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Dr.

José Júlio de Freitas Coutinho

DE UBERABA A
CUIABÁ
Impressões de viagem

A edição que precede esta, foi impressa


nas colunas do jornal cuiabano “O Debate”
no mês de janeiro de 1913,

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que a reproduziu das colunas
do “Jornal do Brasil”.

UBERABA, PRINCESA DO SERTÃO


Uberaba, denominada a Princesa do Sertão, é uma das
cidades mais prósperas e importantes de Minas.
Está assentada elegantemente numa depressão, em forma
de enorme bacia, do planalto, como esses muitos que se
encontram pelos sertões de Minas, extensos campos naturais,
formando nos cimos das serras planícies de algumas léguas
quadradas de superfície.
Suponha o leitor uma planície lá no alto de uma serra;
cabe aí uma bacia de uma légua quadrada, não perfeitamente
lisa, mas descendo para o centro em cinco colinas separadas
umas das outras por sussurrantes ribeiros, coloque em
abundância, mangueiras, jabuticabeiras e bananeiras por entre 2
mil prédios, bem espalhados e quase encobrindo-os, e terá assim
uma ideia da cidade, cujo aspecto, como se vê, é bem diferente
de qualquer outra, principalmente marítima.
A população é de 10 mil habitantes, não sendo elevado o
número dos analfabetos, pois há perto de 2 mil crianças
frequentando as escolas públicas ou particulares.
Possui a cidade três importantes estabelecimentos de
instrução, cada um com perto do 500 alunos: o Colégio de
Nossa Senhora das Dores, dirigido pelas Irmãs Dominicanas e
que está equiparado às Escolas Normais; o Colégio do Sagrado
Coração, aos cuidados dos Irmãos Maristas, com diversos cursos

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complementares para admissão nas escolas superiores e mais
outro curso comercial e um Grupo Escolar.
Todos funcionam em vastos prédios, especialmente
construídos para o fim a que se destinam.
Há três grandes casas comerciais com movimento superior
a mil contos e muitas outras menores: dois jornais — “Gazeta
de Uberaba”, diário e “Lavoura e Comércio”, bi semanário,
além de dois jornaizinhos humorísticos — “O Sorriso” e a
“Violeta”. Conta ainda a cidade uma fábrica de tecidos, outra do
chapéus, algumas de cerveja, de sabão, diversas selarias, um
teatro, dois cinemas, farmácias, cafés e confeitarias. Tem
diversos templos, entre os quais a elegante Catedral e a
imponente Igreja de São Domingos, a qual, um vez terminada,
será uma das primeiras de Minas.
A cidade é servida pela Estrada de Ferro Goiás até Araxá
e o ramal da mesma Mogiana até Igarapava, o qual reduzirá a
viagem para São Paulo a um dia, sendo que brevemente será
construída uma outra estrada de ferro, ligando Uberaba a Vila
Platina e talvez à Estrada de Ferro Noroeste.
O povo é bastante hospitaleiro, respeitador da lei, havendo
perfeita garantia para os direitos dos cidadãos.
Enfim, é uma cidade de grande futuro que atualmente já
faz sentir sua influência num raio de centenas de léguas,
abrangendo uma grande extensão de Minas, Goiás, Mato Grosso
e S. Paulo.

COM DESTINO A SÃO PAULO,


20 DE JULHO DE 1912.
Saímos às 6 horas da manhã, num belo sábado de 20 de
julho último. Apesar do frio intenso, muitos amigos estavam na
Estação, tornando mais pungentes as saudades de uma boa e

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salubérrima terra, onde havíamos permanecido por espaço de
cinco anos.
O trem corria pelos campos e em poucas horas
atravessamos o Rio Grande, limite entre Minas e São Paulo,
passando sobre a importante ponte de Jaguará.
Às 5 horas chegávamos a Ribeirão Preto, onde nos
fizemos transportar em automóvel para o Hotel Central, o
melhor da cidade.
Ribeirão Preto é uma linda cidade, com praças ajardinadas
e ruas limpas, macadamizadas e arborizadas. Tem importantes
prédios entre os quais a Catedral, o Teatro, a fábrica de cerveja
Bavária, etc.
Deixamos essa cidade no dia seguinte, às 7:30 da manhã,
embarcando no rápido paulista. Passamos por Campinas, onde
tivemos de fazer baldeação do trem da Mogiana para os
luxuosos carros da Estrada de Ferro Paulista, e às 6 horas da
tarde estávamos em São Paulo, onde desembarcamos na
belíssima Estação da Luz.
Uma passagem de 1ª de Uberaba a Ribeirão Preto custa
perto de 30$000 (trinta contos de réis) e outro tanto de Ribeirão
Preto a São Paulo. Daí ao Rio paga-se na Central, também de
1.ª, 29$500 (vinte e nove contos e quinhentos réis).
Após dois dias de descanso em São Paulo, continuamos a
viagem.
Tive de despachar de novo a bagagem para o Rio, pagando
na Central 30$ (trinta contos de réis), quando de Uberaba a São
Paulo havia pago 40$ (quarenta contos de réis). Aconselhado
por um amigo, comprei cedo, às 9 horas da manhã, passagens
para mim e minha família pelo noturno de luxo, o qual devia
sair às 9 horas. Como precisávamos de 5 passagens, isto é, 3
inteiras e 4 meias, consegui uma cabine, a qual tem um sofá
(para 3 pessoas) e duas poltronas. O carregador informou-me

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que poderíamos levar as malas de mão, porém, na hora da
partida embora as ditas malas pudessem ir muito bem na —
cabine, — contudo, o chefe do trem exigiu que fossem para o
carro de bagagem, o que me custou no Rio mais l0$000 (10
contos de réis).

COM DESTNO AO RIO DE JANEIRO


Com muita dificuldade conseguimos que nos mostrassem
a nossa — cabine — e quando afinal íamos entrar nos nossos
domínios, tivemos a concorrência de um casal que também tinha
obtido 2 lugares na referida cabine. Conferimos os nossos
bilhetes e com espanto verificamos que tinha havido duplicata.
Fomos ao chefe do trem ao qual fiz ver que havia eu comprado
todos os cinco lugares da cabine e à vista das minhas razões, foi
o casal, apesar dos veementes protestos da senhora, acomodado
em outro compartimento.
E seguimos viagem para pouco adiante pararmos e ficarmos
mais de 4 horas á espera de um especial que estava impedindo a
linha, conforme nos informou o criado do nocturno.
Mas qual especial ! a cousa era outra, segundo nos contaram
depois; o nocturno, som ser de luxo, que sahira uma ou duas
horas antes de nó:., havia-se chocado com um especial.
Em fim continuamos, a viagem e pudemos mais adiante
contemplar o triste espectáculo de alguns carros em parte espe-
daçudos, montes de bagagem e saccos do Correio, sobre os
quaes ainda estavam alguns feridos.
E seguimos avante, a família apavorada, na possibilidade de
novos desastres, sem pensar nos responsáveis e sim unicamente
na conservado da própria peite.
Chegámos ao Rio quasi á 1 hora da tarde, sem almoço, pois
o trem não quiz atra- zar-se mas uns 20 minutos em qualquer
estação onde os passageiros pudessem comer qualquer cousa,

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No hotel da Estação da Barra do Pirahy uão quizeram vender-
nos pasteis a dinheiro á vista, allegando o hoteleiro que se
destinavam a outros passageiros.
Na gare da Central esperavamos alguns parentes, uma irmã e
um irmão de minha mulher. Um outro irmão antigamente muito
extremoso, mas hoje rico o deputado dautista, ape//ir de avisado,
não se dignou de arparecer, nem nos visitou, de modo que
estivemos na Capital Federal e de lá partimos sem lograrmos o
prazer de vel-o. Como se transformara aquelles que a fortuna
bafeja!
Na Capital Federal, estivemos perto de 14 dias e no dia 7 do
corrente tomámos passagem a bordo do paquete Acre, do Lloyd
Brasileiro.
É um paquete moderno, tendo no centro as accommodaçõôs
para passageiros de l.a classe.
Possue 24 camarotes de 1.a classe com todo o conforto.
É conuuandado pelo Sr. Reis Junior, ura cavalheiro correcto
e affavel como em geral todo o pessoal de bordo, no que sob
esse ponto de vista leva o paquete vantagens aos estrangeiros.
Notei mesmo que o pessoal de bordo tem amor ás crianças, o
que é um indicio de alma boa e nobre, sendo adiuiravel a sua
paciência e soo desce ndeaeia com as travessuras da criançada.
Vô-se, pois, que as famílias brasileiras não podem desejar
melhor navio para as suas viagens.
Uma passagem para Cuyabá, capital de Matto Grosso, custa
4101 e a viagem dura de 24 a 28 dias.
O Lloyd hoje tem esse serviço normalizado o vende
passagens atie Cuyabá, garantindo ató lá a preferencia nos
vapores para os quaes 6 forçosa a baldeação. Às viagens são de
15 em 15 dias,
Vai-se directamente do Rio a Montevidóo en 4 dias. Dahi,
em outro vapor menor, vae-se em 12 dias até Corumbá, subindo

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o Rio da Prata, o Paraná e o Pa- raguay, atravessando-se assim
grande parte du Argentina e do Paraguay. De Corumbá a
Cuyabá. segue-se em outro paquete menor, o qual gasta de 6 a 9
dias, subindo os rios Paraguay, S. Lourenço e Cuyabá. Na secca
ba baldeação, a 2 dias da capital, para a lancha ’’Orvalho" e a
inseparável chata que vai a seu lado.
Tomei passagem para mim e a família cora alguma
antecedencia no escriptorio do Lloyd, sito á Avenida Central.
O empregado que estava encarregado desse serviço attendeu
me com presteza e solicitude, mas euganou-se no numero dos
camarotes, dando-me dou a separados em vez de dons no
mesmo corredor, frente a frente, mas o attenoioso commissariò
do Acre remediou o inconveniente.
O Acre devia sahir no dia 7 de agosto ao meio-dia, No cais
alguém me disse que o paquete sahiria mais tarde, porém o
catraeiro logo protestou que as cousas estavam mudadas e que
havia agora oportunidade.
E, como de facto, ao meio-d'a em ponto via-se o belo navio e
uma hora depois transpúnhamos a imponente barra da
heroica cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro.
Que belo espectáculo! Mas tem sido Untas vezes descripto,
que seria ocioso repetir.
Em pouco tempo poz-se o vapor a jogar e os passageiros,
aliás bem poucos, recolheram-se em parte aos seus beliches
inclusive as 3 famílias, únicas a bordo. E o terrível enjoo
dominou alguns seres que untes, satisfeitos, contemplavam o
ma- gestoso panorama da cidade e minutos antes cora bom
apetite tinham tomado parte no Innch ou refeição de uma hora
da tarde. Eu também tome! parte era todas as refeições, embora
tivesse outra3 tantas vezes do esvasiar o estomago, pondo carga
ao mar, como se diz na pitoresca linguagem marítima.

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COM DESTINO AO URUGUAI,
10 DE AGOSTO DE 1912
Temos feito até hoje, dia 10, viagem sem incidente algum.
Ontem já as famílias apareceram no salão e minhas filhas
tocaram ao piano algumas peças de cor.
Ainda ontem, ali pela manhã, apareceram à vista alguns
botos acompanhando o paquete e meus filhos muito se
divertiram com o novo espetáculo, como se estivessem vendo
palhaços de nova espécie a virar cambalhotas.
De minha família somente não enjoaram os dois filhos
menores, ambos mineiros, um de 7 e o outro de 2 anos. As três
meninas, todas filhas do Recife, ficaram uns dias no beliche. A
criada, uma crioula agigantada de Uberaba, até hoje, ainda não
se acostumou com as oscilações do navio.
O frio principia a fazer-se sentir e dizem que em
Montevidéu e Argentina teremos alguns graus abaixo de zero.
Acabei da me barbear na barbearia de bordo, pois estamos
num sábado e amanhã domingo chegaremos a Montevidéu
Bordo do Acre, 10-8-912.

MONTEVIDÉU, 13 DE AGOSTO DE 1912.


