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Dia 1 (11/06) Porto - Vairão (30km)

Começámos a caminhada por volta das 08h40, a partir da Sé do Porto. Até lá, tivemos que
caminhar cerca de 20 minutos e entrar no metro, na Casa da Música, até São Bento,
passando pela Trindade.
A caminhada foi suave até às 10h20, momento em que parámos pela primeira vez para
partilhar um pão com ovo. Fomos caminhando até as 12h00, tomámos um café mas não
trouxemos um carimbo - a senhora tinha aberto o estabelecimento há 5 meses e ainda não
tinha pedido os materiais necessários.
Andámos mais uma hora, até às 13h, altura certa para almoçar. Partilhámos um pão com
rojões e brócolos (que dão força e energia para a loucura que estávamos e íamos continuar
a fazer). Pusemos as pernas para cima e deitámo-nos no chão, para aliviar um pouco as
dores. O Diogo achou que ia falecer mas depois deixou de ser drama queen e recompôs-se
(sem saber o tamanho das bolhas que já tinha no pé).
Depois do almoço, as paragens tornaram-se mais frequentes e cada vez mais urgentes. A
mais proveitosa (pelo menos para mim, Rita), foi aquela em que parámos durante o que me
pareceu ser 3h - na verdade foram uns 15 minutos -, deitada na relva (e, de novo, com as
pernas alçadas) e, sem chegar a adormecer, começar a sonhar.
Apesar de penosa, a tarde foi preenchida com o movimento renascentista introduzido pela
rainha Beyoncé, que nos deu água da fonte da juventude (sim, porque passou um grupo de
peregrinos mais velhos, capaz de nos ultrapassar duas vezes!!!!).
Preocupados com a possibilidade de não conseguir os dois carimbos necessários para a
obtenção da Compostela, uma vez que só teríamos o do albergue, eis que surge… numa
caixinha reluzente… um carimbo da localidade em que estávamos (qual? Que importa?).
Assim continuámos até chegar ao albergue de Vairão às 18h, cheios de dores (nos pés, nas
costas, na cabeça, na alma) e a necessitar um banho que nos devolvesse a sensação de
humanidade.
Uma sopa e uma omelete ao jantar, caminhar novamente até ao albergue, e até amanhã.
Afinal ainda houve tempo para uma maçã partilhada.

Frase do dia: estúpidos de merda que não conseguiam fazer 35kms e acabaram por fazer
30kms. São merecidas as dores que temos.

Uma curiosidade: é encorajador quando achamos que não vamos aguentar e, sem que
nada o preveja, ouvimos alguém gritar “BOM CAMINHO!”.

Dia 2 (12/06) Vairão - Pedra Furada (23km)


