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Miguel Luz
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ÍNDICE
4……….……….……..…….………….….….………..……Logo Se Vê (Prefácio)
151.…….….…..…….………….…….…….………….….……….….Carro À Vana
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Logo Se Vê
Uma das minhas maiores dificuldades na vida é lidar com uma constante
tendência de querer controlar tudo. Talvez fruto de um medo de não
aproveitar tudo ao máximo, proeza essa infelizmente impossível de
concretizar, ou talvez reflexo de uma sede insaciável de experiências que me
preenchem e inspiram.
Talvez por isso tenha enchido tantas páginas de um diário com a minha letra
de médico sem licenciatura numa área que se relacione, e se calhar é
também essa a razão pela qual fotografei centenas de momentos que
passaram à minha frente nestas três viagens reveladas nas próximas
páginas deste livro.
Logo Se Vê.
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Sozinho pelo Sul de Itália
Setembro de 2019
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Dia 1 // 4 de Outubro de 2019
O meu dia começava quando a noite de outros acabava. Pelas ruas vazias
passei por grupos que fumavam e bebiam os últimos copos enquanto eu
caminhava a passo rápido pronto para começar uma viagem de destino
incerto. Apanhei o comboio para que tinha bilhete e, depois de quatro
escalas em pequenas estações, eram oito da manhã quando cheguei a
Siena.
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Entrei numa igreja e fiquei surpreso com o seu tamanho visto do interior em
que o silêncio reinava. Não sou católico mas a arquitetura das igrejas sempre
me fascinou, pelo que deambulei por ali com a cabeça virada para cima
durante uns minutos. Passei pela Piazza del Campo. O chão da praça
redonda tinha um declive até ao centro e era marcada pela Torre Del Mangia.
Deitei-me a apanhar um banho de sol mas quando percebi que estava a
começar a adormecer, levantei-me e fui em direção ao Duomo.
A catedral, gótica, é invulgar pela quantidade de cores, padrões e desenhos
no seu interior. As colunas eram grossas e tinham padrões de zebra de verde
e branco. Andei pelas salas de um museu adjacente mas fartei-me
rapidamente.
Ouvi uma senhora a chamar-me.
- Mike!
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Acordei e, como já tinha passeado pela maioria dos pontos pelos quais Siena
é conhecida, pensei em opções para um próximo destino. Acabei por decidir
ir para a capital italiana e apanhei o primeiro comboio que consegui comprar,
às 17h45. Sentei-me e vinguei-me da noite mal dormida. Puxei a minha
sweatshirt ligeiramente para cima de modo a poder mergulhar a cabeça no
tecido e adormeci enquanto ouvia Rejjie Snow. Cheguei à estação de Roma
Termini às 21h30.
- Olá!
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Dia 2 // 5 de Outubro de 2019
O quê? Não costumo acordar com tanta vontade me de sentar na sanita mas
este era um desses dias e havia uma fila!
Lavei os dentes na cozinha, vesti-me e saí de casa. Tomei um café num café
como pretexto para usar a WC. Saí do estabelecimento, desci a rua e
comprei uma banana e uvas num mercado de rua. Pedi a outro
estabelecimento para usar a WC, desta vez para lavar as uvas, e fui a andar
para o centro enquanto comia fruta fresca.
Roma! Tinha cá estado há 5 anos e não me lembrava de muita coisa. Andei
muito nessa manhã, porque a casa não era perto do centro e a cidade é
enorme. Revi o Coliseu, por fora, o Circus Maximus e o Arco Constantino
mas sentia-me numa Roma inundada de turistas por entre os quais eu tinha
de fazer fintas para me conseguir deslocar.
Almocei na Piazza Navona uma massa sentado no chão e senti-me cansado
das últimas horas a andar pelas ruas ou talvez ansioso pela quantidade de
gente com selfie sticks e ambições de fotografias de plástico.
Queria poder ter a cidade só para mim. Queria poder viver a cidade sem o
turismo em massa que distorcia a essência romana de que eu andava à
procura. E a única forma de fazer isso seria acordar de madrugada no dia
seguinte.
Andei, andei, andei. Não entrei em nenhum museu ou monumento mas vi
algumas piazzas. Passeei na Vila Borghese e deitei-me no meio de um
relvado um bocado.
Encontrei-me com a Beatriz e voltámos para casa.
Fiz o jantar, comemos e fui dormir cedo para acordar cedo.
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Dia 3 // 6 de Outubro de 2019
Como tinha combinado comigo, acordei às seis da manhã com pica: quando
se tem planos que nos entusiasmam é mais fácil sair da cama. Comi uns
cereais enquanto ainda estava escuro lá fora.
Saí e procurei o metro com o Google Maps que me fez andar às voltas e
dizer anseiras em voz alta. Tinha de chegar antes dos turistas! Foi stressante
o caminho até à Fontana di Trevi porque corria contra o tempo (e nunca
ganhamos essa corrida) mas acabei por lá chegar às 7h20.
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A fonte bonita com o azul a fazer pandã com o céu da manhã era palco para
uma fila de modelos que posavam para fotografias. Ri-me genuinamente
mas fiquei com alguma pena. Até numa viagem as pessoas procuram
massajar o ego. Procurar aquele sítio conhecido, cravar uma memória
instantânea aqui e acolá para poder mostrar aos outros que elas (sim, elas!)
estiveram ali. Mas nisto tudo será que repararam que o azul do céu da
manhã estava a fazer pandã com a cor da água? Abstraí-me e contemplei.
Tinha feito um percurso no dia anterior e segui a lista. Eu sei, eu sei. Sem
plano, logo se vê, bla bla bla. Mas quando se anda a fugir de turistas temos
de fazer alguns sacrifícios.
A seguir à famosa fonte percorri algumas ruelas com a luz do amanhecer e
entrei na Piazza Navona vazia às 8h00. Vi um cão a fugir dos donos e a
deitar-se num banco.
Pensei que, sem saber, o animal estava a tirar proveito daquele objeto como
é suposto, fazendo o que um humano faria e, por isso, ri-me.
O turbilhão de pessoas do dia anterior que me deixou algo nervoso
contrastava com a calma da manhã que me fazia sentir leve naquela famosa
piazza que, a esta hora, não tinha mais do que dois ou três italianos a
passear cães que se sentavam em bancos.
Fotografei.
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Continuei a pé para o Campo de Fiori e passei numa padaria conhecida
chamada Antico Forno Roscioli. Comprei pizza rossa só com molho de
tomate ainda quente acabada de fazer e piazza bianca feita só com a massa,
azeite e sal. Sentei-me nas escadas de uma igreja e às 8h40 estava a
deliciar-me a comer pizza. Nunca na minha vida o tinha feito tão cedo.
Um homem que passou à minha frente, na rua da igreja, olhou para o
edifício, benzeu-se em movimento e voltou a olhar em frente.