Ante-hontem esteve o ’’Acre’5parado desde 9 1\2 horas da
noite por causa da cerração. Esseacto dn louvável prudência do
commandante Reis Junior foi muito elogiado pelos passageiros,
pois causou boa im- pressáo. Devíamos nos achar na altura do
cabo Polonio, logar sinistro na chronica dos
naufrágios; mas o pharol não nos podia dar um arzinho de sua
graça. Afinal» alli pelas 3 horas da madrugada ouvi o ruido cie
levantar ferro. Pulei do beliuho c olhei pela vigia: o mar e9lava
sereno e ao lon- ge brilhava, como uma' alegre esperança, o
pharol do cabo Polonio. E o ’’Acre” gar- bosumente se movia;
as suas possantes maehinas em pouco alcançavam 12 a 13

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militas por hora, mas breve começou a soprar o vento forte
destas paragens, batendo era cheio pela direita, frio e cortante, e
do qual dizem os gaúchos, pilhereandc com.os nortistas em
geral: o Minuano faz tremer Bahiano.
0 Rio da Prata, que c mais propriamente um golfo onde
desaguam o Paraná e o Uruguay, parecia nos receber com
hostilidade. 0 paquete jogava bastante o vários pasageiros
tornaram a enjoar O dia pro- metlia ser bei lo; entretanto, a
cerração ainda nos envolveu por instautes forçando o ’’Acre” a
apitar de instante a inslante afim de avisar algutn de sua especie
q ie por acaso viesse em. sentido contrario.
Felizmente o Minuano que nos trespassava de frio e
transformava em chuva as vagas que batiam no costado do
paquete, tocou para longe a cerração e o sol em fim brilhou no
azul esbranquiçado dos céos.
Os passageiros appareciam no tombadilho e discutiam o
acontecimento. Um disse que se mostrou alarmado quando o pa-
quete pnrou e fez estrondosamente descer a ancora, depois de
haver o com mandante com a sonda verificado que podia
ancorar; outro declarava que segundo lera nos jornaes, esperava-
se uma grande tempestade, daquellas terríveis de Agosto, no dia
seguinte, mas que podia vir antes ou depois G então o Rio da
Prata se agitaria raivoso e terrível em seu leito pouco profundo
Os officiaes de bordo não davam esperança de so chegar a
tempo de so ancorar no porto de Montevideo; leriamos de ficar
fóra da barra, expostos á perigosa tempestade ? Emfim seria o
que Deus quizesse,
Passamos cm frente ao pharol Santa Maria ou João Jgnacio,
depois avistamos o de Maldonado e depois seguíamos avistando
á direita a ilha dos Lobos. Disse- nos um passageiro que dahi a
Montevidéo a distancia era de 66 milhas e que portanto
podíamos chegar áqucüe porto ás 4 horas da tarde. Esse calculo

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foi confirmado pelo itu mediato Caetano Pinho Leão, um joven
paraense possuindo todas as qualidades de homem de mar,
affavel, corajoso e calmo, sempre preoecupado com o fiel
cumprimento dos seus deveres.
E realmente ás 3 horas approx ima vase o "Acre” da ilha das
Flores e pouco depois avistavamos a cidade de Monte vidéo,
graciosamente estendendo-se pela sua bahia e elevando-se um
pouco do littoral para o interior, eomo quo para melhor nos
mostrar suas bellezas e prolongando-se além da bahia pel.i costa
como a nossa Copacabana. 0 ’’Acre” seguia em direcção Ú
entrada, onde eriste de cada lado uma miralha, ura quebra-mar,
construído especial meu te para fechar mais o porto e tornal-o
mais abrigado. À’ direita via se a fortaleza do Cerro, dominando
todo o porto de sobre o euine ligeiramente afunilado de uma
verdejante collina, ao sepó da qua! a casaria se aperta e sc
reflecte socegada sobre as aguas da linda bahia, como que
aconchegada á sombra dos poderosos canhões,
A’s 5 1|2 parava o ”Acrc” em frente á bahia para receber um
pratico, um louro e robusto hespanhol, amavel c iutelligente.,
cooi quem á noite e mais outro passageiro, discutimos durante
algumas horas, no salão, acerca das diversas religiões, emquanto
ao longe brilhavam as luzes da cidade.
Ancorou o ”Acre” no porto e já ahi estava o ’’Mercedes”
que nos devia transportar pelo rio Paraná acima e pelo Paraguay
atè Corumbá.
A visita da Saude e a da Alfandega não vieram o assim
somente no dia seguinte, 12, poderiamos desembarcar.
Fazia uma bella noite, mais o frio não
era tanto como se dizia no Rio de Janeiro; tínhamos uma
temperatura de 8 a 1 o graus acima de zero e não os 4 abaixo cie
zero.
A ciciado que tanto desejavamos visitar vimnos de longe.

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0 dia 12, uma segunda feira, raiou lindo, com um bello sol.
A visita appareceu alli pelas 8 horas, como se tivesse
aecordado após», uma noite bem dormida sob grossos e
assetinados cobertores, com colchões e travesseiros de macún
penoas.
Ainda tínhamos de esperar a lancha que nos transbordasse
para o ’’Mercedes”. Almoçamos, prepnratno-nos ‘todos, revis-
tando bem os camarotes, para não esquecer algun objecto.
embora a maxima confiança que mereciam todes os' criados de
bordo.
Despedi-me do pessoal do bordo, digno em geral de todos os
elogios pela sua correeção e maneira amavel e attenciosa de
tratar os passageiros.
Devo consignar aqui o comissário, o dispensei ro, a criada e
o criado de quarto, este um moço de bom caracter, bem com -
povlado, filho de boa família e que, quando estudante, conheci
no Recife.
Não do vo olvidar o medico de bordo, o Dr. Octavio Torres,
um sympathko e af- favcl Bahiano, sempre prompto a attender
os passageiros e com quem passei horas de agraclavel palestra.
V uma hora da tarde estava mos no ’’Mercedes'1’, pa .^uet^
com boas acconimo- dações e onde me destinaram para minha
família um salão com quatro camas o dons . lavatórios. , .
Tem trinta e tantos camarotes de 1.“ classe e um bom salão
de jautar, com plano para, em caso do necessidade, sc
transformar em salão do recreio Está sob os cuidados do com
mandante Mattos.
Aceommoda toda a bagagem, fui com as crianças dar um
passeio á cidade. Poucos botes'a remos e diversos barcos á
çrazolina. ou barcos-auto moveis.
Alguns barqueiros pediam um peso. ida e volta, isto ó,
3$50Q, moeda brazi- leira.

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Contratei o meu transporto, idae volta, e de mais seis
crianças, quatro minhas c duas de um outro passageiro, por dous
pesos e meio, fóra a necessária gorgeta. Saltamos oa*’Mucile
A”, e por segurança, deixei o pagamento para a volta, que seria
ás 4 ou 4 112.
É bem espaçosa c limpa, calçada a parailelipipcdos essa
’’Muelle”. Não vimos nenhum carro; provavelmente os cochei-
ros estariam almoçando com bom appetite.
Passamos tendo o grande edifício da Alfândega à
esquerda, atravessamos por entre volumes e saímos em um
portão que dava para a rua, por onde transitam os bonds. Nessa
altura nos encontramos com o médico de bordo, o qual se
prestou a nos dar algumas informações: todos os bonds, de 50
para cima, menos 53, passavam na rua principal, calle 18 de
Julho.
Tomamos um bond e as crianças alegremente, fazendo
comentários, se se acomodaram. Os bonds são todos fechados e
envidraçados; entra-se pela parte de trás, havendo passagem no
centro por entre os bancos, dispostos de dois em dois e com dois
lugares cada um. Os passageiros dissimuladamente repararam,
divertidos, no alvoroço da criançada. Dei meio peso e o
condutor me voltou o troco: penso que joguei uns 20 cêntimos
ou 700 reis. Seguimos por diversas ruas, quase todas calçadas a
paralelepípedos, mais ou menos largas e em pouco o condutor
me avisava que nos achávamos na calle 18 de Julho.
Desembarcamos e passeamos um pouco, vendo as belas vitrines
das casas comerciais.
É uma avenida menor e menos larga que a nossa carioca
do Rio Branco; com prédios em geral só de um andar, mas
limpa e de belo aspecto. As lojas são muito bem arranjadas. Nos
mostruários os preços marcados, regulando os mesmos das
mercadorias no Rio, sendo alguns artigos mais baratos.

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Entramos em uma confeitaria; mandei servir doces à criançada.
Depois perguntei à caixeira, uma senhora quarentona, robusta e
corada como uma romã, se havia chocolate ou cacau.
— Como no? respondeu ela. E depois de alguma demora
vieram seis xícaras de chocolate. Quanto a mim tomei meia
garrafa de cerveja clara, da terra, bem boa aliás. Paguei por tudo
dois pesos e 30 centavos ou 8$000 (oito contos de réis).
Saímos observando vitrines e transeuntes.
As senhoras trajam-se bem. Andam com uma certa
gravidade. São em geral bem parecidas, fortes e coradas. As
senhoritas, também coradas sem artificio, são distintas e gentis.
Usam muito capas e vestidos de veludo.
As crianças se admiraram do que as crianças de
Montevidéu, mesmo as de um ou dois anos, usassem luvas.
No fim da avenida, em uma pequena, praça, estacionavam
automóveis. Minhas filhinhas quiseram um auto. Perguntei o
preço por hora e o “chauffeur” me disse que o táxi só trabalhava
por quilômetro, à razão de 20 centavos. Tomamos o auto e
mandei tocar para a Repartição dos Correios.
Pus na caixa, ao lado direito as cartas e cartões ilustrados,
franqueados com selos que um vendedor de cartões e jornais me
vendera a bordo. Quis franquear um manuscrito, mas só havia
sobrecartas de 20 centavos para cartas registradas. Pedi uma e
me indicaram onde podia escrever o sobrescrito. Cinco lugares
apenas; um sem caneta, os demais tomados e com outras tantas
pessoas, homens e senhoras, à espera de sua vez, tal e qual como
no nosso Correio do Rio de Janeiro. O auto estava à espera e eu
não queria ter prejuízo. Fui a um empregado e lhe fiz ver que
estava com muita pressa mas ele me indicou o lugar donde eu
tinha vindo. Insisti e então o empregado chamou um menino,
que me pareceu um corretor ou zangão de Correios. O menino
me emprestou caneta e pena e me guiou até o despacho onde

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verificaram o peso. Daí fui à seção dos objetos recomendados,
onde tive de encher o certificado do registro. Entreguei o
manuscrito com o certificado ao empregado; este colou uma
etiqueta com o número, encheu um recibo e m’o entregou.
Achei o serviço mais rápido que o nosso.
Gratifiquei o útil menino com quatro centavos e voltei ao
auto.
Percorremos toda a cidade: a avenida Brasil, a avenida
Beira-Mar, o Prado com seus jardins, suas sombreadas alamedas
de eucaliptos. Vimos os palácios do Congresso, da
Universidade; a Catedral, etc. Os arrabaldes são muito
pitorescos, com belas e ricas vivendas.
Depois de uma hora e alguns minutos voltamos à calle 18
de Julho. Calculava eu ter gasto uns dois a três pesos, mas com
admiração minha o táxi marcava sete pesos e 20 centavos.
Quase duas libras esterlinas!
Paguei sem bufar, bem desconfiado de que me haviam de
qualquer modo logrado. E depois de mais um passeio pela
Avenida, bem movimentada nessa bela tarde, fomos tomar um
bond. Não distingui nenhum assinalamento de parada, pois
julguei que seria como antigamente no Rio. Mandei pois parar o
bond n. 52 e o motorneiro me fez sinal, sem me atender, que
fosse mais para diante ou mais para trás. Examinei esses dois
pontos e nada distingui, pelo que comprei um número da
“Razon” e perguntei ao pequeno vendedor onde se tomava o
bond. Disse-me que na esquina, à esquerda.
E assim foi. Tomamos outro, n. 52, com letreiro —
Aduana. Paguei 20 centavos ao todo e desembarcamos perto do
portão de que já falei.
Ao transpormos, veio logo ao nosso encontro o barqueiro
e seguimos todos para bordo do “Mercedes”, cuja partida estava
marcada para as 5 horas da tarde. Ao chegarmos soube que o