Prefiro o cheiro a merda que o barulho dos carros. Isto foi o que pensei durante a melhor
parte do trajecto de hoje. No entanto, não é aí que a história inicia.
A alvorada foi às 06h, vinte minutos antes do despertador que tínhamos programado na
noite anterior. Antecipou-se o sol e não lhe pôde fazer frente a persiana, a portada, ou
mesmo o lençol da janela - porque não havia.
Depois de contarmos um ao outro quantas picadas de mosquito tínhamos ganho durante a
noite, respirámos fundo, abrimos a janela e avaliámos quantas das dores de ontem se
mantinham. Por sorte, ambos nos sentíamos melhor. Entre o pequeno almoço e a
preparação para enfrentar a chuva lá fora (que, afinal, apenas esperava que saíssemos do
albergue para parar de cair), organizámos os planos para a caminhada do dia. Decidimos
que íamos ter mais calma connosco e com os nossos corpos, tendo Barcelos como meta
ideal - reforçando que a distância eram igualmente 30 km.
Assim foi. A partir das 8h, colocámos os bastões nas mãos e pusemos pés ao caminho.
Falando em pés, foi necessário parar na farmácia da vila para comprar uns pensos para
bolhas, uma vez que os pés do Diogo já gritavam por socorro. Feito isso, ele decidiu trocar
os curativos caseiros à base de compressas e “Butadine” pelos recém comprados pensos.
Colocou um no pé esquerdo, para proteger uma pequena bolha e achou que seria boa ideia
trocar também as do pé direito - tendo em conta o tamanho das famosas “estraga
experiências”. Retirada a meia, tal foi o espanto e felicidade ao reparar que a bolha havia
estourado, o que significa caminhar com mais facilidade. As pausas foram mais regulares,
acompanhadas por rápidos alongamentos e risos, suspiros, hidratação, silêncios. Uma
delas revelou-se obrigatória, visto haver um banco, à sombra, cuja pintura incluía a
mensagem que já nos habituámos a ouvir, mas não tantas vezes vemos escrita: "Bom
caminho! Buen camino!". Foi aí que vimos passar e parar um companheiro de viagem.
Giuseppe, napolitano, fazia o caminho pela primeira vez, tal como nós, mas havia iniciado
em Lisboa. Surpreendemo-nos com a velocidade do seu passo e a aparente falta de
cansaço. Giuseppe seguiu e, antes que seguissemos nós, a proprietária da casa ao lado do
banquinho veio amavelmente oferecer-nos maçãs. Agradecemos, retirámos uma, e fomos
caminhando e partilhando a maçã - a Rita mordia-a com vontade e mastigava-a sem
problemas, reservando uma mordida mais leve para conseguir partir pedaços mais
pequenos para dar ao Diogo que, impossibilitado pelas dores que o aparelho lhe causa, não
pode trincar maçãs.
Vimos pontes, o rio Ave, cães, gatos e patos. Apenas um cão se deixou acariciar. À sombra
de uma árvore, de frente para o rio, discutimos a possibilidade de encurtar o objectivo de
hoje, visto que as bolhas dos pés do Diogo não lhe davam descanso. A decisão só foi
tomada após o caril de legumes que comemos ao almoço - melhor recompensa pelo
esforço do que teriam sido as napolitanas de chocolate compradas pela manhã no primeiro
mini mercado que vimos - e a sua digestão, feita novamente à sombra, deitados na relva, de
pernas alçadas (já estabelecemos que esta deve ser uma práctica diária).
Seguimos viagem, fizemos pausas, ouvimos música, cantámos, trocámos impressões sobre
o que ouvíamos, cantávamos e víamos, e, finalmente, tivemos um bom troço rodeados pela
natureza, pelo cheiro a merda e a eucaliptos.
Chegámos ao Albergue cansados, mas com a sensação de que seremos capazes de
finalizar esta aventura. A simpatia de quem nos recebeu, um bom banho e um quarto só
para nós ainda nos deixou mais felizes.
Tivemos ainda a companhia do José durante o jantar, momento em que partilhámos um
frango assado e uma francesinha (a terceira do José em três semanas), com as piadas do
garçon como principal tempero (por vezes, exagerado). Despedimo-nos do José, mas não
antes que a Rita pudesse receber uma massagem no pescoço, ainda massacrado pelo
peso da mochila.
Chegados novamente ao albergue depois do jantar, pendurou-se a roupa recém lavada nas
camas dos companheiros de viagem que ainda não chegaram a este sítio e que, por agora,
nos deixam este quarto quase vazio, para que possamos deixar as tralhas ao acaso e
dormir ouvindo apenas as rãs, os cães, os grilos e qualquer carro que insiste em passar.

Dia 3 (13/06) Pedra Furada - Tamel (21km)


Acabada a chuvada da noite que nos embalou os sonhos, tivemos que lidar com os
(pequenos) estragos que ela causou: uma infiltração na janela, debaixo da qual tínhamos as
mochilas, dentro das quais tínhamos a roupa. Nada tememos. Enquanto nos preparámos
para sair, uma máquina de secar a roupa resolveu a situação.
Foi um caminho maioritariamente por estradas - outra vez o ruído dos carros e pouco cheiro
a merda. Por isso, procurámos focar a nossa atenção em coisas mais bonitas, para nos
distrair do calor do sol, acentuado pelo alcatrão. Escolhemos uma banda sonora inspirada
na música tradicional espanhola (temos a meta na mente!), cheirámos flores, vimos uma
senhora que alimentava os seus três gatos (e que, quando nos viu mirar, nos cumprimentou
alegremente e nos ofereceu água fresca), decidimos parar mais tempo em Barcelos,
permitindo-nos até fazer dois ou três desvios por ruas que não constam n'O caminho, que
pudemos compensar atravessando as linhas de comboio, em vez de as contornar.
Os fins costumam ser complicados, e o de hoje não fugiu à regra. Uma inclinação que
parecia não acabar, o alcatrão que nunca mais se tornava verde. Também para isto
encontrámos alternativa: deitados no alcatrão (sim, pernas alçadas), olhámos o céu azul e
as vinhas do lado de lá do muro da casa de alguém que provavelmente nunca
conheceremos.
Soube especialmente bem chegar ao albergue e ser acolhidos com tanta simpatia. A
conversa com o Carlos - o recepcionista que nos disse que, por mais caminhos que faça, é
o primeiro que guarda na memória com mais carinho -, fez-nos esquecer a mochila que
traziamos às costas. Já no quarto, conhecemos o Leo, que veio do México, já passou por
França e pelo Norte da Galiza, mas cujo destino não pudemos apurar. Quis saber de onde
vínhamos nós, e onde exactamente ficam Sines e Seia.
Não sendo especialmente conhecedora de geografia, começo a achar que todos os pontos
estão muito pertinho.