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Fui a pé até ao Vaticano e observei a Praça. Não entrei na igreja porque
estava cheia mas podia-se ver o interior da igreja, com a cerimónia a
decorrer, nos grandes ecrãs cá fora.
Apanhei um elétrico e senti-me no limbo entre acordado e a adormecer. Fui
ao MACRO, Museu de arte contemporânea de Roma que não achei nada de
especial mas que foi grátis. Isto tudo e ainda eram 13h00.
Apanhei novo elétrico em direção a Trastevere, um bairro do outro lado do
Rio Tibre. Passeei pelas ruas do bairro cheias de heras e outras plantas a
trepar e a sair das janelas. Entrei num restaurante para almoçar: uma pizza
de gorgonzola e pêra. Para sobremesa um tiramissu, como sempre. Uma vez
li em algum sítio que podemos aventurar-nos para coisas novas, o que nos
pode levar a descobrir algo que passamos a adorar, ou podemos cingir-nos
ao que já sabemos que gostamos muito. No caso de sobremesas em Itália
optei sempre pela segunda opção.
Fiquei cheio de comida e de energia e vagueei com boa disposição. Fui a um
mercado vintage e olhei para livros.
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Depois fui até ao Giardino degli Aranci, ou o Jardim das Laranjas, e vi o pôr
do sol com uma das vistas mais bonitas da cidade. Ouvia um homem que
tocava guitarra no jardim enquanto olhava pelo miradouro e via cúpulas e
monumentos a espreitarem por cima dos edifícios.
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Cheguei ao sítio do evento, chamado Snatch club. Não faço ideia como mas
vim parar ao sítio certo: um bar com uma mini-rampa de skate lá dentro, que
serviu de palco para o artista que ia atuar. Comi dois cachorros quentes e
bebi uma cerveja. Conversei com o barman sobre skate e sobre de onde
vinha. Quando o concerto estava prestes a começar sentei-me na rampa.
O artista era um rapper e baterista de Nova Iorque, acompanhado de um
guitarrista e um baixista. Cantava e puxava pelo público do pequeno espaço
por cima de ritmos cheios de groove que tocava na bateria.
Teve o filho de três anos ao colo ou ao seu lado em pé durante praticamente
todo o concerto e, apesar dele tentar de tudo para receber atenção do pai e
perturbar a sua concentração, o artista tinha uma mão na baqueta e outra no
filho. Tocava sem qualquer esforço e sem se desconcentrar.
A certo ponto, enquanto tocava, o pai deu-lhe uma das baquetas e deixou-o
bater na tarola da bateria. O rapaz tocava descoordenadamente durante uns
segundos e o pai pegou-lhe na mão de novo impedindo que tocasse.
Novamente, quando decidia, o artista libertava a pequena mão e lá
começava ela a bater no tambor num ritmo aleatório. Fiquei boquiaberto e a
sorrir com tudo isto: o pai usava os ritmos descoordenados do filho como
parte da performance, quase fundindo-o com a bateria, criando ordem no
meio do caos.
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Fui-me embora às duas da manhã, exausto mas feliz. A última coisa do dia
foi ver um quiosque florista indiano que estava aberto 24 horas por dia.
Fiquei curioso e fui-lhe perguntar se estava mesmo aberto dia e noite. Como
não me entendeu em inglês nem no meu mau italiano, pus o tradutor a falar
por mim. Riu-se, disse que sim, eu ri-me espantado, e perguntei-lhe se
vende flores a estas horas. Riu-se e disse que sim novamente, dissemos boa
noite um ao outro e fui para casa dormir enquanto ele permanecia aberto
para o caso de alguém querer comprar uma flor às quatro da manhã.
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Dia 4 // 7 de Outubro de 2019
- Let’se goe!
Pedi uma pasta Calcio e Pepe e elas comeram straciatella que pensava ser
um sabor de gelado mas é, na verdade, um queijo fresco do sul do país.
Veio para a mesa uma tábua de queijos, mortadela e salame. Comemos,
comemos, comemos. Acho que nunca comi tanto fora como na minha
estadia de seis meses em Itália, sempre a dar a desculpa, a mim próprio, de
que a gastronomia faz parte da cultura para poder gastar dinheiro à vontade.
A cozinha italiana é mesmo das melhores do mundo e dei-lhes os parabéns
por isso como se tivessem algum mérito pelos feitos culinários dos seus
antepassados.
Do nada estou a almoçar comida incrível com duas italianas simpáticas e a
pensar em como estou em viagem e como gosto dessa sensação Estar “em
viagem” é nunca estar parado. Decidi ir para Nápoles no dia seguinte.
Pagámos 13 euros cada um e fomos a pé até à casa da Chiara. Fiz festinhas
aos dois pequenos cães dela e a seguir saímos de carro e fomos até
Trastevere onde bebemos uma cerveja no Bar San Calisto.
A Silvia era uma miúda com cabelo encaracolado, no limiar entre tímida e
extrovertida. Disse-me que era super sensível ao bocejo, bastava alguém
dizer a palavra para a fazer bocejar. A Chiara era um trovão sorridente que
falava alto e com olhos muito grandes, verdes e interessados. Gostei muito
destas duas pessoas e apesar de as conhecer há exatamente 24 horas sinto
que desenvolvemos uma relação especial e verdadeira, embora efémera.
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Despedi-me da Chiara porque ela tinha de ir para uma aula de teatro e fui
com a Silvia passear e ver as luzes de Roma à noite. Não voltei a ver a
Chiara e, ainda que tenhamos combinado encontrar-nos em Bologna, o mais
provável é isto ser só mais um daqueles planos que se vão com a mesma
rapidez que apareceram. E não é que me entristeça nunca mais a ver mas
tenho de me lembrar da efemeridade e impermanência das coisas para não
criar expectativas irreais e frustrar-me mais tarde.
Passeei com a Silvia por um Vaticano noturno e depois fomos buscar uns
fritos típicos da Sicília. Subimos pela Piazza del Popolo até ao miradouro
acima, Terrazza del Pincio. Via-se a cúpula da Basilica di San Pietro do
Vaticano e as ruas de Roma iluminadas. Ouvíamos Willow Smith.
- If you come to Bologna text me! And if I come back I’ll do it! - disse-lhe.
- It was so nice to meet you!
Abraçámo-nos e vi-a uma última vez ao longe, antes de dobrar uma esquina.
Nunca mais a vi. Andei, cheguei a casa lá para a meia noite e arrumei as
coisas. Despedi-me da Bea porque de manhã ela ia estar a dormir. Agradeci-
lhe muito e fui dormir quatro horas.
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Dia 5 // 8 de Outubro de 2019
- Como se chiama?
- (…)
- È bellissimo!
Faço sempre dois segundos de conversa para quebrar o gelo e poder fazer
festas ao cão sem pressão do dono. Comi um croissant e entrei no comboio
direto para Nápoles. Durante a maior parte do tempo dormi, ou tentei dormir,
no banco a ocupar dois lugares horizontalmente.
