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O Experimentalismo Democrático Bolivariano:

Uma Análise dos Consejos Comunales

Por Mariana Bruce e Felipe Addor

Democracia e Socialismo
O ano de 1989 representou para as esquerdas no mundo, um momento de profunda crise e
de abalo das certezas. A queda do Muro de Berlim foi interpretada como a vitória do capitalismo
liberal. Seria o fim do socialismo? Teríamos chegado ao fim da História (Fukuyama, 1989)?
Nas Américas, o contexto era de transição das ditaduras civil-militares. O legado do
Estado autoritário obrigou as esquerdas a reconsiderar os princípios nos quais seu projeto
revolucionário se sustentaria. O caminho haveria de passar pela democracia, pela crítica da
violência e pela defesa dos direitos humanos (LECHNER, 1986).
Guerrilha, assalto ao Estado, ditadura do proletariado, partido único, até então sinônimos
das grandes experiências socialistas do século XX, deveriam ser deixados para trás e o debate
sobre a democracia, relegado a segundo plano em meio aos processos de centralização e
burocratização das revoluções, retomado.
Dizemos retomado porque a democracia já havia sido o elemento norteador para o
socialismo. Para os grandes teóricos do marxismo, a democratização radical acompanharia a
socialização dos meios de produção num processo conjunto: “nesse preciso sentido é que os
socialistas se queriam democratas, muito mais profundamente democratas que os regimes
democráticos então existentes” (AARAO REIS in AARAO REIS & ROLLAND, 2009: 312). O
aprofundamento da democracia (seja a política formal, seja a exercida no interior das fábricas) se
confundia com a própria revolução.
No entanto, se as utopias socialistas são indissociáveis da discussão a respeito da
democracia, esta última ganhou vida muito antes disso.

A construção histórica da democracia


2

A democracia tem suas origens da Antiguidade Clássica. Significava um “governo do


povo” exercido de maneira direta pelos seus cidadãos. Se a democracia ateniense possuiu
características bastante idiossincráticas (como o sorteio, por exemplo, para preencher os cargos
públicos), o ideal de um governo do povo será resgatado séculos depois e vai se constituir como
um elemento indissociável do conceito. No entanto, a expressão empírica deste ideal vai ser
determinada pelos projetos em disputa. Segundo Luiz Felipe Miguel, “nenhuma teoria possui
fundo normativo neutro; os critérios que definem o que é uma democracia, não são dedutíveis da
observação empírica; passam por uma definição (implícita) de como deve ser uma democracia”
(MIGUEL, 1996: 6).
Na Europa ocidental, o sentido da democracia começou a ser (re)construído, a partir do
século XVIII, com o processo de substituição do Estado absolutista para um Estado secularizado,
onde a racionalidade começava a se fazer presente como base para sua constituição. Era a época
em que o Iluminismo começava a construir uma “filosofia da consciência”, que serve de base
para a constituição da esfera pública em oposição àquele Estado (Nun, 1989:27). Como afirma o
autor: “la fe, la tradición o el status del emisor fueron dejando de ser credenciales suficientes
para que una definición de la realidad social ingresara con éxito a la discusión pública”.
Compunha-se, assim, uma “arena de debate político” que desvinculava a participação de
uma pessoa de sua posição social, e “la gente se puso a hablar de política, más allá de sus asuntos
comunales”. Como coloca Nun (1989:31), para Habermas, a esfera pública representa:

“un sector de la vida social en que un agregado político de personas privadas


razona y debate publicamente. Se trata, en otras palabras, de la emergencia
histórica de la denominada ‘opinión pública’: se multiplicaban los foros de
discusión de asuntos de interés general (...), que buscaban mediar la división
creciente entre el estado y la sociedade civil.”

A constituição desse espaço de reflexão coletiva, na percepção de Habermas, representa


uma nova potencialidade dentro do funcionamento político dos países europeus, abrindo o
caminho para a igualdade reivindicatória acerca dos direitos dos cidadãos em participar das
decisões políticas de seu Estado e o achatamento do princípio de autoridade que é substituído
pelo “gobierno de la razón”.
3

Nesse contexto, a representação foi a adaptação necessária para tornar possível a


incorporação de um número maior de cidadãos na esfera política em sociedades cada vez mais
complexas. A democracia deveria ser um governo que representasse os interesses do povo, mas
não formado pelo povo. Em outras palavras, se, por uma indiscutível concessão, as classes
dominantes passariam a considerar, ainda que parcialmente, os interesses do povo, este último
ainda não estaria pronto para governar1. A política formal, estadista, seria relegada aos mais
ilustrados, assegurada pelo voto censitário e, posteriormente, pelo voto dos alfabetizados. No
conjunto dessas reformas, o povo passou a contar também com direitos fundamentais, direitos
individuais – em oposição aos direitos coletivos, consuetudinários, os quais estavam habituados.
Da mesma forma, na política, o povo foi fracionado em indivíduos na fórmula: um homem, um
voto. A igualdade seria formal, somente perante a lei.
Segundo Aarão Reis, “legitimado pelas revoluções que o consolidaram, [esse] programa
liberal aparecia com notável petulância, como se fosse a única hipótese de modernidade.
Segundo os liberais, sem eles, não haveria modernidade” (AARAO REIS in AZEVEDO ET
ALLÍ, 2009: 9). No entanto, não faltará a construção de alternativas ao mesmo.
Inclusive, é sobre este modelo, democrático liberal representativo, que muitos
movimentos sociais vão pautar suas lutas, haja vista que este já era uma vitória deles. Ao longo
dos séculos, vão conquistar mais e maiores concessões, vão identificar os seus limites, vão
propor outros caminhos. O objetivo: democratizar a democracia. Consubstanciados ou não com
outras ideologias, vão dando novos sentidos para o que deveria ser a democracia, sem perder de
vista o seu ideal clássico: um governo do povo.

