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Psicologia Transpessoal

Livro Texto

2010
Capa e Diagramação: Cláudio Azevedo

Arte-finalização da Capa:

Revisão e Edição: Cláudio Azevedo e Marlos Alves

R:

Cláudio Azevedo

Copyright © 2008

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

A994 Alves, Marlos

ISBN: 85–60091–??–?

1. Vedānta. 2. Filosofia hindu. 3. Hinduísmo

I. Título.

CDU 294.527

Capa:

Contato com os organizadores e pedidos por reembolso postal


E-mail: croberto@orion.med.br ou marlosdoc@yahoo.com.br

Visite: http://www.editoraorion.com.br

2
Psicologia Transpessoal
Livro Texto

Alves, Marlos; Azevedo, Cláudio; Tavares, Fátima

Organizadores

2010

3
Conselho Editorial
Alexandre Simão de Freitas – (Programa de Pós-Graduação em Educação UFPE-BRA)

David Lukoff – USA

Edgard Carvalho (PUC-SP)

Esdras Vanconcelos Guerreiro (USP - PUC)

Geórgia Sibele Nogueira da Silva (DEPSI-UFRN-BRA)

Harbans Lal Arora (Índia)

Jean Yves Leloup – UNIPAZ (FRA)

Jean-Claude Regnier - Université de Lyon - Université Lumière Lyon2 (FRA)

José Policarpo Júnior – (Programa de Pós-Graduação em Educação UFPE-BRA)

José Ramos Coelho (DEPFIL-UFRN-BRA)

Nadja Maria Acioly-Régnier - Institut Universitaire de Formation Des Maitres (FRA)

Stanislav Grof – (USA)

4
AUTORES
André Feitosa de Sousa
Psicólogo (CRP-11/05064), com formação na Abordagem Centrada na Pessoa e no Método (Con)texto de Letramentos
Múltiplos, desenvolvendo trabalhos nas áreas da Psicoterapia, da Psicoeducação (Salutogênese) e da Psicologia do Traba-
lho. Professor no curso de Psicologia das Faculdades Nordeste (FANOR), pesquisador associado à “Rede Lusófona de
Estudos da Felicidade (RELUS)”, colaborador na “Liga Maria Villas-Bôas de Estudos em Abordagem Centrada na Pessoa”.
Sócio efetivo da “World Association for Person-Centered Approach and Experiential Psychotherapy” e da “Associação Pau-
lista da Abordagem Centrada na Pessoa”; membro da “Nordic Pragmatism Network” e da “Red Iberoamericana de Centrada
em las Personas”. Integrante da equipe gestora do Projeto Social “O Outro Brasil que Vêm Aí: Comunidades em Transição
para uma Sociedade Pós-Carbono”, formador e supervisor vinculado à “Confraria de Estudos Avançados em Carl Rogers e
na Abordagem Centrada na Pessoa (CearACP)”. Co-organizador do livro “Humanismo de Funcionamento Pleno” (2008,
Editora Alinea), dentre outras publicações científicas. Contato: andre_feitosa@msn.com

Francisco Di Biase, Grand PhD


Neurocirurgião e pesquisador da consciência; Grand PhD, PhD and Full Professor, Académie Européenne D‟Informatisation
e World Information Distributed University - Bélgica; Professor Honorário da Albert Schweitzer International University -
Suiça.

Francisco Silva Cavalcante Junior, Ph.D.


Psicólogo (CRP-11/0746), Professor adjunto no setor de Psicologia da Educação na Faculdade de Educação da Universi-
dade Federal do Ceará (UFC). Formador da Abordagem Centrada na Pessoa, M.Ed. e Ph.D. pela University of New Hamp-
shire (EUA), coordenador da Rede Lusófona de Estudos da Felicidade (RELUS), idealizador da CearACP e do Projeto
Florescer (Projeto Integrado de Ensino-Pesquisa-Extensão nas áreas da Clínica-Educacional-Organizacional, no
SPA/NAMI/UNIFOR). De 1998 a 2009 foi professor titular do Mestrado em Psicologia da UNIFOR. Contato: fscavalcanteju-
nior@gmail.com

Julio Francisco Dantas de Rezende, MS


É presidente do Instituto de Inovação e Sustentabilidade, Vice-diretor de ensino da FACEN e INAES, professor da UERN e
FACEX, assessor da Secretaria de Estado da Administração e dos Recursos Humanos (SEARH), administrador, psicólogo,
mestre e doutorando em administração pela UFRN. É autor dos livros "Matrix e a Administração Transpessoal", "Crônicas
da Virtualidade" e "Transpersonal Management: Lessons from The Matrix trilogy". Atualmente prepara novos livros e realiza
palestras sobre inovação, sustentabilidade e psicologia. O contato com o professor Julio Rezende pode ser feito diretamen-
te através do e-mail: jrezende@digi.com.br ou pelo telefone: 84 9981-8160. Blog: www.juliorezende.blogspot.com.

Paulo Coelho Castelo Branco


Psicólogo (CRP-11/05321), Mestrando em Psicologia – UFC com bolsa pela CAPES, Psicoterapeuta sob o referencial da
Abordagem Centrada na Pessoa, membro do Círculo de Pesquisas em Lógica e Epistemologias das Psicologias da Univer-
sidade Federal do Ceará (CPLEP/UFC). Colaborador na “Liga Maria Villas-Bôas de Estudos em Abordagem Centrada na
Pessoa”. Sócio efetivo da “World Association for Person-Centered Approach and Experiential Psychotherapy” e da “Associ-
ação Paulista da Abordagem Centrada na Pessoa”. Contato: pauloccb@terra.com.br

Ricardo Lincoln Laranjeira Barrocas, Dr.


Graduado em Ciências Sociais e em Psicologia, Professor da Graduação e da Pós-Graduação em Psicologia da Universi-
dade Federal do Ceará (UFC), Mestre em Psicanálise pela Université de Paris VIII e Doutor em Psicologia pela Université
de Paris XIII. Coordenador do Círculo de Pesquisas sobre Lógica e Epistemologia das Psicologias (CPLEP/UFC). Contato:
rbarrocas@uol.com.br

Yuri de Nóbrega Sales


Psicólogo (CRP-11/05070), Mestrando em Psicologia – UNIFOR, com formação em Abordagem Centrada na Pessoa, Psi-
coterapeuta sob o referencial desta mesma abordagem. Visiting Scholar, Centre for Urban Health Initiatives/University of
Toronto – Programme des Futurs Leaders dans les Amériques 2009 (PFLA Canadá). Colaborador na “Liga Maria Villas-
Bôas de Estudos em Abordagem Centrada na Pessoa”, Integrante da equipe gestora do Projeto Social “O Outro Brasil que
Vêm Aí: Comunidades em Transição para uma Sociedade Pós-Carbono”. Contato: yurisnobrega@yahoo.com.br

5
6
Sumário
PREFÁCIO ........................................................................................................................... 11

INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 13

APRESENTAÇÃO ................................................................................................................ 15

PARTE I ................................................................................................................................ 17

FUNDAMENTOS EM PSICOLOGIA TRANSPESSOAL ...................................................... 17

Matrizes Conceituais ............................................................................................................ 19

1. Transcendência ............................................................................................................ 19

2. Espiritualidade: um olhar psicológico ........................................................................... 23

3. Espiritualidade e os pioneiros do desenvolvimento humano ....................................... 36

4. Tradições de Sabedoria do Oriente ............................................................................. 46

Histórico ................................................................................................................................ 62

REDIMENSIONANDO OS CONCEITOS E OS TERRITÓRIOS CONTEMPORÂNEOS


ENTRE DUAS FORÇAS DA PSICOLOGIA ...................................................................................... 63

NO CENTRO E NAS FRONTEIRAS DO HUMANO E SUAS PSICOLOGIAS ................ 63

TRANS-FORMAÇÕES HUMANISTAS: HÁ TERRAS PARA ALÉM DOS HORIZONTES


HUMANOS? .................................................................................................................................. 70

SOBRE UMA MESMA SEMENTE GERMINADA EM SOLOS DIVERSOS: A


EXPERIÊNCIA DO “HUMANO” E DO “TRANSHUMANO”? ......................................................... 75

Método .................................................................................................................................. 91

Pesquisas em Consciência .................................................................................................. 92

PARTE II ............................................................................................................................... 93

CONCEITOS EM PSICOLOGIA TRANSPESSOAL ............................................................ 93

Transdisciplinaridade ............................................................................................................ 94

Espiritualidade ...................................................................................................................... 95

Unidade ................................................................................................................................ 96

I ......................................................................................................................................... 96

II ...................................................................................................................................... 103

7
III ..................................................................................................................................... 108

IV .................................................................................................................................... 109

V ..................................................................................................................................... 112

VI .................................................................................................................................... 114

VII ................................................................................................................................... 117

VIII .................................................................................................................................. 120

IX .................................................................................................................................... 122

Referências:.................................................................................................................... 122

O Ser Quântico ................................................................................................................... 124

Consciência ........................................................................................................................ 125

Consciência Transpessoal ................................................................................................. 126

O Código Cósmico ......................................................................................................... 127

O Reencontro da Ciência com a Consciência ................................................................ 128

O Modelo Holoinformacional da Consciência ................................................................ 129

O universo holográfico .................................................................................................... 133

A Dinâmica Quântica Cerebral ...................................................................................... 134

Biofótons, Microtúbulos e Superradiância ...................................................................... 135

Os correlatos neurais da consciência ............................................................................ 138

Vida e Morte ....................................................................................................................... 146

PARTE III ............................................................................................................................ 147

PRÁTICAS CLÍNICAS EM PSICOLOGIA TRANSPESSOAL ............................................ 147

Terapia de Memória Profunda ............................................................................................ 148

Respiração Holotrópica ...................................................................................................... 149

Morte e Renascimento Psicológico .................................................................................... 150

A Dinâmica Energética do Psiquismo ................................................................................ 151

PARTE IV ........................................................................................................................... 152

EXTENSÕES EM PSICOLOGIA TRANSPESSOAL .......................................................... 152

Um Abraço Integral ............................................................................................................. 153

8
Modelo de desenvolvimento da consciência .................................................................. 153

Saúde nos quatro quadrantes do Kosmos ..................................................................... 159

Educação para a Paz ......................................................................................................... 166

Psiquiatria Transpessoal .................................................................................................... 167

Teorias Sistêmicas em Família (Constelações familiares) ................................................ 168

Psicologia Social Transpessoal .......................................................................................... 169

Abordagem Organizacional Transpessoal ......................................................................... 170

Introdução ....................................................................................................................... 170

A psicologia transpessoal: uma base para um novo modelo gerencial ......................... 170

Consciência: um primeiro objeto da psicologia transpessoal e uma possível


aplicabilidade à administração .................................................................................................... 172

Transcendência: um segundo objeto da psicologia transpessoal .................................. 174

Desafios da gestão transpessoal ................................................................................... 175

Aspectos metodológicos ................................................................................................. 177

A prática da gestão transpessoal ................................................................................... 178

A busca por uma suprema satisfação dos clientes ........................................................ 180

A consciência dos arquétipos no contexto organizacional ............................................. 180

Motivação: a alma da organização ................................................................................. 181

A espiritualidade no trabalho .......................................................................................... 181

Criando um espaço psicológico saudável ...................................................................... 183

Integração com a totalidade e o desenvolvimento da responsabilidade universal e a


sustentabilidade........................................................................................................................... 186

Considerações finais ...................................................................................................... 189

A Temporalidade no Existir Subjetivo ................................................................................ 192

Trabalho Transpessoal com Crianças ................................................................................ 193

Trabalho com a Morte ........................................................................................................ 194

Cosmoeducação ................................................................................................................. 195

APÊNDICE ......................................................................................................................... 196

9
CARTA AOS TERAPEUTAS .......................................................................................... 196

10
PREFÁCIO
Roberto Crema

11
12
INTRODUÇÃO
Marlos Alves e Cláudio Azevedo

13
14
APRESENTAÇÃO
Márcia Tabone

15
16
PARTE I

FUNDAMENTOS EM PSICOLOGIA TRANSPESSOAL

17
18
Capítulo 1

Matrizes Conceituais
Transcendência, Espiritualidade e Tradições de Sabedoria no Oriente

1. Transcendência
Em seu sentido original o “trans” foi agregado ao pessoal na palavra “transpessoal” para si-
tuar uma ampla gama de pesquisas que indicavam a dimensão de transcendência humana ou o
1
“principio da transcendência” . Contudo, assim como a palavra transcendência está carregada de
múltiplos sentidos, o prefixo “trans” tem incorporado esta diversidade, requerendo uma explicitação
que nos ajude a melhor definir em que sentido está sendo utilizado, pois de acordo com o seu uso
poderá conduzir-nos a sentidos diversos, com implicações diretas para a Psicologia Transpessoal.

A interpretação mais antiga dada ao conceito transcendência deriva da relação dos ho-
mens com a idéia de divindade, em um sentido teológico. Assim, se considera o divino como ina-
cessível às coisas terrenas, pois seriam esferas totalmente distintas, manifestando uma relação
dialética permanente.

As definições do transpessoal que usam este referencial de transcendência, geralmente


são as visões de senso comum ou tentativas de desqualificar a abordagem com não cientifica, pois
colocam o “trans” como um “além de” trancendental, incapaz de incluir os aspectos imanentes do
ser. Tal visão se opõe claramente as idéias dos principais fundadores da psicologia transpessoal,
como podemos perceber na colocação de Sutich (apud WEIL, 1978, p. 29):

Entretanto, as diferenças eram tão significativas que levaram inevita-


velmente à conclusão de que uma área nova e de características próprias da
pesquisa psicológica estava se manifestando. Era uma área de pesquisa “pes-
soal”, mas que ia além dos limites usuais da investigação científica. Além disso,
a nova área diferia de maneira significativa do trans-humanismo (Huxley, 1957)
pelo fato de enfatizar principalmente o indivíduo experienciador mais do que a
raça humana como um todo. Por isso foi bastante natural que [...] a nova área
recebesse o título de „Psicologia Transpessoal‟.

1 O principio da transcendência “indicaria um impulso em direção ao despertar espiritual que perpassa a humanidade do
ser, a própria pulsão de vida, morte e para além delas. O „principio da transcendência‟ envolve a natureza psicológica,
descrita por Freud, ampliada por Maslow e por Weil.” (SALDANHA, 2006, p. 109)

19
Outro sentido de transcendência se refere aos conceitos aristotélicos, difundidos na idade
média por São Tomás de Aquino, que definiam como transcendente tudo que se enquadra nas
categorias de unidade, verdade e bondade. O trans, neste sentido, põe-se como uma essência
permanentemente fixa e imutável quer seja ela platônica, kantiana, hegeliana ou husserliana, ex-
cluindo assim, a possibilidade para emergência de novas dimensões do ser.

O conceito de transpessoal que emerge desta definição permanece preso na armadilha da


idéia da essência imutável da metafísica, perdendo o trans a sua historicidade como um dos mo-
dos de interpretar a realidade. Assim se quisermos alcançar um status pós-metafísico será neces-
sário percebermos que o trans não pode ser concebido como uma categoria que é dada eterna-
mente – ele não é um arquétipo, nem idéias eternas na mente de Deus, nem formas coletivas fora
da história, nem imagens eidéticas atemporais. O trans deve ser concebido como uma forma que
se desenvolveu com o tempo, com a evolução e com a história.

Para Hume e Kant, transcendental é tudo aquilo que nossa mente constitui a priori, antes
mesmo de qualquer experimentação, havendo assim uma complexa interconexão entre a capaci-
dade de estar consciente de certo conceito e a habilidade de experimentar-se o universo das coi-
sas.

O transcendente estaria fora de nós, mas acessível pela capacidade intelectual em captar
sua essência. Hegel combateu, em parte, este conceito kantiano, pois argumentava que é preciso
ultrapassar a fronteira entre o conceitual e o experimental para sabermos ao certo onde este limite
se encontra, e assim, logicamente, já se constitui uma transcendência o fato de deter o conheci-
mento, independentemente de qualquer ação posterior.

O conceito de transcendência na transpessoal se aproxima mais do pensamento hegelia-


no, contudo permanece irremediavelmente ligado ao ser par irmão, a imanência. Assim, temos
transcendência e imanência como fenômenos que se dão a perceber ao ser, num jogo dialógico
que avança em complexidade até alcançar uma dimensão translógica.

O aspecto integrativo do transcendente/imanente do prefixo “trans” é apontado por Wilber


(1996, p. xviii) para marcar uma compreensão total do ser humano, de forma que este termo não
se refere apenas ao “ir além”, mas, também, ao tornar-se MAIS PESSOA, assumindo-se radical-
mente toda a abertura e amplitude do Ser Humano.

O hiato entre transcendência e imanência, assim como, as diversas divisões tomadas pelo
senso comum como auto-existentes, são profundamente questionadas pela psicologia transpesso-
al. Nesta concebe-se a possibilidade de um “entre-deux” nestes aspectos, bem como nas múltiplas

20
2
interfaces humana , sem, no entanto, bipartir a concepção de existência. Para o filósofo francês
Merleau-Ponty, a identificação desse círculo abriu um espaço entre o homem e o mundo, entre o
interno e o externo. Esse espaço não era um abismo ou divisor: ele englobava a distinção entre
homem e mundo e, ainda, provia a continuidade entre eles. Sua abertura revela-se como um cami-
nho do meio, um entre-deux. Assim, no prefácio de sua Fenomenologia da Percepção, ele escreve:

Comecei a refletir, minha reflexão é sobre um irrefletido; ela não pode


ignorar-se a si mesma como acontecimento, logo ela se manifesta como uma
verdadeira criação, como uma mudança de estrutura da consciência, e cabe-lhe
reconhecer aquém de suas próprias operações, o mundo que é dado ao sujeito,
porque o sujeito é dado a si mesmo... A percepção não é uma ciência do mundo,
não é nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo so-
bre o qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles. O mundo não
é um objeto do qual possuo comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o
campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explí-
citas. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 5-6).

Mais adiante, no final dessa mesma obra, ele acrescenta:

O mundo é inseparável do sujeito, mas de um sujeito que não é senão


projeto do mundo, e o sujeito é inseparável do mundo, mas de um mundo que
3
ele mesmo projeta.

Esta visão de um sujeito “inseparável do mundo”, que, neste trabalho denominamos de


trancendente/imanente, foi desenvolvida e integrada pelas tradições não-duais do oriente, como
também é marco do referencial teórico da fenomenologia e da abordagem transpessoal, e defen-
dem a tese de que a dualidade mente/corpo surgiu da ignorância sobre a natureza das relações do
organismo humano com o ambiente; não havendo sustentação para a tese cartesiana que postula
um corpo que é pura matéria extensa e nem se cogita uma mente que é mera substância pensan-
te.

Para psicologia transpessoal essa forma de refletir marca radicalmente a virada do pensa-
mento fenomenológico como uma busca de retorno ao mundo existencial, sendo um golpe nas
idéias do “trans” como um simples “além de” abstrato e teológico, pois o mundo é preexistente à
reflexão mas não separado de nós, conforme destacado por Varela, Thompson e Rosch (2003, p.
21):

2
Wilber (2000, p. 27) destaca cinco dimensões básicas: “matéria, corpo (no sentido de corpos vivos e vitais, o nível emo-
cional-sexual), mente (incluindo imaginação, concepções e lógica), alma (a fonte da identidade supra-individual) e espírito
(tanto o fundamento sem forma como a união não-dual de todos os outros níveis)”.
3
Merleau-Ponty (1999, p. 576).

21
[...] as mentes despertam em um mundo. Não projetamos nosso mundo.
Nós simplesmente nos descobrimos com ele; nós despertamos tanto para nós
mesmos quanto para o mundo que habitamos. Vimos a refletir sobre esse mun-
do à medida que crescemos e vivemos. Nós refletimos sobre um mundo que não
é feito, mas encontrado, e é também nossa estrutura que nos possibilita refletir
sobre esse mundo. Então, ao refletirmos, nós nos encontramos em um círculo:
estamos em um mundo que parece que já existia antes da reflexão ter-se inicia-
do, mas esse mundo não é separado de nós.

A transcendência é posta como um convite permanente para olharmos de maneira interde-


pendente o aqui-e-agora do mundo vivido, desafiando-nos a percebermos este mundo vivido como
solo primeiro dos meus sentidos, incluindo nossa abertura para o mundo e desafiando a idéia de
que a verdade “habita apenas o „homem interior‟, ou antes não há homem interior, o homem está
4
no mundo e é no mundo que ele se conhece” . O trans “mais pessoal” trata a transcendência co-
mo a possibilidade de Ser expressa no mundo, mas que conserva sua abertura, sua impossibilida-
de de fechar-se, seu “ir além”.

A psicologia transpessoal como um estilo de pensamento que revela o “mistério” do inaca-


bamento do humano, assume a sua própria incapacidade de dizer tudo o que há para ser dito,
aproximando-se do pensamento de Merleau-Ponty (1999, p.20) quando afirma:

Será preciso que a fenomenologia dirija a si mesma a interrogação que


dirige a todos os conhecimentos; ela se desdobrará então indefinidamente, ela
será, como diz Husserl, um diálogo ou uma meditação infinita, e, na medida em
que permanecer fiel à sua intenção, não saberá onde vai. O inacabamento da
fenomenologia e o seu andar incoativo não são signo de um fracasso, eles eram
inevitáveis porque a fenomenologia tem como tarefa revelar o mistério do mundo
e o mistério da razão.

Assim, é como um pensamento aberto à interrogação permanente e que trabalha para não
se fechar nos dogmatismos e absolutismos, que se caracteriza a psicologia transpessoal; sendo a
transcendência reveladora de um projeto de formação humana que não cessa de ampliar, pois
revela o inacabamento do humano.

Referências bibliográficas

MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

SALDANHA, V. P. Didática transpessoal: perspectivas inovadoras para uma educação integral.


Campinas, SP: [s/n]. Tese (Doutorado em Educação), Pós-graduação em Educação, 2006.

4
Ibid., loc. cit.

22
WEIL, P. A medida da consciência cósmica. Petrópolis: Ed. Vozes. 1978

VARELA, J. F.; THOMPSON, E.; ROSCH, E. Mente incorporada. São Paulo: Artes Médicas,
2003.

WILBER, K. Foreword. In: SCOTTON, B.W.; CHINEN, A. B.; BATTISTA, J. R. (Eds). Textbook of
transpersonal psychiatry and psychology. New York: BasicBooks, 1996.

______. Integral psychology: consciousness, spirit, psychology, therapy. Boston: Shambhala


Publications, 2000.

2. Espiritualidade: um olhar psicológico


A resistência a introdução da dimensão espiritual no campo acadêmico da psicologia deve-
se, em parte, ao ranço adquirido, em nossa cultura, contra a religião desde o iluminismo. A “era
das trevas” medieval acionou um intenso mecanismo de resistência a tudo que pudesse relacionar-
se com o religioso, místico ou mítico, sendo a “espiritualidade” humana incluída nesta categoria, e
portando descartada. Todavia, desde os trabalhos pioneiros de James (1890, 1902), Kohlberg
(1992) e Fowler (1992) as diferenciações entre religião e espiritualidade, no campo psicológico,
tem sido melhor estabelecidas, contribuindo para a superação deste complexo de exclusão.

Fawler, por exemplo, em seu trabalho sobre “Os estágios da fé", coloca a religião como
uma “tradição cumulativa”, marcada por textos, escrituras, leis, narrativas, mitos, profecias, relatos
de revelações, símbolos visuais, tradições orais, música, dança, ensinamentos éticos, teologias,
credos, ritos, liturgias, arquitetura. Enquanto a fé (espiritualidade) é mais profunda e pessoal, sen-
do a forma como a pessoa ou o grupo responde ao valor transcendente.

Seguindo esta linha de raciocínio, Koenig et al.(2001) definem religião como um sistema
organizado de crenças, práticas, rituais e símbolos delineados para facilitar a proximidade com o
sagrado e o transcendente e espiritualidade como a busca pessoal por respostas compreensíveis
para questões existenciais sobre a vida, seu significado e a relação com o sagrado ou transcen-
dente, podendo ou não estar atrelada a rituais religiosos ou a uma comunidade.

As pesquisas na área da espiritualidade e psicologia ampliaram-se nos últimos anos, Koe-


nig (2007, p. 5-6) destaca que:

De fato, uma pesquisa on-line na PsycINFO (uma base de dados que


contém 2,3 milhões de pesquisas e artigos acadêmicos de 49 países em 27 idi-
omas), usando as palavras-chave “religion”, “religiosity”, “religious beliefs” e “spi-
rituality”, revela algumas tendências interessantes. Quando restringi os anos da
busca de 1971 a 1975, foram identificados 1.113 artigos, mas ao repetir a pes-
quisa restringindo-a aos anos entre 2001 e 2005, obtive 6.437 artigos, havendo
um aumento de mais de 600% em 30 anos. Assim, parece ocorrer um rápido in-
cremento na pesquisa e discussão acadêmicas relacionadas à relação entre reli-
23
gião, spiritualidade e saúde mental. Dado que religião é importante para a maio-
ria dos brasileiros e outros sul-americanos, não causa surpresa que haja interes-
se na ligação entre envolvimento religioso e saúde mental. Dos 6.437 artigos so-
bre religião/espiritualidade publicados entre 2001 e 2005, 20 envolveram artigos
sobre religião, espiritualidade e saúde de brasileiros. Seis desses 20 artigos rela-
tavam resultados de estudos quantitativos e quatro dessas pesquisas eram fo-
cadas em saúde mental.

A idéia da dimensão espiritual como um dos aspectos constitutivos do


5
humano está presente na forma da “Grande Cadeia do Ser” desde as culturas
xamânicas (TRUNGPA, 1992) até o seu ápice com a cultura Grega (Plotino),
mas foi praticamente excluída com o advento do cientificismo da modernidade.
Refletindo sobre as idéias centrais da “Grande Cadeia do Ser”, Röhr (2006, p.
15-16) destaca cinco dimensões básicas do humano, sintetizando e atualizando
os conhecimentos produzidos nesta área. Estas dimensões são a dimensão físi-
ca, emocional, mental e espiritual, esta última alvo da nossa reflexão, e definida
como,

[...] a dimensão espiritual. Não se confunde essa dimensão com a re-


ligiosa, que em parte pode incluir a espiritual, mas que contém algumas caracte-
rísticas como as da revelação como intervenção direta de Deus e de um tipo de
organização social que dessa forma são estranhas ou não necessárias à dimen-
são espiritual. Podemos nos aproximar à dimensão espiritual identificando uma
insuficiência das outras dimensões em relação ao homem nas suas possibilida-
des humanas. Posso viver nas demais dimensões sem ser comprometido com
nenhum aspecto delas. Entro na dimensão espiritual no momento em que me i-
dentifico com algo, em que eu sinto que esse se torna apelo incondicional para
mim. Identificamos, por exemplo, fenômenos humanos, freqüentemente pouco
refletidos, mas onipresentes na nossa vida como a liberdade e a crença no sen-
tido da vida como elementos da dimensão espiritual, e de fato eles só existem na
medida em que me comprometo com eles. Podemos incluir na dimensão espiri-
tual todos os princípios éticos e filosóficos que precisam, para se tornarem ver-
dadeiros, da minha identificação com eles. Não se trata na dimensão espiritual
de uma identificação somente ao nível do pensamento e do discurso. Trata-se
de uma identificação na totalidade, incluindo necessariamente um agir corres-
pondente. Um saber que não se expressa na minha vida prática, seja ela pública
ou particular, não alcançou ainda a dimensão espiritual. Uma convicção com que

5
Wilber (2000, p. 27), destaca que a “Grande Cadeia do Ser” reflete a espinha dorsal da filosofia perene e apresenta uma
síntese de concordância quase unânime e intercultural quanto às dimensões gerais básicas do ser, assim expressas: “maté-
ria, corpo (no sentido de corpos vivos e vitais, o nível emocional-sexual), mente (incluindo imaginação, concepções e lógi-
ca), alma (a fonte da identidade supra-individual) e espírito (tanto o fundamento sem forma como a união não-dual de todos
os outros níveis)”.

24
não me identifico por inteiro serve para camuflar lados de mim que não consigo
ou não quero enxergar, e leva fatalmente a desequilíbrios internos e externos. As
certezas sobre a própria identidade não são de natureza racional, mas intuitiva.
Por isso chamo essa dimensão também de intuitivo-espiritual.

Em uma visão fenomenológica essas cinco dimensões apresentadas por Röhr, não consti-
tuem realidades ontológicas distintas e separadas, mas sim planos de significação ou formas de
unidade, nas quais “matéria, vida, espírito não poderiam ser definidos como três ordens de realida-
des ou três espécies de ser, mas como três planos de significações ou três formas de unidades”
(MERLEAU-PONTY, 1942, p. 14).

Essas dimensões ou estruturas básicas são percebidas como hólons potenciais e não co-
mo essências permanentemente fixas e imutáveis quer sejam elas platônicas, kantianas, hegelia-
nas ou husserlianas. Assim, abre-se a possibilidade para emergência de novas dimensões no futu-
ro. Wilber (2006) destaca que essa visão da “Grande Cadeia do Ser” é um dos modos de interpre-
tar a realidade, contudo para que alcance um status pós-metafísico é necessário realizar algumas
revisões e acréscimos, tais como:

 compreensão de que essas dimensões não são estruturas preexistentes, mas em


parte estruturas de consciência humana;

 “os métodos de verificação de existência dessas estruturas de consciência não


mais envolvem a mera afirmação de sua existência apenas porque a tradição as-
sim o quer, nem baseiam sua existência apenas na introspecção ou na meditação
(ou outras asserções e alegações que, supostamente, transcendem a cultura). No
mínimo, eles envolverão alguma versão tanto da exigência da modernidade por in-
dícios objetivos quanto da exigência da pós-modernidade por embasamento inter-
subjetivo” (WILBER, 2006, p. 292);

Essas estruturas de consciência “não podem ser concebidas como as que são dadas eter-
namente – elas não são arquétipos, nem idéias eternas na mente de Deus, nem formas coletivas
fora da história, nem imagens eidéticas atemporais. [...] teriam de ser concebidos como formas que
se desenvolveram com o tempo, com a evolução e com a história” (WILBER, 2006, p. 293).

A espiritualidade nos domínios do saber psicológico


Se retornarmos brevemente a história do movimento das abordagens terapêuticas em psi-
cologia, perceberemos como a dimensão espiritual foi foco da atenção dos pesquisadores das
quatro principais forças do movimento “psi”, nem que fosse operando por contra-ponto. Utilizare-
mos a idéia de “forças” (MASLOW, 1962) para situar as abordagens terapêuticas e suas reflexões
sobre espiritualidade.

25
Primeira Força – Behaviorismo
A primeira grande força do movimento psicológico foi o Behaviorismo que se organizou nos
EUA a partir do início do século XX e conjugou várias tradições filosóficas e científicas que se opu-
nham a qualquer idéia de subjetividade ou interioridade.

Nesta força merece destaque o “Behaviorismo Metodológico” de Watson, que se apoiando


no positivismo e no pragmatismo, atacou a introspecção e tudo no humano que sugerisse uma
“vida interior”, pondo o comportamento do organismo como um todo como objeto de estudo (FI-
GUEIREDO, 1991, p. 82).

Outra grande influencia neste movimento foi “bahaviorismo radical” de Skinner que domi-
nou durante muitos anos o cenário do mundo psicológico, por atender ao ideal de ciência positivis-
ta e mecanicista da época. O trabalho de Skinner foi considerado um avanço em relação ao beha-
viorismo de Watson, por não negar a existência dos estados internos, contudo permanece fiel ao
ideal de que o comportamento observável deve ser o objeto de estudo da psicologia, não sendo
dado nenhum interesse a significados ou simbolos, mas as variáveis que afetam o comportamento.

Poderíamos dividir o behaviorismo em três grandes movimentos:

 O primeiro foi a Psicologia Comportamental clássica, representada pela Análise


Experimental do Comportamento de B. F. Skinner, que focava-se exclusivamente
no condicionamento e alteração de comportamentos indesejáveis;

 O segundo movimento foi encampado pela Psicologia Cognitivo-Comportamental,


sendo destaque a Psicologia Cognitiva de Aaron Beck, considerado o pai desta
abordagem, que mantêm o foco em alterar comportamentos indesejáveis, mas dá
maior enfoque para mudar pensamentos prejudiciais, ao contrário do movimento
anterior, que considerava que pensamentos e emoções não afetavam os compor-
tamentos externos;

 O terceiro movimento, representada pela Terapia de Compromisso pela Aceitação


(ACT) de Steven Hayes, um psicólogo da Universidade de Nevada em Reno, que
ampliou o leque de técnicas já desenvolvidas nos movimentos anteriores, sendo
destaque o uso da meditação da plena atenção do Budismo (Mindfulness) como
prática terapêutica.

No trabalho de Steven Haynes temos uma aproximação da primeira força com a espiritua-
lidade através do uso da meditação. Na década de setenta, Pierre Weil em seu livro “Mística e
ciência” já antevia esta aproximação, quando sugere que estudos na área do “behaviorismo” pode-
riam trazer grandes contribuições para o desenvolvimento da psicologia transpessoal, pois a partir
do estudo do controle de funções orgânicas involuntárias, tais como circulação sangüínea e ondas

26
eletroencefalográficas, realizado em iogues ou meditantes treinados poderíamos ter acesso a uma
melhor compreensão de fenômenos estudados na transpessoal.

O trabalho pioneiro de Fracine Shapiro (2007, p.43) com EMDR6 faz uso regular da medi-
tação e segundo sua autora “é, com certeza, coerente com as conjeturas de Maslow [...]”. David
Grand, um dos principais representantes do EMDR, em palestra em 2008 sobre “A essência do
EMDR” destaca o seu aspecto espiritual.

No meio transpessoal, os trabalhos pioneiros de C. A. Tart (1972, 2000) foram uma das
primeiras tentativas bem sucedidas de estudo dos estados alterados de consciência usando o ar-
senal metodológico comportamental, sendo seu trabalho referência nos estudos nesta área.

Segunda Força – Psicanálise e derivadas


O mundo da Salpêtrière, na França, rendia-se ao rei das histéricas, Jean-Martin Charcot,
que com suas impressionantes demonstrações hipnóticas (meio clínicas, meio circenses) liberava,
por sugestão, os pacientes de seus sintomas. Este “rei” atraiu para a corte parisiense outro grande
pesquisador, Freud, que juntamente com Breuer, desenvolveu o “método catártico”, a partir de
exaustivo estudo sobre histeria. Freud veio a aperfeiçoá-lo, nascendo daí “a livre associação”.

O método da “livre associação” permitiu a Freud a construção de sua metapsicologia, com


a a
suas tópicas (1 . Tópica: consciente, pré-consciente, inconsciente; 2 . Tópica: id, ego e superego),
oferecendo assim uma teoria acerca do inconsciente e sua dinâmica, bem como do papel da sexu-
alidade na etiologia das neuroses.

Apesar de ter o dualismo como marca fundante (spaltung) e não ter dado a atenção devida
7
ao fenômeno de consciência cósmica, denominado na época de “sentimento oceânico” , a psicaná-
lise resguardou para si um estatuto metapsicológico.

Rodrigué (1995) destaca a relação entre Freud, “o animal humano” e seu “amigo oceâni-
co”, Romain Rolland - ideólogo, pacifista, ganhador do Prêmio Nobel da Paz e autor de “Ghandi”-
como uma das possíveis causas para “o sentimento oceânico” ter ganho um espaço na teoria freu-
diana.

Depois de ler “O futuro de uma ilusão”, Romain Rolland censura Freud


por não ter colocado na base do sentimento religioso aquilo que ele denomina
“sentimento oceânico”, termo tomado de empréstimo dos místicos hindus. Esse
sentimento é , para ele, “completamente independente de todo dogma, de todo
credo, de toda igreja constituída, de todo livro santo, de toda esperança de so-
brevida pessoal etc. Trata-se da sensação simples e direta do Eterno (...)”. Freud
não se sente à vontade nessa frente. Ele escreverá em “O mal-estar na cultura”:

6
Dessensibilização e Reprocessamento Através de Movimentos Oculares
7
Consciência cósmica ou mais modernamente consciência transpessoal.
27
“As opiniões expressas por um amigo muito admirado (...) causaram-me muita
dificuldades. Não consigo descobrir em mim esse sentimento „oceânico‟. Não é
fácil lidar cientificamente com sentimentos” (...) Podemos considerar o primeiro
capítulo de “o mal-estar” uma carta aberta a seu amigo francês. Se ele não expe-
rimentou o sentimento oceânico, “pode, pelo menos, outorgar-lhe, um estatuto
metapsicológico”. Trata-se do retorno ao estado de fusão do ego primitivo do be-
bê a uma simbiose primordial com a mãe.” (RODRIGUÉ, 1995, vol.03, p. 162)

Destacaremos a seguir alguns dos pioneiros do estudo do psiquismo e seus interesses por
alguns tópicos que estão na meta de pesquisa da Psicologia Transpessoal. Daremos um destaque
especial a Carl Jung por ser considerado um de seus precursores.

Sigmund Freud

Quando buscamos, no Professor de Bergasse, referências acerca de fenômenos que se


aproximem da espiritualidade, deparamo-nos com dois momentos: o primeiro é do “Jovem Freud”,
com seus pensamentos voltados para a ciência e a medicina e o segundo o do “Velho Freud”, mais
maduro, interessado em problemas culturais e humanos amplamente concebidos, e em assuntos
relativos à alma.

Bettelheim (1982, p.86), escreveu que Freud por várias vezes falou sobre a alma, mas es-
tas referências foram retiradas da tradução inglesa que se centralizou no “jovem Freud”. Para
Freud a alma se referia à psique como um todo, apesar de em muitos momentos ter usado estes
termos indistintamente, como se vê a seguir:

Psique é uma palavra grega, e a tradução para ela é “alma”. O trata-


mento psíquico significa, pois, “o tratamento da alma”. Uma pessoa poderia, as-
sim, pensar que o sentido disso é: tratamento dos fenômenos mórbidos da vida
da alma. Mas tal não é o sentido desse termo. O tratamento psicológico pretende
ter um significado muito maior; a saber, o tratamento que tem origem na alma, o
tratamento dos distúrbios psíquicos ou corporais - em graus que influenciam so-
bretudo e , de modo imediato, a alma do homem.

Além de seu interesse por temas como “alma”, pode-se ressaltar estudos de Freud (1963)
sobre telepatia e parapsicologia, bem como seu vínculo com a Sociedade de Estudos Psíquicos,
instituição de pesquisa de temas parapsicológicos e “ocultos”. Sendo relevante pontuar o conflito
com Romain Rolland acerca do “sentimento oceânico”.

Epstein, M., apud Scotton, B.W.; Chinen, A.B. e Battista, J.R. (1996), identifica três grandes
contribuições do pensamento freudiano para a Psicologia Transpessoal:

 a descrição do sentimento oceânico como a apoteose da experiência religiosa. A-


pesar da interpretação limitada deste fenômeno como uma regressão à união fusi-
onal com a mãe ter influenciado uma imensa gama de pesquisas reducionistas,

28
Freud oferece-lhe um estatuto metapsicológico, o que segundo Rodrigué (1995,
vol.03, p.162), não é pouco para alguém que não havia experimentado este fenô-
meno;

 suas experiências com manejo da atenção, primeiramente com a hipnose, depois


com a associação livre e por fim, com a atenção flutuante. A atenção flutuante se
aproxima a estados descritos a partir dos treinamentos em meditação propostos
pela transpessoal;

 a noção de além do princípio do prazer e a tentativa de rompimento do sofrimento


neurótico a partir da sublimação.

O desencontro de Freud com fenômenos que fugiam ao paradigma dominante à sua época
foi expresso no seu lapso de memória, assim apontado por Rodrigué (1995 vol 02, p.162, grifo
nosso):

Numa manhã de dezembro de 1910, Freud partiu, vamos supor, sigilo-


samente, para se encontrar com Jung e Bleuler em Munique. Motivo da expedi-
ção? Visitar Frau Arnold, uma renomada astróloga. Mas a visita não teve lugar
porque Freud - conta-nos Jones - não conseguiu lembrar o nome da astróloga”.

O lapso freudiano marca um tempo, uma forma de pensar, expressando a ambivalência vi-
vida no meio científico em relação a fenômenos que ainda não podiam ser explicados. Ao mesmo
tempo traz a marca antecipadora de todo visionário, ou grande gênio, pois antecipa os interesses
de pesquisadores futuros, indicando uma imensa gama de possibilidades de investigação.

Sandor Ferenczi

A psicanálise durante um longo período ocupou um lugar de destaque nas pesquisas vol-
tadas ao psiquismo humano, por isso buscamos entre antigos “mestres” referências a uma dimen-
são além do pessoal. Nesta busca deparamo-nos com Ferenczi, “o vizir da psicanálise, o Heráclito
da psiquiatria húngura, o interlocutor de Freud em Siracusa”, nas palavras de Rodrigué (1995, vol
02, p. XXXI).

Nascido em Budapeste, em 1873, o oitavo de uma família de onze filhos, sua genialidade
não passou despercebida para Freud, de quem se tornou discípulo fiel, talvez um dos poucos das
primeiras gerações de grandes analistas a não romper com o professor.

Suas contribuições à teoria psicanalítica são inúmeras; aqui registramos o Ferenczi “Astró-
logo da Corte dos Psicanalistas”. (Ibid., p.162, vol.2)

Segundo Rodrigué (1995), Ferenczi publicou em 1898, na revista Gyógiászat, editada por
Miksa Schacter, grande figura paterna de sua vida, o ensaio intitulado “Espiritismo”, no qual o autor

29
narra um episódio que merece destaque, haja vista envolver um dos focos de pesquisa da Psicolo-
gia Transpessoal que são os estados alterados de consciência. Vejamo-lo:

Certo dia, ele participou de uma reunião mediúnica organizada por um


velho amigo espírita. Na sessão, Ferenczi perguntou: “Em quem estou pensando
neste momento?”. A médium respondeu: “A pessoa na qual você está pensando,
acaba de levantar-se da cama para logo pedir um copo de água e cair morta”.
Ferenczi, na hora, lembrou que tinha marcado uma consulta médica. Foi às
pressas à casa do paciente onde pôde constatar a veracidade do que a médium
dissera. (, Ibid, Vol 02, p.160)

No que diz respeito à telepatia, transferência de pensamento na linguagem freudiana, Fe-


renczi procurou em Berlim a médium e clarividente famosa, Sra. Seidler. De posse de uma carta de
Freud, “entusiasma-se com revelações da médium sobre a pessoa do professor”. Ferenczi em
carta revela ao professor:

Admitindo que ela possui capacidades realmente fora do comum, talvez


elas se devam a uma espécie de “leitura de pensamento”, isto é, leitura de meus
pensamentos. A auto-análise profunda que realizei depois da sessão, levou-me
à dita hipótese. A maioria das declarações a respeito do senhor correspondem a
processos mentais que eu realmente tive, mas também a processos mentais que
posso ter recalcado... Além da teoria da “indução psíquica”, podemos contemplar
a possibilidade de uma hiperestesia extática‟ .

O discípulo, contudo, mostra-se cauteloso:

Quero assegurar-lhe que não há perigo de que eu sucumba ao ocultis-


mo, devido a esta experiência, ainda obscura.” (Ibid, vol.2, p.162)

Embora seja pouco provável que conforme pontua Rodrigué “o tema do oculto e das ciên-
cias parapsicológicas, em geral, ocupasse pouco espaço nos encontros das quartas-feiras do gru-
po freudiano, o assunto operava como contra-ponto. Nessa procura pelo “espiritual”, Ferenczi es-
tava à frente de Jung”, embora se mostrasse mais reticente.

Otto Rank

Ainda no meio psicanalítico, temos o “O Trauma de Nascimento” de Otto Rank, surgido no


ano de 1923, entre as marcas do câncer de Freud. O escrito rankiano despertou no meio analítico,
inicialmente, uma reação de franca e quase total aceitação. Afirma-se que Freud teria comentado
com Ferenczi:

Não sei se 66% ou 33% do livro é verdadeiro mas, em qualquer caso, é


o mais importante progresso desde a descoberta da psicanálise”. O que não é
pouco na boca de Freud” (RODRIGUÉ,1995, p.88. vol.3)

30
Além de considerar o nascimento como um dos eventos importantes na vida do indivíduo
8
em "A Interpretação dos Sonhos" (segunda edição), Freud assinalou que “o ato de nascimento é a
primeira experiência de ansiedade e, assim, passa a ser a fonte e o protótipo do entendimento da
ansiedade” - o trauma de nascimento despertou uma verdadeira guerra no meio psicanalitico, bem
como abriu margens para que pesquisadores desenvolvessem uma teoria mais ampla a partir des-
te fato, como é o caso das matrizes perinatais de Grof (1988, 2000).

Freud enviou uma circular aos membros do Comitê com o objetivo de aplacar os ânimos
acirrados. A citação de trechos desta circular depõe acerca da maturidade do “velho Freud”, atingi-
do pelo câncer. Como se pode conferir em citação de Rodrigué (1995, vol.3, p. 89-91) a seguir
transcrita:

[...] incomparavelmente mais interessante. O trauma do nascimento de


Rank. Não hesito em dizer que considero essa obra altamente significativa, que
ela me deu muito o que pensar e que ainda não cheguei a ter um juízo significa-
tivo sobre ela. Há muito estamos familiarizados com fantasias relativas ao útero
e reconhecemos sua importância, mas devido ao realce que Rank lhes deu, elas
alcançaram uma significação muito maior e revelam de imediato o fundo biológi-
co do Complexo de Édipo. Repito em minha própria linguagem: o trauma de
nascimento deve estar associado a alguma pulsão que visa a felicidade, com-
preendendo-se aí que o conceito de felicidade é usado, sobretudo, em sentido
erótico. Rank, então, vai além da psciopatologia e mostra como os homens alte-
ram o mundo externo a serviço desse instinto, ao passo que os neuróticos pou-
pam-se desse problemas ao tomar o caminho mais curto de fantasiar o retorno
ao útero. Se à concepção de Rank acrescentarmos a de Ferenczi - a de que o
homem pode ser representado por seus genitais - então pela primeira vez temos
uma derivação do instinto sexual normal em que se encaixa nossa concepção do
mundo.

Naturalmente, bem mais poderia ser dito sobre isso e espero que os
pensamentos despertados por Rank tornem-se objeto de muitas discussões frutí-
feras. Deparamo-nos aqui não com uma revolta, uma revolução, uma contradi-
ção de nosso conhecimento assegurado, mas com um interessante acréscimo
que nós e outros analistas temos de reconhecer.”

As reações a esta circular foram exacerbadas, Ernest Jones afirma que Freud foi “por de-
mais tolerante”. O clima estava alterado e Freud nesta altura da vida reflete: “Meus discípulos são
mais ortodoxos do que eu” (ibid, p. 91). Poder-se-ia arriscar a hipótese de que ele estivesse preste
a continuar seu relacionamento com Rank, mas o movimento psicanalítico talvez pela inércia ine-
rente às instituições não lhe permitiu outra escolha senão o caminho da separação.

8
Nota de rodapé da 2a Edição

31
Assim “O Trauma do Nascimento”, que distanciou discípulo e mestre, levou Freud a revisar
sua teoria referindo-se a posição de Rank “que originariamente era a minha - de que o afeto da
angustia é conseqüência do ato do nascimento e uma repetição da experiência original, forçou-me,
uma vez mais, a revisar o problema da angústia”. (Ibid., vol.3, p.102)

Ora, isso significa que Freud admite o mérito de Rank quanto a travessia traumática do feto
pelo canal estreito da bacia, referindo-se ao evento como protótipo de angústia primeva para o
indivíduo à medida que se constitui em inevitável situação de ameaça à vida e ao mesmo tempo
um caminho único a ser percorrido. Para além dessa situação inicial de perigo, frente a outras fon-
tes geradoras de traumas, somando um total de quatro situações de perda a serem iniciadas pela
chamada “perda do nirvana intra-uterino”, temos na seqüência (ameaça de): perda da simbiose
materna, perda do pênis e perda do amor do superego.

Desse modo, as contribuições de Rank acerca do trauma de nascimento o colocam entre


os precursores da Psicologia Transpessoal, talvez um dos primeiros a indicar uma amplitude da
consciência para além dos limites impostos pela teoria psicanalítica dominante. Sua teoria indica-
nos a possibilidade de mergulharmos em níveis mais profundos da psique.

Grof (1988) destaca o intenso trabalho de Rank, construindo a partir do mesmo um arca-
bouço teórico para dar conta das experiências que envolvem a gravidez e o nascimento. Este autor
elabora a teoria das matrizes perinatais e, em homenagem a Rank, denomina de nível rankiano do
processo terapêutico a fase da terapia na qual emergem conteúdos perinatais de forma mais con-
densada.

Carl Jung
9
Carl Gustav Jung, descendente do mítico Sigmund Jung, alquimista de Mainz , nasceu em
26 de julho de 1875 em Kesswil, pequeno povoado à beira do lago Constanza, no cantão de Thur-
govia. O interesse por fenômenos que estavam fora do âmbito de estudo da psiquiatria de sua
época, bem como suas ricas contribuições ao desenvolvimento de uma psicologia do sagrado,
põem este autor como um dos precursores da Psicologia Transpessoal.

A família de Jung parece ter estimulado amplamente seu mundo imaginário. Durante a sua
infância experiências transpessoais podem ser assinaladas, como por exemplo: sendo solicitado a
produzir um ensaio, Jung ficou bastante sobrecitado (estado alterado de consciência). Neste esta-
do produziu um excelente ensaio e foi acusado de plágio pelo professor. Sem conseguir convencê-
lo, e sofrendo por alguns dias, Jung escreveu acerca do contato com um „ser invisível‟ que o teria
ajudado a fazer o texto.

9
“Ancestral de Carl Gustav, ativo na primeira metade do século XVII, conhecedor de Paracelso.”

32
Na escola Médica de Zurich, Jung escreveu sua tese sobre transe e estados dissociativos,
a partir das experiências com sua prima e médium Helene Preiswerk. Depois de sua graduação
trabalhou com Eugen Bleuler, um dos maiores mestres da psiquiatria, no Hospital de Burgholzh em
Zurique, o que lhe deu uma vasta experiência com psicóticos e colocou-o em contato com o campo
do simbolismo tendo-se, por exemplo um dos seus casos em que um paciente falou de um sol
fálico, figura posteriormente encontrada por Jung na cultura egípcia.

O encontro de Freud e Jung propiciou ao primeiro um suporte acerca da visão psicanalítica


do inconsciente. No entanto as divergências entre ambos não tardariam em aparecer. Em Viena,
Freud e Jung discutiram sobre fenômenos parapsicológicos, quando ocorreu um barulho na estan-
te de livros do escritório de Freud. Jung disse que tal fenômeno refletia um dos tópicos que esta-
vam discutindo e predisse um novo barulho. Freud discordou desta possibilidade, mas um segundo
barulho ocorreu. Freud depois escreveu para Jung dizendo que após sua partida os barulhos con-
tinuaram, porém os considerava sem importância. (Memórias, Sonhos e Reflexões).

Uma das possíveis causas para o rompimento entre Freud e Jung deveu-se ao fato de este
último insistir em destacar temas espirituais em seu foco de pesquisa.

Pode-se considerar as contribuições de Jung para Psicologia Transpessoal em quatro pon-


tos:

 a noção que desenvolvimento psicológico poderia incluir o crescimento de altos ní-


veis de consciência e continuar ao longo da vida;

 o conceito de transcendência é útil para cada indivíduo;

 a prontidão para explorar visões de outras culturas multicentenárias bem como de


levantar insights dentro da cultura ocidental mostraram-se relevantes para o traba-
lho clínico atual;

 o reconhecimento de que cura e crescimento freqüentemente resulta de experiên-


cias simbólicas ou de estados alterados de consciência, os quais não podem ser
reduzidos à racionalização.

Estas contribuições se expressam nos estudos junguianos acerca dos arquétipos e mitos,
inconsciente coletivo, sonhos, tipos psicológicos, da abordagem simbólica, da sincronicidade, e
das dimensões espirituais da psique, que serviram de base para a fundamentação da Psicologia
Transpessoal no Ocidente.

