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DIÁRIO DA BOLÍVIA

relatos de uma viagem transcendental

Mariana Bruce
ÍNDICE

Bolívia, aí vou eu
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Em trânsito

Desbravando os Andes – Pt. 1 23

Desbravando os Andes – Pt. 2 41

Desbravando os Andes – Pt. 3 57

Cocaleiros e TIPNIS em Cochabamba 73

O último dia do ano e a purificação 91

Um domingo em Cochabamba 95

On the road again ou Em trânsito, Pt. 2 113

Titikaka e Cultura Inca 125

Pelas calles de La Paz 161

Museus, museus, museus e... 185

A partida 201
DIÁRIO DA BOLÍVIA

Bolívia, aí vou eu...

Sim, queridas e queridos, mais uma viagem. Mais uma


aventura pelas terras de Nuestra América.

Desta vez, eu e meu companheiro, Hugo Silva, vamos


desbravar a Bolívia, país o qual estimo muito. Terra da
inesquecível e inspiradora Domitila Barrios Chungara (fica a
dica do melhor livro que li este ano e que marcou muito
minha vida).

Muy bien, findo o mestrado, meu interesse agora é


mergulhar na história boliviana. Mergulhar na história dos
povos indígenas em sua construção e prática social de um
Estado Plurinacional e Comunitário.

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Começo a desenhar um projeto de doutorado


preocupada com questões como a luta contra a colonialidade
do saber, a desconstrução do Estado-Nação em favor da
Plurinacionalidade, experiências de participação política de
base, características e contradições dos movimentos indígenas
e populares, filosofia andina, meio ambiente e
sustentabilidade, entre várias outras coisas. Para quem não
sabe, em 2005, Evo Morales Aymá foi eleito presidente da
Bolívia, no que pode ser considerado como um marco para os
movimentos populares da América Latina, pois, pela primeira
vez no continente, um indígena chegou ao cargo mais
importante da Nação. Com isso, em meio a um processo
permeado por tensões, polêmicas e ampla participação, foi
possível construir um projeto de Estado Plurinacional e
Comunitário que ganhou um primeiro esboço na Nova
Constituição Política do Estado, aprovada em referendo em
2009.

Evo Morales é da etnia aymará e sindicalista egresso


do movimento cocaleiro de El Chapare, na região andina do
país. Os aymarás e os quéchuas são os grupos étnicos mais

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numerosos da Bolívia, correspondendo a 32 e 18%


respectivamente, de uma população de cerca de 9,3 milhões
de bolivianos. Logo em seguida vêm os guaranis, localizados
na região amazônica que, por sua vez, se subdividem em
vários grupos (guarayos, pausernas, sirionós, chiriguanos,
matacos, chulipis, taipetes, tobas e yuques). Na Bolívia,
existem cerca de 30 grupos étnicos. Foram esses grupos as
principais bases de apoio que possibilitaram a eleição de
Morales e são os responsáveis por introduzir um novo prisma
para analisarmos as reformas do Estado na América Latina e
suas repercussões para este século que se inicia. A minha
intenção é analisar as tradições populares que viabilizaram a
ascensão de Evo Morales ao poder, seus ecos na redação da
Nova Constituição do Estado (e, portanto, no projeto de um
Estado Plurinacional) e, finalmente, as contradições e conflitos
que permeiam o princípio normativo e a sua prática social,
especialmente no que diz respeito às temáticas da
democracia, da participação popular, da construção de um
modelo socioeconômico autossustentável e da busca por
outras formas de conceber o mundo.

Esta viagem, portanto, para além do sentido turístico


inerente, tem também a preocupação de fazer um primeiro
contato com essa realidade. Espero voltar com muitos livros,
muitas histórias e muitos amigos. Espero que a desconfiança
que existe em relação aos brasileiros não seja um obstáculo
para desenvolver a pesquisa...

Vamos ver.

Nossos planos são não ter planos. Pegaremos o avião,


com o coração e a mente abertos para o imprevisto. Só
sabemos que vamos chegar em Santa Cruz de la Sierra na
madrugada do dia 26/12; temos a intenção de conhecer La
Paz, onde ficaremos alguns dias; passaremos o Reveillon em

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Cochabamba junto a minha querida amiga Alejandra, quem


tive o prazer de conhecer este ano; e, depois disso, só os
deuses sabem. Ainda não sabemos se vamos para o sul, para o
Salar de Uyuni ou se vamos para Copacabana (Isla del Sol), no
Lago Titikaka. Não gosto de planejar muito as coisas, não.
Vamos deixar tudo em aberto para que o país e as energias
nos levem para o lugar certo.

Saio daqui com grandes expectativas.

Saludos a todos e até breve.

***

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Em Trânsito (25-26/12/11)

Queridos, as condições técnicas aqui na Bolívia não


são das melhores, então, não tive tempo de postar no blog.
Por essa mesma razão eu não irei postar as fotos nesse
primeiro momento (se não ficarei horas aqui na lan house).
Assim que tiver mais tempo, eu incluo as fotos e os próximos
posts. Estou escrevendo todos os dias praticamente e sempre
que eu tiver chance, eu posto por aqui. Espero que vocês
curtam tanto quanto eu estou curtindo...

Saludos e até o próximo post.

P.S.: Tudo está sendo escrito na maior correria, no cair da noite, depois de
dias muito intensos. Então, perdoem-me eventuais erros.

***

Dias 25 e 26 de dezembro de 2011

A maratona oficial começou às 16h quando fomos


para o aeroporto, não sem antes esquecer algumas coisas em
casa e ter que voltar para buscar. Por fim, chegamos no
Galeão, no Rio de Janeiro, fizemos o check in e tudo certo.
Como eu falei no último post, não tínhamos praticamente
nada muito preparado para a viagem. Tínhamos uma noção do
que queríamos, mas nada esquematizado realmente.

Eis que no momento do embarque surge Juliana


Magalhães, uma figuraça da UFF, viajando no Natal para ir ao
encontro do namorado boliviano. Junto com ela, mais dois
amigos que também estavam indo de mochileiros para a
Bolívia.

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Começamos a conversar e eles nos emprestaram o


guia deles – sim, porque nem isso nós tínhamos. Pensamos,
então, um roteiro dentro daquilo que havíamos nos proposto
anteriormente (Santa Cruz – La Paz – Copacabana –
Cochabamba – La Paz - Santa Cruz) e só aí descobrimos os
passeios que havia para fazer, hotéis, dicas etc.

Depois de uma escala em São Paulo, quando quase


ficamos para trás, pois nos perdemos, e outra em Campo
Grande, chegamos ao Aeroporto Internacional Viru Viru, em
Santa Cruz de la Sierra, Bolívia. Eram por volta de 24h. Tudo
fechado à exceção de um café. Juliana correu para os braços
de seu namorado, os rapazes foram buscar hospedagem em
Santa Cruz e nós, como queríamos partir cedo, ficamos no
aeroporto para economizar diária e pegar logo o primeiro voo
para o nosso destino.

Foi aí, no ócio da madrugada, que fomos fechar nosso


roteiro, totalmente inusitado, com a ajuda de uma atendente
de plantão que nos tirava algumas dúvidas. Decidimos, por
fim, ir para Sucre e fazer um trajeto mais puxado, cheio de
riscos, mas que nos proporcionaria conhecer várias faces
desta intrigante Bolívia. Ficou assim: Santa Cruz - Sucre –

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Potosí – Salar de Uyuni – Cochabamba – Copacabana – La Paz


– Santa Cruz.

Compramos nossas passagens para Sucre às 05h.


Como a estrada que vai de Santa Cruz para Sucre é conhecida
como Estrada da Morte e já tinha ouvido falar horrores desse
percurso, não nos restava muita escolha que não a de pegar
um avião. Cada passagem saiu por Bs391 (bolívares, moeda
boliviana) pela Boliviana de Aviación/BOA (cotação do
dólar/boliviano no aeroporto: 1 para 6,90). Aproveitamos e já
garantimos nossa passagem de volta também pela BOA (La
Paz – Santa Cruz) a um valor de Bs780. Sem dúvida estes serão

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os nossos maiores gastos na Bolívia, pois como as companhias


brasileiras que partem do Rio de Janeiro só vão até Santa Cruz
e esta cidade é muito longe de La Paz e de Sucre, sair de lá
acaba saindo caro. Porém, uma vez em alguma dessas cidades,
é correr para o abraço, já que tudo fica muito barato para nós.
Antes do embarque, fomos ao Mirador do aeroporto.

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Para os mochileiros de plantão, saibam o seguinte: o


sistema aéreo boliviano se divide, basicamente, em três
companhias: TAM (das Forças Armadas; extremamente
popular; com as passagens mais baratas, maiores filas e
também com as aeronaves mais precárias), BOA (seria uma
classe intermediária, com bom serviço de bordo, aeronaves
modernas e preços um pouco mais em conta) e a Aerosur (a
mais cara de todas, com maior opção de horários de voos). A
que nos pareceu mais razoável e segura foi a BOA. Vale dizer
que o uniforme das comissárias de bordo é a coisa mais linda
do mundo, pretinho básico com renda indígena.

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Em pouco menos de 12h estivemos, nada mais nada


menos, que em cinco aeroportos, sendo quatro deles com
escala onde tivemos que descer da nave. Não foi mole, não.

A epopeia começou lá no Rio de Janeiro, mas


continuou por aqui também, pois o voo da BOA tinha escala
em Cochabamba para somente depois seguir para Sucre.

Ver o Altiplano Andino do avião é assustador...


aqueles cumes e estradelas sem fim, numa cor amarronzada.

Vocês jamais terão ideia, a menos que o façam


também, do que é estar nessas estradelas, subindo e
descendo as montanhas, com desfiladeiros de um lado, llamas
do outro, além de plantações e uns vales assustadoramente
lindos.

Tudo marrom, de maneira geral, com uns espaços


impressionantes onde poderia passar rios pujantes, mas não
passavam de puro barro.

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Quando descemos em Sucre, já eram umas 10h e


nosso projeto era chegar ao Salar do Uyuni, ainda hoje.
Aconselharam-nos a seguir direto para Potosí, pois seria uma
longa viagem de, pelo menos, 9h. Assim fizemos. Não
pudemos, portanto, conhecer Sucre de pertinho, mas
pudemos circular por suas ruas e, especialmente, pelo centro,
dentro do ônibus – de onde tentamos captar alguns registros.
Algo que salta os olhos do viajante, primeiro, é a cor. Já disse,
tudo é marrom. Tanto Sucre quanto Potosí são cidades que
parecem ter surgido no meio de um deserto. Sim, porque o
cume dessas montanhas é desta forma, com vegetação típica,
com cactos e tudo o que tem direito. As casas, em sua

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maioria, parecem feitas de barro. Um cenário desolador do


ponto de vista de imaginarmos as condições precárias as quais
esse povo vive.

Ao passo em que bate aquele apertozinho no peito ao


ver essas condições precárias, é emocionante ver a força
cultural desse povo. As minhas índias são as coisas mais lindas
do mundo. Todas com suas tranças e vestimentas típicas.
Inteligentíssimas. É fantástico ver o que elas fazem com seus
panos super coloridos para carregar mercadorias, seus filhos,
etc., ao subir e descer ladeiras. Porque a vida no altiplano é
assim. Subir e descer, pouco oxigênio, muito cansaço.

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Por falar nisso, tomamos um sorotipil ainda no


aeroporto de Santa Cruz para combater o “mal da altitude”.
Creio que isso bastou para aguentarmos a altitude, pelo
menos, de Sucre e Potosí. Sentimo-nos, sim, um pouco
marejados, a respiração ficou mais puxada, às vezes ocorre
um formigamento na perna, mas nada que seja insuportável.

O centro de Sucre difere do restante da cidade, onde


se vê preservada uma arquitetura colonial. Sucre foi por muito
tempo a capital da Bolívia, porém, depois da Guerra Federal
(1898-1901), La Paz acabou se tornando a sede dos Poderes
Executivo e Legislativo, enquanto Sucre se manteve apenas
como a capital do Poder Judiciário. Uma pena que não
tenhamos podido ficar mais tempo numa cidade de tamanha
importância. Só passamos pelo centro de ônibus. Além disso,
Sucre tem também como grande atração um Museu
Arqueológico do período Cretáceo.

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Voltando à estrada Sucre – Potosí, foram cerca de 3h


de viagem. É alucinante percorrer a cordilheira, com seu
relevo e clima totalmente diferentes de tudo o que já vi no
Brasil.

Tivemos ainda a sorte de pegar um ônibus muito


confortável e o motorista colocou umas músicas típicas, com
umas flautas, um som maravilhoso que combinado com
aquela paisagem resultou num espetáculo difícil de descrever
em palavras.

Na medida em que íamos nos aproximando de Potosí,


as montanhas cor de prata tornavam-se um capítulo a parte.

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Chegamos a Potosí às 15h e o próximo ônibus para


Uyuni sairia às 17h30m, o que nos dava algumas horas para
circular pelos arredores do terminal rodoviário.