O encontro do socialismo com a democracia

Uma das primeiras experiências que pressionaram o aparato burguês liberal a se


transformar diante das pressões desde abajo foi a de 1848, na França, que serviu de ante-sala
para a Comuna de Paris de 1871, ambas analisadas por K. Marx em seus clássicos As Lutas de

1
Para alguns teóricos, o povo jamais estaria apto para tanto. Segundo Joseph Schumpeter, o exercício da democracia
exige que os cidadãos sejam informados, conscientes de suas escolhas e desejosos por alcançar o bem comum, e o
povo, por sua vez, seria o equivalente a uma massa de alienados, facilmente manipuláveis e “irracionais”. Por essa
razão, a democracia seria, na realidade, mais uma forma de uma minoria governar a partir da luta concorrencial pelo
voto (MIGUEL, 1996: 9-10).
4

Classes na França de 1848 a 1850 e A Guerra Civil na França respectivamente 2. Na


experiência de 1848, os proletariados organizados conseguiram fazer com que fosse proclamada
uma República com sufrágio universal, estabelecendo a participação política de todos. No
entanto, segundo Marx, a premissa conciliatória com a burguesia com a qual a República fora
proclamada, sob o lema da “fraternité”, foi determinante para a sua derrota, pois num dado
momento a burguesia se voltou contra os proletários, num massacre que não seria esquecido no
momento da Comuna em 1871. Esta última, mais radical, foi tornada emblemática não apenas
por Marx, mas por vários pensadores, de uma alternativa radical ao Estado burguês parlamentar e
serviu de base para a teoria socialista da ditadura do proletariado – então entendida como um
exemplo de democracia radical3.
Dentre suas principais medidas, é possível perceber claramente o desmonte da estrutura
liberal e a construção de algo novo, baseada em novos valores – todos eles remetendo de uma
forma ou de outra à gestão popular e ao poder popular. Em meio a um estado permanente de
guerra, a Comuna foi institucionalizada nos seguintes termos:

“[...] o primeiro decreto da Comuna foi no sentido de suprimir o exército permanente e


substituí-lo pelo povo armado.
A Comuna era composta de conselheiros municipais eleitos por sufrágio universal nos
diversos distritos da cidade. Eram responsáveis e substituíveis a qualquer momento. A
Comuna devia ser, não um órgão parlamentar, mas uma corporação de trabalho, executiva e
legislativa ao mesmo tempo. Em vez de continuar sendo um instrumento do governo
central, a polícia foi imediatamente despojada de suas atribuições políticas e convertida
num instrumento da Comuna, responsável perante a ela e demissível a qualquer momento.
O mesmo foi feito em relação aos funcionários dos demais ramos da administração. A
partir dos membros da Comuna, todos que desempenhavam cargos públicos deviam receber
salários de operários. [...] Nas mãos da Comuna concentrou-se não só a administração
municipal, mas toda iniciativa exercida até então pelo Estado.”

2
Isso para não mencionarmos, entre outros, o movimento cartista na Inglaterra, nos anos 30 do século XIX, no qual
a classe operária organizada exigia através do documento Carta do Povo, o sufrágio universal masculino, voto
secreto, igualdade entre os direitos eleitorais e a participação de representantes da classe operária no parlamento.
Apesar de não terem suas exigências atendidas imediatamente pelo Parlamento inglês, o movimento foi significativo
para que estes direitos fossem contemplados gradativamente nos anos seguintes.
3
Além da ditadura do proletariado (Marx, Frederich Engels e Vladimir Lênin), a Comuna também foi interpretada
como expressão de uma “negação muito valente e muito clara do Estado” (Mikhail Bakunin) ou mesmo
emblemática de um “Estado democrático” combinado com “autonomia administrativa dos municípios” (Karl
Kaustky). Ver COGGIOLA (2002).
5

A Comuna decretou também “a separação da Igreja e do Estado e a expropriação de todas


as Igrejas como corporações possuidoras[...] Todas as instituições de ensino foram abertas
gratuitamente ao povo e ao mesmo tempo emancipadas de toda intromissão da Igreja e do
Estado [...] Assim como os demais funcionários públicos, os magistrados e juízes deviam
ser funcionários eletivos, responsáveis e demissíveis [grifos nossos]”4

Com a abolição do exército, da polícia e da burocracia; o estabelecimento da elegibilidade


e revogabilidade (através de sufrágio universal) de todos os cargos na esfera pública
(administrativos judiciais e educacionais); a delimitação de um teto salarial baseado no salário
operário, entre outras medidas que citamos acima, a Comuna se tornou referência de uma
institucionalidade de novo tipo. A representatividade, nesse caso, continua, mas é exercida de
maneira diferente do sistema parlamentarista, já que as instâncias legislativas e executivas se
fundem nos órgãos comunais e são estabelecidas outras lógicas de princípios e de manutenção e
ocupação de cargos, além da ação direta e participativa ter se tornado seu corolário e sua
premissa.
A Comuna durou exatos 72 dias. Essa efêmera experiência encontra em seus poucos dias
de sobrevivência seu escudo. Afinal, será que tais medidas poderiam ter efeito de médio ou
longo prazo? Será que possibilitariam a consolidação de instituições capazes de superar os
períodos épicos nos quais, as pessoas, naturalmente, estão mais engajadas? Será que permitiriam
a institucionalização de novas estruturas cuja premissa seja a de não apenas delegar poderes, mas
também exercê-los? Ou será que a Comuna, se sobrevivesse à guerra, teria como fim inexorável
a burocratização e a restauração do centralismo tal como ocorreu na União Soviética, na China e
em Cuba, para ficarmos nos exemplos mais expressivos?
Independentemente dessas especulações, conforme mencionamos, a Comuna é a
referência fundamental para a teoria da ditadura do proletariado e terá grande influência na teoria
socialista que norteará muitos movimentos sociais ao longo do século XX. No clássico de Lênin,
O Estado e a Revolução, o autor destaca que as assembléias comunais não teriam aberto mão de
um centralismo democrático e da unidade da ação, quer dizer,

“[...] se o proletariado e o campesinato pobre se apoderam do poder estatal, e organizam


com toda a liberdade no seio das comunas e unem a ação de todas as comunas para esmagar

4
MARX, K. “A Guerra Civil na França”. In: ENGELS, F.; MARX, K. Textos 1. São Paulo: Edições Sociais, 1975,
p. 197.
6

o capital, destruir a resistência dos capitalistas, passar para toda a nação, para toda a
sociedade, a propriedade privada das ferrovias, das fábricas, da terra, etc., não será isto
centralismo? Não será isto o centralismo democrático mais conseqüente, mais ainda, um
centralismo proletário?” 5

Alguns anos mais tarde, os soviets, na Rússia, seguiriam pelo mesmo caminho. Não à toa
são considerados a mola propulsora das Revoluções Russas. Lênin os considerava instâncias mil
vezes mais democráticas do que o mais democrático parlamento europeu, conforme destaca
Aarão Reis (AARAO REIS in AARAO REIS & ROLLAND, 2009: 313). Segundo este último,
depois de ver ampliadas as contradições sociais do Império Tzarista Russo, três ondas de greves
estouraram em várias partes e foi

“[...] no interior de uma destas greves, numa cidade ao norte de Moscou,


Ivanovo-Voznesenk,[que houve] a criação, pelos operários, em maio de
1905, de uma forma de organização original, o soviet (conselho),
constituído por representantes (deputados) dos operários, eleitos nas
próprias fábricas, sem mandato fixo, revogáveis a qualquer momento
[...]. Durou 72 dias e se autodissolveu” (AARÃO REIS, 2007: 49).