Jung também pode ser visto como um dos primeiros teóricos a estudar, numa perspectiva
psicológica, fenômenos como transes mediúnicos ou não, yoga, espiritualidade dos nativos ameri-
canos, xamanismo africano, o I Ching, alquimia e gnosticismo.

33
As publicações que mais destacam o aspecto transpessoal na obra de Jung são: Sete
Sermões para um Morto; Uma Resposta a Jó; Memórias, Sonhos e Reflexões (JUNG, 2002). É
possível perceber a ousadia de Jung frente ao meio acadêmico a partir de sua declaração a BBC,
quando questionado acerca da existência de Deus: “Eu não penso que ele existe, eu sei que ele
existe”.

Terceira Força – Humanismo/Existencialismo


Weil (1978b, p. 14-15) chama a atenção para o fato de que a terapia e a psicologia exis-
tencial têm focalizado já há muito tempo a importância da dimensão fenomenológica do “aqui e
agora” para emergência do “encontro existencial” e das suas relações com os valores superiores
da humanidade, tais como a beleza, a verdade e o amor. Para autores como Laing e Maslow, a
consciência cósmica constitui o meio e o objetivo final da terapia. Neste terreno também há pro-
blemas a levantar e a solucionar.

Existe uma necessidade pulsional de se chegar à consciência cósmica?


Os valores ligados a ela são „instintóides”?

Como chegar à consciência cósmica sem riscos de descompensação?


Por que a experiência cósmica tem o valor terapêutico que se lhe tem atribuído?

Quais as relações entre a realidade da experiência cósmica e a realida-


de da vida quotidiana?”

Os trabalhos pioneiros de Maslow (apud Walsh e Vaughan, 1995) marcaram o início pro-
missor das pesquisas nesta área. Sendo possível encontrar nas obras finais de Carl Rogers (1983)
indícios de sua abertura para os estudos transpessoais. Em “Tornar-se Transpessoal” Boainain Jr.
(1998), destaca que Carl Rogers, na década final de sua vida, teria passado por um processo de
transformação transpessoal e, ultrapassando os modelos tradicionais da psicologia humanista,
teria oferecido fundamentos para criação de uma “Abordagem Transpessoal Rogeriana”. Este livro
resgata o momento de passagem do humanismo para o transpessoal.

Carl Rogers

Considerado um dos principais representantes da Terceira Força em Psicologia, Rogers foi


um dos primeiros autores que forneceu informações acerca das possibilidades de ampliação do
campo de pesquisa na área psicológica.

Tornando relevante a possibilidade de abertura para novas idéias Rogers (1983, p. 26) va-
loriza àquelas que dizem respeito ao espaço interno – o chamado reino dos poderes psicológicos e
das habilidades psíquicas da pessoa humana.

Nesse sentido assim se expressa:

34
Estou aberto a fenômenos ainda mais misteriosos - à premonição, à te-
lepatia, à clarividência, às auras humanas, às fotografias kirlianas, e até mesmo
às experiências que se dão fora do corpo. Estes fenômenos podem não corres-
ponder às leis científicas conhecidas, mas talvez estejamos no caminho da des-
coberta de uma nova ordem, regida por outros tipos de leis. Sinto que estou a-
prendendo muito com uma nova área de conhecimentos, e considero esta expe-
riência agradável e empolgante.

Esta abertura de Rogers marca uma passagem importante dentro do movimento psicológi-
co, pois mostra o interesse dos psicólogos humanistas por uma nova dimensão em psicologia, que
mais tarde passou a denominar-se Psicologia Transpessoal, e apontava novos rumos para a pes-
quisa.

Importante ressaltar que em “Reflexões sobre a Morte”, Rogers (1983, p. 29) nos ensina
um dos pontos considerados centrais da Psicologia Transpessoal: a morte.

A minha crença de que a morte é o fim foi modificada, no entanto, por


coisas que aprendi na década passada. Fiquei impressionado com os relatos de
Raymond Moody (1975) sobre as experiências com pessoas que estiveram pró-
ximas da morte a ponto de serem declaradas mortas, mas que voltaram à vida.
Impressionam-me alguns relatos sobre reencarnação, embora eu considere uma
bênção muito duvidosa. Interesso-me pelos trabalhos de Elisabeth Kübler-Ross
e por suas conclusões sobre a vida após a morte.

Em atualização a estas afirmações o autor escreve: “Vivendo o Processo de Morrrer”. Nele


busca reorganizar suas considerações sobre o processo da morte, afirmando a nova visão quando
destaca: “contrastam frontalmente com algumas passagens deste capítulo, escrito há apenas dois
anos atrás” (ibid. p.31).

A experiência de falecimento de sua esposa traça um bonito percurso na reorganização do


conceito de morte, e marca a transformação operada em sua mente flexível e disponível ao novo.

Modificaram completamente minha concepção do processo da morte.


Agora considero possível que cada um de nós seja uma essência espiritual con-
tínua, que se mantém através dos tempos e que ocasionalmente se encarna
num corpo humano.” (Ibid, p. 31)

Em “Estados Alterados de Consciência” Rogers (1983) destaca os trabalhos de Grof e Grof


(1977) e Lilly, que apontam a capacidade das pessoas ultrapassarem o nível comum de consciên-
cia, conforme transcrito a seguir:

Seus estudos parecem revelar que em estados alterados de consciên-


cia, as pessoas entram em contato com o fluxo da evolução e apreendem seu
significado. Este contato é vivenciado como um movimento que os aproxima de
uma experiência transcendente de unidade. É como se o eu se dissolvesse nu-

35
ma região de valores superiores, especialmente de beleza, harmonia e amor. A
pessoa sente-se como se ela e o cosmos fossem um só. A realização obstinada
de pesquisas parece que vem confirmando as experiências de união dos místi-
cos com o universo.” (ROGERS, 1983, p.47)

Diante desse cenário, percebe-se que Rogers revela o contato com as produções científi-
cas da então nascente área de Psicologia Transpessoal, citando os trabalhos Grof, um de seus
expoentes, responsável por valorosa construção cartográfica da consciência nesta área.

Com o desenvolvimento de pesquisas que incluíam a dimensão espiritual da vida humana,


vários psicólogos humanistas passaram a se interessar por uma série de estudos até então negli-
genciados pela Psicologia Humanista.

3. Espiritualidade e os pioneiros do desenvolvimento humano


Apesar de a modernidade ter transformado a sua grande contribuição, “diferenciações das
10
esferas de valores culturais” (WILBER, 2002, p. 76), em dissociação, fragmentação e alienação,
ela também apresentou sua contribuição ao modelo de desenvolvimento que inclui a dimensão
espiritual. No campo da psicologia, os estudos sobre o desenvolvimento emergiram no final do
século XIX, tendo sofrido diversas as influências. Como destaca Charlesworth (1992, p.5):

Como é habitualmente reconhecido, a psicologia do desenvolvimento


tem uma rica história. Seus precursores incluem eminentes filósofos, pedagogos,
e médicos cujas idéias e observações indubitavelmente têm tido um impacto a-
cumulativo sobre esta ciência do comportamento infantil e do desenvolvimento
no século dezenove. Mas um conjunto tão vasto de perspectivas ao longo dos
séculos tornou difícil identificar ancestrais diretos da psicologia do desenvolvi-
mento.

Cairns (1992) aponta que as primeiras tentativas de compreensão científica do desenvol-


vimento surgiram com as contribuições de James Mark Baldwin, considerado por Wilber (2002),
como um dos primeiros a esboçar modelos integrais de desenvolvimento. Baldwin, contemporâneo
de William James e de Peirce, é um nome central na psicologia moderna, sendo o primeiro a definir
de forma precisa o que é um estágio de desenvolvimento, além de apresentar a primeira versão de
estágios do desenvolvimento religioso. Seu esquema de desenvolvimento cognitivo foi adotado por
Piaget e por Kohlberg, contudo foi relegado ao esquecimento, graças ao predomínio do behavio-
rismo americano.

A importância de Baldwin pode ser vista nas palavras Kohlberg (apud WILBER, 2002, p.
98) a seguir:

10
Diferenciação sobretudo da arte, da ética e da ciência que passam a seguir seus próprios caminhos,
livres das pressões e imposições das outras esferas.
36
“Quando eu li Baldwin mais profundamente, compreendi que Piaget de-
rivou de Baldwin todas as idéias básicas com as quais começou na década de
20: assimilação, acomodação, esquema e adualismo, „egocentrismo‟ ou o cará-
ter indiferenciado da mente da criança. Também reconheci que a obra global de
Piaget, a criação de uma epistemologia genética de uma ética que utilizariam a
epistemologia para apresentar problemas para a psicologia do desenvolvimento
e que utilizariam a observação desenvolvimentalista para ajudar a questões epis-
temológicas, também tiveram origem em Baldwin”

Kohlberg (apud WILBER, 2002, p. 98) reconhece que seu modelo dos seis estágios de de-
senvolvimento moral é fruto das contribuições de Baldwin, e aponta que os níveis básicos de de-
11
senvolvimento (pré-convencional, convencional e pós-convencional) também derivam das idéias
deste autor, como podemos ver na citação a seguir:

“... Nossos dados sugeriram que as distinções em três níveis de Bald-


win [adualista, dualista e ética] definiam „estágios‟ (ou subníveis) na série básica,
pré-convencional, convencional e pós-convencional (autônoma-ética)”

Baldwin também é reconhecido como um dos primeiros a oferecer explicações sobre os


estágios do desenvolvimento espirituais, destacando que estes não poderiam ser reduzidos a inte-
resses econômicos, científicos ou morais. Neste campo suas idéias são extremamente atuais, co-
mo destaca Wilber (2002, p. 99):

“... Baldwin reconhecia que o desenvolvimento da consciência levava a,


e culminava em, uma experiência estética num grau supremo, que unia simulta-
neamente tanto a moral como a ciência mais elevadas. Essa é, naturalmente,
uma versão do idealismo estético (derivado de Kant, de Schelling e de Schiller),
mas que Baldwin retrabalhou em seu próprio sistema, denominando pancalismo,
palavra que significa que a consciência cósmica é „totalmente abrangente, sem
referência alguma fora de si mesma‟. Essa experiência da unidade é prefigurada
na contemplação de uma bela obra de arte. A própria obra de arte existe no
mundo objetivo, exterior, e, enquanto objeto, pode ser estudada pela investiga-
ção científica. Porém, a beleza e o valor da obra de arte é um estado interior, um
estado subjetivo, trazido à arte por aquele que a contempla (embora esteja fun-
damentado nas características objetivamente reais da obra). ... „é da natureza de
tal experiência sintética ir além de objetos estéticos específicos de contemplação
até a própria realidade como um todo. Essa experiência sintética inclui a idéia de

11
Biaggio (2002, p.24) destaca que no nível pré-convencional, “os indivíduos ainda não chegaram a
entender e respeitar normas morais e expectativas compartilhadas”, predominando atitudes pragmática e he-
donista. No nível convencional há uma concentração nos sentimentos coletivos dos demais, sendo que “o self
identifica-se com, u internaliza, as regras e expectativas dos outros, especialmetne das autoridades; e no pós-
convencional há uma construção pessoal do sujeito que define moral em termos universais de justiça, direitos
naturais e respeito à pessoas, independentemente de sexo, raça, crença e ou religião, ou seja, “diferencia o self
das regras e expectativas dos outros e define os valores morais em termos de princípios próprios”.
37
Deus, mas agora se vê que ela se refere a essa totalidade orgânica ou espiritual
em cujo âmbito o eu e o mundo podem finalmente ser conhecidos‟. Essa corren-
te estética também passa por um desenvolvimento em etapas, que culmina na
experiência consumada da consciência cósmica.”

Biaggio (2002, p. 29), indica que apenas “3% a 5% das pessoas” apresentam o raciocínio
do estágio pós-convencional seis, o que levou muitos teóricos a questionar sua validade, contudo
Kohlberg, além de defender o estágio 6, como realidade empírica e teórica, postula nos últimos
12
anos de sua vida a existência de um sétimo estágio, “no sentido lato, relacionado com orienta-
ções éticas e religiosas, que vão além de sua concepção de justiça. O sétimo estágio envolve a
construção de um senso de identidade ou unidade com o ser, com a vida, ou com Deus” (Ibid, p.
38).

Kohlberg aponta a necessidade do estágio sete como um caminho para resolver o impasse
presente no “relativismo colocado pela distinção entre princípios éticos e preocupações egoístas
ou hedonistas que existem no estágio 6” (Ibid, p. 40) e destaca o estóico Marco Aurélio como e-
xemplo deste último estágio.

“O conteúdo da fé de Marco Aurélio, como o de todos os estóicos, é


simples e quase duro. começa com a crença de que o universo é ordenado,
cognoscível e em evolução. Ao referir-se ao princípio último, ordenador, racional
e evolutivo do universo, Marco Aurélio não tenta separar Deus da natureza. Às
vezes ele chama esse princípio de Deus, às vezes de natureza. Desta crença ele
deriva uma visão de lei natural que lhe dá força de agir em termos de princípios
universais de justiça em um mundo injusto. isso também lhe dá a paz que vem
de sentir-se a si mesmo como parte finita de um universo infinito”.

O sétimo estágio, “Espiritual universal”, raramente aparece nas citações quando da apre-
sentação da teoria dos estágios do desenvolvimento moral, contudo o trabalho de James Fawler
(1992), sobre os “Estágios da Fé”, seguiu as pistas deixadas por Kohlberg e se destacou como
uma linha de estudos no campo da espiritualidade, apresentando seis estágios, que vão do primei-
ro, fé mágico-projetiva, até o sexto a “fé universalizante”.

Estes pesquisadores deixaram enormes contribuições para o estudo do desenvolvimento


humano e iniciaram pesquisas que contribuíram para o estabelecimento de uma linha de desenvol-
vimento “espiritual” que englobam trabalhos na área de solicitude, sinceridade, preocupação, fé
religiosa e estágios meditativos. Assim como, gradativamente se desdobraram e revelaram, nas
últimas décadas, uma gama de estudos sobre o imenso arco-íris de linhas de desenvolvimento que
incluem a moral, os afetos, a auto-identidade, a psicossexualidade, a cognição, as idéias a respeito

12
Kohlberg morreu em 19 de janeiro de 1987, tendo convivido os últimos 16 anos de sua vida com
extrema dor, decorrente de uma infecção intestinal contraída quando realizava pesquisas em Belize, na Amé-
rica central.
38
do bem, a adoção de papéis, a capacidade sócio-emocional, a criatividade, o altruísmo, alegria,
competência para se comunicar, os modos de espaço e tempo, a tomada pela morte, as necessi-
dades, a visão de mundo, a competência lógico-matemática, as habilidades cinestésicas, a identi-
dade sexual e a empatia, entre outras que contam com suporte de pesquisas empíricas.

Wilber (2002, p. 43-44) destaca que essas linhas são “relativamente independentes”:

“... significando que, em sua maior parte, elas podem se desenvolver


independente umas das outras, em diferentes proporções, com dinâmicas dife-
rentes e sob cronogramas diferentes. Uma pessoa pode ser muito avançada em
algumas linhas, razoável em outras, inferior em algumas outras – e tudo ao
mesmo tempo. Desse modo, o desenvolvimento global – a soma total de todas
essas diferentes linhas – não mostra nenhum tipo de desenvolvimento linear ou
seqüencial. ... No entanto, a maior parte das pesquisas continuou a constatar
que cada linha de desenvolvimento tende a se desdobrar de uma maneira se-
qüencial, holárquica: os estágios superiores de cada linha tendem a se desen-
volver sobre estágios anteriores ou incorporá-los, não se pode pular nenhum es-
tágio, e estes aparecem numa orem que não pode ser alterada por condiciona-
mento ambiental nem por reforço social.”

Assim, além de independentes, elas se desdobram de forma hololárquica através de um


conjunto de ondas que incluem “um estágio físico/sensório-motor/pré-convencional, um estágio de
ações concretas/regras convencionais, um estágio mais abstrato, formal, pós-convencional” (WIL-
BER, 2002, p. 44) e os estágios “pós-pós-convencionais” ou transpessoais. Eis o retorno de uma
versão resumida do Grande Ninho do Ser, como espaço de desenvolvimento geral ou potencial,
que se desdobra do corpo (sensório-motor) para a mente (convencional e pós-convencional) e dai
para o espírito (pós-pós-convencional).

A pós-modernidade trouxe imensos desafios para os estudos na área da espiritualidade,


pois enquanto a modernidade diferenciou os Três Grandes (Arte, Moral e Ciência), a pós-
modernidade prometeu integrá-los numa abrangência inclusiva, integral e não-exclusivista, mas
com freqüência abraçou a loucura aperspectiva, na qual, nenhuma postura é melhor que a outra e
as hierarquias são vistas como marginalizantes, negando-se, assim, as distinções qualitativas de
qualquer tipo, inclusive as pesquisas na área de desenvolvimento por incluírem hierarquias. Mas
se devemos ter todas as posturas como igualitárias, por que então rejeitar o nazismo ou o racis-
mo? Eis uma questão de difícil resposta para o aperspectivismo pós-moderno.

As contribuições da pós-modernidade devem ser incluídas numa agenda integral de estudo


da espiritualidade, pois a compreensão de que o mundo é, em parte, uma construção e uma inter-
pretação, e que todo significado depende do contexto e estes são interminavelmente holônicos são
fundamentais para ampliarmos a visão da integralidade e superarmos o reducionismo de leituras

39
precipitadas da “Grande Cadeia do Ser”, e assim, termos uma perspectiva mais abrangente do
fenômeno humano.

Percebe-se claramente o avanço dos estudos na área da espiritualidade e psicologia, con-


tudo precisamos definir com mais clareza em que sentido este termo esta sendo utilizado. Com
este objetivo, buscamos destacar a seguir algumas definições de espiritualidade formuladas a par-
tir do referencial da psicologia do desenvolvimento e que englobam as contribuições da pré-
modernidade, modernidade e pós-modernidade.

Espiritualidade: algumas definições


De forma geral, Wilber (2002, p. 147) destaca cinco definições de espiritualidade que apre-
sentam interesse a um olhar psicológico transpessoal:

 A espiritualidade envolve os níveis mais elevados de qualquer uma das linhas de de-
senvolvimento.
 A espiritualidade é a soma total dos níveis mais elevados das linhas de desenvolvi-
mento.
 A espiritualidade é, ela mesma, uma linha de desenvolvimento separada.
 A espiritualidade é uma atitude (tal como a sinceridade ou o amor) que você pode ter
em qualquer estágio em que esteja.
 A espiritualidade, basicamente, envolve experiências de pico, e não estágios.
Estas cinco definições congregam aspectos importantes do fenômeno “espiritualidade” que
nos parece importantes para sua compreensão, dentro de um modelo integral, neste sentido ire-
mos abordá-las a seguir:

1. A espiritualidade envolve os níveis mais elevados de qualquer uma das linhas de desenvolvi-
mento.
Nessa perspectiva, a “espiritualidade” significa basicamente os níveis transpessoal, trans-
racional, pós-pós-convencional de qualquer uma das linhas de desenvolvimento, como podemos
perceber no exemplo abaixo:

40
Neste exemplo, as linhas de desenvolvimento interpessoal e afetivo seriam consideradas
espirituais, pois apresentam os níveis mais elevados de desenvolvimento, tendo evoluído do nível
pré-convencional ao convencional e deste ao pós-convencional até alcançar a sua dimensão mais
ampla no pós-pós-convencional. Esta visão, conforme destaca Wilber (2002, p. 148) é muito co-
mum e:

“... reflete os aspetos da espiritualidade que incorporam as capacidades


mais elevadas, os motivos mais nobres, as melhores aspirações; os “alcances
maiores” da natureza humana; os mais altamente evoluídos, a extremidade
crescente, a ponta de lança – todo o que aponta para os níveis mais elevados de
cada uma das linhas.”

Assim, a espiritualidade ou um dos seus aspectos particulares seguiria definitivamente um


curso seqüencial ou em estágios, pois ela compreende, por definição, os estágios pós-pós-
convencionais em qualquer uma das correntes de desenvolvimento.

2. A espiritualidade é a soma total dos níveis mais elevados das linhas de desenvolvimento.
Esta definição é semelhante à definição anterior, mas com uma ênfase ligeiramente dife-
rente (porém importante). Essa definição enfatiza o fato de que, embora as linhas individuais se
desdobram de maneira hierárquica, a soma total dos estágios mais elevados dessas linhas não
apresentaria um tal desenvolvimento em estágios. No gráfico, logo abaixo, o somatório das linhas
interpessoal, espiritual e afetivo representam esta definição de espiritualidade total vivida pelo indi-
viduo. Como o “desenvolvimento total” e o desenvolvimento do “eu total”, o “desenvolvimento espi-
ritual total” não ocorreria em estágios.

Em outras palavras, o caminho espiritual de cada pessoa é radicalmente individual e único,


mesmo que as próprias aptidões particulares possam seguir um caminho bem-definido.

41
3. A espiritualidade é, ela mesma, uma linha de desenvolvimento separada.
Nesta definição o desenvolvimento espiritual apresentaria algum tipo de desdobramento
em estágios, uma vez que uma linha de desenvolvimento, por definição, mostra desenvolvimento.

Modelos de desenvolvimento espiritual, oriental e ocidental, apresentam em algum nível


um desenvolvimento seqüencial holárquico, embora, mais uma vez isso não evite regressões, espi-
rais, avanços temporários para frente ou experiências de pico de qualquer um dos principais esta-
dos.

A seguir apresentamos uma adaptação dos mapas de desenvolvimento da espiritualidade


adaptados de Wilber (2002, p. 229 e 231).

Uma comparação intercultural destes mapas do desenvolvimento espiritual aponta para a


perplexidade diante da “enorme semelhança dos campos morfogenéticos ou espaços de desenvol-
vimento sobre os quais migram os estágios dos seus desenvolvimentos espirituais” (WILBER,
2002, p.149). Contudo, uma das principais dificuldades em se chegar a um acordo a respeito de
uma concepção de estágios é que, em sua maior parte, as pessoas, mesmo que estejam de fato
progredindo através de estágios de competência, raramente experimentam qualquer coisa que
lhes dê a sensação de um estágio ou que se pareça cm um estágio. Um exemplo clássico disto
está na dificuldade de crianças filmadas resolvendo questões quando estavam em um estágio pré-
operatório aceitarem as respostas como suas quando vêem este filme em um estágio posterior.

42
4. A espiritualidade é uma atitude (tal como a sinceridade ou o amor) que você pode ter em
qualquer estágio em que esteja.
Esta é a definição mais comum de espiritualidade, não obstante, como destaca Wilber
(2002, p. 151-152):

“... isso tem se comprovado muito difícil de definir ou mesmo de se e-


nunciar de uma maneira coerente. Não podemos simplesmente dizer que a ati-
tude necessária é o amor, pois o amor, de acordo com a maior parte das pesqui-
sas, tende (assim como acontece com outros sentimentos de afeto) a se desdo-
brar do modo egocêntrico para o sociocêntrico e daí para o mundicêntrico; e,
portanto, essa atitude não está completamente presente em todos os níveis; mas
se desenvolve a si mesma”.

A visão romântica presente nos que usam esta definição indica que as crianças, por exem-
plo, tem maior capacidade de sinceridade, dada a fluidez com que a usam; contudo como se pode
ser sincera sem ainda conseguir adotar o papel do outro? Atribuir o termo espiritual a uma criança
vivendo o egocentrismo equivaleria transformar o espiritual em narcisismo. Neste sentido Wilber
(2002, p. 159) destaca:

“Se a sua idéia de espiritualidade é se sentir bem, então a infância po-


deria ser o Éden; porém, se a sua idéia também envolve fazer o bem, adotando
o papel de outras pessoas, e a projeção da sua consciência mediante muitas
perspectivas e panoramas pluralistas, de modo a incluir a compaixão, o cuidado
e o altruísmo, então a infância é um domínio de expectativas reduzidas, inde-
pendentemente do quanto seja maravilhosamente fluido e fluente o seu egocen-
trismo”.

5. A espiritualidade, basicamente, envolve experiências de pico, e não estágios.


As experiências de pico (ou estados alterados de consciência) indicam o acesso às dimen-
sões da alma ou do espírito, ou mesmo experiências de expansão da consciência na dimensão
não-dual em qualquer momento do desenvolvimento humano. Não apresentando, em geral, de-
senvolvimento ou desdobramento em estágios. Elas são temporárias, passageiras, transitórias, por
isso denominadas de “estados de consciência”, diferentemente das estruturas, que são mais está-
veis.

Experiências de pico não requerem a noção de estágios e apontam para o acesso a níveis
transpessoais, contudo as experiências acessadas são geralmente interpretadas por meio de es-
truturas arcaicas, mágicas, míticas ou racionais, cada uma delas marcada por estágios, sendo a
meta do trabalho formativo, transformar estados em estruturas, pois “... à medida que esses esta-
dos temporários são convertidos em características duradouras, eles se tornam estruturas que
mostram desenvolvimento” (WILBER, 2002, p. 152).

43
Uma análise destas cinco definições nos aponta que a resposta para pergunta: a espiritua-
lidade se desenvolve ou não em estágios, feita no início deste trabalho, depende de que definição
estamos utilizando, pois nem tudo que chamamos de “espiritualidade” envolve estágios de desen-
volvimento.

“Não obstante, muitos aspectos da espiritualidade parecem, numa ins-


peção mais minuciosa, envolver um ou mais linhas de desenvolvimento [Defini-
ção 1 e 2], bem como a espiritualidade considerada, ela mesma, como uma linha
separada [Definição 3]. No entanto, experiência de pico [Definição 5] não apre-
sentam desenvolvimento em estágios, embora tanto as estruturas que têm expe-
riências de pico quanto os domínios onde essas experiências ingressam mos-
trem desenvolvimento se houver realizações permanentes” (Ibid, p. 153).

Uma abordagem psicológica mais ampla deveria contemplar algumas destas perspectivas
de espiritualidade, assim como buscar explicitar o seu modelo de desenvolvimento, e, por conse-
guinte, do humano que vive o processo humanização. Todavia, quer se inclua ou não a presença
da espiritualidade como uma dimensão humana fundamental, as pesquisas apontam que o pro-
cesso de humanização é mais complexo de que supúnhamos, requerendo a vivência de “exercí-
cios espirituais” (HADOT, 2006), que objetivam “a busca, a prática, a experiência mediante as
quais o sujeito opera sobre si próprio as transformações necessárias para ter acesso à verdade”
(FOUCAULT, 2001, p16), que ajudam a pessoa a tornar-se receptiva a uma experiência direta da
dimensão do Espírito, e não meramente a crenças ou idéias a respeito do Espírito.

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4. Tradições de Sabedoria do Oriente


Tornou-se lugar comum associar a Psicologia Transpessoal com as tradições de sabedoria
do Oriente; associação usada, ora para desqualificá-la, atribuindo-lhe um estatuto “místico” e es-
tranho as formas de pensar Ocidental, ora para realçar seu caráter integrador e crítico, quando
aponta para o etnocentrismo que governa nosso olhar, através do desvelamento do alto nível de
desconhecimento que temos acerca de outras formas de existir, no caso em reflexão, os sistemas
de conhecimento e de cuidado desenvolvido nas Culturas Orientais.

Com a resolução 005/2002 do Conselho Federal de Psicologia que dispõe sobre a prática
da acupuntura pelo psicólogo tivemos oficialmente o reconhecimento das contribuições dos mode-
los de cura, posto em prática no Oriente, pelo órgão de regulação da psicologia no Brasil. Esta
decisão vem ratificar os debates sobre a ampliação da visão de saúde elaboradas nas Declarações

46
de Alma-Ata (Conferência das Nações Unidas, realizada em 1978, na URSS) e de Veneza (Patro-
cínio da UNESCO), que sinalizavam a necessidade de considerarem-se as contribuições de outras
visões de homem e mundo além da tradicional.

Refletindo sobre esta situação, Silva (2007, p. 420), destaca a importância da contribuição
de mais de 5 mil anos de experiência em processos de cura desenvolvidos pela cultura chinesa
para ampliar os horizontes da ciência Ocidental.

Essa proposta de aproximação entre os conhecimentos advindos das


ciências e os conhecimentos contidos no que os orientais chamam de As Tradi-
ções abre uma nova possibilidade, pois coloca, a serviço do homem, "conheci-
mentos" que podem ser utilizados para resolver ou aliviar o sofrimento humano,
quer seja ele físico ou mental, independentemente do país, sistema político, raça
ou região do planeta.

As críticas de que o contato com as contribuições orientais fazem parte das estratégias de
suturar a angustia cartesiana das incertezas ou como diz Zizek (2001, p. 12), uma última ironia
pós-moderna, tem sido duramente rebatidos. Revel; Ricard (1998), por exemplo, comparam a en-
trada do Budismo no Ocidente como uma revolução semelhante ao Renascimento ocorrido na
Europa. Já Costa (2004, p. 210) aponta que o diálogo com estas visões de homem e mundo po-
dem contribuir para resignificarmos o próprio existir dentro da nossa cultura, pois:

Uma das características fundamentais das espiritualidades asiáticas é o


tratamento dado ao físico na condução moral do sujeito. A corporeidade física,
em oposição às religiões judaico-cristãs, não é vista apenas como obstáculo ao
aperfeiçoamento espiritual. [...] Aprender a respirar, a se sentar, a se alimentar, a
dormir ou a acordar corretamente são etapas que se devem seguir para superar
o sofrimento e chegar à serenidade e à sabedoria.

Uma longa tradição de filósofos e mestres orientais debruçou-se sobre a mente, produzin-
do uma longa literatura. No ocidente, Carl Jung, com a realização do prefácio do “Livros tibetano
dos mortos”, deu início ao reconhecimento do potencial presente nas formas de saber do oriente,
contudo o etnocentrismo, aliado à dificuldade de acesso à literatura oriental, tem nos conduzido a
uma visão limitada das contribuições orientais. No entanto, os modelos de desenvolvimento e as
teorias da mente produzidas nos meios transpessoais apontam para riqueza deste contato, que
precisa ser revista de forma autêntica e livre de preconceitos.

Na Psicologia Transpessoal, quando da transposição ou adaptação dos modelos da sabe-


doria oriental para a nossa cultura, alguns pontos norteadores são considerados, de forma que o
processo de inclusão, não mutile as múltiplas variáveis que compõem os modos de ser destas
culturas. A seguir, destacaremos os pontos centrais que tem sido considerados quando do uso dos
modelos de cura de inspiração oriental:

47
 Os sistemas de cura oriental baseiam-se em sua grande maioria em conceitos de
13
energia sutil, no qual “sutil” , significa que a energia não é necessariamente men-
surável, mas plausível, pois mudanças ocorridas após o emprego da energia hipo-
tética em questão podem ser previstas e observadas, como no caso do uso da e-
nergia dos meridianos da acumputura;
 Eficazes ou efetivos: estudos de caso ou evidências científicas devem demonstrar
resultados benéficos ao paciente ou cliente;
 Resultados estáveis: os benefícios produzidos devem, em geral, se manter ao lon-
go do tempo sem a necessidade de qualquer tratamento adicional, ou por possibili-
tar que o cliente realize a auto-cura;
 Seguras: os riscos de efeitos colaterais relacionados ao uso das técnicas devem
ser insignificantes ou totalmente ausentes;
 Verificáveis: as técnicas devem prestarem-se a estudos sob condições científicas;
 Teoricamente econômicas: os conceitos subjacentes às práticas devem adequar-
se à definição de uma teoria boa e parcimoniosa, além de guardar coerência com
as teorias da psicologia moderna, da nova biologia e da física quântica;
 Validade de conteúdo: a técnica deve ser admissível por pessoas de diferentes et-
nias e orientações religiosas, educacionais, filosóficas ou culturais;
 Empoderamento: a grande maioria das práticas promoverá a auto-aplicação, o
empoderamento e a cura natural através do emprego do sistema energético do
corpo da própria pessoa.
Estes norteadores ajudam a superar a idéia de que qualquer prática oriental é validade por
si mesmo, incentivando o diálogo e rompendo com a hegemonia de qualquer uma das formas de
saber. A idéia é conseguirmos oferecer as melhores contribuições das duas culturas para o cres-
cimento do ser humano integral. Exemplificando esta idéia com a acupuntura, Silva (2007, p. 428)
destaca:

A acupuntura propõe ao psicólogo intervir, através de estímulos em de-


terminados pontos, na causa primeira dos sofrimentos que, segundo a MTC, es-
tão na desarmonia do homem consigo mesmo, ou deste em relação ao meio ex-
terior ou do meio em relação ao homem. Propõe ao psicólogo, como cientista
que é, o estudo, a busca das interfaces existentes entre o melhor do pensamen-
to ocidental e o melhor do pensamento oriental. Cabe ao psicólogo fazê-lo. (p.
428

Algumas contribuições das sabedorias orientais à psicologia


São inúmeras as contribuições das sabedorias orientais à psicologia, neste texto destaca-
remos a meditação, como recurso complementar na psicoterapia transpessoal, e apresentaremos
alguns elementos do Abhidharma, um dos primeiros tratados de psicologia oriental. A apresenta-
ção da meditação se justifica por seu extenso uso na psicologia transpesssoal, como também pelo

13
Sobre a noção de “energia suil” sugerimos a leitura de Goswami (2006) e “Rumo a Uma Teoria Completa de Energias
Sutis” de Ken Wilber (http://www.ariray.com.br/saladeleitura.htm).

48
grande número de pesquisas que destacam seus mecanismos e benefícios (EKMAN, 2008; BE-
GLEY, 2008; GOLEMAN, 1999a, 1999b). A ressonância das temáticas desenvolvidas no abhi-
dharma com a física quântica (GOSWAMI, 2006) e novos modelos da psicologia (VARELA;
THOMPSON; ROSCH, 2003, GOLEMAN, 1996, 2003, WILBER, 2002) destacam sua atualidade.

Meditação
“Yogás citta-vrtti-nirodhah” (Sutra I-2 de Patañjali)

Segundo Eliade (1998) as práticas de concentração, de acesso ao divino, de ampliação da


consciência e êxtase estão presentes em várias culturas desde as épocas mais remotas da huma-
nidade, contudo a prática da meditação nos remete irremediavelmente ao imaginário oriental. E em
muitos casos negamos ou desconhecemos sua presença nos primórdios da construção da civiliza-
ção ocidental com o “cuidado de si” dos gregos. (FOUCAULT, 2001; HADOT, 2006).

Dentro da tradição filosófica ocidental, a meditação, como um “exercício espiritual” encon-


tra terreno de sustentação desde a antiga Grécia, na qual fazia parte do aprender a viver do filóso-
fo. Sendo o espiritual posto em uma categoria que se distinguia da ética e da moral por ser uma
forma mais abrangente e inclusiva, assim como englobava tanto o pensamento, a imaginação e a
sensibilidade.

A filosofia antiga „supõe o exercício espiritual como uma forma de viver,


uma forma de vida, uma eleição vital‟, e que possui um valor existencial que afe-
ta a nossa maneira de viver, nosso modo de estar no mundo; formam parte inte-
gral de uma nova compreensão do mundo, uma compreensão que exige a trans-
formação, a metamorfose de mim mesmo. [...] consiste em „uma prática destina-
da a operar uma mudança radical do ser‟ (HADOT, 2006, p. 11).

Nesse sentido, a utilização sistemática de estratégias de meditação que sensibilizassem a


dimensão espiritual poderia ajudar na promoção da superação das inúmeras divisões que nos
marcam ao longo do processo de individuação, pois

[...] permite compreender com maior facilidade que exercícios como es-
tes não são produtos apenas do pensamento, senão de uma totalidade psíquica
do indivíduo que, em especial, revela o autêntico alcance de tais práticas: graças
a elas o indivíduo acessa o círculo do espírito objetivo, o que significa que volta a
situar-se na perspectiva do todo (HADOT, 2006, p. 24).
14
Em sua origem no oriente, a meditação estava ligada à prática da Yoga , sendo esta pala-
15
vra derivada etimologicamente da “raiz yuj, „ligar‟, „manter unido‟, „atrelar‟, „jungir‟ [...]” . Contudo, o
seu sentido original de transformação de si através da “união” das dualidades e que permite “[...]

14
“O vocábulo yoga serve em geral para designar toda técnica de ascese e todo método de medita-
ção” (ELIADE, 1996, p.20)
15
Eliade, loc. cit.
49
16
uma morte seguida de um renascimento para outro modo de ser” parece que se perdeu no conta-
to com o mundo Ocidental, prevalecendo a busca por um estado alterado de consciência que con-
duza a um afastamento da realidade.

Em tibetano Yoga é traduzido como Naljor, no qual Nal significa normalidade e Jor significa
riqueza. Então, quando praticamos meditação, idealmente, o que supostamente estamos fazendo
é cultivar a riqueza da normalidade presente em tornamo-nos atentos, experienciando “[...] o que a
mente está fazendo enquanto ela o faz, estar junto com a própria mente” (Varela; Thompson e
Rosch (2003, p. 40).

No ocidente, a meditação ressurgiu e difundiu-se na década de 60, no auge do movimento


hippie, mantendo uma série de diferentes significados, mas conservado, de forma geral, a idéia de
afastamento da realidade, conforme poder ser visto nas categorias populares proeminentes apre-
sentadas por Varela; Thompson e Rosch (2003, p. 40):

(1) um estado de concentração no qual a consciência enfoca um objeto


apenas; (2) um estado de relaxamento que é psicológica e medicamente benéfi-
co; (3) um estado dissociado no qual o fenômeno do transe pode ocorrer; (4) um
estado místico no qual realidades superiores e objetos religiosos são experienci-
ados.

Todas estas definições guardam entre si, a idéia de meditação como um estado alterado
de consciência, ou seja, um estado em que a pessoa que medita está fazendo algo para se afastar
de seu estado habitual de realidade mundano, não-concentrado, não relaxado, não-dissociado,
inferior. Mas na realidade a meditação é uma técnica para o despertar, para estar aberto e consci-
ente no aqui e agora do mundo vivido. Estando aberto para experimentar os fenômenos a nossa
volta com o olhar de lucidez e suspensão de prejulgamentos.

A meditação conduz a processos de crescimento da consciência, trazendo, ainda, benefí-


cios secundários como: benefícios físicos, psicológicos e a longo prazo um rompimento com as
visões separativas. Uma boa metáfora para situar a dinâmica da meditação é colocá-la como o
despertar de um sono, acordando para percepção da natureza interdepende da realidade e para o
fluir constante da impermanência.

Os textos orientais tradicionais apontam dois estágios neste despertar: a) acalmar ou sua-
vizar a mente (em Sânscrito, shamata) e b) desenvolvimento do insight (em Sânscrito, vipashyana).
Nas práticas meditativas estes dois estágios são utilizados em conjunto, sendo o acalmar colocado
para tornar a mente capaz de estar presente em si mesma o tempo suficiente para obter insights
sobre sua própria natureza e funcionamento.

16
Ibid, p. 21.

50
Na prática clínica transpessoal a meditação é incluída geralmente como um recurso com-
plementar da psicoterapia, visando a flexibilização da mente e facilitando estados de consciência
mais claros e profundos. Contudo, o ponto central da meditação em Psicoterapia Transpessoal é
permitir a pessoa permanecer no presente, incorporada em mente/corpo e aberta para o fluxo de
todas as manifestações possíveis de contato com o mundo fenomenal.

Wilber (1999, p. 123) aponta que a meditação, em psicoterapia transpessoal, “não é um


meio de escavar as estruturas inferiores e reprimidas do inconsciente”, para isso as técnicas de
construção de estrutura, as técnicas de revelação, de anáslise de scrip e a técnica do diálogo so-
crático, desenvolvidas pela psicologia ocidental, são bastante rápidas e eficazes.

A meditação seria então “uma forma de facilitar a emergência, o crescimento e o desenvol-


vimento de estruturas superiores da consciência” (ibid, p.123). Este autor aponta que a confusão
entre estes objetivos reduz a meditação, no mínimo, a uma “regressão a serviço do ego”, quando
na realidade sua verdadeira meta é favorecer uma “progressão a serviço da transcendência do
ego” (ibid, p.124).

As pesquisas cientificas sobre meditação aumentaram muito nas últimas três décadas,
Scotton; Chinen e Battista (1996) apontam que mais de mil estudos sobre meditação feitos em
laboratórios foram citados em revistas científicas, livros e teses acadêmicas. Testes feitos através
de eletroencefalogramas, tomografias cerebrais, dosagens de hormônios e inúmeros outros méto-
dos de pesquisa oferecem evidências dos benefícios da meditação. Análises detalhadas destas
técnicas mostraram importantes benefícios ao trato cardiovascular, ao cérebro e ao metabolismo,
além de provocar alterações benéficas no comportamento, na experiência interior, na percepção e
na imagem que temos de nós mesmos.

No âmbito psicológico favorece o aumento da percepção diminuindo as distorções percep-


tuais, reduz o diálogo interno predispondo à serenidade mental e à tranqüilidade emocional, de-
senvolve a sensibilidade perceptiva e introspectiva, contribui para o autoconhecimeno, afasta emo-
ções inadequadas e incômodas como medo, raiva, e outras, favorecendo o despertar do discerni-
mento, da alegria e do amor universal.

As pesquisas revelam que, no aspecto terapêutico, a meditação é eficaz em casos de an-


siedade, fobias, tensão muscular, insônia, estresse e dependências de drogas levando a acentua-
da mudança no comportamento, mas a prática é contra-indicada para esquizóides porque podem
piorar a apreensão da realidade; para os obsessivos compulsivos por estarem fechados demais a
novas experiências ou por exacerbar a obsessão nos esforços; também na depressão profunda
porque acentua o estado de apatia e inação nesses casos.

Wilber (1999) aponta que a meditação de um modo geral parece contra-indicada nas pato-
logias mais primitivas do nível pré-pessoal (F-1 e F-2) porque, nesses níveis, ainda não temos um

51
Self suficientemente estabilizado para suportar as experiências mobilizadas pela meditação. Jack
Engler, destacado por Wilber, indica, contudo, o fascínio exercido pela meditação budista para os
indivíduos limítrofes (F-2), que podem passar a usá-la como uma defesa para as vivências de es-
tados de “não-ego”.

A maioria das patologias do nível pessoal (F-4, F-5, F-6) se beneficia da meditação,

“tanto por causa de seus próprios méritos e benefícios intrínsecos como


por causa de sua tendência a “descontrair a psique e a facilitar a desrepressão
nos níveis inferiores, contribuindo, assim, de uma forma auxiliar, com os proce-
dimentos terapêuticos nesses níveis (WILBER, 1999, p. 126-127).

No meio psicológico, a psicanálise parece ser uma das escolas que mais veementemente
se opõe ao uso da meditação atrelada à terapia, sendo clássica a afirmação de Franz Alexander
que a meditação seria uma regressão narcisista. Wilber (1999, p.129) se opõe a esta visão afir-
mando:

“...os teóricos que reinvindicam que a meditação é narcisista imaginam


que os meditadores estão indo para dentro da mente; mas eles estão, na verda-
de indo até o seu interior e, portanto, transcendendo-a: menos narcisistas, me-
nos subjetivas, menos egocêntricos, mais universais, mais abrangentes e, assim,
em última análise, mais compassivos”.

Diferentes tradições espirituais colocam objetivos os mais variados e profundos na medita-


ção, apresentando diversas formas, desde as mais comuns às mais complexas dependendo dos
propósitos auferidos. Não obstante, certas particularidades estão presentes em toda orientação
prática, nos seguintes requisitos:

 postura corporal: sentar com pernas cruzadas na posição oriental, quando possí-
vel, coluna ereta, peito aberto, ombros sem tensão, corpo imóvel, relaxado e con-
fortável. Olhos fechados, abertos ou semi-abertos, dependendo da tradição. Tam-
bém de acordo com a abordagem, a língua fica voltada para a abóbada palatina,
evitando o excesso de salivação;
 postura da fala: fala aqui tem o sentido de energia sutil, prana, bioenergia, seme-
lhante à manejada pela acupuntura. Em psicologia poderíamos associar com o or-
gônio de Reich ou a pulsão freudiana.
 O controle da energia é feito a partir da respiração calma e abdominal, apenas se-
guir o ritmo natural da respiração é a recomendação básica.
 postura de mente: aqui se pode realizar reflexões analíticas, como por exemplo
analisar um tema específico, buscando compreendê-lo nos mínimos detalhes. No
oriente esta prática é conhecida como Vipassana. Outro caminho de colocar a
mente em meditação é deixando-a em uma atitude aberta, observando o fluxo dos
pensamentos sem criar nenhum vínculo com eles. É uma atitude semelhante a do
observador transpessoal.
Abhidharma: tratado de psicologia oriental

52
O Abhidharma é um conjunto de textos que trata daquilo que no ocidente temos como psi-
cologia. Nele os níveis transpessoais de desenvolvimento da consciência são delineados, ofere-
cendo uma visão das emoções destrutivas e o percurso da formação da noção de identidade atra-
vés da “roda da vida”.

A “roda da vida” é um famoso quadro budista de uma roda com vinte e uma partes que es-
boçam o processo de surgimento das identidades mediante os renascimentos causais, ou seja “a
estrutura circular dos padrões habituais, o encadeamento no qual cada elo condiciona e é condi-
cionado pelos demais –, que constitui o padrão da vida humana como uma busca circular intermi-
nável na tentativa de ancorar a experiência em um self fixo e permanente” (VARELA, THOMPSON,
ROSCH, 2003, p. 121-122). O referido diagrama, chamado de “A Roda da Vida”, esboça uma cos-
mologia psicológica interior, um mapa de um processo interno e seus efeitos externos.
17
Esse quadro está praticamente na entrada de todos os templos no Tibete e naqueles que
foram construídos no Ocidente. Ele descreve vivamente como ficamos presos em um redemoinho
contraproducente de sofrimento, como esse processo pode ser revertido e como os budistas se
colocam num universo sempre cambiante de causa e efeito. Ao iluminar as causas das situações
de limitação e dor, a roda da vida revela como, pelo exercício de antídotos, podemos superar es-
sas situações, que são os seus efeitos.

Motivados pela ignorância das múltiplas separatividades realizamos ações virtuosas e não-
virtuosas, o que conduz a estados mentais diversos. As doze partes do aro externo da roda da vida
apresentam em detalhe os estágios de causa e efeito que levam às situações aflitivas da nossa
vida, servindo de guia norteador para entender os desafios apresentados no caminho de individua-
ção.

O surgimento dependente da existência cíclica começa com (1) a ignorância, que motiva
(2) uma ação. Ao final da ação, é estabelecida uma predisposição dentro da consciência, chamada
de (3a) consciência causal. Isto leva – depois de um tempo que pode ser longo – ao renascimento,
que é chamado de (3b) consciência resultante. O começo de uma nova vida é chamado de (4)
nome e forma. O estágio seguinte, o desenvolvimento do embrião, é chamado de (5) esfera dos
sentidos. Depois da formação do corpo, desenvolve-se (6) o contato; do contato, (7) a sensação;
da sensação, (8) o desejo; do desejo, (9) o apego; do apego, desenvolve-se no fim da vida um
estágio chamado de (10) existência, que é de fato o momento imediatamente anterior a uma nova
vida; a nova vida começa com (11) o nascimento e continua com (12) o envelhecimento e a morte.
18
Neste texto trataremos do primeiro elo da “roda da vida”, Avydia , pois é ele que nos im-
pede de reconhecermos nossa natureza ilimitada, assim como nos põem no ciclo existencial de

17
Vale salientar que a formação acadêmica no Tibete era realizada nos templos.
18
Vidya = sabedoria, visão, lucidez; Avydia = perda da visão.

53
insatisfação. Partindo das idéias de Padma Santem (2002), iremos apresentar a seguir as seis
características básicas de avydia: separatividade, criação, cegueira, experiência de mundo, experi-
ência de trancamento e perda da visão espiritual, com o intuito percebermos as contribuições que
as tradições orientais tem oferecido para o Ocidente através da psicologia transpessoal.

A experiência de separatividade
Utilizaremos o exemplo do “cubo” para introduzir a noção de separatividade conforme des-
tacado por Padma Santem (2002, s/p). Essa escolha deve-se, também, ao fato deste ser um e-
xemplo comum na fenomenologia (SOKOLOWSKI, 2004, p. 25-29) para explicar uma análise des-
critiva da consciência.

Segundo Padma Santem (2004, s/p),

Para que possamos perceber a separatividade e para que possamos


acusá-la de separatividade, é necessário reconhecer que ela não é uma separa-
tividade verdadeira mas uma experiência de separatividade. Se acreditarmos
que a separatividade é verdadeira, nesse momento, nós ficamos presos a ela,
perdemos a nossa liberdade. Nós podemos, no entanto, observar que temos a
experiência de separatividade, ainda que ela, na verdade, não ocorra.

Assim, o exemplo do cubo, ao mesmo tempo em que apresenta a separatividade, aponta a


sua natureza de experiência, ou seja, há uma ausência de uma identidade auto-existente e fixa,
sendo o fenômeno antes de tudo interdependente. Padma Santem (2002, s/p), descreve assim
este exemplo:

Vemos que o cubo está na folha de papel, pois, quando olhamos, vemos o
cubo na folha. Podemos observar ainda que nós estamos em um certo lugar e o cubo
sobre a folha de papel está em outro.

Como podemos perceber a inseparatividade aqui? Porque não há um cubo


propriamente. Tudo que temos aqui são riscos em uma folha de papel. O cubo não
se forma no papel. No entanto ele parece se formar no papel e, desta forma, pa-
rece surgir uma separatividade. Mas essa separatividade não é experimental.
Por que? Porque, se não há cubo no papel, o próprio cubo surge porque há uma
inseparatividade. Nós fazemos surgir o cubo no papel, pelo poder da inseparati-
vidade. Curiosamente, a separatividade surge pelo poder da inseparatividade.

O cubo surge e temos a experiência de que ele está fora do nosso al-
cance. É muito fácil ver que esse não é o caso. Por que? Porque podemos rapi-
damente transformar o cubo em um hexágono novamente, ele não está separa-
do. Por outro lado, podemos transformar esse cubo em outro cubo. Se o cubo
estivesse em uma folha de papel, separado, não teríamos esse poder. Assim,
com essa palavra “separatividade” conseguimos introduzir a expressão “experi-
ência de cubo”. Temos a experiência de cubo sobre a folha de papel, temos a

54
experiência separativa, mas ela não é abrangente, não é segura. Na verdade,
essa separatividade não ocorre realmente.

Dessa forma, Padma Santem aponta que, pelo processo de separatividade, nos encontra-
mos presos à causalidade da “roda da vida”, contudo:

O próprio surgimento do cubo é não-causal, o cubo não está em causas


externas, ele não pode ser explicado pelo desenho. Ele surge numa inseparativi-
dade que está operando. Sempre que usarmos o processo de inseparatividade
para produzir os efeitos, estaremos operando de forma não-causal, se trata de
uma ação não-causal. Sempre que utilizarmos o processo de separatividade, es-
taremos atuando de forma causal. (Op. cit., s/p).

Essa dinâmica de separatividade nos conduz a uma rede de causalidades, construídas a


partir de referenciais limitados, geralmente apoiados no gosto ou não-gosto, o que conduz a uma
desincorporação da realidade vivencial e leva a uma abstração que poderíamos caracterizar de
“sobrevôo do pensamento”. Assim, um dos primeiros desafios no processo de crescimento psicoló-
gico está na superação da visão de separatividade que nos limita e governa.

Experiência de Criação
A segunda característica ou atributo de avydia é a criação, a experiência da criação. Nesse
ponto, sujeito e objeto surgem inseparáveis.

Padma Santem destaca que a criação da experiência apresenta vários aspectos, sendo
mais fácil a percepção do surgimento do objeto do que do observador. Atribui esta dificuldade ao
automatismo de nos percebermos continuadamente como observadores separados do mundo.

Nós estamos automatizados a nos ver como observadores. Se alguém


nos perguntar “Onde está o observador?”, apontaremos para o nosso corpo e di-
remos “Aqui estou eu”. No entanto, o observador surge junto com o objeto. (Op.
cit. s/p).

Nessa perspectiva, “sem objeto, não há observador. Sem observador, não há objeto”, as-
sim, o observador surge ou co-emerge, como destacam Varela, Thompson e Rosch (2003), insepa-
rável do mundo, em uma interdependência.

