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A Viagem de Trem

Saí do quartel já despedido de todo mundo. Passei pela casa de uma tia (tia
Neuza) para dizer que seguia. Em casa, notei que todos estavam com os nervos à flor
da pele. O Jipe à porta, a mala pronta, e eu com minha farda de passeio (jaqueta
nova), sapato lustroso, cabelo bem cortado e carteira de identidade: Cabo Higino
Veiga Macedo – identidade 9G-3666471-A da Nona Companhia de Depósito de
Armamento e Munição. Acho que a sensação do pai e da mãe era a mesma minha –
o ir para o não sei onde e voltar não sei quando. Talvez a mesma sensação que
sentiram, anos depois, os astronautas que foram à lua. Despedi também de uma
colega de trabalho dos tempos da fábrica de sabão e vela que por coincidência, ou
não, me esperou pela tarde inteira. Embora casada, sempre foi mais que amiga. O
trem sairia perto das dezoito ou dezenove horas. Às dezessete, fui para a estação e
eu mal podia conversar com o motorista. As lágrimas estavam pedindo para pingar.
Em casa foi uma choradeira sem fim.
Despedi do motorista que a memória até agora não quer prestigiar e que me
ajudou a carregar a enorme mala. Deve ser um cabo amigo... Fiquei a aguardar os
outros. O jovem de Três Lagoas iria pegar qualquer coisa quando o trem passasse
por lá, talvez o enxoval. Trocada as requisições por passagens, seguimos com o trem.
Engraçado, não havia parentes na estação. Depois de acomodar, nós em carro
de segunda e o aspirante no de primeira, mas que resolveu seguir com a gente,
ficamos com tudo junto: malas, sacola, e outros apetrechos. Mudar de carro de
primeira classe para de segunda, não havia problema; haveria se fosse ao contrário.
A diferença era pouca. Logo, fizemos uma escala para cuidar das malas. Foi fácil:
vinte e quatro dividido por quatro deu igual a seis horas para cada, dividido de duas
em duas horas. Se alguém descesse com uma de nossas malas enquanto dormíamos
ia ser um desacerto na chegada em particular com o enxoval. Como nunca viajara
além de Terenos, não sabia como era em outros trens. Mas, nesse nosso embarque
era uma "esculhambação". O embarque e o desembarque. Era um tal de correr,
colocar malas pela janela, de gente saindo pela janela, de gritos pedindo malas (os
que por qualquer meio já estavam dentro), uns entrando crianças pelas janelas outros
saindo. Para entrar, pela escada (estribo) e até acomodar a mala no bagageiro era
difícil, em particular para quem tinha uma mala como a minha.
Passamos por Três Lagoas em madrugada alta. Nos bancos, de madeira, já
não tinham mais posição para se sentar. O Trem lotado pararia por mais de hora para
troca de maquinistas ou de máquinas ou as duas coisas juntas. A dor no pescoço era
insuportável, por tentar dormir sentado sem apoio para a cabeça. Marinheiros da
primeira viagem, literalmente, ninguém levou travesseiro. O como dormir anunciava-
se como um pesadelo. O jovem da cidade recebeu seus apetrechos e o que foi o mais
importante: muita comida. Além dos bolos, doces e bolachas, tinha muitas frutas. Isso
foi uma dádiva até quase Resende. Ele deve ter dito quantos éramos, pois sua mãe,
sempre uma mãe, nos preparou um pacote para cada um, bem reforçado, além das
frutas que era para todos. E de trem era covardia: tinha como acomodar tudo e ir
comendo devagar. Sempre a minha sorte ou um anjo da guarda ao meu lado. É que
eu não tinha dinheiro para tanto. Fiz um cálculo de dois dias, mas seria quase três,
toda a viagem. O meu plano B era ir à base do pastel com guaraná para cobrir toda a
viagem.
Nesse primeiro trecho aconteceram algumas coisas hilárias. Mas a que merece
registro é a que se segue. O jovem de Aquidauana era o mais novo e a primeira vez
que, também, saía de casa. E era a primeira vez que dormia fora de casa que não
fosse a de um parente. Foi no trem o batismo. Ele não confiava em nós, os demais,
para cuidar da mala dele. Assim, na primeira noite, passou o tempo todo acordado,
mesmo que o “quarto” não fosse dele. E ficava chateado quando o “plantão da hora”
ficava desatento. Tinha momentos em que o trem ficava muito lotado com gente em
pé, o que aumentava o risco para o qual nos preparamos.