Dia 4 (14/06) Tamel - Ponte de Lima (22 km)


Não é que estejamos à procura de sinais, mas estamos atentos. Um café de máquina e
uma napolitana de chocolate - que leva já três dias dentro da mochila -, acompanhadas pelo
nosso mais recente amigo, Leo, já era um início de dia bastante bom. Encontrar um
exemplar de um livro de Saramago no albergue, traduzido em italiano e deixado por
peregrinos, também eles italianos, com a data do aniversário do meu irmão, contribuiu para
que o começo de dia fosse também emotivo. Não podíamos prever que noos cruzariamos
novamente com o José (o Mago), através do seu testemunho escrito, numa instalação ao
lado da igreja em Balugães.
Tambem às dores são especiais os começos - acentuam-nas; é preciso deixar que algum
tempo passe para que a dor comece a fazer parte de nós, e não o contrário.
Ainda que soubéssemos não ter onde parar para almoçar, como havíamos feito nos dias
anteriores, não nos preparámos convenientemente para a situação. Por isso, passamos
grande parte do dia a barras de cereais com chocolate e amendoim e Bolachas de muesli.
Acrescem as azeitonas que encontrámos num banco e o folhado misto que, às 16h,
resgatámos da vitrine de um café onde não devem passar mais de dez pessoas por dia.
Também dez seriam os gatos que vimos uma senhora cuidar - porque a cunhada está fora,
e lhes dá pena deixar os bichos na rua, sem comida. Dá-se também o caso de ser o bicho a
salvar a pessoa, como o cãozinho de quatro meses apenas, que sempre motiva a senhora
que foi operada ao tornozelo a exercitar um pouco o corpo e sair à rua para apanhar ar.
O dia foi muito isto - dizer olá, bom dia, boa tarde, perguntar pela idade do cão e partilhar
diferentes tipos de caminhadas, de passos e de motivações. Bebemos água da fonte,
passámos água no corpo, vimos sapos na água, atravessámos a água através de pontes.
Chegámos a Ponte de Lima. Apesar dos nove quilómetros que pareciam não diminuir a
cada placa que passávamos (até chegar a segunda mais desejada - a primeira era a do
albergue-, a que dizia "P. de Lima 1 KM"), das dores, do cansaço, das pernas a ferver e do
enorme desejo de cair na cama (ou no chão, já nem importa). Contudo, já entendemos:
depois do banho, somos outros. Se depois do banho temos caras amigas para ver, melhor
ainda!
Tivemos a visita da Fátima, da Sara e do José Luís, amantes de Ponte de Lima, óptima
companhia e demasiado generosos - de tal forma que nos trouxeram um pão de ló, que
partimos à mão, qual pão para dividir entre a família.
Ainda houve tempo para conversar em português e em espanhol com os colegas de quarto
e cair finalmente na cama, não sem antes apreciar uma vez mais a ponte, o rio, as luzes e
os sons da rua - quer as rãs, quer aquela banda de covers que canta xutos.