No entanto, isso não representou o seu fim. Ao contrário, o modelo de um parlamento


plebeu no interior das fábricas se espalhou pelos quatro cantos do Império, tendo sua maior
expressão em São Petersburgo. A partir daí, a Revolução Socialista deveria passar pelos soviets.
Lênin, líder bolchevique, atendeu, em suas Teses de Abril, às exigências dos soldados, operários
e marinheiros de Petrogrado, de conceder “todo o poder aos soviets” (AARAO REIS, 2007: 65).
Foi com esta máxima que a Revolução de Outubro de 1917 saiu vitoriosa. Contudo, mais uma
vez, não podemos ter certeza em relação à longevidade ou à capacidade da estrutura dos soviets
em se consolidarem enquanto instituições representativas e participativas do povo em momentos
posteriores à efervescência revolucionária típica dos primeiros anos. Uma série de
circunstâncias, entre elas, a ausência de uma tradição democrática na Rússia, a guerra civil que
se deu em seguida à vitória bolchevique, a morte de Lênin e a vitória de Joseph Stálin na disputa
pela sucessão ao cargo de líder da Revolução, contribuíram para que o projeto de um Estado
5
LENIN, V. I. O Estado e a Revolução: O Conceito Marxista do Poder. Niterói: Diálogos, s/d, pp. 75-76
7

Soviético ficasse registrado apenas no nome da então União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas/URSS. Na prática, o que houve foi a centralização do processo na figura de seu líder
máximo e na ditadura do partido único – mal sofrido também pelos processos revolucionários
chinês e cubano.
Para alguns autores, não são as circunstâncias de cada processo que explicam a derrota do
projeto de democracia radical das revoluções socialistas, mas sim o fato da democracia recair
inevitavelmente num governo de minoria. Seria uma impossibilidade histórica. Robert Michels é
um dos grandes expoentes dessa interpretação. Em seu clássico A Sociologia dos Partidos, de
1914, o autor demonstra a tese supracitada, tomando como base a estrutura que, para ele, deveria
representar o que havia de mais democrático na Europa Ocidental, isto é, o Partido Social-
Democrata Alemão6, o qual, inclusive, Michels foi militante.
Apesar do autor ser bastante influenciado pelas teorias elitistas de Mosca e Pareto e
possuir uma visão do comportamento das massas bastante essencialista no sentido de uma
impotência orgânica para a vida pública (MICHELS, 1982: 36), sua análise chama atenção para
um aspecto de significativa importância que são os limites da representação. Segundo Michels, a
democracia direta nas sociedades modernas é totalmente inviável na medida em que não é
possível criar um espaço no qual um universo de centenas ou mesmo milhares de pessoas
possam deliberar sobre questões elementares e decidir sobre os projetos que serão executados. É
necessária a eleição de delegados, de representantes, que, em espaços menores, responderão
pelas massas e encaminharão o processo deliberativo e executivo dos projetos. Para o autor, é
nesse momento que uma classe dirigente se dissocia de sua base, constituindo sobre estas
últimas, uma casta oligárquica.
Isso se dá porque Michels é bastante pessimista em relação ao controle das massas sobre
os seus representantes por partir do pressuposto que estas são indiferentes à política e sucumbem
à influência de suas lideranças. Se estas últimas são uma construção social das massas, ao
mesmo tempo, as massas não são capazes de controlá-las e “à medida que a organização cresce,
o direito de controle reconhecido à massa torna-se cada vez mais ilusório” (MICHELS, 1986:
22). A tendência é confiarem plenamente nas decisões de seus líderes ou, no máximo, aprovar
uma ou outra medida por aclamação pública.

6
O autor também faz referências pontuais a outros casos na Itália, Países Baixos e Grã-Bretanha. É importante frisar
que no momento em que o autor escreveu o livro, os Partidos Comunistas ainda estavam em formação. A maior
referência em termos de uma plataforma socialista de luta eram os partidos social-democratas.
8

Se, por um lado, é perfeitamente possível questionar essa determinação (negativa) moral
do comportamento das massas, por outro, a tendência à formação de uma “classe dirigente
profissional” e oligárquica no interior dos partidos (MICHELS, 1986: 19) foi comprovada em
várias experiências posteriores – particularmente no interior dos Partidos Comunistas - e, sem
dúvida, permanece como um dos maiores desafios para se consolidar uma democracia de fato7.

Reforma e Revolução na América Latina

Na América Latina, voltando ao contexto das redemocratizações nos anos 80 e 90, o


socialismo com seu modelo de democracia radical, não estava presente na maior parte das
agendas políticas. No entanto, os limites da democracia representativa liberal não deixaram de
ser questionados e, em alguns países, algumas reformas foram levadas a cabo. As diversas crises
políticas e econômicas ocorridas no final do século abriram espaço para a valorização de
experiências alternativas de modelos democráticos, próximas do que seria um modelo de
democracia participativa, em que são construídos espaços participativos onde a população tem a
oportunidade de debater e decidir acerca dos caminhos políticos a serem tomados, sobretudo a
nível local, em seu bairro, distrito ou município.
Trata-se, portanto, de ampliar a participação do povo para além do voto e de uma
influência difusa nas diretrizes políticas dos representantes a partir da opinião pública. Por essa
razão, trazer a política para a esfera local é da maior importância para que os cidadãos possam
senti-la de maneira mais direta em seu cotidiano, contribuindo de maneira tácita para a resolução
dos conflitos. Através da participação, aprimora-se a representação, pois contribui para
desenvolver uma nova cultura política mais identificada com a institucionalidade democrática,
cujo efeito benéfico pode ser, entre outros, o de superar um dos desafios lançados por Michels,
isto é, o da “ampliação da capacidade de controle [dos cidadãos] sobre seus representantes”
(MIGUEL, 1996: 25-26).

