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O PADEIRO – RUBEM BRAGA

“Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café
e abro a porta do apartamento - mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo
instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a
"greve do pão dormido". De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve
dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo
a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do
governo.
Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim.
Enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci
antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a
campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:
- Não é ninguém, é o padeiro!
Interroguei-o uma vez: como tivera a ideia de gritar aquilo?
"Então você não é ninguém?"
Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas
vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma
empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro
perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: "não
é ninguém, não, senhora, é o padeiro". Assim ficara sabendo que não era
ninguém...
Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não
quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos
importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho
noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre
depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão
um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina,
como o pão saído do forno.
Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava
importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas
que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O
jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu
coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre
todos alegre; "não é ninguém, é o padeiro!"
E assobiava pelas escadas.”
Não Ameis a Distância - Rubem Braga

Em uma cidade há um milhão e meio de pessoas, em outra há outros milhões; e


as cidades são tão longe uma da outra que nesta é verão quando naquela é
inverno. Em cada uma dessas cidades há uma pessoa, e essas pessoas tão
distantes acaso pensareis que podem cultivar em segredo, como plantinha de
estufa, um amor a distância?
Andam em ruas tão diferentes e passam o dia falando línguas diversas; cada
uma tem em torno de si uma presença constante e inumerável de olhos, vozes,
notícias. Não se telefonam mais; é tão caro e demorado e tão ruim e além disso,
que se diriam? Escrevem-se. Mas uma carta leva dias para chegar; ainda que
venha vibrando, cálida, cheia de sentimento, quem sabe se no momento em que
é lida já não poderia ter sido escrita? A carta não diz o que a outra pessoa está
sentindo, diz o que sentiu a semana passada... e as semanas passam de
maneira assustadora, os domingos se precipitam, mal começam as noites de
sábado, as segundas retornam com veemência gritando - "outra semana!" e as
quartas já tem um gosto de sexta, e o abril de de-já-hoje é mudado em agosto...
Sim, há uma frase na carta cheia de calor, cheia de luz; mas a vida presente é
traiçoeira e os astrônomos não dizem que muitas vez ficamos como patetas a
ver uma linda estrela jurando pela sua existência - e no entanto, há séculos ela
se apagou na escuridão do caos, sua luz é que custou a fazer a viagem? Direis
que não importa a estrela em si mesma, e sim a luz que ela nos manda; e eu
vos direi: amai para entendê-las!
Ao que ama o que lhe importa não é a luz nem o som, é a própria pessoa amada
mesma, o seu vero cabelo, e o vero pêlo, o osso de seu joelho, sua terna e
úmida presença carnal, o imediato calor; é o de hoje, o agora, o aqui - e isso não
há.
Então a outra pessoa, vira retratinho no bolso, borboleta perdida no ar, brisa que
a testa recebe na esquina, tudo o que for eco, sombra, imagem, um pequeno
fantasma, e nada mais. E a vida de todo dia vai gastando insensivelmente a
outra pessoa, hoje lhe tira um modesto fio de cabelo, amanhã apenas passa a
unha de leve fazendo um traço branco na sua coxa queimada pelo sol, de súbito
a outra pessoa entra em fading um sábado inteiro, está-se gastando, perdendo
seu poder emissor a distância.
Cuidai amar uma pessoa, e ao fim vosso amor é um maço de cartas e
fotografias no fundo de uma gaveta que se abre cada vez menos...
Não ameis a distância, não ameis, não ameis!