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paquete não sairia senão no dia seguinte, pois era forçoso
esperar o paquete “Sírio” que trazia muitos passageiros para o
“Mercedes”. O “Sírio” tinha saído do Rio em 2 do corrente
(agosto) com escalas. Quando paramos na altura do cabo
Polônio, a estação telegráfica do “Acre” assinalou a presença de
diversos paquetes, uns cinco, também parados por causa da
cerração e nesse número estava o “Sírio”, dentro da barra do Rio
Grande. E como falei em parada de bonds, devo lembrar um
incidente no Rio acontecido comigo.
Voltava eu ao Rio, minha terra natal após alguns anos de
ausência. Em frente ao Passeio Público pretendi tomar um bond
para o largo dos Leões; mas qual, os bonds embora com lugares
não atendiam ao meu sinal e os condutores me olhavam com ar
galhofeiro. Não perdi a calma: um carioca não se atrapalha. Fui
direto a um civil e lhe perguntei, por que razão os bondes não
paravam. E o correto e imperturbável mantenedor da ordem,
contendo um risinho zombeteiro, me respondeu:
— É porque o senhor está longe do poste com faixa
branca, ponto único de parada.
Há quatro dias que viajamos pelo rio Paraná acima.
Ainda me lembro, como se fosse hoje, da nossa partida de
Montevidéu. Devíamos sair no dia 12 segundo os cálculos e os
anúncios do Lloyd; mas o homem põe e Deus dispõe. A maldita
cerração tinha atrasado a viagem do “Sírio”, paquete que devia
trazer passageiros dos portos de escala. Só no dia 13, pelas 9
horas da manhã, foi que o “Sírio” penetrou no porto de
Montevidéu por uma das aberturas do quebra-mar, pois há uma
abertura para a entrada e outra para a saída das embarcações.
Esperava-se a bordo do “Mercedes” muitos passageiros
do “Sírio”. E de fato ali pelas 10 horas aproximava-se e atracava
no costado do “Mercedes” uma lancha com muitos novos

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passageiros e também muita bagagem e carga. Diversas famílias
de oficiais do Exército.
Fez-se o transbordo sem incidente e duas ou três horas
depois saímos barra afora e navegávamos pelo rio da Prata,
agora manso e sem o terrível vento Minuano.
O “Mercedes” é um vapor que tem uns 50 metros de
comprimento e uns 10 de largura, podendo carregar umas 500
toneladas. A sua marcha regular, andando dia e noite é de 50 a
52 léguas por dia de 24 horas, na subida porque na descida anda
muito mais, talvez mais umas quatro milhas por hora, 14 a 15
milhas.
Na proa ficam os camarotes de segunda classe e no porão
um só compartimento para os de terceira classe, sem separação
para os homens e mulheres.
Há em cima, da popa até perto da proa, 27 camarotes de
primeira classe, dispostos no centro e abrindo as portas para os
bordos, ficando um espaço de quase dois metros para passagem
em passeio. Há aí apenas para todos os passageiros de primeira
dois gabinetes de toilette, um para homens e outro para
senhoras; cada um possuindo conjuntamente privada e banheiro,
o que é um inconveniente porque quando alguém está muito à
vontade tomando o seu banho, há sempre outros a espera para
outro fim que nem sempre admite impunemente delongas.
Desses camarotes desce-se por uma escada para o salão de jantar
que toma uma boa parte da popa.
No mar seria péssimo esse salão de jantar, porque a popa é
a parte do navio mais sujeita aos balanços; mas no rio onde não
há balanços, onde ninguém enjoa, o salão assim na popa,
cercado de janelinhas bem próximas umas das outras é
excelente, porque é bem claro e bem ventilado.
Tem, o vapor, médico a bordo e também o prático do rio.

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A alimentação é regular, mas não se dá vinho nem leite,
mesmo aquele leite condensado a 600 reis a lata. Perguntei ao
mordomo como poderia então as crianças viajar e ele disse-me
que era ordem do Lloyd e quem quisesse comprasse mas, que ele
forneceria por sua conta o leite condensado que meu filhinho
precisasse, gentileza que agradeci, fazendo lhe sentir que não
compreendia essa economia do Lloyd, a respeito de um artigo de
primeira necessidade, não só para as crianças, como para as
pessoas fracas que não pudessem pelo seu estado de saúde
ingerir chá ou café.
Outra coisa que me chamou a atenção, foi o fato de fazer o
“Mercedes” e provavelmente todos os outros vapores, uma
longa viagem diretamente de Montevidéu a Asunción, capital do
Paraguai. Nem para o abastecimento de bordo se toca em
qualquer porto argentino! Parece-me isso um mau indício para a
apregoada união ou aproximação entre brasileiros e argentinos,
união e aproximação que só pode ser útil ao progresso das duas
nações Sul Americanas. E no entanto o Lloyd hoje pertence ao
Governo, o qual necessariamente não há de perder a menor
oportunidade de estreitar relações com a República vizinha
principalmente depois que teve a feliz inspiração de nomear o
ilustre Campos Sales, amigo da Argentina para nosso Ministro
em Buenos Aires. É preciso acabar essa grande obra de amizade
internacional; o Brasil, não é só o seu Governo, não é só a
diminuta parte de intelectuais bem intencionados e patriotas — é
a massa do povo que se deixa levar no ímpeto de sua simpatia
ou de sua antipatia. Faça-se o possível aqui e na Argentina para
que ambos os povos se conheçam melhor, se simpatizem e a paz
estará melhor garantida que nos melhores tratados
internacionais. Mas passarmos assim como vamos no
“Mercedes” sem tocar em nenhum porto da nação amiga, assim
como se antiga desconfiança perdurasse, mantendo-nos à

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distância, cada qual encolhendo os braços para não dar o aperto
amigável de mãos, isso não deve continuar.
Parece que a Argentina cobra muito para que um navio
brasileiro atraque em seus portos, parece não sei ao certo. E
como desejava eu apreciar o progresso de nossos irmãos do
Prata! Porque o progresso do vizinho, a sua prosperidade devem
ser para nós motivo de alegria e também de recíproco estímulo.
Os economistas, e entre eles há mais de cem anos Jean
Baptiste Say, já fizeram ver judiciosamente que uma nação nada
lucrará com a desgraça da nação vizinha e sim tudo terá a lucrar
com o seu desenvolvimento. E depois as produções da
Argentina e do Brasil diferem tanto que a troca de seus
respetivos produtos é sempre uma necessidade recíproca. E
quando considero essas rivalidades inúteis, prejudiciais, sem
razão de parle à parte este rio Paraná tão plácido. Como é sabia
a natureza! Enquanto argentinos e brasileiros conservam ainda
um resto da antiga rivalidade que tinham sua causa na posse do
Uruguai, o qual hoje felizmente não é de nenhuma das duas
grandes nações, enquanto isso, por aqui correm confundidas
águas brasileiras e argentinas, numa união útil, servindo à
Argentina tanto quanto ao Brasil, facilitando o comércio e as
relações internacionais.
Algumas horas após a nossa saída de Montevidéu, ali
pelas 9 ou 10 horas da noite, avistamos, muito ao longe, à
esquerda, um grande clarão: era a grande e bela Buenos Aires,
de que com muita razão se orgulham os argentinos.
No outro dia, a noite passamos em frente à cidade do
Rosário de Santa Fé, a segunda cidade do Prata. O “Mercedes”
seguia bem próximo no cais, logo, bem iluminado, com grandes
focos de luz elétrica, tendo em toda sua extensão atracados
inúmeros vapores e outras embarcações. Vimos confusamente

18
ao clarão da feérica iluminação, ruas, praças, grandes edifícios e
imponentes templos.
Ontem passamos pela cidade do Paraná, capital da
província Argentina do mesmo nome. Disseram a bordo que o
porto ficava do outro lado.
A parte que avistávamos era necessariamente um
arrabalde. Os prédios, alguns grandes, avistávamos no alto de
um outeiro cortado quase a prumo, mostrando as suas ladeiras
de areia, sem vegetação, sinal de que cada enchente ia por
aquele lado alargando continuamente o rio. E, lá no alto, um
vistoso prédio, muito próximo da muralha inconsistente, parecia
condenado a desmoronamento inevitável numa das enchentes
vindouras, tal qual como fazia a ribeira de Iguape no Estado de
São Paulo, a qual todos os anos comia um pedaço de terreno,
engolindo às vezes casas inteiras, cavando-as por baixo do modo
que o edifício, após uns estalidos característicos que punham em
fuga os aterrados moradores, descia e desaparecia sob as águas.
O rio Paraná não tem uma largura constante; ora tem uns
500, ora tem 1 mil metros e ora se alarga, quase a perder-se de
vista suas margens. Tal qual uma avenida que de vez em quando
atravessasse uma espaçosa praça. No começo, logo que saímos
do rio da Prata, os terrenos eram baixos e as construções à beira-
rio eram muito pobres, talvez provisórias por causa das
enchentes; depois de 24 horas de viagem, as colinas foram-se
mostrando e afinal já algumas montanhas se avistavam.
De espaço a espaço há no rio boias de cores, iluminadas à
noite com luz verde ou encarnada, as quais pela sua disposição
indicam o canal do rio, canal que muda em cada enchente e que
por isso exige periodicamente mudança das boias. Essas boias
iluminadas são muito úteis e permitem navegar à noite. Os
marítimos brasileiros elogiam esse serviço da Argentina e

19
lastimam que o Brasil nem o Paraguai tenham o mesmo
cuidado.
A cerração, muito comum neste tempo e nestas paragens,
é que dificulta muito a navegação, impedindo de se avistar as
boias de dia ou as suas luzes à noite. Ainda não se descobriu
infelizmente uma luz capaz de atravessar a cerração.
Agora mesmo, pela primeira vez neste rio, estamos
lutando com uma cerração que o sol já vai dissipando. E o vapor
acaba de parar para sondar o rio, porque neste lugar o canal
muda continuamente e não convém dar em cima de um banco de
areia.
Ontem, às 10 horas da noite, também o paquete teve de
parar, porque foi de encontro a uma boia apagada; felizmente foi
avistada a tempo, de modo que, com as manobras, o choque foi
imperceptível.
A vida a bordo vai correndo com alguma monotonia.
Conversa-se, mas divertimento nenhum.
Até mesmo o piano só se fez ouvir por alguns instantes
uma noite. Ontem diversos passageiros, inclusive algumas
senhoras e senhoritas, jogaram o víspora, para o qual também
fui convidado, sem ter contudo podido aceitar porque qualquer
jogo para mim é insuportável.
E sendo a dinheiro muito pior, porque não gosto
absolutamente de perder dinheiro e nem para o meu bolso entra
dinheiro ganho em jogo ou por outro qualquer modo que não
seja pelo meu trabalho.
Depois de amanhã passaremos em frente à cidade de
Corrientes e tomaremos pelo rio Paraguai.
Quantas recordações da terrível luta que pôs em dura
prova o inigualável valor do soldado brasileiro! Quais os
vestígios de tantos combates que ensanguentaram as águas do
rio em que dominou o ambicioso Lopez, ambição e orgulho que

20
desgraçou sua Pátria, digna de melhor futuro e cobriu de glória
as armas brasileiras, glória que nos custou tantas lágrimas e
tantos sacrifícios!
10 de Agosto de 1912.

ASUNCIÓN, 20 DE AGOSTO DE 1912.


Há alguns dias que singramos nas plácidas águas do rio
Paraguai. Quem diria que esse rio tão calmo foi teatro de uma
guerra homérica em que um pequeno povo tiranizado enfrentou
com rara coragem o ataque combinado de três outras nações e
continua a presenciar periodicamente as revoluções que tem
cavado a ruína do país! Pobre Paraguai!
Assim racionava eu, a bordo do “Mercedes”, quando uma
senhora me aparteou com muito espírito, que no rio abundavam
os jacarés. E tinha razão: aquelas tranquilas águas abrigavam
seres ferozes, assim como a terra bela e fértil abrigava homens
que de espaço a espaço se matavam uns aos outros.
Logo ao findar o rio Paraná, adiante da cidade argentina
de Corrientes, cidade que poderia ser muito mais próspera, tal a
sua excelente posição geográfica na confluência do Paraguai
com o Paraná, logo ao findar o Paraná, passamos pelo lugar em
que se feriu o glorioso combate naval do Riachuelo, no qual os
nossos já iam sendo batidos pela audácia incrível dos
paraguaios, quando o glorioso Almirante brasileiro mandou que
a sua fragata fosse a todo o vapor sobre o navio paraguaio mais
próximo e com um formidável encontrão fê-lo afundar-se; no
mesmo instante atirou-se sobre outro navio inimigo que teve a
sorte do primeiro e preparava-se para se atirar contra um
terceiro, quando os paraguaios que já se julgavam vitoriosos,
tiveram de fugir para escapar à morte ou ao aprisionamento.
Nenhuma outra nação conta em sua história naval um feito
mais glorioso!