Para percebermos a mente operando no papel de observador, precisa-


mos ter a experiência de uma mente livre. É muito importante contemplarmos is-
so, pois esse item nos conecta com a noção „Quem sou eu? Como eu surjo?
Como a minha identidade surge? Como a operação dela surge?‟ Nós surgimos
no mesmo fenômeno dos objetos contemplados.

[...] Temos o surgimento do objeto, o surgimento do sujeito, o surgimen-


to da localização das coisas e o surgimento da localização espacial de posição

55
de objeto e de sujeito. Tudo isso são „experiências de‟ (PADMA SANTEM, 2002,
s/p).

A noção de “experiência de” é fundamental para flexibilizar os padrões de rigidez identitá-


rios encontrados ao longo do processo de individuação. Indicando que o “sujeito”, não pode ser
visto como uma entidade distinta dos processos presentes em seu surgimento.

Quando analisamos o processo de criação presente no surgimento de sujeito e objeto, ve-


mos que isto ocorre em uma paisagem, o “background” na linguagem de Varela. Como vimos,
neste autor essa paisagem é a paisagem física e, ao mesmo tempo, mental, em que esse reco-
nhecimento acontece. “Nós temos uma experiência de paisagem onde contém tudo. Quando sutili-
zamos essa paisagem, vamos reconhecer uma paisagem mental atuando. [...] Quando a criação
se dá, surge o impulso natural de ação. Ele está ligado à experiência de objeto, à experiência de
sujeito, à experiência de localização, à experiência de paisagem e, aí surge o impulso.” (PADMA
SANTEM, 2002, s/p).

Para exemplificar esse processo do surgimento da localização espacial, paisagem e ação


de impulso, Padma Santem (Op. cit., s/p), cita o exemplo a seguir:

Estamos aqui sentados e vemos uma cobra, uma jibóia, entrando na sa-
la. Olhamos para a cobra e temos uma „experiência de jibóia‟, mas essa experi-
ência de jibóia não diz respeito propriamente à cobra que está entrando. Nós
temos uma experiência de acordo com a nossa matriz de jibóia. Nós olhamos
para a jibóia, avaliamos a distância e vemos as nossas possibilidades de fugir.
Temos, então, o aspecto de localização, temos o aspecto de paisagem e ainda o
aspecto de impulso de ação. Antes de raciocinarmos propriamente, já estamos
saindo pela outra porta da sala. Por quê? O impulso de ação surgiu! Mais tarde,
pode ser que desenvolvamos um outro tipo de relação. No entanto, estaremos
sempre sob o efeito de algo que é uma experiência. Uma pessoa que tem uma
jibóia domesticada em casa, teria uma reação diferente da nossa. Por que? A
matriz de jibóia dela seria diferente. Se ela fosse atacada pela sua jibóia, sua
matriz mudaria. Por que chamamos isso de experiência? Porque ela é móvel, é
plástica, podemos refazê-la, podemos recriá-la. Temos uma experiência separa-
tiva, temos a experiência de criação com esses itens vários e, ainda, temos três
experiências de fechamento. Todas as outras experiências são a contemplação
de como a cegueira se estabelece.

Experiência de Cegueira
A experiência de cegueira também pode ser percebida por meio do exemplo do cubo. Ago-
ra, Padma Santem (2002, s/p) introduz as letras “A” e “B” para indicar a experiência de percepção
de dois cubos, e assim nos diz que:

56
Quando vemos um cubo, não vemos o outro. Neste desenho, pode-se
ver dois cubos, um com vértice „A‟ na frente e outro com o vértice „B‟ na frente.
B
Estamos frente a uma cegueira convencional: porque vemos com o „A‟
na frente, não vemos mais com o „B‟ na frente. Quando vemos um, não vemos o
outro, mas esse processo fica oculto. Quando vemos um, nos ocupamos com ele
A e não nos damos conta que perdemos o outro. Esta é a primeira cegueira con-
vencional. Por que vemos um não vemos o outro. Quando vemos algo e temos o
impulso de ação correspondente ao que vemos, vamos nos movimentar segundo
aquela cegueira e vamos seguir assim.

Transpondo isto para a noção de sujeito que aqui estamos tematizando, fica claro que
quando priorizamos um dos aspectos do desenvolvimento humano, seja a cognição ou o afeto, por
exemplo, acabamos por criar uma cegueira semelhante. Um sujeito seria mais integral, quanto
menos cegueira apresentasse, de forma que seria cada vez mais inclusivo em todas as dimensões.

Experiência de Mundo (sânsc. LOKA)


A quarta característica de avydia é a experiência de surgimento de mundo, em sânscrito
LOKA, que indica um surgimento condicionado efeito direto da separatividade.

Quando olhamos sensorialmente ao redor, a nossa mente atua a partir


dos sentidos físicos e nós localizamos todas as experiências separativas. Por-
tanto, nós vemos os objetos nos diversos lugares com o conteúdo que nós expe-
rimentamos. O conjunto de todos esses objetos e situações chamamos de Loka.
Nós estamos fechados, presos dentro dele. Só podemos ter as experiências se-
parativas que correspondem a uma Matriz sutil, a um processo mental sutil que
nos permite. Esse processo mental sutil, o Loka, é o mesmo que nos permite fa-
zer surgir a experiência do cubo, por exemplo, existe uma estrutura sutil que me
permite ter experiências de cubo. (PADMA SANTEM, 2002, s/p).

O conjunto de experiências de surgimento de “objetos” tal como explicado acima faz surgir
para nós a experiência de um “mundo inteiro”, no qual as nossas possibilidades de percepção fi-
cam estreitadas por uma “matriz sutil” que só nos permite pensar o que pode ser pensado e ver o
que pode ser visto dentro de um determinado contexto. Assim, a experiência de Loka produz uma
cegueira que nos aprisiona dentro de uma percepção natural.

No Loka, temos um universo de possibilidades de experiências, porque


temos uma matriz que nos possibilita coisas. Sempre vamos atuar segundo es-
sas matrizes. Enquanto atuando separativamente, estaremos sempre na depen-
dência dessas matrizes. Essas matrizes ainda se ampliam. Elas definem a cultu-
ra de um povo, definem a cultura de uma família, definem o grau de educação
que a pessoa teve. A família, a cultura e a educação são processos de construir,
de manipular alguns itens dentro dessas estruturas. Essas estruturas, porém, ul-
trapassam vida e morte, elas seguem além de vida e morte. [...] Me refiro a Loka

57
em um sentido muito sutil. Quando uma cultura se estabelece, por exemplo, ela
se estabelece em um nível mais sutil do que o próprio acesso convencional, inte-
ligível, discursivo ou mental. (Op. cit., s/p).

A experiência de mundo brota de níveis mais sutis, nos quais o raciocínio lógico não inter-
fere, como as diferenças de alimentação entre culturas e o diálogo entre médicos tradicionais e
acupunturistas, segundo exemplo mencionado por Padma Santem (2002, s/p). Assim, por mais
justificativas que os últimos apresentem a respeito da fisiologia de canais sutis de energia do corpo
humano, há uma “matriz sutil” que impede a percepção, dificultando o processo de compreensão.

Loka é uma experiência que brota livre do raciocínio, mas essa experi-
ência não é dominada pelo raciocínio. A experiência de mundo é uma experiên-
cia que vem de um nível muito mais profundo. Quando reconhecemos o cubo,
essa experiência está se manifestando em um nível muito sutil. Não é uma opi-
nião de cubo que se manifesta, mas uma visão de cubo. Loka domina as mentes
que atuam junto com os sentidos físicos. [...] Nós temos cinco sentidos físicos e
um sentido mental. Loka define as possibilidades das experiências sensoriais.
Nós não percebemos que a experiência sensorial está filtrada por uma mente
específica.

Enfim, Loka funciona como filtros que impedem a percepção, requerendo um processo de
aprendizagem e também de abandono de padrões de visões já estabelecidos. Nesse sentido, o
uso da meditação e de outros ampliadores da consciência como um recurso terapêutico, apresen-
ta-se como um caminho de superação desta cegueira.

Experiência de trancamento, selamento, fechamento (sânscr. Tanha)


Quando se estabelece uma visão qualquer, e ela se solidifica na forma de uma identidade,
surge uma energia de defesa frente a essa visão. Recorrendo ao exemplo do cubo, quando focali-
zamos um cubo específico, perdemos a percepção do outro, mesmo sabendo da possibilidade da
existência do outro; há um trancamento na percepção que impede o deslocamento da visão. Em
sânscrito esse trancamento denomina-se Tanha, uma defesa que ajuda a preservar nossa visão de
mundo.

Nessa primeira cegueira, sabemos que existe um outro, tentamos vê-lo,


mas não conseguimos. Tem um processo, uma miopia. Tentamos passar para o
outro lado mas não temos a experiência. É muito difícil. De repente, consegui-
mos. Então tentamos voltar e temos dificuldade. É um processo de trancamento,
um processo que pode produzir uma vontade de trancamento. Ele é uma impos-
sibilidade sutil, é um processo de perda de mobilidade do referencial da mente
que produz a experiência. [...] Quando observamos o desenho do cubo, vemos
que os dois são possíveis. Os dois cubos estão no mesmo universo, no mesmo
Loka. O mesmo Loka tem os dois cubos. Porém, quando vemos um não vemos
o outro.

58
Um exemplo claro desse processo em andamento pode ser percebido no exemplo a se-
guir:

Vamos supor que estejamos olhando painéis de lâmpadas. No início,


quando algumas lâmpadas acendem, umas aqui, outras ali, vemos apenas lâm-
padas. De repente, mais lâmpadas acendem, sincronizadas em forma de linhas.
Nesse momento, não estamos mais vendo lâmpadas, mas linhas. Com mais lu-
zes sincronizadas, estaremos vendo letras se formando. Depois, as letras for-
mam palavras, as palavras andam e têm significados correndo ali. Quando as
palavras estão andando nem estamos mais vendo letras, já existe uma certa difi-
culdade de deixar de ver as palavras e olhar as letras. Também não consegui-
mos deixar de olhar as letras e ver as lâmpadas. Quando começamos a olhar de
um certo jeito, temos uma proteção para conseguir seguir olhando daquele jeito.
(Op. Cit., s/p).

O processo de trancamento, como defesa, nos ajuda à movimentação no mundo, pois


permite o foco; contudo, a fixação gera aprisionamentos, pois não permite a mobilidade da visão, o
que por sua vez impede os deslocamentos das experiências de mundo e de objeto. O processo de
ensino funciona nessa perspectiva, favorecendo a visão para alguns aspectos e o trancamento
para outros; contudo, a idéia terapêutica transpessoal busca romper com este processo de tran-
camento por meio da incorporação gradativa do sujeito no mundo vivido.

A Perda da Visão Espiritual


A sexta característica de avydia é a perda da “visão espiritual”, ou seja, a perda da lucidez
referente a todo o processo ocorrido nos cinco itens anteriores. Segundo Padma Santem (2002,
s/p),

Essa é a perda mais grave. Todos os cinco itens anteriores operam de


forma oculta, não vemos acontecer. Alegremente, saímos correndo atrás dos ob-
jetos, andamos para lá e para cá, nos movemos dentro dos universos específi-
cos e simplesmente não tomamos conta do que está realmente acontecendo. Is-
so é Avydia; esses 5 itens são explicados pelo cego – cego da visão espiritual.
Ele não vê isso acontecer. [...] Quando vemos isso acontecendo, aí vem Rigpa.
Quando temos a compreensão e nos damos conta disso acontecendo, podemos
andar no meio dessas experiências e só vamos encontrar mais exemplos. Essa
experiência, de se mover no meio desses fenômenos, que apenas apontam
Avydia. [...] Para que possamos compreender melhor como Avydia age, preci-
samos perceber que a inseparatividade está atuando incessantemente. Preci-
samos reconhecer que nós criamos todas as circunstâncias. Cada vez que o-
lhamos para o cubo o reconstruímos. Por esse motivo, podemos reconstruí-lo di-
ferente. Como não nos damos conta disso, pensamos que o cubo é a experiên-
cia de cubo, que ele está na frente, separado de nós. Mais tarde, quando o re-

59
construímos diferente, dizemos “ele não é mais o mesmo!”. Atribuímos a função
a ele.

A meditação e as visões de homem e mundo presentes no Abhidharma são contribuições


que foram adaptadas da sabedoria Oriental pela psicologia transpessoal, e estão cada vez mais
ampliando as possibilidades de diálogo e alargando as contribuições para concretização de uma
vida mais humanamente vivida.

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ZIZEK, S. On Belief. Londres e Nova York: Routledge, 2001.

61
Capítulo 2

Histórico

62
Capítulo 3

REDIMENSIONANDO OS CONCEITOS E OS TERRITÓRIOS


CONTEMPORÂNEOS ENTRE DUAS FORÇAS DA PSICOLOGIA
AS FRONTEIRAS ATUAIS QUE DISTINGUEM EXPERIÊNCIAS NO HUMANISMO E NO TRANSHUMA-
NISMO

NO CENTRO E NAS FRONTEIRAS DO HUMANO E SUAS PSICOLOGIAS


Acho justo dizer que jamais será completa uma teoria de psicologia que
não incorpore centralmente o conceito de que o homem tem seu futuro dentro de
si, dinamicamente ativo no momento presente (MASLOW apud MILHOLAN; FO-
RISHA, 1972, p.21).

A Psicologia Humanista é uma perspectiva de Psicologia que passou, embrionariamente e


com outras denominações, a existir enquanto um Movimento na década de 1950 e firmou-se nas
convenções da Associação Americana de Psicologia (APA) no decorrer das décadas de 1960 e de
1970. Segundo a Division of Humanistic Psychology, estabelecida no âmbito da APA, a Psicologia
Humanista, enquanto associação e perspectiva psicológica,

reconhece a riqueza completa da experiência humana. Suas fundações incluem o hu-


manismo filosófico, o existencialismo e a fenomenologia. A associação busca contribuir a psicote-
rapia, educação, teoria/filosofia, pesquisa, organização, administração, responsabilidade social e
mudança (AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION, 2009, grifo nosso, tradução nossa).

No entanto, a mesma Divisão reconhece a si mesma enquanto,

uma constelação de ´psicologias humanistas´ que incluem previamente a abordagem


rogeriana e as orientações existenciais, como também, mais recentemente, incluem perspectivas
em desenvolvimento de psicologias fenomenológicas, hermenêuticas, construtivistas, feministas e
pós-modernas (construcionismo social). Essa divisão busca contribuir com a psicoterapia, educa-
ção, teoria, pesquisa, diversidade epistemológica, diversidade cultural, organização, administração,
responsabilidade social e mudança (AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION FOR HU-
MANISTIC PSYCHOLOGY, 2009, grifo nosso, tradução nossa).

Dessa constelação de autores, Abraham Maslow (s/d) foi uma figura de destaque na orga-
nização e no desenvolvimento da Psicologia Humanista. Ainda que suas pesquisas sobre Motiva-
ção e Personalidades Auto-realizadas não gozassem, à época, de capilaridade científica nos gran-

63
des círculos acadêmicos, fato que o impulsionou na criação de uma Rede Eupsiquiana para con-
tornar estas dificuldades, Maslow (1970) e uma plêiade de outros psicólogos conseguiram firmar e
legitimar a Psicologia Humanista na APA.

Aliadas a tal empreendimento científico de fundação, encontramos as pesquisas de Carl


19
Rogers , acerca dos Processos de Mudança de Personalidade em Psicoterapia, e as reflexões de
cunho Existencial promovidas por Rollo May no campo da Psicoterapia. Dessa convergência labo-
rativa, foram lançadas as bases teórico-metodológicas em Psicologia e Psicoterapia daquilo que,
então, permanecia como um Movimento Humanista.

Destarte, no bojo da recém-criada Escola Humanista, podemos localizar as seguintes pilas-


tras de fundamentação, a partir da Psicologia, Filosofia e Psicoterapia:

A) No campo da Psicologia, a identificamos a presença do Funcionalismo Norte-Americano


em sua vertente advinda das Ciências Naturais, através de estudos empíricos e positivistas, que
nos ajudou a investigar os processos de auto-conservação, desenvolvimento, auto-regulação e
comportamento do Organismo em relação ao ambiente, numa crítica ao reducionismo do Estrutura-
lismo e da Reflexologia (DEWEY, 1971; JAMES, 1971).

Nessa vertente, não tardou para que grupos de psicólogos formulassem pesquisas e teori-
as sobre a estruturação e desestruturação da personalidade, enfocando o indivíduo em seu dina-
mismo pessoal de relação orgânica e subjetiva ao ambiente. A Psicologia “Personológica” ou da
Personalidade (HALL; LINDZEY, 1984) investigou os processos motivacionais adjacentes aos pro-
cessos organísmicos e psicológicos ligados entre si funcionalmente.

Esta concepção funcionalista de Organismo, a exceção de May, faz-se presente na maioria


das Teorias do Humanismo Americano. Utilizando das pesquisas de Gordon Allport, Henry Murray
e Gardner Murphy, a Psicologia Humanista apropria-se e inova com estes aportes, ao enfocar es-
tudos e teorizações sobre personalidades sadias e orientadas para uma perspectiva positiva e
menos patológica (FRICK, 1975).

Tardiamente acostada à cultura americana, a Psicologia da Gestalt (SCHULTZ; SCHULTZ,


2007) somou-se à crítica funcionalista dirigida ao pensamento então corrente. As pesquisas ditas
“gestalticas” centraram-se nos princípios da organização perceptual e outros processos cognitivos,
além de desenvolver contribuições específicas nas vertentes de estudos organísmicos (GOLDSTE-
IN, 1995) e investigações motivacionais e comportamentais no contexto social (LEWIN, 1975).

19
Rogers apenas se filiou à Associação de Psicologia Humanista em 1964. Até então, o criador da Terapia Centrada no
Cliente e da Abordagem Centrada na Pessoa, ao contrário de Maslow e May, não se vinculara diretamente à elaboração do
Movimento de Psicologia Humanista. Com a entrada de Rogers, devido as suas pesquisas reconhecidas e sua antiga presi-
dência na APA, houve um aumento do status acadêmico e científico dessa nova proposta em Psicologia.

64
Muitos estudos advindos da Psicologia da Gestalt serviram-se como fundamentação para
teorizações sobre personalidade, elaboradas por expoentes humanistas do calibre de Kurt Goldste-
in, Fritz Perls, além de Maslow e do próprio Rogers.

B) No campo da Filosofia, para abalizar insights e reflexões humanistas, essencialmente


oriundas dos contextos e das experiências clínicas, dialogou-se com as perspectivas: existencialis-
20
tas de Soren Kierkggard e Martin Buber ; fenomenológicas de Edmund Husserl e Martin Heideg-
ger; e pragmatistas de William James e John Dewey. Em comum, um enfoque na experiência hu-
mana e em suas formas de compreensão verdadeira e não dual.

C) No campo da Psicoterapia, muitas teorias neo-freudianas influenciaram a Psicologia


Humanista. Apenas para mencionar algumas: a Psicologia Analítica em sua noção de selbstver-
wirklichhung, culturalmente traduzida como Self-Actualization em inglês ou individuationis em latim,
influenciou as noções humanistas de “realização do Si-Mesmo”, a Psicologia Individual de Alfred
Adler (SCHULTZ; SCHULTZ, 2007) em sua teoria sobre o poder criativo do Self, auto-imagem
idealizada e interesse social; e a Terapia Relacional de Otto Rank, em suas atitudes compreensi-
vas e focadas no momento presente da relação (ROGERS, 1992), dentre outras.

Ainda nesse campo, a Psicologia Existencial, encabeçada por May (1974), configurou-se
como uma perspectiva psicoterapêutica fundamentada diretamente pelas filosofias existenciais e
fenomenológicas para elaborar, nos Estados Unidos, uma nova atitude no relacionamento psicote-
rapêutico.

Essa última perspectiva distanciou-se das fundamentações organicistas presentes nas psi-
cologias norte-americanas para radicalizar a experiência interior e resguarda suas origens na da-
seinanalyse européia. Contudo, seu vocabulário, suas reflexões e atitudes, tendo se firmado em
solo norte-americano e havendo “impregnado-se” de numa nova tendência à psicologia e à psica-
nálise ortodoxas, findou por alinhar-se, em seus ramos de Psicoterapia, ao campo maior das Psico-
logias Humanistas.

Por fim, como alguns desdobramentos do campo psicoterapêutico, surgiram, ainda, novas
abordagens de trabalhos corporais, grupais, experienciais e de desbloqueio de tensões psíquicas,
muitas tomando como fundamentação os trabalhos de Wilhelm Reich e sua Bioenergética, o So-
ciodrama de Jacob Moreno e os T-Groups de Kurt Lewin (BOAINAIN, 1998).

Observamos, deste modo, que essas três concentrações de estudo (Psicologia, Filosofia e
Psicoterapia) estão no âmago da Psicologia Humanista. Todavia, muitas dessas incursões apre-
sentadas são equivocadamente apresentadas como sinônimas de “Psicologia Humanista”.

20
O pensamento de Buber foi enquadrado como existencialista pelos Humanistas. Porém, este situa-se mais como um
Filósofo Hassidista em que os temas sobre a Dialogicidade interessaram à Psicologia.

65
Ainda que, de fato, tenham servido como influências e fundamentações, podemos argüir o
que difere a Psicologia Humanista dessas respectivas perspectivas, ao ponto da APA estabelecer
uma nova Divisão, com um novo objeto de estudo (a experiência humana) legítimo ao conhecimen-
to Psicológico? Qual seria a inovação conceitual e metodológica que confere, ao Humanismo, uma
matriz própria e o distingue dessas perspectivas gerais, anteriores e posteriores?

A Psicologia Humanista consolidou-se como uma construção autônoma de proposta cientí-


fica que valoriza a diversidade da experiência humana, num programa ético-político de transforma-
ção no modo de vida das pessoas. Nas palavras de Maslow (s/d), “tenciono prosseguir esse em-
preendimento, no sentido de ampliar os métodos e a jurisdição da ciência, de modo a torná-la mais
capaz de assumir as tarefas das novas psicologias pessoais e experienciais” (p.17).

No campo restrito da Psicologia, os estudos de personalidade foram essenciais à caracte-


rização dessa Psicologia Humanista emergente, em termos da possibilidade de ponderarem-se
aspectos mais positivos dos potenciais humanos, até então desconsiderados, e que seriam críticos
na adaptação, modificação e transcendência de limites pessoais e ambientais. Nesse prisma, as
pesquisas empíricas de Rogers (1992), correlacionando Psicoterapia, Mudança de Personalidade
e comportamento, bem como as pesquisas de Maslow (1954), sobre hierarquias de Motivação e
funcionamento da Personalidade, foram nevrálgicas para cumprir essa intenção.

Muito embora aos campos das Filosofias, não tenhamos, fundamentalmente, inovado a
partir da Psicologia Humanista, sem dúvida trouxemos, por outro lado, uma elaboração e desdo-
bramento críticos, voltados para a Ciência ortodoxa e para a Psicoterapia de vertentes positivistas,
expandindo suas reflexões para outros campos.

Entretanto, na Psicoterapia Humanista, não há como negar-se o predomínio de releituras


filosóficas para repensar suas intervenções. Para fundamentar essa opção teórica, muitas pesqui-
sas empíricas deram-se a desenvolver metodologias fenomenológicas consistentes e aplicadas às
pesquisas em Psicologia, porém, essa recriação configurou-se mais no âmbito metodológico da
pesquisa do que como extensão de um saber filosófico (GOMES, 1998).

Se pudermos, contudo, falar de uma grande inovação, tal faceta deu-se predominantemen-
te no campo da Psicoterapia, seja como teoria, método, prática, pesquisa e ética. Em seu desen-
volvimento e suas aplicações, a Psicoterapia e os Psicoterapeutas (sobretudo, Psicoterapeutas de
formação científica na Psicologia), graças às pesquisas e aos embates políticos de Rogers, deixa-
ram de ser exclusividade da medicina e da psicanálise, e passou a tornar-se parte do exercício,
domínio e reflexão da Psicologia, permitindo, ulteriormente, uma abertura explosiva para o desen-
volvimento de novas Abordagens.

Sobre essa nova prática e concepção galgadas, Maslow e Mittlemann (1965) frisam que as
metas dinâmicas da psicoterapia focam-se: no aumento dos sentimentos de auto-estima e segu-

66
rança, na libertação das inclinações para se manifestar, maiores insights, maior aceitação de si,
integração e tendência para metas positivas.

Tais características estão combinadas à percepção que a relação cliente-psicoterapeuta é


ampliada mediante (MASLOW; MITTLEMANN, 1965): o desenvolvimento da personalidade e for-
mação, teórica e pessoal, do psicoterapeuta, estabelecimento de rapport, manejo de atitudes com-
preensivas e respeitosas ao paciente, interesse em uma relação horizontal sem submissão de
poder e capacidade para lidar com as atitudes do paciente.

De tal modo,

Posto que o homem é um organismo que ocupa um lugar mais elevado na escala de de-
senvolvimento intelectual, uma das finalidades de toda psicoterapia é liberar as funções inte-
lectuais até suas mais plenas potencialidades, ou seja, lograr que o indivíduo integre suas ativi-
dades emocionais e intelectuais numa unidade harmoniosa (MASLOW; MITTLEMANN, 1965, p.46,
grifo nosso).

Muito embora estes avanços tenham legitimado um lugar acadêmico e clínico para a gera-
ção inicial da Psicologia Humanista, foi o mesmo Maslow (s/d), ainda na década de 1950, que
também aludiu que essa nova Psicologia, ainda recém-criada e buscando oferecer respostas sis-
tematizadas a uma série de desafios culturais, já continha, em si mesma, o prenúncio ou o embrião
para desenvolver-se através de uma nova proposta para além dos aportes Humanistas já ressalta-
dos.

Em seu pensamento, explica-nos Maslow (s/d):

considero a Psicologia Humanista, ou Terceira Força da Psicologia, a-


penas transitória, uma preparação para uma Quarta Psicologia ainda ´mais ele-
vada´, transpessoal, transumana, centrada mais no cosmo do que nas necessi-
dades e interesses humanos, indo além do humanismo, da identidade, da indivi-
duação e quejandos [...] Essas Psicologias comportam a promessa de desenvol-
vimento de uma filosofia de vida, de um substituto da religião, de um sistema de
valores e de um programa de vida cuja falta essas pessoas estão sentindo [...]
Necessitamos de ´algo maior do que somos´, que seja respeitado por nós pró-
prios e a que nos entreguemos num novo sentido, naturalista, empírico, não-
eclesiástico talvez como Thoreau e Whitman, Willian James e John Dewey fize-
ram (p.12, grifo nosso).

Nessa perspectiva, Maslow (s/d) construiu um cenário de propósito onde figura o desen-
volvimento de um novo campo fronteiriço à própria Psicologia Humanista, um campo que ele proje-
ta intuitivamente como além de uma Psicologia que ele mesmo ajudou a construir (Humanista) e
que, à época, dado o frescor recente de sua concepção, não se tinha clareza a respeito de suas
delimitações.

67
Como superar e consolidar um novo campo, que não se contrapõe ao anterior mas avança
em relação aos seus escopos, quando este campo originário ainda não poderia ser apreendido em
sua robustez e arquitetura de intervenções? Maslow, nesse contexto escasso de respostas, inscre-
ve a Psicologia Humanista como uma Psicologia das Transições, enquanto que a sua nova filha,
uma Psicologia denominada TransHumanista, possibilitar-nos-ia satisfazer nossa “necessidade” de
“algo maior do que somos”.

Tomando que a Psicologia Humanista admite uma variedade de investigações e compre-


ensões acerca das experiências humanas, podemos inferir que, ainda no curso dos seus estudos
de Personalidade e Psicoterapia, consoante às exigências científicas da APA e da cultura acadê-
mica, Maslow anteviu que essa robustez Humanista não era o suficiente para dar conta de uma
proposta mais radical de Psicologia e Psicoterapia.

Maslow prestou-nos um ajuda de via dupla: autorizou o Humanismo como uma ferramenta
própria das Travessias e das Transições, cabível aos Tempos das Mudanças, a partir de um lugar
inclusivo das experiências humanas, que não era, por isso mesmo, dada sua abertura irretorquível,
suficiente para impor-se como uma resposta razoável à “promessa de desenvolvimento de uma
filosofia de vida, de um substituto da religião” (Maslow, s/d, p.12).

Caberia ao Humanismo, em seu processo de desenvolvimento e maturação, servir-se,


também, como ponte (teórica, metodológica, operacional, ética, científica etc) para ligar o Céu à
Terra, na construção de um novo campo terceiro, a ele diferenciado, ainda que dependente do
anterior para sua manifestação e realização.

Em seus estudos, Maslow percebeu que alguns indivíduos auto-realizados conseguiam


transcender-se indo além de ocasiões extemporâneas de experiências culminantes, chegando a
um contato não apenas significativo como equilibrado com uma dimensão transcendente da vida.
Essas experiências tidas como místicas foram definidas por Maslow como experiências platô, ao
qual ocorre, no indivíduo, uma mudança de atitude e uma nova consciência intensificada do mun-
do.

Assim sendo, os focos experienciais de espiritualidade, de auto-transcendência e da am-


pliação da consciência começaram, progressivamente, a distinguir-se de outras vertentes experi-
enciais de estudo em Psicologia Humanista. Nesse aspecto, Maslow e outros psicólogos começa-
ram a voltar-se para novas perspectivas, de fato fronteiriças a Psicologia Humanista, muito embora
ainda presentes em seus limites.

Humanismo e TransHumanismo nascem, a partir de Maslow, como gêmeos univitelinos,


com a mesma ancestralidade e aspirações, mesmos pais, genética, concepção e barriga histórica,
mesma cultura, transgressão política, contestações espirituais. Gêmeos com almas e propósitos de

68
vida diferenciados, existências que vão assumindo caminhos e contornos diferenciados, muito
embora permanecendo ligados, indelevelmente, por seus pontos comuns de nascença.

Ainda que essa nova perspectiva não buscasse opor-se à Psicologia Humanista, mas, na
verdade, dela valer-se, incluindo-a em sua ampliação e expansão próprias, seguiram-se, na práti-
ca, o desenvolvimento paralelo de uma nova visão de Psicologia com outra leitura de Ciência, de
Mundo e de Humano. Ampliou-se, por completo, muito rápido e dramaticamente, o repertório de
experiências “centrada mais no cosmo do que nas necessidades e interesses humanos” (MAS-
LOW, s/d, p.12).

Surge, então, um campo de Psicologia que rompe, inclusive, com a denominação do


“TransHumanístico” para intitular-se “Psicologia Transpessoal”. Segundo, Antony Sutich,

Psicologia Transpessoal (ou “Quarta Força”) é o título dado a uma força


emergente no campo da psicologia, representada por um grupo de psicólogos e
profissionais de outras áreas, de ambos os sexos, que estão interessados na-
quelas capacidades e potencialidades últimas, que não possuem um lugar
sistemático na teoria positivista ou behaviorista (“Primeira Força”), na teoria psi-
canalítica clássica (“Segunda Força”), ou na psicologia humanista (“Terceira For-
ça”) (apud BOAINAIN, 1998, p. 47, grifo nosso).

Percebe-se, assim, que a Psicologia Transpessoal é um desenvolvimento lógico-conceitual


e histórico da Psicologia Humanista, mas que reivindica uma coerência própria ao que não coube
nas demais forças. Uma Força que, efetivamente rompendo com o cenário “maslowiano” do cami-
nhar conjunto às metodologias da Psicologia e Psicoterapia Humanista cientificista, adentra, logo
de início, a busca pelas “capacidades e potencialidades últimas”.

Em seu desenvolvimento, à semelhança da Psicologia Humanista, essa nova Abordagem


para os fenômenos e potenciais transhumanos virá a destacar-se pelo desenvolvimento de seu
campo, conceitos e ferramentas psicoterápicas. Enquanto, tradicionalmente, uma Psicoterapia
Humanista trabalha com orientações que visam uma auto-realização do organismo e atribuem uma
importância central à personalidade, uma proposta de Psicoterapia Transpessoal orientar-se-ia
para uma auto-transcendência, dedicando uma atenção sistemática às experiências ditas religio-
sas, espirituais e a estados alterados de consciência, o que, por conseguinte, desloca a ênfase aos
aspectos circunstancias da personalidade.

Nessa auto-transcendência ou reivindicação dos potenciais últimos da experiência humana


integrada, a Psicoterapia Transpessoal amplia a concepção do humano para além de seus aspec-
tos individuais e biográficos de sua consciência e personalidade. Essa perspectiva reconhece uma
retomada de estudos e intervenções sobre a consciência, concebendo-a, por exemplo, como uma
dimensão holográfica que contém o todo em sua complexidade, e que inclusive pode estar fora do
organismo (BOAINAIN, 1998).

69
Vejamos, no próximo tópico, utilizando o exemplo de Carl Rogers, como podemos encon-
trar, a partir do fundamento da Tendência Formativa, uma fronteira conceitual e experiencial da
Psicologia Humanista que dialoga com uma perspectiva TransHumanista.

TRANS-FORMAÇÕES HUMANISTAS: HÁ TERRAS PARA ALÉM DOS HORIZON-


TES HUMANOS?
No recorte anterior, discutíamos que a Psicologia Humanista surge no arremate de múlti-
plos fatores e condições que se apresentavam nas primeiras décadas do século XX, nos Estados
Unidos. Devido à complexidade que reside nessa constelação de forças que atuaram na constru-
ção de uma nova perspectiva científica em Psicologia (culturais, históricas, científicas, dentre ou-
tras), tendemos a não localizar um núcleo identitário de características específicas, mas, ao contrá-
rio, uma nuvem do que seria a prática e a visão de mundo Humanista.

Apesar disso, buscando delinear conceitos e perspectivas-chaves que registram a singula-


ridade deste Movimento, podemos afirmar que sua premissa básica reside na afirmação de que os
seres humanos são dotados de uma capacidade de auto-realização, ou seja, possuem uma ten-
dência inata a desenvolver seus potenciais latentes (CAIN; SEEMAN, 2006). Este conceito, con-
gregador de muitas das inúmeras escolas atuais em Psicologia Humanista, pode ser desdobrado
de várias formas, de acordo com a história particular de cada uma das abordagens presentes nes-
ta categoria.

Nesta seção, iremos aprofundar, especificamente, aspectos conceituais do Humanismo


que dialogam com as fronteiras do TransHumanismo. Nossa adesão segue uma vertente em Psi-
cologia Humanista desenvolvida por Carl Rogers, denominada de Abordagem Centrada na Pessoa
(ACP). Essa escolha se faz justificada por uma série de fatores, sendo que três deles merecem
destaque:

(1) Carl Rogers é legitimado pelos inúmeros representantes deste Movimento como
um dos mais importantes expoentes da Psicologia Humanista, freqüentemente
citado como um dos pesquisadores mais relevantes no trabalho em Psicotera-
pia, além de ser reconhecido e respeitado pelas outras diversas abordagens
em Psicologia. Neste sentido, congrega, em seu trabalho, um amplo público
que conhece, lê e debate, ainda que difusamente, as suas idéias e teorias;

(2) A sua profícua produção científica, distribuída nas mais diversas áreas de atuação,
juntamente com a vasta literatura produzida por colaboradores diretos, seguido-
res e atualizadores do seu pensamento, mesmo após a sua morte, oferece-nos
um amplo material teórico e prático, bem sistematizado, que nos possibilita uti-
lizar essa perspectiva como uma distinta representante da Psicologia Humanis-

70
ta de uma forma precisa e coerente; e, por último, sendo talvez o ponto mais
importante;

(3) As formulações conceituais e metodológicas, desenvolvidas por Carl Rogers nos


anos 80, principalmente o conceito de Tendência Formativa com o qual este
autor fundamenta sua Abordagem Centrada na Pessoa, habilita-nos a ponde-
rar, a partir da inclusão nesta Abordagem de manejos experienciais relaciona-
dos ao “transcendente, [a]o indescritível, [a]o espiritual” (ROGERS, 1980, p.
131), sobre as conexões umbilicais nas demarcações seminais do Humanismo
e do TransHumanismo.

Seguindo nosso intento de produzir um panorama geral dessa Abordagem Humanista de


Carl Rogers, e, posteriormente, expor articulações com o TransHumanismo, iremos perfazer um
percurso biográfico-conceitual em Rogers. Este caminho parece ser justificado porquanto a sua
história de vida e a formação de conceitos básicos da ACP corroboram às teses que, mais adiante,
iremos desenvolver sobre a relação entre Psicologia Humanista e Psicologia TransHumanista.

Nascido em 1902, numa cidade nos arredores de Chicago, Rogers com doze anos se mu-
da com a família para uma fazenda, já que seus pais tinham a “intenção oficial de fazer uma agri-
cultura „científica´” (HIPÓLITO, 1999). Já nesta época, Rogers iniciava sua relação empírica com a
ciência através de pesquisas noturnas para investigar e sistematizar a vida dos vaga-lumes (RO-
GERS, 1980). Não sem razão, Rogers matricula-se, em 1919, influenciado por sua experiência na
fazenda, no curso de Agronomia na Universidade de Wisconsin. Estamos, portanto, nos dez anos
que antecedem a finalização dos seus estudos de Doutoramento, em 1928/29. Uma primeira dé-
cada onde sua vida irá migrar por várias experiências.

Posteriormente à entrada na Universidade, o jovem Rogers decide mudar-se para o curso


de História. Após graduar-se nesta área do saber científico, Rogers matricula-se no Seminário da
União Teológica, em Nova York, onde freqüenta cursos relacionados à Psicologia. Neste ínterim,
conhece a Filosofia Pragmatista e Teoria Experiencial da Educação, através do seu professor,
William Kilpatrick, discípulo, por sua vez, do renomado filósofo da Universidade de Chicago, John
Dewey.

Da sua experiência com uma educação libertadora, Rogers transfere-se para o Teacher´s
College, da Universidade de Colúmbia, iniciando, oficialmente, sua formação como Counsellor e
Psicoterapeuta. É nesta mesma Universidade que ele finaliza seu Doutorado. Durante doze anos,
contados após a obtenção do seu título acadêmico máximo, Rogers segue realizando práticas e
pesquisas no Centro de Observação e Orientação Infantil da Sociedade para a Prevenção da Cru-
eldade Sobre as Crianças.

71
Este período foi de extrema importância na elaboração de uma prática e perspectiva singu-
lar no campo da Psicologia. Todavia, Carl Rogers apenas percebeu que havia criado uma nova
abordagem quando proferiu a palestra “Novos Conceitos em Psicoterapia”, em 1940, na Universi-
dade de Minnesota.

É importante observar que, dos anos de 1929/30, 1940 até 1950/60, com o surgimento do
Movimento Humanista, Rogers já está construindo seu pensamento por quase três décadas de
trabalho acadêmico. A partir daí, aprofundando na Abordagem que, inicialmente, foi denominada
de Não-Diretiva, Rogers inicia uma série de pesquisas, procedimentos de investigação e refina-
mento metodológico que irão ter influências marcantes em seu pensamento e na Psicologia Ameri-
cana em geral.

Uma das importantes descobertas destas pesquisas foi a constatação de que os clientes
em psicoterapia remetiam-se, recorrentemente, a um “Si Mesmo” aparentemente substancializado,
tornado referência para a sua experiência. Rogers e seus colaboradores utilizaram o conceito de
Self para caracterizar essa experiência de coerência de Si, afirmando neste conceito que o Self
possui uma tendência inerente para se auto-regular.

Entretanto, apesar da relevância destas formulações, o constructo básico de sua aborda-


gem, a experiência, estava mais intimamente correlacionado ao conceito de Organismo do que ao
Self. Este postulado de um Organismo, considerado como campo integrado de experiências e fun-
cionamentos singulares, “contêm dentro de si as potencialidades para a saúde e o crescimento
criativo” (HALL; LINDZEY, 1984, p.57). A esta Tendência, de adaptação e atualização dos potenci-
ais latentes, Rogers (1997) denominou de Tendência Atualizante, como um aspecto ou manifesta-
ção do Organismo.

Esta dinâmica relacional entre Self e Organismo – que irá derivar conceitos, por exemplo,
como processos de Congruência e de Incongruência – será mantido como um aspecto preponde-
rante até o momento teórico em que o Self passa a ser compreendido não enquanto estrutura
substancial, mas um fluxo relacional simbólico.

Como afirma Seeman (2008), “enquanto a ênfase inicial na teoria humanista tendia em di-
reção ao desenvolvimento do Self como uma entidade, uma ênfase emergente tem aumentado o
foco na intersubjetividade e nos aspectos relacionais da psicoterapia” (p.41, grifo nosso).

É através da contribuição de Eugene Gendlin (IKEMI, 2005) e sua críticas filosóficas à con-
cepção do Self enquanto entidade/estrutura que Rogers irá alterar a visão geral sobre a personali-
dade, caracterizando-a, posteriormente, enquanto um processo experiencial ao invés de uma con-
juntura estrutural.

Posteriormente, ao retirar-se da profissão de docência-acadêmica, e auxiliado por Maureen


O´Hara, uma bióloga, e John Wood, um ex-engenheiro da NASA, dentre outros colaboradores

72
próximos, Rogers passa a desenvolver diversas outras práticas, principalmente no que tange a
trabalhos com novos grupos por meio de novos enfoques.

Rogers não demorou em aplicar as idéias e conceitos vislumbrados nesta prática em me-
todologias terapêuticas inovadoras, como os chamados Grandes Grupos, contando com mais de
500 pessoas, e experiências de formação de Comunidades Centradas na Pessoa, realizadas num
tempo bem mais prolongado do que apenas um final de semana (ROGERS, 1977).

A partir da sua atividade nestes grupos, Rogers passa a delinear com maior precisão con-
ceitual uma qualidade de experiência que já se fazia observável desde o início da sua prática en-
quanto terapeuta. Ele afirma:

Eu sinto, por vezes, que quando estou realmente ajudando um cliente


meu, em um daqueles raros momentos quando existe uma aproximação da rela-
ção Eu-Tu entre nós, e quando sinto que algo significante está acontecendo, en-
tão sinto que estou de alguma forma, afinado com as forças do universo ou
que as forças estão operando através de mim nesse relacionamento de a-
juda que – bem, acho que sinto um pouco daquilo que o cientista sente quando
é capaz de dividir o átomo. Ele não o criou com suas pequenas mãos, mas ele,
não obstante, colocou-se na fila com as forças significantes do universo e, dessa
forma, foi capaz de precipitar um acontecimento significativo. Acredito que meus
sentimentos, muitas vezes, são semelhantes, ao lidar com um cliente, quando
realmente estou sendo útil (ROGERS, 2008, p.5, grifo nosso).

Rogers irá, então, formular que não existe apenas uma Tendência inerente ao ser humano
para se modificar, se adaptar e se tornar mais complexo, em grande parte a partir de um Self auto-
organizado, como postulado na Tendência à Auto-regulação; como também não existe apenas
uma Tendência para a atualização dos potenciais inerentes em todos os seres orgânicos, como
afirmado na Tendência a Atualização; mas existe, perpassando essas Tendências, existe outra
convergência de forças, frequentemente desconsiderada no trabalho terapêutico, elucidada como
uma Tendência Formativa presente nos níveis orgânicos e não-orgânicos, “uma tendência criativa
poderosa, que deu origem ao nosso universo, desde o menor floco de neve, até a maior galáxia,
da modesta ameba a mais sensível e talentosa das pessoas” (ROGERS, 1980, p. 134).

Na constatação deste fenômeno e posterior desenvolvimento do conceito, Rogers utiliza


múltiplos referenciais teóricos, provindos de diferentes áreas do saber científico. Explicitamente
Rogers (1978) faz referência à contribuição de Lancelot Whyte, um “historiador das idéias”, a partir
do conceito criado por este, denominado de Tendência Mórfica. Porém, outras influências podem
ser consideradas neste percurso de criação, como a concepção de Tendência Holística de Jan
Smuts e as práticas de Alfred Adler (ANSBACHER, 1978), bem como o conceito de Morfogênese
de Michael Polanyi, um químico e filósofo da ciência, Noosfera de Teilhard de Chardin, dente ou-
tros (ELLINGHAM, 2006).

73
Destes conceitos, desdobra-se o substrato teórico mais importante da Abordagem Centra-
da na Pessoa: uma compreensão das relações organísmicas entre as três tendências da vida que
se manifestam no indivíduo humano. São estas, por assim dizer, as tendências ou os ganchos com
os quais se operam os loops experienciais em uma Psicoterapia das Transições e das Travessias,
uma Psicoterapia Humanista, conforme o legado “maslowiano”.

Neste sentido, se é cabível afirmar que a Tendência Formativa nos traz aspectos qualitati-
vos experienciais do Mistério, da expansão cósmica, do fluxo indiferenciado da Vida, a Tendência
a Auto-Regulação, enquanto uma faceta ou tendência desta, exercendo sua função de absorver
esta experiência em contornos de manutenção, no contexto das múltiplas relações concretas do
organismo – ou seja, na sua função de singularizar e diferenciar – necessariamente está atuando
na experiência, em maior ou menor grau.

É necessário ressaltar a importância de um amálgama de disciplinas (Agronomia, História,


Filosofia, Biologia, Engenharia, Química, Psicoterapia, Psicologia etc.) que perfazem a formação
acadêmica de Rogers, enquanto cientista, teórico e clínico, que se fazem observar, direta ou indire-
tamente, nas formulações de seus principais conceitos, inclusive o de Tendência Formativa.

No geral, poderíamos afirmar que Rogers mantém, a partir de uma perspectiva consolidada
em Psicologia, interfaces de diálogos robustos com outras disciplinas. Devido à conjunção dessas
disciplinas, numa perspectiva de justaposição de áreas de conhecimentos diversas entre si, pode-
mos afirmar que a ACP sustenta-se num território multidisciplinar (PIRES, 1998). Implica dizer, em
outras palavras, que a Psicoterapia Humanista, promovida no âmbito da ACP, convoca ao diálogo
entre estes diferentes atores teóricos.

Apesar disto, a base da Abordagem Centrada na Pessoa inclui indispensáveis elementos


da Interdisciplinaridade, na medida em que o que caracteriza seu modelo particular de conheci-
mento “é a transferência de métodos de uma disciplina para outra” (NICOLESCU, 1999). Tomando
o conceito de Tendência Formativa, por exemplo, existe neste caso uma interdisciplinaridade epis-
temológica na Abordagem Centrada na Pessoa na medida em que métodos e, sobretudo, metáfo-
ras e racionabilidades da História, da Filosofia, Química etc. são admitidos e manejados para uma
matriz Psicoterápica (NICOLESCU, 1999).

Trânsito livre entre as disciplinas, trocas abertas e complexas, entretanto, não pressupõe a
dissolução das fronteiras entre estes diversos saberes. Neste mesmo exemplo, o do conceito de
Tendência Formativa, fica evidente que estes métodos e conceitos foram transpostos resguardan-
do suas particularidades. Significa essa compreensão aludir que estas influências plurais foram
incluídas, interligadas e “digeridas” a partir de uma territorialidade psicológica da Abordagem Cen-
trada na Pessoa, mantendo uma coerência interna interdisciplinar.

74
A evidência de que este conceito foi incluído de tal maneira nas fronteiras da Psicoterapia
e da Psicologia, a partir de uma perspectiva eminentemente científica e de um grau particular de
sofisticação conceitual, sem diluir os contornos que separam os diferentes saberes, encontra-se na
seguinte afirmação de Ellingham (2002):

Eu não estou apenas afirmando que a noção de Tendência Formativa


de Rogers „forme a base da Abordagem Centrada na Pessoa‟, e nem mesmo
que „poderia ser a base sobre a qual nós poderíamos construir uma teoria para a
Psicologia Humanista‟, mas que esta noção constitui a base sobre a qual nós
podemos construir uma teoria para a Psicologia como um todo, i.e um paradigma
genuinamente científico (p.31).

Ao contrário, as abordagens de conhecimento que possuem uma base Transdisciplinar di-


zem “respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disci-
plinas e além de qualquer disciplina” (NICOLESCU, 1999, p. 2, grifo nosso). É trans no sentido de
incluir múltiplas referências sem a existência de um território-base único, sistemático e excludente,
contendo níveis de organização e rigor, mais ou menos pré-determinados, que partem de uma
lógica de funcionamento interna.

Na verdade, uma base de conhecimento Transdisciplinar parece estar relacionada, emi-


nentemente, com uma perspectiva da Psicologia TransHumanista, já que inclui, em seu bojo, uma
movimentação holográfica de realidades, possibilitando “perceber que existem diferentes tipos de
níveis de consciência” (REICHOW, 2002, p.26), circulando em níveis de realidade diversos, simul-
taneamente, sem a presença de um princípio organizador central.

Talvez, o melhor acesso para ilustrar a necessidade de um território interdisciplinar para a


Psicologia Humanista e sua experiência humana, e a exigência de um saber TransDisciplinar para
o TransHumanismo e seus propósitos e potenciais “últimos”, possa ser contemplado em visualiza-
ções diretas situadas em questões vivenciadas por clientes.

Neste passo seguinte de contextualização crítica, estaremos metaforicamente a percorrera


como que os caminhos de um “otorrinolaringologista experiencial”, na medida em que nos movi-
mentamos por entre o fluxo dos possíveis canais vitais. Desse lugar de navegante nas especifici-
dades de compreensões para os fenômenos observados, iremos, a seguir, aproximarmo-nos um
pouco mais dos conteúdos familiares a uma Psicoterapia Humanista e uma Psicotetrapia Tran-
sHumanista.

SOBRE UMA MESMA SEMENTE GERMINADA EM SOLOS DIVERSOS: A EXPE-


RIÊNCIA DO “HUMANO” E DO “TRANSHUMANO”?
Joachim (nome fictício), jovem adulto, 30 anos, profissional liberal, pós-graduação concluí-
da, cidadão em uma metrópole brasileira, é um desses clientes em busca de crescimento e de
75
realização humana. Cliente atípico para o universo dos diagnósticos e demandas convencionais,
Joachim está sondando as camadas ainda obscuras de si, entregue ao que ele definiu como um
21
exercício de espiritualidade arqueológica. Traremos duas vinhetas , ou dois recortes para ilustrar
as experiências do jovem Sr. ´Quim em distintos quadriláteros terapêuticos:

Cena 1.
Ambiente terapêutico de grupo, espaço de workshop intensivo e residencial. Algumas trinta e cinco
pessoas, adultos com idades e formações variadas (estudantes e profissionais de nível superior),
reunidos em um salão de hotel. Paisagem agradável, no litoral tropical nordestino. Alguns mari-
nheiros de primeira viagem, outros poucos mais ou menos familiarizados às remexidas vertiginosas
de grupos terapêuticos. Uma larga parcela de gente que, ao certo, não se via dentro ou fora da-
quele grupo – estavam ali, talvez, para descobrir suas próprias expectativas que pareciam diluídas
e difusas. Facilitadores, psicólogos, de gerações diferentes, apresentam-se, breve e gentilmente,
externando o suficiente para somente localizar, no grupo, palavras que transmitissem sua disponi-
bilidade e alegria comedida. Silêncio. Não há uma agenda. Não há currículos nem programas, nem
destinos, nem jornadas. Não há o silêncio como instituição, não há o requisito do registro, do diálo-
go, da simpatia, da generosidade. Não há testemunho de compreensões. Não há um ordenamento
para, quer mesmo, que o “não há” antecipado seja mantido como um processo duradouro. Não se
quer dizer que não há correntezas, redemoinhos, presenças. Duas luas, dois sois, quarenta e pou-
cas horas de convivência, estrelas e mar, alternados entre movimentos espontâneos que ocupam
a grande sala principal e os diferentes espaços que a mobilidade individual alcança. Deslocamen-
tos físicos e lingüísticos vão se dando – tímidos e exíguos. Uma ansiedade zombeteira, impaciên-
cia, risos de incompreensão e de impossibilidade de sustentação. Rubores. Dia seguinte, uma
mulher, com suas cinqüenta e pouca, ou talvez sessenta primaveras. Maravilhada com o lugar e a
beleza abundante do horizonte, externa sua necessidade de relembrar e compartilhar as paisagens
saudosas que ficaram para trás, as lembranças de sua casa e dos entornos no seu lugarejo. Joa-
chim, como outros, mantém-se numa sintonia mista de curiosidade e interesse cordiais. Nada de
extraordinário, aparentemente nada de proposital. Ainda desconhecidos, indiferença travestida.
Uma escuta que oscila com os sussurros e ressonâncias da experiência terceira em si mesmo, no
seu corpo de memórias, com suas provocações, desafios e inesperados. Jocélia (nome fictício), a
madura senhora, menciona algumas pedras grandes, as velhas montanhas. Fala de uma Floresta,
situando-a em um território de Reserva Ecológica. Algo se emaranha nos pensamentos do Sr.
´Quim, suscitando uma fala de conexão e alusão à experiência anterior, descrita pela Sra. ´Célia.
Na voz irrompida do rapaz, fez-se escutar imagens recém chegadas de um lugar estranho, muito
embora confortável para ele, que parecia também incluir árvores grandes e velhas, tão grandes e
tão moventes na copa estrelada que nos faziam também sentir, nós, audiência, que se tratavam de
animadas pelo vento. Árvores gigantes, como espíritos antigos encravados nos sulcos de sais e
líquidos da terra, daqueles intangíveis pelo abraço de um homem, tão largas são as proporções de
suas existências. Escutávamos, como que através da retração acurada de um pintor impressionis-
ta, os movimentos de pedras e pássaros que o passar da história impunha o nascer e o morrer. A

21
Vinhetas são retratos antropológicos, freqüentemente empregados para honrar aos detalhes de uma cena cultural com-
plexa apreendida através de observações de campo e outras técnicas da metodologia etnográfica. Com sua variedade de
recursos para as Ciências Humanas, os contornos de suas descrições foram ampliados no trabalho de Harry Wolcott e de
Ruth Behar em suas distintas propostas de Antropologias em Primeira Pessoa. Tratam-se, pois, de vinhetas que permitem a
implicação analítica, sensível e estética daquele que se insere no contexto pesquisado.

