quilo que você não conhece, e viva a partir daí. Se você diz: "Como vou viver a
partir desse lugar?" – então você está convidando o padrão do passado. Mas, se
você vive a partir do desconhecido, você está vivendo em liberdade, agindo a
partir da liberdade e isso, afinal, é amor. Se você diz: "Eu sei o que é o amor" –
então você não sabe. Pois o amor não é conhecimento, não é memória, nem a
lembrança de um prazer. E como não é uma memória, nem uma lembrança, en-
tão viva daquilo que você não conhece.
“Realmente não sei do que você está falando. Você está tornando as
coisas ainda mais difíceis".
121
Estou propondo uma coisa muito simples. E estou dizendo que, quanto
mais você procura, mais você tem para procurar. O próprio procurar é o condi-
cionamento, e cada passo constrói um caminho que não leva a parte alguma.
Você quer que novos passos sejam dados para você; ou você quer dar seus
próprios passos esperando que o levem a uma dimensão totalmente diferente.
Mas, de fato, você não sabe o que tal dimensão é, então sejam quais forem os
passos que você dê, só poderão levá-lo àquilo que já é conhecido. Assim, largue
tudo isso e comece do outro lado. Fique em silêncio, e você vai descobrir.
IX
Sento-me com Li Po.
O velho poeta chinês, sábio sem idade, conta-me, o que parece acontecer.
Está sério, e seu rosto é tranqüilo como uma lagoa ao entardecer. Olha para mim sem ne-
nhuma pergunta; seu olhar inocente é o de uma criança sorrindo, os olhos brilham como diaman-
tes. Sua barriga está solta e seus ombros descansados; a paz irradia sem nenhum esforço, sem
nenhuma intenção. Ambas as mãos segurando a xícara com delicadeza e respeito, levam-na à
boca. Sua fala é mansa e, ao mesmo tempo, firme e segura, como quem respira profunda e silen-
ciosamente:
Só a montanha permanece.
Referências:
Basso, T. e Pustilnik, A. - “Corporificando a Consciência”, ICDEP, São Paulo, 2000, pág. 18.
122
Hyde, U.L. - www.not-knowing.com – 2009, pagina de rosto.
Krishnamurti, J. - “A Única Revolução”, Terra sem Caminho, RJ, 2001, pág 145.
Krishnamurti, J. “A Busca”, Terra sem Caminho, São Paulo, 2005, págs. 104-109.
Parsons, T. - “All There Is”, Open Secret, Inglaterra, 2003, pág. 108.
Leituras Complementares:
Balsekar, R.S. - “The Ultimate Understanding”, Watkins, Inglaterra, 2002.
Renard, G.R. - “The Disappearance of the Universe”, Hay House, USA, 2004.
Roberts, B. - „The Experience of No-self”, State University of New YorK, USA, 1992.
123
Capítulo 9
O Ser Quântico
Multidimensionalidade quântica, o ‘eu’ (persona) e o Ser (Self), o corpo na visão da Psicologia
Transpessoal
124
Capítulo 10
Consciência
Ego, Cartografias, Não-localidade, Campos Morfogenéticos
125
Capítulo 11
Consciência Transpessoal
Fundamentos Quântico-Holográficos
O que é a consciência?
Pela primeira vez na história humana temos condições científicas para entender a natureza
da consciência, e sua relação com as práticas de educação saúde, e espiritualidade.
Desde o século XVII, a questão da consciência foi sendo relegada a um plano secundário.
Graças às modernas pesquisas no campo das Neurociências, Física Quântico-Holográfica, Teoria
da Informação Quântica, Teorias da Auto-Organização, Inteligência Artificial, Psicologia Transpes-
soal e Filosofia da Mente, a consciência tornou-se na atualidade um dos principais temas de
estudo e discussão da ciência.
A consciência não é um problema científico qualquer, mas uma questão que nos interessa
muito de perto, pois é por meio de nossa consciência que nos situamos no mundo. A compreensão
de sua natureza pode nos conduzir a uma nova concepção de nós mesmos, e de nosso lugar no
universo.
126
O Código Cósmico
A evolução cósmica se processa por meio da emergência no espaço-tempo de um código
informacional quântico-holográfico que auto-organiza os padrões básicos da estrutura do universo.
Este código cósmico é constituído por patamares que correspondem cada um ao surgimento de
um novo mecanismo de memória mais complexo, com códigos informacionais específicos.
Este Código Cósmico constitui um vasto reservatório de informação, uma ordem informaci-
onal significativa fundamental. É uma propriedade primária e irredutível tão básica e incorporada à
organização do universo quanto a energia, a matéria, e o espaço-tempo. Essa linguagem cósmica
se complexificou progressivamente, a partir do Big Bang ou o que tenha iniciado esta imensa cos-
mogênese, e se auto-organizou em alguns bilhões de anos em energia, matéria, vida e consciên-
cia. Minha visão desta imensa embriogênese cósmica, que parece estar chocando este universo,
há aproximadamente 13 bilhões de anos, e do qual somos a parte consciente, é que cada um
destes códigos informacionais corresponde ao surgimento de um processo inteligente de
memória auto-organizadora no universo, cada um deles gerando um domínio cósmico es-
pecífico: os reinos da evolução cósmica. Reinos que na verdade representam os níveis de
organização da consciência no universo.
2- A Biosfera
É o segundo nível de complexificação do universo, onde observamos a emergência de um
processo auto-organizador baseado na interação de dois tipos de macromoléculas, os ácidos nu-
cléicos (DNA e RNA), e as proteínas (estruturais, e funcionais ou enzimas), controlado por um
tipo de memória ou código genético que estrutura e mantém a vida.
3- A Noosfera
É o domínio das idéias, o terceiro nível de complexificação cósmica, que emerge na evo-
lução da vida como um processo auto-organizador baseado no código neural, que é dependente
também do DNA e do RNA, acrescido dos neurotransmissores, e de íons como sódio, potássio,
127
cálcio e magnésio que permitem a interconectividade neuronal. Este processo organiza e mantém
o funcionamento do cérebro e da mente.
4- A Conscienciosfera
O mais elevado e complexo nível de evolução alcançado pelo universo. É um processo au-
to-organizador gerador de consciência, baseado em campos quântico-holográficos constituídos
por fibras finas, que é dependente da dinâmica espectral pré-espaço-temporal descrita por Karl
Pribram. Estes campos são os responsáveis pela interconectividade informacional, local (newtoni-
ana clássica), e não-local (quântica holística), entre a mente humana e a mente-universo.
Todo este fluxo universal de holoinformação (local + não-local), ou seja, esta ordem
transmitida de modo significativo e inteligente através de todos os níveis de complexidade do uni-
verso, modela os processos auto-organizadores inteligentes geradores de consciência e espiritua-
lidade na mente humana.
128
que ele denomina hard problem (o problema difícil) e easy problem (o problema fácil). O “easy
problem”, – que não é tão fácil assim como pensam os filósofos – refere-se ao que compreende-
mos sobre o funcionamento do cérebro e a experiência consciente com o uso da moderna ciência
e tecnologia. O “hard problem” seria a experiência interior, nossa e dos outros, que experienciamos
ao olhar uma rosa vermelha, ou seja, a qualidade da nossa experiência consciente ou qualia. A
rosa vermelha que admiramos e cheiramos não é o mesmo que o substrato neural desta experiên-
cia. A “vermelhitude” da rosa não são os comprimentos de onda que correspondem à cor vermelha
que nossos modernos computadores estão descrevendo!!
129
2- A interpretação causal holográfica da teoria quântica desenvolvida por David Bohm
A idéia desenvolvida por Eccles de uma interconexão entre o cérebro e o espírito, por meio
de microsítios quânticos denominados por ele dendrons,( redes de dendritos ondulatórios) que se
conectariam com os psychons ( os construtos filosóficos da mente propostos por ele), influenciou
profundamente o desenvolvimento deste modelo desde os anos 70 do século XX, quando ainda
estudante de medicina, pela primeira vez entrei em contato com as idéias de Eccles.
Este estado cerebral altamente coerente, gera o campo informacional e holográfico cortical
não-local de consciência que interconecta o cérebro humano ao cosmos quântico-holográfico des-
crito na teoria quântica de David Bohm.
Esse estado informacional holográfico altamente ordenado é distribuído por todo o cére-
bro, o que demonstra que os processos quânticos de interação entre dendrons e psychons, descri-
tos por Eccles e Beck, não são limitados à fenda sináptica, como preconizado por eles, mas são
muito mais amplos e holograficamente estendidos a todo o cérebro. Como Pribram, vejo isto não
como uma contradição, mas como uma extensão natural das idéias seminais de Eccles.
Não-localidade
A não-localidade é uma propriedade fundamental do universo, comprovada experimen-
talmente no mundo quântico, e mais recentemente em nosso universo macroscópico, que de-
monstra a existência de interações instantâneas entre todos os fenômenos do universo. É uma
consequência da Teoria do Campo Quântico, desenvolvida por Umesawa que conseguiu unificar
130
os campos eletromagnético, nuclear e gravitacional, até então considerados independentes e in-
terpretados de forma isolada, em uma totalidade indivisível subjacente. A teoria do campo quân-
tico explica os fenômenos subatômicos, microscópicos e os macroscópicos, como a superconduti-
vidade, e o laser, e é considerada a mais fundamental teoria física do universo. O campo quântico
não existe fisicamente no espaço-tempo, como os campos gravitacional e eletromagnético da física
newtoniana clássica, apesar de ser matematicamente similar a eles. Isto lhe dá um caráter peculiar
não-local, ou seja, não se localiza em nenhuma região do espaço-tempo. Quando um fenômeno
não-local acontece, ele instantaneamente influencia o que ocorre em qualquer outra região do es-
paço-tempo, sem que para isso seja necessário nenhuma troca de energia ou informação entre
essas regiões. Segundo a física clássica, e o nosso bom senso, seria impossível existir a não-
localidade, o que gerou a famosa controvérsia entre Einstein e Bohr, em 1927, na 5ª Conferência
Solvay, na Bélgica. Einstein não podia admitir a existência de fenômenos não-locais, tendo em
vista que em sua Teoria Especial da Relatividade, publicada em 1905, a velocidade da luz c, igual
a 300.000 km/s, é considerada uma constante universal, que não pode ser ultrapassada. Esta con-
trovérsia acabou originando o célebre Paradoxo Einstein-Podolski-Rosen, em que Einstein e seus
colaboradores demonstraram com um experimento de pensamento que, devido à impossibilidade
uma partícula viajar mais rápido que a luz, a física quântica estaria incompleta. Postularam ainda
a existência de „variáveis ocultas‟ que seriam propriedades desconhecidas dos sistemas que expli-
cariam esta discrepância. Mas, contrariamente ao esperado, foi demonstrado matematicamente
por John Bell em 1964, que Einstein estava errado, e que após um átomo emitir duas partículas
com spins opostos, se o spin de uma delas for alterado, mesmo que elas estejam separadas por
anos-luz de distância, o spin da outra se modifica instantaneamente, revelando uma interação
não-local entre elas, e a existência de uma unidade cósmica universal subjacente.