21
Mais adiante, rio Paraguai acima, lá estava a cidade de
Humaytá, outra recordação gloriosa, onde havia uma fortaleza
inexpugnável, estando ainda a passagem interceptada por
grossas correntes.
Com espanto do mundo inteiro que acompanhava com
interesse a terrível luta de uma nação contra três, a nossa
esquadra expondo-se ao mortífero fogo de muitas peças de
artilharia, foi de encontro às formidáveis correntes forçou a
passagem e penetrou no coração do território inimigo.
Estava, portanto, ferido de morte e fatalmente teria de
sucumbir.
Quantas páginas gloriosas da nossa história me passavam
pela mente! Mas era em vão que eu interrogava aqueles lugares.
A não ser uma Igreja em ruínas que existe em Humaytá, a não
ser isso, nada mais lembra a titânica luta: o rio deslizando-se
serenamente, as margens poéticas muito verdes, com a sua orla
branca de areia, as garças fendendo docemente os ares, os
jacarés estendidos preguiçosamente à beira do rio ou das lagoas
ribeirinhas, em profusão, às vezes aos dois, aos cinco, o calor
abafadiço, indo respirar paz em que a suprema felicidade parece
consistir na imobilidade, aspirando aquele ar puro,
contemplando aquelas águas, aquela natureza exuberante!
Ontem, de manhã cedo, passamos em frente à Villeta,
poética cidadezinha, cujas casas quase se escondem por entre os
laranjais. Fica a três horas de Asunción. No Paraguai há muitas
laranjas doces, mas não tanto como as nossas do Rio ou da
Bahia. Disse-me um oficial da marinha que o Lopes, o célebre
tirano cuja ambição desmedida foi a desgraça de sua pátria,
obrigava todo o paraguaio a plantar pelo menos dez laranjeiras e
daí o motivo de tantos laranjais.
Contou-me outro passageiro que há muita gente
preguiçosa no Paraguai, e essas pessoas quando são procuradas

22
para se lhes oferecer trabalho remunerado, sempre alegam
doença, mas que se alguém lhes fala para tomar parte em uma
revolução, a resposta é pronta:
— Como no? e sem hesitação vai pegar em armas contra o
Governo de sua pátria.
Ontem chegamos às 9 horas da manhã, em Asunción,
capital do Paraguai. É uma bela cidade, estendendo-se por uma
colina acima, a qual, ao longo do rio, acompanha de perto a
barranca. Tem uns 60 mil habitantes e é iluminada à luz elétrica.
Os bonds pequenos, puxados a três burros fizeram-me lembrar
os bonds de Maceió.
As ruas são limpas, porém, calçadas com pedras
grosseiramente talhadas, não há paralelepípedos.

ASUNCIÓN, 20 DE AGOSTO DE 1912.


A rua principal tem uns 20 metros, bem calçada, a
madeira. Há alguns edifícios bons: o Palácio do Governo, a
Alfândega, a Catedral e uma Igreja por acabar, que o célebre
Lopez mandara construir e que aí pretendia aprisionar a família
imperial, quando tivesse conquistado o Brasil, tarefa que lhe
parecia relativamente fácil com os seus l00 mil caboclos
valentes e aguerridos, com os seus arsenais e as suas fortalezas,
com os seus tesouros, tudo pacientemente preparado pelos seus
antepassados, sem que os povos vizinhos se alarmassem muito
com aquele pequeno povo armando-se até os dentes, em plena
paz!
E a bomba estourou com estupefação geral. O Lopez deu a
mão aos revoltosos do Uruguai e os incitou contra os brasileiros:
foram lá perseguidos os nossos patrícios e o Governo
revolucionário a nada atendia. Por isso os brasileiros invadiram
o Uruguai e restabeleceram ali o governo legal. Era esse o
pretexto que Lopez procurava; julgou-se ofendido com aquela

23
intervenção de guerra sem que ele, potência militar, tivesse sido
ouvido. E a sua declaração de guerra foi pérfida e cruel: um
paquete brasileiro que, como este seguia para Mato Grosso foi
aprisionado, os valores que levava foram roubados, os
passageiros lançados em prisões imundas onde morreram quase
todos. Depois o Mato Grosso e o Rio Grande do Sul quase ao
mesmo tempo foram invadidos, mas a Nação Brasileira deu uma
prova de sua vitalidade e repeliu o invasor. E por sua vez
tornou-se.o Brazil invasor, invertendo os papeis, para colher
iramarcessi- veis louios, castigando a affronta, libertando um
povo irmão de um tyrnno abominável e firmando mais uma vez
i pez no continente sul-amerieano. Os Para- guayos~ vencidos
foram tratados com humanidade, porque eram tyraanisados,
eram contra nós apenas o instrumento do despotismo .
Que lição para a Sociologia ! 01 Jesuítas esmeraram-se em
civilisar As indígenas do Paraguay, mas aquella mesma discai
na sei viu admjraveiraente aofl manejos da caudiihagem
ftfprimeiro que pode vencer a benefica influencia dos padres,
teve o paiz á sua discreçâo. Assim surgiram os Francia e os
Lopes e assim a]li se succedem os caudilhos. Quando elles
brigam, arrastam upós si todos os seus dependentes e a anarchia
impera. 0 regímen republicano tem suas exigências para se
implantar e produzir bons fructos: instrucção e educação civica ;
perfeita organização dos serviços públicos; verdadeira harmonia
e independencia dos poderes constitueionaes de modo que o
Executivo não disponha á vontade de todo9 os cargos públicos,
porque senão o partido que, estiver no poder tudo obterá e o
partido vencido espreitará a oppcrtunidade de subir, custe o que
custar, para distribuir também discrecionariamente os c^r- gos
públicos, os favores officiaes.
Fóra desses partidos haverá sempre bem intencionados, fóra
e também dentro, mas impotentes ou medrosos para

24
conseguirem sempre uma orientação capaz de garantir para a
Patria um progresso tão rápido quanto firme e duradouro.
0 leitor desculpe essas divagações que me affluem á mente
ao contemplar a capital de uma nnção que tem sido tão infeliz e
que só espera a união de seus filhos para se engrandecer, como
na Europa se engrandeceu a pequena republica da Suissa,
0 porto de Assumpção tem algum movimento. Vimos aili
uns 20 vapores e alguns navios. Poucas, bem poucas embar-
cações a gazolína, Qual soberano daquel- las paragens, a Ui se
ostentava o nosso vaso dc guerra, o monitor Pernambuco, o qual
tão assignalados serviços prestou durante a revolução que
ultimamente ensanguentou o Paraguay.
Logo que o Mercedes fundeou, appare- eeratn a bordo
alguns vendedores e vendedoras ambulantes. 0 peso,moeda
para- guaya, que ao par deve valer quasi 2fl brasileiros, vale
actual mente apenas 250 reis.
Quasi todo o dinheiro é em papel: notas de todos os valores,
até de dous pesos
um peso e meio peso, por signal bem ve lhas e sujas.
Os cartões Jpostaes eram vendidos a bordo, á razão de um
peso cada um, mas eu comprei em terra uma duzU por cinco
pesos.As laranjas eram vendidas a utn peso e peso e meio a
dúzia. Bons charutos, ciganos, phosphoros, geléas, rendas, teci -
dos de seda, etc., eram os outros artigos.
Pagava-se dous pesos por pessoa para o transporte em bote
até o cáes. 0 dono do bote—Ei Sol—nos offereceu passagem de
ida e volta a tres pesos. A distancia era de uns duzentos metros.
Desembarquei com outros companheiros na Alfandega.
Troquei uns pesos em papel argentinos, inúteis porque o / ermles
não tocára em nenhum porto argentino, á razão de seis Desos e
60 centavos Da casa de caminho, passeipor diversas ruas.
Na calie ou rua principal entrei numa luxuosa bar bearia,a

25
qual era digna de qualquer grande capital; fiz a barba e paguei
dous pesos.
Em frente havia uma livraria onde comprei 12 cartões
postaes coloridos, com vistas de Asuncion, p^jr cinco pesos. Es-
tive no mercado, onde sómente encontrei carne e lanranjas e
também nuvens de moscas. E’ bem pobre e mal arranjado o
merccdo de Assuncion.
00351 (1)

Do meio dia às 2 horas fecham-se os estabelecimentos


para o almoço e um pouco de sono (siesta). É um hábito da
terra, tanto assim que os paraguaios diziam zombeteiramente
que ao meio-dia somente se encontram nas ruas de Asunción os
cachorros e os brasileiros. Não se zangue os meus patrícios com
a pilhéria, são amabilidades que os nossos patrícios que por aqui
costumam passar sabem pagar com bons juros. De resto apesar
da ação de nossa diplomacia, ainda existem entre descendentes
de portugueses e espanhóis restos daquele secular ódio, que
tanto celebrizou a tia Bristes na batalha de Aljubarrota.
Do mercado segui para o Correio, onde franqueei os
cartões postais à razão de 25 centavos cada um e também
algumas cartas a 75 centavos cada uma. Gostei da Repartição
Geral dos Correios Paraguaios, funciona em um bom edifício,
limpo, espaçoso, claro e bem ventilado.
À entrada ficam as caixas para colocar as
correspondências; entra-se logo para um pátio ajardinado. No
claustro, à direita, os telégrafos, e à esquerda, os Correios.
O pessoal atende com presteza e é atencioso. Lembrando-
me do tempo que perdi em Montevidéu esperando a minha vez
de me servir da caneta e pena, levei comigo tão preciosos
instrumentos e assim pude, à vontade, escrever os cartões.

26
Daí dei algumas voltas pela cidade, tomei um Chopp por
dois pesos, porque receava a água de Asunción, que diziam não
ser saudável e voltei para a Alfândega, afim de tomar o bote —
El Sol. O dono do bote nos apareceu em lancha-automóvel e
devido a essa modificação, que tínhamos solicitado, nos pediu
ele mais um pouco, somente mais dois pesos e assim pagamos
cinco pesos em vez de três, pois brasileiro em terra estranha não
discute por causa de ninharias.
Já a bordo do “Mercedes” soubemos que um soldado tinha
sido preso em terra e pelo que contavam parecia que a prisão
havia sido ilegal. Comprara ele em uma casa comercial uns
objetos e pagara com dinheiro brasileiro, recebendo o troco em
moeda paraguaia. Pouco depois o dono da casa, verificando que
tinha se enganado (já se sabe que contra e não a favor), chamou
um soldado da polícia paraguaia e contou-lhe o caso. O polícia
foi procurar o soldado brasileiro e o intimou a comparecer
perante o comerciante, mas o soldado recusou a isso, alegando
que a transação já estava feita e acabada. Foi preso por isso e o
Cônsul Brasileiro avisado obteve a sua soltura.
Ontem houve a bordo, durante a minha ausência também
um incidente. Uma mulher paraguaia que viera a bordo vender
umas blusas de seda, se queixou de que lhe faltava uma blusa no
valor de 75$000 (setenta e cinco contos de réis); mas não
indicava quem lhe havia furtado. Hoje, uma hora antes de sair o
“Mercedes”, voltou ela com um funcionário paraguaio, mas
nada se conseguiu apurar e a pobre mulher voltou para terra
muito zangada e praguejando.
Teria sido mesmo roubada ou seria uma farsa para apanhar
alguma subscrição? Não sei, mas assim mesmo fiquei
contrariado e com bastante pena da paraguaia.
A vida aqui, a bordo, continua com certa monotonia. Os
passageiros que vieram no “Acre” e os que vieram no “Sírio”,

27
formam grupos aos quais eu chamo colônia acreana e colônia
síria, porque estoutras, ou propositalmente ou não, se conservam
arredias. As moças então, não sei porque, nem se dignam de me
cumprimentar, apesar da minha idade e da minha posição de
chefe de numerosa família; apenas correspondem secamente ao
meu comprimento, quando a mim, pelas leis da etiqueta me
compete primeiro saudá-las. Será porque não tomo parte nos
jogos de prenda? E se soubessem elas quantas felicidades desejo
às minhas gentis patrícias; se soubessem que desejo para todas
elas um casamento digno de seus róseos sonhos, marido que as
ame extremosamente e que seja também sempre amado, uma
prole numerosa, bem educada e instruída, forte física, moral e
intelectualmente, digna por todos os respeitos desta nossa
idolatrada Pátria. Porque as senhoritas brasileiras são a
esperança do Brasil; cada uma constituirá amanhã um lar, que é
a própria Pátria em miniatura!
Além dos jogos de prendas houve a bordo um casamento
civil e religioso à moda daqueles da Escola Militar, promovidos
por militares saudosos dos bons tempos da mocidade
descuidosa.
Agradou bastante e até um respeitável Coronel, nosso
distinto companheiro de viagem, distraiu-se um pouco, apesar
da chaga que lhe ia n'alma pela perda recente de um filho
estremecido.
A comida de bordo do “Mercedes” continua a ser apenas
tolerável pela alimentação dos passageiros; é da escola daqueles
que se come para viver e não se vive para comer, como se dá
nos paquetes ingleses e alemães. Ainda ontem ancorados em
Asunción, não tivemos um peixinho sequer; as próprias laranjas
paraguaias, tão afamadas, parece que só por hostilidade se
mostravam azedas. Disseram alguns passageiros que os paquetes
de uma poderosa companhia argentina — Menovite (não sei

28
bem como se escreve o nome) — dão vinho, leite, frutos doces e
doces de frutas e mais isso e mais aquilo, que, quando os
comandantes se encarregavam da comida que se passa muito
melhor; que entretanto a bordo do “Ladário”, outro paquete do
Lloyd da linha Montevidéu-Corumbá, que se passava muito
bem, apesar de ser a mesma a verba para a alimentação em todos
os paquetes.
O comandante, o imediato ou comissário e o médico são
muito afáveis e atenciosos e assim também as demais pessoas
empregadas a bordo, não porém, tanto como as do “Acre”.
Dentro de quatro dias estaremos em Corumbá, onde os
poucos passageiros de Cuiabá passarão ao vaporzinho “Coxipó”.
Há umas 60 ou 70 pessoas a bordo e dessas umas dez se
destinam à capital do Estado. São quase todos funcionários
públicos, militares principalmente.

