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Democracia e Socialismo
O ano de 1989 representou para as esquerdas no mundo, um momento de profunda crise e
de abalo das certezas. A queda do Muro de Berlim foi interpretada como a vitória do capitalismo
liberal. Seria o fim do socialismo? Teríamos chegado ao fim da História (Fukuyama, 1989)?
Nas Américas, o contexto era de transição das ditaduras civil-militares. O legado do
Estado autoritário obrigou as esquerdas a reconsiderar os princípios nos quais seu projeto
revolucionário se sustentaria. O caminho haveria de passar pela democracia, pela crítica da
violência e pela defesa dos direitos humanos (LECHNER, 1986).
Guerrilha, assalto ao Estado, ditadura do proletariado, partido único, até então sinônimos
das grandes experiências socialistas do século XX, deveriam ser deixados para trás e o debate
sobre a democracia, relegado a segundo plano em meio aos processos de centralização e
burocratização das revoluções, retomado.
Dizemos retomado porque a democracia já havia sido o elemento norteador para o
socialismo. Para os grandes teóricos do marxismo, a democratização radical acompanharia a
socialização dos meios de produção num processo conjunto: “nesse preciso sentido é que os
socialistas se queriam democratas, muito mais profundamente democratas que os regimes
democráticos então existentes” (AARAO REIS in AARAO REIS & ROLLAND, 2009: 312). O
aprofundamento da democracia (seja a política formal, seja a exercida no interior das fábricas) se
confundia com a própria revolução.
No entanto, se as utopias socialistas são indissociáveis da discussão a respeito da
democracia, esta última ganhou vida muito antes disso.
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Para alguns teóricos, o povo jamais estaria apto para tanto. Segundo Joseph Schumpeter, o exercício da democracia
exige que os cidadãos sejam informados, conscientes de suas escolhas e desejosos por alcançar o bem comum, e o
povo, por sua vez, seria o equivalente a uma massa de alienados, facilmente manipuláveis e “irracionais”. Por essa
razão, a democracia seria, na realidade, mais uma forma de uma minoria governar a partir da luta concorrencial pelo
voto (MIGUEL, 1996: 9-10).
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Isso para não mencionarmos, entre outros, o movimento cartista na Inglaterra, nos anos 30 do século XIX, no qual
a classe operária organizada exigia através do documento Carta do Povo, o sufrágio universal masculino, voto
secreto, igualdade entre os direitos eleitorais e a participação de representantes da classe operária no parlamento.
Apesar de não terem suas exigências atendidas imediatamente pelo Parlamento inglês, o movimento foi significativo
para que estes direitos fossem contemplados gradativamente nos anos seguintes.
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Além da ditadura do proletariado (Marx, Frederich Engels e Vladimir Lênin), a Comuna também foi interpretada
como expressão de uma “negação muito valente e muito clara do Estado” (Mikhail Bakunin) ou mesmo
emblemática de um “Estado democrático” combinado com “autonomia administrativa dos municípios” (Karl
Kaustky). Ver COGGIOLA (2002).
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MARX, K. “A Guerra Civil na França”. In: ENGELS, F.; MARX, K. Textos 1. São Paulo: Edições Sociais, 1975,
p. 197.
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o capital, destruir a resistência dos capitalistas, passar para toda a nação, para toda a
sociedade, a propriedade privada das ferrovias, das fábricas, da terra, etc., não será isto
centralismo? Não será isto o centralismo democrático mais conseqüente, mais ainda, um
centralismo proletário?” 5
Alguns anos mais tarde, os soviets, na Rússia, seguiriam pelo mesmo caminho. Não à toa
são considerados a mola propulsora das Revoluções Russas. Lênin os considerava instâncias mil
vezes mais democráticas do que o mais democrático parlamento europeu, conforme destaca
Aarão Reis (AARAO REIS in AARAO REIS & ROLLAND, 2009: 313). Segundo este último,
depois de ver ampliadas as contradições sociais do Império Tzarista Russo, três ondas de greves
estouraram em várias partes e foi
Soviético ficasse registrado apenas no nome da então União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas/URSS. Na prática, o que houve foi a centralização do processo na figura de seu líder
máximo e na ditadura do partido único – mal sofrido também pelos processos revolucionários
chinês e cubano.