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Saí do comboio e pus os pés em Nápoles.
Nápoles é o caos.
Confusão, sujidade e motas, carros, fumo, buzinas, pessoas num trânsito
psicótico. Mas estranhamente é um caos que me agrada. Sinto que ninguém
quer saber de nenhuma regra, especialmente de trânsito.
Fui a pé com a mala pesada até um hostel que encontrei na net. Deixei lá a
mala e só faria o check in à tarde. Saí só com a máquina fotográfica e andei
sozinho pelas ruas napolitanas.
Vi prédios degradados habitados, lixo espalhado pelos passeios, varandas
com itens aleatórios. As ruas inundavam informação e há sempre algo para
onde olhar num ambiente clandestino. Parei numas barracas que formavam
uma feira de rua por onde as motas passavam nos mesmos espaços
apertados que as pessoas. Noutra cidade nem uma bicicleta passaria por ali
sem ser à mão, em Nápoles passa uma mulher com os dois filhos na mesma
mota, sem capacetes, e ninguém quer saber. Vi pessoas ao telemóvel nos
bancos de trás das motas sem se agarrarem ao condutor e a andar rápido.
Andei muito e os pés doem-me mas esse é um sinal de que o dia rendeu.
Ouvi beats do J Dilla.
Ao levantar dinheiro perguntei a uma rapariga no meu italiano ranhoso
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Saí, bebi um café e passeei. Passei em piazzas e ruelas sombrias no centro
histórico da cidade e procurei um restaurante numa lista gigante na internet.
Escolhi um pelo nome diferente que me chamou à atenção.
Cheguei ao Tandem mas estava cheio e a empregada levou-me e a outros
ao outro estabelecimento deles que ficava a seis minutos a pé dali. Entrei,
sentei-me e pedi uma pasta ragu.
Inesperadamente a música que estava a dar acabou e começou a tocar uma
versão acústica da Love is a Laserquest dos Arctic Monkeys. O meu rosto
iluminou-se, sorri e olhei em volta para ver se alguém tinha tido a mesma
reação. Qual era a probabilidade de eu escolher aquele restaurante, de entre
tantos outros, de estar cheio e acabar por ser levado a outro sítio e aí dar
uma versão alternativa de uma música da minha banda favorita que nunca
ouvi a dar em nenhum sítio público?
Senti que estava a acontecer para mim, então cantei baixinho na minha
mesa de uma pessoa. Será que sim? Será que a coincidência é romântica
como a imaginei ou não passa disso mesmo, uma coincidência? Esta
pergunta passa-me pela cabeça muitas vezes mas, como não é possível ter
uma resposta, prefiro sorrir e cantar baixinho.
A comida chegou e devorei tudo com parmigiano por cima. Paguei e saí.
Passeei e bebi uma cerveja numa piazza. Pensei em conhecer pessoas a
meter conversa mas decidi ir para o hostel e dormir.
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Dia 6 // 9 de Outubro de 2019
Esta coisa de ficar em hostels obriga a que, por vezes, me calhe um gajo que
ressona na cama de beliche por baixo da minha. A meio da noite irritei-me
mas superei.
De manhã vagueei pelas ruas do Quartiere Spagnoli. Mil varandas, motas a
ziguezaguear por entre as ruas ortogonais a subir e a descer, naquele que
senti ser o bairro mais típico e cru de Nápoles. As portas e janelas das casas
do rés-do-chão dos prédios degradados estavam abertas para a rua e,
através delas, vi mulheres a fazer limpezas, televisões ligadas, vi velhos
sentados à porta e crianças a brincar na rua. Havia, ali, uma certa calma. Os
prédios, altos, tornavam as ruas acolhedoras e, longe das estradas principais
e do trânsito caótico, o silêncio ouvia-se mais alto.
Enquanto me preparava para tirar uma foto um jato vindo de um balde de
água caiu do céu. À medida que passeava via, entre os prédios, um castelo
longíquo no topo da colina por que o bairro subia: o Castel de Sant’Elmo.
Decidi ir.
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Um balde de água no momento do disparo.
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Subi a colina ao sol por ruas e escadas inclinadas. A certo ponto olhei para
trás e vi Nápoles lá em baixo à beira mar e, mais à frente, uma pequena
grande massa de terra que emergia do horizonte. Continuei a subir e entrei
no castelo. Uma vista panorâmica permitia observar não só a ilha de Capri e
outras próximas bem como o Vesúvio. O céu limpo e eu também. Por vezes
vinham-me à cabeça pensamentos, nada em concreto, que me impediam de
estar totalmente presente. Pensamentos sobre estar a pensar em vez de
fluir. Mais tarde, sem esforço racional, desapareceram. Inspirei, absorvi a
paisagem e pus-me a descer tudo de novo.
Fui até à zona mais moderna da cidade, a zona mais restaurada, ao contrário
de partes em que reinavam os prédios cinzentos meio degradados, já sem
tinta. Entrei num pequeno restaurante apertado em que só havia duas
opções no menu que o empregado me deu a conhecer via oral.
- Margherita o marinara?
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Várias vezes nesta viagem me veio à cabeça o facto de estar sozinho,
sempre acompanhado de umas cócegas na barriga. Viajar sozinho é
diferente. Estou constantemente só comigo mas tenho também muitas
interações passageiras com pessoas que provavelmente nunca mais vou ver
na vida, e isso é libertador. Há uma liberdade muito forte em viajar sozinho.
Sinto que me ouço melhor, estou mais consciente do meu diálogo interior, e
aproximo-me a algo mais profundo em mim. Mas, apesar de sozinho, nunca
me sinto só num sentido pejorativo.
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Mergulhei, nadei, boiei, apanhei sol, meditei e mergulhei de novo. Sequei ao
sol deitado numa das rochas.
Vesti-me de novo e caminhei até ao Castel dell’Ovo com a pele molhada a
humedecer o tecido, onde olhei para o mar outra vez.
Comi chocolates num sítio conhecido chamado Gay-Odin. As empregadas
disseram-me para ir ao Duomo e lá fui eu ao sabor da brisa de um final de
tarde em Nápoles.
Saí e, ao lado do restaurante, vi algo que já tinha visto durante o dia naquele
bairro: uma senhora idosa que estava numa varanda a deixar cair um balde,
pendurado por uma corda que ia largando aos poucos até o balde descer ao
nível da rua. O dono da Trattoria da Nenella aproximou-se do balde, tirou um
saco de lixo lá de dentro e foi pô-lo no contentor. O balde voltou a subir.
Fiquei curioso e fui falar com ele. Disse-me que esta senhora era a big boss
(ou melhor, bige bosse), a dona do restaurante: a Nenella, que era a mãe
dele. Sorri.