DO “MERCEDES” PARA O “COXIPÓ”

À BORDO DO “COXIPÓ”, 28 DE AGOSTO


Desde o dia 25 viajamos no “Coxipó”, o vaporzinho mais
lento da linha Corumbá-Cuiabá, porém aquele que menos
combustível gasta.
O “Coxipó” é de roda, tem 30 metros no maior
comprimento e 5 metros de largura, podendo carregar no
máximo 50 mil quilos de carga, sendo que é fundo de prato,
calando cinco palmos no máximo e na média apenas quatro
palmos. O rio na seca tem pouca água, afirmando alguns que o
rio Cuiabá chega a ter em alguns lugares apenas um a dois
palmos d’água.
A tripulação inteira é de vinte e poucos homens.

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Possui apenas seis camarotes de 1ª classe, muito bem
situados em cima, entretanto, como na multiplicação dos pães
realiza o milagre de acomodar 80 passageiros. As mulheres,
então arranjam- se nos camarotes e em toda a parte superior do
“Coxipó”, dormindo umas em colchões nos camarotes, ou nos
dois bancos, largos e de 20 metros cada um, os quais ficam aos
lados dos camarotes e de permeio um espaço para a passagem.
Os homens arranjam-se em redes em uma (?) chuta, isto é, uma
embarcação coberta, onde existem as acomodações mais
indispensáveis.
O salão de jantar fica embaixo, na poupa e este à noite fica
quase sempre transformado em dormitório, cruzando-se as redes
aqui, acolá. Mais adiante a máquina: aos lados as privadas, as
rodas, a cozinha, o quarto de banho sem banheiro, mas com um
chuveiro cuja água com dificuldade se obtém tocando a bomba
para um depósito. Ainda vem a cozinha, etc.
Na proa os passageiros de 3ª classe, os quais armam suas
redes e compensam a falta de luxo desfrutando melhor as
paisagens e as primeiras brisas que ininterruptamente penetram
por todos os lados, da embarcação, grande, enorme para o rio,
pequenina para e mar.
Felizmente somos poucos os passageiros de 1ª; apenas
umas 20 pessoas, inclusive minha família, que é de oito almas.
Apesar de haver beliches para quase todos, só as mulheres e as
crianças dormem nos camarotes. Nós, os homens, evitamos os
incômodos de uma noite de calor e preferimos dormir quase ao
relento em colchões sobre os bancos ou nas redes, bafejados
pela fresca aragem e também por um ou outro mosquito e
conservando na retina a impressão agradável das lindíssimas
paisagens de toda aquela exuberante natureza...
Vim prevenido com a minha rede em que não dormia
desde muito tempo, há nove longos anos. E é admirável como os

30
pulmões funcionam bem! Não se houve tosse, não há um
resfriamento, nem mesmo defluxos! Fosse a gente dormir assim
em outro clima e teria apanhado qualquer moléstia grave.
O passadio não é de primeira e nem pode ser, tal a
barateza da passagem; cinco dias de viagem por 60$000
(sessenta contos de réis)!
Assim mesmo a comida é abundante e de boa qualidade,
pouco variada, porque não há o que comprar, se não quando se
vai aproximando da capital. Então há galinha, leitão, frutas, etc.,
fora disso, é a carne a alimentação básica.
Só uma coisa me incomodou pelo receio de que se
manifestasse a desinteira nos meus filhos, a água. Felizmente, o
comandante Oliveira, que é muito delicado e atencioso, fez tirar
do porão um filtro de pressão, novinho em folha e que nem
ainda tinha sido assentado. E, apesar da visível contrariedade
dos criados pelo serviço um tanto pesado do destilar a água,
ontem tivemos o precioso líquido livre das perigosíssimas
impurezas Hoje os criados encheram a talha com água suja do
rio e eu com dificuldade consegui um frasco de água destilada
para meus filhos; espero porém, que o Comandante logo que
tiver uma folga, providenciará novamente como ontem.
Foi em um domingo que o “Coxipó”, largou de Corumbá.
No dia seguinte passamos em frente à fazenda Chalet ou do
Ipiranga, cujo proprietário é o Coronel Severiano. Há no porto
um sobrado caiado de branco e coberto de telhas, o qual de
longe parece um palacete, pois à beira rio, por diversos motivos,
não se encontram as boas vivendas e sim apenas casas rebocadas
e cobertas de capim, as quais, contudo, são bem raras.
À noite avistamos o povoado Amolar, antigamente
Dourados, muito pequenino e o único que até agora
encontramos.

31
Ontem, bem cedo, o “Coxipó” deixava o rio Paraguai e
entrava no São Lourenço. Nunca vi tantos jacarés! Eram em
geral de um a dois metros de comprimento e se aqueciam ao sol,
ao longo de ambas as margens, nas barrancas ou nas praias, um
a um ou aos pares, aos três, distando uns dos outros alguns
metros apenas.
Ali pelo meio-dia, nas imediações do riacho Bananeiras, a
quantidade de jacarés era assombrosa e se eu não tivesse visto
com estes próprios olhos, não acreditaria. Em uma extensão de
uns 50 metros mais ou menos contei duzentos jacarés;
estendiam-se uns após outros, às vezes em grupos compactos de
10 a 15, quase sobreposto. Em uma pequena praia de areia muito
branca, que havia perto do dito riacho, o espetáculo era
grandioso; um grupo composto de uns 50 jacarés, grandes e
pequenos, imóveis e indiferentes à passagem do “Coxipó”, que
singrava a uns quatro metros com sua velocidade de uma légua
por hora. Alguns, voltados para nós tinham a boca escancarada
como que saboreando as carnes que iam dependuradas na proa
do vaporzinho. E o preto luzidio daqueles temíveis anfíbios,
enormes lagartos, se destacava bem na alvura das areias. Alguns
viravam a cabeça para ver melhor; apenas um caminhou
majestosamente até entrar n’água, estendeu-se ao comprido,
nadando como um amador que deseja mostrar bem as suas
habilidades e lentamente afundou.
Na América do Norte há uma criação desses bichos para
fins industriais, segundo já li e já vi em gravuras e em fitas de
cinema. Aqui a criação está feita naturalmente, à espera do
primeiro que deseje explorá-la.
Estes terrenos, entretanto, têm dono, e donos que saberão
aproveitá-los bem. Constituem a fazenda do Alegre, que já foi
do Rei da Bélgica (que rei???) e hoje pertence a uma companhia
americana — “Brazil land Cattle and packing”, com sede em

32
New York. É um dos maiores acionistas o arquimilionário
Rockfeller. O fim dessa empresa é, como diz o seu título, a
exploração do gado e seus produtos, e já exporta grande
quantidade de extrato de carne.
Possui essa companhia aqui em Mato Grosso l0 milhões
de hectares em duas porções de três e sete milhões, ou seja, ao
todo l00 mil quilômetros quadrados. Há nessas duas fazendas,
segundo cálculo da companhia, 150 mil cabeças de gado vacum.
Estivemos alguns minutos parados em frente ao porto da
Fazenda do Alegre, afim de embarcar um dos gerentes, um alto
e forte americano, afável e delicado, o qual se dirigia à Cuiabá.
À meia-noite, estivemos quase uma hora, fundeados na
barranca da fazenda do Caxery para abastecimento de carne.
Enquanto laçavam e carneavam um garrote, eu, o
comandante e também o comandante do vaporzinho “Nioac”,
este (o comandante) licenciado, estivemos em terra, na casa do
proprietário Coronel Joaquim Rodrigues Corrêa da Costa, que
me pareceu ser um dos mais ativos e trabalhadores daquelas
redondezas, homem delicado e atencioso, mas de poucas
palavras e observador, muito perspicaz.
A conversa foi sobre diversos assuntos e depois se
demorou nas revoluções passadas.
O Coronel de vez em quando dava um aparte muito
judicioso. Falou-se até no General Dantas Barreto, hoje
Governador de Pernambuco. S. Exc.ª. ia levar reforços ao
Governo legal, mas o vaporzinho em que ele ia, de vez em
quando sofria uma avaria na máquina. Era um plano para que os
revolucionários tivessem tempo de se firmar no poder. O
General Dantas zangou-se muitas vezes e afinal chegou a notícia
de que estava tudo acabado. S. Exc.ª. podia voltar; o cenário
político tinha mudado, mas já estava tudo em seus eixos.

33
Sejam quais forem as razões que têm tido os
revolucionários nas diversas revoluções, não resta dúvida que é
para lastimar tais acontecimentos, que tanto prejudicam o
progresso de qualquer povo.
Oxalá que reine aqui para sempre a paz e que as lutas entre
os partidos somente continuem nas urnas, sem ódios pessoais,
sem se apelar para o direito da força mas sim firmados todos na
força do direito.
Mato Grosso, com seus dois milhões de quilômetros
quadrados ou 200 milhões de hectares, à razão de mil hectares
por habitante, tem um lugar importante na federação brasileira;
esse lugar será tanto mais rapidamente atingido quanto maior for
a harmonia entre seus filhos, Aquela parábola das varas é uma
verdade que tem atravessado séculos: Separadas, fracas;
fortemente enfeixadas, formando um todo harmônico,
homogêneo, tornam-se fortes, irresistíveis. E os Romanos,
perspicazes como eram, quando queriam vencer facilmente
qualquer povo, fomentavam as lutas civis, declaravam-se por
um dos partidos e tomavam depois conta de tudo.
Para que as democracias prosperem, é mister que cada
cidadão coloque sempre o seu interesse abaixo do interesse geral
da coletividade e que ninguém se julgue com o direito de galgar
ou conservar posições, sacrificando sua Pátria, mesmo porque os
cargos de eleição popular são postos de sacrifício que o cidadão
aceita como pesado fardo e se dá por feliz quando, cumprido o
seu dever, no fim de poucos anos, chega o momento de ser
substituído por outro cidadão, julgado igualmente digno.
Quando Fallières assumiu a presidência da República
Francesa, perguntando-lhe um repórter o que pretendia fazer
quando terminasse o tempo do seu governo, respondeu
convictamente o grande estadista:

34
— Confundir-me novamente com a massa dos meus
concidadãos e retomar as minhas ocupações habituais.
É uma resposta eloquente, mostrando profundamente
enraizado o espírito democrático. Como é belo ter o chefe de
uma grande Nação descer lá do alto sem a menor sombra de
poder e desaparecer na massa dos demais cidadãos!
Como é reconfortante o espetáculo do Imperador
Deocleciano, o qual, tendo governado Roma e o mundo inteiro,
despiu-se de todos os poderes, de todas as honrarias e retirado,
bem distante de Roma, em sua fazenda, cultivava com suas
próprias mãos suas terras! Ali, entretanto, mandaram seus
concidadãos procurá-lo para que assumisse o poder, derrubando
o governo que infelicitava então o país, mas ele calmamente se
limitou a dizer ao comissário:
Se aqueles que te enviaram vissem como estão viçosos os
meus legumes! Sabes uma coisa? Eu sou velho e tu és moço;
ajuda-me a tirar um pouco d'água deste poço.
Todas estas considerações me acodem ao espirito
enquanto o “Coxipó”, como se fosse o próprio progresso, sobe
sossegadamente o rio Cuiabá ao som monótono de suas rodas,
batendo compassadamente as tranquilas águas. A natureza quase
virgem se ostenta nas duas margens, sem hostilidade, mostrando
as suas riquezas, como que convidando o homem a ficar por ali
desfrutando uma vida sossegada e saudável, fartamente
recompensado o trabalho.
A vegetação aqui é muito mais luxuriante, as águas menos
turvadas, cada vez mais claras. Uma praia aqui e acolá; ora
margens cortadas a pique, como se fossem cães natural, ora a
vegetação desce até a superfície da água.
Às vezes, por detrás da mata, os campos naturais se
estendem a perder de vista.