Para alguns autores, não são as circunstâncias de cada processo que explicam a derrota do
projeto de democracia radical das revoluções socialistas, mas sim o fato da democracia recair
inevitavelmente num governo de minoria. Seria uma impossibilidade histórica. Robert Michels é
um dos grandes expoentes dessa interpretação. Em seu clássico A Sociologia dos Partidos, de
1914, o autor demonstra a tese supracitada, tomando como base a estrutura que, para ele, deveria
representar o que havia de mais democrático na Europa Ocidental, isto é, o Partido Social-
Democrata Alemão6, o qual, inclusive, Michels foi militante.
Apesar do autor ser bastante influenciado pelas teorias elitistas de Mosca e Pareto e
possuir uma visão do comportamento das massas bastante essencialista no sentido de uma
impotência orgânica para a vida pública (MICHELS, 1982: 36), sua análise chama atenção para
um aspecto de significativa importância que são os limites da representação. Segundo Michels, a
democracia direta nas sociedades modernas é totalmente inviável na medida em que não é
possível criar um espaço no qual um universo de centenas ou mesmo milhares de pessoas
possam deliberar sobre questões elementares e decidir sobre os projetos que serão executados. É
necessária a eleição de delegados, de representantes, que, em espaços menores, responderão
pelas massas e encaminharão o processo deliberativo e executivo dos projetos. Para o autor, é
nesse momento que uma classe dirigente se dissocia de sua base, constituindo sobre estas
últimas, uma casta oligárquica.
Isso se dá porque Michels é bastante pessimista em relação ao controle das massas sobre
os seus representantes por partir do pressuposto que estas são indiferentes à política e sucumbem
à influência de suas lideranças. Se estas últimas são uma construção social das massas, ao
mesmo tempo, as massas não são capazes de controlá-las e “à medida que a organização cresce,
o direito de controle reconhecido à massa torna-se cada vez mais ilusório” (MICHELS, 1986:
22). A tendência é confiarem plenamente nas decisões de seus líderes ou, no máximo, aprovar
uma ou outra medida por aclamação pública.
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O autor também faz referências pontuais a outros casos na Itália, Países Baixos e Grã-Bretanha. É importante frisar
que no momento em que o autor escreveu o livro, os Partidos Comunistas ainda estavam em formação. A maior
referência em termos de uma plataforma socialista de luta eram os partidos social-democratas.
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Se, por um lado, é perfeitamente possível questionar essa determinação (negativa) moral
do comportamento das massas, por outro, a tendência à formação de uma “classe dirigente
profissional” e oligárquica no interior dos partidos (MICHELS, 1986: 19) foi comprovada em
várias experiências posteriores – particularmente no interior dos Partidos Comunistas - e, sem
dúvida, permanece como um dos maiores desafios para se consolidar uma democracia de fato7.
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Em seu livro, Michels esmiúça a forma como essa classe dirigente profissional é constituída. Longe de ser
aleatória, são aqueles que se distinguem das massas por contarem com certa habilidade individual, contarem com o
dom da oratória e/ou um número de conhecimentos objetivos que lhe permita ocupar os cargos administrativos
(burocracia). Na medida em que as instituições e as sociedades vão se complexificando, as exigências para ocupar
um cargo tornam-se ainda mais seletivas (MICHELS, 1986: 19). Depois de conquistados os cargos, a tendência é
esta classe buscar permanecer nos mesmos: “o indivíduo regularmente delegado para um certo período acaba
pretendendo que a delgeção constitui sua propriedade” e, assim, “da delegação de fato nasce o direito moral à
delgação” (MICHELS, 1986: 31).
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Para um estudo mais aprofundado dos Orçamentos Participativos, ver Avritzer (2009). Vale considerar que se, por
um lado, Avritzer considera o Orçamento Participativo como emblemático de uma instituição participativa; por
outro, Luiz Felipe Miguel o classifica como mais uma instância representativa. Neste caso, o autor não considera
uma instância de democracia participativa porque as Assembléias dos Orçamentos não têm poder decisório. O papel
das Assembléias é o de eleger delegados que decidirão junto aos representantes públicos do governo parte do
orçamento da cidade. Para Miguel, “ordenamento democrático participativo é inconcebível com o capitalismo”, pois
está “pregada a um sentido mais forte da palavra – significa o acesso a locais de tomada final de decisão, isto é,
implica a transferência de alguma capacidade decisória efetiva do topo para a base” (MIGUEL, 1996: 28-29).