Cidade histórica, capital simbólica do Império


Espanhol nas Américas, de onde foram extraídas toneladas e
mais toneladas de prata. Hoje, o velho Cerro de Potosí está
depenado. Marrom. Mas é tão imponente e belo, apesar de
carregar consigo tanta dor, sofrimento e morte.

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Como tínhamos poucas horas, não pudemos ir ver as


minas. Fomos a um mercadão popular próximo, onde
compramos algumas coisinhas. Almoçamos pollo con papas,
como bem meus amigos nos preveniram. Não nos
preocupamos em ver o modo de preparo, apenas comemos
aquele pollo engordurado, com batatas-frita, um líquido
branco gostoso, cebolas rosa e uma pimenta ultra picante. Foi
uma DELÍCIA!

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Detalhe: o Hugo está profundamente encantado pela


Bolívia, pelo povo, pela comida, pelo relevo, pelo clima.
Comemos felizes o famoso pollo con papas, sentamos numa
mureta e ficamos “sentindo” e apreciando o clima de Potosí
até que desse a hora do nosso ônibus.

Conversei com um velho senhor mineiro que me disse


várias coisas, mas não conseguia entender nada. Inclusive,
quando disse que ia para Uyuni, ele disse que ficou muitos
anos lá e me mostrou umas tatuagens. Não sei se como militar
ou como preso por alguma razão. Ficou no ar...

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Às 18h, partimos rumo a Uyuni, com previsão de


chegada às 23h. Um pouco arriscado chegar numa cidade à
noite, sem reservar hotel, sem saber o que nos esperava. Mas
viajar é um pouco isso, temos que dar uma chance para as
energias nos guiarem e estamos com o coração aberto para
isso.

Mais uma vez seguimos cordilheira adentro com


músicas típicas, só que desta vez, com uma paisagem
sensacional e inesquecível de um por do sol e do nascer da
noite. De repente, o céu tomado de estrelas, milhões e
milhões de estrelas, como nunca vi. Acho que nunca estive tão
próximo do céu. A lua minguante, quase desaparecendo
diante da sombra da terra, até que se apagou definitivamente.
Sim, um eclipse da lua em meio ao Altiplano Andino.

A natureza é tão generosa e tão bela, mas, ao mesmo


tempo, não nos permite captar um momento mágico como o
que vivemos nessa cordilheira hoje à noite. Recomendo muito
aos viajantes de plantão que façam o trajeto. É cansativo, mas
vale a pena. Só vivendo mesmo para entender o significado
disso.

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Depois de algumas horas, tivemos a única parada da


viagem, em uma cidade literalmente fantasma, quase sem
energia elétrica e com uma senhora no meio do nada, com
uma barraquinha iluminada à vela vendendo pollo con papas...
Logicamente que não provamos... Obs.: o frio era de rachar,
provavelmente beirando os 5ºC.

Ficamos no primeiro hostal que vimos, logo em frente


ao ponto final do ônibus por Bs100 a diária. Não era nenhum
cinco estrelas, obviamente, mas era limpinho e com banheiro
privado – o que já era um ganho.

Estamos cansados, amanhã temos que levantar bem


cedinho para conseguir fechar um pacote de dois dias e uma
noite pelo Salar. Depois, seguimos para Cochabamba.

Por fim, queria destacar que a Bolívia tem um cheiro.


Um cheiro bem peculiar. Ouvi muitos dizerem que é fedor,
mas eu prefiro pensar que é suor, um cheiro de luta, de
superação diária. Um cheiro de empanadas (que não tem nada
a ver com as empanadas venezuelanas; estas não são fritas,
são mais parecidas com um tipo de pão recheado), talvez. Não
sei. Mas a todo lugar que vou, tem um cheiro no ar. E é o

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mesmo cheiro. Bom e ruim ao mesmo tempo. Está lá.


Marcando presença. Exigindo presença. Testemunha da vida
que esse povo leva.

Em meio às “cidades do deserto”, marrons, feitas de


barro ou muitas vezes perdidas no meio do altiplano, criando
suas llamas ou garimpando nas pedras remanescentes de
longas jornadas anteriores, emergem minhas índias. Sem
dúvida alguma, para mim, algo que me leva um nó à garganta,
algo que mais me salta os olhos, que mais me emociona. Creio
que seja o que há de mais lindo na Bolívia. Talvez, no final das
contas, eu seja profundamente influenciada por Domitila;
talvez, no final das contas, eu veja uma Domitila em cada uma
delas, com suas saias, blusas, sandalinhas, tranças, chapéus e
seus filhos nas costas subindo e descendo as ladeiras. Talvez,
cada uma delas, seja realmente uma Domitila, isto é,
guerreira, mulher, mãe, lutadora, devota de Pachamama, que
sobrevive e que mantém vivo um legado milenar. Que tanto
têm a ensinar e que eu tanto quero aprender.

É um privilégio estar aqui.

***

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Desbravando os Andes - Pt. 1 (27/12/11)

Dia 27 de dezembro de 2011: Aventuras e aventuras

Acordamos cedo, às 07h30m, para conseguir garantir


um passeio de dois dias pelo salar. Como é “baixa temporada”
aqui, não foi tão difícil. Acabamos não resistindo e fechamos
um pacote de três dias pelo deserto. A bagatela saiu por
Bs700 com hospedagem e alimentação já incluídas. O tour é
feito num jeep com mais quatro pessoas, além do motorista.
Muy bien, eram umas 9h da manhã e ainda tínhamos um
tempinho para conhecer o pueblito de Uyuni. Mais uma vez,
minhas índias lindas circulavam de um lado para o outro com
suas tranças, mercadorias e crianças.

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Como sabíamos que o deserto é muito frio,


aproveitamos para comprar uns ponchos e casacos de pele de
llama e de alpaca, além de otras cositas artesanales. Tudo
muito colorido e lindo, como sempre. Desayunamos em um
pequeno restaurante bem simpático. Hugo tomou um
chazinho de coca e eu, café-com-leite, além de uns pães, ovos,
omelete.

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Tudo pronto. Partimos para a grande aventura pelo


deserto. Sem dúvida, a paisagem é alucinante. Dividimos o
jeep com uns gringos australianos e da Nova Zelândia que não
sabiam falar nem “oi” em espanhol. Ficamos de tradutores...
imaginem!

García era nosso motorista e nos levou primeiro ao


tenebroso “cemitério dos trens”, onde estão carcaças dos
primeiros trens que circularam pela região. Datam mais ou
menos dos anos 1970. A região de Uyuni foi um importante
centro mineiro de estanho e por ali passava uma ferrovia que
levava o minério para o Chile. Os trens passam até hoje,
porém, levando apenas passageiros. As minas já se esgotaram.

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Depois do cemitério, nos dirigimos para o famoso


Salar de Uyuni. Uma incrível reserva de sal com 12 m de
profundidade, 120 km (do leste ao oeste) e 80 km (de norte a
sul). O salar cresce aproximadamente um centímetro por ano.

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Apesar de grandiosa, a reserva só abastece de sal os pueblos


que estão em seu entorno, pois é muito caro mandar o sal
para outros lugares. As estradas são terríveis.

Por outro lado, prevê-se para fevereiro de 2012, um


projeto-piloto para explorar o cloreto de potássio do salar. A
Empresa Boliviana de Recursos Evaporítico/EBRE é quem está
a frente do projeto que envolve a construção de um edifício
principal, com escritórios, laboratórios, bibliotecas, banheiros,
cursos, piscinas de evaporação, tudo isso, numa superfície de
6.500 m².

Como tem chovido muito, não pudemos entrar muito


no salar. Fomos até o Hotel de Sal, cuja estrutura interna é
toda feita de sal. E a visão espetacular que é aquele sal
branco, branco, em contraste com o céu azul. As fotos são
incríveis. Em um trecho onde estavam os morrinhos de sal,
havia umas poças d’água que refletiam o céu de uma forma
incrivelmente espetacular.

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Paramos antes em um pueblo também onde havia o


Museu do Sal, com umas esculturas lindíssimas, além de muito
artesanato local. Tudo muito lindo.

Depois daí, rodamos por estradas sem fim em meio ao


deserto, com as montanhas ao fundo.

Durante horas e horas seguimos deserto adentro,


passando por algumas llamas no caminho, pequenos
povoados, mas de maneira geral, a sensação era que
estávamos no meio do nada (ou do tudo). A ameaça de chuva
fez com que apressássemos um pouco o passeio e seguimos
para San Cristobal.

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Depois de horas de angustiante paisagem, onde não


havia a menor expectativa de encontrar algum rastro de
“civilização”, fizemos uma parada de 20 minutos, visitamos
uma Igreja Colonial, num pueblo construído por uma empresa
de estanho.

A região girava toda em torno da exploração do


minério nas montanhas e de alguma agricultura. Humilde,
porém, histórica. Não quero ser redundante, mas o
amarronzado do deserto, as casas de barro e minhas índias
são paisagens constantes e um marco da identidade boliviana.

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Depois dali, vagamos por mais algumas horas deserto


adentro ao som de hip hop e reggaeton – gosto peculiar de
García.

Paramos para ver umas llamas, até que chegamos a


um novo pueblo, Villa Mar. Pequeniníssimo, onde está nosso
alojamento. Faz muitíssimo frio. O visual é alucinante, mas as
condições um pouco precárias. Quartos e banheiros coletivos,
sem muitos recursos. Mas estamos aqui.

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Conversei com uma senhora de uma tenda, ou


melhor, tentei conversar. Ela me disse que é quéchua e que
vive basicamente da agricultura de cenoura, batata e da
criação de llamas. Tudo o que eles produzem é para o
abastecimento próprio, já que esse lugar é longe de tudo e de
todos. Literalmente, no meio do deserto. Quando não chove
ou no período de não-colheita, eles precisam dirigir por horas
até chegar a um lugar onde é possível comprar os
suprimentos. É uma região muito, muito pobre. Estamos a
duas horas do Deserto do Atacama, no Chile.

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Amanhã vamos chegar pertinho da fronteira. Muitos


viajantes aproveitam a oportunidade para ir para lá, mas nós
voltaremos para Uyuni.

Os bolivianos apesar de muito bondosos e solícitos,


são extremamente tímidos e fechados. O indígena, quero
dizer. Quando tento puxar papo com eles na rua, eles
respondem, mas sempre com certa desconfiança ou timidez,
não sei bem. São diferentes dos caribenhos, por exemplo, que
você chega e já vira melhor amigo em algumas horas. Nesse
ponto, os venezuelanos são bem parecidos com os brasileiros.
Os indígenas bolivianos já não, é preciso ir com muito cuidado
e bem devagar. Desenvolver um projeto de pesquisa por aqui
não será fácil, mas o desafio me instiga ainda mais.

O pueblo que ficamos para passar a noite é bem


simples, conforme falei. Água corrente diretamente da
montanha, muito vento e muito frio. Essa noite está fazendo
quase 0°C e de madrugada ficou abaixo de zero. Não tem
muita eletricidade e caminhar pelas ruelas, dá a impressão
que se trata de uma cidade-fantasma. Vimos um ou outro

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indígena passando pela rua. Provavelmente, isso se deve ao


horário que chegamos, já no cair da noite. Jantamos uma sopa
e carne de llama, com batata-frita e arroz. A carne, apesar de
passada, me pareceu boa.

Essa experiência realmente está sendo totalmente


fora do comum. Apesar de cansativo, devido às horas de carro
percorrendo estradelas de terra sem fim com aquela paisagem
imutável, já começo a sentir os efeitos do altiplano. A
respiração está um pouco pesada e sinto um pouco de dor de
cabeça. Mas nada insuportável, por ahora. Na medida em que
subirmos para Cochabamba, creio que teremos que voltar
com o sorotipil e mascar umas folhas de coca.

Até agora não vi ninguém mascando folhas de coca.


Curioso. Achei que era bem difundido por aqui por essas
bandas também, mas acho que é algo mais concentrado nos
lados de Cochabamba e La Paz. Como ela não é produzida por
aqui, eu acho que é mais caro para ter acesso. Quase
compramos um pacote de meia libra de folha de coca por
Bs30, mas era uma quantidade absurda para nós. A senhora
da tenda disse que por aqui é mais caro porque a mercadoria

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não chega com tanta frequência, já que não é produzida aqui.


Em Cochabamba especialmente, não faltarão oportunidades
para experimentarmos.

O frio racha nossos lábios e deixa o nariz um pouco


entupido. Queimei-me um bocado no deserto, porque, burra,
não levei protetor solar. Amanhã vamos ao Parque Nacional
Colorado, onde estão algumas lagoas (lagoa colorida, lagoa
verde), as piscinas termais e os gêiseres. Tenho certeza que
será incrível.

Até amanhã.

***

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Desbravando os Andes - Pt. 2 (28/12)

Dia 28 de dezembro de 2011: Vulcões, pedras, gêiseres e....