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Há por aqui abundância de madeiras de lei, muita caça,
lindíssimas aves silvestres.
Entretanto, desde 3:30 da madrugada que navegamos
neste rio Cuiabá e só umas poucas habitações avistamos. Mas a
caprichosa natureza vinga-se, aparentando plantações. Uma
multidão de caetés parece plantação de bananeiras como se
veem nas imediações da cidade paulista de Santos. Acolá,
parece haver um grande milharal, ainda mais adiante o capim da
praia tem o aspecto de aprazível e vivente arrozal.
O dia agora vem declinando.
Quanto lastimo não poder traduzir em palavras escritas
toda a poesia desta tarde de verão! Ao longo, pouco a pouco, se
avista a bela e confortável vivenda do Coronel João Epifânio da
Costa Marques, primo do atual Governador. É um palacete que
podia figurar em qualquer cidade e, segundo me disseram, está
mobiliado com muito gosto, tendo todo o conforto.
Não desembarquei, porque o Coronel Epifânio,
juntamente com seu filho, Dr. Otávio da Costa Marques, se
achavam em uma caçada no Rio Novo, daí a oito léguas.
O Coronel Epifânio é um homem de valor, muito
conceituado entre seus patrícios. A sua grande fortuna foi toda
adquirida com o seu trabalho, na fazenda de São João, onde tem
sua bela residência. Para ali foi pobre, e ininterruptamente tem
trabalhado, explorando conscienciosamente aquelas fertilíssimas
terras. Contaram-me que possui hoje 60 léguas de terras e 60 mil
cabeças de gado. Desde que subimos, o rio Cuiabá, desde sua
confluência com o rio São Lourenço, toda a margem direita até
muito acima da sua residência, lhe pertence. No entanto, sendo
tão rico, milionário, prefere viver em sua fazenda, longe do
bulício do mundo, em vez de ir ficar lá pelo Rio ou pela Europa.
Faz muito bom e mostra ser um grande amigo do seu torrão
natal.

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Gostei imensamente de contemplar aquela casa que dista
igualmente de Corumbá e de Cuiabá. É para mim um
monumento, atestando a gratidão pela terra produtora da
riqueza, terra que recompensa generosamente à atividade util.
Assim faz o bom filho com aqueles que se desvelaram pela sua
boa criação e aos quais deve em grande parte as suas preciosas
qualidades adquiridas. Filho digno de sua Pátria, que tenha
muitos imitadores seu admirável exemplo!
E, finalmente, agora é que me lembro de contar que os
mosquitos não nos tem quase incomodado no rio Cuiabá.

À BORDO DO “COXIPÓ”, 30 DE AGOSTO


Anteontem, quando estávamos parados na barranca da
fazenda São João, choveu durante quase uma hora, o que me
alegrou, pois o rio com essa dose certamente nos daria
passagem. Disse-me porém o prático de bordo que o rio até hoje
estava na mesma, o que contudo já é uma vantagem, porquanto
poderia estar mais baixo. A água está suja e eu sofri sede afim
de não bebê-la desde ontem não é filtrada e sim apenas
apanhada como se acha no rio e assim utilizada. Vejo-me
forçado a beber dois copos de cerveja, um ao meio-dia e outro à
noite, apesar de ser para mim a água a melhor das bebidas, mas
água pura, cristalina, tal como aconselha a higiene: sem cor,
sabor e odor; filtrada. E a propósito, a cerveja a bordo, da marca
Teutônia, custa l$800 (um conto e oitocentos réis); o mesmo
preço tem a água Apolinaris; já uma lata de leite condensado
custa l$200 (um conto e duzentos réis).
Depois da chuva veio um vento frio e cortante que nos
gelava as carnes; desapareceu pois o calor e também quase
completamente se sumiram os já poucos mosquitos. A
temperatura que era de 28 a 32 graus, baixou muito, sendo agora
de 10 a 25 graus. O pessoal de bordo parece indiferente a essa

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mudança do termômetro: usa a mesma roupa, tanto no excessivo
calor, como no rigoroso frio. Hoje, pela madrugada, sentiu-se
um choque forte e levantei-me para ver o que era. Um
marinheiro no leme, com a usual camisa de meia apenas sobre o
corpo, fazia girar a roda, indiferente ao vento que a mim me
gelava, apesar do meu grosso sobretudo.
O choque tinha sido ocasionado por um banco de areia
inevitável; mas o “Coxipó”, depois de lutar com as suas forças
de um velho de 50 anos, conseguiu sempre vencer o obstáculo e
lá continuou ao som compassado de suas rodas, como se nada
tivesse acontecido.
Já tínhamos de outras vezes passado por cima de alguns
bancos de areia; apenas uma leve subida, um pequeno atrito do
casco e pronto, passávamos sem mais nada.
Também o “Mercedes” uma vez passou facilmente sobre
um banco de areia no rio Paraná. E fomos felizes de não
encalhar o “Mercedes” e isso porque estava a bordo um dos dois
melhores práticos de toda a linha Montevidéu-Corumbá.
Ontem, passamos pela fazenda dos Quilombos, onde
existem, à beira do rio, diversas casinhas, algumas bem feitas,
embora apenas rebocadas e cobertas de palha, com o seu
espaçoso alpendre para a rede e o bom sono nas noites calmosas.
Agora, já as margens do Cuiabá, se vão tornando mais
povoadas, as habitações aparecem menos raramente, sempre
rodeadas dos graciosos oacuris (ou oacaris), espécie de
coqueiros, de 3 a 6 metros de altura.
Notei que os “roceiros”, parecem gostar dos “oacaris”
(uacaris???), oacuris (ou oacaris) pois os mesmos são poupados
nas derrubadas e ornamentam as roças, talvez para que as
plantas gozem um pouco de sombra, sem prejuízo para o seu
desenvolvimento.

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Tem sido vistas algumas capivaras. Agora mesmo quando
eu estava traçando estas linhas, estendido à proa, na
espreguiçadeira, avistei a poucos metros uma grande capivara
bebendo a água do rio na barranca. Estava de cabeça baixa e a
ergueu talvez percebendo o barulho das rodas; fitou como que
assombrada a embarcação e soltando um grito, pulou dentro
d’água, escondendo-se numa grande moita de plantas aquáticas.
Os jacarés já não se avistam com tanta frequência e
parecem temer o homem, pois em regra se afundam quando o
“Coxipó” passa mais perto, porém o fazem com certa majestade,
pois são os reis destas águas.
Ontem, vimos um voltado para nós, bem no centro de uma
pequena praia de areia muito branca, numa esplêndida posição
para ser fotografado; ninguém por muito vaidoso posaria
melhor.

00385 (1)
À tarde, ontem, antes do jantar, aproximávamos da
fazenda do Cassange. Vimos um ranchinho de palha e na
barranca em cima, uma mulher e algumas crianças; em baixo, ao
nível do rio, outra mulher estava agachada lavando qualquer
coisa. Ao pressentirem a aproximação do vaporzinho, correram
e desapareceram no mato, como se fossem um bando de
capivaras. Pouco adiante estava a casa de telhas do proprietário,
Sr. Caetano.
Gritaram da barranca que havia um passageiro.
É ali um dos pontos de embarque para os que vêm de
Poconé (?). Vimos algumas pessoas e dentre elas se destacavam
dois homens de barba branca, um de botas e ponche traçado com
certa elegância, ar desembaraçado e de aspecto respeitável:
aquele era o dono da fazenda e este o Coronel Teófilo, Deputado
Estadual por Poconé.

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O “Coxipó” parou e um homem baixo e de barba raspada,
aparentando uns 50 anos, desceu a barranca com uma pequena
trouxa, acompanhado de longe por um portador com um baú.
Desceu e procurava entrar na canoa amarrada à barranca
parecendo muito apressado.
No alto dois ou três camaradas olhavam sem se
importarem com a atrapalhação em que se via o homenzinho.
O “Coxipó”, porém, encostou na barranca pouco acima.
Uma corda foi lançada à terra e amarrada por um dos
camaradas que desta vez deixou o indiferentismo e correu ao
apelo de bordo.
Uma pesada taboa foi lançada, desembarcando por
instantes o comandante e alguns passageiros. Fiz o mesmo com
meus filhos, os quais com alvoroço acudiram, desejosos também
de pisar a terra firme.
Conversei cora o coronel Teófilo e soube que tinha três
filhos nos estudos: dois já estavam no Rio para se matricularem,
um na Faculdade de Medicina e outro na Escola Politécnica.
Conversa bem o Coronel e vê-se que é homem de espírito
clarividente e de ideias adiantadas. Fiz-lhe ver que realmente no
Brasil das profissões liberais eram mais preferíveis a medicina e
a engenharia; a do Direito por muitos motivos, tinha-se tornado
uma profissão ingrata, embora devesse suceder justamente o
contrário, pois a administração da Justiça é a base das
sociedades civilizadas, a única função essencial de cada um dos
Estados da Federação Brasileira, a razão de ser do sacrifício que
fazemos de uma parte da nossa liberdade para nos submeter às
autoridades constituídas.
Às 7:30 da noite aproximava-se o “Coxipó” do furado
Moquém, isto é, uma passagem estreita aberta pelas próprias
águas na cheia, pondo era comunicação duas voltas do rio e
encurtando providencialmente o caminho. Houve um pequeno

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reboliço a bordo: os passageiros afluíram curiosos, as famílias
amedrontaram-se. Os marinheiros empunharam à proa
compridas varas. A manobra para pôr o “Coxipó” no estreito foi
difícil e demorada.
O vaporzinho fez como faria um cavalo que se recusasse a
tomar um caminho determinado: embicou na barranca à direita
da entrada, embora a resistência dos marinheiros armados dos
paus compridos; depois encostou à barranca à esquerda, como se
fosse voltar para trás e afinal introduziu-se no estreito, que
percorreu lentamente em todo o seu comprimento, de uns cem
metros, retomando o curso geral do rio.
A noite era escura e a lua somente se mostrou pelas dez,
assim mesmo meia obscurecida pelas nuvens esbranquiçadas.

O dia de hoje mostrou-se claro e de agradável temperatura.


Às 9:30 da manhã aparecem ao longe o “Orvalho”, não
em forma de gotinhas brilhando irisadas aos raios do sol, mas
sim em forma de uma grande lancha espécie de barca ou bond
marítimo. O seu calado é apenas de 20 centímetros. Tem uma
grande roda à popa e dois lemes aos lados da roda. Pode deitar
ainda 12 milhas rio acima porém faz regularmente metade,
porque leva sempre a reboque uma grande chata. Esta é coberta
e divide-se em três compartimentos ou salas, dada uma com
porta e duas janelas do cada lado; a do meio serve par a carga e
bagagem e nas outras vão os homens e as mulheres
separadamente, ficando portanto com estas as crianças. As salas
tem apenas armadores e neles se armam as redes, de certo em
número limitado. Quem não tem rede ou não encontra mais
lugar para armar uma, estende-se sobre o colchão, levado para
tal fim do vaporzinho.