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o violento silêncio imposto pelas elites dominantes e “pedindo a palavra” (NUN, 1989:22). Sua
posição é que mesmo que haja contradições e imperfeições nas experiências democráticas
alternativas, é a partir da prática que vamos caminhando para uma mudança no sistema político
vigente.
Por essa razão, optamos por nos debruçar com maior profundidade em um desses
movimentos, o da Revolução Bolivariana, por considerarmos emblemático das potencialidades e
limites envolvidos nesse processo de reformas e de construção de novos sentidos para a
democracia, lançando novos rumos para o socialismo no século XXI.
em suma, preparar todo o material que geralmente era relegado aos burocratas do Estado. Este
último, através de seus funcionários, orienta e auxilia os vizinhos a cumprirem com as metas
necessárias. O sucesso da iniciativa pode ser atribuído a duas razões principais: em primeiro
lugar, o reconhecimento da capacidade do povo de se organizar e contribuir na execução das
políticas públicas; em segundo, na medida em que há uma abertura do Estado nesse sentido, as
organizações de base já existentes, ganham mais força e popularidade e, outras que não existiam,
ganham um poderoso impulso para serem construídas.
Os comitês de trabalho dos mais variados tipos vão desembocar numa estrutura que será
formalizada, em 07 de abril de 2006, na Ley Orgánica de los Consejos Comunales. Estes últimos
são definidos no Artículo 2º, da seguinte forma:
O objetivo era mobilizar pequenos grupos locais, tendo como abrangência máxima 400
famílias (de 200 a 400 famílias nas cidades, a partir de 20 na área rural e 10 nas comunidades
indígenas), e inserir a população na gestão das políticas de cada comunidade. Os conselhos, ao
seguir os passos de formalização definidos na lei, têm a possibilidade de acesso a recursos
públicos para serem investidos em suas localidades e, com isso, solucionar problemas, tais como,
fornecimento de água, gás, iluminação, saneamento, vivenda, saúde, educação, cultura e lazer,
entre outros.
Todos os conselhos precisam ser registrados: anteriormente era na Comisión Local
Presidencial del Poder Popular, ligada ao governo federal, hoje foi convertida em
Fundacomunal ligada ao Ministério do Poder Popular para as Comunas.
Cada tema é discutido por um comitê temático específico. Segundo o artigo 6º, o comitê é
“un colectivo o grupo de personas organizadas para ejercer funciones específicas, atender
necesidades y desarrollar las potencialidades de cada comunidad”. As áreas nas quais estes
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grupos trabalharão vão depender das características da região onde o Consejo Comunal está
hospedado.
Os projetos são levados para votação na Assembléia de Cidadãos e Cidadãs, “instancia
primaria para el ejercicio del poder, la participación y el protagonismo popular cuyas decisiones
son de carácter vinculante para el consejo comunal respectivo” (artigo 5, Lei Orgânica dos
Consejos Comunales, 2006). É o espaço onde reside a soberania do conselho. As agremiações
políticas e os partidos que atuam na região não podem interferir nos conselhos, senão de forma
indireta através dos moradores que eventualmente são filiados a um ou a outro. A Lei determina
todas as condições para as eleições dos representantes, para a controladoria social e para a
administração dos recursos.
O acesso aos recursos do Estado vem sofrendo adaptações desde 2006. A princípio foi
criado, no interior de cada Consejo Comunal, o Banco Comunal, “organización flexible, abierta,
democrática, solidaria y participativa” (artigo 4, parágrafo 10, Lei Orgânica dos Consejos
Comunales, 2006) composta por 05 membros eleitos pela Assembléia de Cidadãos, responsáveis
pela gestão financeira. Na última lei, aprovada em 26 de novembro de 2009, foi excluído o
Banco Comunal e, em seu lugar, foi construída a Unidade Administrativa e Financeira
Comunitária que recebeu atribuições mais específicas para o manejamento dos recursos.
A rigor, a aplicação do novo paradigma democrático bolivariano é experimentalista. Não
há um manual pronto. É a prática que vem ditando os rumos do processo. Não é à toa que a Lei
dos Consejos Comunales já passou por, pelo menos, seis adaptações desde 2006.