Segundo dia no deserto. Hoje nós fomos ao Parque


Nacional Colorado onde há diversas atrações entre gêiseres,
lagoas coloridas, águas termais e vales de rochas, entre
outros. O dia prometia ser estonteante. Porém, tive uma noite
horrível. Não consegui dormir quase nada. Não sei se foi a
altitude ou a carne de llama, mas quase desfaleci de dor no
estomago. Na manhã seguinte estava mal, bem mal das
pernas. Mas como o tempo não para, tive que encarar horas e
horas no jeep rumo a essas belezas naturais, me entupindo de
nux vomica (homeopatia), sorotipil e água.

As paisagens são verdadeiramente incríveis. Hoje


percorremos os vales vulcânicos. Então, era demais observar
aqueles vulcões adormecidos no horizonte – ou as vezes bem
pertinho – com aquela terra marrom marcando campos e
campos sem fim. Às vezes uma vegetação guerreira sobrevivia
naquelas condições inóspitas e nos brindava com um belo
campo verde onde as llamas e outros animais selvagens se
fartavam, em plena liberdade.

Para entrar no Parque Nacional Colorado tem que


pagar mais Bs150. Vale a pena. Nós, os gringos, Garcia e o
nosso jeep desbravamos cada território praticamente
selvagem. Não há palavras para descrever aquilo.

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Passamos pelo Vale de Dali, onde tem umas pedras


que parecem mais umas esculturas pensadas exatamente para
enfeitar aquele local.

Depois, chegamos até a fronteira com o Chile e


Argentina, num vale de vulcões adormecidos que se
encontram no entorno de uma enorme lagoa, a lagoa verde.
Seus cumes estavam cheios de neve. A lagoa, com uma
coloração fantástica, estava lá, bela, fazendo a fronteira com o
Chile. O Tres Cumbres faz fronteira com a Argentina.

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No caminho passamos por cenários dignos de filme. O


que me chamou atenção é que, como sou tratada com
homeopatia desde criança, sempre ouvi falar em bórax, súlfur
(mais abaixo, quando virem uma lagoa vermelha, a coloração
é provocada pelo súlfur), entre outros, mas ver, com os meus
próprios olhos, vales de bórax, que se parecem mais com
grandes salares, brancos, brancos, foi incrível. Perverso foi
descobrir que tudo aquilo é “propriedade privada chilena”.
Como alguém pode se apropriar dessas riquezas naturais e
explorá-las assim? Isso deveria ser patrimônio nacional
inalienável. Bom, a realidade do altiplano é esta: vales e vales
de puro minério. O extrativismo é o que move a vida por aqui
e há um respeito muito grande por essas montanhas. García,
ao começarmos a viagem e adentrarmos nesse território, por
um momento desligou seu reggaeton e se benzeu, como
quem pede permissão e proteção à Pachamama.

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Só para vocês terem uma ideia, segundo o Jornal La


Patria, de Oruru, em balanço sobre o ano de 2011, o setor
mineiro teria sido responsável por 82% das exportações do
país (Suplemento Perspectiva Mineira, 30/12/2011, p. 1). Sem
dúvida, a parte mais significativa dessa porcentagem é
referente ao gás natural, localizado na região de Santa Cruz,
cujo maior comprador é o Brasil. Porém, o estanho, zinco,
prata, ouro, entre outros, continuam como importantes fontes
de ingresso no país. Podemos perceber, portanto, como a
Bolívia se caracteriza fundamentalmente como um país
exportador de matérias-primas, sendo extremamente
vulnerável às oscilações dos preços internacionais.

Depois de irmos ao extremo sul, na lagoa verde,


começamos a voltar e fazer as paradas nos demais pontos
turísticos do parque. Quando chegamos nas esperadas águas
termales, uma pequena piscina com a água na temperatura de
35 a 40ºC, meu organismo pedia arrego e queria expulsar toda
a malignidade interior não administrada. As fossas comuns, ou
melhor, o banheiro, vinham a piorar ainda mais o quadro
desesperador. Além disso, quando chegamos lá, começou a
chover. Os gringos nem ligaram foram direto mergulhar. Eu
precisava fazer as pazes com meu corpo e Hugo foi solidário
comigo. Começamos a subir a montanha para um lugar onde
eu pudesse me sentir mais a vontade para vomitar. Depois
disso, melhorei um pouco. Comi uns legumes bem leves de
almoço e umas duas bananas de sobremesa. Quando já me
sentia melhor, me arrisquei nas águas termales, mas não pude
mergulhar, pois já era hora de seguir viagem.

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A próxima parada foram os gêiseres. Chegamos a


5.400 m de altitude. Alucinante. Sentir aquele cheiro de
enxofre, com as fumaças saindo com força total da terra, uns
pedaços derretidos.

Uau! Acho que estou sendo redundante, mas a


natureza é incrível.

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Depois passamos pela famosa Laguna Colorada, o


maior ponto turístico do Parque, sendo até indicada como
uma das maiores maravilhas naturais do mundo. A lagoa tem
diversas cores, indo do vermelho ao verde, onde flamingos e
mais flamingos se alimentam. Nesse momento começa a
chover e ventar... A sensação térmica com certeza está abaixo
de 0ºC. Andávamos rapidamente com o vento literalmente
congelando nossas mãos e rostos...

Saímos e passamos por mais algumas lagoas, vales


encantados, flamencos, llamas, animais selvagens até que
chegamos no acampamento da segunda noite.

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A localização do acampamento é incrível, nos pés de


poderosas montanhas, com um lago enorme na frente. A
construção é rústica e aconchegante. Tudo perfeito (aqui já
abstraindo o quarto e banheiro coletivos e o fato de há dois
dias não tomarmos banho), se não fosse o FRIO.

Hoje eu descobri o significado real da palavra FRIO.


Acho que pegamos -5ºC. Mesmo com toneladas de casacos,
ponchos, luvas, tocas, meus lábios ficaram roxos. Muito, muito
frio.

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Ainda não estava completamente boa do estômago,


mas já estava melhor. Tomamos uma sopinha bem leve com
vinho e um macarrãozinho. Comi pouco.

No final, o Hugo e os gringos foram jogar baralho, mas


eu estava morrendo de dor de cabeça, cansada por não ter
dormido na noite anterior e, por fim, acabei indo dormir.

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***

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Desbravando os Andes - Pt. 3 (29/12)

Dia 29 de dezembro de 2011: De volta à civilização

Último dia de passeio. A noite foi melhor que a


anterior. Consegui dormir um pouco mais, mas ainda muito
desconfortável, acordando em vários momentos, ora com
calor, ora com frio, com muita dor no coração. Dormi com três
blusas, gorro, luva e amanheci com uma blusa só e olhe lá.
Acho que tive febre, mas serviu para me deixar melhor.
Acordei bem, já sem resquícios de problemas biológicos.
Pronta para outra. Tomei meu sorotipil, pois não quero vacilar
mais com essa altitude. Até agora não sei se foi a carne de
llama ou se foi a altitude quem me deixou mal daquele jeito.

No último dia, todos já estavam cansados porque são


horas e horas de jeep, percorrendo ora estradas, ora caminhos
alternativos de pura pedra ou barro, para ficarmos 20 minutos
em alguns lugares sensacionais para tirarmos umas fotos.
Visitamos mais algumas lagoas, a famosa "árvore de pedras" e
muitos vulcões adormecidos. No primeiro vale de pedras que
paramos, entre junho e julho os ventos chegam a 120 km. O
visual é incrível.

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Paramos também para observar os flamingos, as


llamas, avestruzes. Tudo muito lindo, muito bom, mas não
víamos a hora de chegar a Uyuni. Esse passeio pelo deserto e
pelo vale dos vulcões é realmente uma experiência
descomunal, absurda, as paisagens, a natureza selvagem, tudo
o que a gente viveu, sem dúvida ficará marcado para sempre
em nossa memória... mas, é PUNK ROCK total! Haja fôlego e
disposição. Desejo boa sorte aos amigos que queiram se
aventurar. Posso dizer que vale a pena, fico feliz e orgulhosa
por ter feito, mas vão preparados. É o tipo de coisa que você
só faz uma vez na vida.

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Paramos ainda no Valle de las Rochas, onde


almoçamos em meio a um pé d’água. A chuva aqui é assim: de
repente cai um toró por alguns segundos e depois para. Foi a
nossa sorte, pois era um lugar sem infraestrutura nenhuma.
Nosso almoço é servido no próprio jeep. Desta vez, comemos
a rapa da rapa, atum enlatado com arroz, tomate e pepino. E
olhe lá.

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Antes de voltarmos para Uyuni, fizemos ainda uma


última parada em alguns vales maravilhosos e na cidadela de
San Cristobal (onde está a Igreja Colonial que já me referi),
cidade mineira construída pela Minería San Cristobal para
explorar os minérios da região.

Compramos manteiga de cacau em uma farmácia, pois


nossos lábios estão rachados e destruídos.

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Seguimos viagem por estradas incríveis em que em


vários momentos me questionava se nosso jeep realmente
conseguiria chegar ao cume ou atravessar o rio ou um vale de
rochas. Até que o pneu furou... e tivemos que parar no meio
da estrada para trocar.

Chegamos a Uyuni às 17h. A senhora que trabalha na


agência, tinha ficado de comprar para nós duas passagens de
trem para Oruru (escala necessária para irmos a
Cochabamba), porém já estavam todas esgotadas e ela
comprou de ônibus mesmo. A partida estava marcada para às
21h, então, tínhamos algumas horas na cidade para fazer

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contato com o Brasil e observar um pouco melhor os


costumes e curiosidades do povo boliviano.

Na Plaza Central de Uyuni acabei puxando conversa


com uma boliviana que também estava ali a passeio com sua
família. Ela era de Cochabamba, o que me deu um pretexto
ótimo para perguntar sobre Evo Morales, movimento
cocaleiro, Estado plurinacional etc. Seu discurso e, logo
depois, de seu marido também, foram muito duros em relação
ao governo. Chegaram a dizer que Evo é um ditador e que
explora o povo boliviano. Lembrou-me um pouco o discurso
dos escuálidos, na Venezuela, em relação ao Chávez. Eles
disseram que o Evo e o MAS (Movimiento al Socialismo)
controlam os Três Poderes na Bolívia, fazem perseguições
políticas e obrigam os cocaleiros a participar do movimento
sob a ameaça destes perderem suas terras. O maior alvo de
críticas foi a recente eleição que houve para o Tribunal
Supremo Eleitoral/TSE, considerado pelo editorial do Jornal A
Patria, de Oruru, como a “pior notícia do ano”, uma vez que
fica clara a partidarização da instituição com a eleição de
representantes dos interesses do MAS e do governo. Wilfredo
Ovando, eleito presidente, teria também um discurso
favorável a um maior controle da imprensa – tema, aliás,
polêmico e muito presente em vários países da América
Latina. Para o casal e para o jornal citado, este é apenas um
prenuncio do que está por vir, uma vez que o favorecimento
do MAS em detrimento de outras correntes políticas já seria
uma tendência notória em algumas eleições municipais, como
foi a de Sucre.

Outro tema levantado pelo casal foi toda a discussão


que envolveu recentemente o Territorio Indígena y Parque
Nacional Isiboro Sécure/TIPNIS, quando o governo se
comprometeu em construir uma estrada que atravessaria a
reserva indígena, sem a devida consulta aos povos originários.

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No final, depois de muitas marchas e lutas, o governo foi


obrigado a ceder e interromper as obras, considerando a
possibilidade de construir outra rodovia contornando a
reserva. Voltarei em detalhes sobre esse assunto mais
adiante.

Realmente, as coisas não são tão simples por aqui.


Perguntei ao casal de qual etnia pertenciam e o que percebi é
que, por eles serem citadinos, urbanos, essa identidade étnica
não é predominante. Porém, em várias situações eles
precisam se definir, como nos censos, por exemplo. Diante
disso, eles disseram que teriam uma identidade maior com os
quéchuas e que, inclusive, sabem falar a língua. Porém, algo
que Raul destacou foi que essa questão étnica virou uma
questão política e oportunista em certa medida. Ele não
acredita muito nas 35 etnias hoje reconhecidas na Bolívia.
Para ele, um grupo de 15, 30 pessoas, não pode simplesmente
se definir como um grupo étnico em particular. Será mesmo,
hein?

Não sei se pelo fato deles serem citadinos foi mais


fácil chegar e conversar com eles. Pelo que percebi, na medida
em que essas identidades étnicas são mais fortes, é mais difícil
“entrar” no mundo deles. Mas vamos ver, o desafio está
colocado.

Finalmente, um último aspecto bem interessante


levantado por eles foi a falta de segurança para viajar pelo
interior do país, pois você pode estar sempre passível a ser
submetido a uma justiça comunitária! Esse elemento é parte
do projeto do Estado Plurinacional que concede autonomia e
soberania aos territórios de diferentes nações.

Sem dúvida, são vários temas polêmicos e este é


apenas um lado da história. Cada vez mais tenho maior

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certeza do quanto quero estudar esse povo e esse projeto.


Peguei o contato do casal em Cochabamba e eles ficaram
pendentes em me colocar em contato com um amigo deles,
Pablo Rojas, que esteve à frente do movimento do TIPNIS
contra Evo e à construção da estrada.