EXIGÊNCIAS DA VIDA MODERNA – LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO

“Dizem que todos os dias você deve comer uma maçã por causa do ferro.
E uma banana pelo potássio. E também uma laranja pela vitamina C. Uma
xícara de chá verde sem açúcar para prevenir a diabetes.
Todos os dias deve-se tomar ao menos dois litros de água. E uriná-los, o que
consome o dobro do tempo.
Todos os dias deve-se tomar um Yakult pelos lactobacilos (que ninguém sabe
bem o que é, mas que aos bilhões, ajudam a digestão). Cada dia uma Aspirina,
previne infarto. Uma taça de vinho tinto também. Uma de vinho branco estabiliza
o sistema nervoso. Um copo de cerveja, para... não lembro bem para o que,
mas faz bem. O benefício adicional é que se você tomar tudo isso ao mesmo
tempo e tiver um derrame, nem vai perceber.
Todos os dias deve-se comer fibra. Muita, muitíssima fibra. Fibra suficiente para
fazer um pulôver.
Você deve fazer entre quatro e seis refeições leves diariamente. E nunca se
esqueça de mastigar pelo menos cem vezes cada garfada. Só para comer,
serão cerca de cinco horas do dia...
E não esqueça de escovar os dentes depois de comer. Ou seja, você tem que
escovar os dentes depois da maçã, da banana, da laranja, das seis refeições e
enquanto tiver dentes, passar fio dental, massagear a gengiva, escovar a língua
e bochechar com Plax. Melhor, inclusive, ampliar o banheiro e aproveitar para
colocar um equipamento de som, porque entre a água, a fibra e os dentes, você
vai passar ali várias horas por dia.
Há que se dormir oito horas por noite e trabalhar outras oito por dia, mais as
cinco comendo são vinte e uma.
Sobram três, desde que você não pegue trânsito. As estatísticas comprovam
que assistimos três horas de TV por dia. Menos você, porque todos os dias você
vai caminhar ao menos meia hora (por experiência própria, após quinze minutos
dê meia volta e comece a voltar, ou a meia hora vira uma).
E você deve cuidar das amizades, porque são como uma planta: devem ser
regadas diariamente, o que me faz pensar em quem vai cuidar delas quando eu
estiver viajando.
Deve-se estar bem informado também, lendo dois ou três jornais por dia para
comparar as informações.
Ah! E o sexo! Todos os dias, tomando o cuidado de não se cair na rotina. Há
que ser criativo, inovador para renovar a sedução. Isso leva tempo - e nem
estou falando de sexo tântrico.
Também precisa sobrar tempo para varrer, passar, lavar roupa, pratos e espero
que você não tenha um bichinho de estimação. Na minha conta são 29 horas
por dia.
A única solução que me ocorre é fazer várias dessas coisas ao mesmo tempo!
Por exemplo, tomar banho frio com a boca aberta, assim você toma água e
escova os dentes. Chame os amigos junto com os seus pais. Beba o vinho,
coma a maçã e a banana junto com a sua mulher... na sua cama.
Ainda bem que somos crescidinhos, senão ainda teria um Danoninho e se
sobrarem 5 minutos, uma colherada de leite de magnésio.
Agora tenho que ir.
É o meio do dia, e depois da cerveja, do vinho e da maçã, tenho que ir ao
banheiro.
E já que vou, levo um jornal... Tchau!
Viva a vida com bom humor!!!”

O que faz bem pra saúde? - Luis Fernando Veríssimo

Cada semana, uma novidade.