131
informação ativa que guia a partícula ao longo de seu trajeto. O potencial quântico é descrito por
Bohm como um novo tipo de campo sutil em sua forma e que não decai com a distância.
Sistemas holográficos
São sistemas geradores de imagens tridimensionais, em que a imagem virtual, ou holo-
grama, é criada quando, por exemplo, um laser incide sobre um objeto, e este o reflete sobre uma
placa ( como se fosse um filme). Se sobre essa placa incidir um segundo laser, produzindo uma
mistura das ondas do primeiro laser com as do segundo, o padrão de interferência de ondas resul-
tante, armazenará a informação acerca da forma e do volume do objeto, e será refletido pela pla-
ca no espaço, gerando uma imagem tridimensional do objeto. O relevante é que nos sistemas
holográficos cada parte do sistema contém a informação do todo completa sobre o objeto;
se quebrarmos a placa em pedaços, cada pedaço refletirá a imagem tridimensional do objeto no
espaço, demonstrando que o todo está nas partes, assim como cada parte está no todo. Esta
propriedade fundamental dos sistemas holográficos, foi descrita por Dennis Gabor, que ganhou o
Prêmio Nobel pela criação matemática do holograma.
Matéria e Mente
As formulações matemáticas que descrevem a curva harmônica resultante das interferên-
cias das ondas, são as transformações de Fourier, as quais Denis Gabor aplicou na criação do
holograma, enriquecendo estas transformações com um modelo em que o padrão de interferência
reconstrói a imagem virtual do objeto, pela aplicação do processo inverso. Ou seja, a partir da di-
mensão espectral de frequências, pode-se reconstruir matematicamente, e experimentalmente, o
objeto na dimensão espaço-temporal.
Como Pribram demonstra de forma brilhante neste livro: “Um modo de interpretar o dia-
grama de Fourier é olhar a matéria como sendo uma “ex-formação”, uma forma de fluxo externali-
zada (extrusa, palpável, concentrada) Por contraste, o pensamento e sua comunicação (mentali-
zação) são a conseqüência de uma forma “internalizada” (negentropica) de fluxo, sua in-formação.”
E mais adiante:
O universo holográfico
Este modo de organização holográfica, é também o que David Bohm aplicou à teoria
quântica. No modelo de universo de Bohm, o espaço e o tempo são misturados, "embrulhados" em
uma dimensão espectral de freqüências, uma ordem oculta, implícita, sem relações espaço-
temporais. Quando neste campo de freqüências surgem flutuações, “ondulações” mais intensas,
padrões semelhantes aos holográficos estruturam uma dimensão espaço-temporal, uma ordem
explícita, que corresponderia ao nosso universo manifesto.
133
Bohm afirma que “na ordem implícita tudo está introjetado em tudo. Todo o universo está
em princípio introjetado em cada parte ativamente, por meio do holomovimento... O processo de
introjeção não é meramente superficial ou passivo, e cada parte está num sentido fundamental,
internamente relacionada em suas atividades básicas ao todo, e a todas as outras partes.
Metáforas alquímicas como “tudo o que está em cima é igual a tudo o que está embaixo”,
e concepções como “o todo no tudo e o tudo no todo” , de Hermes Trimegistus descritas no Cabail-
lon, assim como o simbolismo das afirmações judaico-cristãs do tipo “O pai está dentro de nós”, e
“Assim na terra como no céu” , são exemplos de que essa concepção holográfica está enraizada
nos arquétipos da consciência humana desde os mais antigos pensamentos registrados.
Transcrevo abaixo a metáfora budista da Rede de Indra, que parece ser a primeira descri-
ção de um sistema holográfico ( ou como Capra coloca, de um sistema bootstrap) na história hu-
mana, feita há cerca de 2500 anos.
No distante castelo celeste do grande deus Indra, existe uma maravilhosa rede de jóias
preciosas dispostas de tal modo que se estendem infinitamente em todas as direções. Cada jóia é
um “ôlho” brilhante da rede, e como a rede é infinita em todas as dimensões, as jóias são em nú-
mero infinito. Suspensas como estrêlas brilhantes de primeira magnitude, são uma visão maravi-
lhosa para os olhos. Se olharmos de perto uma das jóias, veremos em sua superfície o reflexo de
todas as outras jóias, e que cada uma das jóias refletida nela, está refletindo também todas as
outras jóias, num infinito processo de reflexão.
A metáfora da Rede de Indra, segundo Francis Cook, “simboliza um cosmos em que existe
uma infinita interrelação entre todas as partes , cada uma definindo e mantendo todas as outras. O
cosmos é um organismo auto-referente, auto-mantenedor, e auto-criador.” É também não-
teleológico, pois, “não existe um início do tempo, nem um conceito de criador, nem um questiona-
mento sobre o propósito de tudo”. O universo é concebido como uma dádiva, sem hierarquia: “Não
tem centro, ou talvez, se existe um, ele está em todo lugar”
134
Jibu, Yasue and Pribram desenvolveram uma dinâmica quântica cerebral que é de nature-
za holonômica, baseada no conceito de logon, ie, na função (wavelets) de Gabor, e nas transfor-
mações de Fourier. Nessa concepção o universo e a própria estrutura quântico-holográfica da
consciência, são concebidos como uma unidade tal como na concepção de mônadas de Leibnitz.
Em sua Monadologia, Leibnitz afirma que cada mônada , tal como um pequeno espelho, reflete
sua própria imagem do universo.
Pribram afirma que além de cada organismo refletir o universo é possível que o universo
esteja refletindo cada organismo que o observa. Portanto cada consciência está continuamente
refletindo o todo, e o todo está refletindo cada consciência, por meio do fluxo holoinformacional em
um processo dinâmico infinito distribuído e auto-referencial.
Sabemos que os microtúbulos estudados por Hameroff e Penrose , são excepcionais con-
dutores de pulsos de energia. Esses pulsos são transmitidos por túbulos que possuem as paredes
constituídas pelas proteinas MAP2s que são modeladas de tal modo que os pulsos chegam inal-
terados ao outro extremo do microtúbulo. Hameroff descobriu ainda que existe um elevado grau
de coerência quântica entre microtubulos vizinhos, e que eles poderiam funcionar como “dutos de
luz” e “guias de ondas” para os fótons, enviando essas ondas de uma célula a outra através do
cérebro sem perda de energia, exatamente como na superradiância. Este processo poderia orga-
nizar ou informar moléculas em um processo do tipo Efeito Frölich e agir sobre as moléculas dos
sistemas do organismo humano de modo a energisá-los de modo positivo ou negativo. Richard
Amoroso e eu, estamos propondo uma nova teoria das doenças autoimunes, com base nesta pos-
sibilidade. É uma teoria imunológica noética com características auto-organizadoras e quântico
holísticas, perfeitamente compatível com a teoria clonal que deu o Premio Nobel a Jerne. .
135
Yasue and Jibu também demonstraram que a mensagem quântica deve se processar por
meio de campos vibracionais e coerência quântica através dos microtúbulos.
Pribram, Yasue, Hameroff e Scott Hagan do Dept of Physics da McGill University desen-
volveram uma teoria sobre a consciência na qual os microtubulos e os dendritos podem ser vistos
como a internet do corpo humano ( ver Quantum optical coherence in cytoskeletal microtubules:
implications for brain function- BioSystems, 1994; 32: 95-209 ).
Os microtúbulos dos dendritos são bem diferentes dos microtúbulos dos axônios. Nos axô-
nios os microtúbulos têm todos a mesma polaridade, e são contínuos. Já os microtúbulos dendríti-
cos são curtos e interrompidos, com polaridades misturadas, e interconectados pela MAP2, a pro-
teína associada aos microtúbulos, específica dos dendritos. Segundo Hameroff, os circuitos MAP2
dos microtúbulos dendríticos são ideais para redes de processamento informacional, enquanto os
microtúbulos axonais unipolares são ideais para transferência de informação.
Por meio desse processamento quântico cada neurônio poderia fazer login e ao mesmo
tempo falar com outros neurônios simultaneamente, de modo não-local (entanglement), criando
uma coerência global das ondas por todo o cérebro, gerando o processo de superradiância. Os
fótons poderiam assim ser transmitidos ao longo dos microtúbulos como se fossem transparentes,
por um processo físico conhecido como transparência auto-induzida, comunicando-se com todos
os outros fótons do nosso corpo de modo instantâneo e não-local. Isso geraria uma cooperação
coletiva das partículas subatômicas nos microtúbulos, que seria distribuída por todo o sistema ner-
voso e provavelmente por todas as células do nosso corpo.
Os físicos italianos, Del Giudice and Preparata demonstraram que as moléculas de água
no cérebro são campos de energia coerentes e se estendem até 3 nanometros, ou mais, para fora
do citoesqueleto ( microtúbulos ), o que nos leva a pensar que a água no interior dos microtúbulos
possam estar ordenadas. Estes autores demonstraram que essa focalização e coerência de ondas
pode produzir feixes de 15 nanometros de diâmetros que é precisamente o diâmetro interno dos
microtúbulos. Jibu e Hameroff chegaram à mesma conclusão demonstrando que os diâmetros
internos de 15 nanômetros dos microtúbulos são perfeitos para guiar a luz, de modo livre, sem
perdas termais.