Papeando com o casal, descobri também que Domitila


Chungara está morando na França. Uma pena. Eu realmente
tinha a esperança de conhecê-la.

Com algumas horas sobrando, sentamos na pracinha e


bebemos umas cervejas bolivianas ao som de vários gêneros
musicais de um quiosque muito simpático. Corri numa lan
house para postar alguma coisa no blog, dei uma olhadinha na
feirinha e ficamos lá no barzinho, conversando e observando o
povo boliviano.

Minhas índias¸ como sempre, para lá e para cá, com


seus filhos e mercadorias nas costas. Diferentemente da
Venezuela e do Brasil, aqui na Bolívia – pelo menos nos
lugares que fomos até agora – o clima de segurança é
permanente. Não há problema nenhum em pegar laptop,
câmera fotográfica, deixar as mochilas sob os olhos de alguém
enquanto vamos ali... O povo aqui respeita demais o espaço
do outro.

A música está em todo lugar, mas nunca num volume


muito alto. A fala é mansa. O povo é tranquilo. Vou levar
sempre comigo a imagem do García, nosso motorista na
viagem pelo deserto, abaixando o rádio ao mínimo, dizendo
“ok, amigos....” e explicando alguma coisa sobre os lugares
que visitávamos. Mesmo eu sendo a única no carro, que
entendia o que ele falava, ele fazia questão que todos
ouvissem e não descessem do carro até que terminasse de
contar tudo.

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Outra coisa curiosa foi que, na feira, tentei negociar o


preço de uma bolsa. Eram Bs30 e eu tentei baixar para Bs20.
Diante da irredutibilidade da velha índia, eu disse, “mas não
tem preço especial para brasileiros? Somos irmãos ou não
somos? Esse preço é para os gringos...”. Eis que me responde
sua neta: “O preço especial para brasileiros é de Bs35”.
Estarrecida, agradeci e fui embora.

Não posso afirmar com certeza que o povo aqui não


gosta de brasileiro, mas seguramente não é lá o povo que eles
mais amam. Também pudera, sem entrar no detalhe do
Imperialismo Brasileiro (que, aliás, não é um detalhe, é algo
bem complexo), é impressionante como o povo brasileiro é
espaçoso! Aqui na Bolívia tem muitos, muitos brasileiros
viajando. Principalmente mineiros. Quer encontrar um
brasileiro? Procure onde há a maior algazarra, o maior
barulho, gente falando alto. Sim, é batata. Aí estão eles. E
quando querem fazer gracinha falando espanhol terminando
tudo com “ion” e falando como se estivessem conversando
com pessoas com retardo mental? É... brasileiro não é mole,

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não. Mas tem uma energia que só o nosso povo tem também.
E uma receptividade que é difícil de encontrar por aí afora.

Depois de curtir um pouco na pracinha, fomos


procurar um lugar para jantar, pedimos sugestão ao gentil
senhor do quiosque que nos serviu as ceverzas para nos
indicar um lugar que o boliviano comesse e fomos parar em
um “restaurantezinho” onde se vendia o tradicional pollo con
papas. O grande lance é você não ver como é preparado. Só
botar no prato e comer. O Hugo não quer saber de outra
coisa, aquele frango engordurado, aquela batata engordurada,
hmmm... haja calorias!

Saímos de lá correndo para pegar nosso ônibus. Aqui


estou, madrugada adentro, com um resto de bateria, de volta
à cordilheira, às estradelas sem fim, num chão de terra, que
nos faz quicar permanentemente. Serão 12 horas de viagem
no total. Ainda bem que o ônibus é confortável. Aqui estamos,
há três dias sem tomar banho, rumo a Cochabamba, com
escala em Oruru, para mais uma aventura.

***

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Cocaleros e TIPNIS em Cochabamba (30/12)

Dia 30 de dezembro de 2011

Chegamos a Oruru com 1h30m de atraso. A estrada


estava terrível, mas felizmente eu cochilei a maior parte. Acho
que cheguei até a sonhar. Chegamos na capital do folclore
boliviano com chuva. Nem saímos do terminal e já entramos
em outro ônibus rumo a Cochabamba. Mais 4h de viagem. O
clima começa a mudar na medida em que avançamos pelas
cordilheiras. Já podemos ver mais plantações, vacas na beira
da estrada e construções de alvenaria. Sem dúvida, estamos
chegando num lugar mais rico que os que estivemos
anteriormente.

Cochabamba, capital da coca. Grandes expectativas


para essa cidade. Atravessamos diversas pequenas cidades
antes de chegar à Cochabamba propriamente dita. Cidades
bem pobres, mas não tão pobres quanto as que vimos em
Sucre, Potosí e Uyuni. Para Hugo é o dinheiro do tráfico, eu
fiquei meio resistente. Ainda queria acreditar em outras
coisas. A pobre Alejandra, mujer guerrera daqui, que tive a
felicidade de conhecer num curso em que dei aula para o
MAB, MST e outros movimentos sociais, nos esperava desde
às 10h. Já eram 11h30m. E, ao que parece, houve um trágico
acidente na estrada, com dois ônibus colidindo e obstruindo
completamente a passagem. Ela estava desesperada que fosse
o nosso ônibus. Ufa! Passamos dessa por pouco. Que a luz que
até agora nos tem guiado, não nos abandone até o dia 07.

Fomos em busca de um hotel. Ale encontrou um


hostal bem bonitinho, Hostal Buenos Aires, muito bem
localizado no centro da cidade.

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O centro de Cochabamba é marcado por uma


arquitetura colonial lindíssima. A sensação é que viajamos no
tempo. Nossa, caminhar pelas ruas que tanto vi nos filmes
sobre a Guerra da Água, cujo epicentro foi aqui, em 2002, foi
incrível.

Depois de deixarmos as coisas no hostal, Ale nos levou


para almoçar num Mercado Popular. Um enorme espaço, com
vários quiosques servindo todo tipo de almoço. Ah, sim,
Cochabamba é a capital da gastronomia boliviana. Enquanto
você caminha pelo pequeno corredor que tem entre as mesas
e os minirestaurantes, você é assediado por milhares de
mulheres que querem te convencer da melhor oferta de
almoço. Algumas chegam a te pegar pelo braço, quase de
obrigando a sentar em sua mesa. Escolhemos uma e comemos
o famoso “pique”. Uma mistura de carne picada, com batata,
linguiça, cebola e várias outras coisas. Muuuuuito gostoso!

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Comemos direitinho e, depois, voltamos para o hostal


para descansar um pouco, TOMAR BANHO e Alejandra tinha
seus problemas pessoais para resolver também. Então,
tivemos a oportunidade de recuperar nossa dignidade, falar
com o povo do Brasil e postar algumas coisas no blog.

Às 16h, nos encontramos novamente com Alejandra e


ela nos levou à principal atração de Cochabamba: o Cristo.
Igualzinho ao nosso. Mas aqui se chama Cristo de la
Concordia. Dizem que é o maior da América Latina, eu tenho
minhas dúvidas. Pegamos um pequeno teleférico lá para cima
da montanha e, melhor que o Cristo, é a vista para
Cochabamba e cidades vizinhas.

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Quando estávamos a caminho do Cristo e, mais cedo


ainda, quando passamos pelo centro, vimos uma
movimentação de uma marcha em defesa da construção da
estrada que atravessaria a reserva TIPNIS. No centro, o alcaide
de Cochabamba, que é do MAS, recepcionava a marcha, mas
sem conquistar muito apoio da população de maneira geral.

A caminho do Cristo, vimos a escola em que eles


estavam acampados. Alejandra foi pega de surpresa e não
sabia muito bem o que estava acontecendo. Obviamente
fomos sondar. Alejandra é uma mulher muito sensível, com
uma visão crítica muito bem fundamentada sobre todo esse
processo que vive o país e conversar horas e horas com ela
hoje foi um grande aprendizado.

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Em linhas gerais, o grande tema na Bolívia hoje, ainda


é a construção dessa estrada. Os defensores da reserva
obtiveram uma primeira vitória em setembro deste ano, ao
suspender as obras, impedindo a construção da mesma e
obrigando o governo a assinar a chamada "Ley Corta" que
proíbe qualquer intervenção na região sem prévia autorização
dos povos originários. Porém, na medida em que o ano vai se
encerrando, as tensões também tendem a crescer. Aqui na
Bolívia há uma tradição por parte do governo de implementar
medidas polêmicas no final do ano quando as pessoas estão
de férias. Assim foi com o Gasolinazo ano passado (quando o
governo da noite para o dia suspendeu os subsídios do gás e
gasolina, gerando uma alta generalizada nos preços dos
produtos e uma quase guerra civil). A chegada dessa marcha
em Cochabamba representa ainda os esforços do governo em
construir uma base de apoio que sustente a construção dessa
estrada. Porque quando falamos dos TIPNIS, há uma parte da
reserva onde há povos indígenas que vivem em áreas
colonizadas e, portanto, estão interessados na construção das
estradas, pois atuam paralelamente aos cocaleiros (estão
localizados no sul da reserva e organizados no Consejo

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Indígena del Sur/CONISUR); e há uma outra parte, dos povos


amazônicos, que vivem longe das áreas colonizadas, dentro da
floresta e que rechaçam a medida pelo dano ambiental e
cultural que esta causaria (estão localizados no centro e no
norte da reserva).

Depois da vitória dos que lutam em defesa do TIPNIS,


ocorrer uma contramarcha, de indígenas que apoiam a
construção da estrada, no final do ano, com apoio do MAS e
do governo, é no mínimo estranho e suspeito. A mídia chama
essa marcha de "oficialista" ou "masista". O que está por vir,
não sabemos ainda, mas, sem dúvida, este não é um tema que
se encerrou. Eram 1.400 indígenas marchando há mais ou
menos 10 dias desde o TIPNIS até Cochabamba. Passaram o
natal marchando e vão passar o ano novo marchando, pois
depois do ato de hoje, eles vão regressar amanhã. A marcha
seria apenas uma demonstração de que há, sim, indígenas em
TIPNIS que estão com Evo e com o projeto da estrada.
Homens, mulheres, crianças. Todos estavam ali na escola
recuperando as forças. Para Alejandra, é provável que eles
estejam recebendo um “extra” para fazer a marcha, caso
contrário, a mesma não se justifica politicamente. Tamanho
sacrifício, nas vésperas do natal e ano novo, não se explicaria.
Vale notar que, diferentemente do que ocorreu com a Marcha
em defesa do TIPNIS, esta de hoje não recebeu tanto respaldo
da população. Na televisão, havia um grande destaque para
esse aspecto. O clima hostil se traduziu também num reforço
policial absurdo em torno da escola. Na medida em que íamos
saindo de lá, caminhões e motos com policias chegavam para
“proteger” os marchistas.

Vale notar que a reserva TIPNIS fica no Departamento


de Cochabamba, sendo uma parte dela mais amazônica e
outra, mais próxima da realidade cocaleira.

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Quanto mais converso com Alejandra, mais confusa


fica em minha cabeça a verdadeira relação de Evo Morales e
suas bases sociais. Confesso que tinha uma visão
profundamente idealizada do processo: quantas vezes chorei
assistindo ao documentário Cocalero, Hartos Evo aqui Hay e
outros que demonstravam a ascensão do sindicalista à
presidência da República. O primeiro presidente indígena da
América Latina. Toda a luta em torno da coca. Nossa! Achei
que chegaria a Cochabamba, berço do movimento cocaleiro
(na verdade, este último encontra-se concentrado em El
Chapare, pertinho daqui) e ia ver de perto o lugar de onde
tudo isso começou. Porém, a história é um pouco outra.

Surpreendentemente, o discurso de Alejandra pareceu bem


similar ao do casal que havia encontrado em Uyuni. Quer
dizer, as medidas autoritárias do governo, o favorecimento
exclusivo dos cocaleiros de El Chapare em detrimento de
outros movimentos e organizações sociais, a ausência de
políticas que possam controlar de forma eficaz o tráfico de
drogas, entre várias outras coisas. O que pude observar é que
se houve uma grande aliança em torno da candidatura de Evo
Morales, esta, logo, logo, começou a se desfazer, na medida
em que o presidente precisou estabelecer prioridades de
governo.

Dentro de suas prioridades, ao que parece, Evo faz um


governo voltado para os cocaleiros de El Chapare, de onde
emergiu como sindicalista. Também segundo Alejandra, a
produção de coca de El Chapare, diferentemente do que eu
pensava, não é voltada para o consumo cultural, para a
mastigação, mas descaradamente para o mercado
internacional da cocaína. Seria a coca de La Paz que teria
maior qualidade para tal prática (e onde, inclusive, essa
prática seria mais explícita). Em Cochabamba, há várias
indústrias onde se processam a coca e a convertem em pasta

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(um estágio anterior à cocaína, perverso, vendido de forma


muito barata; seria o crack deles) e cocaína. Há um
questionamento muito duro em relação a isso, pois o fim da
política de “coca zero”, a qual o governo se opôs, não veio
acompanhada de uma política de “cocaína zero”. O governo
não tem feito sua parte para controlar e inibir essas práticas
perversas que deixam um déficit social gigantesco nesse país.