Gradativamente o modelo vem se complexicando com vistas a abranger não apenas a
instância local. O que podemos observar atualmente na Venezuela é um movimento na direção
das Comunas, quer dizer, trata-se da articulação dos Consejos Comunales de uma dada região
sob o princípio de construção de um modelo sócio-produtivo socialista e articulado. As Comunas
ainda não ganharam uma regulamentação legislativa, mas já estão sendo colocadas em prática
em várias regiões do país.
Para Lander, os Consejos Comunales estão concebidos como um by pass dos níveis
estaduais e municipais, “el estabelecimiento institucionalidad paralela que, sin la mediación de
esas instancias del Estado, establece una relación directa entre la organización en el ámbito
comunitario y la Presidencia de la Republica” (LANDER, 2007: 77).
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Sem dúvida, existem muitos limites e desafios a serem enfrentados como, por exemplo, em
relação à dependência dos recursos estatais, à superação das demandas meramente locais, à
centralização para a aprovação de projetos, à real interferência das agremiações políticas, à
construção de uma cultura política de participação (em um país no qual a democracia sempre
pareceu um conceito estranho para a maior parte da população), sem contar o fantasma do
burocratismo e da centralização das experiências socialistas do século XX que persistem como
uma referência inegável.
Para além dos aspectos normativos que definem e estruturam os Consejos Comunales, é
válido destacarmos o que estas iniciativas representam no âmbito de um conjunto de
transformações mais profundas que ocorrem no interior daqueles que são os protagonistas
daquele processo, as classes populares.
Conforme mencionamos, Hugo Chávez não foi eleito em nome de um projeto pré-
concebido. Sua candidatura girava em torno de uma expectativa por mudanças, mas o teor e
caráter destas ainda não eram claro. A Constituinte de 1999 foi um primeiro passo para delinear
alguns rumos que aquele processo poderia tomar. Foi possível, não porque o executivo fez
aprovar um projeto próprio, mas sim porque o projeto foi o de dar espaço às vozes que até então
não era ouvidas.
Se, por um lado, existe um movimento no sentido de uma centralização do executivo
(como demonstra a aprovação da lei de reeleição indefinida do presidente, em 2009, e nos
insistentes esforços do governo em estabelecer uma relação direta entre povo e presidente), por
outro, o potencial aberto pelas iniciativas dos Consejos Comunales abre um novo horizonte de
expectativas para o futuro do processo.
O que se percebe hoje na Venezuela é um gradual processo de transformação da cultura
política do país. Um país no qual a população jamais havia sido convocada a participar, onde a
política, a esfera pública, não havia se constituído enquanto espaços legítimos de deliberação de
idéias e aprovação de projetos, onde política e cotidiano estavam dissociados, salvo nos dias de
eleição, quando a cidadania terminava no ato de votar. Os Consejos Comunales têm um
importante papel de recuperar os espaços da esfera pública, (re)legitimando-os e ampliando-os
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para o interior das comunidades, através dos quais as pessoas comuns passam a ter poder
deliberativo e decisório na instância que mais atingem as suas vidas.
No processo de construção de um Consejo Comunal, um grupo de moradores mais
mobilizados é responsável por fazer um censo sócio-econômico da sua área. Visitam as casas,
conhecem as pessoas, seus problemas, descobrem um mundo novo por trás das paredes de
tijolos. Um mundo de problemas compartilhados. Cresce uma consciência de que existe uma
coletividade ao redor e que, juntos, eles podem para resolver os problemas que mais afligem suas
vidas e trazer benefícios para a comunidade. É este pequeno grupo que cumpre a tarefa de
convencer e convocar os demais moradores. A abertura do Estado, no sentido de garantir os
recursos necessários ou de atender e executar os projetos exigidos favorece a mobilização.
Se, num dado momento, esta mobilização pode decorrer de um interesse oportunista de
receber dinheiro do Estado ou de conseguir uma iluminação pública para rua ou um serviço de
água potável, o espaço dos Consejos, acaba por oferecer a possibilidade de que haja um
desenvolvimento de consciência e de interesses naquele interior.
Por mais pragmático que possa ser um Consejo Comunal, ao se criar um espaço de
convivência entre os vizinhos, os assuntos discutidos ali caminham paralelamente à vida política:
se houve uma decisão polêmica do governo, se há um período de eleições ou de referendos, se há
problemas de caráter mais amplo que os que tangem à realidade local, as reuniões dos Consejos
permitem que estas opiniões encontrem um espaço comum para serem colocadas, questionadas e
debatidas. Portanto, se a priori, a função de um Consejo é atender às demandas locais
fundamentalmente, esses espaços podem ser potencializados para um sentido mais amplo que o
original.