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A seguir a meter conversa com ele, as interações seguiram-se todas
espontâneamente com várias pessoas que estavam por perto e iam
aparecendo e desaparecendo. Toda a gente estava bêbada e eu poupava-
me para ir a Pompeia no dia seguinte. Lá bebi três Spritz e depois comecei
na água. Ainda improvisei com dois italianos, ali no meio da confusão, e à
uma da manhã fui para o hostel dormir, sem me preocupar muito com o urso
debaixo da minha cama.
De manhã apanhei um comboio vazio, com vista para o mar, para Pompeia e
cheguei lá às 13h. Fui num shuttle para o centro arqueológico da antiga
cidade romana e passei lá as três horas seguintes.
Foi mesmo interessante ver as ruínas tão bem preservadas e, ao vaguear
por lá, conseguia fazer desaparecer os turistas que estavam à minha volta e
substituí-los, na minha imaginação, por romanos de 79 A.C. a fazerem a sua
vida normal. A irem aos banhos relaxar, a ir comer fora, a ir às prostitutas e a
prestar homenagem aos deuses deles. O dia estava limpo e o Vesúvio
espreitava, quase como que a sunsurrar um aviso da sua imprevisibilidade.
Numa das ruínas estavam expostos ossos humanos e algumas caveiras.
Uma delas parecia olhar diretamente para mim e veio-me um pensamento à
cabeça: no fundo eu sou só isto. Um saco de ossos, com músculos, que
daqui a alguns anos vai desaparecer. E, neste entendimento, todos os
conceitos que a cultura me plantou na cabeça, a pressão social e cultural
que por vezes me restringem, significam zero. Mas passados 10 minutos já
me tinha esquecido disto.
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Não consegui ir ao vulcão por já ser tarde e voltei para Nápoles, em pé no
comboio cheio.
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Decidi ir para Palermo, na Sicília. Em Bologna tinha conhecido uma rapariga
de Verona, a Gaia que fez Erasmus no Porto, que me tinha dito que era
lindo. Durante a viagem já tinha pensado sobre se era boa ideia ir ou não
porque dia 14 começavam as minhas aulas mas, quando pensei que não
fazia ideia quando iria voltar a ter a oportunidade de lá ir, a decisão tornou-se
óbvia. Decidi alongar a viagem mais uns dias.
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Saí por uma das portas para o convés e vi o barco a afastar-se das luzes de
Nápoles em direção ao escuro do mar. Jantei no restaurante e paguei 70
cêntimos por um pacote de maionese, sem me ter apercebido. Na fila do
restaurante conversei casualmente com um alemão que esperava pelo jantar
com a sua mulher e dois filhos. Disse-lhe de onde era, o que estava a fazer
ali e contei-lhe o que se tinha passado, porque sentia que precisava de
contar aquilo a alguém. Jantei sozinho numa mesa um hambúrguer seco
demasiado caro com batatas fritas.
CINEMA
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O filme era um thriller em italiano, sem legendas. Foi bom para passar o
tempo embora os espaços entre as filas de cadeiras fossem tão apertados
que batia com os joelhos na cadeira da frente e, de 10 em 10 minutos, tinha
de procurar uma nova posição para as pernas para estar confortável.
Saímos da sala de cinema e convidei-o para ir até ao bar mas ele disse que
ia ler um pouco e dormir. Agradeci-lhe novamente.
- Grazie!
Fui procurar um sítio no barco para dormir. Na sala escura das poltronas
havia várias filas de cadeiras completamente vazias. Havia apenas três ou
quatro homens velhos na primeira fila já a dormir. Duas televisões estavam
ligadas e iluminavam as caras enrugadas adormecidas.
Ponderei dormir ali deitado horizontalmente a ocupar dois ou três lugares
mas as divisórias entre eles eram fixas pelo que desisti da ideia. Fui à minha
mala mudar de roupa para uma sweatshirt e calções confortáveis e saí da
sala. Passei no bar e vi pessoas deitadas ao comprido nos longos sofás do
espaço amplo, também maioritariamente vazio mas fortemente iluminado.
Perguntei ao empregado se podia dormir ali e ele assentiu com a cabeça
mas informou-me que as luzes ficariam acesas toda a noite e as várias
televisões ligadas a passar notícias pela noite fora, a que ninguém prestava
atenção. Escolhi o conforto em detrimento do barulho e estiquei-me num dos
sofás. Observei as pessoas que dormiam por uns momentos. Umas
encolhidas, outras esticadas, tapadas com cobertores ou vestidas com roupa
normal. Olhei para o lado e vi um casal a dormir profundamente, pensando
como nunca tinha visto estranhos a dormir tão detalhadamente. Passado um
bocado adormeci.
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Dia 8 // 11 de Outubro de 2019
Acordei às seis da manhã com um som estridente vindo das colunas que
gritavam para todo o barco.
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Ao contrário de Nápoles ou Roma, a cidade tem uma planta muito mais
ortogonal e as ruas são muito longas e sempre em linha reta. Partilhava um
pouco da degradação e sujidade com Nápoles, embora completamente
diferente. Entrei no centro histórico de Palermo. Ao vaguear vi placas com os
nomes das travessas e ruelas em árabe por baixo dos nomes em italiano.
Descobri que a Sicília estreve sob ocupação árabe desde 800 a 1100 e, por
isso, a ilha reteve muita influência de que beneficiou. Os árabes trouxeram
os frutos, citrinos, cana de açúcar, apelidos e arquitetura para a ilha que Itália
chuta.
Quando viajo sozinho tenho dois modos principais: a ouvir música ou sem
ouvir música. Há alturas em que complementam a viagem como uma
soundtrack na minha cabeça e há outras em que gosto de estar presente
sem distrações. Neste momento estava em modo ouvir música e disco soava
bem nos meus phones.
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Parámos para comprar fruta e água e, dali a pouco, iniciávamos a subida ao
monte que se avista ao chegar a Palermo de barco. A canadiana, que nunca
me disse a idade embora eu insistisse, caminhava depressa sem parar. Eu
acompanhava o passo rápido da Lisa sem grande esforço, mas a
paquistanesa ia ficando para trás e comecei a sentir-me mal quando esta nos
chamava, ao longe, a pedir para esperarmos.
Dizia-me que ela tinha água pelo que não ia morrer, e que não ia deixar de
subir aquela montanha como desejava porque alguém a tentava puxar para
baixo. De qualquer forma, encontrava-nos quando chegásse lá acima.
Nunca deixes que ninguém te impeça de fazer o que sentes que queres,
disse-me a mulher atlética que continuava no seu ritmo impressionante para
uma pessoa de, imagino eu, 40 anos.