Alejandra citou o exemplo do Peru, nação que


também produz coca, mas que a exporta processada de forma
legal. Há um maior controle sobre a produção,
processamento, impostos, fiscalização. É diferente do que
ocorre na Bolívia em que a produção é deixada praticamente
livre para que esses interesses escusos da indústria da droga
estejam de fato no controle sobre toda a produção, gerando
altos lucros para os que se envolvem direta ou indiretamente
na produção e um legado social de viciados, pobreza e miséria
a reboque.

Além disso, voltando a falar do tema dos TIPNIS, outro


episódio decepcionante protagonizado pelo governo, foi o
massacre de Yucumu há dois meses. Apesar de o governo ter
declinado formalmente quanto à construção da estrada,
amigos de Alejandra testemunharam este massacre (por um
fio ela mesma não esteve na marcha), quando os defensores
do TIPNIS, em marcha, caíram em uma emboscada promovida
pela polícia já nas proximidades de La Paz. Yucumi é o último
território reconhecido pela presença marcante dos guaranis,
povos da floresta que estão desvinculados das políticas do
governo voltadas para os cocaleiros. Houve a prisão de
dezenas e, até hoje, não se tem uma estimativa de quantos
mortos e desaparecidos. Há a confirmação de que uma criança
teria morrido no incidente. Segundo alguns relatos ouvidos
posteriormente por Alejandra, diziam que alguns dos policiais
que foram reprimir os marchistas, eram venezuelanos. E

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teriam batido e prendido os manifestantes sem dó. O governo


nega responsabilidades, alegando que não saberia dizer "de
onde veio a ordem" para o massacre e se comprometeu em
apurar o caso.

Portanto, como sempre, a realidade sempre está anos


luz da teoria, dos nossos estudos. De tudo que li sobre Bolívia,
um dia em Cochabamba me serviu para abrir os olhos e
colocar o pé atrás em relação a uma série de coisas que
envolvem o governo Evo Morales e os projetos de
desenvolvimento de país, que se encontram em disputa por
aqui.

Na tese, é claro, quero percorrer todos os lados da


história, mas esse balde de água fria sobre a figura do Evo, me
deixou um pouco tonta. Voltei até a passar mal hoje a noite,
de novo. Acho que é a altitude. Depois de nos levar para
comer na zona norte da cidade, declinei o convite para
tomarmos uma cervejinha e decidi voltar para o hostal antes
que meu corpo não respondesse mais aos meus comandos.

Vou parar também de tomar sorotipil. Tinha sentido


uma dor muito grande no peito na outra noite depois de
tomar esse remédio e, hoje, a Alejandra disse que ele faz mal
ao coração. Amanhã, ela vai nos dar umas hojitas de coca para
mascarmos que é a melhor solução. Ela nos convidou também
para irmos bem cedinho numa zona mais rural daqui,
conhecer o coletivo de mulheres do qual faz parte e atua
política e artisticamente, além de ver o siembre de la tierra e
ter contato com esse outro lado da cidade.

Tenho certeza que será maravilhoso.

***

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O último dia do ano e a purificação (31/12)

Dia 31 de dezembro de 2011

O dia começou chuvoso, o que nos fez adiar os planos


de ir ver a siembra de la tierra. Como Alejandra não apareceu
às 08h, acabamos saindo para tomar café-da-manhã (uns
pasteis gigantes no Castelo Del API) e voltamos para o quarto
para descansar um pouco mais, pois não me sentia muito
bem.

Este “não me sentia muito bem” foi piorando


bizarramente ao longo do dia com diarreias, vômitos e uma
sensação que meu estomago estava a um fio de cabelo para
explodir de tão estufado de gases que estava. Não conseguia
sair da cama. À noite era reveillon e estava preocupada com
isso. Decidi ficar de repouso.

Hugo se aventurou pelas calles de Cochabamba


sozinho. Foi parar num Mercado Popular onde comprou
bananas, aveia, soro e alguma coisa para ele comer. Fiquei
numa dieta rígida com ele cuidando de mim. Eu tinha picos de
melhoras e de pioras. As horas iam passando e eu via cada vez
mais que não tinha condições de sair de casa.

No final da tarde, tomei um super banho quente,


vomitei um pouco, coloquei algumas malignidades para fora, o
que me deu a chance de respirar um pouco melhor. Decidi
que não ia passar o Ano Novo dentro do quarto. Saí na rua,
liguei para Alejandra e combinamos de nos encontrar para
sairmos a rumbiar com uns amigos dela de La Paz que também
vieram para cá para passar a virada. Nos arrumamos e fomos.
Eram umas 20h.

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DIÁRIO DA BOLÍVIA

Chovia um pouco. Fomos ao mesmo Mercado Popular


para comprar vinho e uma sidra para estourar na virada.
Comecei a sentir um pouco de calor, mas continuei na luta.
Saímos de lá e fomos nos encontrar com seus amigos no hotel
onde eles estavam hospedados.

Eles tinham acabado de chegar de La Paz e ainda


estavam se arrumando, então, subimos ao quarto deles e foi
quando o mundo começou a escurecer para mim.

Nos fechamos num quarto pequeno, com vinho e eles


começaram a fumar. Comecei a suar, suar, suar e aquela
sensação de pânico de estar longe do meu quarto, do meu
banheiro, da minha privacidade, começou a tomar conta de
mim. Disse a Alejandra que eu precisava ir em nosso hostal
tomar uns remédios, pois estava me sentindo mal de novo e
que lá pelas 23h eu ligava para ela, para saber onde todos
estariam e ia ao encontro deles para a virada.

Muy bien. Hugo e eu descemos e eu já estava numa


situação em que mal podia andar. Enquanto caminhávamos,
conseguimos pegar um táxi... quase vomitei lá dentro. A sorte
que nosso hostal era bem pertinho do hotel em que eles
estavam. Foi o tempo exato de chegar no meu lindo quarto.
Ufa!

Como sair para o Ano Novo nessas condições?

Hugo simplesmente me proibiu. Disse que não íamos a


lugar nenhum. Que não correria o risco disso acontecer de
novo comigo. Então, saiu para comprar algumas coisas para a
virada.... aqui mesmo no hostal.

É, pessoal, botei minha camisola e assisti ao Ano Novo


de Copacabana pela TV. Hugo bebia seu vinho e eu totalmente
destruída por dentro.

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Depois de comemorarmos a “virada”, dormi. O


pobrezinho passou suas primeiras horas de 2012, vendo show
do Metallica na TV, bebendo vinho, comendo um frango
gelado que tinha sobrado da hora do almoço e SOZINHO.
Melhor impossível, não é??

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Feliz 2012 a todos!

***

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Um domingo em Cochabamba (01/01)

Dia 1º de janeiro de 2012

Somente hoje quando eu acordei, descobri o


significado do meu dia 31. Com todo esse papo de energias
para cá e para lá, acabei entrando em sintonia com
Pachamama e passei por um intenso processo de exorcismo e
purificação. Meu corpo passou o dia inteiro expelindo toda a
malignidade que poderia haver dentro de mim. Não tenho
condições aqui de entrar no detalhe porque seria demasiado
humilhante, mas, acreditem, milhares de demônios saíram de
dentro de mim.

Acordei no primeiro dia do ano de 2012 leve, normal,


nova. Pronta para outra. Incrivelmente bem. Depois de tudo
que passei no dia anterior, era uma benção acordar e
conseguir ficar de pé sem curvar a coluna. Saímos para tomar
café-da-manhã, quer dizer, Hugo ainda insistiu que eu
mantivesse uma dieta, então, fiquei na banana com aveia,
enquanto ele tentou encontrar alguma coisinha diferente para
comer. Porém, estava tudo, tudo, fechado. O centro de
Cochabamba parecia uma cidade-fantasma, já que hoje, além
de domingo, é feriado. Só nos restou os pasteis gigantes do
Palacio Del Api ao som de um especial de trailers de Michael
Jackson.

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Aproveitamos o resto da manhã para caminhar pelo centro.


Os únicos lugares que tinham ainda resquício de pessoas eram
as Praças 18 de Setembro e Praça Colón. Fomos primeiro para
a 18 de Setembro que é a principal onde está a Catedral e a
sede da Alcaldia. A praça é lindíssima rodeada por uma
arquitetura colonial.

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As praças eram praticamente os únicos lugares em


que havia algum movimento, sobretudo de velhinhos que não
precisavam estar se recuperando da ressaca do Ano Novo da
noite anterior.

Caminhar por aquelas calles, me fez lembrar muito o


filme Tambien la Lluvia (2011), de Icíar Bollaim, ou as cenas
que se remetem à Guerra da Água, ocorrida em 2002, quando
houve uma guerra civil em Cochabamba devido aos intentos
do governo municipal em privatizar a água – INCLUSIVE A
ÁGUA DA CHUVA – vendendo para uma multinacional chilena.
A medida levou a uma revolta popular que deixou
Cochabamba em estado de sítio, com muitas barricadas e
enfrentamentos nas ruas. No final, o povo venceu. A
privatização foi suspensa. Vale a pena ver o filme, apesar de
ter alguns problemas. Para Alejandra é mais uma forma de
falar para fora da Bolívia o que aconteceu e não para dentro.
Ainda assim é interessante para uma primeira aproximação
com o tema – que deveria tocar a todos nós, já que a água é
um direito universal.

Uma curiosidade negativa do filme que Alejandra me


contou é que, apesar de, na própria película, haver uma crítica
sobre a forma como a equipe de produção do filme se

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relacionava com os extras e atores bolivianos; na prática, na


realidade, ocorreu o mesmo. Ela tem amigos que trabalharam
como extra no filme e que disseram como eram tratados de
forma diferenciada, com comida diferenciada, que havia um
grupo de atores intocáveis (Gael Garcia e Cia), entre várias
outras coisas. Além disso, a produção espanhola, não contou
com apoio nacional.

Depois de caminhar por todas as calles do centro e


confirmar que todos os museus e feiras estavam fechados,
voltamos ao hostal para descansarmos um pouco, já que eu
estava saindo de uma briga dura.

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Ficamos o restinho da tarde no quarto, bebericando


um vinhozinho e vendo um pouco de TV, até que Alejandra
chegou com uma proposta de nos levar para fora do centro.

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Para o Reservatório de Água de Angostoura. Pareceu-me


ótima a ideia. Hugo estava meio resistente, mas acabou
cedendo e fomos. O lugar era meio “longinho”, mas chegamos
a um “restaurantezinho”, rústico, na margem do rio, com as
montanhas ao fundo. Lindíssimo!!!!! Conversamos com ela e
seus amigos, bebendo cerveja e comendo um peixinho até o
sol se por. Foi maravilhoso. Depois ainda fizemos um passeio
de lancha pelo rio. Voltamos umas 20h ou 21h. Despedimo-
nos dos amigos de La Paz (ficamos pendentes de ligar para
eles quando estivermos lá para que nos mostrem a “noite” de
La Paz), de Alejandra e voltamos ao hostal.

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Hugo ainda queria comer alguma coisa, pois não tinha


comido o peixe lá no restaurante. Seu sonho era comer o
bendito pollo con fritas. Se pudesse, ele só viveria disso.
Comeria no café-da-manhã, no almoço e no jantar. Eu subi e
ele foi tentar comprar o que ele queria, sozinho. Eis que
quando já estava indo tomar banho, ligam da recepção e eu
atendo. O pobre Hugo não havia conseguido se entender nos
restaurantes aos quais tinha ido e precisava de ajuda para
pedir a comida. O tal que ele já tinha comprado já estava
fechado; o outro, ele só conseguia pedir “sorvete”; um
terceiro, era uma confusão só entre fazer o pedido e pagar a
ficha. Bom, fomos a esse terceiro, já debaixo de chuva, que
havia começado a cair bem na hora que voltamos ao centro de
Cochabamba e depois de horas de indecisão, conseguimos
fazer o pedido. Por fim, a mulher me diz que não seria possível
atender-nos, pois havia muitos pedidos. Revoltados, fomos
embora para outra opção. Sentamos no famoso Prado, uma
avenida em que se concentram vários bares e restaurantes e
pedimos uma promoção de hambúrguer, com batata-frita e
suco. Depois de horas e horas de espera, chega uma carne
dura, uma carne seca que a vontade era de jogar na cara do
infeliz que havia feito. Mas já era tarde e, bom, não havia
muitas opções realmente nesse 1º dia do ano. Voltamos ao
hostal para terminar de arrumar nossas coisas, pois amanhã
partiríamos cedinho para La Paz. Quer dizer, para Copacabana
com escala em La Paz.

Nosso objetivo é chegar a Copacabana no final da


tarde/noite, ficar um dia por lá curtindo a Isla Del Sol e,
depois, voltar a La Paz para ficar mais uns dois dias antes de
voltar para casa.

Que venha 2012!!!!!!!!!! Axé para todos.