O fato de hoje haver um esforço de formar as Comunas e aumentar o raio de ação e de
prerrogativas dos Consejos Comunales é um sinal evidente desta premissa, ou seja, que, das
demandas meramente locais, pode-se evoluir para questões políticas mais gerais - cujas
conseqüências somente os próximos anos poderão esclarecer.
Transformar uma cultura política é um processo lento e gradual, de avanços e tropeços.
Quando as pessoas alegam que não têm tempo para a política, que não têm tempo para ir a uma
reunião do Consejo Comunal numa quarta-feira à noite ou num domingo à tarde significa que os
imperativos da cultura política liberal, que define participação somente o momento de depositar
o voto na urna, ainda inibem o desenvolvimento desses espaços de decisão e deliberação
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coletivas. O desafio do movimento é demonstrar que da mesma maneira que as pessoas devem
encontrar tempo para ir ao supermercado, para ter uma hora de lazer, para assistir a uma
televisão ou ler um livro, para lavar a casa ou consertar o automóvel, elas precisam também ter o
tempo para a política - entendida aqui não como uma abstração, mas como uma prática social de
deliberação e decisão.
Um último aspecto a considerar é que o desenvolvimento dos Consejos Comunales na
Venezuela caminha juntamente com a difusão de políticas públicas que tangem os mais variados
aspectos da vida de um cidadão. As Misiones Sociales, em particular, cumprem o importante
papel de levar educação às regiões menos atendidas, da mesma forma o Barrio Adentro I, II, III e
IV levam atendimento médico-hospitalar ou então, a Mision Mercal, que oferece alimentos
subsidiados, além de comedores populares.
Portanto, conforme mencionamos anteriormente, se o objetivo é desenvolver uma nova
cultura política, mais participativa, é de fundamental importância o investimento nesses setores,
pois sem as ferramentas mínimas, sem uma alimentação, sem saúde ou sem educação, sem a
diminuição das desigualdades sociais, esses espaços abertos pelos Consejos podem não ser
aproveitados na maneira que potencialmente poderiam.
O Socialismo do Século XXI, proclamado e defendido por Hugo Chávez, pouco a pouco
vai ganhando forma na Venezuela. Em setembro de 2007, foi lançado o Proyecto Nacional
“Simón Bolívar” – Primer Plan Socialista de la Nación (PPSN), uma meta de desenvolvimento
econômico e social para o período de 2007 a 2013, quando termina o segundo mandato do
presidente10.
O plano é estruturado em sete eixos principais:
I. Nueva ética socialista: propõe a refundação da Nação Bolivariana sob os valores e
princípios das correntes socialistas mais avançadas e do legado histórico de
Simón Bolívar.
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Com a assinatura da Constituição de 1999, Chávez, que havia sido eleito em 1998, foi submetido à nova eleição
presidencial. Venceu o pleito dando início ao primeiro mandato efetivo (2000-2006) e foi reeleito para um segundo
mandato (2007-2013).
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II. Suprema felicitad social: termo proclamado por Simón Bolívar, visa a
consolidação de uma estrutura social inclusiva e um novo modelo social,
produtivo, humanista e endógeno.
III. Democracia protagónica revolucionária: voltada para a transformação do
indivíduo em força coletiva, reforçando sua independência, liberdade e poder.
IV. Modelo productivo socialista: busca como fim último a eliminação da divisão
social, da estrutura hierárquica da sociedade e da dissociação entre a satisfação
das necessidades humanas e a produção da riqueza.
V. Nueva geopolítica nacional: voltado para integração nacional, numa lógica
descentralizadora, mancomunada com um desenvolvimento sustentável.
VI. Venezuela – potencia energética mundial: garantir o uso soberano dos recursos
naturais combinado com esforços pela integração regional e mundial, sem perder
de vista a importância do petróleo como peça-chave para financiar a construção
do modelo socialista de produção.
VII. Nueva geopolítica internacional: voltada para a construção de um mundo
multipolar, com novos pólos de poder que busquem a justiça social, a
solidariedade, a paz, o aprofundamento do diálogo fraterno entre os povos, a
defesa da autodeterminação e o respeito às liberdades de pensamento.