A última foi que pizza previne câncer do esôfago.
Acho a maior graça.
Tomate previne isso, cebola previne aquilo, chocolate faz bem, chocolate faz
mal, um cálice diário de vinho não tem problema, qualquer gole de álcool é
nocivo, tome água em abundância, mas peraí, não exagere...
Diante desta profusão de descobertas, acho mais seguro não mudar de hábitos.
Sei direitinho o que faz bem e o que faz mal pra minha saúde.
Prazer faz muito bem.
Dormir me deixa 0 km.
Ler um bom livro faz eu me sentir novo em folha.
Viajar me deixa tenso antes de embarcar, mas depois eu rejuvenesço uns cinco
anos.
Viagens aéreas não me incham as pernas, me incham o cérebro, volto cheio de
ideias.
Brigar me provoca arritmia cardíaca.
Ver pessoas tendo acessos de estupidez me embrulha o estômago.
Testemunhar gente jogando lata de cerveja pela janela do carro me faz perder
toda a fé no ser humano.
E telejornais os médicos deveriam proibir - como doem!
Essa história de que sexo faz bem pra pele acho que é conversa, mas mal tenho
certeza de que não faz, então, pode-se abusar.
Caminhar faz bem, dançar faz bem, ficar em silêncio quando uma discussão
está pegando fogo faz muito bem: você exercita o autocontrole e ainda acorda
no outro dia sem se sentir arrependido de nada.
Acordar de manhã arrependido do que disse ou do que fez ontem à noite é
prejudicial à saúde.
E passar o resto do dia sem coragem para pedir desculpas, pior ainda.
Não pedir perdão pelas nossas mancadas dá câncer, não há tomate ou
muzzarela que previna.
Ir ao cinema, conseguir um lugar central nas fileiras do fundo, não ter ninguém
atrapalhando sua visão, nenhum celular tocando e o filme ser espetacular, UAU!
Cinema é melhor pra saúde do que pipoca.
Beijar é melhor do que fumar.
Exercício é melhor do que cirurgia.
Humor é melhor do que rancor.
Amigos são melhores do que gente influente.
Pergunta é melhor do que dúvida.
Tomo pouca água, bebo mais que um cálice de vinho por dia, faz dois meses
que não piso na academia, mas tenho dormido bem, trabalhado bastante,
encontrado meus amigos, ido ao cinema e confiado que tudo isso pode me levar
a uma idade avançada.
Sonhar é melhor do que nada.

A Ultima Crônica – Fernando Sabino

A caminho de casa, entro


num botequim da Gávea
para tomar um café junto
ao balcão. Na realidade
estou adiando o
momento de escrever. A perspectiva me
assusta. Gostaria de
estar inspirado, de
coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no
cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu
disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser
vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental,
quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num
acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial.
Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso
do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não
sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora
de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas
mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da
humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela
presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha
no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as
perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres
esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família,
célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a
fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente
retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta
no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando
imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este
ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A
mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua
presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem
atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho -- um
bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho
que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os
três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto
ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa.
O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera.
A filha aguarda também, atenta como um animalzinho.
Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na
fatia do bolo.
E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas.
Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra
com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito
compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos:
"parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna
a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos
sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura —
ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O
pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente
do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observa-lo, nossos olhos se
encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a cabeça,
mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última cronica: que fosse pura como esse sorriso.