Esses experimentos levaram Del Giudice and Preparata a propor uma conclusão paradig-
mática, herética mesmo, que já ocorrera a Fritz Popp de que a consciência é um fenômeno global
ocorrendo em todo o organismo, e não somente no cérebro.
Talvez a consciência seja luz coerente em sua essência, afirma Lyne McTaggart, em seu
livro The Field.
136
Kauffman, em seu mais recente livro Reinventing the Sacred, 2008, relata que as pesqui-
sas com moléculas envolvidas no processo de fotossíntese, demonstraram que a molécula de clo-
rofila que captura o fóton, e a proteína antena que a mantém, suportam um estado de coerência
quântica por um tempo muito longo. Parece que a proteína antena suprime a decoerência, reindu-
zindo coerência em partes decoerentes da molécula de clorofila. Kauffman afirma que “ desde que
a super elevada eficiência na transferência de energia luminosa para energia química é crítica
para a vida, esses resultados sugerem muito fortemente que a seleção natural atuou sobre a prote-
ína antena para melhorar sua habilidade de sustentar o estado de coerência quântica”
Esses processos quânticos distribuídos por todo o organismo, nos permitem conceber
uma teoria unificada da mente e da matéria tal como a totalidade cósmica indivisível de David
Bohm, e conceber o universo o corpo e a consciência como uma vasta e dinâmica rede holoinfor-
macional inteligente de troca de informações, energia e matéria.
Schemp e Marcer acreditam que nossas memórias estão no Campo do Ponto- Zero, que
em minha proposta holoinformacional quântico-holográfica seriam o fluxo dinâmico holoinformaci-
onal entre o cérebro e o cosmos, de modo similar mas não idêntico ao holomovimento de Bohm.
Como diz Mc Taggart, Pribram e Yasue poderiam perfeitamente ter proposto que nossas memórias
poderiam ser simplesmente, uma emissão coerente de ondas vindas desse Campo, e que as me-
mórias a longo prazo seriam grupos estruturados de ondas de informação. Isso poderia explicar a
instantaneidade deste tipo de memórias, que não necessitam de nenhum mecanismo de rastrea-
mento que procure informações através de anos de memórias.
O exposto acima nos permite vislumbrar e conceber uma teoria unificada da mente e da
matéria tal como a totalidade indivisível proposta por David Bohm, e assim concebermos o uni-
137
verso como uma vasta e dinâmica rede holoinformacional inteligente de troca de informações, e-
nergia e matéria, tal como propomos nesse paper
Seja qual for o mecanismo de recepção no cérebro, que como demonstrou Pribram, está
distribuído por todo o cérebro por meio da função holográfica de Gabor, ele está continuamente
acessando o que denominamos Campo Holoinformacional Universal.
A interação cérebro-universo tem que ser obrigatoriamente uma conexão não-local, o que
nos levou a expandimos nossa idéia em direção à essa proposta holoinformacional, na qual os
padrões dinâmicos quânticos cerebrais com suas redes neurais e campos holográficos são parte
ativa do campo informacional quântico-holográfico cósmico, gerando uma interconexão informacio-
nal simultaneamente não-local (quântico-holística), e local (mecanicística-newtoniana), ou seja,
holoinformacional. Aplicando a propriedade matemática básica dos sistemas holográficos, em
que cada parte do sistema contem a informação de todo o sistema, aos dados matemáticos da
física quântica de Bohm, e aos dados experimentais da teoria holográfica de Pribram, propuse-
mos, que esta interconectividade universal, baseada nos campos quânticos não-locais de Umeza-
wa, nos permitiria acessar toda a informação codificada nos padrões de interferência de ondas
existentes no universo desde sua origem, pois a natureza holográfica distribuída do universo, faz
com que cada parte, cada cérebro-consciência, contenha a informação do todo, tal como nas
mônadas de Lebnitz.
138
criativos” (Erich Harth,1993) e “hiperestruturas” (Nils Baas,1995), capazes de se integrarem em
sistemas com padrões de conectividade distribuídos e paralelos, como o “Global Workspace”
(Newman and Baars,1993), e o “Extended Reticular-Talamic Activation System”-ERTAS de James
Newman (1997).
Este campo quântico-holográfico universal pode ser compreendido como uma rede cósmi-
ca inteligente?
139
sendo possível afirmar que a dimensão inteligência-informação sempre esteve presente em
todos os níveis de organização da natureza.
Matéria, vida e consciência não são entidades separadas, capazes de serem analisadas
em um arcabouço conceitual cartesiano, analítico-reducionista, mas uma unidade holística indi-
visível, um campo quântico holoinformacional inteligente auto-organizador que vem se desdo-
brando há bilhões de anos em uma infinita e dinâmica holoarquia cósmica.
Einstein gostava de dizer “quero conhecer os pensamentos de Deus... o resto são deta-
lhes”.
O bem consiste em preservar a vida, em lhe dar suporte, em procurar levá-la ao seu mais
alto valor. O mal consiste em destruir a vida, em ferí-la ou destruí-la em plena florescência.
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145
Capítulo 12
Vida e Morte
146
PARTE III
147
Capítulo 13
148
Capítulo 14
Respiração Holotrópica
149
Capítulo 15
150
Capítulo 16
151
PARTE IV
152
Capítulo 17
Um Abraço Integral
Práticas para a Saúde nos Quatro Quadrantes do Desenvolvimento Humano
Sua produção teórica tem se desdobrado ao longo do tempo (pelo menos cinco revisões),
alcançando uma extrema complexidade e influenciando diretamente uma ampla geração de tera-
peutas transpessoais. Wilber desenvolveu uma metodologia integrativa, e não eclética, no estudo
da consciência humana, conseguindo integrar em uma cartografia harmônica as principais contri-
buições dos teóricos de diversas áreas do saber humano; sendo dado destaque a sua incrível ca-
pacidade de integrar as visões espirituais (orientais e ocidentais) no estudo do ser humano.
23
“Kosmos, que significa o Todo padronizado de toda a existÊnica, incluindo os reinos fisico, emocional, mental e espiritual.
A realidade suprema não era meramente o cosmos, ou a dimensão física, mas o Kosmos, as dimensões física, emocional,
mental e espiritual, todas juntas” (WILBER, 2003, p. 10).
24
Filosofia perene é um termo utilizado por Huxley (2002) e Wilber (2000) para designar os pontos de convergência presen-
tes entre as principais tradições espirituais do mundo.
25
Pense nesta escada como uma espiral holográfica.
153
abaixo), que se inicia no degrau zero (matrizes perinatais) e se desdobra até o degrau 10 (nível
último).
Os quatro degraus iniciais formam a base do ser no seu movimento de evolução e apre-
sentam a característica de serem pré-pessoais, ou seja, a noção de um “eu separado” ainda não
emergiu, sendo o “degrau zero”, matrizes perinatais, foco de estudo de psicanalistas pioneiros
como Otto Rank, Françoise Dolto e Maud Monnoni e do transpessoal Stanislav Grof.
Neste momento os aspectos que envolvem a gestação e nascimento são destacados como
relevantes para organização do psiquismo. Os trabalhos transpessoais de Grof (1988, 1994,
1997a, 1997b, 2000) reafirmam as descobertas freudianas e rankianas, e ampliam a cartografia do
psiquismo através da introdução da noção das matrizes perinatais.
154
O primeiro degrau corresponde ao nível da matéria, da sensação e da percepção, ou dos
três primeiros skandhas budistas, bem como engloba o nível sensório-motor de Piaget. Este pri-
meiro degrau ou nível é o do eu físico, o qual, primeiramente, encontra-se em unidade indiferenci-
ada com o meio-ambiente material. Esse tipo de eu ainda não está em condições de se distinguir
do meio-ambiente material, instaurando uma relação diferenciada com ele, bem como não sabe
ainda separar-se de um outro eu. O momento final dessa etapa sinaliza, entretanto, a saída da
unidade indiferenciada, de tal forma que o eu físico começa gradativamente a afirmar-se diante da
realidade objetiva. Isto lhe permite, então, separar-se do outro subjetivo ou objetivo a fim de poder
lidar com ele, sem sentir-se perdido e, por assim dizer, “totalmente atolado” no outro.
Se, no entanto, uma primeira dissociação tem lugar, então o eu se vê diante de uma outra
tarefa, a saber, construir seu mundo emocional. À primeira dissociação tem de seguir uma segun-
da, a fim de que a consciência possa afirmar seus sentimentos frente a outros objetos e outros
seres humanos, ao invés de confundir seus sentimentos com sentimentos alheios.
155
do outro, desempenhar o papel do outro, entender e praticar o intercâmbio de papéis. Assim, te-
mos no terceiro degrau, a mente representacional que pode ser associada ao estágio pré-
operatório de Piaget, e subdivide-se em estágio de símbolos e estágio de conceitos.
Na próxima (quinta) fase de desenvolvimento as leis e normas que até então regiam as vi-
vências da consciência são questionadas. Não se trata mais de saber o que é bom para minha
família, o grupo social ou o povo, aos quais alguém está ligado. Antes de mais nada, trata-se de
determinar o que é justo para todos os povos, apesar e levando em conta as suas diferenças. A
identidade da consciência centrada em um círculo social acanhado é abandonada em favor de
uma identidade focada em todo o planeta. Um horizonte de novas possibilidades é aberto, na me-
dida em que a totalidade das normas e leis está em questão e torna-se problemática. Assim, pela
primeira vez, surgiu um nível de consciência no qual ela, liberta do seu narcisismo, egocentrismo e
etnocentrismo, toma como seu próprio interesse o mundo como tal, justiça e condições materiais
de vida dignas para todos. Com isso, uma moralidade pós-convencional surgiu, graças à qual o
indivíduo se orienta pelo bem-estar da humanidade.