A viagem se desdobraria assim. Até Bauru, iríamos pela Estrada de Ferro
Noroeste do Brasil - NOB. Para nós motivo de grande orgulho pelo grande benefício
que trazia para esta parte do estado. Era dito, com a boca cheia, letra por letra: – N-
O-B. Os vagões eram de madeira como de madeira eram os bancos de segunda
classe. Os “de primeira classe” ainda tinha um estofamento no banco. Havia vagões
restaurantes, sanitário em cada carro e alguns carros-dormitórios. Já não havia mais
os chamados vagões de luxo com ventiladores nos tetos e garçons para servir.
Qualquer coisa como pastel, refrigerante, ou salgadinhos era pela hora da morte.
Assim, o jeito foi perguntar qual a estação que o trem demoraria mais um pouco, tipo
dez ou quinze minutos, e comprar dos ambulantes que infestavam as paragens de
trem. Era um risco ter um desarranjo intestinal, mas a economia era grande.
A nossa grande apreensão era a troca da requisição do Exército pelas
passagens em um lugar longe e desconhecido por nós. E mais, tínhamos que fazer
baldeação: isto é carregar todas as malas até outro trem torcendo que houvesse um
outro trem, naquele momento, para São Paulo. Se não o houvesse, teríamos que ficar
aguardando o próximo horário. E sem os telefones de hoje mesmo os convencionais,
aliás, em Campo Grande muitos deles era, ainda, a manivela, estávamos aflitos.
Chegando a Bauru, descarregamos nossas bagagens, que não era pouca, e eu
fiquei, com um deles, de plantão às malas enquanto o aspirante e o outro foram trocar
as requisições por passagens. Já era início da noite. Isto é, estávamos a vinte e
quatro horas de viagem. O desodorante já havia dado sinal de vencimento há muito.
Nos trens não tem chuveiros para se tomar banho. Havia o processo de ir ao
banheiro, lavar o rosto e também molhar o corpo e depois se enxugar. O conhecido
banho na toalha. Alguns deles trocaram de camisa. Eu não tinha outra roupa que não
fosse minha farda.
Como já disse, tem coisas que foram feitas para me atender. Tudo deu certo.
Houve a aceitação da requisição sem problemas; havia um trem de passageiro para
São Paulo. Rapidamente, em menos de uma hora estávamos dentro do trem de
passageiro para São Paulo em vagões muito melhores que os da NOB. Os vagões
eram de aço e os bancos eram acolchoados. Lembro que o pátio da estação era
enorme. Passamos de uma plataforma para outra sem dificuldade e já encontramos o
nosso trem a esperar apenas dar o horário de partida. O embarque foi muito mais fácil
que o de Campo Grande, embora tivesse tanto caipira quanto lá. Engraçado que
havia a seguinte proibição no vagão: “Proibido fuma cigarro de palha ou charuto.”
Cigarro de papel, desse industrializado e cachimbo podia. Quem diria que os
fumantes, quarenta anos depois, estariam criminalizados e proibidos de fumar em
qualquer lugar fechado.
A partir de Bauru a estrada de ferro era Estrada de Ferro Sorocabana. Havia
até ventilador no teto dos vagões. Levamos uma noite e um dia de viagem. Ás vezes
demorava uma enormidade, por conta de tráfego, em algumas estações. Não sei o
cansaço e sono ou se o conforto dos bancos, sei é que dormimos relativamente bem.
Havia até um certo relaxamento nos quartos de hora, para cuidar a bagagem. Em
alguma hora da noite chegamos a São Paulo. Era a Estação da Luz. E com muita luz.
Fiquei extasiado com imponência do prédio, pelas profusões de luzes. Havia um
movimento enorme de gente. Descemos com nossas bagagens e repetimos o mesmo
processo de Bauru: dois guardavam a bagagem e dois tentavam trocar as passagens.
Depois de um certo tempo, que já causava apreensão, voltaram os “trocadores de
passagens” com elas na mão. Tinha um “porém”: o nosso trem só sairia, para o Rio
de Janeiro, pela manhã do dia seguinte. Restavam duas alternativas: dormir na
estação, em algum banco ou ir para algum hotel por perto, devido o número de
bagagem. Optamos pela segunda, pelo cansaço e pela segurança. E aí teve um
incidente também hilário. Era tarde da noite e o hotel era bem pequeno. Havia dois
quartos apenas: um com duas camas de solteiro e um com cama de casal. Para
passar o resto da noite era o que tinha de melhor e ainda racharia a diária. Mas o
amigo aquidauanense ficou irredutível: “dormir com homem numa cama de casal,
nem morto”, disse. Depois de muito negociar, da intervenção do português, dono do
hotel, ele aceitou, mas desde que não fechasse a porta. Acordamos lá pelas cinco da
matina e, às seis, já estávamos para embarcar. O trem era da mesma qualidade do
da Sorocabana. Agora iríamos pela Estrada de Ferro Central do Brasil, até a cidade
de Resende, mas que não era bem até Resende, o que será explicado depois.