76
mulher, atenta ao diálogo emergente de suas palavras originais, meio que acolhe um vínculo lan-
çado de interesse e de cumplicidade. Ela confirma: de fato, lá existem tribos sagradas, remanes-
centes de aborígenes. É uma Reserva onde criaturas mágicas também habitam os mitos indíge-
nas. O diálogo precipita-se em gotejos de intensidades que adentram a sala, semelhantes, talvez,
à invasão de mensagens cristalizadas de um passado estacando, de um fluxo represado. Os olhos
afinam-se entre si, e qualquer coisa da ordem de uma temporalidade suspende-se. A distância
entre os corpos esvanece. As sombras no olhar aprofundam-se? Os facilitadores morrem para as
distintas realidades abertas – não sabem mais onde todos estão; imersos, quem sabe, grupo e
facilitadores, em seus caminhos próprios. E por alguns breves minutos a tempestade de fatos e
ocorrências mentais provocam inundações de sentimentos e imagens pessoais. A mulher comple-
menta, referindo-se ao nome e à experiência ancestral do lugar: é o “Vale das Feridas” (nome fictí-
cio), informou-nos. E como um símbalo cuja melodia atravessa realidades espessas, distintos per-
sonagens aprochegam-se em suas almofadas azuladas que se tornaram abrigos insulares nesse
oceano desconhecido. O ar parece também mais denso, impondo respirações mais curtas – bus-
cas, em vão, por uma reserva gasosa que não se localiza em crateras tão profundas. “Eu vejo os
Povos da sua Terra”, exclama Joachim, utilizando-se de uma língua nativa ao coração e à cultura
de Jocélia. E prossegue a narrativa, visivelmente mobilizado em seu corpo, com lágrimas que frou-
xamente banham sua pele e suavemente incandescem suas palavras. Como uma locomotiva pas-
sante e extensa, o relato não é interrompido em nenhum momento, sem que para isso fosse hipo-
teticamente necessário impor um controle arbitrário à expressão viva das ondas e das águas que
vertem dos seus dois mundos, seus dois globos (oculares). A mulher, do outro lado de uma sala
cumprida, muito embora resguardada pelo barulho do ar-condicionado, também se encontra im-
pactada por um calor proximal de natureza muito singular. Ambos, ´Célia e ´Quim, parecem cami-
nhar sobre um mesmo solo, aproximados pela força de um mesmo cajado, de um encontro trans-
dimensional. Vários conteúdos, em um processo de trinta minutos, são abordados e demarcados
nessa experiência de partilha: falam-se de todos que foram extintos na Floresta, do rufar de folhas
e de espingardas, de irmandades entre sangues e raças, lá e cá, e longe de qualquer possibilidade
de apreensão linear, as falas salteiam entre pontes intuitivas e ampliadas, de pertencimento con-
junto e de efetiva relocalização em território-outro impossível de ser delimitado. Pedidos mútuos e
amiúdes de paz, súplicas de redenção pela dor infringida pelos corpos de colonizadores são formu-
ladas sob a descarga de uma emoção aguda e torrencial. (Posteriormente retomado, alguns parti-
cipantes observam-nas como relatos de pico, de momentos incríveis, situações de unidade e de
comunhão incomuns). A mulher, entregue à força desse encontro entre experiências e situações
não antes descritas, menciona a sincronicidade do fato de, ela mesma, em gerações passadas,
que não mais se fazem observáveis em seu fenótipo, descender de parentes remotos daquela
“Floresta de Feridas”. Diz, afinal, a genealogia da mulher que, ela própria, todas as noites, implora
o descanso e a cura pelas dores daquelas gentes, dores que ela própria e sua ascendência perpe-
tuaram. Joachim compartilha do sentimento, recita poesias, e os canais de lírios e cristais dos seus
olhos não cessam. Facilitadores emudecidos. Participantes tomados por silhuetas de não confor-
midade. Rearranjos nos corpos, outros afluentes de lágrimas aportam nesse mar comum. Jovens e
velhos, paralisados? Processo reacomodado nos respectivos corações e experiências, intervalo
para almoço. Do lado de fora, questionado sobre a posição teórica que nos abalize o ocorrido, um
participante relembra que, nos espaços de Grandes Grupos (Humanistas), que superam a possibi-
lidade de uma terapêutica semanal e da pontuação localizada, de fato ocorrem mudanças e resso-
nâncias entre os diferentes processos. Entretanto, por não se tratar de um movimento focado na
mudança de questões próprias da Personalidade (v.g., uma dificuldade específica), em vista de
promover a Atualização de situações conflituosas, no ambiente do Grupo é também possível um
florescer cuja qualidade é propriedade de uma Mudança Formativa. E o mesmo participante conso-
lida sua observação articulando que, nas experiências Formativas, para além de uma mera recon-

77
figuração de objetos do manejo da Personalidade (com suas prioridades e refrações), laços ampli-
ados entre as expressões e fluxos organísmicos ressoam entre si, tangencialmente às captações e
produções de significados imediatos da personalidade. Nestes casos, processos de intensidades
profundas podem surgir e manifestar seus orbitais, mobilizando atores e recursos, sem que isso
seja catalisado por uma travessia convencional da identidade, das suas escolhas e da personali-
dade como um todo. Existiam, sim, temas prévios que estavam disponibilizados pela personalidade
para o contexto do trabalho terapêutico, seguindo a confirmação atenta de Joachim e Jocélia, que
acompanhavam o círculo da conversa. Contudo, para a surpresa de ambos, os desdobramentos e
os contextos experienciais que foram suscitados, naquela relação possibilitada entre Joachim e
Jocélia, resgatou e movimentou dimensões que não estavam, se quer, acessíveis às suas consci-
ências. Alguns, aspectos, dos quais, não sabiam se quer existir. E mais do que isso, o processo
transcorreu-se por meio de um formato ou qualidade de movimento que parecia “não ter a ver” com
a capacidade de controle ou intervenção de ambos – sendo, portanto, melhor descrito como um
mergulho ou a participação de um fluxo.

Cena 2.
Joachim, quinta-feira, cedo de uma manhã convencional. Horário que antecede início do trabalho.
Direção sem esforço para a sala de psicoterapia. Há três anos esse é o seu domicílio semanal de
realinhamentos experienciais. Porta branca cruzada, cheiro de uma essência de carvalho; do lado
direito, um painel que recobre toda uma parede e paisagens de Floresta. Duas poltronas, água e
aquário, móvel, livros, janela e almofadas recostadas. “Você hoje está aqui ou ali?”, pergunta a
terapeuta, após as saudações e acolhidas habituais, com a mão a sinalizar o sofá (largo, com uma
manta) ou uma maca (como que a de trabalhos de acupuntura). Com um leve sorriso, as mãos de
Joachim tocam a maca. Sorriso de saudade, talvez. Está coberta com um lençol fino, de um ama-
relo delicado. Escuta-se o lavar das mãos da mulher não alta, em um pequeno banheiro, enquanto
Joachim dobra sua camisa, deixando-a sobre a cadeira. Deitado, sobre a maca, de peito nu e com
pelos, as correntes elétricas do espaço são reduzidas (ar-condicionado, motor do aquário, luzes,
celular, todos desligados). Estamos, por assim dizer, numa zona de penumbra e de confiança,
laterados por quadros e paisagens arquetípicas. “Joachim, vamos começar”, anuncia a terapeuta.
Mulher de olhos profundos, perfilando uma amorosidade que não se torna invasiva. Criatura dinâ-
mica, viajada, articuladora de vários Movimentos Sociais, espaços de cuidado e atenção em saú-
de, participante de várias associações e contextos de formação profissional de novos terapeutas. A
terapia já começou. Alguns sons foram formulados, calibrados com exímia maestria para ocupar a
sala inteira e não atravessar o pórtico, infiltrando-se os corredores externos e assépticos daquele
condomínio. Não há melodia prévia, nem ritmos identificáveis. Não há palavras e talvez poucas
letras. É um som também doce. Parece alguma coisa da ordem de um convite sonoro. Um convite
para Joachim adentrar o seu espaço terapêutico, um convite para abandonar a rua, um convite de
preparo, um rito como símbolo de início. Jamais saberemos ao certo: estamos imersos, afinal, nos
silêncios e nos espaços dilatados entre ruídos mais e mais escassos. Os dedos da terapeuta mo-
vimentam-se no ar, ensaiam padrões ou sincronias, parecem tocar, abrir, retirar ou empurrar algo
nesse espaço intangível e não identificável que plaina sobre as vizinhanças do corpo de Joachim.
Um único dedo realiza acrobacias e com esse mesmo dedo, na vertigem de uma mão que despen-
ca lentamente sobre um mesmo eixo vertical dessa reta percorrida no invisível de um dedo, indica-
dor, direito e esquerdo por vez, a mão estaciona a alguns poucos centímetros de um corpo que se
mantém intocável. É um corpo que se torna anteparo, que recebe o calor direcional invisível de
mãos que jamais o viram na intimidade sensorial. Corpo como zona costeira onde colidem as on-
das e freqüências da eternidade. Contrações involuntárias no corpo, reajustes, espasmos, e a mão
guiada pelas direções e pontos firmes de um dedo, executam uma sinfonia completa de marcações

78
no espaço, ancoradas, uma a uma, como super-cordas e espirais, que pendem da eternidade so-
bre pontos de unificação à vida do corpo. Vários pontos nesse corpo, do tórax, pés, mãos, pernas,
pescoço, às vezes também na cabeça. Cordas de uma harpa que, uma vez estabelecidas, uma por
uma, distendidas entre o sutil das aberturas e a densidade das localizações corpóreas, tornam
possível o percorrer tácito de um dedilhar suave que se acopla, aos poucos e vagarosamente, aos
ritmos impronunciáveis que vão ganhando um sentido e uma melodia somática, muito embora i-
naudíveis. O corpo, intacto pela realidade física, adormece em uma transição que não o desabilita
da percepção – é como se transcorresse, na observação de Joachim, um sonho lúcido que se pro-
jeta sobre um corpo absolutamente mergulhado em calafrios e dormências. Ainda consciente, mui-
to embora aberto para mundos, paisagens e visualizações, às vezes insights, respostas, procedi-
mentos, guianças, a terapêutica transcorrida parece demarcar, no corpo ileso, uma cartografia
visual para caravelas distantes. De longe, as naus cósmicas parecem seguir o destino de estrelas
criadas pela explosão de calor dessas mãos de luz. Mãos que fazem parir estrelas-guia no corpo
de um cliente. Estrelas de referência, sinalizadores dérmicos, pontos de travessia. Em cinqüenta
minutos, intervalo médio dessas jornadas semanais, às vezes suficientes para uma demarcação,
às vezes tempo dilatado a ponto de ancoragens completas, e aterrissagens, desembarques reali-
zarem-se no mundo ampliado que se abre na tela da consciência e na experiência direta do clien-
te. Palavras de ordem, duas ou três vezes são anunciadas, ao longo da sessão, como um veleja-
dor experiente que anuncia ou registra, no discurso, a passagem realizada por uma fenda glacial
ou o prenúncio de um cenário possível na visada da luneta. Outra sinalização lançada, dessa vez,
não para aqueles do além-mar, mas para uma consciência concreta que, aos poucos, vai retor-
nando. Ela, a consciência que, outrora, partiu por si mesma, ou, quando muito, embalada por uma
sonata cósmica de mãos invisíveis. “Joachim, acabou. Aos poucos, no seu tempo, você pode ir se
levantando”, comunica a terapeuta. O cliente senta-se, recebe um copo de água, enquanto ouve
“existe alguma coisa desse processo, desse momento, que você gostaria de compartilhar?”, e es-
cuta-se o eco distante de um “não”. A camisa retorna para o corpo, como proteção e mortalha de
algo que parece ter-se ido. Assinatura no prontuário, como registro de uma presença: data, nome,
descrição do procedimento a parte. “Até a próxima semana”. Joachim reencontra-se com as esca-
das que o trouxeram, poucos degraus e a ascese para um mundo de relações profissionais. Pare-
ce uma longa viagem, mas foram apenas degraus, e uma modesta escada que o separa do intan-
gível de uma mão, do bailar de um corpo que parece exercitar sintonias sutis, como num ballet de
oscilações e vórtices, do céu e da terra, aninhados em um centro ou plexo que não é, apenas, de
equilíbrio corporal. As luzes foram reacesas, mas Joachim vai levar um tempo considerável para
retomar as cores, as formas e as direções há pouco deixadas para trás. Às vezes, levam minutos,
e ele precisa comer; outras vezes horas inteiras, mas já houve dias e noites completos, vivencia-
dos como jornadas facilitadas por aquilo que apenas com olhos fechados Joachim descreveu. Às
vezes, sonhos chegam, miragens dissolvem-se. “Beba água, Joachim, vai te ajudar a integrar o
processo”. Quem o tocou, quando não há toques? Quem o visitou, quando não há portas, mensa-
gens e encontros? Quem o acompanha, quando não há presenças visíveis e línguas distinguíveis?
É preciso dar nomes para isso? A intervenção parece transcorrer no espaço-tempo outro, e apenas
o corpo acolhe os registros, ou os sintomas tardios de alhures. A terapêutica funciona a despeito
do entendimento sobre a mesma? Que descrição de vida e de homem comportaria uma interven-
ção e uma forma de cuidado que, uma vez não realizada pelas mãos e comportamentos de ho-
mens, também não marca e não transita pelo humano – mas a eles, os dois humanos, terapeuta e
cliente, parece deixar um rastro inalienável, inevitável, um exaurimento de convivências que não
podem ser marginalizadas? Com quem, além de um painel para as Florestas? Com o quê, além
dos peixes de um aquário, quando tudo, ademais, foi desligado? As forças das pedras, do próprio
granito que asfalta o chão da sala? O quê impõe o estado intermediário de sonâmbulo, e o quê
resgata Joachim de lá? Nestes meses de terapêutica, Joachim não se recorda de ter dirigido qual-

79
quer solicitação de explicações e fundamentações à terapeuta. Questionado a esse respeito, expli-
ca-me ele que os mapas do seu corpo são mais reais e visíveis que suas tatuagens imaginárias e
feridas de qualquer passado recente. E com estas marcas e localizadores tenta construir intera-
ções e transições entre realidades tomadas como paralelas. Sua experiência, que às vezes não
formula um caráter de inteligibilidade para tais travessias, demonstra uma capacidade resiliente,
madura e criativa de não se precipitar banalmente em busca de perfazer substratos intelectuais
que, eventualmente, já constatou amadurecem em ciclos próprios, como se nas estações apropri-
adas de seus movimentos organísmicos. Racionalidades e desdobramentos conceituais só acon-
tecem no Outono Organísmico. Na Primavera, Joachim descobriu, existe apenas, somente e radi-
calmente, beleza farta e abundante, para inebriá-lo de fortaleza e nutrir de confiança. Mas há tam-
bém o frio, onde a morte visita, provoca rachaduras e fissões, e o que de verdadeiro subsiste e
regenera-se no verão, enquanto que o excesso ao simples liquefez-se, tragado pelos córregos.

Comentários sobre as Cenas


Ambas as experiências sumarizadas nas Cenas 1 e 2 tratam de um mesmo cliente, Joa-
chim, em momentos diferentes de um mesmo semestre, inserindo-se, com sua complexidade ex-
22
periencial , na realidade metodológica de duas propostas psicoterapêuticas.

Em ambas, Joachim procurou, deliberadamente, profissionais gabaritados e consistentes


em suas formações técnicas, bem como na avaliação positiva de seus pares locais. A primeira, de
cunho e de procedimentos Humanistas, e a segunda, eminentemente articulada e facilitada como
uma proposta atual de TransHumanismo.

Desde os respectivos inícios da primeira e da segunda vinheta, já podemos observar al-


guns percalços nas distinções habituais que localizam na “experiência ampliada” o critério mesmo
para solvência de uma proposta e decorrente inoperação da segunda. Registra-se, ao contrário,

22
O objetivo dessa subseção não é, considerando que também a estrutura de páginas não comportaria, realizar diagnósti-
cos epistêmicos mais duradouros para horizontes do conhecimento mais amplos, no que viria a concernir, por exemplo, às
argüições de fundo mais genérico (e não menos legítimas) acerca da compatibilidade dos relatos acima transcritos enquan-
to categorias válidas de um tipo específico de modelo vigente de “ciência”, ou, mais particularmente, contextualizá-los nos
debates a respeito das “psicologias” e suas pretensões nacionais, ou, ainda, problematizar sua validação como metodologia
“psicoterápica”. Nosso objetivo, realmente mais modesto, foi o de instigar a curiosidade do leitor, deslocando-o de um olhar
convencional a partir dos relatos nos respectivos dois campos, conforme as impressões e vicissitudes de um colaborador
(Joachim). Esse texto também assume a vocação de permanecer suas raízes na ciência da Psicologia e derivar sua racio-
nalidade do campo da Psicoterapia, numa adesão iconoclasta que refrata o tratamento preponderante da experiência tera-
pêutica alheia às suas teorias de origem. Não obstante, por não termos a motivação de realizar um estudo comparativo
mais denso e específico entre Escolas, Abordagens ou Modalidades de serviço terapêutico, optamos por restringirmo-nos
às discussões no campo de duas das Forças/Correntes tradicionais nessa grande arena das Psicoterapias Americanas do
século XX. Não iremos, portanto, detalhar cada modelo terapêutico, tanto menos contrastá-los entre si. Tais empreendimen-
tos, a nosso ver, exigiram peritos de uma e de outra Força/Corrente cujas expertises avalizassem uma caracterização de-
longada e minimamente adequada. Nesta oportunidade, para efeito do recorte proposto, nossa seleção buscou conceder
voz ao relato pós-colonialista de duas experiências terapêuticas não-hegemônicas em seus contextos nativos, por enten-
dermos que tais enquadramentos vivenciais melhor testemunhariam acerca das teses com as quais estaríamos discorren-
do.

80
nestes recortes, que se trata de cenários que viabilizaram a oferta de uma continência psicoterápi-
ca para o funcionamento de redes ampliadas no circuito experiencial do cliente.

Foram tessituras, inclusive, das quais em uma delas se foi capaz de desdobrar-se nos es-
paços atuais da Psicologia Humanista – por exemplo, sob um conceito de ampliações e acopla-
mentos formativos, segundo a teoria de Carl Rogers.

Se for verdade que a mera qualificação de uma experiência, a partir de seus adjetivos
(“ampliada” ou não), tornou-se insuficiente para corretamente localizá-la em um ou outro território,
por sabermos que vários nomes e conceitos seriam possíveis (na verdade, infinitos deles) adota-
mos, entretanto, uma margem política em conformidade às ilações de Santos (2008) para que os
nossos saberes críticos não aquiesçam à imposição ideológica que reduz suas propostas não-
hegemônicas a meros apensos, derivativos ou complementos dos primeiros. Nos comentários des-
se analista, “há um déficit de comunhão e de presença no modo como a ciência moderna nos in-
terpela e se nos apresenta. Ela embrenha-se num auto-exílio arrogante para não ter de enfrentar o
que nela não cabe e é valioso” (SANTOS, 2008).

Quer isso sugerir, por exemplo, que as exigências de rigor e consistência, obturadas no
âmbito das cercanias estritamente Disciplinares, não estão investidas de qualquer propósito e utili-
dade operacional no contexto de práticas e teorias que, obrigatoriamente para resguardar sua coe-
rência e propósito internos, requisitam uma matriz de análise não-linear e não reducionista.

Em outras palavras, e também se restringindo à argumentação franca, não parece coeren-


te o postulado de que “tais” agrupamentos de experiências (classificados mediante padrões de
comportamentos aproximados entre si) estariam sob a privaticidade de certa Escola de Psicotera-
pia e Psicologia, sendo moralmente impeditivas de figurar em outra, ou que, eventualmente, um
inventário antecipado de experiências não fosse bem-vinda ao catálogo de possibilidades de traba-
lho para Teorias posteriormente advindas.

Nessa ótica, que busca não solapar as diferenças e oportunidades de enxergar além dos
mundos e experiências de realidade incognoscíveis para muitos dos saberes instituídos, gostaría-
mos de propor que, mais do que novos adjetivos (“ampliadas”, “incomuns”, “espirituais” etc), preci-
samos de substantivos próprios que margeiem os percursos de uma e de outra proposta, que as
identifiquem e localizem não apenas a realidade vivencial dos clientes, como, também, a materiali-
dade experiencial dos psicoterapeutas e das suas formações específicas.

Ao contrário da cristalização de quadriláteros compreensivos, por uma obrigação de reco-


nhecimento à evolução e à expansão das Correntes em Psicoterapia, impõe-se como mais razoá-
vel asseverar que longe de redutos experienciais equivocadamente projetados numa e noutra, o
traço primordial que as distinguem dá-se no âmbito do tratamento realizado às experiências que
nos chegam como psicoterapeutas. Ou seja, dito de outra forma, a diferença não está na experiên-

81
cia com a qual se trabalha, mas com as plataformas Intra/Inter/multireferenciais e Transdisciplina-
res que se utiliza em seus manejos.

Aqui, de modo particular, queremos propor que: as Psicologias Humanistas (e suas pro-
postas de Psicoterapia) tratam, eminentemente, de uma articulação de grandeza InterDisciplinar
(geralmente) e multireferencial (em termos de saberes e processos concomitantes de ordem Intra e
InterDisciplinares), enquanto que as Psicologias TransHumanistas (necessariamente) são de or-
dem TransDisciplinar.

Dessa forma, as ditas experiências de “ampliação de consciência”, ou, mesmo, experiên-


cias da virtualidade, ou experiências da ecologia profunda – que são, estas duas últimas, fenôme-
nos dramaticamente inseridos nas pautas sociais atuais – não estão localizadas nesta ou naquela
Teoria a partir dos conteúdos em si mesmos que elas aparentemente sugerem-nos (sob pena des-
sas Teorias serem consideradas lesivas e discriminatórias para um rol extenso de possibilidades
de subjetivação que não estavam previstas), mas, de maneira inversa, se farão uso de plataformas
conceituais eminentemente Intra/Inter/multireferenciais ou TransDisciplinares.

Historicamente influenciados por Movimentos Sociais semelhantes, parece-nos claro que a


estratégia de reinvenção das relações e dos potenciais humanos, nos anos de 1950-60, seguiu
parâmetros e desdobramentos distintos no Humanismo e no TransHumanismo, que não se esgota-
ram em seus aspectos ético, teórico-conceitual, metodológico e operacional. Diríamos, certamente,
que algo de novo também surgiu do ponto de vista Paradigmático.

Cumpre-nos oportunamente registrar que um dos elementos preponderantes nestas ruptu-


ras paradigmáticas (se não a maior razão de ser para tais contestações) ensejadas pelo Humanis-
mo e pelo TransHumanismo disseram respeito às formulações de alternativas disciplinares, justa-
mente em vista de traçar novas rotas e diretrizes amplificadas para entender o funcionamento hu-
mano que, à época, encontrava-se deverasmente limitado, segundo a percepção daqueles precur-
sores.

Tratou-se de elaborar caminhos à margem das opções disciplinares monolíticas, vigentes


na primeira parte do século XX, os quais se deixam constatar, por exemplo, no diálogo travado
entre as novas Psicologias Humanistas e TransHumanistas junto a campos fronteiriços do saber
(antropologia, sociologia, nova física, nova química, artes, espiritualidades etc). Estas bifurcações
históricas podem ser vislumbradas nos excertos acima transcritos, ao retratarmos a sofisticação
experiencial possível em trajetos terapêuticos contemporâneos.

Enquanto na apreensão da Cena 1 é suficiente a racionalidade de uma Disciplina, ou, no


máximo, o diálogo cortez entre duas ou três Disciplinas (cada uma resguardando suas especifici-
dades, intransigências e hipóteses particulares), na Cena 2, a modalidade de compreensão que

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seria capaz de decodificá-la, em suas nuances e especificidades, exige um plano de referência
TransDisciplinar.

Sob esse prisma, mais do que um conjunto de autores ou teorias específicas, uma das fa-
cetas da singularidade da Psicologia Humanista é sua adesão política Intra-Inter/multireferenciais,
enquanto que na Psicologia TransHumanista, todas as vezes que se reduziu a compreensão a um
modelo fixo de qualquer Disciplina, perdeu-se, também, a possibilidade de acompanhar a comple-
xidade de interações e interfaces que alcançam esse humano e o superam.

A esse respeito, na Carta da Transdisciplinaridade, podemos observar, em seu artigo pri-


meiro: “Toda e qualquer tentativa de reduzir o ser humano a uma definição e de dissolvê-lo no
meio de estruturas formais, sejam quais foram, é incompatível com a visão transdisciplinar”
(FREITAS; MORIN; NICOLESCU apud WEIL, 2002, p. 112, grifo nosso).

A flexibilidade TransDisciplinar desse TransHumanismo contribui para o alcance e adequa-


ções criativas que perseguem seus objetivos “últimos”, em suas diferentes variações e acepções,
enquanto que a estabilidade fixa Intra/InterDisciplinar do Humanismo faculta-o a serenidade para
apreender uma categoria fenomênica única, qual seja, captar o humano situado em sua experiên-
cia.

Cada uma dessas propostas de Psicoterapia, em sintonia, portanto, com as suas especifi-
cidades, traria, para si e seu conjunto de ferramentas, o compromisso ético-científico de traduzir
sua Epistemologia dentro de uma referência duplamente coerente aos postulados tanto de sua
Escola como de seu Movimento.

Nicolescu (1999), retomado da exposição anterior, elenca que, no rol dos posicionamentos
TransDisciplinares, verifica-se a compleição dos três seguintes requisitos: uma prática complexa,
de contornos por múltiplas realidades e, finalmente, a opção por um terceiro incluído. Será possível
satisfazer parcialmente tais requisitos, ou, mesmo, atender a um e não a outro? Intrincadas entre
si, quer o autor explicitar, pela direção inversa, que a superação de um princípio (aristotélico) de
terceiro excluído, permite-nos também contemplar a face de realidades e objetos múltiplos e, de-
correntemente, a produção de um conhecimento inclusivo e complexo.

Essa é a caracterização, por excelência, de uma matriz TransHumanista que agrupa em


seu território, numa mesma espiral de consciência, organizações e estruturações diversas (v.g,
dimensões pré e trans-pessoais; WILBER,1982). Destarte, são inócuas, para essa abordagem
psicológica de cunho eminentemente TransDisciplinar, as tentativas de conceituar o homem como
persona, (ou) ego, (ou) matéria, (ou) mamífero, (ou) constelação de arquétipos, uma vez que a
regência complexa de terceiro incluído, abriga diferentes – e, às vezes, “contraditórias” – camadas
e movimentos do real.

83
Do ponto de vista de uma corrente tipificada como Humanista, temos evidências para quali-
ficar sua prática, em vários aspectos, como sendo de base complexa e de terceiro incluído – um
exemplo disso seriam experiências de sintonia e ressonância aos campos formativos do universo.
Entretanto, seu objeto permanece afiançado a uma única realidade, qual seja, aquela da experiên-
cia humana – ainda que esse objeto, a “experiência” seja, por vezes, de uma magnitude excessiva
aos crivos de razoabilidade da Ciência. É verdade que a experiência comporta inúmeras qualida-
des, atitudes, percepções, além de interpretações técnicas diferenciadas – entretanto, todas sob a
referência de um mesmo objeto comum de trabalho.

Esta aparente contradição, que se postula enquanto complexa e inclusiva, mas não permi-
te variabilidades do seu objeto e enfoque, só é possível, exatamente, na superposição de aportes e
conceitos de projetos distintos do conhecimento, convergidos numa base comum interdisciplinar.
Fora dessa permissão operativa, restar-nos-ia argüir não apenas a incompatibilidade entre inclu-
são-complexidade e adesão de um objeto restrito, bem como a impossibilidade de uma manifesta-
ção de terceiro incluído.

E caso estejamos a considerar as implicações epistêmicas dessas afirmações, é necessá-


rio também explicitar que, por uma exigência mesma de acolhimento congruente das vozes emer-
gentes de saberes plurais e das perspectivas múltiplas de conhecimentos, uma formulação Trans-
Disciplinar implica, necessariamente, a adesão de uma Epistemologia do Sul, conforme a denomi-
nou Boaventura de Sousa Santos (SANTOS; MENESES, 2009).

Longe de assertivas geográficas, Boaventura observa que as tradições científicas de Sabe-


res do Norte asseveraram imperativos e mecanismos de controle rígidos (e parciais à manutenção
de colonialismos e pós-colonialismos mentais) na fabricação de conhecimentos insinuosos às suas
formas ideologicamente legitimadas do que poderia ser tomado como um procedimento hegemoni-
camente “verdadeiro”.

Não quer essa constatação sugerir que todo o saber TransDisciplinar baseie-se, necessa-
riamente, em uma Epistemologia do Sul, e que todo processo de conhecimento In-
tra/InterDisciplinar fundamente-se, obrigatoriamente, em uma Epistemologia do Norte – é possível,
sim, a formulação de saberes contra-hegemônicos ainda que sob o escopo reduzido disciplinar ou
intradisciplinar. Não se quer, ademais, inferir que todo saber TransDisciplinar requisite, em absolu-
to, uma base teórica TransHumanista – ainda que o inverso seja correto.

Entretanto, mais do que qualquer outro Saber Psicológico em Psicoterapia, as práticas da


Psicologia TransHumanista e seu Campo histórico de Quarta Força, diferentemente das modula-
ções promovidas no bojo da Psicologia Humanista, convocam-nos às diagramações dissipativas,
às interrelações que forçam a ruptura sistemática de paredes, das fronteiras e das vizinhanças –
sem as quais não alcança sua natureza metodológica de existir: “(Artigo 2) (...) Toda tentativa de

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reduzir a realidade a um só nível, regido por uma lógica única, não se situa no campo da trans-
disciplinaridade” (FREITAS; MORIN; NICOLESCU, apud WEIL, 2002, p. 112-13, grifo nosso).

Qualquer interpretação de fundo TransHumanista, que seja capaz, por exemplo, de acom-
panhar e categorizar alguns dos movimentos terapêuticos que estão descritos na Cena 2, pare-
cem, no lastro desse argumento exposto, conspirar no sentido de uma matriz de conhecimento
potencialmente mais diversa e robusta, concomitantemente inspirada em várias disciplinas outras.

Sendo, portanto, de tal modo interdependente de um leque de conhecimentos cujas raízes


são não-coincidentes – e, por vezes, tradicionalmente tomadas como não-superpostas, podemos
observar que: “(Artigo 3) (...) A transdisciplinaridade não procura a maestria de várias discipli-
nas, mas a abertura de todas as disciplinas ao que as une e as ultrapassa” (FREITAS; MORIN;
NICOLESCU apud WEIL, 2002, p. 113, grifo nosso).

Também não se trata, ainda, de afirmar que, em sendo originário de uma Epistemologia do
Sul, os saberes TransHumanistas devam apresentar-se, essencialmente, como Saberes Comple-
xos – é possível formular saberes contra-hegemônicos que não tenham uma matriz de complexi-
dade. Linearidade ou complexidade não são, invariavelmente, as estacas nessa demarcação. Nas
palavras do sociólogo crítico, as matizes Conhecimento do Sul emprestam-se como metáfora para:

... um encontro de perspectivas apostadas em unir tudo o que a ciên-


cia moderna separou, a natureza da sociedade, o sujeito do objecto, as discipli-
nas das disciplinas, a arte da ciência, a ciência dos outros saberes, o conheci-
mento da sabedoria (...) cientes de que são diferentes maneiras de dizer o que
só é dizível de maneira diversa. Esse quid, só diversamente dizível, é a per-
plexidade perante uma perda aparentemente apenas feita de ganhos, uma es-
cassez abissal feita de abundâncias que, de repente, parecem extravazar de um
vazio para outro ainda maior (SANTOS, 2008, p. 7, grifo nosso).

E quais seriam, se é que haveriam, “critérios” objetivos, de uma única disciplina validada,
que nos assegurariam a legitimidade possível de uma base TransDisciplinar? Como verificar sua
correição ou adequação às nossas demandas? Ora, em sendo as Vozes do Sul, as Vozes decor-
rentes das práticas múltiplas dos Povos, é razoável entender os TransHumanistas trazem um novo
estatuto transdisciplinar de vida possível, refratário do imperialismo tecnicista, contrário à superfici-
alidade privatista da vida industrial e hiperindividualizada, avessos ao desencantamento sistemáti-
co alavancado nos séculos XVII-XXI.

Argumentar-se-ia que: “(Artigo 8) a dignidade do ser humano também é de ordem cósmica


e planetária (...) O reconhecimento da Terra como pátria é um dos imperativos da transdisciplinari-
dade” (FREITAS; MORIN; NICOLESCU apud WEIL, 2002, p. 114). Porém, também nos Humanis-
mos recentes, observa-se educação pela paz, ativismo ecológico e compromisso transcendente,
fala-se de Universo e de crescimento, de redes e de Organismos interligados. Os grandes eixos da

85
Inteireza, da Vida-Boa, do Funcionamento Pleno, das Pessoas do Amanhã são questões absolu-
tamente legítimas, por exemplo, numa formação em Abordagem Centrada na Pessoa.

Onde residiria, portanto, a diferença marcante, ao considerarmos que também os Humanis-


tas dos Tempos de Hoje (CAVALCANTE JR.; SOUSA, s/d) reconhecem a influência difusa não
apenas de processos não-conscientes de fundo pessoal e coletivo-arquetípico, mas, também, a
interferência de campos orgânicos e inorgânicos (cósmicos, telúricos, sutis, presenciais etc), atra-
vés de Tendências Atualizante e Formativa, que fecundam os processos individuais e grupais
(CAVALCANTE JR.; SOUSA, 2008)?

A noção de Tendência Formativa, por exemplo, é igualmente uma Epistemologia do Sul de


base Humanista, uma voz de emancipatória, uma língua fora das violências de homogeneização
impostas – em ambos, no Humanismo e no TransHumanismo, desde sua origem histórico-
umbilical, esse foi um traço marcante. Talvez não em todos os ditos Humanismos que se populari-
zaram, bem como não em todos os ditos TransHumanismos que se multiplicaram, mas, fundamen-
talmente, uma Epistemologia do Sul, em suas origens gêmeas, em nossos sinais de nascença
psicodélicos e contraculturais – para ambos, em um solo californiano do passado e nas investidu-
ras do presente originárias daquelas raízes.

Se for verdade, por um lado, que a Psicologia Humanista foi capaz de trabalhar com o Or-
ganismo e os Fluxos da Organicidade Humana, é também verídico sublinhar que a Psicologia
TransHumanista inaugurou uma reflexão singular em termos de Estações Organísmicas, de pro-
cessos que não foram “humanistas” ainda que os impliquem em suas contingências.

Se, em ambos, o Humano foi desterritorializado de um Antropocentrismo Cognitivo e Ra-


cional, a Psicologia Humanista mergulhou-se nas redes e facetas dessa Organicidade que está
inserida na Vida, enquanto que a Psicologia TransHumanista apresentou-se os Ciclos mesmos
dessa Ecologia de Movimentos Cósmicos mais largos.

Em sendo confiável a hipótese argumentada nesse ensaio, um saber TransHumanista, di-


ferente, então, de uma formulação do Humanista, distingue-se nem tanto pelo (mesmo) objeto-
irmão/aproximado de sua reflexão, ou pelo (mesmo) contexto histórico de sua origem, porém, e
sobretudo, pelo efeito ou pelo encaminhamento que imprime às experiências humanas. Qual seja,
neste segundo, a experiência humana é conduzida e desdobrada na relação dialógica entre gradis
de uma ou de outra disciplina, enquanto que no primeiro, são os conhecimentos que são dissolvi-
dos nos aspectos mesmos da experiência humana.

Em outras palavras, na Psicologia Humanista, por exemplo, a partir de um prisma In-


tra/InterDisciplinar, centrar-se na experiência humana quer dizer compreende-la (os circuitos e
expressões da vida que nos perfazem humanos) a partir de conhecimentos (estabelecidos ou não)

86
que a ela sejam compatíveis (entretanto, os conhecimentos não estão suscetíveis a fusões ou im-
plosões).

Na Psicologia TransHumanista, por sua vez, sob uma perspectiva eminentemente Trans-
Disciplinar, são os conhecimentos que são magnetizados e imantam-se na seiva e na variedade de
experiências (portanto, as quinas experiênciais, de uma forma geral, não são deixadas de lado, na
medida em que recaem sobre os conhecimentos e as instituições o exercício de uma permanente
flexibilização e recriação).

Ambos os fluxos experienciais, seja na Psicoterapia Humanista ou na Psicoterapia Tran-


sHumanista, podem alargar-se para muito-além do óbvio plasmado nas categorias sociais disponí-
veis, entretanto, no primeiro, as adjacências desse conceito do “Humano” (em suas acepções de
Organismo, Fluxo Experiencial, Campos Regulatórios, Atualizantes e Formativos etc) obrigam-nos,
como psicoterapeutas e pesquisadores, a adaptar-se e dialogar com os diferentes saberes dispo-
níveis em um dado contexto cultural e histórico acerca desse “Humano” instituído.

Em um Saber TransHumano, dada a oportunidade de não se restringir a um objeto anteci-


pado (somente ao “Humano”, por exemplo), os diferentes Saberes tutelados por esse guarda-
chuva epistêmico usufruem da possibilidade de conceber feixes experienciais em recortes que,
tradicionalmente, estão inseridos no aquém, no além e naquilo que não é mais humano – ainda
que a ele, o humano, relacione-se.

Para que Maslow (s/d) permaneça correto em sua observação de que a Psicologia Huma-
nista é uma fase ou uma etapa que estaria inclusa no TransHumanismo, precisaríamos de hercú-
leas adequações de mão-dupla: para o Humanismo, o desenvolvimento de uma capacidade de
suportar o movimento e o desequilíbrio para suas certezas e vocações consolidadas, a partir de
um Saber TransDisciplinar com suas finalidades e a pertinência do mesmo para o enfrentamento
de questões da urgência social e planetária; para o TransHumanismo, a sabedoria e o desafio de
conseguir acolher e desdobrar-se junto às facetas dos conhecimentos de base Humanistas que
apontam silhuetas disciplinares da técnica, do rigor, da consistência e da coerência como categori-
as a serem consideradas no mar aberto de inovações experienciais.

Fundamentalmente, a Psicologia Humanista parece desacelerar os movimentos de amplia-


ção TransHumanista em vista de acompanhar os procedimentos e registros metodológicos – cate-
gorias importantes, sobretudo, no diálogo com as instituições e as sociedades ocidentais vigentes
– enquanto que a Psicologia TransHumanista parece instigar o Humanismo a considerar sempre-
novas acepções para o traduzir e comunicar os orbitais da experiência humana.

A respeito do estatuto não-sintético dessa aproximação, presente desde as origens da Psi-


cologia Humanista e TransHumanista, talvez seja emblemático registrar que nos contextos mundi-
ais da Regulação/Reconhecimento e da Regulamentação/Classificação da Psicoterapia – inclusive

87
no Brasil – é importante que os instrumentos de avaliação, os critérios de formação e de fiscaliza-
ção da qualidade na formação, produção de indicadores e monitoramento para “boas práticas”,
levem também em consideração o conjunto de diferenças explicitadas.

Sem deixar de sublinhar o fato de que a Psicologia e o exercício profissional do Psicólogo


são regulamentados pela República Democrática Brasileira (através do Sistema Conselhos de
Psicologia), estamos, outrossim, confrontados à exigência de formatar plataformas substitutivas de
análise, do ponto de vista paradigmático e disciplinar, capazes de satisfazer os postulados e práti-
cas Humanistas e TransHumanistas.

As demarcações e as referências profissionais, no que concerne a Regulamentação em


outros países nestas duas áreas, e não por acaso, foram legadas aos guetos periféricos de proto-
colos “caducos” no reconhecimento de ambas as idiossincrasias. Essa é, sem dúvida, uma contri-
buição importante, concreta e institucional, que a Psicologia Humanista e seu legado com as Teo-
rias do Pragmatismo Americano pode estender a Psicologia TransHumanista, e que estava, de
alguma maneira, imbutida na transição teórico e metodológica que Maslow imaginou.

As exigências de um Saber TransDisciplinar, longe de expectativas rígidas de validade, re-


ferência e consistência, podem atestar acerca de beleza, da proporção, do equilíbrio e da gentileza
de suas fusões, operações e intervenções. Nesse sentido, a Psicologia Humanista pode resgatar o
milagre da experiência humana de um lugar interno aos dramas e colapsos institucionais.

Portanto, a rescisão brusca desses vínculos históricos contribui apenas à marginalização


da Psicologia TransHumana no Brasil, e o enfraquecimento mútuo e gradual dos esforços Huma-
nísticos que se tornam predileção nos confrontos pelas demais disciplinas. Maslow, talvez, estives-
se certo na irmandade entre a Psicologia Humanista e TransHumanista.

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WILBER, K. Odyssey: a personal inquiry into humanistic and transpersonal psychology. Journal of
Humanistic Psychology, v. 22, n. 1, p. 57-90, 1982.

90
Capítulo 4

Método

91
Capítulo 5

Pesquisas em Consciência

92
PARTE II

CONCEITOS EM PSICOLOGIA TRANSPESSOAL

93
Capítulo 6

Transdisciplinaridade

94
Capítulo 7

Espiritualidade

95
Capítulo 8

Unidade

Gratidão,
À Vida, assim como é;
À Theda Basso, amiga generosa e profunda;
À Luciana, minha mulher e companheira querida; e
À Lara Nandini, minha filha e inspiração afetuosa para a vida
.
Olhar para o céu azul, para as nuvens altas e bem delineadas; para as
colinas verdes bem desenhadas contra o céu; para o capim viçoso e a flor mur-
cha – olhar sem nenhuma palavra de ontem, a mente completamente quieta, si-
lenciosa, não perturbada por nenhum pensamento, o observador completamente
ausente –, assim é unidade. Não é que você está unido à flor, ou à nuvem, ou
àquelas colinas arrebatadoras; é um completo não-ser, no qual toda divisão ces-
sa.

J.Krishnamurti

I
Unidade. O que é a Unidade? Pode o ser humano, envolvido nas múltiplas demandas da
vida moderna conhecer a Unidade? Cheio de compromissos, familiares, profissionais, financeiros,
emocionais, cada um a puxá-lo em uma direção diferente, fragmentando sua vida em múltiplos
interesses? Com seus muitos gostos, muitas desejos, muitas vezes contraditórios e excludentes?
Ele mesmo dividido entre o que é e o que gostaria de ser; entre o que é e o que imagina que os
outros gostariam que ele fosse; com muitos medos se sobrepondo, cada um com sua pressão,
medo de não conseguir realizar-se, medo de não ser reconhecido e respeitado, medo de não ser
amado... Pode o ser humano conhecer a Unidade? O que é a Unidade? É a união de todos os
fragmentos?

Não. Unidade não é a junção de fragmentos. Unidade não é o fim de um processo de unifi-
cação. Começamos com a Unidade. E terminamos com a Unidade. O um, inteiro. Que abrange
tudo que existe, tudo que existiu e tudo que venha a existir. Um campo de infinitas possibilidades.
Potencial criador sem limites. A totalidade. E a totalidade nunca se desfaz. A totalidade é onde
tudo acontece. É maior que a soma das partes, e não existe nada que esteja fora dela. A totalidade
não é uma coisa, como um vaso que contém todas as coisas. É um vasto movimento, sem começo

96
e sem fim, onde tudo se forma e se dissolve; onde tudo aparece e desaparece; e é sempre a
mesma totalidade. É o que é. Imutável, onde toda mudança acontece. Onde a Vida acontece, e o
inteiro permanece.

Unidade é o que veio antes e permanece depois, sempre presente. Antes do próprio tempo
e do espaço. E depois de tudo acontecer. A variedade da Vida acontece na Unidade. Vida que
aparece como um movimento perene de transformação, destruição e criação incessante. Criando e
destruindo tudo que existe. Para tornar a criar e destruir. Gerando formas e mais formas, abando-
nando-as e destruindo-as, renovando-se e inovando. Fluindo, fluindo sempre. A Vida nunca pára.
Nunca morre. Um movimento perene de transformação.

A Vida não está nas formas que gera, as formas é que aparecem na Vida. A Vida não é o
pássaro voando, é o vôo sem o pássaro, como na imagem comunicada por um amigo muito queri-
do e distante. É a respiração e circulação do sangue: é a Vida que respira na respiração; é a Vida
que circula na circulação do sangue. O sangue circulando e a respiração aparecem na Vida, como
o pássaro no vôo. A Vida veio antes. Incriada, cria tudo o que aparece e que desaparece.

Ser é o movimento sem nome e sem forma da Vida. Vida é o nome do Ser. Sem nome é o
princípio de tudo, por trás ou por dentro de tudo, a base de tudo. Com nome é criadora de tudo.
Ser é verbo infinitivo. Vida é substantiva. Ser é Pai desconhecido, e incognoscível. Vida é Mãe
criadora de toda variedade. Mas não são dois, não são muitos; é apenas Um. Inteiro. Unidade e
totalidade. Nunca deixa de Ser.

Vida aparece como mente e matéria. Um campo informacional e inteligente e um campo


substancial, plástico e inteligente. O campo mental é também chamado de campo espiritual, ou
mundo espiritual; o campo substancial é também chamado de mundo físico, ou campo material.
Ambos os campos gerados pelo fluxo de transformação perene que é a Vida. É o fluxo de trans-
formação que é desmembrado pela consciência observadora em um campo informacional e um
campo de substancia formada, ou formas. Mente e matéria atuam como pólos, embora sejam um
só campo, e essa polaridade é geradora de energia. Energia que se apresenta em um só fluxo com
dois aspectos: consciência e vitalidade. Consciência e vitalidade estão sempre juntas, mas onde
uma aparece a outra desaparece, por isso podemos dizer que a vitalidade traz a inconsciência, e
que a consciência destrói a vitalidade.

Como na tragédia de Prometeu, que reconto livremente. O imortal Prometeu, ele mesmo
um deus, roubou o fogo dos deuses no Olimpo e deu-o aos seres humanos na Terra, ensinando-os
a forjar o ferro e fazer armas e ferramentas; ensinando-os a plantar e a colher. Os deuses não
gostaram nada disso, e por esse crime Prometeu foi punido severamente. Fora ele mortal e teria
sido condenado à morte, mas sendo um deus e imortal foi agrilhoado ao Cáucaso, com correntes
de ferro, para sofrer uma tortura eterna: durante o dia uma águia vinha e comia seu fígado, à noite
o fígado se refazia; repetindo-se dia após dia esse sofrimento que parecia não ter fim.

97
Essa é uma linda imagem para o drama do fluxo consciência e do fluxo de vitalidade. Fíga-
do é o órgão da vitalidade por excelência, aproveitando as substâncias que vêm da alimentação,
separando o tóxico do nutritivo, processando açucares e gorduras, proteínas e minerais, construin-
do um plasma sanguíneo que pode nos alimentar e renovar; a noite é uma imagem da inconsciên-
cia, ao cairmos no sono e nos desligarmos dos acontecimentos externos: o fígado se refaz a noite,
na inconsciência, o corpo se renova no sono profundo. A águia é uma excelente imagem do fluxo
de consciência, com seus olhos agudos e seu bico poderoso, percebendo um animalzinho, seu
alimento, à quilômetros de distância enquanto voa nas alturas; assim como a luz do dia é imagem
da luz da consciência; a águia come o fígado, a consciência desgasta a vitalidade. Estão sempre
juntas, mas parece que onde uma está, a outra desaparece. Parecem forças contrárias. Consciên-
cia parece fluir da mente em direção à matéria; vitalidade parece fluir da matéria em direção à
mente. Mas é um único fluxo, com essa estranha característica. Talvez faça mais sentido se dis-
sermos que a consciência é o movimento perceptivo da mente; e a vitalidade é o movimento subs-
tancioso da matéria. Um só movimento que é Vida.

A Vida acontecendo cria seus instrumentos vivos. A consciência circunscreve-se, individua-


liza-se na mente como espírito; e a vitalidade circunscreve-se, individualiza-se na matéria como
corpo. Espírito e corpo não são dois, mas apenas um que aparece como dois. Espírito é mente
corporificada; é o campo espiritual corporificado, individualizado. Corpo vivo é matéria espirituali-
zada. Aliás, corpo é sempre vivo, pois quando a vitalidade o abandona não é mais corpo e sim,
cadáver. Minerais, plantas, animais e seres humanos são instrumentos vivos criados pela Vida em
seu movimento perene. O organismo humano se mostra o mais refinado dos instrumentos da Vida.
Um instrumento onde o espírito corporificado é capaz de conhecer e criar; e onde o corpo espiri-
tualizado é capaz realizar a Unidade.

A consciência circunscreve-se na mente ao dar-se conta de si mesmo. A vitalidade cir-


cunscreve-se na matéria pelo mesmo impulso, ainda que inconsciente. Esse impulso em direção à
si mesmo está presente no movimento da Vida, como um impulso à preservação em meio à trans-
formação perene. A consciência que se dá conta de si mesma identifica-se consigo mesma e se
percebe como um Eu sendo, assim individualizando-se. Por isso se diz que o espírito é o princípio
da individualidade humana, aquele que diz: “Eu sou”. A consciência de si mesmo. O “Si mesmo”
junguiano. Mas nem a consciência nem a vitalidade circunscrevem-se de fato. Apenas formam
essa circunscrição, no impulso de preservação diante do fluxo incessante de transformação.

As correntes da Vida, consciência e vitalidade, aperfeiçoam os instrumentos vivos; o orga-


nismo humano é fruto desse aperfeiçoamento. A vitalidade aperfeiçoa o sistema digestivo e produz
esse fluído tão especial que é o sangue humano, mantendo a nutrição e o calor circulante em uma
temperatura precisa, fundamentais à preservação do organismo. A consciência aperfeiçoa o siste-
ma nervoso e produz esse instrumento inigualável em sua capacidade cognitiva, ordenadora e

98
operacional que, em seu movimento contraente e desgastante, cria limites à expansão e dissolu-
ção promovidas pela vitalidade, in-formando o organismo. A consciência se serve do cérebro hu-
mano e com ele se identifica, percebendo-se como sujeito das ações e atividades corporais. Apa-
rentemente separada no acontecer da Vida.

As duas correntes juntas, sem que uma prevaleça sobre a outra, criam no organismo o seu
sistema rítmico; sangue e nervo cooperando para que coração e pulmão estabeleçam a pulsação
da Vida. O coração certamente não é uma bomba a impulsionar a circulação sanguínea, mas é
criado na circulação sanguínea como órgão perceptor e regulador da sua relação com o pulmão e
mundo externo, determinando o pulsar cardio-respiratório, o pulmão respondendo às necessidades
gasosas do sangue. A saúde orgânica é palpável no ritmo cardio-respiratório. Ritmo, relação, alter-
nância e pulsação são a dinâmica da saúde e da Vida. Onde existe a paralisação, a fixação e o
enrijecimento, aí a vitalidade não circula; onde existe a dissolução e a deformação e o movimento
e expansão aleatória aí a consciência não circula. Saúde é a harmonia das correntes da Vida, à
serviço do organismo e da totalidade da Vida.