No sexto degrau, que aprofunda ainda mais a integração entre corpo e faculdade mental, o
eu inicia a objetivação do corpo e da faculdade mental, a sua tematização, bem como o progressi-
vo distanciamento do corpo e da mente. Ela é denominada a estação da lógica sistêmica, visto que
ela considera os objetos como um todo formado por uma multiplicidade de sistemas, dentro do
qual, e em relação a outras totalidades, os objetos ganham sentido. Na medida em que a consci-
ência torna-se testemunha do corpo e da faculdade mental, também sua faculdade reflexiva torna-
se mais ativa, de tal forma que ela começa a transcender corpo e nooesfera.
156
Isto acarreta o aprofundamento do ponto de vista pós-convencional, de tal modo que as
posições com base em normas e leis de determinada sociedade não encontram mais legitimação
para esse nível. Há, pois, um grande risco de que o eu sistêmico perca-se nas múltiplas perspecti-
vas que lhe são abertas, afundando-se em um completo relativismo. A pluralidade das perspecti-
vas não significa, contudo, que todas são igualmente corretas, já que valores orientados segundo
uma perspectiva global são melhores do que aqueles orientados de acordo com uma perspectiva
centrada apenas no indivíduo ou em apenas um povo. Aqui, portanto, reside o perigo de uma “do-
ença existencial”, em que a consciência, insatisfeita com todas as razões capazes de dar sentido à
vida, não consegue mais coordenar as diversas perspectivas.
À supra-alma está associada a um novo tipo de moralidade, a saber, a compaixão com to-
dos seres. A compaixão não é uma coação para a ação, mas uma ação espontânea e gratuita. Ao
levar a cabo a integração da fisioesfera, bioesfera e nooesfera, o nível psíquico leva a efeito a ex-
periência consciencial supramental da unidade dessas três esferas. Não é por acaso que esse
nível tanto transcende quanto inclui a última estação.
157
A evolução da consciência ainda não alcançou seu estágio final. A nona estação eleva-a
ao plano causal. Ele é o plano das formas, a partir das quais os níveis inferiores são moldados. Na
tradição filosófica ocidental esse nível encontra sua correspondência no mundo das Idéias de Pla-
tão e na hipóstase do Espírito, de acordo com a filosofia plotiniana. Ela sinaliza tanto a identidade
do pensamento com o ser quanto a totalidade do ser e, nessa medida, contém as Formas (Idéias)
que estruturam toda “a grande cadeia do ser”. Aqui estão as condições “formais” que conferem a
todos os seres sua figura ontológica específica.
Finalmente, a consciência faz a sua experiência decisiva que a leva a transcender todas as
formas em direção ao sem-forma, acima de toda discursividade e dualidade: o Uno em Plotino, o
nirguna (ausência de qualidade) na tradição do vedanta, o shunyata (vacuidade) na tradição budis-
ta. O sem-forma não pode mais entrar no jogo dos atributos, já que, enquanto incondicionado, ele
tem de ser privado de toda forma, a fim ser a fonte de todas as formas. Nesse específico sentido,
ele é a vacuidade simples ou o puramente negativo: nem isto, nem aquilo. O sem-forma não per-
tence mais a um plano consciencial específico. Ele é simplesmente aquilo em que a consciência e
seu objeto se encontram, também aquilo do qual eles surgem e também aquilo para o qual eles
retornam. Ele é “simultaneamente” imanente e transcendente a todos os níveis de desenvolvimen-
to consciencial. Nenhum desses níveis é capaz de exauri-lo, pois o sem-forma constantemente os
põe e transpõe.
A perspectiva transpessoal busca, portanto, incluir uma visão global da experiência huma-
na, daí trabalhar com o modelo do espectro total da consciência e propor uma intervenção que
abranja todos os níveis e todos os quadrantes. A expressão “todos os níveis” refere-se às ondas
da existência que vão da matéria ao corpo, do corpo à mente, da mente à alma e desta ao espírito;
“todos os quadrantes” refere-se às dimensões do eu, do nós e do isto (ou eu, cultura e natureza).
De forma geral, uma saúde integral do tipo “todos os níveis e todos os quadrantes” levará a exerci-
26
Psicólogos como Bruner, Flavell e Arieti (1967) observaram que existem muitas evidências sobre uma estrutura cognitiva
além da “operacional formal” de Piaget ou superior a ela. Esta estrutura tem sido denominada de “dialética”, “integrativa” e
“sintético-criativa”, contudo Wilber prefere “visio-lógico”, pois enquanto a mente formal estabelece relações, a visio-lógico
“estabelece redes de relações”, uma visão abrangente e panorâmica aliada a uma alta capacidade de síntese altamente
integradora.
158
tar as ondas físicas, emocionais, mentais e espirituais, no eu, na cultura e na natureza, ou seja
deve contemplar os quatro quadrantes do Kosmos.
SUBJETIVO OBJETIVO
Intencional Comportamental
EU ISTO
159
INFERIOR ESQUERDO (IE) INFERIOR DIREITO (ID)
INTERIOR-COLETIVO EXTERIOR-COLETIVO
INTERSUBJETIVO INTER-OBJETIVO
Cultural Social
NÓS “ISTOS”
O quadrante superior esquerdo diz respeito aos aspectos individuais e interiores do indivi-
duo, tal como ela é estudada pela psicologia do desenvolvimento, tanto em suas formas de mani-
festação convencionais como também contemplativas. É o aspecto subjetivo da consciência e con-
tém todo o espectro do desenvolvimento consciencial. Esse quadrante faz uso da linguagem da
primeira pessoa do singular (EU) para relatar e interpretar as vivências internas do fluxo interior da
consciência de cada indivíduo. É segundo Wilber (2002, p. 78) a “sede da estética, ou a beleza que
está no „eu‟ do observador”, enfim, diz respeito a todo o aspecto subjetivo e intencional do ser.
A saúde integral neste quadrante engloba o cuidado com os níveis emocionais, mentais e
espirituais.
O nível emocional - engloba uma série de práticas que visam o manejo das emoções atra-
vés da respiração e do uso consciente da sexualidade. Busca-se a “Transmutação de Emoções”,
principalmente das emoções negativas através de práticas como o “t‟ai chi, ioga, bioenergética,
27
circulação do prana ou energia do sentimento, qi gong” e “transmutação de emoções, treinamen-
to de inteligência emocional, bhakti ioga (práticas devocionais), prática emocional cautelosa, ton-
28
glen (meditação de troca compassiva), arte e expressão criativa” . Wilber (2006, p. 261) destaca
que o trabalho com o “Sexo (ou Ioga sexual) se concentra nos aspectos tântricos do relacionamen-
to, sobretudo usando os quadrantes SE e IE como ponto para o despertar.”
Neste nível também se inclui as práticas que visam o trabalho com a sombra, ou inconsci-
ente reprimido. De forma geral, este trabalho visa acessar e integrar aspectos negligenciados ao
27
Wilber, 2002, p. 130.
28
Wilber, 2006, p. 260.
160
longo do desenvolvimento com o objetivo de favorecer uma maior integração do ser consigo, com
o outro e com o mundo. Wilber sugere como recurso para o trabalho com a sombra a “terapia Ges-
talt, terapia cognitiva, processo 3-2-1, trabalho com os sonhos, interpessoal, psicanálise, arte e
29
musicoterapia”
Nível do Espíritual – aqui são incluídos as práticas e conteúdos voltados para o desenvol-
vimento de estados meditativos ou contemplativos; que buscam favorecer uma ampliação da cons-
31
ciência que permita incluir o máximo possível as várias dimensões do humano. O “espiritual” tem
a mesma conotação atribuída por Röhr (2006, p. 15-16).
Não se confunde essa dimensão com a religiosa, que em parte pode in-
cluir a espiritual, mas que contém algumas características como as da revelação
como intervenção direta de Deus e de um tipo de organização social que dessa
forma são estranhas ou não necessárias à dimensão espiritual. Podemos nos
aproximar à dimensão espiritual identificando uma insuficiência das outras di-
mensões em relação ao homem nas suas possibilidades humanas. Posso viver
nas demais dimensões sem ser comprometido com nenhum aspecto delas. En-
tro na dimensão espiritual no momento em que me identifico com algo, em que
eu sinto que esse se torna apelo incondicional para mim. Identificamos, por e-
xemplo, fenômenos humanos, freqüentemente pouco refletidos, mas onipresente
na nossa vida como a liberdade e a crença no sentido da vida como elementos
da dimensão espiritual, e de fato eles só existem na medida em que me com-
prometo com eles. Podemos incluir na dimensão espiritual todos os princípios é-
ticos e filosóficos que precisam, para se tornarem verdadeiros, da minha identifi-
cação com eles. Não se trata na dimensão espiritual de uma identificação so-
mente ao nível do pensamento e do discurso. Trata-se de uma identificação na
totalidade, incluindo necessariamente um agir correspondente. Um saber que
não se expressa na minha vida prática, seja ela pública ou particular, não alcan-
çou ainda a dimensão espiritual. Uma convicção com que não me identifico por
inteiro serve para camuflar lados de mim que não consigo ou não quero enxer-
gar, e leva fatalmente a desequilíbrios internos e externos. As certezas sobre a
29
Wilber, loc. cit.
30
Ibid, p. 259.
31
Por ampliação da consciência queremos sugerir o desenvolvimento da plena atenção para o momento vivido.
161
própria identidade não são de natureza racional, mas intuitiva. Por isso chamo
essa dimensão também de intuitivo-espiritual.
Wilber destaca que as práticas neste nível vão do treinamento meditativo, visualizações até
prece centrada. Ele inclui práticas do “zen, grande mente, cabala, meditação transcendental (TM),
32
questionamento integral e 1-2-3 de Deus” .
[...] portanto, o que qualquer evento individual parece ser de fora. Isso
inclui, sobretudo, o comportamento físico, os componentes materiais; a matéria e
a energia e o corpo físico – porque todos esses itens aos quais podemos nos re-
ferir de modo objetivo, na 3ª pessoa, ou “ele”.