Conversámos sobre como a outra tinha um ritmo mais lento e, em vez de
deixar o seu egoísmo tomar conta dela e nos tentar persuadir a ficar para
trás, devia ter tido o bom senso de nos dizer para continuarmos. Admirei a
atitude firme da Lisa e, quando percebi isto, deixei de me sentir dividido entre
os dois lados e continuei a andar como me apetecia. É preciso estar atento,
pensei, porque isto vai acontecer-me mais vezes na vida. Pessoas, e até
mesmo amigos que, sem se aperceberem, vão pedir-me para esperar por
eles e tentar impedir-me de continuar a subida ao meu ritmo. Devemos estar
disponíveis para ajudar os outros mas devemos estar sempre atentos ao que
sentimos. De outra forma vamos estar a vida toda à espera dos outros e a
sentirmo-nos frustrados com isso, ao privarmo-nos de agir livremente por não
querermos tomar a decisão, muitas vezes desconfortável, de os largar.
Quando estiver nessas situações espero lembrar-me deste dia em Palermo e
tomar a decisão mais acertada.
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Pareceu que a vida pôs a Lisa ali à minha frente para eu aprender isto.
Disse-me que o tempo é o bem mais precioso que temos. Como é
fisioterapeuta está constantemente a ver pessoas doentes ou paralisadas
até, e isso relembra-a do quão sortuda é por se conseguir mexer e subir uma
montanha.
- It’s never a waste of time if you’re happy and you chose to do it.
Chegámos ao topo e continuámos a descer pelo outro lado, por uma estrada
fechada que já não era usada, em direção a Mondello, uma das praias mais
conhecidas de Palermo. Na descida a paquistanesa acompanhou-nos.
A certo ponto a vegetação ao lado da estrada abriu-se e vi uma vista
fenomenal da praia, lá em baixo. Água azul clara, casas, árvores e uma
montanha muito verde.
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Despi-me e fui de boxers em direção à água. A praia estava praticamente
vazia e a água tinha pouca altura. Andei alguns metros até haver
profundidade e mergulhei: temperatura perfeita, dei umas braçadas e ri-me
sozinho outra vez.
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Apanhei o autocarro na paragem e duas raparigas bonitas conversavam
numa língua que não me era estranha. Meti conversa. Alemãs, bem
dispostas.
O autocarro, a abarrotar, apareceu e apanhámo-lo juntos. Falámos, em pé,
durante uma viagem atribulada cheia de abanões e pessoas a entrar e a sair.
A meio da viagem elas repararam que uma rapariga que conheciam estava
sentada num dos bancos de trás. Cumprimentaram-na e eu, mais afastado,
disse olá. Quando saímos do autocarro, no centro da cidade,
cumprimentámo-nos como deve ser. Pauline, francesa de cabelos longos e
encaracolados, estava em Palermo para fazer o seu segundo Erasmus.
Disse-nos que nesse dia à noite toda a gente ia sair à Piazza Sant’Anna e
convidou-nos para ir com ela. Achei boa ideia apesar de não fazer ideia onde
ou o que era. Trocámos contactos, despedimo-nos e segui caminho sozinho
até ao hostel.
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Passados 15 minutos cheguei à Via Zara e subi as escadas. No momento
em que entro no hostel, olho para a frente e vejo uma cara vagamente
familiar a agarrar uma toalha de banho e uma bolsa de higiéne.
A rapariga francesa de há 15 minutos. Pauline. Boquiaberto.
- Vá, brinquem.
Depois de pararmos de rir disse-me que estava a ficar no hostel até arranjar
um apartamento porque tinha chegado há uns dias. Ela foi tomar banho e eu
fui para o meu quarto a pensar sobre isto.
Tomei banho e fui para a sala de estar escrever. Conheci o Bino, um homem
italiano, careca e sorridente, nos seus 50s. Contou-me que viveu no México
tempo suficiente para saber falar uma mistura de italiano e espalhol. Conheci
também o Lino, um italiano igualmente simpático mas uns dez anos mais
novo que o outro.
Estavam no hostel sem saber quando iam sair. Pode parecer estranho, mas
este hostel parecia realmente uma casa, tanto na organização e aparência
das divisões como no ambiente que se fazia sentir. Mario, o dono, acolhia os
hóspedes todos com admirável hospitalidade e fazia todos sentirem-se em
casa e como que parte de uma família temporária.
O preço por noite era igual ou mais barato do que um quarto num
apartamento, pelo que percebo o facto de nem eles nem a Pauline se
preocuparem muito em procurar outro sítio para viver.
O Bino cozinhava uma pasta e perguntou-me se queria. Esfomeado, disse
que sim e agradeci, e ele cozinhou para nós os dois uma pasta vesuviana,
como lhe chamou, com alcaparras, tomate e azeitonas. Tinha um sabor
incrível: todos os italianos são autênticos chefs e levam a cozinha a sério.
Comemos e conversámos.
Tocam à campainha.
Como ninguém do staff estava no hostel naquele momento, fui abrir a porta.
E foi aí que vi o Mike pela primeira vez.
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O Mike era de Liverpool, tinha 30 anos mas tanto passava por 30 como por
16. Enquanto falávamos pareceu-me uma pessoa tímida mas na altura eu
não compreendi a magnitude da sua personalidade.
Acabei de comer e, a seguir, jantei uma segunda vez, porque o Bino
cozinhou de novo para ele, para uma vietnamita sorridente chamada Suan e
para Pauline, que entretanto tinha chegado à cozinha. Perguntou-me se
também queria e, a sorrir, disse que sim.
Uma garrafa de vinho e boa conversa em italiano. A Pauline falava italiano
razoável com uma pronúncia engraçada e eu ia acompanhando. Senti-me
imediatamente à vontade com ela e riamo-nos muito os dois. As palavras do
Bino saiam-lhe da boca arrastadas e não eram de fácil compreensão, mas
depois lá percebia o que ele queria dizer e respondia. Nunca o vi sem estar a
sorrir. A Suan também sorria mas acho que era por não perceber quase
nada.
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É incrível a quantidade de rapazes que vêem como cães ao encontro de
raparigas giras. Dou por mim e estou com elas as duas mais quatro gajos
com intenções óbvias.
Aborrecido pela conversa inventei uma desculpa e bazei sozinho para outra
zona da noite de Palermo chamada La Vucceria. Depois de as ter salvo
deixei-as outra vez em território inimigo, mas não eram da minha
responsabilidade e a noite tem demasiadas possibilidades para me
preocupar com isso.
Passado um bocado elas ligaram-me e pediram-me a localização. Não devia
ter enviado. Vieram ter comigo novamente e não me diverti assim tanto na
sua companhia. Acabei por chegar a casa quase às cinco da manhã.
Pensava em como tinha perdido a Pauline e me teria divertido mais se
tivesse ficado com ela.
Quando entrei no hostel ouvi alguém a chorar na cozinha. Fechei a porta, dei
alguns passos e vi uma pessoa de costas que segurava um cigarro e uma
garrafa de vinho. Era ela. Aproximei-me e, embora mal nos conhecessemos,
abracei-a com força durante bastante tempo. Não sabia o que se passava
mas sabia que ela precisava de um abraço. Levei-a até à varanda do hostel
para conversarmos. Contou-me entre lágrimas patrocinadas por vinho que
tinha estado cá em Palermo um ano atrás e tinha-se apaixonado por um
homem com quem acabou por namorar, mas que tudo se desmoronou por
causa de inseguranças dela e imaturidade dele.