Dia 5 (15/06) Ponte de Lima - Rubiães (18km)


É difícil escrever sobre o dia de hoje por causa do seu final. Ontem escrevemos sobre a
dificuldade dos começos; hoje talvez tenhamos entendido melhor a relevância dos finais.
Conhecemos José, el peregrino, um homem pescador que, sobrevivendo a um naufrágio
onde viu morrer os seus dezasseis companheiros, decidiu que iria caminhar pelo mundo,
percorrendo os seus principais lugares de fé. É certo que a fé não nos diz muito, mas cruzar
o nosso primeiro caminho com aquele que José diz ser o seu último, é bastante impactante.
Não acreditamos que alguém que tenha passado doze anos a caminhar, com uma
motivação tão forte, sujeitando-se às condições que se lhe foram apresentando, ainda
capaz de brincar, de sorrir, de partilhar aquilo que é - e não aquilo que tem, porque isso não
é mais que os catorze quilos de casa que traz consigo às costas -, seja capaz de voltar a
Puerto de Santa Maria, Cádiz, sua terra. Conhecemo-lo hoje, neste albergue, porque Leo
lhe pagou a estadia. De outra maneira, teria ficado a dormir na rua - como tantas vezes fez
durante os últimos doze anos -, e talvez não tivéssemos tido a sorte de cruzar os nossos
caminhos com o dele. Não só os nossos, Ana Rita e Diogo, mas também os de Lillo, Jan,
Hans, Isabel, Luís e Leo. Todos partimos do Porto, e apenas hoje - alguns dirão por destino
- nos sentámos todos juntos à volta de uma mesa de pedra, em que José foi certamente o
fio condutor.
Em tom de brincadeira, disse-nos que não era andaluz (andar a luz), mas sim que andava a
pilhas. Eu não sou capaz de entender o que o move, mas seguramente tentarei pensar nele
da próxima vez que, como hoje, não veja o final de uma etapa, ou não lhe entenda o
sentido, ou sinta que não sou capaz de a terminar.
Antes de se despedir, deixou-nos com Serrat, mas palavras de Machado:
"Caminante, no hay camino. Se hace camino al andar."

Dia 6 (16/06) Rubiães - Valença do Minho (19km)


Uma etapa feita numa manhã, um almoço tranquilo, uma tarde para descansar e ainda ter
tempo (e pés) para passear pela muralha de Valença e encontrar, casualmente, um grupo
de cantares a actuar na rua (com quem também demos duas de dança).
A promessa do dia anterior devia ainda ser cumprida: uma paella feita pelo José, comida
em comunidade, acompanhada por vinho, cerveja e muita conversa - em inglês, espanhol,
português, croata, holandês, alemão, dinamarquês e italiano. Entre todos, cozinhou-se a
paella (ainda que o José, habituado a estar ao leme da cozinha, dos seus tempos de
marinheiro, não se tenha deixado ajudar muito), encheu-se a mesa de pratos e pessoas,
partilharam-se histórias, brincadeiras e abraços.
Alguns despediram-se cedo, preferindo descansar mais para a jornada do dia seguinte; os
que ficaram, brindaram com música, uma e outra vez; quer a música internacional - aquela
que une gerações e gentes de todo o globo -, quer a nacional, de cada um, que forjará
memórias nos outros enquanto nos afirma a identidade, que só na nossa língua se sente
verdadeiramente, não importa quão boa for a tradução.
Agradeceu-se muito. Sentiu-se comunidade. Sentiu-se o caminho. É emocionante como há
pessoas que se tornam nossas companheiras, ainda que só nos encontremos realmente
nos albergues, quando há tempo para ver por baixo das peles protegidas pelo protector
solar e pelas máscaras do dia a dia, para ouvir falar sobre o que cada um realmente é e
quer vir a ser.