O melhor amigo – Fernando Sabino


A mãe estava na sala, costurando. O menino abriu a porta da rua, meio
ressabiado, arriscou um passo para dentro e mediu cautelosamente a distância.
Como a mãe não se voltasse
Para vê-lo, deu uma corridinha em direção de seu quarto.
– Meu filho? – gritou ela.
– O que é – respondeu, com o ar mais natural que lhe foi possível.
– Que é que você está carregando aí?
Como podia ter visto alguma coisa, se nem levantara a cabeça? Sentindo-se
perdido,tentou ainda ganhar tempo.
– Eu? Nada…
– Está sim. Você entrou carregando uma coisa.
Pronto: estava descoberto. Não adiantava negar – o jeito era procurar comovê-
la. Veio caminhando desconsolado até a sala, mostrou à mãe o que estava
carregando:
– Olha aí, mamãe: é um filhote…
Seus olhos súplices aguardavam a decisão.
– Um filhote? Onde é que você arranjou isso?
– Achei na rua. Tão bonitinho, não é, mamãe?
Sabia que não adiantava: ela já chamava o filhote de isso. Insistiu ainda:
– Deve estar com fome, olha só a carinha que ele faz.
– Trate de levar embora esse cachorro agora mesmo!
– Ah, mamãe… – já compondo uma cara de choro.
– Tem dez minutos para botar esse bicho na rua. Já disse que não quero
animais aqui em casa. Tanta coisa para cuidar, Deus me livre de ainda inventar
uma amolação dessas.
O menino tentou enxugar uma lágrima, não havia lágrima. Voltou para o quarto,
emburrado:
A gente também não tem nenhum direito nesta casa – pensava. Um dia ainda
faço um estrago louco. Meu único amigo, enxotado desta maneira!
– Que diabo também, nesta casa tudo é proibido! – gritou, lá do quarto, e ficou
esperando a reação da mãe.
– Dez minutos – repetiu ela, com firmeza.
– Todo mundo tem cachorro, só eu que não tenho.
– Você não é todo mundo.
– Também, de hoje em diante eu não estudo mais, não vou mais ao colégio, não
faço mais nada.
– Veremos – limitou-se a mãe, de novo distraída com a sua costura.
– A senhora é ruim mesmo, não tem coração!
– Sua alma, sua palma.
Conhecia bem a mãe, sabia que não haveria apelo: tinha dez minutos para
brincar com seu novo amigo, e depois… ao fim de dez minutos, a voz da mãe,
inexorável:
– Vamos, chega! Leva esse cachorro embora.
– Ah, mamãe, deixa! – choramingou ainda: – Meu melhor amigo, não tenho mais
ninguém nesta vida.
– E eu? Que bobagem é essa, você não tem sua mãe?
– Mãe e cachorro não é a mesma coisa.
– Deixa de conversa: obedece sua mãe.
Ele saiu, e seus olhos prometiam vingança. A mãe chegou a se preocupar:
meninos nessa idade, uma injustiça praticada e eles perdem a cabeça, um
recalque, complexos, essa coisa
– Pronto, mamãe!
E exibia-lhe uma nota de vinte e uma de dez: havia vendido seu melhor amigo
por trinta dinheiros.
– Eu devia ter pedido cinquenta, tenho certeza que ele dava murmurou,
pensativo.

"A flor no asfalto", Otto Lara Rezende

Conheço essa estrada genocida, o começo da Rio-Petrópolis. Duvido que se


encontre um trecho rodoviário ou urbano mais assassino do que esse. São
tantos os acidentes que já nem se abre inquérito. Quem atravessa a avenida
Brasil fora da passarela quer morrer. Se morre, ninguém liga. Aparece aquela
velinha acesa, o corpo é coberto por uma folha de jornal e pronto. Não se fala
mais nisso.
Teria sido o destino de dona Creusa, se não levasse nas entranhas a própria
vida. Na pista que vem para o Rio, a 20 metros da passarela de pedestres, dona
Creusa foi apanhada por uma Kombi. O motorista tentou parar e não conseguiu.
Em seguida, veio um outro carro, um Apolo, e sobreveio o segundo
atropelamento. A mesma vítima. Ferida, o ventre aberto pelas ferragens, deu-se
aí o milagre.
Dona Creusa estava grávida e morreu na hora. Mas no asfalto, expelida com a
placenta, apareceu uma criança. Coberta a mãe com um plástico azul, um
estudante pegou o bebê e o levou para o acostamento. Nunca tinha visto um
parto na sua vida. Entre os curiosos, uma mulher amarrou o umbigo da recém-
nascida. Uma menina. Por sorte, vinha vindo uma ambulância. Depois de chorar
no asfalto, o bebê foi levado para o hospital de Xerém.
Dona Creusa, aos 44 anos, já era avó, mãe de vários filhos e viúva. Pobre,
concentração humana de experiências e de dores, tinha pressa de viver. E era
uma pilha carregada de vida. Quem devia estar ali era sua nora Marizete. Mas
dona Creusa se ofereceu para ir no seu lugar porque, grávida, não pagava a
passagem. Com o dinheiro do ônibus podia comprar sabão. Levava uma bolsa
preta, com um coração de cartolina vermelha.
No cartão estava escrito: quinta-feira. Foi o dia do atropelamento. Apolo é o
símbolo da vitória sobre a violência. Diz o poeta Píndaro que é o deus que põe
no coração o amor da concórdia. No hospital, sete mães disputaram o privilégio
de dar de mamar ao bebê. A vida é forte. E bela, apolínea, apesar de tudo. Por
que não?