O que interessa aqui não são os pormenores, isso são coisas dela, mas
como conectámos tão rápido e a tentei fazer sentir-se melhor enquanto ouvia
o que ela me dizia e tentava ajudar com a minha perspetiva de amigo.
Parece tudo tão improvável que se torna difícil acreditar no caos. Cheguei no
exato momento em que ela tinha começado a chorar sozinha. Parecia, mais
uma vez, o educador de infância a fazer-nos conectar mais profundamente.
Nos dias seguintes senti o início de uma amizade pura, apesar de estar
sempre a gozar com facto de ser francesa e, ao mesmo tempo, me derreter
todo quando ela falava a língua.
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Dia 9 // 12 de Outubro de 2019
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Rimos quando dois rapazes que não se conheciam, que ouviam música aos
altos berros na coluna bluetooth de cada um, entraram no mesmo autocarro.
Chega o nosso bus, entrámos e 20 minutos depois estávamos na praia em
que tinha estado no dia anterior. Céu nublado mas bom ambiente. Um
homem indiano que passou por nós vendia lenços e toalhas de praia.
Perguntei-lhe se tinha calções de banho e comprei-lhe uns verde tropa com
estrelas.
Corremos para a água e nadámos. Fiz o pino dentro de água mas o
Ferdinand não conseguiu. Sentámo-nos na areia e comemos fruta. A frase
mais icónica destes últimos dias foi dita dezenas de vezes pelo Ferdinand
por nenhuma razão em especial.
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É uma tarefa complicada explicar esta pessoa e a sua personalidade porque,
ao mesmo tempo que se mostrava uma pessoa introvertida e tímida, à
medida que nos fomos conhecendo nos dois dias seguintes, senti-o a abrir-
se e a mostrar a sua essência pura. Porém, ao contrário das pessoas
normais, conhecer a sua personalidade mais a fundo só me deixou mais
confuso sobre o que se passava na sua mente. Muitas vezes demorava uma
eternidade a formular ideias e frases o que me fez ponderar se não teria
algum atraso a nível psicológico, ou se tinha tirado proveito da sua profissão
para interesses recreativos.
Tudo o que dizia era hilariante mas se fosse dito por outra pessoa não faria
rir. Talvez pelo sotaque britânico aliado a uma cara com uma expressão
indecifrável, que transparecia o mistério que envolvia os seus pensamentos.
Só sei que, tanto eu como o Ferdinand, o adorámos e rimos de tudo o que
ele fazia. Por vezes parecia uma criança que habitava um corpo de adulto.
Não interagia muito a não ser que lhe perguntássemos coisas e estava
constantemente ausente no seu mundo que estava claramente a anos-luz do
nosso.
Nessa viagem perguntou-nos se preferíamos o rabo ou os seios das
mulheres, uma discussão ridícula que todos os homens já tiveram. Mas
perguntou-o de uma forma curiosa e até inocente. Foi aí que o seu lado
negro veio ao de cima pela primeira vez.
Convidámo-lo para ir jantar connosco. Chegámos ao hostel e lá estava a
Pauline. Falámos com o Mário para o Mike vir para o nosso quarto e ficámos
os três juntos. Vi o vaporizador dele a carregar e disse-lhe que devia dar-lhe
um nome. Depois de quase 30 segundos a pensar com uma expressão de
neutralidade incompreensível lá disse um nome.
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conseguir fazer com fluidez. Era sempre muito rígido, mas divertimo-nos a
treinar estes cumprimentos com ele durante o jantar.
Como tinha esta aparência inocente, eu e o Ferdinand incentivámo-lo a fazer
gangsigns com as mãos. Qual foi o nosso espanto quando uniu o polegar ao
anelar, olhou para nós, que estávamos sentados à sua frente, e disse:
Abanou o sinal que fazia com a mão e um sorriso maroto surgiu no canto dos
seus lábios como uma criança que sabe que não devia dizer o que vai dizer
a seguir.
- Alien, bitch.
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A certo ponto comecei a notar que começou a fazer muitas piadas e
referências a “shit”, fezes. Ao início achámos piada mas à medida que
continuava começámos a achar suspeito.
A meio da noite, na sequência de qualquer coisa, parou no meio da rua,
olhou para cima, esticou as mãos e como que afastou umas nádegas
invisíveis de um rabo imaginário que estava suspenso sobre a sua cabeça.
Em seguida, pôs a língua de fora e fez um movimento circular.
Eu e o Ferdinand rimos pela aleatoriedade da performance e, só mais tarde,
depois de demasiadas piadas deste tipo, viemos a suspeitar que aquilo não
eram piadas. Percebemos que o Mike tinha um fetiche com fezes femininas:
ele confirmou-nos isso quando lhe apresentámos a nossa conclusão e ele
não negou. Por causa disto, e das constantes lambidelas a rabos
imaginários, baptizámo-lo com um novo nome:
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as pessoas que são naturais dali, porque a mentalidade italiana está muito
influenciada pela Máfia.
Não percebi a ligação com aquela situação, talvez estivessem a ser racistas
e estúpidos, não mafiosos, pensei. Mas ele referia-se à mentalidade mafiosa
que continua muito presente na maneira de pensar e agir de muitos italianos,
especialmente na Sicília.
A Máfia surgiu na Sicília, na época medieval. Originalmente não tinha como
objetivo os atos criminosos: foi uma organização criada pelos camponeses e
pequenos agricultores que se uniram contra os grandes senhores feudais
que, através de atos criminosos, lhes ficavam com as terras e bens.
Com o passar do tempo, várias pessoas se uniram aos camponeses para
obter proteção até que começaram a sistematizar um esquema de proteção
e expansão de negócios, através de proteção forçada - quem não pagásse
um imposto à organização sofreria de vandalismo nas suas plantações. Isto
acabou por evoluir muito para além dos vegetais, mas penso que era a essa
mentalidade ,que mistura dinheiro e ameaças, a que o homem se referia.
Chegámos os quatro ao hostel e estávamos nos sofás da sala quando o
Mike começou a imitar o Mario a falar com o seu sotaque siciliano.
Começámos todos a ter um ataque de riso. Não me lembro da última vez que
chorei tanto a rir.
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Dia 10 // 13 de Outubro de 2019
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Ruas calmas. Foi uma senhora que nos ajudou com a paragem em que
tínhamos de sair e que nos indicou a zona em que tínhamos bons
restaurantes.
Ao andarmos por ruas coloridas com montanhas que se encostavam ao mar,
o Mike virou-se para mim e disse que imaginava este tipo de ambiente calmo
em Portugal.
Disse-lhe que, fora das grandes cidades, tinha razão.