Dia 7 (17/06) Valença do Minho - O Porriño (21.5km) + caminhada pela noite até Fraela
Depois da noite de ontem, a manhã foi difícil de começar. Ainda assim, sabíamos que a
jornada não era muito exigente e que poderíamos descansar uma vez chegados ao nosso
poiso temporário.
Saímos mais cedo que a maioria dos companheiros, mas vimos todos ao longo do dia - o
Jan que se levantou da cama para fumar um cigarro, para logo depois voltar a dormir; os
dinamarqueses que sempre nos ultrapassam, não sabemos ainda se por terem as pernas
mais longas ou por terem mais resistência; o casal australiano que sempre pára um minuto
para conversar connosco; o casal de holandesas com quem sempre partilhamos as dores; o
Leo, que vai sozinho, mas sempre se alegra quando os nossos caminhos se cruzam.
A chegada a solo espanhol foi especial: o sol ainda não castigava a pele, víamos Portugal
do outro lado do rio, já cumprimentavamos em galego, já podíamos comer tortilla! Assim
que possível, foi essa iguaria que nos deu energia para concluir a última hora da caminhada
que, já com bastante calor, nos iria custar se não tivéssemos o estômago aconchegado e o
galego um pouco mais practicado.
Chegados ao albergue (desta vez, privado, por força de necessidade), fizemos as camas
(com lençóis, pela primeira vez numa semana!), lavamos roupa e a nós próprios. Não
podíamos prever que fosse acabar como acabou. Quando saímos do albergue para ir tomar
algo com os nossos amigos dinamarqueses, rapidamente se tornou num encontro ainda
mais intercional: conhecemos gente da África do Sul e dos EUA e, depois de beber cerveja
galega e comer tortilla, encontrámos casualmente um bar com música ao vivo. Cantavam
em inglês e em ritmos e acordes conhecidos a qualquer ouvido que já tenha conhecido um
Blues. Depois do concerto, ficaram as crianças a brincar na praça, às quais nos juntámos
um pouco, antes de decidir que não queríamos lençóis nem uma noite de sono
rejuvenescedora. Queríamos caminhar JÁ.
Em sete, partimos. Era a Rita, o Diogo, o Leo, o Otto, o Niko, a Cally e o Tiago. Com duas
caras novas, demos vários passos no escuro, procurando apenas as setas amarelas.
Chegados a uma terra com um parque infantil, decidimos parar e descansar ali mesmo, até
sermos acordados pelas gotas de chuva tão tradicionais na Galiza como a música com
gaitas de foles.
Acabámos por esperar pela cessação da chuva enquanto dividimos uma mesa de pedra,
sem nos arrependermos da loucura que havíamos feito, mas já com a noção dos seus
efeitos no corpo.

Dia 8 (18/06) Fraela - Redondela


Acordámos do sono possível, um sono muito leve, às 07h. Levantámos do chão o soldado
mais preguiçoso e avançámos até ao destino desse dia, ou dessa jornada, já que a noite
acabou por ser o nosso dia.
O cansaço de não haver dormido começava a manifestar-se, mas uns atrás dos outros
fomos gerindo a capacidade de grupo de avançar apesar das adversidades.
Chegados a Redondela, tivemos que tomar um pequeno almoço merecidamente demorado,
tendo aí encontrado os amigos Lillo, Hans e Max. Eles seguiriam caminho até Pontevedra,
enquanto a nós bastaria ocupar o tempo até que pudéssemos entrar no albergue. Assim,
visitámos a cidade com calma, cumprimentámos as gentes e, chegado o momento, fomos
ao albergue garantir que recarregariamos as energias para amanhã durante a noite de hoje,
aproveitando para fazer uma pequena sesta adicional, que nos restituisse já alguma
humanidade.
Já descansados, queríamos tapas. Procurámos um sítio que nos servisse antes das 20h
(ainda não habituámos a cumprir os horários de nutrição espanhóis) e provámos polvo à
feira.
Antes de voltar a dormir, desta vez durante mais tempo, conversámos com a Louise e o
Timothy, que caminhavam há mais de dois meses, na direção oposta à nossa, e estavam
prestes a pisar Portugal pela primeira vez. Pareceu-nos que o tempo que levavam de
estrada não lhes pesava, mas dava motivação para continuar à procura do que os levou a
sair de casa.

Dia 9 (19/06) Redondela - Pontevedra


O dia começou com um croissant delicioso (e enorme) e um café, num café central, nome
igual a todos os cafés centrais de outra qualquer cidade - ainda que possam não ser
centrais na localização, foram factores centrais para a garantia da nossa energia.
Algum dia teríamos que ser abençoados pela chuva galega. Hoje foi o dia. Passámos entre
os pingos da chuva até aos últimos pingos do café, esperando que a carga aliviasse, em
vão. Fizemos frente a São Pedro e, fôssemos nós crentes, acreditariamos que foi por
milagre que só começou o dilúvio quando chegámos ao Albergue. Aproveitámos para
descansar, pôr as leituras em dia e conversar, enquanto comíamos demasiados produtos do
Aldi, comprados nos poucos minutos entre o céu limpo e a carga d'água.
Cheirou a roupa lavada e a comida aquecida no microondas. Fomos lembrados que, se
estamos à procura do caminho, já estamos no caminho, e isso nunca nos fez tanto sentido
como agora.