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As enchentes do rio dão-se, o que acontece durante poucos
meses; regularmente de dezembro a abril, podendo principiar
mais cedo ou prolongar-se até mais dois medes.
O rio Cuiabá em seu curso tem diversos braços, formando
bem extensas ilhas. Uma destas, com umas 15 milhas de
extensão é a de Uacurutuba. O rio Cuiabá para formá-la
subdivide-se em dois grandes braços: o da direita, mais largo e
menos profundo, tem o nome de Piraim e o da esquerda
conserva o nome da ilha. Era neste, no lugar chamado Santa
Rita, que estavam atracados o “Orvalho” e a chata “Rio
Cuiabá”.
O “Coxipó” atracou na barranca logo após o “Orvalho” e
começou a baldeação para a chata e a lancha. Esquecia-me de
dizer que esta é toda aberta, tendo um toldo sobre o qual há
apenas, sobre um outro toldo, pequenino, a roda do leme. Na
frente a caldeira do motor e em seguida dois salões com bancos
como nos bonds, A cozinha fica ao lado da caldeira, à mostra,
sem compartimento especial. São bem pequenos os dois fogões,
mais para família de 6 pessoas do que para um número às vezes
dez vezes maior.
Almoçamos e depois fomos dar um passeio em terra onde
eu, minha família e diversos passageiros, visitamos os
moradores do lugar, os quais se mostraram bastante sociáveis.
Em casa da família de um carpinteiro demoramo-nos
algum tempo conversando. Ai soubemos que a última enchente
tinha invadido muitas casas e sitiado as demais, matando
galinhas e leitões, danificando as plantações. Um pequeno vivo
e inteligente ofereceu dois passarinhos a uma de minhas
filhinhas e eu retribui a gentileza presenteando-o com um
canivete de mato. Agradei as crianças que encontrei, pondo ao
colo as pequeninas, o que muito satisfez aquela boa gente. Não
encontramos frutas para comprar e sim apenas cigarros feitos em

42
casa, com palha e fumo do lugar. Cederam-me um punhado por
500 réis.
Havia nas imediações das casas, uma de telha e as demais
de capim, diversas mangueiras em flor.
Somente algumas horas depois, às 3:30, podíamos
prosseguir a viagem. O Comandante Oliveira, resolveu seguir
até onde pudesse com o “Coxipó” pelo Uacurutuba acima, para
então se ultimar a baldeação. Jantaríamos assim mais
comodamente no “Coxipó”. A chata seguiu então a reboque. O
''Orvalho”, que ficou alcançar-nos-ia facilmente quando bem
quisesse com a sua marcha quatro vezes maior.
O canal Uacurutuba é estreito, com uns 20 a 30 metros de
largura, baixo em alguns lugares, por onde o “Coxipó” passou
arrastando-se levemente sobre a areia fofa do leito fluvial. As
voltas do rio são mais frequentes e muito fechadas. Além disso,
as árvores da margem debruçam-se como que para tornar ainda
mais difícil a passagem.
Notei que em alguns lugares havia árvores caídas dentro
do rio, algumas vezes parecendo terem sido cortadas sem a
necessária precaução, para que a queda fosse para o lado da
terra.
Depois de 5 horas e meia de demora, ficou tudo pronto e
saímos às 5:30 da tarde.
O “Coxipó” relocava a chata e o “Orvalho”.
Uma hora depois passávamos em frente à fazenda Urbano,
e cerca de 6 horas atracamos à barranca de outra usina, na
fazenda das Flechas, de propriedade do Sr. Coronel João Pedro
de Arruda.
Acompanhava-nos à distância. À noite só se avistava o
farol da lancha, mas depois nada mais se avistava o que causou
bastante inquietação ao Comandante Oliveira. Talvez por isso,
quando às 9:30 enfrentamos a fazenda do Bastos, à margem

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esquerda, mandou o Comandante que atracasse o vaporzinho à
barranca. A chalana (bote) de bordo foi preparada e instantes
depois largou de bordo com o referido Comandante, o prático, o
Comandante Costinha (do “Nioac”) e dois marinheiros. Iam
para trás em busca do “Orvalho”.
À noite, mostrou-se fria, bastante fria. Soprava um vento
gelado. Alta noite acordei e percebi que o “Orvalho” tinha sido
encostado e atracado ao costado do “Coxipó”. Ouvi vozes e
fiquei sabendo que o “Orvalho” tinha dado um encontrão numa
barranca quebrando um dos lemes.
O último dia de Agosto amanheceu com um frio dos
climas glaciais e sinto não ter tido termômetro, mas calculo em
4 a 8 graus. O leitor aprecie por si.
O meu camarote no “Coxipó” tinha 6 beliches num espaço
de 2 metros de comprimento, por 2 de largura e 2 de altura ou 8
metro cúbicos. Dormíamos ali 7 pessoas. De noite fazia frio do
lado de fora, mas quando penetrei no camarote para dormir,
senti calor e assim tirei o sobretudo, o paletó e o colete, tudo de
casimira e fiquei em mangas de camisa, calça de brim. O
cobertor, por inútil, transformei em travesseiro o dei-o à pessoa
de minha família. Mais tarde acordei com frio e vesti o casaco
de casimira; continuei a sentir muito frio e enfiei o sobretudo,
que é grosso, próprio para temperaturas baixas. Pois ainda assim
o frio não passava, apesar de estar o camarote fechado e com
tanta gente. Por isso é que penso ter sido muito baixa a
temperatura. Alguns passageiros disseram-me no outro dia que
não puderam dormir com um tal frio.
Continuávamos atracados à barranca da fazenda Bastos,
pois ainda não estava consertado o leme, conserto difícil por
falta de ferramentas a bordo. Felizmente às 8:30 da manhã o
Comandante pode ordenar a partida. O conserto serviria até que

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alcançássemos uma usina onde houvesse meios de completar o
reparo.
O “Orvalho” rompeu na frente, seguindo-se, o “Coxipó”
rebocando a chata. A pequena distância a passagem tornou-se
trabalhosa porque o rio tinha pouca profundidade: menos de um
metro. A lancha tinha passado bem, mas previdente parou,
ficando em observação. O “Coxipó” arrastava-se dificilmente,
parava, movia-se de um lado para outro afim de cavar na areia
fofa; a máquina trabalhava de novo com toda a força, O
“Coxipó” ainda se adiantou um pouquinho, mas logo parou,
impassível, a todos os esforços. Então recorreu-se a outra
manobra: o guincho a vapor. Dois marinheiros adiantaram-se
num bote e iam desenrolando um longo cabo de arame, ficando
amarrada a bordo uma das extremidades. A outra extremidade
prenderam-na os dois marinheiros no tronco resistente de uma
árvore, à margem, distante uns 50 metros. Moveu-se o guincho,
o “Coxipó” subiu mais no banco, arrasou-se mui vagarosamente
com ligeiros estremecimentos como se lhe percorressem
calafrios pelo velho costado. E passou o passo ou baixio.
Andamos assim durante quase uma hora e novo passo ou
baixio obrigou o vaporzinho a parar. Estávamos encalhados de
uma vez, muito embora na fazenda do Bastos tivesse sido
aliviado o “Coxipó” dos passageiros e da maior parte das cargas.
Nova manobra com o guincho. Andamos mais um
pouquinho e paramos de novo. Quatro homens com quatro
zingas introduzidas no guincho auxiliaram a força do vapor.
Adiantamos mais alguns palmos e o guincho negou-se
terminantemente a rodar. À vista disso foi resolvido dispensar o
“Coxipó”. E seguimos na chata rebocados pelo “Orvalho”,
porém às 3:30 da tarde, após 6 horas de demora.

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Uma hora depois passamos em rente Urbano, e cerca de 6
horas atracamos à barranca de outra usina, na fazenda das
flexhas, de propriedade do Sr. Coronel João Pedro de Arruda.
Neste dia almoçamos e jantamos como se estivéssemos
em pic-nic: As senhoras e crianças foram servidas à moda da
roça, sem mesa. Nós os homens, fizemos nossas refeições, dois
a três pratos, no salão do “Orvalho”; era falta de mesas, os
pratos eram colocados sobre um banco e sentávamo-nos em
frente, noutro banco.
No almoço não serviram sobremesa e por isso um dos
passageiros perguntou aos outros, depois de prevenir que era
uma pergunta enigmática:
— Por que não tivemos sobremesa? Cada qual deu uma
explicação diferente, que não satisfizeram àquele que
interrogara, pelo que ele decifrou:
— Porque não há mesa, eia aí a razão. E realmente só uma
boa dose de bom humor para suavizar os sofrimentos daquela
viagem em que todas as comodidades pareciam ter sido
propositalmente eliminadas.
A chata sem beliches, mictórios e lavatórios; a lancha
somente com bancos, toda aberta e assim exposta no interior aos
raios causticantes do sol e pela noite ao vento frígido sul. Os
mictórios da chata fizeram, não sei por que, de sifão; um estava
trancado, talvez quebrado e o outro entupido. Só o terceiro na
popa funcionava bem, mas evidentemente não servia para
senhoras.
Evidentemente o Lloyd não executava o serviço conforme
as condições do material empregado. O “Orvalho” sem
camarotes nem beliches, não era embarcação para se passar a
noite; e a sua pouca resistência estava mostrando que não tinha
sido feito para rebocar chatas. Restava pois, ao Lloyd empregar
a lancha conforme unicamente o fim que os fabricantes tiveram

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em vista na sua construção. A parte mais difícil da navegação do
Cuiabá, na seca tem no máximo 150 milhas. Ora se o “Orvalho”
põe rio acima umas10 milhas sozinho e 6 com reboque, se não
tem acomodações para os passageiras pernoitarem, se não foi
feito para rebocar e nem carregar grandes pesos, é lógico, é
incontestável que devia andar sozinho com passageiros e suas
bagagens e as malas do Correio. Nesse caso, saindo o “Orvalho”
de Uacurutuba às 4 horas da madrugada, no fim de 15 horas, às
7 horas da tarde, estaria em Cuiabá. As cargas que fossem
levadas por qualquer lancha, embora a passo de carro de bois,
rebocando uma ou duas chatas, como procedem certos
comerciantes que têm suas embarcações.
Na usina Flechas onde, como já disse paramos, tratou o
comandante de reparar o leme, inclusive a roda do leme que
funcionava mal e não oferecia firmeza porque os dentes da
engrenagem já estavam gastos, embora o “Orvalho” tivesse
apenas alguns meses de serviço.
O Sr. Coronel Arruda, embora dissesse ter queixa do
Lloyd, pôs à disposição as suas oficinas.
Ali, naquele centro de atividade útil, os vapores
abastecem-se e os passageiros são bem acolhidos.

À BORDO DO “ORVALHO”,
1 de SETEMBRO DE 1912.
Somente partimos dali no dia seguinte, domingo l.° de
Setembro, às 11 horas da manhã, pois durante toda a noite e até
àquela hora trabalharam no conserto. Mas, apesar de tanta
dedicação, as peças novas quebravam-se ao serem
experimentadas, sendo preciso voltar ao conserto provisório,
ficando tudo como estava. Quem ficou mais desapontado foi o
comandante Oliveira com o mau resultado, desde Uacurutuba,
de todos os seus esforços para que tivéssemos uma viagem

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segura, rápida e cômoda; desconfiou das condições de
navegabilidade do “Orvalho” que apresentava quando pela
primeira vez o encontramos em Uacurutuba, certas avarias e
resolvendo deixá-lo seguir só, aconteceu ao “Orvalho” quebrar
um dos lemes, o qual já estava entortado. Mas não foi só isso:
quis tentar ainda subir o rio com o “Coxipó” até muito acima e
não pôde. Finalmente quis reparar de uma vez os estragos e
perdeu inutilmente muitas horas. Mas consola-se, porque é
sempre assim; quando há vitória, todos aplaudem; quando há
derrota, todo o mundo crítica e sempre todos acham
desacertadas as medidas.
A viagem continuou sem incidentes nesse belo e agradável
primeiro dia de Setembro; Às 2 horas da tarde deslizou o
“Orvalho” em graciosa curva em frente à povoação do Melgaço.
Tem apenas umas 12 casas de telha e outras tantas de capim.
Um longo muro de pedra, com uns 69 centímetros de altura,
bem feito, prolonga-se pelo alto da barranca como que para
defender o povoado, nas grandes enchentes. As crianças
correram para contemplar a passagem das embarcações. Notei
na barranca, entre a rua e o rio uma pequena horta de alguns
metros quadrados, fechada apenas com uma fraca cerca e como
estivessem viçosas as hortaliças, compreendi que ali se
respeitava religiosamente o direito de propriedade. Também já
me haviam afirmado que em Cuiabá não havia ladrões, que se
podia dormir com as portas abertas.
Da fazenda Urbano para cima as habitações são mais
frequentes e já se nota uma animadora atividade agrícola. Há
canaviais, milharais, mandiocais, muitas plantações de fumo.
Um dos nossos companheiros de viagem acreditado
médico em Cuiabá e ilustre representante à Assembleia do
Estado, o qual embarcara com a família em Uacurutuba, disse-