7
Em seu livro, Michels esmiúça a forma como essa classe dirigente profissional é constituída. Longe de ser
aleatória, são aqueles que se distinguem das massas por contarem com certa habilidade individual, contarem com o
dom da oratória e/ou um número de conhecimentos objetivos que lhe permita ocupar os cargos administrativos
(burocracia). Na medida em que as instituições e as sociedades vão se complexificando, as exigências para ocupar
um cargo tornam-se ainda mais seletivas (MICHELS, 1986: 19). Depois de conquistados os cargos, a tendência é
esta classe buscar permanecer nos mesmos: “o indivíduo regularmente delegado para um certo período acaba
pretendendo que a delgeção constitui sua propriedade” e, assim, “da delegação de fato nasce o direito moral à
delgação” (MICHELS, 1986: 31).
9

No Brasil, um exemplo significativo dessas reformas foi a implementação do Orçamento


Participativo. Realizada pela primeira vez em Porto Alegre, em 1990, pela prefeitura de Olívio
Dutra do Partido dos Trabalhadores/PT, atendendo a uma demanda histórica das associações de
moradores da cidade que, desde os anos 50, reclamavam por maior participação, o modelo
acabou se expandindo para outras cidades no país com significativo sucesso8.
Se, aparentemente, esse tipo de reforma, muitas vezes, não está revestido de maneira
explícita por uma ideologia socialista, na prática, a ampliação da participação dos cidadãos
comuns na política, pode ser um caminho fértil para a retomada desta utopia sob novas bases.
Estabelecer o princípio da participação significa também dar condições para que todos
possam participar de maneira equitativa. Abrange um universo mais amplo que o da política
propriamente dita, envolvendo, por exemplo, o domínio sobre a fala. No campo da teoria
democrática, as discussões em torno da democracia deliberativa destacam este fator. Afinal, “as
preferências são construídas e reconstruídas por meio das interações na esfera pública, em
especial do debate entre os envolvidos” (MIGUEL, 1996: 12). Michels também chama atenção
para este fato ao destacar que teria sido “principalmente, senão exclusivamente, pelo dom da
oratória que os chefes conseguiram, no início do movimento operário, ganhar sua supremacia
sobre as massas” (MICHELS, 1986: 45). Portanto, é de fundamental importância que haja, por
exemplo, um sistema educativo abrangente que amplie as capacidades dos cidadãos no que diz
respeito à fala e também uma mínima igualdade de condições materiais. Em relação a este último
aspecto, a democracia participativa “traz à tona uma constatação que já fazia Rosseau: é
impossível manter a igualdade política em condições de extrema desigualdade material, quando
uns são tão pobres que precisam se vender, outros são tão ricos que podem comprá-los”
(MIGUEL, 1996: 26).
No entanto, não se pode esperar acontecer “el gran cambio revolucionario” ou que todas as
condições materiais estejam colocadas à prova para que seja possível construir outra sociedade,
outra democracia. Para Nun, inclusive, muitos movimentos dos países do sul já estão rompendo

8
Para um estudo mais aprofundado dos Orçamentos Participativos, ver Avritzer (2009). Vale considerar que se, por
um lado, Avritzer considera o Orçamento Participativo como emblemático de uma instituição participativa; por
outro, Luiz Felipe Miguel o classifica como mais uma instância representativa. Neste caso, o autor não considera
uma instância de democracia participativa porque as Assembléias dos Orçamentos não têm poder decisório. O papel
das Assembléias é o de eleger delegados que decidirão junto aos representantes públicos do governo parte do
orçamento da cidade. Para Miguel, “ordenamento democrático participativo é inconcebível com o capitalismo”, pois
está “pregada a um sentido mais forte da palavra – significa o acesso a locais de tomada final de decisão, isto é,
implica a transferência de alguma capacidade decisória efetiva do topo para a base” (MIGUEL, 1996: 28-29).
10

o violento silêncio imposto pelas elites dominantes e “pedindo a palavra” (NUN, 1989:22). Sua
posição é que mesmo que haja contradições e imperfeições nas experiências democráticas
alternativas, é a partir da prática que vamos caminhando para uma mudança no sistema político
vigente.
Por essa razão, optamos por nos debruçar com maior profundidade em um desses
movimentos, o da Revolução Bolivariana, por considerarmos emblemático das potencialidades e
limites envolvidos nesse processo de reformas e de construção de novos sentidos para a
democracia, lançando novos rumos para o socialismo no século XXI.

A Revolução Bolivariana e os Consejos Comunales: aspectos normativos


A Venezuela, apesar de ser um dos poucos países latinoamericanos que não viveu uma
ditadura civil-militar formal, os 40 anos de democracia representativa puntofijista surtiram o
mesmo efeito no que diz respeito ao desgaste e aos limites da institucionalidade liberal. Apesar
de sua longevidade, a estabilidade do puntofijismo foi conquistada através de um poderoso
aparato repressivo, da consagração de uma democracia ancorada na premissa da representação,
apurada principal e quase exclusivamente através de eleições regulares; e de um contexto
internacional favorável para a entrada de divisas advindas da renda petroleira. No tocante a este
último aspecto, os petrodólares permitiram uma sensação de melhoria das condições de vida para
muitos venezuelanos e mascararam muitos dos limites do regime, que adotava um modelo
caracterizado por Lander (2007) como socialdemocrata e desenvolvimentista. A crise do petróleo
dos anos 70 provou o quanto a estabilidade política era frágil.
Aos escândalos de corrupção e à ineficiência das instituições públicas se somaram os
perversos efeitos do pacote de reformas neoliberais que foram implementadas nos anos 80 com o
objetivo de superar a crise. O resultado: a explosão de uma revolta popular sem precedentes,
conhecida como Caracazo, em 1989.
A ânsia por mecanismos alternativos de se fazer política, contando com maior
participação popular, vai ser um dos elementos determinantes para a vitória de Hugo Chávez
Frias, em 1998. Uma de suas primeiras medidas no governo foi fazer uma consulta popular via
referendo para aprovar ou não a convocação de uma Assembléia Constituinte para a redação de
um novo Pacto Social para o país. A pergunta no referendo era: “¿Convoca usted una Asamblea
Nacional Constituyente con el propósito de transformar el Estado y crear un nuevo ordenamiento
11

jurídico que permita el funcionamiento efectivo de una Democracia Social y Participativa?” Em