O movimento da Vida deixa rastros: resíduos materiais e registros mentais. Cria formas e
mais formas e as abandona. A Vida nunca abandona, é a vitalidade que abandona a transforma-
ção perene, deixando formas materiais; deixando na matéria a matéria inanimada e sem vida, co-
mo memória no espaço; e deixando informações inscritas na mente como registro inanimado, co-
mo memória e tempo, a memória de seu acontecimento passado. É a própria matéria inanimada
que se acumula e cria na consciência observadora a noção de espaço; e a memória acumulada na
mente cria na consciência observadora a noção de tempo. Um campo material se distingue de um
campo de memórias. O que é apenas um novamente aparece com dois. Ambos campos inanima-
dos de resíduos, rastros do movimento da Vida, influenciando e condicionando o movimento da
Vida. Tempo e espaço e seus movimentos aparentes. O espaço inanimado tendendo à conserva-
ção e à inércia, aparecendo como base de tudo, e como substância. E o tempo aparecendo como
movimento que a tudo transforma, criando e destruindo, palco de lembranças e do esquecimento,
crenças e impregnações duradouras. A Vida acontecendo aparece à consciência como um movi-
mento no tempo, onde a morte se dá quando o movimento da Vida abandona sua forma, que as-
sim inanimada, tende ao repouso, morta, no espaço. A Vida não morre, as formas abandonadas e
inanimadas aparecem como mortas. A memória do acontecido fica guardada, registrada no tempo.
Um campo de memórias influenciando o espaço e o próprio tempo. Influenciando o acontecer da
Vida, como padrões que tendem a se repetir, e que reagem ao movimento da própria Vida.

O corpo inteiro e, em especial, o cérebro humano, sua capacidade como processador de


informações e sua capacidade cognitiva, aspectos corporal e funcional dos campos material e
mental, que são instrumentos de acesso e memória simultaneamente, traduzem as memórias em
imagens, palavras, pensamentos, conceitos e idéias, símbolos informativos com os quais se envol-

99
vem e se desenvolvem. Dá os símbolos à consciência, como uma forma de operar e se comunicar.
Uma forma de operar e se comunicar entre muitas outras. O corpo humano, ou organismo humano
é todo ele memória, processador de informações e comunicação simultaneamente, seus aminoáci-
dos e catecolaminas, hormônios, neurotransmissores, peptídeos e proteínas fazem do organismo
todo uma rede comunicadora de primeira linha. O impulso elétrico e eletrônico nervoso, e periner-
voso, transferem informação com precisão e eficiência. Sua própria forma corporal mecânica, como
estrutura geodésica, se presta à circulação e transferência de informação. Essa rede comunicado-
ra é expressão da inteligência e sabedoria universal. O corpo é instrumento e expressão do campo
de sabedoria universal.

Como todos organismos vivos, o corpo humano passa por um processo de maturação no
tempo. Não nasce pronto. Concepção, nascimento, infância, adolescência, idade adulta, velhice e
morte: é o seu ciclo vital. É o processo de maturação do organismo e em especial do sistema ner-
voso e cérebro, em seus aspectos reptiliano, límbico, hemisfério direito e esquerdo e pré-frontal,
que permite à consciência humana o seu aparente desenvolvimento, passando de uma fase pré-
pessoal à uma fase pessoal. O desenvolvimento cognitivo e da capacidade de observação da pes-
soa, aliado a um “trabalho de consciência” em si mesma, abre-a à possibilidade transpessoal.

Trabalho de consciência é a simultânea mobilização da atenção no fluxo de consciência e


da intenção no fluxo da vitalidade. Atenção e intenção mobilizadas organizam a consciência de
maneira semelhante ao que acontece com a luz no raio laser: transforma-a em um poderoso ins-
trumento de percepção e penetração no inconsciente, movendo expandindo o fluxo de consciência
por outras regiões da mente – mente que está em tudo o que existe, junto com a matéria, e é o
arcabouço informacional de tudo o que existe; isso a amplia a estados que a pessoa experimenta
como não-usuais de consciência onde muitos segredos se desvelam, e resignificações acontecem.
Conexões transpessoais podem acontecer, vindas tanto do passado quanto do futuro, no tempo
que se mostra finito e circular. Padrões ancorados em crenças impensáveis revelam-se à consci-
ência assim ativada, liberando-a de cargas que as vezes se mostram muito antigas.

O campo de memória não é pessoal, assim como as crenças e os padrões, formando um


só campo mórfico, com diversos níveis vibratórios, como campos dentro de campos dentro de
campos... A consciência contraída, centrada em si mesma, tem características vibratórias peculia-
res que a sintoniza com faixas específicas do campo de memória, e a “fecha” para o restante des-
se campo mórfico mental, onde se encontram as memórias e informações de tudo que existiu e
possivelmente existirá, criando uma ilusão de linhas de continuidades e de que uma mesma indivi-
dualidade espiritual continua a existir através de muitos nascimentos e muitas mortes. Mas nada
disso é individual ou pessoal. Embora a isso se dê o nome de natureza transpessoal da individuali-
dade. Assim como os padrões mórficos, que podem ser chamados de padrões kármicos, também
não são individuais e pessoais. Os padrões kármicos são campos específicos dentro do campo

100
maior, com enredos específicos; cada vez que a consciência se sintoniza com esses enredos, ela
sofre a influência e cumpre esse karma. Toda e qualquer pessoa está sujeita a cumprir esses pa-
drões kármicos, desde que vibre sintonicamente com eles.

O trabalho de consciência permite que esses padrões se revelem e percam sua carga con-
dicionadora do fluxo de consciência e vitalidade. Em geral se encontram impregnados em cada
nível da manifestação humana, espírito, alma e corpo, condicionando e limitando o fluxo da Vida,
distorcendo a vitalidade e a consciência, levando às mais diversas patologias, sejam do organismo,
sejam nos grupos, atingindo a sociedade e suas instituições, assim como o todo da cultura; o que
por sua vez atua sobre a consciência e sobre a vitalidade intensificando as distorções e patologias,
como num círculo vicioso. O trabalho de consciência que é um trabalho simultâneo de vitalidade e
consciência, permite a interrupção desses círculos viciosos e até a instalação de círculos virtuosos.
Mas é preciso entender os limites desse trabalho, senão estaremos vendendo, ou comprando, gato
por lebre. Nenhum trabalho nos levará à Unidade, simplesmente porque nunca saímos da Unida-
de, apenas acreditamos que estamos fora dela, pela circunscrição corporal e espiritual, pela cons-
ciência identificada consigo mesma e com o corpo. O trabalho de consciência, como o estamos
chamando aqui, pode levar a consciência a se desidentificar de todos os objetos e crenças, produ-
zindo uma vida aparentemente muito mais confortável e eficiente, mas não pode ajudá-la a desi-
dentificar-se de si mesma, uma vez que é realizado pela própria consciência identificada consigo
mesma. Como Ken Wilber falou em seu “A Consciência sem Fronteiras” (1991): “É por isso que
tudo que se tenta fazer, ou não fazer, é enganoso, e representa apenas mais resistência e mais
separação. Tudo que o indivíduo faz é enganoso porque ele o está fazendo. Seu eu é resistência
e, portanto, não pode por fim à resistência”. Além do que, “podemos levar o cavalo à beira dágua,
mas não podemos fazê-lo beber”, segundo bom senso popular.

A desidentificação da “consciência identificada consigo mesma” de si mesma é a morte da


identificação, a morte de si mesma, não como consciência, mas como si mesma. É a morte do eu.
Morre a individualidade e o individualismo, o ego e o egoísmo. Morre o eu, morre o espírito, “morre”
o corpo como instrumento do espírito. O corpo continua vivo como instrumento da própria Unidade.
Ainda que se continue usando a palavra “eu” para referir-se aos atos da “pessoa”, ali não há ne-
nhum sentimento, nem crença, de ser um eu. Iluminado pela Unidade, em plenitude e graça. Nin-
guém alcançou a iluminação; não existe ninguém ali. Só a Unidade existe. Até que um dia o corpo
morre, e tudo acaba, pois o que ali vive, está fora da roda de nascimentos e mortes, está fora da
roda do karma, fora do tempo e do espaço. A Vida vive ali, sem ninguém vivendo ali: Ser essencial
(lembre-se: verbo infinitivo). Unidade.

Essa a vivência de Jiddu Krishnamurti (2005), nosso contemporâneo, assim expresso em


seu poema “A Busca”, de 1927, aos 32 anos de idade:

Desde a própria fundação da Terra,

101
O fim de todas as coisas,

Eu sempre soube.

Olha! Chegou a hora,

a hora que eu sempre soube.

Liberto eu sou,

Livre da vida e da morte.

Dor e prazer não me pegam mais

Desapegado sou em afeição.

Além do sonho dos deuses eu sou.

Simples como a folha tenra eu sou.

Em mim estão muitos invernos e muitas primaveras.

Assim como a gota de orvalho é parte do mar,

assim eu nasci

no oceano da libertação.

Assim como o rio misterioso

Entra no mar aberto

Assim eu entrei

No mundo da libertação.

Este é o fim que eu sempre soube.

E continuou vivendo por mais 60 anos até morrer em 1986. Aquilo que ficou conhecido
como “seus ensinamentos” aconteceram nas inúmeras palestras, livros, encontros e diálogos que
ofereceu durante esses anos; falando sempre o mesmo essencialmente, que “a verdade é uma
terra sem caminho” e preconizando o que entendia como “única revolução” (Krishnamurti, 2001)

102
com uma paciência infinita, e uma delicadeza e atenção para com todos os seres vivos e inanima-
dos.

II
A consciência é uma função da mente na matéria. Função de percepção e experimentação
e registro. Não existe por si mesma, mas apenas como função. Consciência é o movimento que
separa, ao cindir o acontecer com sua luz distintiva, e sua capacidade de circunscrever-se em si
mesma, criando a noção de “si mesma” e aparecer como consciência de si mesma. Quando nos
perguntamos pela Origem de tudo, é fácil projetarmos a gênese como gênese pela consciência.
Contemplamos o vasto movimento da totalidade, sem começo e sem fim, projetamos e encontra-
mos a grandiosa imagem do vasto movimento da totalidade aparecendo como mente e matéria
simultaneamente, semelhante à luz, que é uma só, um fluxo só que aparece simultaneamente co-
mo onda e partícula; consciência e vitalidade simultaneamente; o vasto movimento circunscreven-
do-se sobre si mesmo, dando-se conta de si mesmo, tornando-se consciente de si mesmo, como
um Deus criador que aparece no movimento indistinto da totalidade criando uma bolha de consci-
ência de Si mesmo onde todo universo aparece, com todas suas criaturas. Um gesto autocriador
magnificente que faz surgir Brahman em Parabrahman, para os hindus; faz surgir o Tai Chi no Tao,
para os taoístas; faz surgir o Cosmos no Caos, para os gregos; faz surgir o Deus criador em Deus
sem nome e sem forma, para a cultura judaico-cristã; faz surgir a Vida no Ser, essencialmente
falando. É claro que não aconteceu assim, pois não houve um começo lá atrás, distante no tempo.
Nada começou. A Origem é a consciência observadora que imagina ao contemplar a imensidão
sem começo e sem fim. Imagina, assim como faz tudo o que faz: para não desaparecer imediata-
mente.

Ao circunscrever-se em si mesma, a consciência aparece como sujeito de ações sobre ob-


jetos. Onde temos um só, aparecem três distinções: sujeito, ação, e objeto. Ação pura, sem sujeito
e sem objeto, infinitiva e eterna, aparece como ação limitada de um sujeito sobre um objeto, pro-
duzindo consequências. Unidade aparece dividida, e a multiplicidade se apresenta à consciência
observadora identificada como sujeito. O sujeito observa suas ações e suas consequências. E
julga, e julga-se também. Viver se torna um problema. A busca se inicia. Busca sua origem, a Fon-
te! Fonte de tudo é a Unidade, sempre presente. O sujeito consciente de si mesmo, e por isso se-
parado, busca a Unidade. A consciência busca a Unidade perdida. Ela própria a cisão. Tudo se
torna uma questão pessoal. Méritos e créditos se contrapõem à dívidas e culpas. Crime e castigo
aparecem concomitantemente.

A consciência se recorta no fluxo da Vida contraindo-se, identificando-se e isolando-se na


mente e na matéria, ao se dar conta de si mesma, e esse é seu pecado original. Parecido com
uma bolha de ar que se forma dentro da água, uma bolha de consciência no fluxo da Vida. Tam-

103
bém recorta o fluxo da Vida ao se deter em algum fenômeno em especial, separando-o do fluxo
vivo onde acontece, como quando arrancamos uma árvore da terra, ou arrancamos um peixe da
água. Como compreender uma árvore sem a terra onde está plantada e sem o ambiente que a
envolve? Como entender um peixe fora dágua? A consciência recorta os fenômenos, estabelecen-
do começos e meios e fins. A consciência enxerga mundos no Universo, cria níveis de expressão
de si mesma, com suas exigências e necessidades. Cria complexidades e se embriaga de si mes-
ma. Quer ser a totalidade, quer ser a solução final. Não é. É o fator divisivo e separatista. O olhar
da consciência identificada consigo mesma se separa no Universo; separa-se na Unidade, aparen-
temente fragmentando-a. E perdendo-a. A culpa atávica que carrega desde a sua origem. E o iní-
cio de toda busca, que não é senão a busca da Unidade; a busca da religação com o Todo ou
Deus, a busca de Deus, do ser essencial. Brahman em busca de Parabrahman; Tai Chi em busca
do Tao; o Cosmos em busca do Caos; a Vida em busca do Ser.

Acreditamos que não vivemos na Unidade porque vivemos isolados na consciência de nós
mesmos. Na consciência buscamos a Unidade “perdida”; e nesse jogo nos enredamos entre dores
e prazeres. Sofremos.

A busca da consciência que se separou é a busca da Unidade perdida. A busca humana


de felicidade e completude. A consciência pessoal se sente separada do Todo. E busca sua rein-
tegração, sua religação. Nunca encontra. Presa de condicionamentos genéticos, ambientais, soci-
ais e culturais, vive em insatisfação permanente, entre crenças e fantasias, com momentos fugazes
de contentamento e sensação de plenitude; em conflitos e lutas internas e externas. Sempre a
sensação de insuficiência, querendo ser o que não é, mas que acredita que deveria ser. Sem sa-
ber o que é. Achando que se fosse outro, aí sim, seria feliz. Desconhecendo-se a si mesma. Dese-
jos e medos norteiam e desnorteiam seu estar no mundo. Mal estar.

Com as palavras, a consciência tateia o absoluto, que não cabe nas palavras. Aponta para
algo intangível e incognoscível; aponta para o desconhecido na esperança de capturá-lo. Aponta
para o invisível, na esperança de torná-lo visível. Quer conhecer, quer saber, acredita que sabendo
chegará lá; a separação se tornará Unidade.

Sem palavras a consciência escuta o sussurro, e respira o perfume disso que anseia pro-
fundamente. Ouve a voz do Silêncio. Mas as mãos continuam vazias. “E quando vou tirar o papel
de prata, que é de folha de estanho, deito tudo ao chão, como tenho deitado a vida” canta Fernan-
do Pessoa pela voz de Álvaro de Campos em seu poema “A Tabacaria”.

Algo nunca acontece; algo sempre falta acontecer; algo sempre permanece desconhecido.
Por mais que nos esforcemos e empreguemos nossos recursos materiais, mentais e econômicos,
nosso tempo e disposição investigativa, nossa mística, nossa religião, nossa ciência e tecnologia: o
desconhecido permanece. Intocável. Por mais que nessa busca muita coisa se revele, e o poder
de controlar fenômenos e eventos aparentemente se amplie; por mais que um avanço tecnológico

104
se estabeleça, gerando confortos e ameaças sem precedentes, o mistério permanece. Desvenda-
mos segredos que se mostram apenas parciais, nunca abarcam a coisa toda. O mistério permane-
ce.

Mistério é o abismo intransponível para a consciência que apareceu e se separou em si


mesma, fendendo a unidade em dois, criando-se e criando o criador e a criatura. Criando o obser-
vador e a coisa observada. Criando mundos dentro de mundos, criando o tempo e o espaço. Sepa-
rando mente e matéria. Separando espírito e alma e corpo em uma aparente multidimensionalida-
de.

A entidade humana tem sido compreendida desde tempos muito antigos como cidadã de
três mundos, ou de três dimensões: corpo, alma e espírito. No que discorremos acima temos um
esboço do que corpo e espírito significam, mas e a alma? O que é alma? Psicologia é a ciência da
alma. Psique é a palavra grega para alma. Alma vem do latim anima. Mas o que é isso que os gre-
gos chamam psique e os latinos anima?

O que é esta "coisa"? Até o século IX a Igreja Católica reconhecia o ser humano como um
ser trimembrado, compondo-se de corpo, alma e espírito. Por "alma" entendia aquilo que existia
entre o corpo, estrutura física como a conhecemos, e o espírito, a consciência individualizada, o
"Eu sou". Falava-se então que imortal era o espírito, e o espírito habitava um corpo mortal. Desse
encontro entre o imortal e o mortal, surgia, como que entre os dois, a “coisa” chamada alma, onde
se reconheciam todos as sensações e emoções, os sentimentos e pensamentos, idéias e ideais;
os medos e os desejos, as simpatias e as antipatias.

Depois disso, a Igreja deixou de ver o ser humano como trimembrado, passando a vê-lo
apenas como alma e corpo, ou espírito e corpo; sendo que as palavras "alma" e "espírito" passa-
ram a ser como que sinônimas, designando uma mistura de espírito e alma, sendo vista como a
parte imortal e imaterial do ser humano e também onde vivem as sensações e emoções, os senti-
mentos e pensamentos, as idéias; os desejos mais abjetos e as aspirações mais nobres; e sobre-
tudo o medo.

A alma, consciente da separação, busca sua integração com Deus. A chamada evolução
da alma é seu encontro com Deus, visto como a Unidade. Evolução ascendente é o caminho da
alma na sua peregrinação à Deus. A totalidade caiu e se espedaçou em níveis dentro de níveis, no
que se chama a involução do espírito, ou causação descendente. E a vida na terra é a sua escola
de aprendizado e evolução. Entre o Bem e o Mal ela busca o Bem. Entre o certo e o errado ela
busca o certo. Pois o Deus é visto e entendido como supremo Bem, sempre certo. Mas é Deus a
Unidade? Não. A Unidade inclui tudo, o certo e o errado, o Bem e o Mal. Deus é o supremo espírito
ou “Anima Mundi”, Alma do Mundo, o supremo Ser substantivo, que orienta a evolução da alma em
sua direção. A consciência centrada em si mesma e sua projeção linear: primeiro um movimento

105
descendente e depois outro movimento, desta vez ascendente, chegando no fim ao ponto de parti-
da.

O fato é que a alma nunca evolui. Evolução da alma é o que reza o Pai Nosso: fazer se-
gundo a vontade de Deus – infinitivo –, aceitar o pão de cada dia como nos é dado, e perdoar dívi-
das e devedores. Ou seja: não separação; ou melhor: Unidade. A Alma flutua entre pólos, entre o
corpo e o espírito, e julga um mais importante do que o outro, entendendo o espírito como a evolu-
ção do corpo: o corpo evoluído se torna espírito; e entendendo corpo como espírito decaído, invo-
luído. Assim, quando predominam as sensações, a alma é tida como menos evoluída, já que sen-
sações são bastante terrenas e carnais; quando predomina a consciência a alma é tida como mais
evoluída, uma vez que consciência é a “substância” do espírito, pois já entendemos que o que é
chamado de espírito é uma circunscrição de consciência na mente, é uma individualização da
consciência. Às vezes a alma é mais racional, às vezes é mais sentimental, e isso muitas vezes é
também avaliado como mais ou menos evoluído: a razão tendendo à consciência e ao espírito, por
isso mais evoluída; e o sentimento tendendo às sensações e ao corpo, por isso menos evoluído.

A alma existe entre opostos, que longe de se excluírem, complementam-se uns aos outros;
mais do que complementos, vivendo a separação, não se dá conta que espírito e corpo são Um só,
parecendo dois. A alma não é senão “um corpo” de reações, com sua existência entre espírito e
corpo tidos como opostos. Sonhando ser espírito e negando o corpo, pois toma o espírito como o
essencial e mais alto que pode chegar; acredita e identifica o espírito como se ele fosse a unidade;
orienta-se para o “Eu sou” espiritual que considera o supremo bem, ou Unidade, e coloca para si
mesma, como meta da evolução, o desaparecimento do seu pólo inferior, mais próximo do corpo,
para o predomínio final e definitivo do pólo superior, o mais próximo do espírito. O que nunca vai
acontecer. Pois ela existe entre espírito e corpo, vive da tensão entre os opostos. Opostos cujos
pólos não existem um sem o outro. Um aparece como bem e o outro aparece como mal, de acordo
com o ponto de vista que julga; se um é o certo, o outro deve ser o errado. Mas bem e mal são
irmãos siameses. Certo e errado são gêmeos univitelíneos.

O verdadeiro “estado evoluído da alma” é o desaparecimento simultâneo de ambos os o-


postos, na percepção da verdade sobre espírito e corpo, a percepção e vivência – que não é o
mero entendimento intelectual – de que são apenas dois aspectos do Mesmo, ou seja, da Vida.
Essa realização é o fim da contradição interna e o desaparecimento da própria alma; é o “aniqui-
lamento da alma” (Porete, 1993), realizando assim a Unidade, cuja expressão é o amor e a paz. A
busca do desaparecimento de apenas um dos pólos, para prevalecer só o pólo “bom”, como gosta-
ria a alma, é o engano que assegura a permanência da divisão e separação entre espírito e corpo,
e conseqüente permanência da guerra de opostos – a própria alma. Além do que, isso é impossí-
vel de acontecer; e o que vemos é o ser humano cometendo sempre os mesmos crimes, contra si

106
mesmo e contra seus irmãos, contra o ambiente e contra a sociedade, em toda a extensão da His-
tória conhecida.

Expressão disso é o fato de nunca deixarmos de guerrear uns com os outros, seja porque
nossa oferenda não foi aceita, como no caso bíblico de Caim e Abel; seja para conquistar o que
queremos do outro, terras, riquezas, hegemonia e poder; ou pelo “bem” dos nossos protegidos. Os
motivos variam mas as guerras são sempre iguais, matança e destruição para nada, como nos
casos históricos de Napoleão, Hitler e Bush, por exemplo. Caim matou Abel nos tempos Bíblicos
de antanho, e continuamos matando do mesmo jeito, pelos mesmos motivos: o meu, o seu, o dele!

Desde que o mundo é mundo fazemos guerras; guerras santas, guerras profanas, guerras
conquistadoras, guerras punitivas, guerras! Cujo resultado é sempre expressão de desentendimen-
to, intolerância, ressentimento, ódio, medo, violência e destruição; expressão de uma convivência
tornada impossível, pedindo a exterminação do outro, do que não é eu. Coisa da alma por exce-
lência; a consciência de si mesmo intolerante para com o que não é si mesmo. Um pólo querendo
a extinção do outro. Nunca a extinção mútua, mas certamente levando à destruição mútua. O jogo
dramático da comédia de erros e enganos. Jogo das paixões humanas. Que também nos levam a
idolatrar as oposições e a buscar o pólo oposto em busca da Unidade perdida, em busca da com-
plementação, do casamento ideal, da satisfação plena de completar-se no tempo, do gozo assegu-
rado da companhia certa, que aparentemente faz de “mim” um inteiro. Assim, com sorte, encon-
tramos conforto e contentamento, mas nunca a Unidade. Onde estou eu, consciência de mim
mesmo, não existe Unidade, embora eu, consciência envolta em si mesma, mim mesmo, pareço
uma unidade. Mesmo que eu esteja feliz. Isso só me faz aparentemente mais tolerante, compreen-
sivo, solidário, cooperativo e até compassivo, mas contrarie-me e você verá do que sou capaz!

A consciência individualizada existe nessa guerra ou brincadeira de opostos. Espírito e


corpo. Luz e Trevas. A matéria a caminho do espírito; a sombra que se iluminará! Cada vida terre-
na vista como uma experiência da alma para superar seus erros e enganos. Tentará de tudo. Cria-
rá leis e procurará organizar tudo. Identificará o Bem e o Mal, o certo e o errado, e legislará e fará
acordos, para exterminar o mal e o errado; corromperá se achar necessário; não poupará esforços
nem recursos, tudo para prevalecer o bem e o certo. Criará normas sociais de convivência e punirá
os infratores. Estabelecerá regras e dogmas, e viverá entre crenças e prescrições do que é certo e
do que é errado. Sempre em guerra e competição, competindo por tudo que enxergue como impor-
tante, mas ansiando por um mundo melhor, um mundo onde predomine a cooperação, a solidarie-
dade, a compaixão e a paz, que a alma enxerga como possível no dia futuro em que todos enxer-
garão a verdade e o certo prevalecerá sobre o errado e o Bem prevalecerá sobre o Mal, inaugu-
rando uma era de ouro que durará eternamente. Um pólo prevalecendo sobre o outro. “O impossí-
vel tão estúpido como o real”, como diria o mesmo Fernando Pessoa novamente pela escrita de
Álvaro de Campos, no mesmo “A Tabacaria”.

107
III
Unidade se mostrou uma vez, sem que eu tivesse feito alguma coisa para isso. Tinha de-
zoito anos, talvez dezenove, estava guiando meu fusca na marginal Pinheiros em São Paulo,
quando desapareci completamente, não mais havia eu separado, eu era tudo, tudo; o fusca, o es-
pelhinho, os carros que passavam, o terreno baldio ao lado cheio de mato crescendo viçoso, o
canteiro central, o viaduto, o rio Pinheiros, o céu poluído, os pássaros, os edifícios e além. Não que
“eu” fosse tudo, ou que tudo fosse eu; na verdade tudo era Um só; e sempre fora assim, eu é que
nunca tinha visto; não era eu, era uma única força por trás de tudo; muitas coisas diferentes, ani-
madas e inanimadas, e uma única força que impulsionava tudo, que estava por dentro e por fora
de tudo, todas as coisas nessa força, ou melhor, um único movimento aparecendo como a infinida-
de de coisas diferentes. Esse movimento era uma Presença que abarcava a totalidade, onde tudo
acontecia e nada estava acontecendo de fato.

Havia consciência, mas não consciência de mim mesmo como entidade separada, como
pessoa observando esse movimento; havia apenas o movimento e a consciência era o próprio
movimento. A consciência não estava no corpo, na cabeça, estava em tudo, inclusive no corpo.
Havia o corpo, mas não era o “meu” corpo, era um corpo vivo, entre tudo o mais igualmente vivo. A
mesma força que o vivificava, vivificava tudo o mais. Era uma coisa só. Mas não era “uma coisa”,
era apenas movimento. Um vasto movimento sem causa. Um campo imenso onde tudo pareci
existir. O tempo desapareceu, e todo movimento desapareceu com ele, ficando só Presença, sem
eira nem beira. Consciência e vitalidade eram apenas aspectos, que não pertenciam a ninguém, e
faziam parte, ou melhor, apareciam na Presença, que a tudo abarcava. Nada era pessoal, indivi-
dual, era um único campo; havia distinções no campo, como sub-campos por assim dizer, mas isso
não fazia daquilo multiplicidade; como a luz, por exemplo, que “contém” todas as cores, mas é uma
“única” luz. Não existiam coisas separadas, tudo era apenas Presença. E plenitude. Unidade.

Eu não tinha palavras para descrever o que ocorrera então; as palavras vieram com os a-
nos, embora a compreensão tenha sido imediata. Não é preciso dizer que minha vida deu uma
guinada de 360º, ou seja, continuei o mesmo e fazendo as mesmas coisas por fora, mas por dentro
era totalmente outro, para nunca mais ser o mesmo, sendo o que sou desde então. Embora eu
tenha reaparecido, como um eu que se percebe como que separado do resto, embora fale de mim
como de uma pessoa, e tenha sentimentos pessoais em muitas ocasiões, nunca mais pude acredi-
tar na separação como realidade, nem no sentimento de separação que a “consciência de mim
mesmo” produz, nem me deixar enganar pelas sutilezas e armadilhas dessa ilusão de ser a mim
mesmo.

Desde então compreendi a Unidade como a Realidade comum a todos nós. A Realidade
que não aparecia para a consciência identificada consigo mesma. Para a consciência de mim
mesmo, o eu, o mim, a realidade eram os objetos do mundo, as plantas, os animais, o mundo mi-

108
neral, os seres humanos, os relacionamentos, as emoções e sentimentos, os pensamentos e idéi-
as, os relacionamentos, a cultura, os valores, as religiões, as escolas, os negócios, as profissões,
os bens de consumo, o conhecimento, títulos, posições, dinheiro, a busca incessante de felicidade
e prazer, e a própria consciência de mim mesmo, eu. Com a revelação da Unidade, no desapare-
cimento da consciência de mim mesmo, vi que o que considerava realidade não era senão aparên-
cia e efemeridade, e entendi o que os hindus queriam dizer quando diziam que o mundo e as coi-
sas do mundo eram Maya, ou Ilusão.

Quando o eu desaparece, o que surge é o que sempre esteve presente, por isso podemos
chamar de “Presença”. Presença é isso. É Presença que percebe e age. Não é que alguém esteja
presente, um Ser divino, ou um indivíduo, alguém consciente e experimentando algo acontecendo.
Presença não é experiência, e não é nem divina nem individual ou pessoal. Presença não é um
estado que se vivencia. Presença não é “estar”, é “ser”. Presença é o que é. Um movimento sem
objetos se movendo e sem sujeito a produzir o movimento. Um movimento sem começo e sem fim.
Infinitivo. Sem ninguém presente praticando ou experimentando a ação. Nenhum eu. O “completo
não-ser” da nossa epígrafe krishnamurtiana.

A melhor palavra para descrever isso que não é um estado, pois estados são passageiros,
são experiências temporais, e isso não é uma experiência, nem no tempo nem fora do tempo, pois
não tem quem experimente e acumule a memória como experiência, isso “é”. Isso é o que é. A
melhor palavra para apontar para isso é mesmo o verbo no infinitivo “Ser”. Ser é essa palavra. Ser,
como verbo infinitivo, repito, sem me cansar de repetir. Ser é a palavra que aponta para essa reali-
dade essencial, que é a única Realidade, de fato. É a Totalidade, é Unidade. Nem vazio nem chei-
o. Simplesmente Amor.

Ninguém vivencia Presença. Presença é a própria Vida. É. Assim.

IV
Unidade é anseio mais profundo de todos nós. Sentindo-nos incompletos, insuficientes,
como se sempre nos faltasse algo a ser adquirido: seja experiência, seja conhecimento, seja habi-
lidade; que esperamos conseguir em uma escola, em um curso, com um mestre, com uma prática,
um estudo, um aprendizado, ou uma graça. Assim como somos não serve, não é o bastante, te-
mos que ser outra coisa, nos tornarmos mais, ou melhor do que somos agora. E para isso preci-
samos nos esforçar, trabalhar duro, ser perseverantes, madrugar, pensar positivo, rezar por ajuda,
encontrar o mestre. E nunca chegamos lá. Estamos sempre aquém. Sempre a espera de alguém
que nos diga quando estaremos prontos e finalmente nos sentiremos inteiros; mas não tem jeito,
sempre falta alguma coisa. Podemos ter muito sucesso na nossa profissão; muito reconhecimento
social, um bom casamento, filhos maravilhosos, conta bancária polpuda, bens, propriedades, boa
formação, educação e cultura, conhecimento, filosofias profundas, e ainda assim, falta alguma

109
coisa. Buscamos outros companheiros ou companheiras, criamos outra família, trocamos de em-
prego, de profissão, buscamos outros grupos, mudamos de cidade, de país, tentamos outra religi-
ão, outra escola, outro mestre. Tentamos de tudo. E nada. Continuamos nos sentindo de fora, es-
trangeiros, sem ingresso para o espetáculo da vida, sem a carteirinha do clube, charlatões, uma
fraude. Queremos participar e estamos como observador, ou narrador. Todos parecem fazer parte
e nós não. Dentro de nós mil vozes falam o que deveríamos ter feito, ou fazer para ser diferentes e
nos sentirmos incluídos, ser protagonistas e não só figurantes clandestinos. Mil vozes de toda a
humanidade e todos os campos de conhecimento humano; mil vozes de todos os medos e todos
os desejos da nossa natureza humana multifacetada. Conscientes de nós mesmos sentimo-nos
separados de tudo. Conscientes de nós mesmos nos sentimos separados do todo. Não estamos
advogando a inconsciência, por favor! A inconsciência não é a solução, pois consciência e incons-
ciência fazem parte da mesma bolha de consciência que se circunscreveu em si mesma, e o que é
inconsciência, só é inconsciência para a consciência circunscrita em si mesma. E, no entanto, so-
mos parte do Todo; existimos no Todo; a Unidade nunca foi desfeita; mas não sabemos disso.
Sentimo-nos separados do Todo, fora da Unidade. Sofremos.

Busca é o movimento da consciência identificada consigo mesma querendo resolver o pro-


blema da separação. A consciência, isolada em si mesma, sofre. Busca para curar a dor da sepa-
ração. Presa na roda do tempo e do espaço; presa no espírito e na alma e no corpo; presa na ca-
deia de causas e consequências; enredada em crenças, sentimentos, pensamentos, idéias e ide-
ais, busca a Unidade perdida. Busca a totalidade. Busca ser o que não é. Quer ser o Ser infinitivo;
quer ser a totalidade. Quer ser o caminho, a verdade e a Vida. O que é fluxo – alternância, ritmo,
relação –, a consciência quer circunscrever e tornar igual a si mesma. Vida é tudo que acontece,
mesmo que nada aconteça. Vida é movimento e transformação constante, e a consciência, isolada
e identificada consigo mesma está sempre um passo atrás. Ao circunscrever-se, a consciência,
que é fluxo – verbo –, torna-se em substantivo. E age como substantivo, ou sujeito. Sempre que-
rendo parar a Vida para compreendê-la; sempre cortando-a em pedaços para encontrar o todo.
Sempre do lado de fora.

Não vivemos em um mundo fragmentado. O mundo é uma totalidade que não compreen-
demos. Vivemos na Unidade. Falamos isso, mas não sabemos o que é isso. A Vida flui na Unida-
de. Não sabemos como começou e não sabemos se terminará. Vemos que aparece em formas e
mais formas, mas não vemos a Vida, vemos a transformação e reconhecemos nela a substância
formada e um princípio informacional modelando a forma a partir de dentro; portanto forma e infor-
mação. Substância é matéria, informação é da mente; assim aparece como duas correntes de
energia, a corrente quente da vitalidade, o fogo da vida; e a corrente fria da consciência, a luz da
percepção. Vitalidade e consciência constituem o mundo como o conhecemos. Estão sempre jun-
tas embora tenham características opostas. A vitalidade expande a substância e diminui a consci-
ência, funcionando na inconsciência. A consciência paralisa e limita a vitalidade, diminuindo a in-

110
consciência. Assim as formas são criadas no fluxo da transformação que é a Vida. Consciência e
vitalidade substancializam, movem e informam a transformação e, se em determinado momento, a
vitalidade se retira, a transformação cessa e as formas quedam abandonadas, como substância
inanimada que se deposita na terra, e como memória e informação que se deposita na mente. A
Vida nunca abandona o Universo, seguindo, seguindo sempre. Forma é o que aparece quando na
transformação que é a Vida a corrente da vitalidade se interrompe naquele local.

Vivemos em transformação. Em fluxo, em fluir – verbo no infinitivo. É o nosso olhar, olhar


da “nossa” consciência pessoal, separada e identificada consigo mesma, que secciona a transfor-
mação perene que é a Vida em formas e mais formas, em pedaços e mais pedaços. Aliás, quanto
menor o pedaço mais interessante a explicação, mais verdadeiro parece. É o nosso olhar que sec-
ciona a transformação em forma e informação. É o nosso olhar que secciona a experiência viva em
material ou mental, ou corporal e espiritual. Ao nosso olhar, o que é só um, aparece como se fosse
dois. E assim nos enganamos e nos confundimos. Seja o olhar do corpo, seja o olhar da alma, seja
o olhar do espírito, nosso olhar sempre centrado em si mesmo.

É o nosso olhar que secciona e fragmenta o mundo. Nosso olhar fraciona a Vida em seg-
mentos no tempo localizados no espaço. Nosso olhar é um olhar com ponto de vista e ponto de
fuga. Sem consciência de si mesmo não existe o ponto de referência para a visão, e na inconsci-
ência não existe visão alguma. É a consciência de mim mesmo que, em mim, aparentemente
fragmenta a Unidade. Aliás, outra palavra para Unidade é a palavra Universo, o verso único, sem
dorso.

Não é a mente que fragmenta o Universo. Mente é o vasto campo informacional do fluxo
da Vida e matéria é o vasto campo substancial do fluxo da Vida. Mente e matéria são face e dorso
do Mesmo. Mente é também conhecida como campo espiritual, ou mundo espiritual, ou “campo
Ponto Zero, o campo dos campos” (Laszlo, 2008). O campo mental, com sua inteligência universal
e impessoal, sensível e perceptiva, que flui como consciência, junto da vitalidade – fluxo do campo
material. Tampouco é a consciência que fragmenta o viver. Minerais, plantas e animais vivem na
consciência e estão perfeitamente integrados no Todo. É a “consciência de si mesmo”, ou consci-
ência pessoal que divide o Universo em dois: eu e o resto! E nesse estado de consciência, um
estado de ser que parece fora do Ser, toda a dor e fragmentação aparente do mundo. É na consci-
ência de mim mesmo que a multiplicidade se cria.

Assim nasce o sofrimento humano. Nasce de sentir-se um eu separado do resto, isolado


no Universo. A insatisfação, o tédio e o medo só existem nesse estado de separação. Vínculos e
pertencimentos, ou falta de vínculos e sentimentos de exclusão só são questões nesse estado de
separação. Problemas de comunicação só aparecem nesse estado de separação. Propriedade das
coisas, sentimentos de posse, exploração da natureza, destruição da terra, existem nesse estado
de separação. A exploração do homem pelo homem, os abusos e perversões sociais e pessoais

111
são expressões desse estado de separação. Religiões e a busca da Unidade, chamada busca
espiritual, são o coroamento desse estado de separação.

V
Vida, em seu fluir, é um movimento criador infinito, criando formas e mais formas; repetin-
do-se e sendo sempre diferente. Metamorfoseando-se e trazendo uma variedade infinita, sempre
com o mesmo princípio. Mente e matéria aparecem na Vida ao olhar observador da consciência
individualizada, ou consciência pessoal: a pessoa.

Consciência e vitalidade aparecem juntas, como uma só energia, mas vistas como diferen-
tes por apresentarem diferentes dinâmicas no fluir, assim aparecendo como duas correntes dife-
rentes de energia manifesta, como já mencionamos acima. Para fins didáticos podemos dizer que
uma vai da mente para a matéria e a outra vai da matéria para a mente. Lembrando mais uma vez
que as duas vão sempre juntas, mas parece que predomina a vitalidade na corrente energética
que vai da matéria em direção à mente; e parece que predomina a consciência na corrente energé-
tica que vai da mente em direção à matéria. Devido a essa predominância, dizemos que são duas
correntes, uma ascendente e outra descendente, pois tomamos como referência a cabeça e as
pernas com os pés. Os pés na terra e a cabeça no céu; a terra está embaixo dos nossos pés, e o
céu está acima de nossas cabeças. Experimentamos, assim, a noção espacial de um eixo vertical
da cabeça aos pés, ou ainda mais profundo: do espírito ao corpo.

À propósito, a terra é material, sólida, escura e pesada, rígida e fixa ao nosso olhar; e o
céu é leve, transparente, luminoso, quase imaterial, cheio de movimento e plasticidade, ilimitado à
nossa visão. Se os tivéssemos que representar geometricamente, escolheríamos o quadrado para
representação da terra, e o círculo para representação do céu; também representaríamos o espíri-
to como círculo, e o corpo como quadrado, seguindo o mesmo raciocínio. Essa informação nos
será muito útil abaixo.

A corrente da vitalidade, sensível à mente e à consciência que vive nela carrega e organiza
a matéria em direção ao espírito, aprimorando-o como instrumento vivo. A corrente da consciência
sensível à matéria e à vitalidade que vive nela carrega e substancializa o espírito permeando-o de
matéria formando corpos e aprimorando-os como instrumento para a consciência. Repetindo: as
duas correntes são simultâneas, não é primeiro uma e depois a outra, embora à nossa visão possa
parecer assim. Uma não existe sem a outra em si. Como o símbolo chinês do Tai Chi, conhecido
de todos, onde um círculo apresenta-se com duas “baleias se acasalando”, uma preta e a outra
branca, na preta um ponto branco, e na branca um ponto preto; a figura toda simbolizando as duas
correntes de energia yin e yang, que em seu fluir constroem o universo e todos os seres, estando
sempre juntas, uma dentro da outra, como uma coisa só. Consciência e vitalidade são o yin e o
yang da Vida, e criam todas as coisas e seres vivos.

112
Ao observarmo-nos e observarmos outros seres humanos, reconhecemos o corpo, como
algo individual e separado dos outros corpos; mas também reconhecemos que a biografia de cada
um é algo único e singular, apontando para um princípio que a individualiza e distingue de todas as
outras histórias pessoais. Fica assim evidente a presença de um princípio individualizante que se
expressa no corpo como um “Eu” ao longo de toda sua biografia. Esse é o princípio espiritual, ou
espírito que já falamos. O “Eu sou” no ser humano. Um “núcleo individualizado de consciência” –
termo cunhado por Theda Basso e Aidda Pustilnik nas aulas da escola iniciática que fundaram, a
Dinâmica Energética do Psiquismo (Basso e Pustilnik, 2000).

Assim, podemos dizer que em todo ente humano vemos sempre esses dois aspectos que
o identificam e o individualizam: uma consciência de si mesmo, ou princípio espiritual, que o leva a
reconhecer-se como distinto e separado dos outros e dizer “Eu sou” para si mesmo; e um corpo
físico, ou princípio material que lhe dá substância e corporalidade, que pode ser identificada e re-
conhecida pelos outros.

A vitalidade e a consciência, fluindo a partir do corpo e do espírito coloca cada ente huma-
no em relação uns com os outros. A relação estabelece um diferente nível de experiência para a
cada um. Na corrente ascendente cria-se o vínculo emocional e todas suas mazelas, como aceita-
ção e abandono, acolhimento e rejeição, cuja gama de reações se apresentam como as distintas
emoções. Na corrente descendente cria-se o vínculo espiritual ou kármico, influência do campo de
memórias, com suas leis e padrões de relacionamento.

Seguindo o fluxo ascendente, a vitalidade permeada pela consciência leva as pessoas a


buscarem uma ordem para as relações, a criarem normas e leis que regulam os relacionamentos,
a se organizarem socialmente, procurando regular o fluxo do poder e da autoridade, e conter o
abuso que surge por uns usarem o poder sobre os outros. Seguindo o fluxo descendente, a cons-
ciência permeada pela vitalidade, leva cada entidade a buscar sua expressão singular, ser autor de
seus dias e assumir a responsabilidade pela sua expressão e suas consequências para todos os
outros, incluindo a si mesmo. Isso caracteriza um novo nível de experiência para cada um.

Continuando a acompanhar o fluxo ascendente podemos reconhecer um quarto nível de


experiência para a pessoa onde, diante das dificuldades relacionais, aparecem os ideais de com-
portamento e relacionamento, como a cooperação e a solidariedade, como a compaixão e a paz.
Ao mesmo tempo que no fluxo descendente se configura também um quarto nível, onde aparece o
ego, essa pérola da consciência de si mesmo, um caroço de pensamento, coroando de si mesma a
experiência da pessoa, se apresentando como a Unidade, e querendo Ser, em liberdade, confian-
ça e amor.

Vemos assim que onde se configura o ser humano, oito níveis estão presentes, em quatro
pares simultâneos, segundo os fluxos descendente e ascendente. Podemos numerá-los aos pares,
cada par expressando um mesmo nível, em seus aspectos espiritual e corporal dependendo da

113
orientação do olhar: “Identidade espiritual” e “corpo” como primeiro par; “vínculos kármicos” e “vín-
culos emocionais”, segundo par; “expressão individual e responsabilidade” e “ordem e leis sociais”,
o terceiro par; e “egoidade” e “ideais” como quarto par. Visto de forma esquemática, teríamos o
seguinte:

1 – Identidade espiritual, Eu sou

2 – Vínculos Kármicos

3 – Expressão Individual, Autoria e Responsabilidade

4 – Egoidade querendo ser a Unidade, a liberdade e o amor

4 – Ideais de compaixão, cooperação, solidariedade e paz

3 – Autoridade, Ordem, Poder e Leis Sociais

2 – Vínculos Emocionais e Sentimentais

1 – Corpo, identidade física

Todos esses pares aparecem simultaneamente constituindo e estruturando o ser humano e


sua manifestação caracterizando-o como uma entidade multidimensional, pois cada um desses
níveis aparece como uma dimensão diferente da experiência humana. Assim como reconhecemos
cada um desses pares – níveis, dimensões – no ser humano, podemos reconhecer cada um deles
em qualquer entidade institucional criada pelo ser humano.

Compreender esses níveis é compreender a entidade humana em toda extensão de seu


drama e comédia. Espírito, alma e corpo acontecendo no fluir da vitalidade e da consciência, que
hora se localiza como que se fixando em um dos níveis, ou em um de seus aspectos, bloqueando
e interrompendo o que aparentemente seria um fluxo saudável; e ora abarca todas essas dimen-
sões, como um todo, fluindo livremente, no que aparentemente seria um fluxo saudável. Compre-
ender esse fluxos é compreender a natureza da saúde e da doença, no ser humano e nas institui-
ções humanas. Compreender esses níveis é compreender todas as entidades que se individuali-
zam e aparecem no mundo.

VI
No nosso livro “Triângulos – Estruturas de Compreensão do Ser Humano” (Basso e Ama-
ral, 2007), apresentamos esses níveis como triângulos, de acordo com a percepção interior de
Theda Basso, que reconheceu em seu próprio corpo esses níveis, como locais de expressão de
padrões estruturadores, como princípios informativos não-locais impregnados em cada região do

114
corpo, condicionando e condicionados pelas vivências do ser humano como consciência individua-
lizada corporificada.

Representamos esses níveis como triângulos porque assim apareceram em seu corpo, na
percepção interior de Theda. E de fato, foi uma representação acurada de cada um desses níveis.
Triângulos, quando isósceles, são figuras geométricas que provocam a impressão de movimento, e
indicam movimento em uma direção ao apontar na direção de seu ângulo diferente – triângulo i-
sósceles é aquele que tem dois ângulos iguais e o terceiro, diferente. Representando cada triângu-
lo isósceles com uma base horizontal onde estão adjacentes seus dois ângulos iguais (visíveis ou
virtuais) e seu ângulo oposto apontando para cima ou para baixo, de acordo com o fluxo que quei-
ramos representar, pudemos criar assim a imagem de um fluxo ascendente e de um fluxo descen-
dente, obedecendo o mesmo eixo vertical. Temos então quatro triângulos “ascendentes” e quatro
triângulos “descendentes” (cuja base e ângulos iguais são virtuais, aparecendo como que “aber-
tos”, intencionalmente apoiados no círculo).

Ao percebê-los localizados no corpo, experimentamos representá-los sobrepostos ao “Ho-


mem Vitruviano” de Leonardo da Vinci, o que nos ajudou a descobrir seus ângulos e aprimorar
suas relações. A bem da verdade, o Homem Vitruviano de Leonardo é, em si mesmo, um tratado
simbólico e humano profundo, pois apresenta o ser humano apoiado simultaneamente em um
quadrado e em um círculo. Já vimos um pouco do simbolismo por trás do quadrado e do círculo.
No quadrado, o ser humano aparece parado, com os pés juntos e os braços estendidos, formando
uma cruz; no círculo parece estar em movimento, aparecendo com braços e pernas abertos, for-
mando uma estrela de cinco pontas. Ao sobrepormos nossos triângulos à essa imagem poderosa,
estamos ampliando seu poder simbólico, acrescentando informações às informações já expressas;
criou-se assim uma nova expressão simbólica cujo poder informacional se revela graficamente ao
olhar, indo diretamente ao corpo e à vitalidade e diretamente à mente e à consciência. Vejamos:

115
Triângulos, estruturas de compreensão do ser humano.

O primeiro triângulo descendente, cujo ângulo descendente repousa acima da coroa cefáli-
ca e se abre para o círculo, representando o princípio identificador e individualizador do espírito, a
consciência que se circunscreve, o “Eu sou”. Enquanto o primeiro triângulo ascendente cuja base
repousa no quadrado e sobe pelas pernas até a base do períneo, representa a base que é o pró-
prio corpo e as forças da vitalidade; pernas que nos carregam pela vida afora, assim como nosso
corpo nos situa no mundo.

O segundo triângulo descendente, cujo ângulo descendente repousa na região frontal,


também aberto para o círculo, representando os vínculos kármicos e as influências mórficas e pa-
dronizantes do Campo de memória universal; enquanto o segundo triângulo ascendente tem sua
base, paralela à base do quadrado repousando sobre o ápice do primeiro triângulo ascendente,
abarcando a região do baixo ventre, representando os vínculos relacionais emocionais e toda sua
carga condicionadora do ser humano em seus relacionamentos.

O terceiro triângulo descendente, cujo ângulo descendente repousa na garganta, se abrin-


do para o círculo, representando o impulso para a expressão individual, a autoria, e a tomada de
responsabilidade pelos próprios atos; e o terceiro triângulo ascendente com sua base também
paralela à base do quadrado, repousando sobre o vértice ascendente do segundo triângulo, abar-
cando a região do plexo solar e os princípios da autoridade e da ordem organizadora da esfera
social, com suas leis, normas e poder.

E os quartos triângulos, que se encontram na região cardíaca. O quarto descendente re-


presentando a coroação do princípio individualizante no aparecimento do eu, o ego centralizador
da consciência e responsável pelo egoísmo humano, querendo Ser, ser a Unidade, a liberdade, a
confiança e o amor; enquanto o quarto ascendente representa os ideais humanos buscados pelo
ego como a compaixão, a cooperação, a solidariedade e a paz, e nunca alcançados pela consci-
ência identificada consigo mesma.

Os ideais humanos mais elevados não são atributos da consciência que se individualizou.
Os ideais humanos mais elevados, como a Unidade, a liberdade, a confiança, o amor, a compai-
xão, a paz, a solidariedade e a cooperação verdadeiras, não vive no âmbito desses níveis ou qua-
tro pares de triângulos. São absolutos, não-condicionados, incondicionais, sem motivo e sem fina-
lidade posto que só acontecem em liberdade, e onde há qualquer condição, por mínima que seja,
não é liberdade, não é amor. Os ideais humanos mais elevados não são ideais; só são ideais para
a consciência que se separou ao isolar-se em si mesma identificando-se onde deveria estar ausen-
te. Os ideais humanos mais elevados são realidades na Unidade, no Ser infinitivo e Presente; além
do tempo e do espaço, sem começo e sem fim, na Vida que acontece, fluindo em transformação
perene, indivisa e inteira.

116
Para nomear o inominável e representá-lo no âmbito dos triângulos percebemos um quinto
triângulo descendente e ímpar, cujo ângulo descendente e seus lados adjacentes tocam o quadra-
do e o redondo simultaneamente, nos pontos em que estes se cruzam, e se prolongam ao infinito,
como o Um que aparece como dois. O quinto triângulo é um paradoxo, pois representa o que não
pode ser representado: o campo de infinitas possibilidades do Tao, ou Deus, aquele que não tem
nome nem forma, incognoscível e imanifesto, onde toda manifestação aparece e parece acontecer.
Ser essencial da própria Vida, fluxo perene de transformação, verbo infinitivo. A Unidade.