Vista cansada – Crônica de Otto Lara Resende


Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como
se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez
foi outro escritor quem disse. Essa idéia de olhar pela última vez tem algo de
deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não
admira que o Hemingway tenha acabado como acabou.
Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é
só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o
olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia,
sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não
desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.
Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o
que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê.
Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do
seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe
bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o
porteiro cometeu a descortesia de falecer.
Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima idéia.
Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia
no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que
ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a
voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não
vemos.
Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o
espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato,
ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria
mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É
por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.

Crônica: Unanimidade - Paulo Mendes Campos

O homem hoje vive simultaneamente em todas as partes do mundo. Dói-lhe a


terra inteira como se fosse uma extensão sensível de seu corpo. O rádio, a
televisão, o telex são as células nervosas desse imenso organismo a transmitir-
lhe impressões sob forma de notícias.
O jornal é o gráfico dessa vida nervosa complementar, estampando diariamente
as oscilações de nossas tristezas universais, nossas pálidas esperanças
ecumênicas, nosso medo; somando as parcelas do mundo em nossa mente,
divide a nossa mal distraída atenção por todos os continentes.
O homem particular desaparece: somos todos homens públicos. As mesmas
vibrações percorrem os povos de toda a Terra; nossa curiosidade e nossos
interesses estão em todos os lugares; nosso ativado espírito de justiça não
recua diante das fronteiras; já não vivemos em nossa “ urbs” limitada; nossa
segurança não depende apenas de nós, da polícia, da cidade.
Uma atitude tomada a milhares de quilômetros poderá transformar
violentamente o nosso plano de vida para amanhã. Não tem sentido dizer: não
tenho nada com isso. Pois isso ou aquilo, tudo tem a ver conosco. Temos a ver
com todas as coisas e todas as pessoas. (...)
Tudo pode afetar a nossa vida, nossa consciência, nosso sentimento de culpa,
nossa tranqüilidade, nossa noite de descanso. Estamos envolvidos por tudo e
por todos. Das experiências termonucleares às pesquisas sobre dor reumática.
Das multidões esfomeadas da Índia à menina brasileira que furtou um pão. Das
reviravoltas da política africana às usinas de alumínio no Canadá.
Da janela de seu quarto, aberto para todos os quadrantes, o homem indaga o
mundo, olha as razões do mundo, fareja os motivos e as conseqüências dessa
ou daquela atitude, dessa ou daquela omissão, refletindo a vasta massa informe
dos acontecimentos, das situações estacionárias, revolucionárias, ou
reacionárias, das promessas e das mentiras universais.
E olhando, indagando, farejando, refletindo, o seu interesse cruza com o
interesse de milhões de outras criaturas que procuram um entendimento
universal, uma evolução verdadeira, uma paz estável para as gerações novas,
uma segurança solidária, um mundo afinal mais decente, menos enganado
pelos poderosos, menos injustiçado.
Nosso destino é morrer. Mas também é nascer. O resto é aflição ou frivolidade
do espírito.

Paulo Mendes Campos


O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois
de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de
ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de
raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando
de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite
votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos
no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como
dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha
acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas
sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos
monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes
acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as
mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar
diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão
ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas
femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o
amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade
simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da
piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas
que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o
gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de
delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que
vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas
esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na
barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e
quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na
usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade;
em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou
depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na
descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que
começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes
acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas
de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico
sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos
os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a
bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às
vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que
continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo;
às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode
acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o
amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva
da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do
inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por
qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a
qualquer minuto o amor acaba.

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