***

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On the Road again... ou Em trânsito, Pt.2 (02/01)

Dia 02 de janeiro de 2012

Cochabamba acordou num “climinha” chuvoso. O


governo decretou feriado nacional hoje também. Portanto,
mais um dia de “cidade-fantasma” por aqui, com exceção da
Rodoviária – que estava lotada. Tiramos umas fotinhos de
despedida do nosso hostal e pegamos um táxi coletivo, meio
apertados com as mochilas, bolsa e um monte de coisas, mas
pelo Bs1,50, valia a pena para chegar em nosso destino.
Precisávamos comprar passagens para La Paz.

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Na saída do táxi, o barato saiu caro.

O motorista parou no meio de uma enorme poça de


lama, meu casaco caiu, logo depois, eu me estatelei no chão,
rasguei minha calça e me sujei de lama aos olhares de todos
que passavam, assustados com a brasileira enrolada.

No terminal, filas e mais filas em trocentas


companhias. Fomos logo na primeira, com a menor fila e o
melhor preço. Não sabíamos o que nos esperava, mas
tampouco tínhamos condições de ficar procurando. Bs40, a
passagem. Demos sorte.

O ônibus era bem confortável. Seriam 8 horas de


viagem. Saída às 9h30m com previsão de chegada às 17h30m.
Nosso projeto era do terminal de La Paz, já partir para
Copacabana. Dormiríamos lá para no dia seguinte pegarmos o
primeiro barco para a Isla do Sol. Doce ilusão...

Depois de horas e horas de estradelas sem fim,


subindo e subindo as cordilheiras, cada vez mais próximos dos
cumes cheios de neve, chegamos a El Alto e, logo depois,
avistamos a fantástica La Paz.

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Uma cidade-favela que aparece num enorme vale


rodeada por cordilheiras. Como chegamos “de cima”, o visual
para a cidade é incrível, incrível. E a cidade também.

Na medida em que íamos chegando próximos de El


Alto/La Paz, muros pintados com mensagens políticas de
apoio ao Evo Morales e demais candidatos do MAS eram mais
frequentes.

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Não brinquem com as energias, galera, porque elas


estão aí mesmo. Como abrimos nossos corações para isso,
estamos colhendo muitos frutos.

Ao chegarmos na rodoviária de La Paz, descobrimos


que não havia mais saídas para Copacabana àquela hora. Só
poderíamos ir no dia seguinte às 8h. Pois é. Teríamos que ficar
em La Paz. E, nesse caso, seria inviável – com o tempo que
temos aqui – ir no dia seguinte, para dormir por lá pela Isla Del
Sol. Se realmente queríamos ir ao Titikaka, teríamos que ir e
voltar no mesmo dia.

Muy bien, fechamos com uma companhia as


passagens de ônibus e de barco de ida e volta. Seria puxado,
não poderíamos conhecer a Isla inteira, mas pelo menos
íamos ter um gostinho do famoso lago e reduto Inca.

Estava falando de energia, não é? Pois então, quando


estávamos na rodoviária, meio perdidos, arrumando as malas
para tentarmos uma vaga no famoso Hotel Torinos – a maior
referencia para viajantes –, sem reserva, encontramos
novamente os amigos de Juliana, que tínhamos conhecido no

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aeroporto na ida para Bolívia, Paulo Henrique e Mauro. Um


golpe maravilhoso do destino, pois eles nos disseram que o
Torinos, apesar da fama, é precário, não tem internet, é frio,
enfim, vários defeitos. Eles iam para um cinco estrelas, sei lá,
pois precisavam recuperar as baterias.

Nós demos uma olhada no guia e encontramos um


meio termo, três estrelas, que nos atendia. Quer dizer, um
pouco de conforto, internet, baño privado, água quente, essas
coisas. Eles acabaram indo com a gente. Fomos todos para o
Hotel Sacargano, na calle Sacargano.

O hotel é maravilhoso, super bem localizado, ao lado


da famosa Calle de la Brujas, do prado e de uma Catedral
colonial lindíssima. O quarto é muito confortável e tem café-
da-manhã. Em suma, não podia ser melhor depois de um dia
inteiro de viagem. Combinamos de sair para jantar às 20h30m.

Fomos para o quarto e comemoramos com um


vinhozito boliviano. Não sei se foi a altitude, mas o vinho subiu
rapidinho e fiquei tooooda alegre.

Saímos para jantar num restaurante aqui perto que os


rapazes conheciam. Apesar de “carinho”, o lugar é muito lindo
e a comida, deliciosa.

Acabei comendo pique de novo para dividir com


Paulo. Hugo foi de pollo ao champignon. Bebemos um vinho e,
no final, mascamos umas hojitas de coca. Basta pedir para a
garçonete que ela traz, de graça, para você.

Foi ótimo encontrar os rapazes, trocamos várias


experiências, pois estávamos indo para lugar que eles estavam
voltando e vice-versa.

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La Paz é linda. Mas estou com medo. Aqui é pura


ladeira. Umas subidas e descidas PUNK ROCK. Quando chegar
a hora de desbravar a cidade, já vi que vou sofrer um pouco,
mas, por enquanto, não quero pensar nisso. Amanhã é dia de
Lago Titikaka.

Vamos combinar assim, né? Um dia depois do outro.

Buenas noches.

***

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Titikaka e Cultura Inca (03/01)

Dia 03 de janeiro de 2012

Acordamos bem cedinho, pois o ônibus saía daqui do


hotel às 8h. Com muito sono ainda, descemos para o café-da-
manhã. Horrível, diga-se de passagem. Uns pães duros – aliás,
os pães aqui na Bolívia são sempre assim, duros, como se
tivessem sido reaproveitados de vários dias e requentados no
forno – com manteiga, café com leite e um suco de laranja. Tá,
tudo bem, horrível é exagero, mas bem fraquinho. Nem um
ovinho o infeliz do muchacho pôde fazer para mim. De toda
forma, desayunamos e fomos esperar o ônibus.

Em frente ao hotel tem uma vendinha onde


compramos água e eu pedi umas hojitas de coca para levar e a
senhora simplesmente me deu meio saquinho. A coca tem um
gosto horrível, mas depois de um tempinho você se acostuma.
Você tira a ponta do caulezinho e masca a folhinha, ela libera
um sugo meio amargo... a folha vai virando uma pasta no
canto da sua boca e aí você vai botando mais folhas e vai
formando uma bola de folha mascada no canto da boca.
Algumas pessoas engolem isso, outras cospem. Depois de um
tempinho você se acostuma com o gosto amargo. Ao cuspir a
goma, você sente toda a parte da boca em que você estava
mascando, meio anestesiada. Como o Lago Titikaka é o lago
mais alto do mundo, localizado a 3.821 m, no caminho fui
mascando muita coca, de modo que não senti a altitude. Bem
melhor que sorotipil.

Foram cerca de 3h30m de viagem até Copacabana. A


paisagem, bom, a sensação é como se estivéssemos no topo
das cordilheiras, então, o que vemos é plano. Longos e longos
campos de plantação de coca ao longo de estradas sem fim.

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Quando chegamos próximo ao lago, a sensação é


absurda, pois parece que estamos de frente para um oceano
em pleno Altiplano Andino. A água azul é um cenário incrível e
inesquecível.

Num determinado momento do trajeto, temos que


descer do ônibus e atravessar o lago de barco (e o ônibus de
balsa). Paramos na cidade de San Pedro de Tiquina e o tempo
estava fechado, chuvoso e sentíamos muito, muito frio.

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Depois, são mais 50 minutos de ônibus subindo e


descendo montanhas entre um extremo e outro do pueblo até
chegar a Copacabana, cidadela de onde partem os barcos para
visitar a Isla del Sol e a Isla de la Luna.

A chuva apertou muito a caminho de Copacabana e


não podíamos ver quase nada do ônibus. Que azar,
pensávamos, vamos conhecer a Ilha do SOL, com CHUVA.

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Copacabana é uma cidadezinha que gira em torno de


uma rua principal, com muitos hostals, restaurantes e
artesanato. No final dela está o píer de onde partem os
barcos. Em Copacabana, o tempo continuava fechado e
chuviscando. Paramos num restaurante muito lindinho e
pedimos o que havia de mais barato (pois temos que
economizar para as compras em La Paz). Por Bs25 comemos
sopa, espaguete e uma sobremesa doida lá. Foi o tempo
certinho para a chuva dar um tempinho e partirmos para a Isla
Del Sol, às 13h30m.

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O Lago Titikaka faz fronteira com o Peru. Muitos


mochileiros saem de Copacabana em direção a Puno e seguem
viagem rumo a Machu Picchu. O visual é incrível. O lago tem
uma profundidade média de 140 a 180m, mas pode chegar
até a 280 m. Cerca de 25 rios deságuam no Lago, que tem 41
ilhas – sendo a Isla Del Sol, a maior, com 14,3 km². O mais
incrível é que na medida em que íamos nos aproximando da
Isla del Sol, o tempo fechado ia ficando para trás e foi abrindo
um lindo e maravilhoso SOL.

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O combinado era chegarmos à Isla Del Sol por volta


das 15h e teríamos 1h para passear pelos arredores do sul. A
ilha é dividida em Challapama, o norte, e Yumani, o sul. Este
último tem uma maior infraestrutura, enquanto o norte é
marcado por incríveis sítios arqueológicos. Os mochileiros e
viajantes geralmente dormem na ilha para fazer a
peregrinação do sul ao norte, saindo às 8h e chegando no
outro extremo no fim da tarde para pegar o último barco de
volta para Copacabana. Infelizmente, não temos tempo para
fazê-lo, então, só conhecemos o sul.

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Diz a lenda que a civilização Inca nasceu no Lago


Titikaka, mais especificamente, na Isla Del Sol. O “Deus Sol”
instruiu seus filhos para que procurassem um lugar ideal para
o nascimento de seu povo.

Manco Kapac e Mama Ocllo teriam escolhido essa ilha.


Há duas esculturas incríveis deles na entrada da Ilha, junto a
uma escadaria pré-colombiana de pedras fantástica que leva à
Fonte da Juventude.

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O local foi um reduto de peregrinação dos Incas


durante muito tempo, possuindo vários santuários, onde se
cultuava ao Deus Sol e eram feitos sacrifícios. Tornou-se,
portanto, lugar estratégico do Império que se formou do
século XV ao XVI. Há mais de 180 ruínas na ilha, além de um
Museu do Ouro e fósseis de gênero humano que datam de
cinco mil anos.

Infelizmente, nosso barco MONOMOTOR, demorou o


triplo do tempo para chegar à ilha. Então, apesar de nos
brindar com paisagens incríveis e inesquecíveis do Titikaka,
com suas belas águas azuis, acabou que não tivemos muito
tempo para aproveitar a isla.

Ficamos cerca de 30 minutos na entrada da parte sul,


na escadaria e nas esculturas, e, depois, seguimos para o
Templo do Sol. Uma estrutura alucinante e altamente
energizada na ilha. Também não tivemos muito tempo para
“sentir” melhor o local, mas apesar de rápida, valeu muito a
experiência. Fico imaginando o que não há pelos outros lados
da ilha. Sem dúvida, uma expedição imperdível.

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Depois dessa maravilhosa experiência, o retorno. Ai,


deuses! Não sei se é porque já estamos cansados de toda essa
maratona que viemos fazendo desde que chegamos, mas o
retorno a La Paz foi terrível. Além das horas e horas sem fim
no barco monomotor para voltar à Copacabana, soma-se mais
horas e horas de ônibus para voltar a La Paz.

O pior de tudo é que quase perdemos o ônibus, pois


compramos as passagens em La Paz, mas o vendedor da
companhia nem sabia da nossa existência, por pouco não

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ficamos de fora. Acabamos ficando com os piores lugares, lá


na frente, com cadeiras que não inclinavam. Mais estradas e
estradas sem fim, frio e muita dor.

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Chegamos a La Paz em um outro terminal de ônibus


que não conhecíamos. A sorte é que mesmo passando por
lugares sinistros de La Paz, a sensação não é de insegurança.
Pegamos um táxi rumo ao nosso hotel, famintos.

O gentil recepcionista descolou uma casa de uma


senhora que fazia umas pizzas artesanais aqui pertinho. O
lugar é super escondido, mas a pizza... hmmm... fantástica!

Comemos a especialidade da casa, que vinha com um


monte de coisas. Muito, muito boa. Hugo ainda comeu um
espaguete cheio de coisas também. Tomamos uma cervejinha
e aqui estou eu. Hugo capotado ao meu lado e eu reunindo as
últimas gotas de energia para deixar isso aqui atualizado.

Amanhã vamos descansar um pouco e dar umas voltas


por La Paz. Ainda quero fazer o passeio pelo Valle de la Luna e
Chacaltaya. Vamos ver se fazemos isso na quinta-feira, se
ainda tivermos energia e dinheiro.

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Está acabando. Confesso que estou MUITO CANSADA,


mas essa viagem, sem dúvida, está sendo surreal. Uma
experiência para vida toda. Muitas energias, muita cultura,
muita intensidade, muito tudo. Estou feliz por ter sobrevivido.