O ser humano inteiro representado nos triângulos; corpo, alma e espírito representados
nos triângulos. O primeiro descendente traz as coisas do espírito; o primeiro ascendente traz as
coisas do corpo. Os segundos e terceiros e quartos triângulos, descendentes e ascendentes, tra-
zem as coisas da alma, sendo que os quartos triângulos trazem o perfume da Unidade à alma, e
os anseios da alma pela Unidade, mascarados pelo ego e pelos ideais.

Assim podemos entender o que fica óbvio: o que buscamos nunca iremos encontrar no
âmbito dos quatro pares de triângulos, ou seja, no âmbito de corpo, alma e espírito. O que busca-
mos, a Unidade e seus absolutos, como a liberdade, a confiança, o amor e a paz, jamais estarão
no âmbito do corpo, da alma ou do espírito; nem na consciência autoidentificada nem na consciên-
cia corporificada, em nenhum estado de consciência, nem na inconsciência. O que buscamos não
é um estado de espírito tampouco; não é um determinado estado especial entre estados, a ser
alcançado através de uma prática, ou de um método, nem de um processo no tempo. Buscamos
Ser, a Unidade, o fim da ilusão de separação. Buscamos o que é; o que sempre foi e sempre será,
o que sempre é, sem depender de pré-requisitos ou pré-condições. Não devemos comprar, nem
vender, gato por lebre. Como disse Jesus, chamado Cristo, “a César o que é de César e a Deus o
que é de Deus”. Devemos dar aos quatro pares de triângulos o que é do tempo e do espaço, o que
é condicionado e preso na roda de causa e efeito, entre causas e conseqüências; e dar ao quinto
triângulo o que é da Totalidade, ou Unidade, e que nenhuma ação no tempo irá produzir, pois não
existe caminho para o que é. O que é, já é. Isso é Ser.

VII
É no âmbito dos quatro pares de triângulos que a pessoa se forma, como reflexo do que é
chamado de “desenvolvimento da consciência”. Quando por volta do terceiro ano de idade a cons-
ciência na criança se dá conta de si mesma e a criança passa a falar “Eu” ao referir-se a si mesma,
diz-se que ela começa a entrar no estado pessoal de consciência, saindo de um estado pré-
pessoal. Nesse novo estado ela passa a ser uma referência para si mesma, e a psique ganha mai-
or estabilidade e consistência. Esse passo tem a ver com a maturação cerebral, que se prolonga
até o fim do desenvolvimento do lobo pré-frontal por volta dos 21 anos de idade, quando se diz que
o jovem entrou na idade adulta.

117
A consciência pessoal passa por um longo treinamento para se adequar às normas sociais,
desenvolver seus dons em talentos e habilidades, ganhar uma profissão e encontrar o seu lugar na
sociedade em que vive. Ao lado do seu condicionamento genético (primeiro triângulo ascendente)
e seu condicionamento espiritual que o impulsiona para a individuação (primeiro triângulo descen-
dente) – sendo que o processo de individuação é entendido como o ápice do desenvolvimento
humano, para algumas correntes de conhecimento, por se confundir com a busca da Totalidade –,
a consciência pessoal recebe um condicionamento social pela educação; seja a educação laica ou
religiosa, formativa ou profissionalizante.

A consciência pessoal é sempre condicionada, impregnada que é pelas coisas da cultura,


pelo campo de memórias universais – o hindu fala em Akasha, a astrofísica contemporânea sugere
ser o mesmo campo Ponto Zero (Laszlo, 2008) –, pelas normas sociais, pelas limitações genéticas
e espirituais – sua individualidade. A roda de causa e efeito se prolongando indefinidamente, indo
além do corpo, num tempo que continua sempre, que aparece como uma série de reencarnações,
em um processo de desenvolvimento que nunca se completa; mas é desse processo que surge a
noção do transpessoal, do que vai além da pessoa.

Acredita-se que o espírito imortal guia a pessoa em sua vida terrena para o desenvolvi-
mento da alma. Cada acontecimento da vida como desafios e exercícios para o desenvolvimento
de novas capacidades e novos estados de ser, em um processo que não se interrompe com a
morte do corpo e a morte da pessoa. De fato, a pessoa morre, mas o espírito continua, passa por
experiências no pós-morte, voltando a reencarnar para completar suas lições inacabadas, enfren-
tar novas lições vindas do futuro, a aprender e realizar seus ideais, em um processo contínuo, até
atingir a Unidade como espírito pleno. Espírito que é visto como a essência da pessoa e que so-
brevive à pessoa, como realidade transpessoal, a reencarnar seguidamente, tantas reencarnações
quanto necessárias até atingir a plenitude do espírito realizado, em um mundo puramente espiritu-
al, entre seres puramente espirituais, que já completaram seu desenvolvimento e vivem na Unida-
de do mundo espiritual. Que pode então encarnar livremente, para ajudar os outros no caminho, e
é visto na terra como indivíduo pleno, que é o “Eu sou”, um Deus encarnado, que está no corpo,
mas é além do corpo, que é imortal e eterno, vivendo ao lado de Deus, como seu igual. Crença
que nos prende na armadilha do tempo e da continuidade, acenando com a imortalidade no fim de
um processo de desenvolvimento contínuo; imortalidade que é vista como o fim da busca, posto
que traz a felicidade eterna, e a tão sonhada Unidade. Prometendo gato e entregando lebre. Todo
processo ocorre no tempo. Um tempo infinito não faz o atemporal. Unidade não é do tempo, assim
como a liberdade, a confiança e o amor. Temporal é tudo aquilo que começa e acaba. Atemporal é
o fim do tempo. O verdadeiro des-envolvimento não é um processo no tempo, é a morte do tempo.
Tempo é o conhecido. É um acordar. Quando estamos sonhando, acordar não é um processo no
tempo, é um ato súbito e descontínuo, é o fim do sonho. Acordar é ver o que é. Semelhante ao
autoconhecimento.

118
Autoconhecimento é ver o que se é. Conhecer-se a si mesmo. Educação verdadeira é o
autoconhecimento. É além do corpo, da alma e do espírito. Não é pré-pessoal, nem pessoal, nem
transpessoal. Só acontece no momento presente, nem antes nem depois. Nenhum processo no
tempo pode realizar. É além da arte, da religião e da ciência. Embora seja uma arte. A arte de dis-
tinguir o gato da lebre. A arte de distinguir o verdadeiro do falso e o falso do verdadeiro, e não to-
mar um pelo outro.

Unmani Liza Hyde, diz em seu site na Internet (2009), traduzido livremente por mim:

Reconheça quem você é, e saiba que não existe, nem nunca existiu
nenhuma separação. Absoluta Totalidade, absoluta Unidade, absoluto Amor, isto
é o que você é. Ainda assim, buscar é um jogo dramático que a vida joga consi-
go mesma. Buscar preencher aquele vazio na minha vida que parece ser tão do-
loroso. Buscar algum tipo de segurança ou satisfação permanente, na esperança
de que um dia eu vou encontrar o que estou buscando. O que quer que seja, o
que está acontecendo agora nunca parece ser suficiente...

“Homem: conhece-te a ti mesmo” exortam os sábios de todas as eras. “Penso, logo existo”
e Descartes pensou que estava a conhecer-se a si mesmo. Autoconhecimento não é pensar em si
mesmo nem sobre si mesmo. Autoconhecimento não é pensar. Conhecer-se a si mesmo e reco-
nhecer a ilusão de si mesmo, e a verdade de si mesmo. É ver o que é. É reconhecer os condicio-
namentos e impregnações que iludem a consciência; reconhecer os desejos e os medos, a busca
de prazer e o evitar a dor; a busca de segurança e permanência na identificação consigo mesma e
prisão na roda da fortuna, a roda da sorte e do azar, da causa e do efeito. É ver-se como pessoa
insatisfeita e incompleta em busca da Unidade, que é além do pessoal e do transpessoal. A Unida-
de não se relaciona com a pessoa de forma alguma, nem com o corpo, nem com o espírito trans-
pessoal. É acordar para o que é, é o fim da consciência pessoal. É Presença.

Autoconhecimento não é um caminho de conhecimento, não é um trabalho de consciência.


Não é um processo no âmbito dos quatro pares de triângulos descendentes e ascendentes. Um
processo nesse âmbito dos triângulos é um caminho de conhecimento, é um trabalho de consciên-
cia. E como todo caminho de conhecimento, todo trabalho de consciência, desenvolve habilidades,
prepara para enfrentar certos desafios, torna a vida mais confortável, permite um melhor trânsito
social, ser melhor na sua área de atuação, aperfeiçoar-se em seus talentos, enfim, sair-se bem no
cotidiano, realizando sonhos e desejos, conquistando o sucesso. Mas isso não é autoconhecimen-
to. O autoconhecimento não produz tudo isso também? Pode produzir, é claro! Mas essa não é a
meta do autoconhecimento. Autoconhecimento é a realização da verdade acerca de si mesmo. É
um ato livre de qualquer condição, qualquer motivo ou finalidade. O ser humano livre é o que é,
não está interessado em tornar-se o que não é; está em paz. Ama. Isso é Ser.

119
Autoconhecimento é acordar para o quinto triângulo. É a morte do eu, do primeiro ao quar-
to triângulo descendente e do primeiro ao quarto triângulo ascendente. Simultaneamente. O corpo
continua vivo, expressando a Realidade, a Unidade. Presença caminhando pela terra. Um corpo
aberto à Presença. Um campo aberto ao amor. Confiança é total. Expressão única, singular, sem-
pre nova, momento por momento, da Verdade eterna de Ser. Até o dia em que desaparece tam-
bém o corpo. Então o que resta é o que sempre esteve presente. O fim da ilusão de ser um indiví-
duo, uma pessoa. É o desaparecimento da consciência de si mesmo, pessoal e transpessoal. É a
jóia da humanidade. O que todos buscam e ninguém encontra.

A consciência de si mesmo pode experimentar um gostinho disso, pode sentir o perfume


da Presença, mas nunca vai alcançá-la, nunca vai se tornar Presença, nunca vai ser Presença.
Presença não é espírito, nem alma, nem corpo. Em Presença não existe ninguém presente expe-
rimentando; nem é algo, ou alguém, que venha em nossa direção. O que acontece é o desapare-
cimento do experimentador e da consciência de si mesmo. Esse desaparecimento é o que Tony
Parsons (2003) e Richard Sylvester (2008) chamam de "acordar" e de “liberação”, que é o que
aconteceu com o Buda, com Krishnamurti, entre outros, e com “eles” mesmos.

Sentir o perfume da Presença é algo acontece no cotidiano, nos caminhos de conhecimen-


to, nos trabalhos de consciência, em momentos de inteireza, com alteração e expansão da consci-
ência, que se desidentifica de si mesma temporariamente, e se percebe nos recônditos da mente e
da matéria, em momentos inesperados, durante uma prática meditativa; durante um exercício físi-
co; durante um momento de silêncio; durante uma caminhada na natureza; durante o tráfego inten-
so; em meio à uma grande dor ou um grande prazer. Momentos súbitos depois de um esforço in-
tenso ou dedicação profunda a uma determinada atividade. O perfume da Presença é sentido e
experimentado; um momento fugaz. Deixa aquela saudade impossível, aquele anseio profundo,
uma tristeza sem pé nem cabeça. Momentos numinosos, que nos marcam fundo. Com certeza,
todos experimentamos isso. Presença é mais próxima de nós do que nós mesmos. Está sempre
aqui. Nunca foi embora. Nós é que aparentemente nos encolhemos. E adormecemos em nós
mesmos. Nem existimos de fato.

VIII
Como é isso? Então o que estamos fazendo aqui? Para que estudar, conhecer, experimen-
tar, praticar? Para que observar, investigar, aprender? Para que fazer um caminho de conhecimen-
to, um trabalho de consciência? Tem sentido isso? Se nenhum caminho leva a Roma, para que
viajar? A consciência identificada consigo mesma tem muitas perguntas e nenhuma resposta.

Ah!... Quer dizer que é só para os escolhidos, os eleitos, os que nasceram para isso? Tão
bem expresso na Tabacaria: “O mundo é para aquele que nasce para o conquistar, não para os

120
que pensam que podem fazer isso, ainda que tenham razão” – é verdade isso que Fernando Pes-
soa escreve? Afinal, é ou não é possível a Unidade? O que devemos fazer então?

Reconto aqui, livremente, uma conversa de Krishnamurti com um amigo, de seu livro “A
Única Revolução” (2001). É assim:

Estamos conversando sobre nossa própria vida, não fazendo suposi-


ções sobre a vida de outras pessoas. De fato, estamos juntos como dois amigos,
neste lugar tranqüilo, investigando nossos problemas. Somos sérios, interessa-
dos e comprometidos com a solução dos problemas humanos, porque sentimos,
como duas pessoas, que nós somos o mundo e o mundo é o que nós somos.

"Parece uma coisa interminável esta busca inglória, esta constante in-
trospecção e análise, esta vigilância. Já tentei de tudo; todos os ensinamentos
de muitas escolas, muitos sistemas de meditação – você sabe, todas as pro-
messas disponíveis. Continuo incompleto, vazio por dentro".

Por que você não começa pelo outro lado, o lado que você não conhe-
ce? Da outra margem, a qual você não tem possibilidade de ver desta margem?
Comece do desconhecido, ao invés de começar do conhecido; pois esse cons-
tante exame e análise somente fortalecem e condicionam ainda mais o conheci-
do. Se a mente vive a partir do outro lado, então esses problemas não existem.

"Mas, como vou começar do outro lado? Eu não o conheço, não sei on-
de está, não posso vê-lo”.

Quando você pergunta: “Como vou começar do outro lado?” – você está
ainda perguntando a partir deste lado. Portanto, não pergunte isto, mas comece
do outro lado; do lado que você não conhece nada; comece de outra dimensão,
que o pensamento, por mais astuto que seja, não pode apreender.

"Não posso imaginar como começar de outro lado. Em verdade, não


compreendo essa asserção vaga; essa afirmação que, para mim, não tem signi-
ficado nenhum. Só posso ir onde conheço”.

Mas, o que é que você conhece? Você só conhece o que já está aca-
bado, concluído. Você só conhece o passado. E estamos dizendo: comece da-
quilo que você não conhece, e viva a partir daí. Se você diz: "Como vou viver a
partir desse lugar?" – então você está convidando o padrão do passado. Mas, se
você vive a partir do desconhecido, você está vivendo em liberdade, agindo a
partir da liberdade e isso, afinal, é amor. Se você diz: "Eu sei o que é o amor" –
então você não sabe. Pois o amor não é conhecimento, não é memória, nem a
lembrança de um prazer. E como não é uma memória, nem uma lembrança, en-
tão viva daquilo que você não conhece.

“Realmente não sei do que você está falando. Você está tornando as
coisas ainda mais difíceis".

121
Estou propondo uma coisa muito simples. E estou dizendo que, quanto
mais você procura, mais você tem para procurar. O próprio procurar é o condi-
cionamento, e cada passo constrói um caminho que não leva a parte alguma.
Você quer que novos passos sejam dados para você; ou você quer dar seus
próprios passos esperando que o levem a uma dimensão totalmente diferente.
Mas, de fato, você não sabe o que tal dimensão é, então sejam quais forem os
passos que você dê, só poderão levá-lo àquilo que já é conhecido. Assim, largue
tudo isso e comece do outro lado. Fique em silêncio, e você vai descobrir.

"Mas eu não sei como ficar em silêncio".

Aí está você de novo perguntando "como", querendo “saber como” para


depois “fazer certo”, e não há um fim para o "como". Todo saber está do lado er-
rado. Se você sabe, você já está morto. Ser não é saber.

IX
Sento-me com Li Po.

Estou na minha cadeira em frente ao computador. Tomamos chá.

O velho poeta chinês, sábio sem idade, conta-me, o que parece acontecer.

Está sério, e seu rosto é tranqüilo como uma lagoa ao entardecer. Olha para mim sem ne-
nhuma pergunta; seu olhar inocente é o de uma criança sorrindo, os olhos brilham como diaman-
tes. Sua barriga está solta e seus ombros descansados; a paz irradia sem nenhum esforço, sem
nenhuma intenção. Ambas as mãos segurando a xícara com delicadeza e respeito, levam-na à
boca. Sua fala é mansa e, ao mesmo tempo, firme e segura, como quem respira profunda e silen-
ciosamente:

Os pássaros desaparecem na amplidão do céu.

A última nuvem se derrama e desaparece.

Sentamos juntos, a montanha e eu.

Só a montanha permanece.

A cadeira desaparece. Pergunto-me, antes de cair: Eu sou?

Referências:
Basso, T. e Pustilnik, A. - “Corporificando a Consciência”, ICDEP, São Paulo, 2000, pág. 18.

Basso, T. e Amaral, M. - “Triângulos – Estruturas de Compreensão do Ser Humano”, Edição do


Autor, São Paulo, 2007.

122
Hyde, U.L. - www.not-knowing.com – 2009, pagina de rosto.

Krishnamurti, J. - “A Única Revolução”, Terra sem Caminho, RJ, 2001, pág 145.

Krishnamurti, J. “A Busca”, Terra sem Caminho, São Paulo, 2005, págs. 104-109.

Laszlo, E. - “Ciência e Campo Akáshico”, Cultrix, São Paulo, 2008.

Parsons, T. - “All There Is”, Open Secret, Inglaterra, 2003, pág. 108.

Porete, M. - “The Mirror of Simple Souls”, Paulist, USA, 1993.

Sylvester, R. - “The Book of No One”, Non-Duality, Inglaterra, 2008, pág. 143.

Wilber, K. - “A Consciência sem Fronteiras”, Cultrix, São Paulo, 1991.

Leituras Complementares:
Balsekar, R.S. - “The Ultimate Understanding”, Watkins, Inglaterra, 2002.

Foster, J. “The Revelation of Oneness”, Non-Duality, Inglaterra, 2008.

Haisch, B. - “The God Theory”, Red Wheel / Weiser, USA, 2006.

Krishnamurti, J. - “Krishnamurti‟s Notebook – full text”, KFA, USA, 2003.

Oschman, J.L. - “Energy Medicine”, Churchill Livingstone, Inglaterra, 2000.

Renard, G.R. - “The Disappearance of the Universe”, Hay House, USA, 2004.

Roberts, B. - „The Experience of No-self”, State University of New YorK, USA, 1992.

123
Capítulo 9

O Ser Quântico
Multidimensionalidade quântica, o ‘eu’ (persona) e o Ser (Self), o corpo na visão da Psicologia
Transpessoal

124
Capítulo 10

Consciência
Ego, Cartografias, Não-localidade, Campos Morfogenéticos

125
Capítulo 11

Consciência Transpessoal
Fundamentos Quântico-Holográficos

O que é a consciência?

Pela primeira vez na história humana temos condições científicas para entender a natureza
da consciência, e sua relação com as práticas de educação saúde, e espiritualidade.

É a consciência um fenômeno emergente dos processos cerebrais, ou é o cérebro que é


um fenômeno emergente da consciência?

Como pode a consciência surgir no universo?

Desde o século XVII, a questão da consciência foi sendo relegada a um plano secundário.
Graças às modernas pesquisas no campo das Neurociências, Física Quântico-Holográfica, Teoria
da Informação Quântica, Teorias da Auto-Organização, Inteligência Artificial, Psicologia Transpes-
soal e Filosofia da Mente, a consciência tornou-se na atualidade um dos principais temas de
estudo e discussão da ciência.

A consciência não é um problema científico qualquer, mas uma questão que nos interessa
muito de perto, pois é por meio de nossa consciência que nos situamos no mundo. A compreensão
de sua natureza pode nos conduzir a uma nova concepção de nós mesmos, e de nosso lugar no
universo.

Desenvolvemos neste ensaio, um modelo acerca da natureza da consciência, fundamen-


tado em recentes conquistas da ciência moderna que, permitem compreendermos o universo co-
mo um processo-evento informacional quantum-holográfico inteligente e gerador de consciência,
do qual a mente humana é parte integrante, participativa e interativa.

Um alerta inicial: A palavra consciência em línguas latinas como o português e o francês,


engloba o significado de diferentes palavras em inglês. Em inglês, awareness, conscience e cons-
ciousness, possuem significados distintos. Awareness poderia ser traduzido aproximadamente,
com os significado de alerta, ou estado de alerta. Conscience como o conteúdo ( por vezes moral )
da mente, e consciousness significa algo próximo ao termo espírito, de origem latina. Neste traba-
lho estarei sempre me referindo à consciência, no sentido mais amplo de consciousness.

126
O Código Cósmico
A evolução cósmica se processa por meio da emergência no espaço-tempo de um código
informacional quântico-holográfico que auto-organiza os padrões básicos da estrutura do universo.
Este código cósmico é constituído por patamares que correspondem cada um ao surgimento de
um novo mecanismo de memória mais complexo, com códigos informacionais específicos.

Este Código Cósmico constitui um vasto reservatório de informação, uma ordem informaci-
onal significativa fundamental. É uma propriedade primária e irredutível tão básica e incorporada à
organização do universo quanto a energia, a matéria, e o espaço-tempo. Essa linguagem cósmica
se complexificou progressivamente, a partir do Big Bang ou o que tenha iniciado esta imensa cos-
mogênese, e se auto-organizou em alguns bilhões de anos em energia, matéria, vida e consciên-
cia. Minha visão desta imensa embriogênese cósmica, que parece estar chocando este universo,
há aproximadamente 13 bilhões de anos, e do qual somos a parte consciente, é que cada um
destes códigos informacionais corresponde ao surgimento de um processo inteligente de
memória auto-organizadora no universo, cada um deles gerando um domínio cósmico es-
pecífico: os reinos da evolução cósmica. Reinos que na verdade representam os níveis de
organização da consciência no universo.

Os Reinos da Evolução Cósmica


1- A Cosmosfera
Neste primeiro nível de complexificação cósmica observamos a emergência de um proces-
so auto-organizador baseado no código atômico-nuclear, que é um processo de memória-
informação de natureza quântico-holográfica que estrutura e mantém a energia e a matéria no
universo.

Corresponde ao nível físico.

2- A Biosfera
É o segundo nível de complexificação do universo, onde observamos a emergência de um
processo auto-organizador baseado na interação de dois tipos de macromoléculas, os ácidos nu-
cléicos (DNA e RNA), e as proteínas (estruturais, e funcionais ou enzimas), controlado por um
tipo de memória ou código genético que estrutura e mantém a vida.

Corresponde ao nível biológico e biossocial.

3- A Noosfera
É o domínio das idéias, o terceiro nível de complexificação cósmica, que emerge na evo-
lução da vida como um processo auto-organizador baseado no código neural, que é dependente
também do DNA e do RNA, acrescido dos neurotransmissores, e de íons como sódio, potássio,

127
cálcio e magnésio que permitem a interconectividade neuronal. Este processo organiza e mantém
o funcionamento do cérebro e da mente.

Corresponde ao nível neuropsicológico, histórico e sociocultural.

4- A Conscienciosfera
O mais elevado e complexo nível de evolução alcançado pelo universo. É um processo au-
to-organizador gerador de consciência, baseado em campos quântico-holográficos constituídos
por fibras finas, que é dependente da dinâmica espectral pré-espaço-temporal descrita por Karl
Pribram. Estes campos são os responsáveis pela interconectividade informacional, local (newtoni-
ana clássica), e não-local (quântica holística), entre a mente humana e a mente-universo.

Corresponde ao nível espiritual.

Todo este fluxo universal de holoinformação (local + não-local), ou seja, esta ordem
transmitida de modo significativo e inteligente através de todos os níveis de complexidade do uni-
verso, modela os processos auto-organizadores inteligentes geradores de consciência e espiritua-
lidade na mente humana.

Como veremos, a Teoria Holoinformacional da Consciência, que propomos neste en-


saio, subindo nos ombros de três gigantes da ciência moderna, é potencialmente capaz de resol-
ver o antigo dualismo mente/matéria, , o hard problem, descrito pelo filósofo David Chalmers que
vem se arrastando na cultura ocidental, desde quando Descartes no século XVII, dividiu o homem
em corpo mental e corpo material, (res cogitans e res extensa). Com esta dicotomia Descartes
desencadeou um movimento filosófico-cultural esquizofrênico, que nos separou da espiritualida-
de, isolando-nos de nossa fonte cósmica. Esta dicotomia penetrou de forma surpreendente e su-
brepticia, em todos os meandros de nossa civilização tecnológica ocidental, e subjaz ainda hoje
nas produções científicas e culturais de nossas universidades e instituições acadêmicas e culturais,
que transformaram esta filosofia e suas variantes em um linguajar complexo, em sua maioria sem
dados experimentais, criando uma visão de mundo dogmática, semelhante ao paradigma teológi-
co.

O Reencontro da Ciência com a Consciência


Desde os anos 70 do século XX vem ocorrendo um renascimento do interesse científico
sobre a natureza da consciência, que se acelerou imensamente nos anos 90, com a moderna tec-
nologia de neuroimagem (tomografia com emissão de pósitrons, ressonância magnética funcional,
SPECT, mapeamento cerebral computadorizado, magnetoencefalografia ), ao permitir que visuali-
sássemos , o “fluxo da consciência”, descrito por William James, no século XIX. No entanto, nos
mesmos anos 90, filósofos da mente como David Chalmers, clamaram que o substrato neural da
consciência não é a mesma coisa que a consciência em si, e que devemos estar alertas para o

128
que ele denomina hard problem (o problema difícil) e easy problem (o problema fácil). O “easy
problem”, – que não é tão fácil assim como pensam os filósofos – refere-se ao que compreende-
mos sobre o funcionamento do cérebro e a experiência consciente com o uso da moderna ciência
e tecnologia. O “hard problem” seria a experiência interior, nossa e dos outros, que experienciamos
ao olhar uma rosa vermelha, ou seja, a qualidade da nossa experiência consciente ou qualia. A
rosa vermelha que admiramos e cheiramos não é o mesmo que o substrato neural desta experiên-
cia. A “vermelhitude” da rosa não são os comprimentos de onda que correspondem à cor vermelha
que nossos modernos computadores estão descrevendo!!

No modelo holoinformacional da consciência que desenvolvemos aqui, os fenômenos


transpessoais, parapsicológicos, paranormais, mediúnicos e religiosos são entendidos como pro-
cessos normais da própria estrutura quantum-informacional-holográfica do universo, e a consciên-
cia e a espiritualidade passam a ser compreendidas como o fluxo de informação quântico-
holográfica de natureza espectral que religa o cérebro e o Cosmos, nossa fonte primordial. Nesta
nova visão paradigmática, nosso cérebro é ainda compreendido como parte de uma vasta mente
espectral quântico-holográfica que assemelha-se à própria organização do cosmo, mas de modo
diferente ao proposto pelo panpsiquismo. Somos muito mais vastos do que nossas consciências
individuais, e partes ativas de uma complexa holoarquia, na qual cada consciência contém a infor-
mação do todo, e pode acessá-la por meio de estados elevados de consciência que otimizam o
tratamento holográfico da informação neuronal. Nestes estados alterados de consciência podemos
interagir com a ordem espectral “oculta” , “implícita”, descrita na teoria quântico-holográfica de
David Bohm, e mais além, com uma ordem superior superimplícita, talvez o objeto final de nossa
busca, da qual somos feitos “à imagem e semelhança”, tal como o objeto real que gera o hologra-
ma! Ao unificar as neurociências e as abordagens psicoterapêuticas transpessoais, com as tradi-
ções espirituais, esse modelo fundamenta cientificamente uma nova cosmovisão transdisciplinar
holística da consciência, mais abrangente do que o paradigma cartesiano-newtoniano ainda pre-
dominante na ciência do século XXI. Ao ser capaz de explicar todas as aquisições da antiga visão
de mundo, e ir além explicando o fenômeno da consciência , podemos estar vivenciando uma
mudança de paradigma na história da Ciência, tal como descrito por Kuhn.

O Modelo Holoinformacional da Consciência


Considero este modelo de consciência como uma extensão do dualismo interativo desen-
volvido por Sir John Eccles, e do monismo ontológico desenvolvido por Karl Pribram, recentemen-
te ampliado por mim e Richard Amoroso. É uma interpretação da natureza da consciência baseada
em um modelo quântico-informacional holográfico da interação cérebro-consciência-universo.

Fundamenta-se em três pilares da ciência moderna :

1- O modelo dos campos neurais quântico-holográficos de Karl Pribram

129
2- A interpretação causal holográfica da teoria quântica desenvolvida por David Bohm

3- As propriedades não-locais do campo quântico primeiramente desenvolvidas por Hiro-


omi Umesawa

A idéia desenvolvida por Eccles de uma interconexão entre o cérebro e o espírito, por meio
de microsítios quânticos denominados por ele dendrons,( redes de dendritos ondulatórios) que se
conectariam com os psychons ( os construtos filosóficos da mente propostos por ele), influenciou
profundamente o desenvolvimento deste modelo desde os anos 70 do século XX, quando ainda
estudante de medicina, pela primeira vez entrei em contato com as idéias de Eccles.

O conceito desenvolvido aqui é um conceito dinâmico de consciência baseado em um


fluxo holoinformacional (informação não-local quântico-holográfica + informação local clássica
newtoniana) interconectando a dinâmica quântica cerebral informacional holográfica com a natu-
reza quântico-informacional holográfica do universo. Este fluxo auto-organizador quântico-
informacional é gerado pelo modo holográfico de tratamento da informação neuronal, que pode ser
otimizado e harmonizado, por meio de práticas de meditação profunda, oração e outros estados de
consciência ampliada. Estudos de mapeamento cerebral realizados durante a ocorrência desses
estados elevados de consciência, demonstram um estado altamente sincronizado e perfeitamente
ordenado das ondas cerebrais, que formam ondas harmônicas únicas, como se todas as freqüên-
cias de todos os neurônios de todos os centros cerebrais tocassem a mesma sinfonia ( Montecuc-
co/ Di Biase).

Este estado cerebral altamente coerente, gera o campo informacional e holográfico cortical
não-local de consciência que interconecta o cérebro humano ao cosmos quântico-holográfico des-
crito na teoria quântica de David Bohm.

Esse estado informacional holográfico altamente ordenado é distribuído por todo o cére-
bro, o que demonstra que os processos quânticos de interação entre dendrons e psychons, descri-
tos por Eccles e Beck, não são limitados à fenda sináptica, como preconizado por eles, mas são
muito mais amplos e holograficamente estendidos a todo o cérebro. Como Pribram, vejo isto não
como uma contradição, mas como uma extensão natural das idéias seminais de Eccles.

Para uma melhor compreensão de nossas idéias é importante compreendermos o fenôme-


no da não-localidade, e os sistemas holográficos que expomos resumidamente a seguir.

Não-localidade
A não-localidade é uma propriedade fundamental do universo, comprovada experimen-
talmente no mundo quântico, e mais recentemente em nosso universo macroscópico, que de-
monstra a existência de interações instantâneas entre todos os fenômenos do universo. É uma
consequência da Teoria do Campo Quântico, desenvolvida por Umesawa que conseguiu unificar

130
os campos eletromagnético, nuclear e gravitacional, até então considerados independentes e in-
terpretados de forma isolada, em uma totalidade indivisível subjacente. A teoria do campo quân-
tico explica os fenômenos subatômicos, microscópicos e os macroscópicos, como a superconduti-
vidade, e o laser, e é considerada a mais fundamental teoria física do universo. O campo quântico
não existe fisicamente no espaço-tempo, como os campos gravitacional e eletromagnético da física
newtoniana clássica, apesar de ser matematicamente similar a eles. Isto lhe dá um caráter peculiar
não-local, ou seja, não se localiza em nenhuma região do espaço-tempo. Quando um fenômeno
não-local acontece, ele instantaneamente influencia o que ocorre em qualquer outra região do es-
paço-tempo, sem que para isso seja necessário nenhuma troca de energia ou informação entre
essas regiões. Segundo a física clássica, e o nosso bom senso, seria impossível existir a não-
localidade, o que gerou a famosa controvérsia entre Einstein e Bohr, em 1927, na 5ª Conferência
Solvay, na Bélgica. Einstein não podia admitir a existência de fenômenos não-locais, tendo em
vista que em sua Teoria Especial da Relatividade, publicada em 1905, a velocidade da luz c, igual
a 300.000 km/s, é considerada uma constante universal, que não pode ser ultrapassada. Esta con-
trovérsia acabou originando o célebre Paradoxo Einstein-Podolski-Rosen, em que Einstein e seus
colaboradores demonstraram com um experimento de pensamento que, devido à impossibilidade
uma partícula viajar mais rápido que a luz, a física quântica estaria incompleta. Postularam ainda
a existência de „variáveis ocultas‟ que seriam propriedades desconhecidas dos sistemas que expli-
cariam esta discrepância. Mas, contrariamente ao esperado, foi demonstrado matematicamente
por John Bell em 1964, que Einstein estava errado, e que após um átomo emitir duas partículas
com spins opostos, se o spin de uma delas for alterado, mesmo que elas estejam separadas por
anos-luz de distância, o spin da outra se modifica instantaneamente, revelando uma interação
não-local entre elas, e a existência de uma unidade cósmica universal subjacente.

Desde então, a existência da não-localidade têm sido dramática e convincentemente com-


provada nos experimentos da física moderna. O golpe de misericórdia foi dado em 1982 pelo físico
francês Alain Aspect , que comprovou experimentalmente e definitivamente a existência de ações
não-locais entre dois fótons emitidos por um átomo. Mais recentemente, em julho de 1997 (cf. Sci-
ence, vol.277, pg 481) Nicolas Gisin e col. comprovaram a existência desta ação quântica não-
local instantânea em escala macroscópica entre duas localidades na Europa.

Informação quântico-holográfica não-local


De acordo com Bohm, em seu modelo da mecânica quântica, De Broglie descreve um no-
vo tipo de campo, no qual a atividade é dependente do conteúdo informacional que é conduzido a
todo o campo experimental. Adicionando às equações deste campo um Potencial Quântico que
satisfaz à equação de Schrödinger, o qual depende da forma, e não da amplitude da função de
onda, Bohm desenvolveu um modelo quântico-holográfico, no qual este potencial quântico conduz

131
informação ativa que guia a partícula ao longo de seu trajeto. O potencial quântico é descrito por
Bohm como um novo tipo de campo sutil em sua forma e que não decai com a distância.

Sistemas holográficos
São sistemas geradores de imagens tridimensionais, em que a imagem virtual, ou holo-
grama, é criada quando, por exemplo, um laser incide sobre um objeto, e este o reflete sobre uma
placa ( como se fosse um filme). Se sobre essa placa incidir um segundo laser, produzindo uma
mistura das ondas do primeiro laser com as do segundo, o padrão de interferência de ondas resul-
tante, armazenará a informação acerca da forma e do volume do objeto, e será refletido pela pla-
ca no espaço, gerando uma imagem tridimensional do objeto. O relevante é que nos sistemas
holográficos cada parte do sistema contém a informação do todo completa sobre o objeto;
se quebrarmos a placa em pedaços, cada pedaço refletirá a imagem tridimensional do objeto no
espaço, demonstrando que o todo está nas partes, assim como cada parte está no todo. Esta
propriedade fundamental dos sistemas holográficos, foi descrita por Dennis Gabor, que ganhou o
Prêmio Nobel pela criação matemática do holograma.

Os campos neurais holográficos


O neurocientista Karl Pribram vem dedicando sua vida à comprovação experimental de que
o funcionamento cerebral é também de natureza holográfica. Sua teoria holonômica do funcio-
namento cerebral demonstrou a existência de um processo de tratamento holográfico da informa-
ção no córtex cerebral, denominado holograma neural multiplex, dependente dos neurônios de
circuitos locais, que não apresentam fibras longas e cujos finos prolongamentos denominados te-
ledendrons, não transmitem impulsos nervosos comuns. “São neurônios que funcionam no modo
ondulatório, e são sobretudo responsáveis pelas conexões horizontais das camadas do tecido neu-
ral, conexões nas quais padrões de interferência holograficóides podem ser construídos”. Pribram
descreveu uma “equação de onda neural”, resultante do funcionamento das redes neurais holo-
gráficas, similar à equação de onda de Schrödinger que é a equação fundamental da teoria quân-
tica. Este holograma neural é construído pela interação dos campos eletromagnéticos dos tele-
dendrons e dos dendritos dos neurônios, de modo similar ao que ocorre durante a interação das
ondas sonoras no piano. Quando tocamos as teclas de um piano, estas percutem as cordas pro-
vocando vibrações sonoras que se misturam, gerando um padrão de interferência de ondas. A
mistura das frequências sonoras é o que cria a harmonia, a música que ouvimos. Pribram de-
monstrou que um processo similar ocorre continuamente no córtex cerebral, por meio da interpene-
tração dos campos eletromagnéticos dos neurônios adjacentes, gerando um campo harmônico de
frequências eletromagnéticas. Este campo constituído por padrões de interferência de ondas har-
mônicas, tal como no exemplo do piano descrito acima, pode ser calculado pelas transformações
de Fourier, e funciona tal como o holograma descrito pela matemática de Gabor. É um campo dis-
tribuído holograficamente, simultaneamente, por todo o cérebro, codificando e armazenando em
132
um vastíssimo campo de informação, a memória, e a consciência no plano biológico. Este campo
é capaz de nos interconectar ao campo quântico-holográfico subatômico da própria estrutura do
universo, sendo assim responsável pela emergência dos fenômenos espirituais de religação com o
cosmos (lembramos que a palavra religião tem origem no latim religare). Tal como no piano a har-
monia, a música que ouvimos não está localizada no piano, mas no campo ressonante que o cir-
cunda, as memórias de um indivíduo não estão localizadas somente no cérebro, mas também no
campo de informação holográfica que o envolve, se interconectando instantaneamente de modo
não-local ao campo holográfico universal. Os conceitos orientais de arquivos akáshicos e consci-
ência cósmica das tradições espirituais orientais, são uma bela metáfora deste processo universal!

Matéria e Mente
As formulações matemáticas que descrevem a curva harmônica resultante das interferên-
cias das ondas, são as transformações de Fourier, as quais Denis Gabor aplicou na criação do
holograma, enriquecendo estas transformações com um modelo em que o padrão de interferência
reconstrói a imagem virtual do objeto, pela aplicação do processo inverso. Ou seja, a partir da di-
mensão espectral de frequências, pode-se reconstruir matematicamente, e experimentalmente, o
objeto na dimensão espaço-temporal.

Como Pribram demonstra de forma brilhante neste livro: “Um modo de interpretar o dia-
grama de Fourier é olhar a matéria como sendo uma “ex-formação”, uma forma de fluxo externali-
zada (extrusa, palpável, concentrada) Por contraste, o pensamento e sua comunicação (mentali-
zação) são a conseqüência de uma forma “internalizada” (negentropica) de fluxo, sua in-formação.”

E mais adiante:

“Existem duas importantes vantagens conceituais nesta formulação:

1) mente inefável se transforma em in-formação definida pelas descrições quantitativas de


Gabor e Shanonn , que se relacionam à termodinâmica; e

2) a compreensão que a matéria como a experienciamos é uma ex-formação, uma concei-


tualização espaço-temporal, definida em um contexto mental específico.”

O universo holográfico
Este modo de organização holográfica, é também o que David Bohm aplicou à teoria
quântica. No modelo de universo de Bohm, o espaço e o tempo são misturados, "embrulhados" em
uma dimensão espectral de freqüências, uma ordem oculta, implícita, sem relações espaço-
temporais. Quando neste campo de freqüências surgem flutuações, “ondulações” mais intensas,
padrões semelhantes aos holográficos estruturam uma dimensão espaço-temporal, uma ordem
explícita, que corresponderia ao nosso universo manifesto.

133
Bohm afirma que “na ordem implícita tudo está introjetado em tudo. Todo o universo está
em princípio introjetado em cada parte ativamente, por meio do holomovimento... O processo de
introjeção não é meramente superficial ou passivo, e cada parte está num sentido fundamental,
internamente relacionada em suas atividades básicas ao todo, e a todas as outras partes.

Metáforas alquímicas como “tudo o que está em cima é igual a tudo o que está embaixo”,
e concepções como “o todo no tudo e o tudo no todo” , de Hermes Trimegistus descritas no Cabail-
lon, assim como o simbolismo das afirmações judaico-cristãs do tipo “O pai está dentro de nós”, e
“Assim na terra como no céu” , são exemplos de que essa concepção holográfica está enraizada
nos arquétipos da consciência humana desde os mais antigos pensamentos registrados.

Transcrevo abaixo a metáfora budista da Rede de Indra, que parece ser a primeira descri-
ção de um sistema holográfico ( ou como Capra coloca, de um sistema bootstrap) na história hu-
mana, feita há cerca de 2500 anos.

No distante castelo celeste do grande deus Indra, existe uma maravilhosa rede de jóias
preciosas dispostas de tal modo que se estendem infinitamente em todas as direções. Cada jóia é
um “ôlho” brilhante da rede, e como a rede é infinita em todas as dimensões, as jóias são em nú-
mero infinito. Suspensas como estrêlas brilhantes de primeira magnitude, são uma visão maravi-
lhosa para os olhos. Se olharmos de perto uma das jóias, veremos em sua superfície o reflexo de
todas as outras jóias, e que cada uma das jóias refletida nela, está refletindo também todas as
outras jóias, num infinito processo de reflexão.

A metáfora da Rede de Indra, segundo Francis Cook, “simboliza um cosmos em que existe
uma infinita interrelação entre todas as partes , cada uma definindo e mantendo todas as outras. O
cosmos é um organismo auto-referente, auto-mantenedor, e auto-criador.” É também não-
teleológico, pois, “não existe um início do tempo, nem um conceito de criador, nem um questiona-
mento sobre o propósito de tudo”. O universo é concebido como uma dádiva, sem hierarquia: “Não
tem centro, ou talvez, se existe um, ele está em todo lugar”

A Dinâmica Quântica Cerebral


Estudos experimentais desenvolvidos por Pribram e outros pesquisadores como Hameroff,
Penrose, Yassue, Jibu, confirmaram a existência de uma dinâmica cerebral quântica, nos microtú-
bulos neurais, nas sinapses, e na organização molecular do líquido céfalorraquidiano, desvelando
a possibilidade de formação de condensados Bose-Einstein, e a ocorrência do Efeito Frohlich nes-
tes sistemas. Os condensados Bose-Einstein consistem de partículas atômicas, ou no caso do
Efeito Frohlich, de moléculas biológicas, que assumem um elevado grau de alinhamento, funcio-
nando como um estado altamente unificado e ordenado, tal como ocorre nos lasers e na super-
condutividade.

134
Jibu, Yasue and Pribram desenvolveram uma dinâmica quântica cerebral que é de nature-
za holonômica, baseada no conceito de logon, ie, na função (wavelets) de Gabor, e nas transfor-
mações de Fourier. Nessa concepção o universo e a própria estrutura quântico-holográfica da
consciência, são concebidos como uma unidade tal como na concepção de mônadas de Leibnitz.
Em sua Monadologia, Leibnitz afirma que cada mônada , tal como um pequeno espelho, reflete
sua própria imagem do universo.

Norbert Wiener também acreditava nessa maneira holográfica de se compreender o uni-


verso, como vemos em sua afirmação : " Esse espelhamento é melhor compreendido como um
paralelismo, incompleto é verdade, entre a organização interna da mônada e a organização do
mundo como um todo. A estrutura do microcosmos corre paralela àquela do macrocosmo (Wiener,
Back to Leibnitz).

Acredito que o imenso padrão de interferência de todo o universo, incorporando todas as


relações de fase, no que Bohm denomina Ordem Implícita, faça com que cada organismo seja um
reflexo de todo o universo tal como uma mônada leibnitziana .

Pribram afirma que além de cada organismo refletir o universo é possível que o universo
esteja refletindo cada organismo que o observa. Portanto cada consciência está continuamente
refletindo o todo, e o todo está refletindo cada consciência, por meio do fluxo holoinformacional em
um processo dinâmico infinito distribuído e auto-referencial.

Biofótons, Microtúbulos e Superradiância


Fritz Popp demonstrou que o corpo humano emite fótons de luz por ele denominados bio-
fótons, e que esses biofótons são capazes de serem transmitidos através dos tecidos humanos por
meio de um processo denominado superradiância, no qual não ocorre nenhuma perda de energia
ou informação.

Sabemos que os microtúbulos estudados por Hameroff e Penrose , são excepcionais con-
dutores de pulsos de energia. Esses pulsos são transmitidos por túbulos que possuem as paredes
constituídas pelas proteinas MAP2s que são modeladas de tal modo que os pulsos chegam inal-
terados ao outro extremo do microtúbulo. Hameroff descobriu ainda que existe um elevado grau
de coerência quântica entre microtubulos vizinhos, e que eles poderiam funcionar como “dutos de
luz” e “guias de ondas” para os fótons, enviando essas ondas de uma célula a outra através do
cérebro sem perda de energia, exatamente como na superradiância. Este processo poderia orga-
nizar ou informar moléculas em um processo do tipo Efeito Frölich e agir sobre as moléculas dos
sistemas do organismo humano de modo a energisá-los de modo positivo ou negativo. Richard
Amoroso e eu, estamos propondo uma nova teoria das doenças autoimunes, com base nesta pos-
sibilidade. É uma teoria imunológica noética com características auto-organizadoras e quântico
holísticas, perfeitamente compatível com a teoria clonal que deu o Premio Nobel a Jerne. .

135
Yasue and Jibu também demonstraram que a mensagem quântica deve se processar por
meio de campos vibracionais e coerência quântica através dos microtúbulos.

Pribram, Yasue, Hameroff e Scott Hagan do Dept of Physics da McGill University desen-
volveram uma teoria sobre a consciência na qual os microtubulos e os dendritos podem ser vistos
como a internet do corpo humano ( ver Quantum optical coherence in cytoskeletal microtubules:
implications for brain function- BioSystems, 1994; 32: 95-209 ).

Os microtúbulos dos dendritos são bem diferentes dos microtúbulos dos axônios. Nos axô-
nios os microtúbulos têm todos a mesma polaridade, e são contínuos. Já os microtúbulos dendríti-
cos são curtos e interrompidos, com polaridades misturadas, e interconectados pela MAP2, a pro-
teína associada aos microtúbulos, específica dos dendritos. Segundo Hameroff, os circuitos MAP2
dos microtúbulos dendríticos são ideais para redes de processamento informacional, enquanto os
microtúbulos axonais unipolares são ideais para transferência de informação.

Por meio desse processamento quântico cada neurônio poderia fazer login e ao mesmo
tempo falar com outros neurônios simultaneamente, de modo não-local (entanglement), criando
uma coerência global das ondas por todo o cérebro, gerando o processo de superradiância. Os
fótons poderiam assim ser transmitidos ao longo dos microtúbulos como se fossem transparentes,
por um processo físico conhecido como transparência auto-induzida, comunicando-se com todos
os outros fótons do nosso corpo de modo instantâneo e não-local. Isso geraria uma cooperação
coletiva das partículas subatômicas nos microtúbulos, que seria distribuída por todo o sistema ner-
voso e provavelmente por todas as células do nosso corpo.

Este processo poderia explicar a unidade de pensamentos e da consciência, e o proces-


samento instantâneo do nosso cérebro.

Os físicos italianos, Del Giudice and Preparata demonstraram que as moléculas de água
no cérebro são campos de energia coerentes e se estendem até 3 nanometros, ou mais, para fora
do citoesqueleto ( microtúbulos ), o que nos leva a pensar que a água no interior dos microtúbulos
possam estar ordenadas. Estes autores demonstraram que essa focalização e coerência de ondas
pode produzir feixes de 15 nanometros de diâmetros que é precisamente o diâmetro interno dos
microtúbulos. Jibu e Hameroff chegaram à mesma conclusão demonstrando que os diâmetros
internos de 15 nanômetros dos microtúbulos são perfeitos para guiar a luz, de modo livre, sem
perdas termais.

Esses experimentos levaram Del Giudice and Preparata a propor uma conclusão paradig-
mática, herética mesmo, que já ocorrera a Fritz Popp de que a consciência é um fenômeno global
ocorrendo em todo o organismo, e não somente no cérebro.

Talvez a consciência seja luz coerente em sua essência, afirma Lyne McTaggart, em seu
livro The Field.

136
Kauffman, em seu mais recente livro Reinventing the Sacred, 2008, relata que as pesqui-
sas com moléculas envolvidas no processo de fotossíntese, demonstraram que a molécula de clo-
rofila que captura o fóton, e a proteína antena que a mantém, suportam um estado de coerência
quântica por um tempo muito longo. Parece que a proteína antena suprime a decoerência, reindu-
zindo coerência em partes decoerentes da molécula de clorofila. Kauffman afirma que “ desde que
a super elevada eficiência na transferência de energia luminosa para energia química é crítica
para a vida, esses resultados sugerem muito fortemente que a seleção natural atuou sobre a prote-
ína antena para melhorar sua habilidade de sustentar o estado de coerência quântica”

Esses processos quânticos distribuídos por todo o organismo, nos permitem conceber
uma teoria unificada da mente e da matéria tal como a totalidade cósmica indivisível de David
Bohm, e conceber o universo o corpo e a consciência como uma vasta e dinâmica rede holoinfor-
macional inteligente de troca de informações, energia e matéria.

Walter Schemp , o criador da holografia quântica, que hoje é a base do processamento de


imagens por ressonância magnética, afirma segundo McTaggart, que todas as informações sobre
os objetos em nosso universo, inclusive suas formas tridimensionais, dependem de flutuações que
ocorrem no chamado Campo de Energia do Ponto Zero, um vastíssimo campo de energia preco-
nizado por Puthoff. Em minha Teoria Holoinformacional esse campo de memória-informação cor-
responde ao campo quântico-holográfico universal, ou campo akhashico, conforme a terminologia
de Laszlo, que em uma elaboração mais complexa e mais abrangente corresponderia ao Campo
Noético de Richard Amoroso, co-autor comigo de diversos livros e trabalhos.

Schempp conseguiu calcular, recuperar e reestruturar essas informações codificadas no


campo holoinformacional em forma de imagens, nas máquinas de ressonância magnética utilizan-
do as transformações de Fourier, a matemática holográfica de Gabor e uma complicada matemáti-
ca que ele denomina simpletic spinor vector . Posteriormente com a colaboração de Marcer de-
senvolveu um mapa matemático de como a informação é processada no cérebro que é na verdade
uma demonstração matemática da teoria de Pribram.

Schemp e Marcer acreditam que nossas memórias estão no Campo do Ponto- Zero, que
em minha proposta holoinformacional quântico-holográfica seriam o fluxo dinâmico holoinformaci-
onal entre o cérebro e o cosmos, de modo similar mas não idêntico ao holomovimento de Bohm.
Como diz Mc Taggart, Pribram e Yasue poderiam perfeitamente ter proposto que nossas memórias
poderiam ser simplesmente, uma emissão coerente de ondas vindas desse Campo, e que as me-
mórias a longo prazo seriam grupos estruturados de ondas de informação. Isso poderia explicar a
instantaneidade deste tipo de memórias, que não necessitam de nenhum mecanismo de rastrea-
mento que procure informações através de anos de memórias.

O exposto acima nos permite vislumbrar e conceber uma teoria unificada da mente e da
matéria tal como a totalidade indivisível proposta por David Bohm, e assim concebermos o uni-

137
verso como uma vasta e dinâmica rede holoinformacional inteligente de troca de informações, e-
nergia e matéria, tal como propomos nesse paper

Seja qual for o mecanismo de recepção no cérebro, que como demonstrou Pribram, está
distribuído por todo o cérebro por meio da função holográfica de Gabor, ele está continuamente
acessando o que denominamos Campo Holoinformacional Universal.

A interação cérebro-universo tem que ser obrigatoriamente uma conexão não-local, o que
nos levou a expandimos nossa idéia em direção à essa proposta holoinformacional, na qual os
padrões dinâmicos quânticos cerebrais com suas redes neurais e campos holográficos são parte
ativa do campo informacional quântico-holográfico cósmico, gerando uma interconexão informacio-
nal simultaneamente não-local (quântico-holística), e local (mecanicística-newtoniana), ou seja,
holoinformacional. Aplicando a propriedade matemática básica dos sistemas holográficos, em
que cada parte do sistema contem a informação de todo o sistema, aos dados matemáticos da
física quântica de Bohm, e aos dados experimentais da teoria holográfica de Pribram, propuse-
mos, que esta interconectividade universal, baseada nos campos quânticos não-locais de Umeza-
wa, nos permitiria acessar toda a informação codificada nos padrões de interferência de ondas
existentes no universo desde sua origem, pois a natureza holográfica distribuída do universo, faz
com que cada parte, cada cérebro-consciência, contenha a informação do todo, tal como nas
mônadas de Lebnitz.