Parámos para comer um panini e umas bruschettas e andámos em direção à
reserva natural Capo Gallo onde queríamos mergulhar.
Andámos ao longo da beira mar e observavamos uma água tão límpida e
azul clara que banhava levemente as rochas. Do lado oposto à margem
impunham-se montanhas altas e áridas que dominavam a paisagem.
Chegámos a uma zona com pedras mais pequenas que se aproximavam do
que chamamos areia e pousámos as coisas.
Fui em direção à água e mergulhei. Quase sem ondulação à superfície, via-
se um fundo marinho incrível cheio de vida: peixes, algas e plantas que
curavam solos suaves por cima das rochas.
Abri os olhos debaixo de água. Demorámos algum tempo a chegar a uma
zona que possibilitasse nadar por causa da irregularidade do fundo nas
zonas em que as rochas agressivas não estavam cobertas por algas fofas.
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O Mike tinha ficado em pé mais atrás, durante uns 10 minutos, com a água a
dar-lhe pelos joelhos. Perguntámos-lhe o que se passava e respondeu-nos
que não sabia nadar.
Fiquei surpreso por este homem de 30 anos nunca ter aprendido algo tão
básico. Eu estava com o Ferdinand mais à frente quando olho para trás e
vejo a Pauline a ensiná-lo a nadar de bruços, exemplificando os movimentos
que permitiam ao corpo mover-se na água.
Ele tentou e conseguiu. Percorreu uns 10 metros a mover os braços
rapidamente na zona em que tinha pé mas sem tocar no chão, com a Pauline
a mover-se a seu lado. Parou e pôs-se de pé enquando tirava a água da
cara.
- I think you deserve at least some glasses of wine. - disse ele à francesa.
Todos rimos. O Mike, com a sua inocência, e a Pauline, com o seu lado
maternal a sorrir, abraçaram-se. Foi um dos momentos mais bonitos desta
viagem.
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Voltámos para a areia e sentámo-nos a ouvir música e a conversar. Na
sequência da conversa sobre como os italianos realmente usam muita
linguagem corporal, a Pauline explicou-me que, como as províncias italianas
tinham vários dialetos muito diferentes uns dos outros, o povo desenvolveu
ao longo do tempo todo um conjunto de símbolos “universais” que todas as
pessoas pudessem compreender, independentemente do seu dialeto.
É daí que vem a famosa mão com todos os dedos unidos a apontar para
cima que é utilizada por todos os italianos quando querem exprimir certas
emoções.
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No final da tarde, voltámos para a paragem de autocarro e tivemos de correr.
O Mike correu extremamente devagar mas o autocarro esperou e lá
entrámos.
Estávamos todos exaustos e conversámos a ouvir música num autocarro
vazio. Lá fora já estava escuro.
Inesperado como sempre, o Mike disse que gosta de tomar MDMA
ocasionalmente. É normalmente considerada uma droga de festa mas ele
prefere ficar em casa e tomá-la enquanto ouve ambient music.
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Dia 11 // 14 de Outubro de 2019
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Queríamos ir às Catacumbas e pelo caminho aventurámo-nos por ruas mais
pequenas, sujas e suspeitas. Demos por nós numa atmosfera zero turística,
com ainda mais movimento de motas, pessoas locais a andar na rua,
sujidade, crianças a brincar em hoverboards: estamos no ghetto de Palermo,
concluímos.
Claro que não era mesmo um ghetto mas ficámos com essa sensação.
Conhecemos um grupo de crianças que falava connosco com toda a
confiança e se ria por ver desconhecidos ali. Pediram-me para lhes tirar uma
fotografia. Vê-se bem a atitude da rapariga do hoverboard, que andava nele
tanto em pé como de joelhos, algo que nunca tinha visto.
Rimo-nos, experimentámos o hoverboard e passado um bocado despedimo-
nos para continuar o caminho até às Catacumbas.
Lá chegámos. Não sabia o que era - a única ideia que tinha era que seria
algo subterrâneo e sombrio, mas nem tinha pensado muito no que nos
aguardava. Descemos umas escadas para a cave de uma igreja e entrámos.
As catacumbas eram um conjunto de corredores utilizados para sepultar
defuntos e as de Palermo conservavam centenas de múmias, algumas
quase esqueletos, outras conservadas em tão bom estado que pareciam
olhar para nós ao atravessarmos os corredores.
Acho que nunca tinha visto um cadáver e vê-los com esta proximidade foi no
mínimo chocante. Só pensava que, embora sentisse um grande
distanciamento, um dia eu seria um deles, e é claro que essa ideia é
ligeiramente assustadora.
Depois de sair de lá, li que as pessoas iam visitar os familiares, já mortos,
nas catacumbas para conversar, pedir-lhes conselhos ou celebrar uma data
especial.
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Andámos pelas longas avenidas de Palermo com os nossos chapéus de
turista sempre na cabeça a conversar sobre como há pessoas demasiado
relaxadas e pessoas que não sabem relaxar.
Chegámos ao hostel e encontrámos a Pauline. Despachámo-nos e fomos
jantar só os três à mesma trattoria do primeiro dia em que jantámos todos. O
Mike já se tinha ido embora. Sentimos falta dele durante o jantar e, para
compensar, no lugar vazio da mesa onde ele devia estar sentado, pousámos
um copo, enchemo-lo de vinho e pusemos, ao lado, o meu telemóvel
desbloqueado que mostrava no ecrã a foto dele a dormir no autocarro.
Conversámos sobre como foi fixe nos conhecermos e como criámos uma
conexão tão rapidamente entre os quatro. Parecia que já nos conhecíamos
desde sempre.
Bebemos um copo e passeámos. Fomos até à catedral, ouvimos música nas
ruas vazias de segunda feira, vimos fontes e piazzas e conversámos sobre o
Mike. A Pauline mostrou-nos mais street art pelas ruas e estava
constantemente a dizer o quão gostava daquela cidade. Depois voltámos
para o hostel.
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Dia 12 // 15 de Outubro de 2019
Terça feira era o último dia da viagem. Tínhamos o bilhete para o comboio
das 20h55 mas até lá passeámos. Fomos andar por ruas aleatórias e ao
dobrar uma esquina ouvimos um estoiro.
Olhei alertado e vi miúdos a correr. Estavam a rebentar pólvora.
Conversámos com eles e ficámos a saber que tinham nove anos e
personalidade.
Convidaram-nos para jogar um jogo de futebol com eles e lá fomos nós para
o campo ali ao lado, sujo e de má qualidade.
Perdemos a vontade de estar ali quando outro miúdo mais velho que
apareceu, com 13 ou 14 anos, estava a tratar os mais novos com
agressividade, mas ao mesmo tempo era subtil, pelo que só se reparava se
se estivesse atento. Irritou-me quando, a meio do jogo, cuspiu para um
deles. O Ferdinand sentia o mesmo.