***

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Pelas calles de La Paz (04/01)

Dia 04 de janeiro de 2012

Depois do cansaço de ontem, recuperamos as baterias


pela manhã no hotel. Ficamos no quarto de preguiça. Recebi
ótimas notícias do Brasil, o que já considero fruto desse
processo de energização que vivemos por aqui e que apontam
um ano de 2012 excelente para nós.

Saímos, então, a caminhar pelas ruas de La Paz e


sentir o clima da principal cidade da Bolívia. Como eu disse, o
hotel é incrivelmente bem localizado. Ao lado da Calle de las
Brujas, que tem todo tipo de artesanato, panos, ouro, prata e
uma parte só de feitiçarias (com filhotes de llama
empalhados).

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A rua é incrível. Lindíssima, com todas aquelas cores.


Começamos a procurar, então, regalos para família e coisas
para enfeitar nossa casa. No meio do caminho me deparei
com o Museo de la Coca. Confiram no endereço:
“www.museodelacoca.com”. Imediatamente entrei e fui
conhecer um pouco a história dessa folha tão sagrada para os
bolivianos – ou alguns bolivianos.

Estudos comprovaram que a utilização da hoja de la


coca por homens e mulheres data de 3.000 a.C. Os primeiros
povos teriam sido os lauricocha, toquepala e paccaicasa, no
Altiplano Andino, nas regiões que hoje ocupam o Peru, a
Bolívia e a Colômbia, principalmente.

Durante o período Inca, nos séculos XV e XVI, a folha


era adorada como filha da Pachamama, através da qual os
povos indígenas entravam em contato com os deuses. Era
uma das principais oferendas ao Rei-Sol e outras deidades.
Apesar de todos terem o direito de mascar a coca e utilizá-la
em rituais, os Incas controlavam profundamente seu uso e
produção, tendo um sentido político muito importante.

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Ainda no Império, e mesmo antes dos Incas, as


propriedades da planta foram descobertas e era utilizada
como analgésicos para fazer cirurgias de grande agressão.
Enquanto no Ocidente, séculos depois, ainda eram utilizadas
técnicas de golpear a cabeça do paciente ou embebedá-lo
para fazer essas intervenções, os Incas já haviam descoberto
essa propriedade da coca e faziam cirurgias de alta
complexidade. Além disso, estudos comprovaram também
que a coca tem a capacidade de curar mais de 50 doenças.

Com a chegada dos espanhóis, o uso da folha era tão


disseminado, que foi impossível proibi-la, apesar dos esforços
de certos setores da Igreja. Sobretudo depois com a
exploração das minas de prata e de ouro, a coca se tornou
ainda mais fundamental para a sobrevivência dos indígenas
naquelas condições totalmente inóspitas de trabalho e
exploração.

A coca é também um elemento cultural que media as


relações sociais. Dá uma olhada nesse textinho aqui abaixo:

Foi em 1858 que o alemão Albert Neimann, produziu


pela primeira vez a cocaína, a partir da folha de coca. Suas

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propriedades anestésicas foram muito importantes em


meados do século XIX para uma série de intervenções
médicas.

Personagens ilustres como Sigmund Freud, passaram a


fazer uso permanente da cocaína, tendo se disseminado
durante o século XX como uma droga com efeitos perversos
para seus consumidores.

Em 1863, o químico Angelo Mariani produziu também


o “Vino Mariani”, um tônico médico, a base de coca, que
passou a ser utilizado para combater a depressão, curar vários
transtornos físicos, recomendado também para impotência,
febre, gota, insônia, ente várias outras doenças contagiosas e
nervosas. Mariani chegou a ganhar a Medalha de Ouro do
Papa León XIII por sua contribuição à humanidade.

E, em 1887, Sttyth Pemberton, de Atlanta, apresentou


ao mundo uma bebida não alcoólica a base de coca, chamada
Coca-Cola que viria se tornar um fenômeno mundial.

Portanto, a coca tem uma longa história. Não pode ser


resumida a simples droga. É cultural, é medicinal, é
cerimonial, é muito mais do que a simples cocaína.

Um dado que me chamou atenção no Museu é que


apenas cinco países do mundo, hoje, tem o direito de
exportar, se não me engano, 500 toneladas de cocaína de
forma legal. Estes países são os Estados Unidos, a França, a
Bélgica, a Alemanha e mais algum grande que não me lembro.
Irônico, não?

Eu, particularmente, só faço mascar coca o dia inteiro.


No começo tem um gostinho ruim, mas depois você se
acostuma e não quer outra coisa. A altitude não me afetou
nadinha até agora, mesmo subindo e descendo ladeiras.

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Outra coisa no Museu que me chamou atenção foi


uma parte que falava da Balsa de Tora Tora.

Lembram que eu postei ontem umas fotos de umas


balsas em formato de dragão no Lago Titikaka? Olha só:

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Pois, então, elas são um indicativo de que houve


contato entre as civilizações pré-colombianas e o Oriente.
Thor Heyerdal e, posteriormente, Kitin Muñoz, tentaram
cruzar o Oceano Pacífico em grandes balsas de Totora
originárias da América. Para a construção dessas balsas, eles
contrataram engenheiros náuticos aymarás do Lago Titikaka
descendentes de várias gerações de mastigadores de coca -
sendo eles mesmos mastigadores de coca.

Paulino Estevan era genial e graças a ele foi possível


construir essas balsas gigantes, permitindo o êxito da aventura
pelo Pacífico. A engenharia náutica andina é outra
demonstração do nível extraordinário alcançado por essa
cultura, que teve a habilidade de sobreviver no lago mais alto
do mundo.

Depois do Museu, continuamos a caminhar pela Calle


da las Brujas até chegarmos a um ponto que parecia com as
tendas de umbanda que temos por aí, com velas, aromas,
filhotes ou fetos de llama, entre várias outras “feitiçarias”. É
muito interessante e assustador ver a llamas naquelas
condições. Dizem que é para “dar sorte”. Eu não arrisco levar
uma para casa, não.

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Fomos depois ao centro comercial buscando jeans


baratos e paramos para almoçar no “Bob’s” boliviano, “Pollos
Cochabamba” porque o Hugo queria esse bendito frango
engordurado com papas fritas. Era barato, então, ficamos por
ali mesmo.

Continuamos a caminhar pelo centro, até que


encontrei uma pequena livraria e conversei muito com o
senhor que era o dono. Ele se solidarizou muito com os livros
que estava buscando e me apresentou um teórico indianista
que parece ser muito famoso por aqui. Wankar Reynaga ou
Fausto Reinaga. Há mais de 50 anos, o cara já escrevia sobre a
necessidade da tomada do poder pelos indígenas e tem toda
uma teoria a respeito do Estado. Pareceu-me muito
interessante.

Reinaga escreveu livros como o “Tawa Inti Suyu” que


já está na 8ª edição internacional. Comprei vários dele, além
de outros que fui vendo sobre Estado Plurinacional na Bolívia,
história da Bolívia, história da luta indígena, crise e
contradições do governo Evo Morales. Foi ótimo.

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Caminhando mais pelo centro, fomos parar na Praça


Murillo onde está a sede do Poder Legislativo e do Executivo,
além de uma enorme Catedral.

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É bem próxima ao Hotel Torinos. Fomos ao Museu de


Arte de La Paz.

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Logo depois, na praça, vimos uma enorme


movimentação no Palácio de Gobierno. Descobrimos que se
tratava da posse da alta hierarquia das Forças Armadas.

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Puxei assunto com um senhor que acompanhava a


chegada dos militares e conversamos muito sobre o governo
Evo e suas frustrações. Achei interessante que o senhor era de
classe média e não se identificava como indígena; para ele, os
indígenas são os “camponeses” e, em sua maioria, “incultos”.

Apesar de ter votado em Evo, estava bastante


decepcionado com o governo, pois ao que tudo indica, Evo faz
um governo para os cocaleiros e deixa os demais setores da
sociedade, como as classes médias, a reboque. Tinha também
uma opinião favorável à construção da estrada na Reserva
TIPNIS, pois acredita que esta diminuiria a dependência que La
Paz tem de Santa Cruz, pois Santa Cruz é o único lugar onde
haveria uma agricultura mais significativa de soja, arroz e
outros alimentos.

Para o senhor, a proposta da estrada não foi bem


explicada, por isso o projeto foi derrotado com tanta força. Ele
reclama que os povos indígenas que vivem no interior das
florestas de TIPNIS e que são contra a construção da estrada,
estão totalmente isolados da civilização, sem acesso à saúde,
educação e isso seria um fator negativo, pois meninas de 13
anos, já seriam mães e não teriam perspectivas nenhuma por
lá. Tá, né?

O senhor da livraria que eu mencionei anteriormente,


também era bem crítico ao Evo, apesar de reconhecer a
vitória que representou sua eleição. Para ele, Evo e Alvaro
García Linera, vice-presidente, teriam se afastado muito do
pensamento indigenista ou indianista (ele fez uma
diferenciação entre esses termos que não entendi bem, mas
em outras palavras, os governantes estariam cada vez mais
afastados de suas bases indígenas e compromissos com a
Pachamama). É o poder, disse o senhor, estraga as pessoas.

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Evo teria incorporado certo desenvolvimentismo e se rendido


aos modelos internacionais.

Saímos da Praça Murillo e chegamos a um enorme


Mercado Popular, com várias e várias tendas. É como o
Mercadão de Madureira deles.

Tem um corredor só de livreiros. Parei em um deles,


com uma senhora muito simpática, que me conseguiu mais
livros de Reinaga, além de vários outros falando sobre o
processo e a história do país. Até um dicionário aymará-
castellano, eu comprei. Quero muito aprender essa língua e
mergulhar de cabeça nessas tradições indígenas e contribuir
para as discussões sobre o Estado, a economia, entre tantos
outros temas tão caros a nós e importantes para refletirmos
sobre o milênio que se inicia.

Na Catedral San Joaquin, já bem pertinho do nosso


hotel, estava tendo um ato de portadores de necessidades
especiais que estavam em marcha pelo país, exigindo que se
cumprisse um artigo da Constituição que lhes dava direitos ao
trabalho e melhores condições de vida. Fizemos uma
contribuição.

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Compramos depois um vinhozinho e umas cervejas,


voltamos para o hotel, nos arrumamos e saímos para jantar na
mesma pizzaria artesanal da noite passada.

Estávamos cansados e a senhora era tão, tão,


simpática e a comida era tão, tão boa e barata que preferimos
não arriscar outro lugar.

Mochileiros e viajantes de plantão fica a dica, a pizza e


massa da Dona Charo é imperdível! Fica na Rua Sacárgana,
dentro de uma galeria em frente ao Hotel Sacargana.

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O dinheiro está acabando. Para comprar tudo que


ainda quero, é provável que não façamos o passeio para o
Chacaltaya, até mesmo porque nem temos roupas para
encarar tanta neve. Teríamos que comprar, o que seria mais
um gasto que não queremos ter.

Já vimos muitas belezas naturais e há muito em La Paz


para fazer ainda. Muitos museus, compras e ruas para circular.
Além do mais, é sempre importante deixar algumas coisas
para se fazer para voltarmos um dia. Eu com certeza voltarei
para fazer minha pesquisa e penso que Hugo também gostaria
de voltar para me ajudar a fazer um documentário sobre tudo
isso. Não faltarão oportunidades, portanto, para terminarmos
de fazer o que falta. Sonhamos com um dia voltar e dormir na
Isla do Sol e acordar no Templo do Sol. Deve ser uma
experiência incrível.

Muitas coisas aconteceram por aqui que são difíceis


de explicar e nem tudo temos condições de compartilhar. Mas
esta terra, pessoal, é santa. Sem dúvida, voltaremos para o
Brasil, novas pessoas, novos seres humanos. Uma experiência
existencial que todos deveriam fazer uma vez na vida. É nosso
país vizinho, é barato e é incrível mesmo. Fica a dica para
vocês.

Saludos.

***

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Museus, museus, museus e... (05/01)

Dia 5 de janeiro de 2012

Mais um dia por las calles de La Paz. Sem dúvida, é


uma cidade muito bonita. Como não fomos fazer o passeio ao
Chacaltaya e ao Vale de la Luna, aproveitamos o dia para
terminarmos de comprar o que faltava na Calle de la Brujas e
conhecer uns museus da capital.

Antes de encarar o desafio, me aventurei no famoso


API, uma bebida feita de milho negro. Já tinha visto isso em
vários lugares, inclusive, em Cochabamba, mas nunca me
arrisquei. Porém, como já estava melhor das intempéries
estomacais, pensei que não poderia sair daqui sem provar a
tradicional bebida. PUTZ! Infeliz ideia... o negócio é MUITO
RUIM. Tem cor de açaí, um cheiro esquisito, meio doce. Sei lá,
só sei que não gostei, mas para não fazer desfeita ao gentil
senhor do lugar que compramos, me obriguei a tomar pelo
menos metade. ARGH!! Boa sorte aos que se aventurarão no
API quando vierem aqui...