Para que esta conexão cérebro-universo possa se processar, é necessário aquietarmos


nosso cérebro, sincronizando o funcionamento dos hemisférios cerebrais, e permitindo que o modo
de tratamento holográfico da informação neuronal se otimize. Isto se consegue facilmente por
meio das práticas de meditação, relaxamento e oração que comprovadamente sincronizam as
ondas elétricas dos hemisférios cerebrais, e otimizam o tratamento holográfico da informação cor-
tical, gerando um estado ampliado de consciência. Descrições das comprovações eletroencefalo-
gráficas e clínicas, com a respectiva bibliografia desses fenômeno podem ser encontradas em meu
livro, O Homem Holístico, a unidade mente-natureza, Editora Vozes.

Os correlatos neurais da consciência


As redes cibernéticas de reações cíclicas hierárquicas por meio das quais procuramos ca-
racterizar a consciência, tem sido estudadas de forma analítica e mecanicistica como podemos ver
nas descrições a seguir: que demonstram neurônios se interrelacionando em uma dinâmica multi-
nível de “hiperciclos” (Eigen and Schuster,1979), se auto-organizando em ciclos “autocatalíticos”
(Prigogine1979; Kauffman,1995) no “limite do caos”(Lewin,1992). Os ciclos autocatalíticos se auto-
organizam em níveis superiores, por meio de hiperciclos catalíticos( e.g. um vírus), capazes de
evoluirem para estruturas mais complexas e mais eficientes, até a “emergência de conjuntos, de
conjuntos de... de conjuntos de neurônios” (Alwin Scott,1995). Deste modo a rede gera “„loops‟

138
criativos” (Erich Harth,1993) e “hiperestruturas” (Nils Baas,1995), capazes de se integrarem em
sistemas com padrões de conectividade distribuídos e paralelos, como o “Global Workspace”
(Newman and Baars,1993), e o “Extended Reticular-Talamic Activation System”-ERTAS de James
Newman (1997).

No entanto, como demonstrei, em sistemas auto-organizadores como o cérebro humano,


estes “correlatos neurais” da consciência, não são estruturados somente por complexificações das
relações locais mecanicísticas da matéria, mas são primordialmente, gerados pelo campo quânti-
co-holoinformacional inteligente auto-organizador universal. A partir dessa dimensão oculta, espec-
tral, denominada por Bohm de realidade implícita, se forma (ex-forma) a realidade explícita, que é o
nosso universo material manifesto. O cérebro, que é parte desta realidade manifesta, gera sua
própria realidade espectral a partir de campos quântico-holográficos, que se formam nos padrões
de interferência de ondas nas interseções das flutuações nas finas fibras telesinaptodendriticas
descritas por Pribram. No capítulo 1 deste livro, Pribram denomina esta realidade espectral de
“domínio pré-espaço-temporal de realidade potencial, porque na realidade experienciada de cada
momento navegamos no espaço-tempo”, e mais adiante mostra que “um modo de interpretar o
diagrama de Fourier é olhar a matéria como sendo uma “ex-formação”, uma forma de fluxo exter-
nalizada ( extrusa, palpável, concentrada) Por contraste, o pensamento e sua comunicação (men-
talização) são a conseqüência de uma forma “internalizada” ( negentrópica) de fluxo, sua “in-
formação”.

O campo unificado da consciência


O cosmos é constituído por matéria vida e consciência, que são atividades significativas,
isto é, processos informacionais com significados, ordem transmitida através da evolução cósmica.
Um universo auto-organizado como um campo quântico-holográfico, pleno de informação significa-
tiva local e não-local (holoinformacional), é um universo inteligente que funciona como uma
mente, como o astrônomo inglês Sir James Jeans já tinha observado: "O universo começa a se
parecer cada vez mais com uma grande mente , do que com uma grande máquina".

Este campo quântico-holográfico universal pode ser compreendido como uma rede cósmi-
ca inteligente?

Uma mente cósmica ?

Uma Consciência Holográfica Universal como a Consciência Cósmica das tradições


espirituais da humanidade?

Nesta concepção holoinformacional do cérebro e do universo, consciência e inteligência


são compreendidos como informação, como ordem significativa que se auto-organiza e se comple-
xifica. São dimensões, níveis de complexidade que apesar de não serem idênticas, se superpõem,

139
sendo possível afirmar que a dimensão inteligência-informação sempre esteve presente em
todos os níveis de organização da natureza.

Matéria, vida e consciência não são entidades separadas, capazes de serem analisadas
em um arcabouço conceitual cartesiano, analítico-reducionista, mas uma unidade holística indi-
visível, um campo quântico holoinformacional inteligente auto-organizador que vem se desdo-
brando há bilhões de anos em uma infinita e dinâmica holoarquia cósmica.

Einstein gostava de dizer “quero conhecer os pensamentos de Deus... o resto são deta-
lhes”.

Estes códigos informacionais que in-formam o Universo, são os verdadeiros pensamen-


tos de Deus... aquilo que verdadeiramente nos religa à nossa fonte! Foram colocados à nossa
disposição, oferecidos como uma dádiva que não temos como compreender! Sua utilização corre-
ta pelo homem, imerso neste todo holoinformacional gerador de vida e consciência, e capaz de
acessar esse todo, deve eticamente estar direcionada para a preservação desta linguagem uni-
versal, por meio de uma ética de reverência pela Vida!

Esta, a nossa grande responsabilidade moral!

O bem consiste em preservar a vida, em lhe dar suporte, em procurar levá-la ao seu mais
alto valor. O mal consiste em destruir a vida, em ferí-la ou destruí-la em plena florescência.

Albert Schweitzer, Prêmio Nobel da Paz

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145
Capítulo 12

Vida e Morte

146
PARTE III

PRÁTICAS CLÍNICAS EM PSICOLOGIA TRANSPESSOAL

147
Capítulo 13

Terapia de Memória Profunda

148
Capítulo 14

Respiração Holotrópica

149
Capítulo 15

Morte e Renascimento Psicológico

150
Capítulo 16

A Dinâmica Energética do Psiquismo

151
PARTE IV

EXTENSÕES EM PSICOLOGIA TRANSPESSOAL

152
Capítulo 17

Um Abraço Integral
Práticas para a Saúde nos Quatro Quadrantes do Desenvolvimento Humano

Ken Wilber é reconhecidamente um dos principais pensadores que influenciaram no de-


senvolvimento e na estruturação do corpo teórico da Psicologia Transpessoal. Seu modelo do “es-
pectro da consciência”, produzido aos 23 anos de idade, é uma das cartografias mais completas da
consciência humana e visa integrar os conhecimentos das diversas escolas psicológicas conven-
cionais com as principais abordagens dadas à consciência nas culturas ocidental e oriental.

Sua produção teórica tem se desdobrado ao longo do tempo (pelo menos cinco revisões),
alcançando uma extrema complexidade e influenciando diretamente uma ampla geração de tera-
peutas transpessoais. Wilber desenvolveu uma metodologia integrativa, e não eclética, no estudo
da consciência humana, conseguindo integrar em uma cartografia harmônica as principais contri-
buições dos teóricos de diversas áreas do saber humano; sendo dado destaque a sua incrível ca-
pacidade de integrar as visões espirituais (orientais e ocidentais) no estudo do ser humano.

Neste texto inicialmente oferecemos uma visão geral do modelo de desenvolvimento da


consciência na teoria de Ken Wilber, seguido da apresentação dos “Quatro quadrantes do Kos-
23
mos ” e sua contribuição para pensarmos práticas de saúde integral.

Modelo de desenvolvimento da consciência


Um modelo de desenvolvimento da consciência é fundamental para estruturarmos uma vi-
são abrangente do ser humano, pois aponta metáforas dos percursos do seu crescimento, bem
como destaca entraves e desafios a serem superados na busca/construção de saúde integral.

No modelo de integralidade apontado por Wilber (1986, 2000), as estruturas básicas da


24
consciência correspondem à grande cadeia do ser da filosofia perene . A metáfora utilizada por
25
esse autor para apresentar a estrutura básica da consciência é a imagem de uma escada (figura

23
“Kosmos, que significa o Todo padronizado de toda a existÊnica, incluindo os reinos fisico, emocional, mental e espiritual.
A realidade suprema não era meramente o cosmos, ou a dimensão física, mas o Kosmos, as dimensões física, emocional,
mental e espiritual, todas juntas” (WILBER, 2003, p. 10).
24
Filosofia perene é um termo utilizado por Huxley (2002) e Wilber (2000) para designar os pontos de convergência presen-
tes entre as principais tradições espirituais do mundo.
25
Pense nesta escada como uma espiral holográfica.

153
abaixo), que se inicia no degrau zero (matrizes perinatais) e se desdobra até o degrau 10 (nível
último).

O conhecimento de um percurso do desenvolvimento da consciência através desta escada


holográfica é apresentado a seguir com o intuito de ajudar o leitor a navegar na imensa vastidão e
complexidade do Ser. Contudo o fenômeno humano não é esgotado nos modelos, pois o humano
continua seu desdobramento, sempre se apresentando resistente aos processos de categoriza-
ções. Assim, o modelo de Wilber, como ele mesmo destaca, deve ser tomado como uma grande
metáfora, sempre aberta a novas integrações.

Modelo da estrutura da consciência

Os quatro degraus iniciais formam a base do ser no seu movimento de evolução e apre-
sentam a característica de serem pré-pessoais, ou seja, a noção de um “eu separado” ainda não
emergiu, sendo o “degrau zero”, matrizes perinatais, foco de estudo de psicanalistas pioneiros
como Otto Rank, Françoise Dolto e Maud Monnoni e do transpessoal Stanislav Grof.

Neste momento os aspectos que envolvem a gestação e nascimento são destacados como
relevantes para organização do psiquismo. Os trabalhos transpessoais de Grof (1988, 1994,
1997a, 1997b, 2000) reafirmam as descobertas freudianas e rankianas, e ampliam a cartografia do
psiquismo através da introdução da noção das matrizes perinatais.

154
O primeiro degrau corresponde ao nível da matéria, da sensação e da percepção, ou dos
três primeiros skandhas budistas, bem como engloba o nível sensório-motor de Piaget. Este pri-
meiro degrau ou nível é o do eu físico, o qual, primeiramente, encontra-se em unidade indiferenci-
ada com o meio-ambiente material. Esse tipo de eu ainda não está em condições de se distinguir
do meio-ambiente material, instaurando uma relação diferenciada com ele, bem como não sabe
ainda separar-se de um outro eu. O momento final dessa etapa sinaliza, entretanto, a saída da
unidade indiferenciada, de tal forma que o eu físico começa gradativamente a afirmar-se diante da
realidade objetiva. Isto lhe permite, então, separar-se do outro subjetivo ou objetivo a fim de poder
lidar com ele, sem sentir-se perdido e, por assim dizer, “totalmente atolado” no outro.

Se, no entanto, uma primeira dissociação tem lugar, então o eu se vê diante de uma outra
tarefa, a saber, construir seu mundo emocional. À primeira dissociação tem de seguir uma segun-
da, a fim de que a consciência possa afirmar seus sentimentos frente a outros objetos e outros
seres humanos, ao invés de confundir seus sentimentos com sentimentos alheios.

Assim como ocorreu anteriormente uma diferenciação na fisioesfera, o mundo do eu físico,


assim também há uma diferenciação na bioesfera, o mundo do eu emocional. Em ambos os mun-
dos, o eu transcende, de um lado, a sua completa assimilação pelo outro, sem, no entanto, elimi-
ná-lo. Se o outro fosse totalmente negado, então o eu se relacionaria apenas consigo mesmo. Se o
eu fosse totalmente assimilado, então não haveria uma subjetividade relativamente independente.
A afirmação físico-impulsiva e biológico-emocional do eu pressupõe a relação entre sujeito e objeto
e a entre sujeito e um outro sujeito, nas quais sujeito e objeto mantenham suas respectivas posi-
ções, sem que um seja reduzido ao outro. A deficiência, a qual consiste tanto em não saber distin-
guir os elementos existentes nessas relações quanto em não saber interligá-los em sua múltipla
unidade ou multiplicidade una, conduz a patologias.

O segundo degrau ou nível corresponde na abordagem budista ao quarto Skandha, ao ní-


vel emocional-sexual, sendo o nome fantasmagórico cunhado por Arieti (1967) para indicar a men-
te inferior ou de imagem, a forma mais simples de visualização mental, usando apenas imagens.

No terceiro nível de seu desenvolvimento o eu encontra um outro desafio, a saber, avan-


çando para além da bioesfera e, simultaneamente, conservando-a, ele estabelece-se em sua fa-
culdade mental, a nooesfera. No mundo mental a linguagem desempenha um papel muito impor-
tante, pois ela capacita o eu a distanciar-se da imediatez das pulsões e emoções e, com isso, con-
trolá-las e, em casos mais graves, reprimi-las. A consciência está, portanto, em condições de se
separar delas, mas também de integrá-las.

A diferença entre corpo e nooesfera é apenas o início de um movimento no qual a consci-


ência individual progride em direção ao mundo coletivo e social. Graças ao incipiente domínio da
linguagem o eu pode tomar sobre si uma virtude fundamental para a convivência social e, portanto,
distanciar-se de um mundo centrado exclusivamente no eu. Trata-se do fato de colocar-se no lugar

155
do outro, desempenhar o papel do outro, entender e praticar o intercâmbio de papéis. Assim, te-
mos no terceiro degrau, a mente representacional que pode ser associada ao estágio pré-
operatório de Piaget, e subdivide-se em estágio de símbolos e estágio de conceitos.

Os degraus 4, 5 e 6 formam o nível pessoal, aqui emerge a noção de um “eu separado”,


enquanto os quatro últimos formam o nível transpessoal, ou seja vão além do pessoal, da separa-
ção mente e corpo imposta pelo congelamento nos níveis pessoais.

A quarta etapa da evolução da consciência consiste na consciência e nas vivências de


seus papéis. A identidade concentrada no corpo, em suas pulsões, emoções e desejos, portanto
centrada na natureza, é substituída pela identidade relacionada com o intercâmbio de papéis. O
indivíduo que se encontra nessa fase aprende tanto a representar seu próprio papel quanto a dis-
tingui-lo dos papéis de outros seres humanos. Ao eu que alcançou essa etapa de sua evolução
surge a esfera social, na qual sua identidade determinada por normas e leis de seu contexto está
entrelaçada e interligada com as identidades de outros sujeitos. A consciência individual permane-
ce ainda, por assim dizer, fundida ao ethos coletivo, de tal forma que ela assume uma identidade e
um papel atribuídos pelo eu coletivo, o “nós”. Isto caracteriza o nível convencional de moralidade,
segundo o qual o eu se adapta ao padrão de valores conjuntamente vivenciados em uma determi-
nada sociedade. Trata-se de internalizar leis, prescrições e normas, mediante as quais ele faz o
que ele deve fazer.

Na próxima (quinta) fase de desenvolvimento as leis e normas que até então regiam as vi-
vências da consciência são questionadas. Não se trata mais de saber o que é bom para minha
família, o grupo social ou o povo, aos quais alguém está ligado. Antes de mais nada, trata-se de
determinar o que é justo para todos os povos, apesar e levando em conta as suas diferenças. A
identidade da consciência centrada em um círculo social acanhado é abandonada em favor de
uma identidade focada em todo o planeta. Um horizonte de novas possibilidades é aberto, na me-
dida em que a totalidade das normas e leis está em questão e torna-se problemática. Assim, pela
primeira vez, surgiu um nível de consciência no qual ela, liberta do seu narcisismo, egocentrismo e
etnocentrismo, toma como seu próprio interesse o mundo como tal, justiça e condições materiais
de vida dignas para todos. Com isso, uma moralidade pós-convencional surgiu, graças à qual o
indivíduo se orienta pelo bem-estar da humanidade.

No sexto degrau, que aprofunda ainda mais a integração entre corpo e faculdade mental, o
eu inicia a objetivação do corpo e da faculdade mental, a sua tematização, bem como o progressi-
vo distanciamento do corpo e da mente. Ela é denominada a estação da lógica sistêmica, visto que
ela considera os objetos como um todo formado por uma multiplicidade de sistemas, dentro do
qual, e em relação a outras totalidades, os objetos ganham sentido. Na medida em que a consci-
ência torna-se testemunha do corpo e da faculdade mental, também sua faculdade reflexiva torna-
se mais ativa, de tal forma que ela começa a transcender corpo e nooesfera.

156
Isto acarreta o aprofundamento do ponto de vista pós-convencional, de tal modo que as
posições com base em normas e leis de determinada sociedade não encontram mais legitimação
para esse nível. Há, pois, um grande risco de que o eu sistêmico perca-se nas múltiplas perspecti-
vas que lhe são abertas, afundando-se em um completo relativismo. A pluralidade das perspecti-
vas não significa, contudo, que todas são igualmente corretas, já que valores orientados segundo
uma perspectiva global são melhores do que aqueles orientados de acordo com uma perspectiva
centrada apenas no indivíduo ou em apenas um povo. Aqui, portanto, reside o perigo de uma “do-
ença existencial”, em que a consciência, insatisfeita com todas as razões capazes de dar sentido à
vida, não consegue mais coordenar as diversas perspectivas.

A superação dessa dificuldade é viabilizada pela passagem do eu à próxima (sétima) esta-


ção de sua evolução: o nível psíquico de desenvolvimento. Essa nova estação é aquela em que a
identidade da consciência não repousa mais na união com o próprio eu, a sociedade ou o planeta.
O novum nessa estação reside no fato de que a consciência se sente una com todos os seres,
humanos e não-humanos, com toda a natureza cósmica interpretada como manifestação do Abso-
luto. O eu transcende as limitações de seu geocentrismo, a fim de considerar o cosmo como uma
comunidade formando uma só irmandade. Todos os seres são penetrados pela supra-alma, a qual,
como uma luz, irradia-se através dele. A consciência individual, ao participar da vida dessa supra-
alma, mostra-se como superando todas as suas identificações.

À supra-alma está associada a um novo tipo de moralidade, a saber, a compaixão com to-
dos seres. A compaixão não é uma coação para a ação, mas uma ação espontânea e gratuita. Ao
levar a cabo a integração da fisioesfera, bioesfera e nooesfera, o nível psíquico leva a efeito a ex-
periência consciencial supramental da unidade dessas três esferas. Não é por acaso que esse
nível tanto transcende quanto inclui a última estação.

A oitava estação da evolução consciencial é a internalização e refinamento das aquisições


da última etapa. E justamente em virtude disto provem a dificuldade de descrevê-la. Como exemplo
do que se passa nessa fase, Wilber vê as experiências místicas de Tereza de Ávila. Há sentido de
falar em refinamento da experiência da consciência, já que a consciência está diante de um mundo
que extrapola toda a natureza cósmica do nível psíquico. A realidade com a qual ela se defronta é,
então, chamada nível sutil, posto que ela tem a experiência de fenômenos tão sutis que parecem
desvanecer. Há sentido também em falar de internalização, porque a consciência aprofunda o seu
avançar para dentro de si mesma, movimento que, por sua vez, a conduz a um amigável abraço
com toda a natureza cósmica e sua origem. Ao universo físico é acrescido o mundo sutil que, en-
quanto fonte desse próprio universo físico, se manifesta, como matéria densa, no cosmo físico.
Comparando com a filosofia de Plotino, o plano sutil corresponde ao da alma, pois essa é a raiz da
esfera material. Em consonância com a sutileza dessa etapa, a oposição entre sujeito e objeto
torna-se cada vez menor, extremamente pequena, enfim, sutil.

157
A evolução da consciência ainda não alcançou seu estágio final. A nona estação eleva-a
ao plano causal. Ele é o plano das formas, a partir das quais os níveis inferiores são moldados. Na
tradição filosófica ocidental esse nível encontra sua correspondência no mundo das Idéias de Pla-
tão e na hipóstase do Espírito, de acordo com a filosofia plotiniana. Ela sinaliza tanto a identidade
do pensamento com o ser quanto a totalidade do ser e, nessa medida, contém as Formas (Idéias)
que estruturam toda “a grande cadeia do ser”. Aqui estão as condições “formais” que conferem a
todos os seres sua figura ontológica específica.

Finalmente, a consciência faz a sua experiência decisiva que a leva a transcender todas as
formas em direção ao sem-forma, acima de toda discursividade e dualidade: o Uno em Plotino, o
nirguna (ausência de qualidade) na tradição do vedanta, o shunyata (vacuidade) na tradição budis-
ta. O sem-forma não pode mais entrar no jogo dos atributos, já que, enquanto incondicionado, ele
tem de ser privado de toda forma, a fim ser a fonte de todas as formas. Nesse específico sentido,
ele é a vacuidade simples ou o puramente negativo: nem isto, nem aquilo. O sem-forma não per-
tence mais a um plano consciencial específico. Ele é simplesmente aquilo em que a consciência e
seu objeto se encontram, também aquilo do qual eles surgem e também aquilo para o qual eles
retornam. Ele é “simultaneamente” imanente e transcendente a todos os níveis de desenvolvimen-
to consciencial. Nenhum desses níveis é capaz de exauri-lo, pois o sem-forma constantemente os
põe e transpõe.

A abordagem transpessoal estuda o amplo espectro da fenomenologia que se desdobra no


conjunto da escada holográfica, sejam eles os degraus pré-pessoais, pessoais ou transpessoais.
As visões tradicionais de saúde põem o quinto degrau ou nível como a última instância a ser de-
senvolvida, já que as operações formais seriam as últimas habilidades a serem trabalhadas; con-
tudo, a abordagem transpessoal oferece uma ampliação desse modelo, mediante a inclusão dos
outros degraus. O sexto degrau é apresentado como a estrutura mais desenvolvida do nível pes-
26
soal, representando uma ponte de transição para os níveis transpessoais .

A perspectiva transpessoal busca, portanto, incluir uma visão global da experiência huma-
na, daí trabalhar com o modelo do espectro total da consciência e propor uma intervenção que
abranja todos os níveis e todos os quadrantes. A expressão “todos os níveis” refere-se às ondas
da existência que vão da matéria ao corpo, do corpo à mente, da mente à alma e desta ao espírito;
“todos os quadrantes” refere-se às dimensões do eu, do nós e do isto (ou eu, cultura e natureza).
De forma geral, uma saúde integral do tipo “todos os níveis e todos os quadrantes” levará a exerci-

26
Psicólogos como Bruner, Flavell e Arieti (1967) observaram que existem muitas evidências sobre uma estrutura cognitiva
além da “operacional formal” de Piaget ou superior a ela. Esta estrutura tem sido denominada de “dialética”, “integrativa” e
“sintético-criativa”, contudo Wilber prefere “visio-lógico”, pois enquanto a mente formal estabelece relações, a visio-lógico
“estabelece redes de relações”, uma visão abrangente e panorâmica aliada a uma alta capacidade de síntese altamente
integradora.

158
tar as ondas físicas, emocionais, mentais e espirituais, no eu, na cultura e na natureza, ou seja
deve contemplar os quatro quadrantes do Kosmos.

Saúde nos quatro quadrantes do Kosmos


Wilber (2001a, 2002, 2006), propõe que para compreensão do fenômeno humano é fun-
damental uma visão interdependente das quatro áreas do Kosmos: as áreas do intencional e cultu-
ral com características de serem hermenêuticas e abordarem a consciência, formando o bloco do
interior, e as áreas comportamental e social marcando o exterior e tornado-se reconhecidas por
serem monológicas, empíricas, positivistas e formais

Wilber empreende a pesquisa sobre os níveis de desenvolvimento da consciência, consi-


derando a constelação teórica moderna e pós-moderna. Seu propósito consiste em formular uma
teoria integral capaz não só de reconstruir as etapas da evolução consciencial, mas também coor-
dená-las com os âmbitos da cultura, organização social, política e tecnológica. Daí resulta sua
teoria dos quatro quadrantes e dos níveis de desenvolvimento em cada um desses quadrantes.
Essa idéia ajuda a compor a visão das práticas para saúde integral e pode ser vista na figura a
seguir.

Os Quatro quadrantes do Kosmos

SUPERIOR ESQUERDO(SE) SUPERIOR DIREITO (SD)

INTERIOR- INDIVIDUAL EXTERIOR-INDIVIDUAL

SUBJETIVO OBJETIVO

Intencional Comportamental

EU ISTO

159
INFERIOR ESQUERDO (IE) INFERIOR DIREITO (ID)

INTERIOR-COLETIVO EXTERIOR-COLETIVO

INTERSUBJETIVO INTER-OBJETIVO

Cultural Social

NÓS “ISTOS”

O quadrante superior esquerdo diz respeito aos aspectos individuais e interiores do indivi-
duo, tal como ela é estudada pela psicologia do desenvolvimento, tanto em suas formas de mani-
festação convencionais como também contemplativas. É o aspecto subjetivo da consciência e con-
tém todo o espectro do desenvolvimento consciencial. Esse quadrante faz uso da linguagem da
primeira pessoa do singular (EU) para relatar e interpretar as vivências internas do fluxo interior da
consciência de cada indivíduo. É segundo Wilber (2002, p. 78) a “sede da estética, ou a beleza que
está no „eu‟ do observador”, enfim, diz respeito a todo o aspecto subjetivo e intencional do ser.

A saúde integral neste quadrante engloba o cuidado com os níveis emocionais, mentais e
espirituais.

O nível emocional - engloba uma série de práticas que visam o manejo das emoções atra-
vés da respiração e do uso consciente da sexualidade. Busca-se a “Transmutação de Emoções”,
principalmente das emoções negativas através de práticas como o “t‟ai chi, ioga, bioenergética,
27
circulação do prana ou energia do sentimento, qi gong” e “transmutação de emoções, treinamen-
to de inteligência emocional, bhakti ioga (práticas devocionais), prática emocional cautelosa, ton-
28
glen (meditação de troca compassiva), arte e expressão criativa” . Wilber (2006, p. 261) destaca
que o trabalho com o “Sexo (ou Ioga sexual) se concentra nos aspectos tântricos do relacionamen-
to, sobretudo usando os quadrantes SE e IE como ponto para o despertar.”

Neste nível também se inclui as práticas que visam o trabalho com a sombra, ou inconsci-
ente reprimido. De forma geral, este trabalho visa acessar e integrar aspectos negligenciados ao

27
Wilber, 2002, p. 130.
28
Wilber, 2006, p. 260.

160
longo do desenvolvimento com o objetivo de favorecer uma maior integração do ser consigo, com
o outro e com o mundo. Wilber sugere como recurso para o trabalho com a sombra a “terapia Ges-
talt, terapia cognitiva, processo 3-2-1, trabalho com os sonhos, interpessoal, psicanálise, arte e
29
musicoterapia”

Nível da Mente – considerando a cognição, sobretudo, a capacidade de adotar perspecti-


30
vas, como fundamental para “criar um espaço de perspectivas múltiplas na psique” , Wilber desta-
ca que práticas que ajudem a ampliar a visão de homem e realidade podem ser extremamente
úteis, assim como as psicoterapias, as terapias cognitivas e o trabalho com a sombra, pois ajudam
a flexibilizar os padrões mentais através do descentramento do eu.

Nível do Espíritual – aqui são incluídos as práticas e conteúdos voltados para o desenvol-
vimento de estados meditativos ou contemplativos; que buscam favorecer uma ampliação da cons-
31
ciência que permita incluir o máximo possível as várias dimensões do humano. O “espiritual” tem
a mesma conotação atribuída por Röhr (2006, p. 15-16).

Não se confunde essa dimensão com a religiosa, que em parte pode in-
cluir a espiritual, mas que contém algumas características como as da revelação
como intervenção direta de Deus e de um tipo de organização social que dessa
forma são estranhas ou não necessárias à dimensão espiritual. Podemos nos
aproximar à dimensão espiritual identificando uma insuficiência das outras di-
mensões em relação ao homem nas suas possibilidades humanas. Posso viver
nas demais dimensões sem ser comprometido com nenhum aspecto delas. En-
tro na dimensão espiritual no momento em que me identifico com algo, em que
eu sinto que esse se torna apelo incondicional para mim. Identificamos, por e-
xemplo, fenômenos humanos, freqüentemente pouco refletidos, mas onipresente
na nossa vida como a liberdade e a crença no sentido da vida como elementos
da dimensão espiritual, e de fato eles só existem na medida em que me com-
prometo com eles. Podemos incluir na dimensão espiritual todos os princípios é-
ticos e filosóficos que precisam, para se tornarem verdadeiros, da minha identifi-
cação com eles. Não se trata na dimensão espiritual de uma identificação so-
mente ao nível do pensamento e do discurso. Trata-se de uma identificação na
totalidade, incluindo necessariamente um agir correspondente. Um saber que
não se expressa na minha vida prática, seja ela pública ou particular, não alcan-
çou ainda a dimensão espiritual. Uma convicção com que não me identifico por
inteiro serve para camuflar lados de mim que não consigo ou não quero enxer-
gar, e leva fatalmente a desequilíbrios internos e externos. As certezas sobre a

29
Wilber, loc. cit.
30
Ibid, p. 259.
31
Por ampliação da consciência queremos sugerir o desenvolvimento da plena atenção para o momento vivido.

161
própria identidade não são de natureza racional, mas intuitiva. Por isso chamo
essa dimensão também de intuitivo-espiritual.

Wilber destaca que as práticas neste nível vão do treinamento meditativo, visualizações até
prece centrada. Ele inclui práticas do “zen, grande mente, cabala, meditação transcendental (TM),
32
questionamento integral e 1-2-3 de Deus” .

O quadrante superior direito expressa a contraparte objetiva e externa ao quadrante supe-


rior esquerdo. Trata-se da base atômica, molecular, orgânica, biológica e corpórea, enfim, objetiva
com a qual a experiência intencional da consciência interage e se expressa na forma comporta-
mental. A linguagem correspondente a esse quadrante relata os fatos científicos do organismo
individual. Wilber (2006, p. 36-37) indica que a dimensão objetiva é

[...] portanto, o que qualquer evento individual parece ser de fora. Isso
inclui, sobretudo, o comportamento físico, os componentes materiais; a matéria e
a energia e o corpo físico – porque todos esses itens aos quais podemos nos re-
ferir de modo objetivo, na 3ª pessoa, ou “ele”.
33
O trabalho neste quadrante envolve o cuidado com o corpo , englobando os aspectos físi-
co e neurológicos. As práticas que tratam do físico incluem o manejo da dieta e o trabalho estrutu-
ral (“levantamento de peso, aeróbica, longas caminhas, Rolfing”). Já as práticas que tratam do
Neurológico buscam corrigir os possíveis desequilíbrios bioquímicos com tratamento farmacológi-
co, bem como estimula o uso de máquinas para o cérebro/mente que ajudem “a induzir estados de
34
consciência teta e delta” . Wilber ainda destaca a prática do Tai chi chuan, Qi Gong para trabalhar
35
com o corpo sutil e o “exercício para os três corpos” que trabalha simultaneamente o físico, o sutil
e o causal.

Wilber também não negligenciou a passagem do “eu” para o “nós” no tratamento da expe-
riência fenomenológica do “ser no mundo”. O quadrante inferior esquerdo tematiza a pluralidade
dos sujeitos, o mundo dos valores, as visões de mundo, o ethos compartilhado pelos indivíduos, a
esfera subjetivo-coletiva. O “eu” coletivo vivencia também uma evolução que expressa a contrapar-
te intersubjetiva do desenvolvimento da consciência individual.

“A linguagem desse quadrante é a linguagem do nós: linguagem de se-


gunda pessoa ou linguagem do eu-tu, que envolve entendimento mútuo, eqüida-
de e bondade. Em resumo, como você e eu nos arranjamos para nos relacio-
narmos harmoniosamente. Esse é o quadrante cultural.” (WILBER, 2002, p. 79)

32
Wilber, 2006, p. 260.
33
O corpo tem uma perspectiva de “denso, sutil e causal”.
34
Wilber, 2002, 130.
35
Wilber, 2006, p. 260.

162
Neste quadrante se destaca as práticas que buscam ativar a saúde através dos relaciona-
mentos, dos serviços comunitários e da ética.

Wilber destaca que os relacionamentos com a família, com os amigos e com os seres sen-
cientes em geral são fundamentais para potencializar o crescimento pessoal e favorecer a descen-
tralização do eu. Com este mesmo objetivo os “Serviços Comunitários”, tais como “trabalho volun-
36
tário, abrigos para moradores de rua, asilos, etc” possibilitam o deslocamento do olhar do eu para
uma visão mais abrangente. e inclusiva.

A ética é posta como um exercício fundamental de cuidado neste quadrante, retomando


assim suas raízes terapêuticas gregas. Wilber destaca a ética como “empenho com o mundo inter-
37
subjetivo do bem, prática da compaixão com relação a todos os seres sencientes” e aponta os
“códigos de ética, ética profissional, ativismo ecológico e social, autodisciplina ética integral, espor-
38
tes, votos e juramentos” como práticas a serem realizadas para a melhoria da saúde integral.

A vivência cultural da humanidade não está obviamente dissociada de sua base social, ins-
titucional e tecnológica. Assim, o quadrante inferior direito, com sua linguagem dos “Istos”, tem por
meta refletir sobre a evolução das várias formas de organização social, institucional e tecnológica
construídas pela humanidade ao longo de sua história. Sendo, portanto a contraparte externa-
coletiva do quadrante inferior esquerdo.

As práticas para saúde integral neste quadrante englobam o trabalho com as visões de sis-
temas, assim como o trabalho institucional. Wilber (2002, p. 130) destaca assim estas práticas:

Sistemas – exercício de responsabilidade com relação a Gaia, à nature-


za, à biosfera e às infra-estruturas geopolíticas em todos os níveis

Institucional – exercícios de deveres educacionais, políticos e cívicos


para a família, a cidade, o Estado , a nação e o mundo

Analisando os quadrantes com maior atenção, percebe-se que os quadrantes direitos (Su-
perior e Inferior) são eminentemente objetivos, podendo ser colocados sobre a rubrica da lingua-
gem do “Isto”, de forma que passamos a algo semelhante aos “„Três Grandes‟ do eu, do nós e do
isto. Ou a estética do „eu‟, a moral do „nós‟ e os „istos‟ da ciência. O Belo, o Bom e o Verdadeiro;
relatos de primeira pessoa, de segunda pessoa e de terceira pessoa; eu, cultura e natureza; arte,
ética e ciência” (WILBER, 2002, p. 79).

As práticas indicadas para sensibilizar “Os quatro quadrantes de Kosmos” retomam o per-
curso de desenvolvimento da consciência apresentado no início do texto, buscando ajudar o Ser a

36
Wilber, 2002, p.131.
37
Wilber, loc.cit.
38
Wilber, 2006, p. 260.

163
se desdobrar ao longo da escada holográfica, até alcançar os níveis mais elevados de consciência.
De forma que uma vez expandido, possa colaborar na expansão do mundo vivido.

Pensar em saúde dentro de um modelo integral indica uma abertura para sensibilizar e e-
39
xercitar “o corpo, a mente, a alma e o espírito no eu, na cultura e na natureza” , de forma que
quanto mais abrangente for nossa capacidade de estender um abraço integral a todas as áreas do
seu ser, maiores serão também as possibilidades de uma saúde mais abrangente.

Referências bibliográficas
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______. (2003). Uma teoria de tudo. São Paulo: Ed. Cultrix.

______. (2006). Integral spirituality. Boston: Shambhala Publications.

39
Wilber, 2002, p. 131.

164
165
Capítulo 18

Educação para a Paz

166
Capítulo 19

Psiquiatria Transpessoal

167
Capítulo 20

Teorias Sistêmicas em Família (Constelações familiares)

168
Capítulo 21

Psicologia Social Transpessoal

169
Capítulo 22

Abordagem Organizacional Transpessoal

Introdução
O cenário atual é de cada vez maior incerteza induzido por profundas modificações trans-
corridas no meio ambiente, realidade essa que tem demandado um comportamento que lide com
um número cada vez maior de desafios e perigos. A ação humana tem sido construída com base
na busca de modelos e ferramentas transcendentes, isto é: constructos e modelos mentais que
torne suportável e saudável a vida. Fundamentalmente, buscamos sermos felizes. Como recursos
utilizados pelo homem para compreender tão profundas transformações e encontrar a felicidade,
identificaríamos: ou conhecimento das próprias emoções e dos estados de consciência; o conhe-
cimento científico, filosófico, econômico, cultural, social e ambiental; a fantasia, expressa através
da arte, do sonho e do devaneio e a religião. É a experiência do conhecimento, da fantasia e da
religião em diferentes graus que encoraja os indivíduos a empreender uma jornada fantástica e
desafiadora nesta vida. Contudo, esses recursos são apenas meios para se identificar aquilo que é
mais essencial ao seu humano: o auto-conhecimento de sua psique, de seus estados de consciên-
cia, da sua existência.

A administração transpessoal está interessada em educar as pessoas para a descoberta


do seu potencial pessoal para o contato com a transcendência, a infinitude do ser, as oportunida-
des do universo, a comunhão com Deus, a integração com a saúde, a qualidade de vida no traba-
lho e a experiência da paz, do amor e da compaixão.

É possível uma gestão transpessoal? O que é uma gestão transpessoal? Em que medida
ela se desacopla de outros campos teóricos e definidos na administração? Fundamentalmente, a
gestão transpessoal colhe elementos da psicologia transpessoal que seria um enfoque desenvolvi-
do a partir da década de 1960 interessado no estudo dos estados de consciência. É sobre a apli-
cação de alguns conceitos da psicologia a um modelo gerencial que se desenvolve este texto.

A psicologia transpessoal: uma base para um novo modelo gerencial


O objeto da psicologia transpessoal é a consciência e transcendência. A administração
transpessoal reflete valores universais como um desejo de segurança, paz e amor. Administração
transpessoal seria um modelo gerencial influenciado pela psicologia transpessoal. Desse modo, o

170
que seria a psicologia transpessoal e o que esse modelo gerencial importaria da psicologia trans-
pessoal?

A psicologia transpessoal busca compreender, na investigação dos estados de consciên-


cia, onde se encontram as raízes das experiências humanas. A grande inovação da psicologia
transpessoal está em acreditar que as raízes dos traumas humanos poderiam residir muito além
dos processos psicodinâmicos, podendo se encontrar em regimes das dimensões perinatais e
transpessoais.

Uma compreensão da totalidade do homem envolveria perceber as influências dos sonhos,


do inconsciente coletivo, dos arquétipos, mitos, símbolos, religiões, domínios perinatais e transpes-
soais e dos eventos biográficos na vida humana. A psicologia transpessoal também usa elementos
de outras escolas de psicologia, tais como behaviorismo, psicanálise, psicologia humanista e a
psicologia analítica de Jung (Matos: 1994).

Para Matos (1994), a psicologia transpessoal é vista como uma abordagem que estuda es-
tados de consciência que transcendem o ego e a auto-imagem. A psicologia transpessoal seria
entendida como a quarta força da psicologia, classificação que destaca a psicologia contemporâ-
nea dividida em quatro grandes correntes ou forças congregadoras cuja a primeira força corres-
ponde ao Behaviorismo, a segunda, à Psicanálise, e a terceira à Psicologia Humanista.

Segundo Bertolucci (1991), o objetivo da psicologia transpessoal é (1) discriminar os esta-


dos superiores dos estados inferiores de consciência, através das cartografias da consciência hu-
mana que variam de autor par autor, apresentando importantes tendências comuns, (2) observar
os movimentos progressivos da consciência, (3) e as tendências de cada nível, para que, (4) na
prática se possa incentivar e catalisar, favorecer esse movimento progressivo em direção à consci-
ência em seus estados superiores. Também seriam objetivos da psicologia transpessoal: desen-
volver a capacidade de assumir a responsabilidade por si mesmo no mundo e nos relacionamentos
pessoais e possibilitar a cada pessoa o atendimento adequado de necessidades físicas, emocio-
nais, mentais e espirituais, segundo as preferências e predisposições individuais. Assim não se
pode esperar que o mesmo caminho seja apropriado a todas as pessoas. E por considerar que o
cliente tem o seu saber interno, a auto-exploração é estimulada com o objetivo de levá-lo ao co-
nhecimento completo da própria personalidade e ao controle dos seus elementos para atingir um
centro unificador e construir uma nova personalidade em torno deste novo centro.

A psicologia humanista, que emergiu nos anos de 1960, teve profunda influência no de-
senvolvimento da psicologia transpessoal. Na verdade a psicologia humanista foi a base para o
desenvolvimento desse enfoque. Abraham Maslow, ao invés de estudar comportamentos de ani-
mais, estava interessado em estudar a experiência humana como um fenômeno determinado por
aspectos como sentimentos, desejos e esperanças. Um dos elementos-chaves da psicologia hu-
manista seria a auto-realização, que estaria no topo da hierarquia das necessidades envolvendo

171
aspectos espirituais, místicos ou transcendentais. Os pesquisadores Abraham Maslow e Stanislav
Grof, em diferentes tempos, auxiliaram a conceituar então a terminologia “psicologia transpessoal”
como um campo de saber que busca compreender a influência dessas dimensões na vida humana
(Rezende, 2007).

Consciência: um primeiro objeto da psicologia transpessoal e uma possível


aplicabilidade à administração
Nota-se que existe uma grande dificuldade de as pessoas compreenderem o que seja a
consciência. Talvez isso ocorra pela própria dificuldade de conceituação da terminologia. Nesse
sentido, o estudo do que seja a experiência de um estado de consciência na organização ganha
implicações ainda mais desafiadoras. No que se refere à experiência da consciência pelo indivíduo
- aspecto esse de interesse da psicologia – a consciência poderia ser definida como a experiência
de contato do ser humano com a realidade interna (emoções, condição física) e externa (a realida-
de do mundo em si).

É interessante observar no pensamento de Pierce o interesse dado à consciência. De a-


cordo com Habermas (1987, p. 123), “os estados de consciência não possuem conteúdo cognitivo.
Eles constituem eventos psíquicos, através dos quais um organismo reage a seu meio ambiente”.
Pierce teria estabelecido uma distinção entre “sentimento” (feelings) e as cadências imediatas do
sentir (emoções). Já as sensações seriam eventos psíquicos singulares incorporados aos proces-
sos da vida, enquanto que os conteúdos cognitivos fariam “parte do processo de inferência media-
tizada pelos signos” (HABERMAS, 1980, p. 123). Nesse sentido, as sensações seriam determina-
das com base em conhecimentos precedentes. No que se refere ao estudo da experiência subjeti-
va na geração de conhecimento, é pertinente estudar “como os eventos psíquicos, comprometidos
com circunstâncias isoladas e singulares, comportam-se frente às sensações generalizadas pelos
símbolos” (p. 124). Emoção se distingue de estado de consciência por apresentar uma característi-
ca eminentemente biológica. Enquanto que os estados de consciência envolvem uma percepção
mais ampla que considera o ambiente.

Entretanto, a experiência de Estados de Consciência Organizacionais (ECOs) se referiria


ao modo como o indivíduo exerce a sua atribuição de ente-consciente a partir da mediação da
consciência que examinará tanto as realidades interna (indivíduo) e externa (organização).

Observar a manifestação de estados de consciência nas organizações. O que significa isso


em termos práticos? Significa identificar em que medida os indivíduos estão auto-conscientes. Isto
é: em que medida os indivíduos estão presentes ao momento do aqui-e-agora? É comum se ob-
servar nas organizações um indivíduo preocupado com tarefas a serem desempenhadas, prazos a
serem cumpridos, expectativas em relação a resultados futuros. De acordo com a abordagem psi-
cossomática, as preocupações e o estresse podem ser importantes fontes de patologias físicas e

172
mentais. Seria importante existir um enfoque que privilegiasse a auto-consciência para que assim
exista um estado de maior saúde do indivíduo. Torna-se necessário, até mesmo, que as pessoas
sejam educadas a se desconectarem do universo organizacional do trabalho quando estão em seu
momento de lazer (REZENDE, 2007).

Experienciar o estado de consciência da organização é emergente para a administração.


Na verdade, a administração já está muito avançada em suas técnicas, havendo muitos profissio-
nais internalizando-as muito bem. Agora é então chegada a hora de se investir na compreensão
dos estados de consciência e não simplesmente nos processos mentais e no conhecimento, isto é,
aquilo que é racional. Pois, conforme o budismo costuma defender, a mente pode ser o pior inimi-
go de alguém. Propõe-se então a emergência de uma Era da Experiência nas Organizações (RE-
ZENDE, 2007).

A administração transpessoal das organizações é uma nova forma de se perceber as di-


mensões do indivíduo, do grupo, do sistema organizacional e da dinâmica organizacional. Nesta
perspectiva, falar de comportamento organizacional é um tanto restritivo, visto que tanto as organi-
zações quanto os indivíduos, de uma maneira geral, não poderiam ser definidos apenas através de
um conceito de estímulo e resposta, enfoque este que tenta objetivar uma categorização de um
estereótipo de comportamento. Os indivíduos são, sim, eventos muito mais amplos, complexos.
Essencialmente: seres de experiências. O desafio da psicologia moderna e de suas aplicações em
campos como o da administração seria o de não apenas compreender o comportamento, mas
fundamentalmente, e desafiadoramente, buscar entender a experiência dos estados de consciên-
cia. Dessa forma, uma melhor tentativa de compreensão das organizações passa por buscar per-
ceber os estados de consciência existentes internamente (REZENDE, 2007).

Uma das principais contribuições da administração transpessoal é proporcionar aos atores


envolvidos nas dinâmicas organizacionais a tomada de consciência dos estados mentais experien-
ciados em suas ações identificando estas como universais, arquetípicas e possuidoras de um sen-
tido individual e universal ao mesmo tempo. Essa perspectiva contribui para a geração de organi-
zações mais intuitivas, inovadoras, criativas, adaptativas, flexíveis, éticas, com maior respeito aos
colaboradores, clientes e fornecedores. Esses inúmeros benefícios seriam possíveis, conceitual-
mente, na medida em que se tem a percepção do mundo como um sentimento, conceito este dis-
cutido por Carlos Castaneda (1997), no qual desaparecem as barreiras do ego e no qual as dimen-
sões “organização”, “ambiente”, “gestor” e “colaboradores” passam a ser vistas de uma maneira
integrada (REZENDE, 2007).

Esse tipo de discussão conceitual pode ser visto como detentor de uma grande similarida-
de com a proposta da administração substantiva desenvolvida por Guerreiro Ramos (1981).

De maneira geral, muitos dos problemas organizacionais fundamentais enfrentados origi-


nam-se de o pensamento humano não atender à complexidade e à sofisticação das realidades

173
com as quais é necessário lidar. Isso teria como resultado ações freqüentemente simplistas e que
algumas vezes causam prejuízos. A teoria organizacional deveria compreender como são feitas
essas simplificações e identificar os meios possíveis através dos quais se tornaria viável enfrentar
e gerir a contradição e o paradoxo, no lugar de fingir que estes não existem.

Transcendência: um segundo objeto da psicologia transpessoal


O que é a transcendência? A transcendência reflete uma incapacidade de explicar a reali-
dade por fenômenos físicos e a ciência atual. Para os céticos, a transcendência é algo esotérico.
Contudo, como explicar as seguintes três evidencias simples do que seja a transcendência: a mãe
que apresenta um pressentimento em relação a um filho que saiu para a balada; o sonho que reve-
la um evento do futuro; uma intuição que influencia favoravelmente uma tomada de decisão. Ao se
aproximar da compreensão de aspectos tão subjetivos estaríamos procurando avançar quanto à
uma nova administração.

Por que estudar a transcendência? Estuda-se a transcendência porque ao se compreender


a consciência com maior profundidade se percebe que ela é ilimitável, por isso transcendente. A
consciência é por natureza trancendente, pois essa seria a condição da matéria que se propaga e
integra no universo em um contexto de um continuum atômico, conforme comprova e demonstra a
física quântica. O ser humano é que possui um comportamento irresistível de perceber-se isolado
do universo, sendo essa percepção um dos motivos de alienação e doença.

Alguns desses elementos colaboram para se perceber que o humano é muito mais que um
ser de comportamentos, é um ser transcendente, isto é, transpessoal.

A psicologia transpessoal busca compreender, na investigação dos estados de consciên-


cia, onde se encontram as raízes das experiências humanas. A grande inovação da psicologia
transpessoal está em acreditar que as raízes dos traumas humanos poderiam residir muito além
dos processos psicodinâmicos, podendo se encontrar em regimes das dimensões perinatais e
transpessoais (REZENDE, 2007).

O psiquiatra Tcheco Stanislav Grof (1987) percebeu, em suas pesquisas com o LSD na
década de 1960 que os indivíduos poderiam guardar memórias do período em que estavam no
ventre materno (período perinatal). Segundo Grof (1994) esses nove meses de grandes transfor-
mações biológicas teriam uma grande influência no desenvolvimento futuro da criança. Dessa for-
ma, nota-se que essas “experiências” vivenciadas no ventre materno podem ser fonte de trauma
para a vida humana, acompanhando-o por toda a vida.

Entre as grandes descobertas de Grof, está a de a consciência humana ser vasta, enorme,
capaz de expandir-se além dos limites do corpo, da raça, da espécie, do planeta, do cosmos. A
consciência humana é complexa, grandiosa e capaz de identificar-se com outros seres humanos,

174
da mesma família e desconhecidos; seres de outros continentes; animais diversos; plantas; pedras
preciosas; resíduos orgânicos; com toda a Terra, planetas, estrelas; com o Universo inteiro e com a
Mente Superior que gerou esse Universo. Essas experiências de natureza diversa foram intituladas
de “transpessoais”, tendo em vista o indivíduo romper as barreiras do seu ego, encontrando-se
com uma dimensão maior do que ele realmente é: o Todo (SOUEK; PARIZI, 1997).

Desafios da gestão transpessoal


O filme “Matrix” apresentou em 1999 uma crítica a como a sociedade está constituída. De
acordo com o filme as pessoas estariam acomodadas, seja pela preguiça ou devido à ignorância.
Nesse sentido, muitas pessoas estão adormecidas...

 ... das próprias emoções. São agressivas, invejosas, melancólicas sem se aperce-
ber.
 ... da própria condição física. Isto é estão em processo de adoecimento sem que
saibam.
 ... dos pensamentos. Utilizando a mente acanhadamente...
 ... ao estarem ignorantes das oportunidades no mundo.
 ... das próprias motivações. Desse modo escolhem profissões erradas e padecem
em carreiras que não gratificam psicologicamente.
 ... do cuidado, do amor ao próximo.
 ... ao estarem presas a comportamentos inadequados, que trazem sofrimento ao
indivíduo e aos outros.
Como gerenciar seres transcendentes? O que faz de um humano um ser transcendente? O
ser humano é guiado por fantasias, sonhos, desejos e imaginação. Desse modo, o ser humano
tem uma profunda dimensão transcendente e precisa de uma atenção especial na forma como a
comunicação se apresenta. Cônscio disso, o objeto da psicologia transpessoal se distingue de
outras abordagens.

A partir do momento que apresento esses conceitos, percebo fundamentalmente que a


gestão transpessoal envolve um forte interesse pelo ser humano. Contudo, está implícito na pala-
vra “gestão‟, o controle. Talvez a administração transpessoal é muito mais ampla do que abarca
esse próprio conceito, pois está implícito uma libertação..., isto é um capacitar para o indivíduo
“libertar a mente”, como definiria Morfeu no filme “Matrix”. De certo modo, essa também era uma
preocupação de Guerreiro Ramos (1981), ao destacar que as organizações e o pensamento admi-
nistrativo engendra um domínio físico e mental dos participes organizacionais. Para Guerreiro Ra-
mos, as organizações seriam sistemas cognitivos nos quais seus participes assumiriam os valores
organizacionais sem se aperceberem.

175
Muito mais que uma administração, o enfoque da transpessoal aplicado às organizações é
muito mais um educar para os indivíduos encontrarem a potencialidade de suas existências. Desse
modo, um educar para a gestão transpessoal é um movimento de emancipação. Pois se percebe
em grande freqüência que muitas organizações não estão interessadas em uma autonomia dos
indivíduos. Cabe à educação transpessoal o cultivo de uma visão crítica que torne o indivíduo
consciente de possíveis mecanismos organizacionais de exploração, opressão. Assim, muitas ve-
zes o interesse da gestão transpessoal pode vir a ser contrários ao propósito da organização.