33
O trabalho neste quadrante envolve o cuidado com o corpo , englobando os aspectos físi-
co e neurológicos. As práticas que tratam do físico incluem o manejo da dieta e o trabalho estrutu-
ral (“levantamento de peso, aeróbica, longas caminhas, Rolfing”). Já as práticas que tratam do
Neurológico buscam corrigir os possíveis desequilíbrios bioquímicos com tratamento farmacológi-
co, bem como estimula o uso de máquinas para o cérebro/mente que ajudem “a induzir estados de
34
consciência teta e delta” . Wilber ainda destaca a prática do Tai chi chuan, Qi Gong para trabalhar
35
com o corpo sutil e o “exercício para os três corpos” que trabalha simultaneamente o físico, o sutil
e o causal.
Wilber também não negligenciou a passagem do “eu” para o “nós” no tratamento da expe-
riência fenomenológica do “ser no mundo”. O quadrante inferior esquerdo tematiza a pluralidade
dos sujeitos, o mundo dos valores, as visões de mundo, o ethos compartilhado pelos indivíduos, a
esfera subjetivo-coletiva. O “eu” coletivo vivencia também uma evolução que expressa a contrapar-
te intersubjetiva do desenvolvimento da consciência individual.
32
Wilber, 2006, p. 260.
33
O corpo tem uma perspectiva de “denso, sutil e causal”.
34
Wilber, 2002, 130.
35
Wilber, 2006, p. 260.
162
Neste quadrante se destaca as práticas que buscam ativar a saúde através dos relaciona-
mentos, dos serviços comunitários e da ética.
Wilber destaca que os relacionamentos com a família, com os amigos e com os seres sen-
cientes em geral são fundamentais para potencializar o crescimento pessoal e favorecer a descen-
tralização do eu. Com este mesmo objetivo os “Serviços Comunitários”, tais como “trabalho volun-
36
tário, abrigos para moradores de rua, asilos, etc” possibilitam o deslocamento do olhar do eu para
uma visão mais abrangente. e inclusiva.
A vivência cultural da humanidade não está obviamente dissociada de sua base social, ins-
titucional e tecnológica. Assim, o quadrante inferior direito, com sua linguagem dos “Istos”, tem por
meta refletir sobre a evolução das várias formas de organização social, institucional e tecnológica
construídas pela humanidade ao longo de sua história. Sendo, portanto a contraparte externa-
coletiva do quadrante inferior esquerdo.
As práticas para saúde integral neste quadrante englobam o trabalho com as visões de sis-
temas, assim como o trabalho institucional. Wilber (2002, p. 130) destaca assim estas práticas:
Analisando os quadrantes com maior atenção, percebe-se que os quadrantes direitos (Su-
perior e Inferior) são eminentemente objetivos, podendo ser colocados sobre a rubrica da lingua-
gem do “Isto”, de forma que passamos a algo semelhante aos “„Três Grandes‟ do eu, do nós e do
isto. Ou a estética do „eu‟, a moral do „nós‟ e os „istos‟ da ciência. O Belo, o Bom e o Verdadeiro;
relatos de primeira pessoa, de segunda pessoa e de terceira pessoa; eu, cultura e natureza; arte,
ética e ciência” (WILBER, 2002, p. 79).
As práticas indicadas para sensibilizar “Os quatro quadrantes de Kosmos” retomam o per-
curso de desenvolvimento da consciência apresentado no início do texto, buscando ajudar o Ser a
36
Wilber, 2002, p.131.
37
Wilber, loc.cit.
38
Wilber, 2006, p. 260.
163
se desdobrar ao longo da escada holográfica, até alcançar os níveis mais elevados de consciência.
De forma que uma vez expandido, possa colaborar na expansão do mundo vivido.
Pensar em saúde dentro de um modelo integral indica uma abertura para sensibilizar e e-
39
xercitar “o corpo, a mente, a alma e o espírito no eu, na cultura e na natureza” , de forma que
quanto mais abrangente for nossa capacidade de estender um abraço integral a todas as áreas do
seu ser, maiores serão também as possibilidades de uma saúde mais abrangente.
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______. (2002). Psicologia integral – consciência, espírito, psicologia, terapia. São Paulo: Ed. Cul-
trix.
39
Wilber, 2002, p. 131.
164
165
Capítulo 18
166
Capítulo 19
Psiquiatria Transpessoal
167
Capítulo 20
168
Capítulo 21
169
Capítulo 22
Introdução
O cenário atual é de cada vez maior incerteza induzido por profundas modificações trans-
corridas no meio ambiente, realidade essa que tem demandado um comportamento que lide com
um número cada vez maior de desafios e perigos. A ação humana tem sido construída com base
na busca de modelos e ferramentas transcendentes, isto é: constructos e modelos mentais que
torne suportável e saudável a vida. Fundamentalmente, buscamos sermos felizes. Como recursos
utilizados pelo homem para compreender tão profundas transformações e encontrar a felicidade,
identificaríamos: ou conhecimento das próprias emoções e dos estados de consciência; o conhe-
cimento científico, filosófico, econômico, cultural, social e ambiental; a fantasia, expressa através
da arte, do sonho e do devaneio e a religião. É a experiência do conhecimento, da fantasia e da
religião em diferentes graus que encoraja os indivíduos a empreender uma jornada fantástica e
desafiadora nesta vida. Contudo, esses recursos são apenas meios para se identificar aquilo que é
mais essencial ao seu humano: o auto-conhecimento de sua psique, de seus estados de consciên-
cia, da sua existência.
É possível uma gestão transpessoal? O que é uma gestão transpessoal? Em que medida
ela se desacopla de outros campos teóricos e definidos na administração? Fundamentalmente, a
gestão transpessoal colhe elementos da psicologia transpessoal que seria um enfoque desenvolvi-
do a partir da década de 1960 interessado no estudo dos estados de consciência. É sobre a apli-
cação de alguns conceitos da psicologia a um modelo gerencial que se desenvolve este texto.
170
que seria a psicologia transpessoal e o que esse modelo gerencial importaria da psicologia trans-
pessoal?
Para Matos (1994), a psicologia transpessoal é vista como uma abordagem que estuda es-
tados de consciência que transcendem o ego e a auto-imagem. A psicologia transpessoal seria
entendida como a quarta força da psicologia, classificação que destaca a psicologia contemporâ-
nea dividida em quatro grandes correntes ou forças congregadoras cuja a primeira força corres-
ponde ao Behaviorismo, a segunda, à Psicanálise, e a terceira à Psicologia Humanista.
A psicologia humanista, que emergiu nos anos de 1960, teve profunda influência no de-
senvolvimento da psicologia transpessoal. Na verdade a psicologia humanista foi a base para o
desenvolvimento desse enfoque. Abraham Maslow, ao invés de estudar comportamentos de ani-
mais, estava interessado em estudar a experiência humana como um fenômeno determinado por
aspectos como sentimentos, desejos e esperanças. Um dos elementos-chaves da psicologia hu-
manista seria a auto-realização, que estaria no topo da hierarquia das necessidades envolvendo
171
aspectos espirituais, místicos ou transcendentais. Os pesquisadores Abraham Maslow e Stanislav
Grof, em diferentes tempos, auxiliaram a conceituar então a terminologia “psicologia transpessoal”
como um campo de saber que busca compreender a influência dessas dimensões na vida humana
(Rezende, 2007).
172
mentais. Seria importante existir um enfoque que privilegiasse a auto-consciência para que assim
exista um estado de maior saúde do indivíduo. Torna-se necessário, até mesmo, que as pessoas
sejam educadas a se desconectarem do universo organizacional do trabalho quando estão em seu
momento de lazer (REZENDE, 2007).
Esse tipo de discussão conceitual pode ser visto como detentor de uma grande similarida-
de com a proposta da administração substantiva desenvolvida por Guerreiro Ramos (1981).
173
com as quais é necessário lidar. Isso teria como resultado ações freqüentemente simplistas e que
algumas vezes causam prejuízos. A teoria organizacional deveria compreender como são feitas
essas simplificações e identificar os meios possíveis através dos quais se tornaria viável enfrentar
e gerir a contradição e o paradoxo, no lugar de fingir que estes não existem.
Alguns desses elementos colaboram para se perceber que o humano é muito mais que um
ser de comportamentos, é um ser transcendente, isto é, transpessoal.
O psiquiatra Tcheco Stanislav Grof (1987) percebeu, em suas pesquisas com o LSD na
década de 1960 que os indivíduos poderiam guardar memórias do período em que estavam no
ventre materno (período perinatal). Segundo Grof (1994) esses nove meses de grandes transfor-
mações biológicas teriam uma grande influência no desenvolvimento futuro da criança. Dessa for-
ma, nota-se que essas “experiências” vivenciadas no ventre materno podem ser fonte de trauma
para a vida humana, acompanhando-o por toda a vida.
Entre as grandes descobertas de Grof, está a de a consciência humana ser vasta, enorme,
capaz de expandir-se além dos limites do corpo, da raça, da espécie, do planeta, do cosmos. A
consciência humana é complexa, grandiosa e capaz de identificar-se com outros seres humanos,
174
da mesma família e desconhecidos; seres de outros continentes; animais diversos; plantas; pedras
preciosas; resíduos orgânicos; com toda a Terra, planetas, estrelas; com o Universo inteiro e com a
Mente Superior que gerou esse Universo. Essas experiências de natureza diversa foram intituladas
de “transpessoais”, tendo em vista o indivíduo romper as barreiras do seu ego, encontrando-se
com uma dimensão maior do que ele realmente é: o Todo (SOUEK; PARIZI, 1997).
... das próprias emoções. São agressivas, invejosas, melancólicas sem se aperce-
ber.
... da própria condição física. Isto é estão em processo de adoecimento sem que
saibam.
... dos pensamentos. Utilizando a mente acanhadamente...
... ao estarem ignorantes das oportunidades no mundo.
... das próprias motivações. Desse modo escolhem profissões erradas e padecem
em carreiras que não gratificam psicologicamente.
... do cuidado, do amor ao próximo.
... ao estarem presas a comportamentos inadequados, que trazem sofrimento ao
indivíduo e aos outros.
Como gerenciar seres transcendentes? O que faz de um humano um ser transcendente? O
ser humano é guiado por fantasias, sonhos, desejos e imaginação. Desse modo, o ser humano
tem uma profunda dimensão transcendente e precisa de uma atenção especial na forma como a
comunicação se apresenta. Cônscio disso, o objeto da psicologia transpessoal se distingue de
outras abordagens.