25 de abril de 1999, 87,75% dos venezuelanos disseram que sim (CNE, 1999).
A Constituição Bolivariana, como ficou conhecida, foi aprovada por 71,78% em 15 de
dezembro daquele mesmo ano. Dentre as principais mudanças, destacam-se: a ampliação dos
direitos sociais, reconhecendo direitos indígenas e de mulheres; a submissão da lei aos
referendos (consultivo, confirmatório, ab-rogatório e revogatório); o estabelecimento dos 5
Poderes: Executivo, Legislativo, Judiciário, Cidadão e Eleitoral; a manutenção da centralidade na
figura do presidente, estendendo o mandato de 5 para 6 anos e permitindo a reeleição imediata; e
a dissolução do Congresso Bicameral em uma única Assembléia Nacional.
É válido considerar, em particular, o contraste da Constituição de 1999 com a de 1961
que a atencedeu, no que diz respeito ao aspecto da participação popular. Nas Disposiciones
Fundamentales, a Constituição de 1961, em seu Artículo 3º, determina que “el gobierno de la
Republica de Venezuela es y será siempre democrático, representativo, responsable y
alternativo [grifo nosso]” e, no Artíuclo 4º, que “la soberania reside en el pueblo, quien la ejerce,
mediante el sufrágio, por los órganos del Poder Público [grifo nosso]” (CONSTITUCIÓN DE
1961). Destes dois artigos saíram a institucionalidade democrática que se consolidaria na
Venezuela durante 40 anos, isto é, um regime fundamentalmente representativo cuja soberania
do povo é atestada mediante, única e exclusivamente, o sufrágio.
Já a Constituição de 1999 incorpora novos elementos nestas mesmas Dispociones
Fundamentales, ampliando tanto o sentido de democracia quanto o de soberania do povo. No
Artículo 6º determina que “el gobierno de la República Bolivariana de Venezuela y de las
entidades políticas que la componen es y será siempre democrático, participativo, electivo,
descentralizado, alternativo, responsable, pluralista y de mandatos revocables [grifo nosso]”
(CONSTITUCIÓN DE 1999) e, no Artículo 5º, que

“la soberania reside intransferiblemente en el pueblo, quien la ejerce


directamente en la forma prevista en esta Constitución y en la ley, e,
indirectamente, mediante el sufrágio, por los órganos que ejercen el Poder
Público. Los órganos del Estado emanan de la soberania popular y a ella están
sometidos [grifo nosso]” (CONSTITUCIÓN DE 1999).
12

No tocante à questão do povo exercer sua soberania de maneira direta, a Constituição


institucionaliza uma série de dispositivos, para além do sufrágio, para que o povo tenha
condições de intervir de maneira mais participativa na vida política. Estes dispositivos são
delimitados no Artículo 70, no capítulo referente aos Derechos Políticos:

“Son medios de participación y protagonismo del pueblo en ejercicio de su


soberania, en lo político: la elección de cargos públicos, el referendo, la
consulta popular, la revocación del mandato, las iniciativas legislativas,
constitucional y constituyente, el cabildo abierto y la asamblea de ciudadanos y
ciudadanas cuyas decisiones serán de carácter vinculante, entre otros [...]”

Se buscarmos na Constituição de 1961 a definição dos direitos políticos, constatamos que


todos os artigos se remetem única e exclusivamente às condições de voto e das eleições (do
artigo 110º ao 116º), sem qualquer menção aos dispositivos alternativos trazidos pela mais
recente.
A Assembléia de Cidadãos e Cidadãs referidas no artigo 70º é base fundamental para a
formação dos Consejos Comunales nos anos seguintes. As mudanças trazidas pela Constituição
de 1999 são fruto da ampla participação popular que marcou o processo de sua redação.
Conforme mencionamos, a crise da representatividade durante os tempos do puntofijismo
incentivaram uma série de iniciativas de organização popular que, num momento político
favorável, acabaram por ser consideradas.
No interior das comunidades populares, em particular, a ausência do Estado ou a
ineficácia dos serviços públicos contribuiu para que houvesse a formação de uma série de
associações – desde as juntas vecinales até os colectivos políticos mais organizados. Foram
destas associações que surgiram as primeiras iniciativas institucionalizadas pelo Estado no
sentido da promoção da democracia participativa: Comitês de Gás, de Terras Urbanas, Mesas
Técnicas de Água, as Misiones Sociales e, finalmente, os Consejos Comunales. Todos tinham o
caráter de associar reformas sociais à gestão popular. No caso dos Comitês de Terras Urbanas,
por exemplo, o Estado se comprometeu em conceder a titularidade da terra para as centenas de
casas irregulares construídas nos barrios do país9. Para tanto, a comunidade de moradores
deveria se organizar, fazer um levantamento das moradias, elaborar uma planta, fazer um censo,
9
Na verdade, os títulos foram vendidos por um valor simbólico de BsF 1.
13

em suma, preparar todo o material que geralmente era relegado aos burocratas do Estado. Este
último, através de seus funcionários, orienta e auxilia os vizinhos a cumprirem com as metas
necessárias. O sucesso da iniciativa pode ser atribuído a duas razões principais: em primeiro
lugar, o reconhecimento da capacidade do povo de se organizar e contribuir na execução das
políticas públicas; em segundo, na medida em que há uma abertura do Estado nesse sentido, as
organizações de base já existentes, ganham mais força e popularidade e, outras que não existiam,
ganham um poderoso impulso para serem construídas.
Os comitês de trabalho dos mais variados tipos vão desembocar numa estrutura que será
formalizada, em 07 de abril de 2006, na Ley Orgánica de los Consejos Comunales. Estes últimos
são definidos no Artículo 2º, da seguinte forma:

“los Consejos Comunales en el marco constitucional de la democracia participativa y


protagónica, son instancias de participación, articulación e integración entre las diversas
organizaciones comunitárias, grupos sociales y los ciudadanos y ciudadanas, que permiten al
pueblo organizado ejercer directamente la gestión de las políticas públicas y proyectos
orientados a responder a las necesidades y aspiraciones de una sociedad de equidad y justicia
social” (LEY DE LOS CONSEJOS COMUNALES, 07 de abril de 2006)