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me que era proibido cortar árvores à margem do rio, isso para
firmeza das barrancas.
Nos últimos dias da viagem a água continuava a não ser
filtrada, e o pão, faltando, foi substituído pela bolacha dura.
Os mosquitos com o frio desapareceram. Até Cuiabá a
temperatura tem sido agradável durante o dia, fria ao cair da
noite e frigidíssima de madrugada. Na fazenda das Flechas,
quando lá estivemos, havia um termômetro o qual às 7 horas da
tarde estava marcando 18 graus.
Ouvi geralmente dizer que os estrangeiros em Mato
Grosso conseguem facilmente fortuna, sendo raro aquele que em
pouco tempo não fica rico. Para Corumbá tinha ido a pouco
tempo uma família portuguesa e embora somente o chefe
trabalhasse, contudo ganhou em dois anos alguns contos de reis
vendendo hortaliças e, como havia falta de tomates em
Montevidéu, para lá se dirigiu com grande carregamento que
vendeu por muito bom preço e voltou com os seus, muito
satisfeito para Portugal.
Tudo aqui em Mato Grosso se vende prontamente e por
muito bom preço. Há entretanto, como em toda a parte,
obstáculos que a atividade, tenacidade e previdência, podem
com relativa facilidade superar. Há animais daninhos que é
preciso combater e destruir. Por exemplo, há uma espécie de
formiga vermelha mais destruidora que a saúva e cuja picada é
dolorosíssima.
Uma delas na chata, causou-me uma dor tão intenta que
pensei, a princípio tratar-se de lacraia, vespa ou escorpião, mas
logo verifiquei ser a tal formiga, quase do tamanho da cabeçuda.
Ha umas 6 usinas pelo Cuiabá até à cidade do mesmo
nome, sendo a de Itaici a mais importante, a qual pode produzir
diariamente 500 arrobas de açúcar. A produção de todas elas,
consome-se mesmo no Estado e ainda não basta. Por isso

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mesmo os preços se regulam pelos dos gêneros similares
importados.
No dia primeiro viajamos sem incidente até às 9:30 da
noite, que foi quando o “Orvalho” parou, visto como a noite
estava muito escura e era prudente não prosseguir por haver
logo acima respeitáveis baixios. O luar apareceu lá pelas 11
horas, mas achando-se o pessoal de bordo extenuado, só se
recomeçou a marcha às 2 horas da madrugada de dois de
Setembro.
Temos comido um ou outro peixe pescado por
passageiros. O pacu é o mais apreciado.
Costumam os peixes saltarem dentro da embarcação,
como que se oferecendo aos estômagos desejosos de
alimentação mais variada. Diversos têm sido apanhados dentro
do bote que vai a reboque. Na noite de primeiro foram agarrados
dois grandes peixes mas voltaram novamente para o rio, seu
elemento. Um saltou dentro do bote é aí foi buscá-lo alguém;
mas o peixe defendia-se com os aguçados dentes, de modo que
se estabeleceu uma luta entre o homem e o animal. Foi o bicho
afinal agarrado pelas guelras, porém com um vigoroso safanão
mergulhou m plácidas águas, deixando o marinheiro como se
diz em Minas, muito sem graça.
Durante a nossa viagem somente encontramos além de
uma ou outra canoa, uma chata e três lanchas.
Destas uma, a “Rio Cuiabá”, que rebocava pesadas chatas
e que é de propriedade do Coronel Almeida Pires, subia o rio e
foi alcançada pelo “Coxipó”, ficando para trás até se perder de
vista. Outra, a vapor como aquela, chamada “Aurora” e de
propriedade do Coronel Manoel Lopes, cruzou com o nosso
vaporzinho na altura da fazenda São João. Chamada por nós,
voltou e também atracou à barranca e o respetivo mestre
consentiu de boa vontade em levar uma carta do comandante

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Costa. A terceira passou por nós a toda força: era a “Santa Ana”,
do Coronel Manoel Rondon.
A bordo tem reinado, sempre atuais, franca cordialidade
entre todos os passageiros. Temos aqui neste pequenino barco
representadas diversas profissões: médico e Deputado Estadual,
bacharel em direito e funcionário estadual, engenheiro militar,
negociante, dois empregados do comércio, fazendeiro,
empregado de companhia americana, marítimo, estudante,
artista, veterano do Paraguai. E na 3.ª classe soldados e
trabalhadores.
O da companhia americana, Mr. Tyson, um alto e robusto
compatriota de Tio Sam, fez boa camaradagem com todos,
mostrando assim a possível união dos dois continentes. Ia
também conosco o Capitão Pinheiro, distinto e esforçado
engenheiro ajudante da missão Rondon, o qual havia saído de
Cuiabá pelo norte, seguira o curso do Juruena, explorando-o
pela primeira vez e continuando pelo Tapajós, foi ter ao Pará,
daí ao Rio, Montevidéu, Paraguai, Corumbá e parou em Cuiabá
chegando ao ponto da partida de uma longa, penosa, difícil e
arriscada viagem ao redor do Brasil. Outra viagem difícil estava
terminando outro companheiro, o qual, deixando família em
Cuiabá fora ao Tefé no Amazonas expressamente para comprar
a safra de guaraná, bebida muito apreciada por aqui e, como
precisava já se achar no princípio da safra, teve por isso de
gastar mais de ano nessa longa viagem de ida e volta pelos rios
Cuiabá, São Lourenço, Paraná, Prata, todo o litoral do Brasil até
o Amazonas .
As usinas que avistamos até Cuiabá, são as seguintes pela
ordem:
Santa Cruz, de Getúlio Ribeiro Bastos; Urbano, do
Tenente-Coronel João Francisco de Arruda; Flechas, do Coronel
João Pedro de Arruda; a do Manuel Brandão; Tamandaré, dos

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herdeiros do Coronel Salvador; Itaici, do Coronel João Baptista
de Almeida Filho; Santa Ana, do Coronel Virgíneo Nunes
Ferraz; São José, Coronel Luiz da Costa Ribeiro Fontes; Aricá,
da viúva D. Maria Leopoldina da Silva Fontes; Furado, dos
herdeiros de Manuel Pinto; Maravilha, do Coronel Manoel da
Silva Fontes; Conceição, de D. Ana Galvão Paes de Barros e
filhos; a do Nhonhô da Cachoeirinha; a do Major Hermenegildo
de Souza; São Gonçalo, do Coronel Joaquim Martins Pereira.
No referido dia primeiro o “Orvalho” navegou das 6 da
manhã às 9:30 da noite, quando atracou à barranca, por ser
prudente esperar que a lua surgisse no horizonte. Entretanto a
guarnição estava extenuada pelo que, embora o luar já às 11
iluminasse com seus raios suaves as tranquilas águas, somente
continuamos viagem às 2 da madrugada. O rio serpenteava por
entre barrancos mais ou menos verticais, belas praias, acolá ou
tufos de arvoredos refletindo-se no cristalino espelho. O frio
continuara intenso e horas depois a luz se tornava pouco a pouco
mais intensa e o sol, afinal espiava rubro por cima da mata,
mostrando mais nitidamente as casas e as plantações que se
sucediam a pequenos intervalos ao longo das duas margens. Às
9 horas desse belo dia dois de Setembro, paramos na usina
Conceição a qual apresentava um belo aspecto e dava a
impressão de ordem e asseio de um centro de atividade. Logo a
cavaleiro sobre o rio erguia-se com suas altas muralhas a pique
um pátio quadrangular gradeado, mirante donde se podia
apreciar a linda paisagem fluvial. Mais adiante dois outros
pátios grandes e limpos; um cercado de inúmeras casinhas,
unidas umas às outras, muito brancas, com portas e janelas
pintadas, formando todas dois ângulos retos, abertos para o lado
do rio, fechados para o lado de terra. O outro pátio, cortado ao
meio paralelamente ao rio por uma graciosa fila de palmeiras,
traçados no chão os trilhos dos vagonetes era limitado ao fundo

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pela cara residência alpendrada e pelo grande edifício da usina.
Aí estive e me demorei quase meia hora, acompanhado por um
dos proprietários e gerentes o Dr. Armindo Paes de Barros,
moço de vinte e poucos anos, trabalhador e ativo, o qual pela
morte do pai abandonara no quarto ano de estudos de escola
politécnica de São Paulo e, tendo também cursado a escola
agrícola de Piracicaba e viera prontamente tomar conta da
propriedade paterna. E numa idade em que outros se mostram
descuidosos, ele encarava a vida pelo lado prático, atirava-se
corajoso ao trabalho, reparando os maquinismos estragados,
melhorando-os pouco a pouco. A insuficiência dos seus recursos
pecuniários foi vencida pela sua perseverança e em poucos anos
tudo prosperava, a riqueza era honrada e dignamente adquirida.
Hoje a usina Conceição é uma das primeiras do Estado. Durante
a safra produz diariamente 250 arrobas de bom açúcar e 2.800
litros de álcool de 40 graus.

A CIDADE DE CUIABÁ
O “Orvalho” novamente retomou sua marcha e ora pondo
seis milhas, ora vagarosa e cautelosamente quando havia um
baixio a transpor ou uma curva mais forte a vencer, chegava a
Cuiabá às 4 horas da tarde.
Não pôde a lancha apitar por causa de avaria no apito, pois
na descida, quando as curvas são fortes as embarcações vão às
vezes de encontro às árvores da margem as quais produzem
danos, metendo-se por um dos bordos e forçando os obstáculos
que encontram.
O porto fica distante da cidade, com a qual está ligado por
uma linha de bonds pequenos, puxados a burros. Umas 8
lanchas a vapor estavam ancoradas.
Diversos botes vieram atracar no costado do “Orvalho”
assim que este ancorou. Na margem direita diversos edifícios se

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erguiam, uns 200 ou mais. Na margem oposta poucas casas:
uma barca aí estava atracada, parecendo servir para transporte
de uma para outra margem.
A cidade tem de uns 15 a 20 mil habitantes, é iluminada
em parte a gás acetileno, possui diversas ruas calçadas, bons
edifícios dois belos jardins. Ha dois estabelecimentos de
instrução para meninas, internato e externato, um dirigido pelas
Irmãs Salesianas, outro, pelas Irmãs Franciscanas. Os Padres
Salesianos têm um grande colégio de instrução primária e
secundária e de artes e ofícios que era equiparado ao Ginásio
Nacional. O Governo mantém um Liceu onde se estudam todos
os preparatórios, uma Escola Normal e dois Grupos Escolares,
estes últimos dirigidos por competentes professores contratados
em São Paulo. Atualmente está em construção um vastíssimo
edifício especialmente destinado aos três últimos referidos
estabelecimentos o qual terá as mais modernas instalações e
custará ao Estado 700 contos. É pensamento do atual Presidente,
(do Estado do Mato Grosso) Exmo. Dr. Joaquim Augusto da
Costa Marques, dotar esta capital de diversos melhoramentos de
modo a que os seus habitantes tenham todo o possível conforto.
Há falta de casas, o que denota aumento de população.
A água encanada tira-se do próprio rio Cuiabá, sendo
porém fornecida, depois de convenientemente filtrada, a 6$000
(seis contos de réis) mensais.
Cuiabá é uma cidade genuinamente brasileira, sendo
poucos os estrangeiros, o que é devido à distância e às
dificuldades do transporte. Como já disse, esses poucos são bem
acolhidos e facilmente prosperam.
Notei que em geral todos os bons mato-grossenses estão
empenhados em dar o maior impulso possível ao progresso do
Estado o que não é fácil problema para um povo de 200 mil
almas, espalhadas por uma vastíssima extensão de território.

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Contudo, muito vai fazendo o atual Governo e muito se
pode esperar do patriotismo e da competência dos homens que
dirigem o Estado, ao redor dos quais devem cerrar fileiras os
brasileiros quaisquer que sejam as suas opiniões políticas e
religiosas, sempre que se tratar dos interesses sagrados da Pátria.

FIM

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