175
Muito mais que uma administração, o enfoque da transpessoal aplicado às organizações é
muito mais um educar para os indivíduos encontrarem a potencialidade de suas existências. Desse
modo, um educar para a gestão transpessoal é um movimento de emancipação. Pois se percebe
em grande freqüência que muitas organizações não estão interessadas em uma autonomia dos
indivíduos. Cabe à educação transpessoal o cultivo de uma visão crítica que torne o indivíduo
consciente de possíveis mecanismos organizacionais de exploração, opressão. Assim, muitas ve-
zes o interesse da gestão transpessoal pode vir a ser contrários ao propósito da organização.
176
Figura 1 – Símbolo Yin Yang
É importante enfatizar que uma gestão subjetiva pode incorrer em riscos, pois em quase
toda a totalidade dos processos organizacionais seja importante algum nível de atividade de plane-
jamento e controle.
Desse modo, talvez nem psicólogos nem administradores e engenheiros tenham uma ex-
plicação integral para o funcionamento das organizações caso não mantenham um diálogo. Por-
tanto, compreender o que seria uma gestão transpessoal não abandona a necessidade de se es-
tudar temas como qualidade, gestão da produção, operações, logística, planejamento estratégico.
Não se trata de uma ruptura epistemológica, um pulo em direção a uma nova gestão. É na verdade
uma construção de um pensamento gerencial ampliado e integral.
Aspectos metodológicos
A administração transpessoal é tanto um modelo de análise dos processos organizacionais
quanto um enfoque prescritivo para a proposição de políticas para o funcionamento das organiza-
ções. Observa-se que o que está em debate é um modelo epistemológico. Köche (2005, p. 16)
contribui quanto ao que seja o objeto de estudo da epistemologia: “a epistemologia estuda, portan-
to, a investigação científica e seu produto, o conhecimento científico”. Huillier (apud KÖCHE, 2005,
p. 16-17), em sua obra La manipulación de La ciência:
“a epistemologia tenta, sem querer ser uma sistema a priori que dite au-
toritariamente e de forma dogmática o que deve ser o conhecimento científico,
responder a questão da gênese e da estrutura do conhecimento científico, anali-
sando como se constitui uma teoria científica e explicando qual é o papel que
exerce na prática científica e o contexto ideológico, o histórico, o lógico e o soci-
al”.
177
Alguns pesquisadores como Fineman (2001) e Goleman (1995) já apresentaram indicati-
vos da necessidade de estudar as emoções nos contextos das teorias organizacionais. Desse mo-
do, metodologias, ou melhor epistemologias, se tornam mais possíveis de serem operacionalizadas
e posto em uso para o estudo das dinâmicas organizacionais.
Hegel referia-se o cerne da consciência, o espírito. Hegel (apud HABERMAS, 1980, p. 41)
no estudo sobre as relações entre fenomenologia, espírito e a lógica seria possível identificar a
relação que se segue.
Nesse sentido, o facilitador desse tipo de dinâmica deve ter muito cuidado para não expor
inadequadamente um indivíduo.
Portanto, a prática de dinâmicas organizacionais grupais com fins transpessoais não são
em absoluto, uma terapia, mas uma metaterapia, tendo em vista que os problemas abordados são
coletivos e não individuais. De certa maneira, talvez quando existem grupos nos quais os membros
mantém uma confiança mutua entre si, exista uma possibilidade de explorar a consciência de mo-
do mais profundo.
179
A busca por uma suprema satisfação dos clientes
Falar em uma suprema satisfação dos clientes não significa dizer que uma empresa prati-
cará descontos de 90% em seus produtos tendo assim prejuízo em suas atividades. A busca por
uma suprema satisfação do cliente envolve a dedicar elevada atenção nos processos organizacio-
nais para que a prática de contato com o cliente expresse cuidado, interesse e amor pelo cliente.
Muitas vezes quando as organizações não se dedicam em melhorar a forma como reali-
zam suas operações seqüelas acabam sendo sentidas tanto pelos clientes internos, como os clien-
tes externos.
Desse modo, um grande desafio seria perceber os processos organizacionais como uma
prática de compaixão. Contudo, é importante questionar: como desenvolver essa percepção ampli-
ada? É necessário que os participantes das dinâmicas organizacionais desenvolvam uma atenção
concentrada às atividades que estão sendo desempenhadas, possuindo sempre a curiosidade e o
interesse pela melhoria contínua. Somente assim, ocorrerá a conquista da excelência na organiza-
ção.
Os arquétipos representariam um modelo hipotético abstrato que se utilizaria dos mitos ex-
perienciados em toda a história humana. Os mitos seriam mais uma expressão de medos pesso-
ais, aspirações e entendimentos simbólicos da vida e do mundo (Ford: 2003).
180
Cada empreendedor busca ser uma espécie de herói na sua forma de atuação. Está na
ação do empreendedor a transcendência da sua dimensão comum e o encontro de um status de
alguém que mudou a realidade na qual está inserido (REZENDE, 2007).
Estar consciente de grandes forças arquetípicas e que talvez exista uma influência trans-
cendente no governo das práticas emocionais no trabalho, é uma importante contribuição apresen-
tada pela administração transpessoal a partir da conscientização da importância do conceito do
arquétipo na experiência individual e coletiva nas organizações.
A espiritualidade no trabalho
Como a espiritualidade pode ser útil ao desenvolvimento de uma capacidade de lidar com
as dificuldades, os desafios, a incompreensão, o impossível que se apresenta no trabalho nas or-
ganizações?
181
“a espiritualidade é uma propriedade intrínseca da psique que emerge,
quase espontaneamente, quando o processo de auto-exploração alcança pro-
fundidade suficiente. Uma confrontação experiencial direta com os níveis perina-
tais e transpessoais do inconsciente é associada a um despertar espontâneo de
uma espiritualidade bastante independente das experiências (associadas) a de-
terminada religião...”
o Todo;
Deus;
o cosmo;
a sabedoria;
a claridade;
a intuição;
um estado de Buda;
De certo modo, todos os aspectos supracitados seriam entendidos por alguns como a
mesma coisa. De qualquer modo, nota-se que a dita “experiência espiritual” proporcionaria uma
percepção mais ampliada da realidade permitindo que também se experienciasse uma vivência de
maior saúde física.
Nesse sentido, quais são as motivações humanas mais profundas? Como esse questio-
namento pode ser útil em atividades como gestão de pessoas ou marketing? Contudo, de acordo
com Guerreiro Ramos (1981), a organização moderna não estaria interessada na auto-atualização
de seu funcionário, pois esse seria conduzido em direção a uma situação de tensão anterior ocor-
rendo então de uma perspectiva de socialização organizacional. Esse conceito é de grande impor-
182
tância, pois de acordo com o pensamento de Guerreiro Ramos, os processos de socialização or-
ganizacional possuiriam o poder de afastar o indivíduo do contato com as suas motivações pesso-
ais, engendrando-se, assim, a constituição de novos seres destituídos de subjetividade.
De certo modo, o que o enfoque transpessoal apregoa já está sendo praticado quando se
observa a valorização de treinamentos voltados à inteligência emocional e à enfatização da impor-
tância do conhecimento e controle das emoções. De modo prescritivo, o enfoque transpessoal
pode contribuir para: 1) atenção ao momento presente; 2) ampliação e elevação do estado de
consciência; 3) autoconhecimento; 4) contato com a dimensão do herói pessoal; 5) desenvolvimen-
to da responsabilidade; 6) melhoria da comunicação; 7) valorização dos relacionamentos; 8) Me-
lhor processo de aprendizagem; 9) desenvolvimento de uma visão de compaixão e respeito; 10)
Incorporação da meditação no dia-a-dia; 11) valorização dos sonhos e 12) maior contato do indiví-
duo com a motivação pessoal. Entretanto, de acordo com Laing (apud GUERREIRO RAMOS,
1981: p. 100) sobre o funcionário da organização moderna, “ele é provido de ego, mas perdeu a
consciência de sua individualidade, onde estão adormecidas realidades imencionáveis”.
A busca por esse conhecimento interior passa fundamentalmente pela prática de uma quie-
tude que pode ser encontrada através da meditação. O personagem Neo é o exemplo de alguém
que apresenta em sua jornada uma preocupação cada vez maior com o silêncio. O silêncio é uma
das técnicas mais simples e poderosas para aprofundar e tornar mais claras as percepções (RE-
ZENDE, 2007).
Existem muitos tipos de meditação. Entre as principais meditações utilizadas nos treina-
mentos de psicologia transpessoal destacam-se dois tipos: a de atenção concentrada e a desen-
volvida com o auxílio de mantras. Alguns tipos de meditação estão associados a práticas religiosas
como a cristã, a indiana e a budista. Na religião católica, destaca-se o uso de orações como o “Pai
Nosso” (REZENDE, 2007).
183
A psicologia transpessoal em seu interesse em estuda a experiência essencial da consci-
ência, em muito se aproxima do budismo tibetano. O psicólogo e pensador brasileiro Léo Matos
durante mais de duas décadas empreende em seus cursos no Brasil, Índia e Finlândia a proposi-
ção de aproximações entre esses dois enfoques teóricos que são primos.
O budismo tibetano possui diversas técnicas que possibilitam que o indivíduo empreenda
uma vigilância mais próxima dos estados de consciência que está experienciando. Esses ensina-
mentos são valiosos para pessoas de diferentes classes sociais e formações acadêmicas, sendo
também uma orientação importante a ser levada ao contexto organizacional.
No budismo tibetano muitos mantras favorecem se estar em contato mais profundo com
uma experiência de quietude. São interessantes os mantras tibetanos da Tara Verde “Om Tare
Tuttare Ture Svaha” (pronuncia: Om Tare Tuttare Ture Soha) e de Avalokiteshvara “Om Mani
Padme Hum” (pronuncia: Om Mani Peme Hum). De acordo com Viver Natural (2007):
184
Como atuam os mantras? O som exerce um poderoso efeito sobre nos-
so corpo e nossa mente. E pode acalmar-nos e dar-nos prazer ou ter influência
desarmoniosa, gerando uma sensação sutil de irritação. O mantra é ainda mais
poderoso do que um som comum: é como uma porta que se abre para a profun-
didade da experiencia. Visto que os mantras não têm sentido conceitual, não e-
vocam respostas predeterminadas. Quando entoamos um mantra, ficamos livres
para transcender os reflexos habituais. O som do mantra pode tranqüilizar a
mente e os sentidos, relaxar o corpo e ligar-nos com uma energia natural e cura-
tiva.