O objetivo era mobilizar pequenos grupos locais, tendo como abrangência máxima 400
famílias (de 200 a 400 famílias nas cidades, a partir de 20 na área rural e 10 nas comunidades
indígenas), e inserir a população na gestão das políticas de cada comunidade. Os conselhos, ao
seguir os passos de formalização definidos na lei, têm a possibilidade de acesso a recursos
públicos para serem investidos em suas localidades e, com isso, solucionar problemas, tais como,
fornecimento de água, gás, iluminação, saneamento, vivenda, saúde, educação, cultura e lazer,
entre outros.
Todos os conselhos precisam ser registrados: anteriormente era na Comisión Local
Presidencial del Poder Popular, ligada ao governo federal, hoje foi convertida em
Fundacomunal ligada ao Ministério do Poder Popular para as Comunas.
Cada tema é discutido por um comitê temático específico. Segundo o artigo 6º, o comitê é
“un colectivo o grupo de personas organizadas para ejercer funciones específicas, atender
necesidades y desarrollar las potencialidades de cada comunidad”. As áreas nas quais estes
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grupos trabalharão vão depender das características da região onde o Consejo Comunal está
hospedado.
Os projetos são levados para votação na Assembléia de Cidadãos e Cidadãs, “instancia
primaria para el ejercicio del poder, la participación y el protagonismo popular cuyas decisiones
son de carácter vinculante para el consejo comunal respectivo” (artigo 5, Lei Orgânica dos
Consejos Comunales, 2006). É o espaço onde reside a soberania do conselho. As agremiações
políticas e os partidos que atuam na região não podem interferir nos conselhos, senão de forma
indireta através dos moradores que eventualmente são filiados a um ou a outro. A Lei determina
todas as condições para as eleições dos representantes, para a controladoria social e para a
administração dos recursos.
O acesso aos recursos do Estado vem sofrendo adaptações desde 2006. A princípio foi
criado, no interior de cada Consejo Comunal, o Banco Comunal, “organización flexible, abierta,
democrática, solidaria y participativa” (artigo 4, parágrafo 10, Lei Orgânica dos Consejos
Comunales, 2006) composta por 05 membros eleitos pela Assembléia de Cidadãos, responsáveis
pela gestão financeira. Na última lei, aprovada em 26 de novembro de 2009, foi excluído o
Banco Comunal e, em seu lugar, foi construída a Unidade Administrativa e Financeira
Comunitária que recebeu atribuições mais específicas para o manejamento dos recursos.
A rigor, a aplicação do novo paradigma democrático bolivariano é experimentalista. Não
há um manual pronto. É a prática que vem ditando os rumos do processo. Não é à toa que a Lei
dos Consejos Comunales já passou por, pelo menos, seis adaptações desde 2006.
Gradativamente o modelo vem se complexicando com vistas a abranger não apenas a
instância local. O que podemos observar atualmente na Venezuela é um movimento na direção
das Comunas, quer dizer, trata-se da articulação dos Consejos Comunales de uma dada região
sob o princípio de construção de um modelo sócio-produtivo socialista e articulado. As Comunas
ainda não ganharam uma regulamentação legislativa, mas já estão sendo colocadas em prática
em várias regiões do país.
Para Lander, os Consejos Comunales estão concebidos como um by pass dos níveis
estaduais e municipais, “el estabelecimiento institucionalidad paralela que, sin la mediación de
esas instancias del Estado, establece una relación directa entre la organización en el ámbito
comunitario y la Presidencia de la Republica” (LANDER, 2007: 77).
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Sem dúvida, existem muitos limites e desafios a serem enfrentados como, por exemplo, em
relação à dependência dos recursos estatais, à superação das demandas meramente locais, à
centralização para a aprovação de projetos, à real interferência das agremiações políticas, à
construção de uma cultura política de participação (em um país no qual a democracia sempre
pareceu um conceito estranho para a maior parte da população), sem contar o fantasma do
burocratismo e da centralização das experiências socialistas do século XX que persistem como
uma referência inegável.

Cultura Política e Transformação

Para além dos aspectos normativos que definem e estruturam os Consejos Comunales, é
válido destacarmos o que estas iniciativas representam no âmbito de um conjunto de
transformações mais profundas que ocorrem no interior daqueles que são os protagonistas
daquele processo, as classes populares.
Conforme mencionamos, Hugo Chávez não foi eleito em nome de um projeto pré-
concebido. Sua candidatura girava em torno de uma expectativa por mudanças, mas o teor e
caráter destas ainda não eram claro. A Constituinte de 1999 foi um primeiro passo para delinear
alguns rumos que aquele processo poderia tomar. Foi possível, não porque o executivo fez
aprovar um projeto próprio, mas sim porque o projeto foi o de dar espaço às vozes que até então
não era ouvidas.
Se, por um lado, existe um movimento no sentido de uma centralização do executivo
(como demonstra a aprovação da lei de reeleição indefinida do presidente, em 2009, e nos
insistentes esforços do governo em estabelecer uma relação direta entre povo e presidente), por
outro, o potencial aberto pelas iniciativas dos Consejos Comunales abre um novo horizonte de
expectativas para o futuro do processo.
O que se percebe hoje na Venezuela é um gradual processo de transformação da cultura
política do país. Um país no qual a população jamais havia sido convocada a participar, onde a
política, a esfera pública, não havia se constituído enquanto espaços legítimos de deliberação de
idéias e aprovação de projetos, onde política e cotidiano estavam dissociados, salvo nos dias de
eleição, quando a cidadania terminava no ato de votar. Os Consejos Comunales têm um
importante papel de recuperar os espaços da esfera pública, (re)legitimando-os e ampliando-os
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para o interior das comunidades, através dos quais as pessoas comuns passam a ter poder
deliberativo e decisório na instância que mais atingem as suas vidas.
No processo de construção de um Consejo Comunal, um grupo de moradores mais
mobilizados é responsável por fazer um censo sócio-econômico da sua área. Visitam as casas,
conhecem as pessoas, seus problemas, descobrem um mundo novo por trás das paredes de
tijolos. Um mundo de problemas compartilhados. Cresce uma consciência de que existe uma
coletividade ao redor e que, juntos, eles podem para resolver os problemas que mais afligem suas
vidas e trazer benefícios para a comunidade. É este pequeno grupo que cumpre a tarefa de
convencer e convocar os demais moradores. A abertura do Estado, no sentido de garantir os
recursos necessários ou de atender e executar os projetos exigidos favorece a mobilização.
Se, num dado momento, esta mobilização pode decorrer de um interesse oportunista de
receber dinheiro do Estado ou de conseguir uma iluminação pública para rua ou um serviço de
água potável, o espaço dos Consejos, acaba por oferecer a possibilidade de que haja um
desenvolvimento de consciência e de interesses naquele interior.
Por mais pragmático que possa ser um Consejo Comunal, ao se criar um espaço de
convivência entre os vizinhos, os assuntos discutidos ali caminham paralelamente à vida política:
se houve uma decisão polêmica do governo, se há um período de eleições ou de referendos, se há
problemas de caráter mais amplo que os que tangem à realidade local, as reuniões dos Consejos
permitem que estas opiniões encontrem um espaço comum para serem colocadas, questionadas e
debatidas. Portanto, se a priori, a função de um Consejo é atender às demandas locais
fundamentalmente, esses espaços podem ser potencializados para um sentido mais amplo que o
original.
O fato de hoje haver um esforço de formar as Comunas e aumentar o raio de ação e de
prerrogativas dos Consejos Comunales é um sinal evidente desta premissa, ou seja, que, das
demandas meramente locais, pode-se evoluir para questões políticas mais gerais - cujas
conseqüências somente os próximos anos poderão esclarecer.
Transformar uma cultura política é um processo lento e gradual, de avanços e tropeços.
Quando as pessoas alegam que não têm tempo para a política, que não têm tempo para ir a uma
reunião do Consejo Comunal numa quarta-feira à noite ou num domingo à tarde significa que os
imperativos da cultura política liberal, que define participação somente o momento de depositar
o voto na urna, ainda inibem o desenvolvimento desses espaços de decisão e deliberação
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coletivas. O desafio do movimento é demonstrar que da mesma maneira que as pessoas devem
encontrar tempo para ir ao supermercado, para ter uma hora de lazer, para assistir a uma
televisão ou ler um livro, para lavar a casa ou consertar o automóvel, elas precisam também ter o
tempo para a política - entendida aqui não como uma abstração, mas como uma prática social de
deliberação e decisão.
Um último aspecto a considerar é que o desenvolvimento dos Consejos Comunales na
Venezuela caminha juntamente com a difusão de políticas públicas que tangem os mais variados
aspectos da vida de um cidadão. As Misiones Sociales, em particular, cumprem o importante
papel de levar educação às regiões menos atendidas, da mesma forma o Barrio Adentro I, II, III e
IV levam atendimento médico-hospitalar ou então, a Mision Mercal, que oferece alimentos
subsidiados, além de comedores populares.
Portanto, conforme mencionamos anteriormente, se o objetivo é desenvolver uma nova
cultura política, mais participativa, é de fundamental importância o investimento nesses setores,
pois sem as ferramentas mínimas, sem uma alimentação, sem saúde ou sem educação, sem a
diminuição das desigualdades sociais, esses espaços abertos pelos Consejos podem não ser
aproveitados na maneira que potencialmente poderiam.