Ainda havia frutas, bolachas e alguns doces e bolos recebidos em Três
Lagoas. O trem andava sempre por perto de um rio. Hora ele sumia, ora ele voltava,
mas dava para ver, pelo vale, que era o mesmo rio. Mais tarde me ficou tão familiar
esse rio: o Rio Paraíba do Sul. A certa altura embarcaram alguns jovens com cabelos
cortados como se militares fossem. Iam até Guaratinguetá. Ficamos sabendo serem
da Escola de Especialista da Aeronáutica. Passamos por Aparecida do Norte.
Impressionou o santuário que não era nem um décimo do de agora.
Também há uma passagem engraçada. Depois de certo tempo de viagem,
começaram aparecer os túneis. Na passagem do primeiro, levamos um susto, mas
como era pequeno, deu para entender o que acontecera. Em um determinado
momento, o aquidauanense estava de costa para direção de movimento conversando
animadamente com um companheiro de viagem que conhecera. Então o trem entrou
num túnel mais longo e fez um barulhão ensurdecedor. Quando o vagão surgiu na luz,
o amigo, de susto, tinha caído e estava estatelado no chão tentando se levantar.
Ouviu-se um: Nossa Senhora!... que ele disse não ter sido dito por ele, mas a voz era
parecida.
Em algumas estações entraram também vários jovens. Iam para a Escola de
Sargentos das Armas, que é nacionalmente conhecida como ESA, que fica em Três
Corações. Em Cruzeiro, cidade paulista, fariam baldeação, para um trem que seguiria
para Minas Gerais. Chegamos a Resende no início da noite. Na verdade não
chegamos a Resende. Chegamos ao distrito de Agulhas Negras como está escrito
nas inscrições da estação. Então a Academia Militar das Agulhas Negras está em
Agulhas Negras, no município de Resende. Aí ter coerência com a Academia e com o
Pico das Agulhas Negras, na Serra da Mantiqueira. Da estação até à academia fomos
de táxi. Como a bagagem era muita, cada um foi num táxi. E eu vi o “retão” que o
Tenente, meu comandante, disse. Recebidos pelo Oficial-de-dia, fomos alojados em
lugares diferentes. Fiquei na ala onde era a Quinta Companhia do Curso Básico, no
segundo andar. Mandaram que ficássemos por ali, dormir e aguardar avisos que seria
dado pelo sistema de alto-falante ou por alguma pessoa. Meus Deus... eu estava
apenas de corpo. A alma viajava. Parecia que não era eu. Não sentia fome, nem
cansaço, nem sono e, ao mesmo tempo sentia tudo isso, juntos. Ao atravessar o
portão, a imagem era a mesma da capa do ICAM. Era um deslumbre, a imagem ao
vivo, a imponência das instalações com a serra projetada no horizonte. Era um sonho
estar ali. Mas era eu mesmo. Durante toda a viagem eu pouco conversava. A
paisagem que via durante o dia me extasiava. A saída de São Paulo me deixou
maluco. É que eu queria ler todos os anúncios, nomes de lojas, de fábricas. Fui
encontrando fábricas de produtos que eu conhecia como Johnson, Bayer, Alpargatas
e infinitas outras. Depois as serras, os túneis. Era a primeira vez que eu via um túnel.
Sabia de sua existência pelos gibis, revistas e filmes. E, perto de Resende, a
imponência da Serra da Mantiqueira. Achava soberba toda a paisagem. Os picos,
para o momento, eram inatingíveis. Não passaria pela minha cabeça que um dia eu
iria vasculhar tudo, à pé, fazendo intermináveis patrulhas, como instrução. Para quem
só conhecia a serra de Aquidauana, vista apenas a leve silhueta, lá de Terenos, era
como sonhar. Nesses momentos eu tenho uma particularidade. Parece que há um
desligamento do corpo e da alma. É como se meu corpo ficasse no lugar, que está, e
eu, com a alma o visse afastado. Nessas situações eu não sinto fome, sono ou
cansaço. Essa coisa também veio me acontecer muito quando chegava ao limite da
fadiga nos exercícios de combate que fazia na escola. Mas naqueles momentos da
viagem me aconteceram várias vezes. Tanto que não me lembro de o que comi e o
que bebi, em particular, a partir de São Paulo. Literalmente eu estava sonhando
acordado.

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