A atuação de um profissional imbuído do receituário da gestão transpessoal apresentaria


semelhanças a um bodisatva. O bodisatva é aquele que, em seu coração, tem o firme propósito de
tornar-se um Buda, isto é alguém detentor de uma consciência clara, elevada e ampliada.

De acordo com Rezende (2007: p. 225):

No caminho do bodisatva o indivíduo segue as orientações budistas pa-


ra chegar mais rápido num estágio de “desperto”, mas que, em vez de perpertu-
ar-se em um estado de nirvana, opta por auxiliar seus semelhantes em um pro-
cesso de ascensão espiritual. O caminho do Boditatva pode ser visto como uma
integração entre o auto-aprimoramento e o zelo para com a sociedade.

O conceito de bodisatva é útil, pois um profissional adepto às práticas da gestão transpes-


soal é como um “desperto”, isto é, alguém que interessa-se pelo bem-estar humano, sendo essa a
principal força norteadora do trabalho nas organizações. Portanto, os ganhos do capital deveriam
se submeter a essa lógica.

O compromisso da gestão transpessoal é com o indivíduo, acreditando que é necessário


despertar o potencial humano, característica essa que se torna fundamental para o desenvolvimen-
to de pessoas que realmente realizem importantes mudanças organizacionais. Portanto, esse é um
indivíduo que se paga à medida que está preocupado com criatividade, inovação, saúde e susten-
tabilidade.

Desse modo, a gestão transpessoal é, fundamentalmente, uma abordagem, uma tecnolo-


gia, de gestão de pessoas e por essa natureza é um enfoque subjetivo. Contudo, o enfoque trans-
pessoal não desencoraja outras diferentes dimensões operacionais na organização. A partir des-
sas afirmações, poderia-se dizer que uma gestão transpessoal se volta a um diálogo entre aspec-
tos subjetivos e operacionais. Nesse sentido, o símbolo do Yin Yang tem elevado poder explicativo
para o entendimento do que seja a gestão transpessoal, pois apresenta indicativos para pensar
que os enfoques mecanicistas e quantitativos da administração sejam insuficientes para uma visão
ampliada dos negócios. Necessariamente, a gestão demanda enfoques alternativos voltados à
criatividade, à inovação, à subjetividade, a elevada participação de pessoas nas decisões, o horá-
rio flexível.

176
Figura 1 – Símbolo Yin Yang

É importante enfatizar que uma gestão subjetiva pode incorrer em riscos, pois em quase
toda a totalidade dos processos organizacionais seja importante algum nível de atividade de plane-
jamento e controle.

Desse modo, talvez nem psicólogos nem administradores e engenheiros tenham uma ex-
plicação integral para o funcionamento das organizações caso não mantenham um diálogo. Por-
tanto, compreender o que seria uma gestão transpessoal não abandona a necessidade de se es-
tudar temas como qualidade, gestão da produção, operações, logística, planejamento estratégico.
Não se trata de uma ruptura epistemológica, um pulo em direção a uma nova gestão. É na verdade
uma construção de um pensamento gerencial ampliado e integral.

De certo modo, a administração transpessoal implica tanto em observar elementos subjeti-


vos e aspectos relativos ao comportamento organizacional (cargos, absenteísmo, rotatividade no
emprego, produtividade, desempenho humano e gerenciamento, motivação, liderança, poder, co-
municação interpessoal, estrutura, processos de grupo, aprendizagem, processos de mudanças)
quanto a dimensão operacional relativa a temas como logística, qualidade, finanças, entre outros.

Aspectos metodológicos
A administração transpessoal é tanto um modelo de análise dos processos organizacionais
quanto um enfoque prescritivo para a proposição de políticas para o funcionamento das organiza-
ções. Observa-se que o que está em debate é um modelo epistemológico. Köche (2005, p. 16)
contribui quanto ao que seja o objeto de estudo da epistemologia: “a epistemologia estuda, portan-
to, a investigação científica e seu produto, o conhecimento científico”. Huillier (apud KÖCHE, 2005,
p. 16-17), em sua obra La manipulación de La ciência:

“a epistemologia tenta, sem querer ser uma sistema a priori que dite au-
toritariamente e de forma dogmática o que deve ser o conhecimento científico,
responder a questão da gênese e da estrutura do conhecimento científico, anali-
sando como se constitui uma teoria científica e explicando qual é o papel que
exerce na prática científica e o contexto ideológico, o histórico, o lógico e o soci-
al”.

177
Alguns pesquisadores como Fineman (2001) e Goleman (1995) já apresentaram indicati-
vos da necessidade de estudar as emoções nos contextos das teorias organizacionais. Desse mo-
do, metodologias, ou melhor epistemologias, se tornam mais possíveis de serem operacionalizadas
e posto em uso para o estudo das dinâmicas organizacionais.

Hegel referia-se o cerne da consciência, o espírito. Hegel (apud HABERMAS, 1980, p. 41)
no estudo sobre as relações entre fenomenologia, espírito e a lógica seria possível identificar a
relação que se segue.

“A consciência é o espírito como saber concreto e preso à exterioridade;


mas o contínuo avanço desse objeto repousa exclusivamente, como o desenvol-
vimento de toda vida natural e espiritual, sobre a natureza das puras essências;
são elas que perfazem o conteúdo da lógica. A consciência enquanto espírito
que se mostra, que, em seu caminho, liberta-se de sua imediatez e da concreção
exterior, passa a ser puro saber; este saber toma então, ele próprio, como objeto
aquelas essências puras, assim como elas são em e para si”.

É possível observar no pensamento de Habermas a ênfase que é dada ao pensamento de


Pierce. De acordo com Pierce “a tarefa da metodologia não é de esclarecer a construção lógica
das teorias científicas mas, sim, clarear a lógica do método com ajuda do qual nos apossamos de
teorias científicas” (HABERMAS, 1980, p. 110). Nesse sentido, é esse o desafio que deve existir na
construção da administração transpessoal.

De certo modo, o enfoque metodológico proposto tem encontrado sustentação no empre-


endimento investigativo de diferentes pesquisadores como Varela (2003), Vermersch (2000), De-
praz (2000), Braud e Anderson (1998). De maneira geral, pode se perceber que o enfoque de in-
vestigação transpessoal está sustentado em grande parte no enfoque fenomenológico de Merleau-
Ponty (2003).

A prática da gestão transpessoal


Sobre a prática de uma gestão transpessoal, pode se identificar que exista uma utilidade
para pensar fenômenos relativos ao desenvolvimento de uma nova educação no contexto organi-
zacional; o cultivo de um profundo interesse pela suprema satisfação dos clientes; a tomada de
consciência da influência dos arquétipos no contexto organizacional; o encorajamento ao trabalho
motivado e a valorização da experiência da espiritualidade e a busca por um ambiente saudável de
trabalho. Esse seria o sentimento de alguns aspectos interessantes de uma agenda de contribui-
ções da gestão transpessoal a ser discutido a seguir.

O desenvolvimento de uma nova educação nas organizações


Uma prática de administração transpessoal avançada envolveria não apenas a criação de
espaços para a educação transpessoal de pessoas, mas a criação de condições para colocar o
178
indivíduo em contato com suas experiências pessoais mais profundas, gerando assim uma dinâmi-
ca de transformação.

É pertinente considerar quanto a que nível de profundidade de experiência deve ocorrer


em contextos organizacionais, pois muitas vezes em dinâmicas que venham a ser realizadas em
um contexto organizacional pode vir a expor elementos muitos pessoais que quando divulgados a
uma platéia generalizada pode ocorrer que algumas dessas informações sejam utilizadas em con-
textos diferentes daquele do contexto terapêutico-grupal.

É interessante caracterizar para os participantes de dinâmicas grupais para facilitar o con-


tato com um nível de consciência mais profundo que existem outros fóruns e lócus para se realizar
um trabalho de aprofundamento mais adequados.

Nesse sentido, o facilitador desse tipo de dinâmica deve ter muito cuidado para não expor
inadequadamente um indivíduo.

Portanto, a prática de dinâmicas organizacionais grupais com fins transpessoais não são
em absoluto, uma terapia, mas uma metaterapia, tendo em vista que os problemas abordados são
coletivos e não individuais. De certa maneira, talvez quando existem grupos nos quais os membros
mantém uma confiança mutua entre si, exista uma possibilidade de explorar a consciência de mo-
do mais profundo.

Em definitivo, tanto o treinamento em gestão transpessoal como a própria prática da ges-


tão transpessoal não devem ser uma prática teórica, mas sim prática e vivencial. Desse modo,
conforme enfatizado por Rezende (2007), o conhecimento pode ajudar alguém a construir a felici-
dade na medida em que ele tem mais possibilidades de encontrá-la. Ao mesmo tempo, o conheci-
mento auxilia a dizer se está ou não feliz e a entender o sofrimento próprio e o dos outros. Está
também no conhecimento a fonte da compreensão da infelicidade dos outros e do mundo. O co-
nhecimento permitiria também o fortalecimento de uma visão altruísta e reconhecimento dos cami-
nhos para ajudar o próximo. Através do conhecimento se saberia se alguns são infelizes por ser
ignorantes de seu desconhecimento.

O filósofo Platão sustenta uma tese de a verdadeira liberdade e a felicidade dependerem


do conhecimento do real. A partir dessa visão se poderia dizer que uma pessoa pode ter uma ex-
periência subjetiva de ser livre e feliz, mas na verdade seja escravo e infeliz. Isso seria o que Mor-
feu defende na trilogia “Matrix” (REZENDE, 2007).

O contato com o que é a psicologia transpessoal e suas associações para a construção de


um novo modelo de gestão é uma oportunidade para se perceber novas perspectivas de desenvol-
vimento psicológico e espiritual para o indivíduo e a organização.

179
A busca por uma suprema satisfação dos clientes
Falar em uma suprema satisfação dos clientes não significa dizer que uma empresa prati-
cará descontos de 90% em seus produtos tendo assim prejuízo em suas atividades. A busca por
uma suprema satisfação do cliente envolve a dedicar elevada atenção nos processos organizacio-
nais para que a prática de contato com o cliente expresse cuidado, interesse e amor pelo cliente.

Muitas vezes quando as organizações não se dedicam em melhorar a forma como reali-
zam suas operações seqüelas acabam sendo sentidas tanto pelos clientes internos, como os clien-
tes externos.

Desse modo, um grande desafio seria perceber os processos organizacionais como uma
prática de compaixão. Contudo, é importante questionar: como desenvolver essa percepção ampli-
ada? É necessário que os participantes das dinâmicas organizacionais desenvolvam uma atenção
concentrada às atividades que estão sendo desempenhadas, possuindo sempre a curiosidade e o
interesse pela melhoria contínua. Somente assim, ocorrerá a conquista da excelência na organiza-
ção.

A consciência dos arquétipos no contexto organizacional


É possível observar que em muitas situações se manifestam a presença de diferentes ar-
quétipos. O arquétipo pode ser visto como comportamentos que refletem ou reproduzem compor-
tamentos imbricados ao inconsciente coletivo.

“O arquétipo representa essencialmente um conteúdo inconsciente, o


qual se modifica através de sua conscientização e percepção, assumindo mati-
zes que variam de acordo com a consciência individual na qual se manifesta”
(JUNG, 2000: p. 17).

Os arquétipos representariam um modelo hipotético abstrato que se utilizaria dos mitos ex-
perienciados em toda a história humana. Os mitos seriam mais uma expressão de medos pesso-
ais, aspirações e entendimentos simbólicos da vida e do mundo (Ford: 2003).

Percebendo-se, ainda, a influência dos arquétipos na prática das organizações, percebe-se


que faz todo sentido perceber como a experiência arquetípica se manifesta na prática dos líderes.
À medida que os líderes tomam consciência que em sua trajetória pessoal existe a influência de
arquétipos, como o do herói, o salvador, entre outros, este poderia desenvolver uma prática de
mais responsabilidade, compaixão e estados elevados de consciência. À medida que o líder se
torna mais consciente de seus estados de consciência pessoais, esse se torna mais consciente da
experiência dos arquétipos que se aderem a práxis de algumas experiências.

180
Cada empreendedor busca ser uma espécie de herói na sua forma de atuação. Está na
ação do empreendedor a transcendência da sua dimensão comum e o encontro de um status de
alguém que mudou a realidade na qual está inserido (REZENDE, 2007).

Em contramedida, muitas organizações podem ser lócus de sofrimento, maltratos, prazer


em infligir a dor. Acredita-se que muitas pessoas tenham prazer em fazer as outras pessoas sofre-
rem. Seria possível identificar que muitas vezes existem por trás dessas expressões uma conexão
com a experiência de um arquétipo inquisidor. Imagina-se a alegoria “inquisidor” ao memoriar ao
período da inquisição no qual muitas pessoas foram perseguidas e mortas a partir da não compac-
tuação com um ponto de vista totalitário.

Estar consciente de grandes forças arquetípicas e que talvez exista uma influência trans-
cendente no governo das práticas emocionais no trabalho, é uma importante contribuição apresen-
tada pela administração transpessoal a partir da conscientização da importância do conceito do
arquétipo na experiência individual e coletiva nas organizações.

Motivação: a alma da organização


Como desenvolver organizações com pessoas motivadas? Organização sem vontade, sem
pessoas motivadas, são organizações sem alma, são incapazes de manifestar um poder. Desse
modo, os gestores devem incentivar em seus colaboradores o desenvolvimento de um processo de
adoção de responsabilidade. Cada colaborador pode ser um empreendedor interno. Esses colabo-
radores empreendedores ou intrapreneurs podem perceber em suas jornadas um encontro com as
suas essências heróicas adormecidas e que podem ser despertadas. Contudo, percebe-se que
esse discurso deve ser compreendido de maneira crítica, pois a organização propõe aos seus fun-
cionários um objetivo mais nobre, pede-lhe para vencer, para ser o melhor. Estimula-se no indiví-
duo a superação através da carreira, ao passo que os objetivos da organização estão sendo atin-
gidos.

O empreendedorismo, como um processo de autodescoberta, é uma iniciativa de se des-


cobrir as motivações mais profundas para empreender algo. Cabe a cada um mergulhar numa
jornada de autodescoberta para encontrar o significado da vida pessoal, conforme enfatiza Frankl
(1978; 1991).

A espiritualidade no trabalho
Como a espiritualidade pode ser útil ao desenvolvimento de uma capacidade de lidar com
as dificuldades, os desafios, a incompreensão, o impossível que se apresenta no trabalho nas or-
ganizações?

De acordo com Grof (1987: 265):

181
“a espiritualidade é uma propriedade intrínseca da psique que emerge,
quase espontaneamente, quando o processo de auto-exploração alcança pro-
fundidade suficiente. Uma confrontação experiencial direta com os níveis perina-
tais e transpessoais do inconsciente é associada a um despertar espontâneo de
uma espiritualidade bastante independente das experiências (associadas) a de-
terminada religião...”

Um dos objetivos da psicologia transpessoal é buscar realizar a aproximação do sujeito


com a sua espiritualidade pessoal. A experiência da espiritualidade seria para alguns o exercício
de estabelecer a ligação ou a integração do indivíduo com dimensões que poderiam ser identificá-
veis como:

 o Todo;

 Deus;

 o cosmo;

 a sabedoria;

 a claridade;

 a intuição;

 um estado de Buda;

 um estado de consciência elevado.

De certo modo, todos os aspectos supracitados seriam entendidos por alguns como a
mesma coisa. De qualquer modo, nota-se que a dita “experiência espiritual” proporcionaria uma
percepção mais ampliada da realidade permitindo que também se experienciasse uma vivência de
maior saúde física.

A abordagem transpessoal no estudo das organizações é uma nova forma de se


perceber as dimensões do indivíduo, do grupo, do sistema organizacional e da dinâmica organiza-
cional. Nessa perspectiva, falar de comportamento organizacional é um tanto restritivo, visto que
tanto as organizações quanto os indivíduos, de uma maneira geral, não poderiam ser definidos
apenas através de um conceito de estímulo e resposta, enfoque este que tenta objetivar uma cate-
gorização de um estereótipo de comportamento. Os indivíduos são, sim, eventos muito mais am-
plos, complexos. Essencialmente: seres de experiências (Rezende, 2007, p. 236).

Nesse sentido, quais são as motivações humanas mais profundas? Como esse questio-
namento pode ser útil em atividades como gestão de pessoas ou marketing? Contudo, de acordo
com Guerreiro Ramos (1981), a organização moderna não estaria interessada na auto-atualização
de seu funcionário, pois esse seria conduzido em direção a uma situação de tensão anterior ocor-
rendo então de uma perspectiva de socialização organizacional. Esse conceito é de grande impor-

182
tância, pois de acordo com o pensamento de Guerreiro Ramos, os processos de socialização or-
ganizacional possuiriam o poder de afastar o indivíduo do contato com as suas motivações pesso-
ais, engendrando-se, assim, a constituição de novos seres destituídos de subjetividade.

Uma das principais contribuições da administração transpessoal é proporcionar aos atores


envolvidos nas dinâmicas organizacionais a tomada de consciência dos estados mentais experien-
ciados em suas ações identificando estas como universais, arquetípicas e possuidoras de um sen-
tido individual e universal ao mesmo tempo (Rezende, 2007, p. 237).

De certo modo, o que o enfoque transpessoal apregoa já está sendo praticado quando se
observa a valorização de treinamentos voltados à inteligência emocional e à enfatização da impor-
tância do conhecimento e controle das emoções. De modo prescritivo, o enfoque transpessoal
pode contribuir para: 1) atenção ao momento presente; 2) ampliação e elevação do estado de
consciência; 3) autoconhecimento; 4) contato com a dimensão do herói pessoal; 5) desenvolvimen-
to da responsabilidade; 6) melhoria da comunicação; 7) valorização dos relacionamentos; 8) Me-
lhor processo de aprendizagem; 9) desenvolvimento de uma visão de compaixão e respeito; 10)
Incorporação da meditação no dia-a-dia; 11) valorização dos sonhos e 12) maior contato do indiví-
duo com a motivação pessoal. Entretanto, de acordo com Laing (apud GUERREIRO RAMOS,
1981: p. 100) sobre o funcionário da organização moderna, “ele é provido de ego, mas perdeu a
consciência de sua individualidade, onde estão adormecidas realidades imencionáveis”.

Criando um espaço psicológico saudável


Um presente de incomensurável valor que pode ser transmitido aos colaboradores, geren-
tes e líderes de uma organização é a transmissão do que seja a prática da meditação. Talvez um
dos principais benefícios da meditação seja o controle do estresse e da ansiedade. Quando você
começa a relaxar, é como se naturalmente seu corpo e a consciência começassem a expandir
juntamente com a respiração (REZENDE, 2007).

A busca por esse conhecimento interior passa fundamentalmente pela prática de uma quie-
tude que pode ser encontrada através da meditação. O personagem Neo é o exemplo de alguém
que apresenta em sua jornada uma preocupação cada vez maior com o silêncio. O silêncio é uma
das técnicas mais simples e poderosas para aprofundar e tornar mais claras as percepções (RE-
ZENDE, 2007).

Existem muitos tipos de meditação. Entre as principais meditações utilizadas nos treina-
mentos de psicologia transpessoal destacam-se dois tipos: a de atenção concentrada e a desen-
volvida com o auxílio de mantras. Alguns tipos de meditação estão associados a práticas religiosas
como a cristã, a indiana e a budista. Na religião católica, destaca-se o uso de orações como o “Pai
Nosso” (REZENDE, 2007).

183
A psicologia transpessoal em seu interesse em estuda a experiência essencial da consci-
ência, em muito se aproxima do budismo tibetano. O psicólogo e pensador brasileiro Léo Matos
durante mais de duas décadas empreende em seus cursos no Brasil, Índia e Finlândia a proposi-
ção de aproximações entre esses dois enfoques teóricos que são primos.

O budismo tibetano possui diversas técnicas que possibilitam que o indivíduo empreenda
uma vigilância mais próxima dos estados de consciência que está experienciando. Esses ensina-
mentos são valiosos para pessoas de diferentes classes sociais e formações acadêmicas, sendo
também uma orientação importante a ser levada ao contexto organizacional.

No budismo tibetano muitos mantras favorecem se estar em contato mais profundo com
uma experiência de quietude. São interessantes os mantras tibetanos da Tara Verde “Om Tare
Tuttare Ture Svaha” (pronuncia: Om Tare Tuttare Ture Soha) e de Avalokiteshvara “Om Mani
Padme Hum” (pronuncia: Om Mani Peme Hum). De acordo com Viver Natural (2007):

O mantra mais conhecido do budismo tibetano é Om Mani Padme Hum


(os tibetanos pronunciam Om Mani Peme Hum), associado ao bodhisattva da
compaixão, Avalokiteshvara. Nesse mantra, a sílaba Om representa a presença
física de todos os buddhas. A palavra sânscrita Mani, jóia, simboliza a jóia da
compaixão de Avalokiteshvara, capaz de realizar todos os desejos. A palavra
Padme significa lótus, a bela flor que nasce no lodo; do mesmo modo, devemos
superar o lodo das negatividades e desabrochar as qualidades positivas. A síla-
ba Hum, representando a mente iluminada, encerra o mantra.

De acordo com Zopa Rinpoche (2007):

Os mantras nem sempre possuem um significado claro e muitos deles


são compostos por sílabas aparentemente ininteligíveis. Mesmo assim, eles são
efetivos porque ajudam a manter a mente quieta e pacífica, integrando-a auto-
maticamente na concentração. Eles fazem a mente ser receptiva às vibrações
muito sutis e, portanto, aumentam sua percepção. Sua recitação erradica as ne-
gatividades grosseiras e a verdadeira natureza das coisas pode ser refletida na
claridade resultante em sua mente.

Para Kalu Rimpoche (2007):

Recitamos e meditamos sobre o mantra, que é o som iluminado, a fala


da divindade, a união do som com a vacuidade. (...) Ele não possui uma realida-
de intrínseca, é simplesmente a manifestação do som puro, experienciado simul-
taneamente com sua vacuidade. Através do mantra, não nos apegamos mais à
realidade da fala e do som encontrados no cotidiano, mas os experienciamos
como sendo vazios. Então, a confusão do aspecto da fala de nosso ser é trans-
formada na consciência iluminada.

De acordo com Tulku (2007):

184
Como atuam os mantras? O som exerce um poderoso efeito sobre nos-
so corpo e nossa mente. E pode acalmar-nos e dar-nos prazer ou ter influência
desarmoniosa, gerando uma sensação sutil de irritação. O mantra é ainda mais
poderoso do que um som comum: é como uma porta que se abre para a profun-
didade da experiencia. Visto que os mantras não têm sentido conceitual, não e-
vocam respostas predeterminadas. Quando entoamos um mantra, ficamos livres
para transcender os reflexos habituais. O som do mantra pode tranqüilizar a
mente e os sentidos, relaxar o corpo e ligar-nos com uma energia natural e cura-
tiva.

No contexto ocidental a cultura do budismo tibetano pode se encontrar distante não apenas
fisicamente, mas a partir de uma barreira mental, sendo uma experiência incompatível para os
modelos culturais ocidentais. Aplicar algumas idéias a contextos corporativos pode ser ainda mais
desafiador. Desse modo, quais as possibilidades de aplicar algumas dessas tecnologias experien-
ciais ao contexto ocidental e corporativo? De certo modo, um dos propósitos de recursos como os
mantras seria manter a mente distante de motivos de preocupação, isto é emoções aflitivas, como
se refere o budismo tibetano. Nesse contexto, algo substituto seria o uso de orações, desde que
operadas com o propósito de ser um objeto de atenção concentrada. Poderia-se utilizar a música
como um recurso ao qual a nossa mente dedica uma atenção. Assim, cantarolar uma música,
mesmo que mentalmente, como escutá-la em um MP3 Player pode ser um recurso interessante
para manter a mente conectada a um universo conscienciológico “positivo”. De forma geral, consi-
dero que uma música agradável, como aquela executada pela jazzista Diana Krall, em um ambi-
ente de trabalho pode ser um recurso atencioso à saúde mental das pessoas e à manifestação de
estados elevados de consciência.

Algo importante a ser utilizado seria a meditação. A seguir seguem algumas instruções a
serem ministradas para a aplicação de uma técnica de relaxamento.

Quadro 1 – Passos para a experiência de relaxamento

1º passo – Sentar-se em posição confortável;


2º passo – procurar relaxar musculatura;
3º passo – Inspirar profundamente e soltar o ar de forma gradual ou de modo espontâneo. O propósito
é esvaziar todo o pulmão;
4º passo – conscientizar-se que está respirando, que existe um pulmão neste ser;
5º passo – despreocupar-se de qualquer pensamento;
6º passo – focar a atenção apenas na respiração;
7º passo – Imaginar que o ar inspirado traz energia, luz, aspectos positivo ao praticante do relaxamen-
to;
8º passo – Imaginar que está se revitalizando-se;
9º passo – imaginar-se como a própria respiração, como se o próprio praticante não existisse;
10º passo – abstrair-se de qualquer pensamento;
11º passo - experienciar a prática meditativa no silêncio do ser;
12º passo -examinar a motivação quanto a parar a prática meditativa;
13º passo – retornar à consciência do aqui e agora, dos demais afazeres diários.
14º passo – tentar dar continuidade à experiência do estado de consciência por um período de tempo

185
maior aplicado em outras circunstâncias do dia-a-dia.

Como já foi dito, a “transpessoal” é a abordagem da psicologia de contato com o estado de


consciência. Por isso é tão importante a técnica de relaxamento, tanto no contexto terapêutico
entre cliente e terapeuta, que permitiria a equalização dos estados de consciência fazendo ambos
entrar em contato com uma experiência de integração, sintonia e equilíbrio, quanto no contexto
organizacional no qual cada pessoa chega ao trabalho com muitas preocupações, pensamentos e
emoções aflitivas que o conduzem a estarem distantes psicologicamente do ambiente laboral.
Nesse ínterim, a meditação permitiria “aterrissar” essas pessoas, trazendo-as ao contexto do aqui-
e-agora, permitindo assim uma maior disposição e atenção ao trabalho.

De maneira geral, existem algumas orientações básicas para a realização da prática medi-
tativa:

 - praticar, de preferência, sentado;

 - apresentar as mãos soltas sobre o colo;

 - deixar ombros e braços relaxados;

 - postar as costas retas;

 - permanecer com os olhos ligeiramente abertos, permitindo a entrada de um pou-


co de luz;

 - manter o maxilar relaxado;

 - sustentar a ponta da língua tocando o céu da boca; e

 - posicionar o pescoço inclinado um pouco para a frente.

Nas organizações, deve-se construir ou adaptar um local para a prática meditativa, pois,
como já foi lembrado anteriormente, esse local deve ser um espaço para se experienciar estados
elevados de consciência. Dessa forma, nada é mais recomendável que criar uma estrutura de con-
forto aos seus praticantes.

Integração com a totalidade e o desenvolvimento da responsabilidade uni-


versal e a sustentabilidade
Estamos preparados para a crise, a perda e a morte?
O que nasceu há de morrer,
O que foi reunido se dispersará,
O que foi acumulado há de se esgotar,
O que foi construído há de ruir,
E o que foi elevado há de se abaixar.

186
Sogyal Rimpoche

De todas as pegadas
A do elefante é a maior;
De todas as meditações da mente
A da morte é a maior.

Mahaparinirvana Sutra

Um pouco do pensamento tibetano, expresso nas antigas reflexões mencionadas, é útil pa-
ra auxiliar no processo de se tomar consciência da finitude humana e sobre como a compreensão
e prática da psicologia transpessoal pode ser útil para compreender a dinâmica da impermanência
e sobre o que podemos aprender para realizar uma ação de mais responsabilidade em relação às
pessoas e o meio-ambiente.

O sopro da existência, que é a presença humana na Terra em comparação ao tempo geo-


lógico, indica que o tempo urge quanto ao que se refere ao desenvolvimento de ações estratégicas
e de responsabilidade com o meio-ambiente e o convívio humano no planeta. Caso você tomasse
uma profunda consciência da sua finitude, o que você faria de diferente na sua existência?

Esse tipo de reflexão serve para algumas pessoas como um ponto de mutação, a partir do
qual algumas pessoas mudam a forma como se relacionam com parentes, com o meio-ambiente e
quanto aos hábitos de consumo.

Tomar consciência das lógicas de mudança e transformação no mundo deve servir como
um processo de tomada de responsabilidade pela construção de um mundo melhor, para o melhor
convívio com a natureza, para o melhor relacionamento com as outras pessoas.

Parece que essas reflexões possuem uma sintonia com o universo das organizações a
partir do momento que percebe-se que as organizações são instrumentos multiplicadores ou ampli-
ficadores de temas com elevado impacto social.

Parte das reflexões aqui apresentadas foram extraídas do livro “Matrix e a Administração
Transpessoal” de Julio Rezende. Assim, como foi discutido por Rezende (2007), a física moderna,
o budismo tibetano e a psicologia transpessoal encontram um ponto de convergência ao percebe-
rem a realidade como uma unicidade. De acordo com Léo Matos (1996: p.7), quando se entra em
contato com um nível de realidade mais profundo,

“você é capaz de perceber o universo não como sendo composto de


uma quantidade infinita de objetos separados, mas você experiencia o universo
como uma unidade dinâmica, onde não existe objeto; só existe sujeito no univer-
so e nesse universo todo só existe um sujeito que é o próprio universo e que vo-
cê e esse universo, em realidade são UM SÓ”.

187
A percepção da existência humana como una com o universo permite os indivíduos se per-
ceberem como responsáveis não apenas por si próprios, mas por um contexto mais amplo. Cada
ato possui um reflexo no universo e cada ação desse universo tem um reflexo sobre ações pesso-
ais. Essa é uma das importantes mensagens: a responsabilidade das ações pessoais na constru-
ção de um mundo melhor.

Talvez um dos conceitos mais úteis às organizações seja convocar a existir uma respon-
sabilidade maior em relação ao meio ambiente e à sociedade. Pois convida-se à responsabilidade
dos colaboradores em um outro nível, para perceberem as suas ações sob uma ótica mais profun-
da. Os colaboradores necessitam perceber que suas ações possuem um sentido, que são muito
mais do que simplesmente uma atividade laboral. O trabalho, na verdade, deveria ser uma expres-
são da responsabilidade pelos clientes em favor dos objetivos da organização, de defesa pela qua-
lidade de produtos e serviços.

Uma forma de expressar uma visão ampliada da realidade seria as organizações empre-
enderem ações responsáveis com o objetivo de ganhar legitimidade, boa imagem corporativa,
maior visibilidade e adquirir vantagem competitiva no mercado. O resultado do desenvolvimento
dessas ações responsáveis seria a possibilidade de se conseguir um maior comprometimento ético
dos colaboradores aos objetivos organizacionais.

Algumas organizações poderiam ser vistas como espécies de vírus que se instalam em de-
terminados lugares e países e sugam todos os recursos, indo depois a outros locais, realizando
esse tipo de política organizacional sempre que necessário. É imperativo se refletir sobre a neces-
sidade de as organizações apresentarem em seus modelos de negócio uma preocupação com os
seus funcionários, as boas condições de trabalho, o meio ambiente, respeitando a legislação e os
consumidores. Isto é, uma política e prática organizacional de sustentabilidade. Esse seria um
comportamento ético que exige algumas virtudes, como polidez, fidelidade, prudência, temperança,
coragem, justiça, generosidade, compaixão, humor, misericórdia, gratidão, simplicidade, pureza,
boa-fé e amor.

A ética é um tema que une a humanidade. É interessante observar que em diferentes li-
nhas de pensamento a ética sempre está presente enquanto um valor a ser preservado e instru-
mento para garantir a ordem humana. Assim, a avaliação quanto ao que seja a ética não deve ficar
presa apenas a uma explicação da filosofia ocidental. Do mesmo modo que a ética é compreendi-
da nas sociedades ocidentais também o é nas sociedades orientais. Observando-se o Budismo,
encontrar-se-ão as Oito Virtudes para o exercício de um comportamento ético:

1ª- Compreensão correta – para livrar-se da superstição e desilusão.


2ª - Pensamento correto - para pôr a vida num caminho correto.
3ª - Fala correta - gentil e verdadeira, que consiste em:
• não mentir;
• não criticar os outros injustamente;

188
• não usar linguagem grosseira; e
• não comentar sobre a vida alheia.

4ª - Ações corretas - pacíficas, honestas e puras, seguindo os "Cinco Preceitos":


1. não matar;
2. não roubar;
3. não mentir;
4. não ser desonesto; e
5. não consumir drogas ou beber intoxicantes.
5ª - Vida correta - não trazendo injúria ou perigo para qualquer ser vivo.
6ª - Esforço correto - em autotreinamento e autocontrole, através da:
• conquista dos pensamentos maléficos;
• esforço para se manter os bons pensamentos.
7ª - Comprometimento Correto - tendo uma mente ativa e alerta.
8ª - Concentração Correta - em meditação profunda das realidades da vida, tornando-se
inteiramente consciente de todos os estados corporais, emocionais e mentais.

As Oito Virtudes propostas por Buda são importantes características associadas à prudên-
cia, compreendida como um estado de consciência que o indivíduo mantém. Muitas vezes não se
é prudente porque não está se prestando atenção como a mente está trabalhando.

Parte da argumentação dessa idéias apresentam uma consonância com a Declaração Uni-
versal dos Direitos Humanos, merecendo destaque os seguintes artigos:

Artigo 1º - Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas
de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.

Artigo 3º - Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

Artigo 4º - Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de


escravos serão proibidos em todas as suas formas.

A descoberta da importância do cuidado e do amor influenciaria para existir a criação de


um estado de consciência de compaixão e um ambiente ético no qual se percebem uma realidade
de interconectividade entre todas as coisas. A partir dessa visão, seria possível existir uma consci-
ência de que ao se cuidar do meio ambiente se estaria cuidando do próprio homem, e ao se buscar
autoconhecer o homem poderia então melhor se relacionar com o meio ambiente.

Considerações finais
A administração transpessoal é um conceito continuamente em construção, pois, como
posso perceber a partir de minha formação profissional em administração e psicologia, muitas seri-
am as idéias possíveis de aplicar no contexto do trabalho e das organizações e vou percebendo
isso dia-a-dia observando o meu próprio comportamento e de meus colegas, os sucessos e insu-
cessos quanto ao que seja ter um ambiente agradável de trabalho. De modo geral, pensar em a
administração transpessoal como um enfoque gerencial interessado em promover uma maior qua-

189
lidade de vida no trabalho, necessariamente, envolve em transformar a percepção de cada um
envolvido nas dinâmicas laborais. Assim sendo é pertinente uma transformação da consciência
pessoal. Cabe à organização interessada em alguns elementos do enfoque proposto proporcionar
espaços para que os indivíduos entrem em contato com a possibilidade de transformar a consciên-
cia pessoal de modo a se tornarem pessoas mais ativas, felizes e saudáveis. A partir do que o que
coloco, é que identifico a administração transpessoal como uma trajetória em construção. Assim,
nesse campo está aberto um convite a outros pensadores e envolvidos com as práticas organiza-
cionais a pensarem contribuições sobre uma administração renovada, interessada na transcen-
dência humana, na saúde e na incomensurabilidade quanto ao que é o humano.

Por fim considero que o conhecimento sobre o que seja uma administração transpessoal
pode ser útil ao desenvolvimento de uma experiência ecológica, tão necessária ao contexto orga-
nizacional. Tendo em vista que uma das grandes barreiras ao desenvolvimento de práticas de sus-
tentabilidade estão associadas a não apenas a falta de informações, mas também de um sentido
sensível por parte das pessoas, o enfoque transpessoal pode apresentar indicativos quanto a inse-
paratividade do indivíduo e o cosmo.

Referências
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191
Capítulo 23

A Temporalidade no Existir Subjetivo

192
Capítulo 24

Trabalho Transpessoal com Crianças

193
Capítulo 25

Trabalho com a Morte

194
Capítulo 26

Cosmoeducação

195
APÊNDICE

CARTA AOS TERAPEUTAS


Jean-Yves Leloup

Meu caro T.,

Você me diz que a “doença mental” ou psíquica é “estar separado do Real” - definição
clássica da esquizofrenia – mas, você pergunta, “o que é o Real?” e, enquanto Terapeuta, “o que
podemos fazer para ajudar alguém que sofre desse afastamento ou dessa separação do Real?...”

Você acredita realmente que podemos estar “separados” do Real? Estamos sempre
no Real; sem dúvida algumas vezes mais, outras menos, mas sempre, senão não estaríamos aqui
para sofrermos, nos alegrarmos ou falarmos a respeito...

Jamais estamos “separados”. Eu preferiria dizer que estamos “fechados” em uma per-
cepção ou uma interpretação da realidade que tomamos pelo Real.

Aquele que padece com aquilo que lhe acontece (essa é a própria definição de pacien-
te) ao encontrar-se face à realidade de seus sintomas, da sua doença, do seu sofrimento, do seu
“mal-estar”, pode, com o acompanhamento do Terapeuta, ter acesso a uma percepção e uma in-
terpretação “outras” que o ajudarão a passar de uma dor “insensata” a uma dor “que faz sentido”.
“Sentido” não significa complacência para com a dor, não é o estabelecimento da sua identidade
como vítima, mas, pelo contrário, é aquilo que assinala uma saída do sofrimento ou da interpreta-
ção e da percepção dolorosas daquilo que é....

“Mas, o que é? O que é o Real?” você me pergunta.

Suas questões não são “metafísicas” demais para um Terapeuta? É verdade que, se-
gundo Fílon de Alexandria, o Terapeuta, antes de ser um médico ou um psicólogo, deve ser um
40
“filósofo ”; interrogar-se acerca do Real me parece ser um sinal ou um sintoma de humanidade e
de saúde mental... Quando pretendemos “cuidar” de alguém ou se quisermos estar ao seu lado
“para ajudá-lo a realizar-se”, devemos saber que sentido colocamos sob as palavras: Real – Reali-
zação – Realidade...

40
Cf. Fílon e os Terapeutas de Alexandria em « Cuidar do Ser », Jean-Yves Leloup, Editora Vozes, 1993 e “Terapeutas do
Deserto”, Jean-Yves Leloup e Leonardo Boff, Editora Vozes, 1997

196
Acredito que identificamos rápido demais uma realidade ao Real. Isso deu nascimento
a muitas escolas de filosofias, por exemplo, para Platão, o “Realismo” é afirmar a realidade das
idéias, “mais reais” do que os seres individuais que são apenas o seu reflexo – para os materialis-
tas, o “Realismo” é, pelo contrário, a afirmação de que apenas a matéria existe, as idéias não pas-
sam de epifenômenos ou de explicações ilusórias.

A realidade da Matéria, assim como a realidade do Espírito, estão identificadas ao Re-


al, ao passo que a matéria ou o espírito são apenas dois níveis dentre outros do Real, duas mani-
festações relativas do Real...

De um ponto de vista mais moral ou mais psicológico, teremos tendência a tomar pelo
Real a realidade do Bem ou a realidade do Mal.... alguns dirão que apenas o bem existe, que ele é
o único Real, o mal é apenas a ausência ou a falta do bem (privatio Boni); outros dirão que o mal
existe realmente, que ele é o próprio Real, ou seja, o Absurdo, o Não Sentido no qual estamos
41
“jogados aqui” (cf. certas formas de gnosticismo ).

Isso seria novamente identificar o Real a apenas uma das realidades que o manifes-
tam, ao passo que o Real está presente nas realidades mais contraditórias ou opostas.

De um ponto de vista médico ou terapêutico, alguns considerarão a saúde como sendo


a Realidade, a doença não passaria de uma deficiência transitória da saúde. Outros afirmarão,
pelo contrário, a Realidade dos vírus ou do “terreno” como únicas causas da dor, do sofrimento ou
do mal estar – “a saúde” (assim como a felicidade) não passa de uma idéia quimérica, impossível
de ser produzida ou injetada em corpos destinados, de toda maneira, à degenerescência e à mor-
te...

A Realidade do nascimento ou a Realidade da morte são duas manifestações do Real.


Uma terapia que não levasse em consideração essas duas realidades, sem confrontá-las ou opô-
las, correria o risco de não levar em consideração um Ser Real, capaz de integrar ou mesmo de
ultrapassar esses diferentes níveis de realidades ou essas diferentes “experiências do Real” que
são o prazer, a dor, o nascimento, a degenerescência, a morte...

O Real está em todas as realidades, quer elas sejam materiais, psíquicas ou espiritu-
ais... mas, mais uma vez, o que é o Real?

Quanto mais busco compreender, tanto mais ele me escapa...

Que eu busque compreendê-lo “fisicamente”, através dos meus sentidos (sensações,


percepções).... que eu busque compreendê-lo “afetivamente” ou “psicologicamente” através das

41
Não confundir com a gnose, que justamente não identifica o Real com um dos seus elementos, positivos ou negativos-
bem ou mal, felicidade ou infelicidade - mas os considera como duas realidades “relativas” uma à outra. Cf. “Les Profon-
deurs oubliées du Christianisme”, Jean-Yves Leloup e Karin Andrea de Guise, Editions du Relié, 2007

197
minhas emoções, meus desejos, meus sentimentos... que eu busque compreendê-lo intelectual-
mente ou “cientificamente” através das minhas análises, racionalizações ou sínteses... que eu
busque compreendê-lo intuitivamente ou espiritualmente através das orações, meditações ou con-
templações...

O Real não está oferto à uma “compreensão”, mas à uma escuta; uma Escuta que de-
ve permanecer livre de todas as apreensões - sensoriais, afetivas, intelectuais ou espirituais - sem,
no entanto, rejeitá-las. Uma Escuta que permanece aberta ao imperceptível, ao inapropriável, ao
incompreensível, ao inominável...

Permanecer à Escuta do Real, manifestado, encarnado ou representado em todas rea-


lidades, é permanecer em uma abertura corporal, afetiva, intelectual e espiritual com relação a tudo
aquilo que foi, a tudo aquilo que é, a tudo aquilo que virá...

Permanecer nesse estado de Escuta e de abertura em todas as circunstâncias, é per-


manecer na presença do Real, é estar em vias de “Realização”, não no sentido de terminar algo,
mas no sentido de uma maturidade que é incessantemente informada pelo Real e livre (libertada)
das realidades que o manifestam, o encarnam ou o representam....

O Real não é uma realidade, sequer uma Realidade absoluta, ou seja, “um ídolo do Re-
al”, sua representação última...

Na busca da minha “identidade Real”, eu descubro um certo número de realidades das


quais eu participo, mas a “identidade do ”Eu Sou” sempre me escapa. “Aquilo que” eu sou não é
“Eu Sou”, minha realidade não é o Real, mas é, contudo, uma manifestação, uma encarnação,
uma representação do Real.

Tomar “aquilo que eu sou” por “Eu Sou”: eis minha inflação ou minha patologia; sentir
o distanciamento entre aquilo que eu sou e Eu Sou: eis a fonte de um sentimento de culpa, de falta
ou de carência que é também patologia. Aceitar esse “distanciamento” entre “aquilo que eu sou” e
“Eu Sou”, entre “aquilo que é” e “o Ser” ou, ainda, entre a realidade e o Real, é o início da saúde, o
aprendizado do “entre dois” que me situa no coração de um ternário, “aquilo que eu sou” – “Eu
Sou” – e o “entre dois”.

A função do Terapeuta é cuidar desse “entre dois” ou dessa relação entre o Ser e “a-
quilo que é” ou entre “aquilo que eu sou” e “Eu Sou”.

O Real se manifesta entre duas realidades: a realidade relativa: aquilo que eu sou (feliz
– infeliz – sofredor – mortal – neurótico – psicótico, etc) e a realidade absoluta, “Eu Sou”.

A perda do sentido do Real que surge no “entre duas” realidades está na fonte de nos-
sos infernos ou de nossos fechamentos, ou seja, de nossas identificações a essa ou aquela polari-

198
dade do Real, que poderemos qualificar de depressiva (se eu me identificar “àquilo que eu sou”) ou
de histérica (se eu me identificar a “Eu Sou” que eu poderia ser).

O Real é aquilo que nos faz sair dos fechamentos ou das alienações referentes ao rela-
tivo ou ao absoluto.

Ajudar alguém a permanecer nesse espaço do entre dois é mantê-lo em vida, permitir
que ele não se “petrifique” ou se “fixe” em uma postura do Real, pois a Vida é o movimento inces-
sante entre “aquilo que eu sou” e “Eu Sou”, movimento que une minha realidade relativa à realida-
de absoluta, realidade relativa que “eu não sou” e realidade absoluta que “eu não sou”. O Real
não é nem o meu ser finito (relativo), nem o meu ser infinito (absoluto), ele é “os dois”, “entre os
dois” e “além dos dois”....

Cuidar do Real é desimpedi-lo, colocá-lo ao largo no coração das realidades às quais o


ser humano se identifica. Essa liberação de um espaço no coração dos tecidos demasiadamente
comprimidos dos nossos sintomas, essa liberação de uma leveza no coração do mais espesso e
do mais pesado das matérias que nos constituem, é o que alguns chamam de despertar, saúde ou
Salvação; realização do Real não identificado às realidades sublimes ou triviais que o encarnam, o
manifestam ou o representam...

O Terapeuta é um hermeneuta, ele ajuda o paciente a tomar consciência de que aquilo


que ele percebe como sendo “a realidade”, a realidade que geralmente lhe faz mal, não é apenas
uma percepção, mas também uma interpretação. Aquilo que ele percebe dessa maneira não é o
Real, mas uma etapa, um momento do Real. O Terapeuta o ajuda a recolocar seus sintomas no
interior de um processo onde ele não se identifica à realidade da sua doença, ele não é o “objeto”
de um câncer, da aids ou de outra patologia (física ou psíquica), mas o “Sujeito” de um câncer, da
aids ou de outras patologias (físicas ou psíquicas).

O Real é “Ele” e nenhuma realidade, mesmo a mais obstrutiva ou a mais dolorosa, po-
de aniquilá-lo. “A doença da morte” não é incurável, já que ele descobre ser o “sujeito” dessa do-
ença. A consciência de que ele vai morrer é maior do que a morte que arrebata seu corpo e seu
psiquismo.

O que é ser Terapeuta se não for participar através da sua própria vigilância ao desper-
tar dessa consciência? Consciência do Real que “eu sou”, no coração da realidade que “eu tenho”.
A vida que eu tenho, eu não a terei para sempre. A vida que eu sou, quem, além da minha recusa
e do meu esquecimento, poderá tirá-la de mim? O Terapeuta, através da prática da anamnese
essencial, tenta “tornar presente” em si, no outro e entre os dois, “o Real que está sempre aqui,
presente”, essa recordação pode ser efetiva: alívio e liberação...

199
Carta II

Meu caro T.,

Você pede que eu “indique com exatidão quais são os meus pressupostos antropológicos
ou meus “a priori” com relação ao Ser humano....” Como eu disse anteriormente, creio que existe
um Real infinito, invisível, eterno, bem-aventurado... nas realidades finitas, visíveis, temporais e
dolorosas que conhecemos. Creio que há um Real invencível no ser humano frágil e impermanen-
te, assim como no universo que o envolve.

A cura consiste no restabelecimento da relação com o Real, na consciência de que não


podemos estar separados “daquilo que está em todos os lugares e sempre presente”, condição
mesmo da nossa “presença real” no mundo.

O Real, “ninguém jamais o viu”, mas as realidades que o manifestam, o encarnam ou o


representam nos permitem conhecê-lo...

O Real é a luz que ilumina todas as realidades, da mais opaca à mais transparente, es-
sa luz é Consciência que responde à nossa consciência e a torna possível. A luz está na matéria,
a matéria não pode retê-la ou contê-la.

O Real é a Vida que anima todas as realidades, da mais inerte à mais vivaz ou vivifi-
cante, essa Vida é movimento, vir a ser...

Ela é uma Energia, uma “Força que vai”; quando fazemos apenas um com ela, dizemos
que “Tudo “vai” bem...”

O Real é o Amor que anima a vida, tanto a mais rica quanto a mais miserável, esse
Amor é capacidade de Dom, de generosidade, de compaixão, ele é o próprio movimento da vida
que se dá e que perdoa...

Quando fazemos apenas um com a realidade do Amor, somos libertados de toda amar-
gura, a alegria é uma experiência, nós conhecemos a Vida Bem-Aventurada...

O Real é a liberdade do Espaço que não é atingido ou maculado por aquilo que nele se
agita ou passa. É uma luz, uma vida, um amor que não julga nem se apega àquilo que vai. Fazer
apenas um com essa liberdade é viver em um infinito respeito por tudo aquilo que vive e respira, é
a visão ou a intuição do Real que está em todo lugar e está sempre presente que nos torna não
dependentes das realidades transitórias que podemos, então, apreciar e amar na sua justa medi-
da.

200
O Real é a nossa verdadeira natureza, ele é Luz (Espírito – Consciência), Amor (Alegria
– Beatitude), Vida (Força – Energia), Liberdade (Espaço – Vastidão).

Se sentirmos uma “carência de realidade”, que é considerado como “patologia”, trata-


se de uma falta de consciência (confusão – obscuridade), de uma falta de amor (tristeza – fecha-
mento), de uma falta de força (fraqueza – cansaço) ou de uma falta de liberdade (alienação – de-
pendência)...

Pensamos que podemos preencher essa falta, essa carência com realidades externas,
o que pode muito rapidamente conduzir a impasses. Podemos conhecer algumas satisfações ou
contentamentos fugazes, mas a falta, a carência, aumentam, irritam...

Se sentirmos uma carência de realidade (Consciência – Amor – Vida – Liberdade) é


porque alguma coisa impede nossa verdadeira natureza de se expressar ou de se dar. São as
barreiras, os bloqueios, os obstáculos (Shatan/Satã em hebraico) que o Terapeuta leva em consi-
deração. O trabalho de “análise”, literal e etimologicamente, quer dizer “dissolver” (lyse) para o alto
(ana), desfazer, desembaraçar, dissolver os nós, os bloqueios que impedem que o Real se dê ou
que impedem a consciência, o Amor, a Vida, a Liberdade... de “circular” e de ir “cada vez melhor”
42
em um corpo “libertado” daquilo que ele não é; “entregue” (aberto – ofertado) ao Ser que Ele é,
feliz-mente.

Você me pergunta como posso afirmar que o Real é a verdadeira natureza do ser hu-
mano e que realidades como a Consciência – o Amor – a Vida – a Liberdade, são mais reais do
que realidades como o absurdo – o ódio – o medo – a morte...

Sim, realmente trata-se do meu pressuposto antropológico, do meu a-priori – mas tam-
bém da minha experiência.

Quando eu estou consciente: “Eu Sou”.

Quando eu estou cada vez mais consciente, eu sou cada vez mais uma presença real
consciente.

Quando eu não estou consciente: “Eu não sou”.

Quando eu estou na compaixão (aberto à alteridade) e no amor: “Eu Sou”.

Quanto mais eu estou na compaixão e no amor, tanto mais “Eu Sou” – presença real, a-
firmação da realidade do amor.

Quando eu não estou na compaixão e no amor, “eu não sou”, eu não estou em relação
com aquilo que é, eu não estou realmente “presente”.

42
Jogo de palavras intraduzível em português entre as palavras “délivré” – “libertado” – e “livré” – “entregue”. (N.T.)

201
Quando eu estou vivo, cheio de energia, eu estou consciente daquilo que eu sou, eu
amo aquilo que eu sou: “Eu Sou”.

Quando estou cansado, deprimido, doente, eu não estou bem, mas continuo sendo “Eu
Sou” em um corpo, um psiquismo, que sofrem...

Não é “Eu Sou” quem vai morrer, mas a forma onde ele se manifesta, onde ele se en-
carna...

Sinto-me mal na vida que tenho, ainda um pouco mais de tempo, logo eu não a terei
mais. Permanece “a vida que eu sou”, “Eu Sou” é livre...

Essas são evidências por vezes difíceis de compartilhar, difíceis também de compre-
ender aquilo que em nós e no outro resistem a essas evidências.

Contudo, a função do Terapeuta não seria, ao dar testemunho da sua experiência do


Real, de re-centrar o outro na “identidade que ele é” e de libertá-lo das “identificações que ele pos-
sui”?

Não seria isso torná-lo presente a essa “presença real”, recolocá-lo no seu eixo?

202

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