O Plan Nacional Simón Bolívar e o Socialismo do Século XXI

O Socialismo do Século XXI, proclamado e defendido por Hugo Chávez, pouco a pouco
vai ganhando forma na Venezuela. Em setembro de 2007, foi lançado o Proyecto Nacional
“Simón Bolívar” – Primer Plan Socialista de la Nación (PPSN), uma meta de desenvolvimento
econômico e social para o período de 2007 a 2013, quando termina o segundo mandato do
presidente10.
O plano é estruturado em sete eixos principais:
I. Nueva ética socialista: propõe a refundação da Nação Bolivariana sob os valores e
princípios das correntes socialistas mais avançadas e do legado histórico de
Simón Bolívar.

10
Com a assinatura da Constituição de 1999, Chávez, que havia sido eleito em 1998, foi submetido à nova eleição
presidencial. Venceu o pleito dando início ao primeiro mandato efetivo (2000-2006) e foi reeleito para um segundo
mandato (2007-2013).
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II. Suprema felicitad social: termo proclamado por Simón Bolívar, visa a
consolidação de uma estrutura social inclusiva e um novo modelo social,
produtivo, humanista e endógeno.
III. Democracia protagónica revolucionária: voltada para a transformação do
indivíduo em força coletiva, reforçando sua independência, liberdade e poder.
IV. Modelo productivo socialista: busca como fim último a eliminação da divisão
social, da estrutura hierárquica da sociedade e da dissociação entre a satisfação
das necessidades humanas e a produção da riqueza.
V. Nueva geopolítica nacional: voltado para integração nacional, numa lógica
descentralizadora, mancomunada com um desenvolvimento sustentável.
VI. Venezuela – potencia energética mundial: garantir o uso soberano dos recursos
naturais combinado com esforços pela integração regional e mundial, sem perder
de vista a importância do petróleo como peça-chave para financiar a construção
do modelo socialista de produção.
VII. Nueva geopolítica internacional: voltada para a construção de um mundo
multipolar, com novos pólos de poder que busquem a justiça social, a
solidariedade, a paz, o aprofundamento do diálogo fraterno entre os povos, a
defesa da autodeterminação e o respeito às liberdades de pensamento.

Para os fins deste artigo, nos ateremos em analisar, em particular, o reencontro entre
socialismo e democracia segundo os princípios trazidos pelo eixo III, no que diz respeito à
construção de uma democracia protagónica revolucionária.
Os princípios nos quais se sustenta todo o processo que tratamos anteriormente estão
inseridos numa lógica de desmonte da estrutura liberal. O plano destaca a importância de
considerar “los espacios públicos y privados [...] complementários y no separados y
contrapuestos como en la ideologia liberal” (PLAN NACIONAL SIMÓN BOLÍVAR, 2007: 41).
Conforme vimos, os Consejos Comunales cumprem um importante papel de ampliar a esfera
pública e trazê-la para o interior das comunidades, tornando difusa a fronteira que a separa dos
espaços privados.
Da mesma forma, dá um novo sentido ao indivíduo ao “transformar su debilidad
individual en fuerza colectiva, teniendo en cuenta que el establecimiento de la organización no
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implicará menoscabo de la independência, autonomia, libertad y poder originário del individuo”


(PLAN NACIONAL SIMÓN BOLÍVAR: 2007: 41). Se no interior da Assembléia de Cidadãos e
Cidadãs, se mantém a fórmula um homem, um voto, para decidir a respeito dos projetos e da
eleição de seus representantes, ao mesmo tempo, como se trata de instâncias mais próximas à
realidade dos votantes, o sentido deste voto ganha mais sentido na medida em que as pessoas
efetivamente conhecem o seu candidato e se identificam com os projetos de maneira mais direta
fomentando, assim, uma consciência coletiva do processo.
Portanto, a construção de uma nova cultura política democrática atrelada a novos valores
se faz necessária. Estes últimos devem buscar

“poner de relieve los elementos en común, que permitan construir uma


comunidad, no indivíduos aislados y egoístas atentos a imponer sus intereses a
la comunidad, a esa entidad – la comunidad -, se entrega todo el poder
originário del individuo, lo que produce uma nueva volundad general, en el
sentido de un poder de todos al servicio de todos, es decir, sustentado moral y
colectivamente, lo que obliga la conducta de los asociados, aunque tengan
intereses particulares, (voluntades particulares), para poder ser moral deberá
estar guiada por la justicia, es decir, por principio de igualdade – única manera
de fortalecer el cuerpo político colectivo -, y la libertad [...]
La democracia protagónica revolucionária se basa en la defensa, conservación y
desarrolo de la vida humana y em la corresponsabilidade solidaria por la vida
del outro en la comunidade” (PLAN NACIONAL SIMÓN BOLÍVAR, 2007:
42-44).