No contexto ocidental a cultura do budismo tibetano pode se encontrar distante não apenas
fisicamente, mas a partir de uma barreira mental, sendo uma experiência incompatível para os
modelos culturais ocidentais. Aplicar algumas idéias a contextos corporativos pode ser ainda mais
desafiador. Desse modo, quais as possibilidades de aplicar algumas dessas tecnologias experien-
ciais ao contexto ocidental e corporativo? De certo modo, um dos propósitos de recursos como os
mantras seria manter a mente distante de motivos de preocupação, isto é emoções aflitivas, como
se refere o budismo tibetano. Nesse contexto, algo substituto seria o uso de orações, desde que
operadas com o propósito de ser um objeto de atenção concentrada. Poderia-se utilizar a música
como um recurso ao qual a nossa mente dedica uma atenção. Assim, cantarolar uma música,
mesmo que mentalmente, como escutá-la em um MP3 Player pode ser um recurso interessante
para manter a mente conectada a um universo conscienciológico “positivo”. De forma geral, consi-
dero que uma música agradável, como aquela executada pela jazzista Diana Krall, em um ambi-
ente de trabalho pode ser um recurso atencioso à saúde mental das pessoas e à manifestação de
estados elevados de consciência.
Algo importante a ser utilizado seria a meditação. A seguir seguem algumas instruções a
serem ministradas para a aplicação de uma técnica de relaxamento.
185
maior aplicado em outras circunstâncias do dia-a-dia.
De maneira geral, existem algumas orientações básicas para a realização da prática medi-
tativa:
Nas organizações, deve-se construir ou adaptar um local para a prática meditativa, pois,
como já foi lembrado anteriormente, esse local deve ser um espaço para se experienciar estados
elevados de consciência. Dessa forma, nada é mais recomendável que criar uma estrutura de con-
forto aos seus praticantes.
186
Sogyal Rimpoche
De todas as pegadas
A do elefante é a maior;
De todas as meditações da mente
A da morte é a maior.
Mahaparinirvana Sutra
Um pouco do pensamento tibetano, expresso nas antigas reflexões mencionadas, é útil pa-
ra auxiliar no processo de se tomar consciência da finitude humana e sobre como a compreensão
e prática da psicologia transpessoal pode ser útil para compreender a dinâmica da impermanência
e sobre o que podemos aprender para realizar uma ação de mais responsabilidade em relação às
pessoas e o meio-ambiente.
Esse tipo de reflexão serve para algumas pessoas como um ponto de mutação, a partir do
qual algumas pessoas mudam a forma como se relacionam com parentes, com o meio-ambiente e
quanto aos hábitos de consumo.
Tomar consciência das lógicas de mudança e transformação no mundo deve servir como
um processo de tomada de responsabilidade pela construção de um mundo melhor, para o melhor
convívio com a natureza, para o melhor relacionamento com as outras pessoas.
Parece que essas reflexões possuem uma sintonia com o universo das organizações a
partir do momento que percebe-se que as organizações são instrumentos multiplicadores ou ampli-
ficadores de temas com elevado impacto social.
Parte das reflexões aqui apresentadas foram extraídas do livro “Matrix e a Administração
Transpessoal” de Julio Rezende. Assim, como foi discutido por Rezende (2007), a física moderna,
o budismo tibetano e a psicologia transpessoal encontram um ponto de convergência ao percebe-
rem a realidade como uma unicidade. De acordo com Léo Matos (1996: p.7), quando se entra em
contato com um nível de realidade mais profundo,
187
A percepção da existência humana como una com o universo permite os indivíduos se per-
ceberem como responsáveis não apenas por si próprios, mas por um contexto mais amplo. Cada
ato possui um reflexo no universo e cada ação desse universo tem um reflexo sobre ações pesso-
ais. Essa é uma das importantes mensagens: a responsabilidade das ações pessoais na constru-
ção de um mundo melhor.
Talvez um dos conceitos mais úteis às organizações seja convocar a existir uma respon-
sabilidade maior em relação ao meio ambiente e à sociedade. Pois convida-se à responsabilidade
dos colaboradores em um outro nível, para perceberem as suas ações sob uma ótica mais profun-
da. Os colaboradores necessitam perceber que suas ações possuem um sentido, que são muito
mais do que simplesmente uma atividade laboral. O trabalho, na verdade, deveria ser uma expres-
são da responsabilidade pelos clientes em favor dos objetivos da organização, de defesa pela qua-
lidade de produtos e serviços.
Uma forma de expressar uma visão ampliada da realidade seria as organizações empre-
enderem ações responsáveis com o objetivo de ganhar legitimidade, boa imagem corporativa,
maior visibilidade e adquirir vantagem competitiva no mercado. O resultado do desenvolvimento
dessas ações responsáveis seria a possibilidade de se conseguir um maior comprometimento ético
dos colaboradores aos objetivos organizacionais.
Algumas organizações poderiam ser vistas como espécies de vírus que se instalam em de-
terminados lugares e países e sugam todos os recursos, indo depois a outros locais, realizando
esse tipo de política organizacional sempre que necessário. É imperativo se refletir sobre a neces-
sidade de as organizações apresentarem em seus modelos de negócio uma preocupação com os
seus funcionários, as boas condições de trabalho, o meio ambiente, respeitando a legislação e os
consumidores. Isto é, uma política e prática organizacional de sustentabilidade. Esse seria um
comportamento ético que exige algumas virtudes, como polidez, fidelidade, prudência, temperança,
coragem, justiça, generosidade, compaixão, humor, misericórdia, gratidão, simplicidade, pureza,
boa-fé e amor.
A ética é um tema que une a humanidade. É interessante observar que em diferentes li-
nhas de pensamento a ética sempre está presente enquanto um valor a ser preservado e instru-
mento para garantir a ordem humana. Assim, a avaliação quanto ao que seja a ética não deve ficar
presa apenas a uma explicação da filosofia ocidental. Do mesmo modo que a ética é compreendi-
da nas sociedades ocidentais também o é nas sociedades orientais. Observando-se o Budismo,
encontrar-se-ão as Oito Virtudes para o exercício de um comportamento ético:
188
• não usar linguagem grosseira; e
• não comentar sobre a vida alheia.
As Oito Virtudes propostas por Buda são importantes características associadas à prudên-
cia, compreendida como um estado de consciência que o indivíduo mantém. Muitas vezes não se
é prudente porque não está se prestando atenção como a mente está trabalhando.
Parte da argumentação dessa idéias apresentam uma consonância com a Declaração Uni-
versal dos Direitos Humanos, merecendo destaque os seguintes artigos:
Artigo 1º - Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas
de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.
Considerações finais
A administração transpessoal é um conceito continuamente em construção, pois, como
posso perceber a partir de minha formação profissional em administração e psicologia, muitas seri-
am as idéias possíveis de aplicar no contexto do trabalho e das organizações e vou percebendo
isso dia-a-dia observando o meu próprio comportamento e de meus colegas, os sucessos e insu-
cessos quanto ao que seja ter um ambiente agradável de trabalho. De modo geral, pensar em a
administração transpessoal como um enfoque gerencial interessado em promover uma maior qua-
189
lidade de vida no trabalho, necessariamente, envolve em transformar a percepção de cada um
envolvido nas dinâmicas laborais. Assim sendo é pertinente uma transformação da consciência
pessoal. Cabe à organização interessada em alguns elementos do enfoque proposto proporcionar
espaços para que os indivíduos entrem em contato com a possibilidade de transformar a consciên-
cia pessoal de modo a se tornarem pessoas mais ativas, felizes e saudáveis. A partir do que o que
coloco, é que identifico a administração transpessoal como uma trajetória em construção. Assim,
nesse campo está aberto um convite a outros pensadores e envolvidos com as práticas organiza-
cionais a pensarem contribuições sobre uma administração renovada, interessada na transcen-
dência humana, na saúde e na incomensurabilidade quanto ao que é o humano.
Por fim considero que o conhecimento sobre o que seja uma administração transpessoal
pode ser útil ao desenvolvimento de uma experiência ecológica, tão necessária ao contexto orga-
nizacional. Tendo em vista que uma das grandes barreiras ao desenvolvimento de práticas de sus-
tentabilidade estão associadas a não apenas a falta de informações, mas também de um sentido
sensível por parte das pessoas, o enfoque transpessoal pode apresentar indicativos quanto a inse-
paratividade do indivíduo e o cosmo.
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191
Capítulo 23
192
Capítulo 24
193
Capítulo 25
194
Capítulo 26
Cosmoeducação
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APÊNDICE
Você me diz que a “doença mental” ou psíquica é “estar separado do Real” - definição
clássica da esquizofrenia – mas, você pergunta, “o que é o Real?” e, enquanto Terapeuta, “o que
podemos fazer para ajudar alguém que sofre desse afastamento ou dessa separação do Real?...”
Você acredita realmente que podemos estar “separados” do Real? Estamos sempre
no Real; sem dúvida algumas vezes mais, outras menos, mas sempre, senão não estaríamos aqui
para sofrermos, nos alegrarmos ou falarmos a respeito...
Jamais estamos “separados”. Eu preferiria dizer que estamos “fechados” em uma per-
cepção ou uma interpretação da realidade que tomamos pelo Real.
Aquele que padece com aquilo que lhe acontece (essa é a própria definição de pacien-
te) ao encontrar-se face à realidade de seus sintomas, da sua doença, do seu sofrimento, do seu
“mal-estar”, pode, com o acompanhamento do Terapeuta, ter acesso a uma percepção e uma in-
terpretação “outras” que o ajudarão a passar de uma dor “insensata” a uma dor “que faz sentido”.