Para os fins deste artigo, nos ateremos em analisar, em particular, o reencontro entre
socialismo e democracia segundo os princípios trazidos pelo eixo III, no que diz respeito à
construção de uma democracia protagónica revolucionária.
Os princípios nos quais se sustenta todo o processo que tratamos anteriormente estão
inseridos numa lógica de desmonte da estrutura liberal. O plano destaca a importância de
considerar “los espacios públicos y privados [...] complementários y no separados y
contrapuestos como en la ideologia liberal” (PLAN NACIONAL SIMÓN BOLÍVAR, 2007: 41).
Conforme vimos, os Consejos Comunales cumprem um importante papel de ampliar a esfera
pública e trazê-la para o interior das comunidades, tornando difusa a fronteira que a separa dos
espaços privados.
Da mesma forma, dá um novo sentido ao indivíduo ao “transformar su debilidad
individual en fuerza colectiva, teniendo en cuenta que el establecimiento de la organización no
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“el Estado garantiza los contenidos materiales que exige la realización del bien
común: la justicia está por encima del derecho; y las condiciones materiales
para garantizar el bienestar de todos, tales como educación, salud y trabajo están
por encima de la simple formalidad de la igualdad ante la ley y el despotismo
mercantil” (PLAN NACIONAL SIMÓN BOLÍVA, 2007: 45).
setembro deste ano, haverá eleições legislativas para a Assembléia Nacional. A oposição hoje já
possui um eleitorado expressivo e é provável que ganhe algumas cadeiras, obrigando o governo a
dialogar com a mesma – coisa que não vinha acontecendo porque a oposição se recusou a
participar do último pleito. Há um grande receio entre os chavistas de haver certo retrocesso ou
então uma estagnação no conjunto de mudanças que vinham sendo implementadas no país.
O pressuposto democrático, em termos da promoção dos Consejos Comunales, é uma das
molas-mestra que impulsionam e dão sentido à Revolução Bolivariana, mas quais são as
conseqüências da implementação de uma democracia radical voltada somente para determinadas
classes? E os demais interesses da sociedade? É possível uma Revolução estar atrelada ao
cumprimento de uma democracia ampla e irrestrita?
Se formos buscar as origens do encontro entre democracia e socialismo, percebemos que
a democracia radical, sob a fórmula da ditadura do proletariado, era uma forma de garantir um
governo exercido pelo povo, leia-se pelas classes populares. Uma ditadura do povo, em última
análise. Mas, afinal, será democracia isto?
Os encontros e desencontros entre socialismo e democracia, mais uma vez, estão sendo
colocado à prova no continente sul americano. Governos que tinham um caráter mais esquerdista
que acompanharam a onda nacionalista popular em gradações mais amenas sofreram um
poderoso revés nas últimas eleições. Conforme destaca Edgardo Lander, uma direita ainda mais
conversadora vai ganhando espaço no Chile, onde venceu as eleições trazendo novamente à tona
o pinochetismo; na Argentina, é possível identificar o crescimento destes setores em oposição à
administração Kirchner tendo, inclusive, vencido as eleições municipais na capital Buenos Aires;
na Venezuela, percebe-se o crescimento da oposição ao chavismo com força para ganhar
cadeiras na Assembléia Nacional e, quiçá, lançar um candidato com relativa força nas eleições
presidenciais previstas para 2013; e poderíamos incluir também, o Brasil, cuja continuidade do
lulismo depende da eleição de uma candidata de perfil mais moderado e que enfrenta uma direita
com força para vencer o pleito; na Colômbia, a vitória do uribismo e do Plan Colômbia; no
Equador, a ruptura do movimento indígena com o governo de Rafael Correa, entre outros.
O governo de Barack Obama, da mesma forma, representa uma política mais incisiva dos
EUA no continente latino-americano, o que o diferencia da administração Bush, mais voltado
para as guerras no Oriente Médio.
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Para Edgardo Lander, o ciclo das esquerdas pode ter chegado ao fim. A legitmidade dos
processos boliviano e venezuelano depende da manutenção do pressuposto democrático, o qual
serviu de base para que superassem os momentos mais difíceis do processo. No entanto, o
avanço das reformas com vistas a um projeto mais radical esbarra na premissa de conciliar os
interesses de todos os cidadãos da Nação – e não apenas das classes que lhes servem de base.
Desatar esses nós, sem cometer os erros das grandes revoluções do século XX é um dos
grandes desafios para o futuro próximo.