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Depois fomos comprar... nossas alianças. Queria


aproveitar a oportunidade de estar na terra da prata (e do
ouro também), para comprar umas que tivessem a ver
conosco. Na verdade, acho que foram as alianças que nos
encontraram. Em meio a zilhões de anéis de prata e de tudo, a
zilhões de tendas, vimos uma que nos apaixonamos na hora.
De prata, revestida por ouro 18k. Foi uma tortura conseguir
achar uma do tamanho do nosso dedo. A pobre senhora da
tenda, fez o possível e o impossível para encontrar. No final,
deu certo. Aí está.

A aliança possui a Cruz Andina, também conhecida


como Chakana (em quéchua significa “escadas”, no caso,
“quatro escadas”). É um símbolo originário dos povos
indígenas dos Andes. É uma cruz milenar, utilizada como
símbolo pelos tiwanacu (falarei um pouco sobre eles mais a
frente) e outros povos dos Andes (a cruz já apareceu em
vestígios arqueológicos de povos do Equador, Chile,
Argentina), além dos próprios Incas. O vestígio mais antigo
data de 4.000 a 5.000 anos.

Segundo o que pesquisamos, o símbolo é uma


referência ao Sol e ao Cruzeiro do Sul. Trata-se de um esforço
de levar o céu à terra e a terra ao céu. Suas pontas sugerem
umas escadas que te levam ao ponto mais elevado; teriam um
sentido também de união entre opostos, o baixo e o alto, a
terra e o sol, o homem e a mulher, o humano e o universo.

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Cumprida a missão, fomos a Calle Jaen, onde há uma


concentração de uns quatro museus. Depois de percorrer as
calles de La Paz, nos deparamos com o primeiro museu,
Museu de Instrumentos Musicais. O Hugo ficou louco. O
museu percorre a história dos instrumentos andinos desde
tempos pré-colombianos até a atualidade. Em várias ocasiões,
podemos tocar os instrumentos mais diferentes. Cada sala é
climatizada com o som derivado de um tipo de instrumento:
cordas, sopro, tambores etc. Hugo parecia uma criança em
meio a toda aquela história da música. Muito lindo e
incrivelmente bom o museu.

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Depois, continuamos pela Calle Jaén, uma rua colonial


de pedras, restaurada, muito bonita. Existem mais quatro
museus, além dos que visitamos, que você compra um ticket
que vale para todos.

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Começamos pelo Museu de Etnografia ou Museu


Costumbrista “Juan de Vargas”, onde podemos ver um pouco
da história da Bolívia, roupas que eram utilizadas, episódios
históricos marcantes em maquete, com destaque para as lutas
anticoloniais no século XIX. No centro, havia uma enorme
maquete representando a morte de Tupac Katari, um grande
líder indígena que levantou um exército contra os espanhóis.
Teria sido inspirado pelo legado de Tupac Amaru, mais
conhecidos por nós, do Peru. O katarismo se converteu em
um movimento indígena muito forte aqui na Bolívia e até hoje
se mantém vivo. Mas isso é outra história.

Outro destaque é para a história das Cholas Paceñas


(isto é, de La Paz), minhas índias. Uma parte do museu é
destinada à história desses trajes tão típicos utilizados pelas

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mulheres bolivianas. As cholas eram mestiças ou indígenas


que vinham para as cidades e conseguiam juntar alguma
riqueza. Eram vistas com preconceito pela elite branca, mas
conquistaram alguma ascensão social. Depois de uma revolta
indígena em fins do século XVIII, o Império Espanhol obrigou
que as mulheres utilizassem essas saias, o jalequinho e o
chapeuzinho equilibrado na cabeça. A medida foi apropriada e
retraduzida pelas índias que transformaram os trajes em um
símbolo de resistência e ofensiva (porque não se trata apenas
de “resistir”, mas se afirmar também) cultural.

Depois fomos a um Museu destinado exclusivamente


ao “litoral boliviano” perdido para o Chile, na Guerra do
Pacífico entre 1879 e 1883. Para a Bolívia, até hoje, é uma
questão nacional, prevista na Constituição, a recuperação da

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saída para o mar, o que se traduz em uma permanente tensão


com o país vizinho.

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Fomos também a um Museu de Pedras Preciosas onde


podemos ver um pouco da história dos povos pré-
colombianos da Bolívia. Muito antes dos Incas, habitaram
neste território, na Bolívia, a civilização Tiwanaco. Uma
civilização milenar que esteve por aqui desde os anos 500 a.C.
até o século XII, mais ou menos. Esse povo não deixou
linguagem escrita de legado, apenas cerâmica, ouro, prata,
tecidos e outros vestígios. O nome foi dado pelos aymarás, ao
que consideravam como o “povo do meio”. O estilo da arte é
o maior legado deixado por este povo. Há um sítio
arqueológico incrível aqui em La Paz, onde podemos ver
algumas estruturas encontradas por arqueólogos, inclusive, o
“portal do sol”, presente em muitos artesanatos locais.

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Por fim, fomos à Casa de Murillo, líder criollo


considerado precursor da independência da Bolívia.

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Visitados todos os museus, nos sentamos num Café


para tomar um café artesanal dos arredores de La Paz. O pó
poderia até ser bom, mas infelizmente, os bolivianos aqui não
bebem café, mas sim, CHAFÉ, de tão aguado que é... Que
saudade do meu café brasileño.

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Caminhamos de volta para o Hotel, mas antes,


voltamos ao “Mercadão de Madureira” e pude conferir mais
livros. Infelizmente, não temos mais dinheiro e não pude
comprar todos que queria. Confesso que sofro de certo
fetichismo com os livros, quero comprar tudo e todos. Hugo
que segura minha bola. O bom é que depois não fico
arrependida de ter gastado muito...

Já eram umas 19h, voltamos para o quarto,


arrumamos as coisas, pois amanhã é dia de partir. Quando nos
demos conta, já passavam das 22h e ainda tínhamos que
comer. Sem dinheiro e tarde do jeito que era, não resistimos e
voltamos à MARAVILHOSA PIZZARIA DA CHARO. Desta vez,
comi uma massa a carbonara, buenissima. Tomamos um vinho
e fechamos nossa última noite em La Paz.

***

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A Partida (06-07/01)

Dias 06 e 07 de janeiro de 2012

Último dia de aventura. É, como diria o poeta, "foi


bom enquanto durou". Nossa diária terminava às 12h e
tínhamos a esperança do hotel não nos cobrar pelo último dia.
Porém, isso não aconteceu. Tentamos negociar um desconto
para o último dia com base num caderno de descontos que o
Hugo encontrou em algum hostal aí da vida. Conseguimos
15%, o que foi bom.

Deixamos nossas mochilas no depósito do hotel e


fomos a Plaza de los Estudiantes, onde soube que havia boas
livrarias.

Ainda tinham uns livros sobre a Revolução


Nacionalista de 1952 que eu gostaria de comprar.
Infelizmente, já não nos sobrava muito dinheiro. Chegamos a
apelar, inclusive, para os R$70 que eu tinha na carteira para
conseguir uns bolivianos extras. Muy bien, a tal Plaza é mais
longe de onde estávamos, então, pegamos as famosas

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"minivans" que atuam paralelamente às "camiñonetas" no


transporte coletivo.

Chegamos a Plaza e as livrarias que haviam me


indicado estavam fechadas, mas encontramos outras por
sorte. Minha vontade era levar mais uma dezena de livros,
estava disposta até a passar no cartão, mas o Hugo me trouxe
de volta a Terra e eu fui mais comedida.

Encontramos umas duas livrarias muito boas e comprei mais


uns livrinhos. Coisa pouca...

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Comemos mais uma vez nesses fast foods bolivianos e


ficamos a caminhar pela área próxima a Plaza. Tentamos ir ao
Museu Arqueológico de Tiwanaco (mas estava fechado para
restauração), vimos o tal do Parque da Cidade (horroroso!!!!),
o campus central da UMSA (Universidad Mayor de San Andrés)
e tentamos ir também na Cinemateca (e ver se conseguia
comprar uns filmes do Jorge Sanjinés), porém, também estava
fechada. No caminho para a Cinemateca, nos deparamos com
a Embaixada do Brasil, um suntuoso prédio. Hugo não resistiu
e foi abraçar o símbolo do nosso país e eu consegui tirar a foto
antes que o segurança nos expulsasse de lá.

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O tempo começou a fechar e a ameaça de chuva se


converteu em realidade. Voltamos para nossa área e, sem
dinheiro, não tínhamos mais o que fazer. Já havíamos andado
por tudo e não dava mais para comprar nada. Quer dizer,
ainda comprei umas hojitas de coca para tentar levar para o
Brasil e uns últimos regalitos.

Faltavam ainda 2h para irmos ao Aeroporto Internacional de El


Alto. Voltamos para o hotel e escrevi um pouco no lobby.
Depois disso, foi maratona total. Ficamos umas 2h em El Alto
esperando nosso voo para Santa Cruz (fazia muito frio nos pés
de Chacaltaya, a 4.058 m de altitude, e os céus nos brindava
com uma incrível lua). Chegando a Santa Cruz, ficamos mais
5h esperando nosso voo para São Paulo (o clima já estava
mais ameno); chegamos em São Paulo (com SOL!!) e estamos
aqui, esperando mais umas 5h para pegar nosso último e tão
esperado voo para o Rio de Janeiro.

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Escrevo essas últimas palavras em Guarulhos, com o


coração batendo forte, me lembrando de toda a estrada que
percorremos até aqui. A Bolívia é realmente um país
sensacional. Tivemos a oportunidade de ver de perto suas
belezas naturais mais incríveis, mas, sobretudo, gostaria de
destacar a força cultural desse povo. Minhas índias, que para
sempre ficarão em minha memória. O processo, o Estado
Plurinacional, o Governo Evo Morales, suas contradições e
avanços, são temas realmente muito interessantes e só
vieram a ratificar meu profundo desejo de estudar este país e
seu povo.

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No avião a caminho de Santa Cruz, conheci Eduardo,


um tecnocrata do Estado Boliviano que atua na área de
tributação. Conversamos um bocado sobre os desafios
colocados ao levar à prática o Estado Plurinacional e acabou
que ele se tornou um bom contato com movimentos sociais
na Bolívia. No pouco que conversamos, deu várias dicas sobre
as dificuldades que enfrenta para "entrar" no mundo dos
indígenas. Como é difícil, como são fechados, como temos que
nos comportar, como é importante aprender a língua,
respeitar as lideranças, sobretudo os anciãos, enfim, várias

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coisas que, seguramente, serão fundamentais para o


desenvolvimento da pesquisa.

Eu estava decidida a aprender aymará, comprei até


um dicionário, mas ele disse que o ideal é aprender quéchua
primeiro, pois é mais fácil. O aymará é muito difícil e, às vezes,
uma pronúncia diferente pode levar a equívocos
comprometedores.

Voltamos para o Brasil energizados. Temos certeza


que evoluímos muito nesse percurso. Sair da nossa bolha e
olhar para o nosso país, nossos costumes de fora, é um
aprendizado sobre nós mesmos também. Quanto mais
contrastante é uma cultura, mais aprendemos sobre nós
mesmos e nossas capacidades e potencialidades de
transformação.

Aprendi muito, amei muito, vivi muito este país no


pouco tempo que passamos. Foram duas semanas intensas
que jamais nos esqueceremos.

Agora é voltar para o Brasil, começar a ler essa


tonelada de livros que eu comprei, começar a desenhar meu
projeto de doutorado e tentar ainda este ano ou no próximo.

Nas horas de ócio de aeroporto, comecei a ler Wankar


Reynaga. É vergonhoso que nunca tenha ouvido falar dele.
Trata-se, nada mais nada menos, do que um dos mais
importantes porta-vozes do movimento indígena aymará-
quechua-guarani no mundo. Este livro, Tawa Inti Suyu, foi
traduzido em várias línguas e é um dos mais importantes
manifestos em favor da luta pela libertação indígena, em que
é apresentada toda uma nova cosmovisão do universo, da
humanidade, da relação do homem com a natureza. É

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realmente muito rico e acho que temos muito o que aprender


com esse povo.

Vamos ver.

***

Tá bom, eu sei, eu sou uma apaixonada... Mas o que


fazer? Está no meu DNA. Eu realmente SOU uma apaixonada
por esse continente que tanto quero esmiuçar. E, não, isso
não necessariamente compromete minha prática de
historiadora. Acho, sim, que o mundo acadêmico precisa um
pouco mais disso: paixão. Não se trata de uma paixão que
cega, mas uma paixão que move, que instiga. Eu sou movida
por essa paixão e espero que ela jamais se apague do meu
peito. Ao contrário, que sempre se renove para enfrentar
novos desafios.

Termino esse diário como comecei, seguindo uma


concepção de que o tempo é cíclico, que se renova, mas que,
no final, acabamos voltando sempre ao lugar de onde
começamos:

Bolívia, aí vou eu...

***

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