“Sentido” não significa complacência para com a dor, não é o estabelecimento da sua identidade
como vítima, mas, pelo contrário, é aquilo que assinala uma saída do sofrimento ou da interpreta-
ção e da percepção dolorosas daquilo que é....
Suas questões não são “metafísicas” demais para um Terapeuta? É verdade que, se-
gundo Fílon de Alexandria, o Terapeuta, antes de ser um médico ou um psicólogo, deve ser um
40
“filósofo ”; interrogar-se acerca do Real me parece ser um sinal ou um sintoma de humanidade e
de saúde mental... Quando pretendemos “cuidar” de alguém ou se quisermos estar ao seu lado
“para ajudá-lo a realizar-se”, devemos saber que sentido colocamos sob as palavras: Real – Reali-
zação – Realidade...
40
Cf. Fílon e os Terapeutas de Alexandria em « Cuidar do Ser », Jean-Yves Leloup, Editora Vozes, 1993 e “Terapeutas do
Deserto”, Jean-Yves Leloup e Leonardo Boff, Editora Vozes, 1997
196
Acredito que identificamos rápido demais uma realidade ao Real. Isso deu nascimento
a muitas escolas de filosofias, por exemplo, para Platão, o “Realismo” é afirmar a realidade das
idéias, “mais reais” do que os seres individuais que são apenas o seu reflexo – para os materialis-
tas, o “Realismo” é, pelo contrário, a afirmação de que apenas a matéria existe, as idéias não pas-
sam de epifenômenos ou de explicações ilusórias.
De um ponto de vista mais moral ou mais psicológico, teremos tendência a tomar pelo
Real a realidade do Bem ou a realidade do Mal.... alguns dirão que apenas o bem existe, que ele é
o único Real, o mal é apenas a ausência ou a falta do bem (privatio Boni); outros dirão que o mal
existe realmente, que ele é o próprio Real, ou seja, o Absurdo, o Não Sentido no qual estamos
41
“jogados aqui” (cf. certas formas de gnosticismo ).
Isso seria novamente identificar o Real a apenas uma das realidades que o manifes-
tam, ao passo que o Real está presente nas realidades mais contraditórias ou opostas.
O Real está em todas as realidades, quer elas sejam materiais, psíquicas ou espiritu-
ais... mas, mais uma vez, o que é o Real?
41
Não confundir com a gnose, que justamente não identifica o Real com um dos seus elementos, positivos ou negativos-
bem ou mal, felicidade ou infelicidade - mas os considera como duas realidades “relativas” uma à outra. Cf. “Les Profon-
deurs oubliées du Christianisme”, Jean-Yves Leloup e Karin Andrea de Guise, Editions du Relié, 2007
197
minhas emoções, meus desejos, meus sentimentos... que eu busque compreendê-lo intelectual-
mente ou “cientificamente” através das minhas análises, racionalizações ou sínteses... que eu
busque compreendê-lo intuitivamente ou espiritualmente através das orações, meditações ou con-
templações...
O Real não está oferto à uma “compreensão”, mas à uma escuta; uma Escuta que de-
ve permanecer livre de todas as apreensões - sensoriais, afetivas, intelectuais ou espirituais - sem,
no entanto, rejeitá-las. Uma Escuta que permanece aberta ao imperceptível, ao inapropriável, ao
incompreensível, ao inominável...
O Real não é uma realidade, sequer uma Realidade absoluta, ou seja, “um ídolo do Re-
al”, sua representação última...
Tomar “aquilo que eu sou” por “Eu Sou”: eis minha inflação ou minha patologia; sentir
o distanciamento entre aquilo que eu sou e Eu Sou: eis a fonte de um sentimento de culpa, de falta
ou de carência que é também patologia. Aceitar esse “distanciamento” entre “aquilo que eu sou” e
“Eu Sou”, entre “aquilo que é” e “o Ser” ou, ainda, entre a realidade e o Real, é o início da saúde, o
aprendizado do “entre dois” que me situa no coração de um ternário, “aquilo que eu sou” – “Eu
Sou” – e o “entre dois”.
A função do Terapeuta é cuidar desse “entre dois” ou dessa relação entre o Ser e “a-
quilo que é” ou entre “aquilo que eu sou” e “Eu Sou”.
O Real se manifesta entre duas realidades: a realidade relativa: aquilo que eu sou (feliz
– infeliz – sofredor – mortal – neurótico – psicótico, etc) e a realidade absoluta, “Eu Sou”.
A perda do sentido do Real que surge no “entre duas” realidades está na fonte de nos-
sos infernos ou de nossos fechamentos, ou seja, de nossas identificações a essa ou aquela polari-
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dade do Real, que poderemos qualificar de depressiva (se eu me identificar “àquilo que eu sou”) ou
de histérica (se eu me identificar a “Eu Sou” que eu poderia ser).
O Real é aquilo que nos faz sair dos fechamentos ou das alienações referentes ao rela-
tivo ou ao absoluto.
Ajudar alguém a permanecer nesse espaço do entre dois é mantê-lo em vida, permitir
que ele não se “petrifique” ou se “fixe” em uma postura do Real, pois a Vida é o movimento inces-
sante entre “aquilo que eu sou” e “Eu Sou”, movimento que une minha realidade relativa à realida-
de absoluta, realidade relativa que “eu não sou” e realidade absoluta que “eu não sou”. O Real
não é nem o meu ser finito (relativo), nem o meu ser infinito (absoluto), ele é “os dois”, “entre os
dois” e “além dos dois”....
O Real é “Ele” e nenhuma realidade, mesmo a mais obstrutiva ou a mais dolorosa, po-
de aniquilá-lo. “A doença da morte” não é incurável, já que ele descobre ser o “sujeito” dessa do-
ença. A consciência de que ele vai morrer é maior do que a morte que arrebata seu corpo e seu
psiquismo.
O que é ser Terapeuta se não for participar através da sua própria vigilância ao desper-
tar dessa consciência? Consciência do Real que “eu sou”, no coração da realidade que “eu tenho”.
A vida que eu tenho, eu não a terei para sempre. A vida que eu sou, quem, além da minha recusa
e do meu esquecimento, poderá tirá-la de mim? O Terapeuta, através da prática da anamnese
essencial, tenta “tornar presente” em si, no outro e entre os dois, “o Real que está sempre aqui,
presente”, essa recordação pode ser efetiva: alívio e liberação...
199
Carta II
Você pede que eu “indique com exatidão quais são os meus pressupostos antropológicos
ou meus “a priori” com relação ao Ser humano....” Como eu disse anteriormente, creio que existe
um Real infinito, invisível, eterno, bem-aventurado... nas realidades finitas, visíveis, temporais e
dolorosas que conhecemos. Creio que há um Real invencível no ser humano frágil e impermanen-
te, assim como no universo que o envolve.
O Real é a luz que ilumina todas as realidades, da mais opaca à mais transparente, es-
sa luz é Consciência que responde à nossa consciência e a torna possível. A luz está na matéria,
a matéria não pode retê-la ou contê-la.
O Real é a Vida que anima todas as realidades, da mais inerte à mais vivaz ou vivifi-
cante, essa Vida é movimento, vir a ser...
Ela é uma Energia, uma “Força que vai”; quando fazemos apenas um com ela, dizemos
que “Tudo “vai” bem...”
O Real é o Amor que anima a vida, tanto a mais rica quanto a mais miserável, esse
Amor é capacidade de Dom, de generosidade, de compaixão, ele é o próprio movimento da vida
que se dá e que perdoa...
Quando fazemos apenas um com a realidade do Amor, somos libertados de toda amar-
gura, a alegria é uma experiência, nós conhecemos a Vida Bem-Aventurada...
O Real é a liberdade do Espaço que não é atingido ou maculado por aquilo que nele se
agita ou passa. É uma luz, uma vida, um amor que não julga nem se apega àquilo que vai. Fazer
apenas um com essa liberdade é viver em um infinito respeito por tudo aquilo que vive e respira, é
a visão ou a intuição do Real que está em todo lugar e está sempre presente que nos torna não
dependentes das realidades transitórias que podemos, então, apreciar e amar na sua justa medi-
da.
200
O Real é a nossa verdadeira natureza, ele é Luz (Espírito – Consciência), Amor (Alegria
– Beatitude), Vida (Força – Energia), Liberdade (Espaço – Vastidão).
Pensamos que podemos preencher essa falta, essa carência com realidades externas,
o que pode muito rapidamente conduzir a impasses. Podemos conhecer algumas satisfações ou
contentamentos fugazes, mas a falta, a carência, aumentam, irritam...
Você me pergunta como posso afirmar que o Real é a verdadeira natureza do ser hu-
mano e que realidades como a Consciência – o Amor – a Vida – a Liberdade, são mais reais do
que realidades como o absurdo – o ódio – o medo – a morte...
Sim, realmente trata-se do meu pressuposto antropológico, do meu a-priori – mas tam-
bém da minha experiência.
Quando eu estou cada vez mais consciente, eu sou cada vez mais uma presença real
consciente.
Quanto mais eu estou na compaixão e no amor, tanto mais “Eu Sou” – presença real, a-
firmação da realidade do amor.
Quando eu não estou na compaixão e no amor, “eu não sou”, eu não estou em relação
com aquilo que é, eu não estou realmente “presente”.
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Jogo de palavras intraduzível em português entre as palavras “délivré” – “libertado” – e “livré” – “entregue”. (N.T.)
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Quando eu estou vivo, cheio de energia, eu estou consciente daquilo que eu sou, eu
amo aquilo que eu sou: “Eu Sou”.
Quando estou cansado, deprimido, doente, eu não estou bem, mas continuo sendo “Eu
Sou” em um corpo, um psiquismo, que sofrem...
Não é “Eu Sou” quem vai morrer, mas a forma onde ele se manifesta, onde ele se en-
carna...
Sinto-me mal na vida que tenho, ainda um pouco mais de tempo, logo eu não a terei
mais. Permanece “a vida que eu sou”, “Eu Sou” é livre...
Essas são evidências por vezes difíceis de compartilhar, difíceis também de compre-
ender aquilo que em nós e no outro resistem a essas evidências.
Não seria isso torná-lo presente a essa “presença real”, recolocá-lo no seu eixo?
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