Dia 10 (20/06) Pontevedra - Caldas de Reis


O Lois disse-nos que é nos tanques comunais de águas termais que se têm boas
conversas. Foi aí que terminámos o dia e, não tendo a certeza se as conversas foram
fructíferas ou não, certamente deu para nos sentirmos melhor com as nossas dores e mais
conectados uns com os outros - que mais não fosse, por estarmos todos relaxados.
Antes de tudo isso, vamos por ordem: conhecemos Reyes, a mãe da Dana, que nos
acompanhou na toma do primeiro café do dia e escolheu o cenário: um café histórico,
frequentado pelas mais conhecidas mentes artistas da Galiza, que contribuíram para a
visibilidade da língua e das artes galegas no século XX. Além da decoração e da carga
histórica do sítio, Reyes preencheu a sala com conversa animada e entusiasmo por nos ver,
o que nos encheu também os corações.
Passámos a ponte para sair de Pontevedra, passámos por vinhas, por flores que nos
mancharam o nariz com pólen (viemos a descobrir que se chamam flores dos burros -
talvez por um motivo) e vários rios e riachos. Deixámos que todos os companheiros
passassem, parando sempre que necessário para esticar as pernas, comer a décima
terceira tortilla do caminho ou falar com as pessoas que não víamos desde o último
cruzamento de três minutos e meio.
Ficámos encantados com a beleza simples de Caldas de Reis e permitimo-nos descansar e
comer gomas ao chegar ao albergue. Nessa chegada, sem saber as condições que nos
esperavam, fomos surpreendidos por quartos com quatro camas - finalmente alguma
privacidade. Quando nos aproximámos do nosso ninho, a hospitaleira disse-nos que havia
uma rapariga na quarta cama e, assim que abrimos a porta, fomos surpreendidos com um
sorriso da Alina, que nos acompanhava desde os primeiros dias.
Jantámos (os três portugueses) com os dinamarqueses, tendo antes e depois provado a
sensação terapêutica de ter as pernas inmersas em águas termais (e reais!). Falámos em
português, escutámos galego, confirmámos novamente que há muito mais a unir-nos do
que nos separa uma fronteira. Sentimos a iminência do fim do caminho.

Dia 11 (21/06) Caldas de Reis - Padrón


Inventamos títulos de coisas que ainda não existem, inspirados pelas realidades ao nosso
entorno. Aconchegamo-nos num silêncio partilhado, verde e fresco.
Chegar ao albergue hoje teve um sabor especialmente agradável: sabíamos que íamos
reencontrar os companheiros que decidiram fazer um caminho mais longo, que nos
esperariam à chegada com um abraço preparado.
Em Padrón, comeu-se pimentos. Houve o primeiro desabamento emocional, mas fez-se em
grupo, em português, e com a abertura de quem já sentiu cravada na pele a falta de pontes.
Assim vamos continuando, tentando manter a leveza, já muito, muito perto do fim.

Dia 12 (22/06) Padrón - Santiago de Compostela


Esperavam-nos os vinte e cinco últimos quilómetros. O sol saía detrás da Igreja antiga no
momento em que nos pusemos a caminho, depois do tão necessário café.
Fomos encontrando companheiros de viagem - os mais presentes, os que nos habituámos
a cumprimentar rapidamente e os que nos alegramos de ver durante o tempo de uma
pequena conversa.
Ao longo desta última etapa, tivemos novamente a sorte de estar rodeados de verde,
podendo inspirar a energia que necessitávamos para chegar ao destino.
O Leo chegou mais cedo e esperou cada um de nós. Nós, os portugueses, fomos os últimos
a chegar, por isso a nossa chegada foi também a hora do reencontro final e completo. À
volta de uma mesa de café partilhámos histórias dos últimos dias e o quanto estávamos
contentes por estar juntos de novo.
Para mim, estar realmente em frente à catedral só aconteceu quando, depois de jantar, nos
dirigimos ali e nos sentamos no chão, em círculo, a conversar e a rir. Em linha quase recta
caminhámos, em círculo concluímos a viagem.

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