A soberania do povo é, portanto, exercida de maneira combinada. Nas assembléias


públicas de cidadãos e cidadãs, é exercida pelo próprio povo, sem mediações, respondendo aos
desafios lançados pela sociedade contemporânea. A potencialização destes espaços pode
significar também uma maior capacidade de controle por parte de seus representantes que, em
última instância, devem estar comprometidos com as decisões tiradas no interior dessas
assembléias. “El ciudadano puede delegar su poder, pero no su soberania. Por eso, cuando el
funcionario a quien delega dicha función se aparta de ella, puede destituirlo a través del
referendum” (PLAN NACIONAL SIMÓN BOLÍVAR, 2007: 48).
20

Finalmente, uma democracia protagônica e revolucionária só é vivida em sua plenitude a


partir do momento em que o Estado garante condições materiais mínimas. No Plan está previsto
que

“el Estado garantiza los contenidos materiales que exige la realización del bien
común: la justicia está por encima del derecho; y las condiciones materiales
para garantizar el bienestar de todos, tales como educación, salud y trabajo están
por encima de la simple formalidad de la igualdad ante la ley y el despotismo
mercantil” (PLAN NACIONAL SIMÓN BOLÍVA, 2007: 45).

América Latina: futuros possíveis

A Revolução Bolivariana suscita conflitos sociais que parecem uma representação


explícita da luta de classes, trazendo novamente o debate sobre o socialismo para o centro da
cena política. As políticas implementadas pelo governo são voltadas fundamentalmente para os
setores populares, seja com intuito de diminuir as desigualdades sociais através de um conjunto
de reformas com o apoio das Misiones Sociales, seja no sentido de promover a participação
política e o desenvolvimento de uma nova cultura política democrática no país.
As classes médias e as classes mais altas, além do próprio empresariado no país, padecem
de falta de incentivos e vivem na sombra desse conjunto de mudanças. A oposição ao governo
cresce a partir do questionamento do fortalecimento do executivo, da personificação do processo
na figura de Hugo Chávez e no incentivo a relação direta entre presidente e povo.
Edgard Lander, sociólogo venezuelano, em entrevista à Caros Amigos, destaca que, se
por um lado, houve um processo de “politização ampla dos setores populares”, que se manifesta,
por exemplo, no fato de que antes “o tema principal de conversa em qualquer transporte popular
e de classe média era a novela brasileira, e hoje é a política”; por outro, “Chávez declarou que
exige lealdade total, porque ele não é um homem, é um povo. [...] [Desta forma,] está negada, de
antemão, toda a possibilidade de desacordo, de discussão, de debate, porque ele representa o
povo, unitariamente, a totalidade”.
A contradição entre as dinâmicas democratizadoras que ora ocorrem na Venezuela é um
dos principais desafios para a sobrevivência e aprofundamento da Revolução Bolivariana. Em
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setembro deste ano, haverá eleições legislativas para a Assembléia Nacional. A oposição hoje já
possui um eleitorado expressivo e é provável que ganhe algumas cadeiras, obrigando o governo a
dialogar com a mesma – coisa que não vinha acontecendo porque a oposição se recusou a
participar do último pleito. Há um grande receio entre os chavistas de haver certo retrocesso ou
então uma estagnação no conjunto de mudanças que vinham sendo implementadas no país.
O pressuposto democrático, em termos da promoção dos Consejos Comunales, é uma das
molas-mestra que impulsionam e dão sentido à Revolução Bolivariana, mas quais são as
conseqüências da implementação de uma democracia radical voltada somente para determinadas
classes? E os demais interesses da sociedade? É possível uma Revolução estar atrelada ao
cumprimento de uma democracia ampla e irrestrita?
Se formos buscar as origens do encontro entre democracia e socialismo, percebemos que
a democracia radical, sob a fórmula da ditadura do proletariado, era uma forma de garantir um
governo exercido pelo povo, leia-se pelas classes populares. Uma ditadura do povo, em última
análise. Mas, afinal, será democracia isto?
Os encontros e desencontros entre socialismo e democracia, mais uma vez, estão sendo
colocado à prova no continente sul americano. Governos que tinham um caráter mais esquerdista
que acompanharam a onda nacionalista popular em gradações mais amenas sofreram um
poderoso revés nas últimas eleições. Conforme destaca Edgardo Lander, uma direita ainda mais
conversadora vai ganhando espaço no Chile, onde venceu as eleições trazendo novamente à tona
o pinochetismo; na Argentina, é possível identificar o crescimento destes setores em oposição à
administração Kirchner tendo, inclusive, vencido as eleições municipais na capital Buenos Aires;
na Venezuela, percebe-se o crescimento da oposição ao chavismo com força para ganhar
cadeiras na Assembléia Nacional e, quiçá, lançar um candidato com relativa força nas eleições
presidenciais previstas para 2013; e poderíamos incluir também, o Brasil, cuja continuidade do
lulismo depende da eleição de uma candidata de perfil mais moderado e que enfrenta uma direita
com força para vencer o pleito; na Colômbia, a vitória do uribismo e do Plan Colômbia; no
Equador, a ruptura do movimento indígena com o governo de Rafael Correa, entre outros.
O governo de Barack Obama, da mesma forma, representa uma política mais incisiva dos
EUA no continente latino-americano, o que o diferencia da administração Bush, mais voltado
para as guerras no Oriente Médio.
22

Para Edgardo Lander, o ciclo das esquerdas pode ter chegado ao fim. A legitmidade dos
processos boliviano e venezuelano depende da manutenção do pressuposto democrático, o qual
serviu de base para que superassem os momentos mais difíceis do processo. No entanto, o
avanço das reformas com vistas a um projeto mais radical esbarra na premissa de conciliar os
interesses de todos os cidadãos da Nação – e não apenas das classes que lhes servem de base.
Desatar esses nós, sem cometer os erros das grandes revoluções do século XX é um dos
grandes desafios para o futuro próximo.

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