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Saímos do hostel depois de abraçar a nossa amiga francesa e iniciámos a
viagem de regresso a Bologna. Apanhámos o comboio na estação de
Palermo e descobrimos que as cabines tinham camas: duas em baixo, duas
em cima. Ficámos numa com mais dois homens mais velhos e, inicialmente,
foi estranho estarmos num ambiente tão próximo e tão íntimo, em que íamos
dormir. Mas depois de alguma conversa em italiano esse embaraço
desapareceu. Tentei dormir enquanto o comboio andava a alta velocidade
abanando o meu corpo e pensava em como nunca volto o mesmo depois de
uma viagem. Os dias esticam e as possibilidades concretizam-se. Fiquei
contente por o Ferdinand ter aparecido nos últimos dias, mas adoro
experienciar toda esta aleatoriedade (ou ordem?) sozinho no desconhecido.
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Carro À Vana
Junho de 2019
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Dia 1 // 20 de Junho de 2019, Sintra
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Saímos de Sintra e fomos em direção a Vila Franca de Xira no meu Ford
Focus, sempre por estradas nacionais, o que acabou por nos levar pelas
aldeias e zonas meio-urbanas mais aleatórias. Parámos no Cartaxo para
comer umas sandes. Tínhamos como direção Ferreira do Zêzere mas
destino não sabíamos. Nunca soubemos por onde íamos passar, mas
tínhamos como objetivo chegar ao Gerês. Decidimos só ir e ver o que
acontecia.
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Primeira paragem, Vila de Rei, numa praia fluvial. Mergulhámos e
continuámos caminho. Ao avançar pelas estradas ladeadas por montanhas e
pedaços de verde deparámo-nos com nomes de sítios novos para nós.
Proença-a-Nova, Isna, onde ficámos num parque de campismo. A sensação
de estar em sítios de Portugal que nunca tínhamos visto é interessante. O
parque estava vazio. Tinha alguns tugas clássicos em bungallows, um casal
que nos deu um bocado de salsa e nós os quatro. Passava um rio por ali que
tinha sido aproveitado como praia fluvial. Montámos as tendas e fizemos o
jantar na nossa mesa de campismo com o campingaz emprestado do Artur.
Obrigado Artur! Massa com atum e cenas que comprámos no supermercado
onde fiquei dez minutos a escolher retraças.
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O fim do dia desenhava tons de azul violeta no céu durante o crepúsculo. A
luz desta altura do dia é tão fugaz e calmante.
Bebemos uma jola e fomos explorar o parque. Andámos de baloiço e com o
frio fomos conversar para a tenda grande do Gui.
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Nesta viagem decidimos não usar o telemóvel livremente e definimos uma
hora específica para o usar o mínimo e mais pragmaticamente possível. Há
anos que não estou vários dias seguidos sem a possibilidade de usar o
telemóvel e cria uma dependência que já senti várias vezes. Não é como se
estivesse viciado mas sabe bem cultivar a sensação de ausência de
telemóvel no bolso, bloqueando o impulso de o ver nos tempos mortos.
Assim, obriga-nos a ressuscitá-los criativamente, em vez de os enchermos
com informação descartável.
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Dia 2 // 21 de Junho de 2019
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O Gui tinha a chave da casa de uns amigos dos pais dele e decidimos ir para
lá e explorar a zona. Conduzi a ouvir música com o Gimbras ao meu lado e o
Gui e o Salema lá atrás. A casa ficava na Aldeia de João Pires e passado
algum tempo chegámos a uma povoação com um trator a circular na
estrada. Meio do nada. As pessoas, poucas ou quase nenhumas que
andavam nas ruas, olhavam para o nosso carro como se fosse uma nave
espacial.
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Entrámos por entre ruas pequenas com paredes e chão de granito, cheias de
flores de várias cores nos canteiros, e demos com a porta da casa que se
dividia em duas: de um lado da rua tinha a sala e cozinha no nº 33 e do outro
lado os quartos, no nº 32. Cheiro a velho, bom, muitos livros: o sítio perfeito
para passarmos uma noite.
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Deixámos as malas e fomos almoçar ao único restaurante da aldeia. Um
bitoque cada um. As pessoas, muito simpáticas e tranquilas.
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Voltámos para casa e fomos logo meter-nos no carro em direção a uma praia
fluvial. Conduzi até lá a ouvir bLAck pARty e estacionámos lá ao pé. O sítio
era no meio de um vale de montanhas graníticas e uma cascata enchia uma
piscina de água cuja temperatura estava óptima. Mergulhámos e levámos
com a cascata nas costas.
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Conhecemos o Gin: um cão cor de raposa de um casal, ela inglesa, ele tuga
com uns Rayban e pinta de motoqueiro.
- Porque é que se chama Gin?
- Por causa do gin tónico. Uma vez ele bebeu gin como se fosse água e ficou
Gin.”
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Passeei e subi as formações rochosas, respirei o ar do campo, quente e
confortável e ao mesmo tempo cheio de fragrâncias indiscritíveis. Montanhas
com pinheiros e rocha circundavam-nos. Vimos uma casa de um moleiro e
muitos cactos. Saudades, Emílio. Senti-me sem objetivo, a passear e a
observar ao mesmo tempo que pensava no quão boa estava a ser a tarde.
Voltámos para o carro e, a conduzir para casa, vimos uma raposa no meio da
estrada. Parámos e fomos sorrateiramente por um caminho de terra batida
procurá-la mas o que vi durante mais tempo foi uma paisagem nova que se
estendia por kilómetros sem fim.
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Melgas mordem-me enquanto escrevo isto na rua à porta da casa, ou
melhor, entre elas.
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Vamos jantar. Comemos um arroz improvisado com feijão, chouriço e
cogumelos.
Queríamos beber uma cerveja e descemos até ao restaurante A Fonte, onde
tínhamos almoçado. Quando decidimos isto nunca imaginámos o que se
seguiria.
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Conversámos e discutimos o percurso da viagem numa mesa da esplanada.
Combinámos passar em Braga na vinda. A certo ponto sentimos frio e o
Salema e o Gui foram a casa buscar sweats, enquanto eu e o Gimbras
ficámos na nossa mesa.
Quando ele foi lá dentro pagar a conta final, apareceu um senhor de chapéu
com quem comecei a conversar. Disse que era daqui e falámos sobre a
Aldeia de João Pires que, para ele e para toda a gente dali, é o melhor sítio
para se viver. Falámos muito sobre religião e Deus e
ambos concordámos que Deus seria uma entidade superior que não
conseguimos definir, uma inteligência criadora das coisas. Mas não aquela
imagem de “Deus” católico que nos costumam impingir. No seguimento da
conversa disse-me que ali na aldeia é tudo gente boa. Lá dentro estava um
militar do exército, o Padre da aldeia…
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Fizemos todos um brinde à nossa. O Shô Padre era a maior personagem de
sempre. Quando o outro senhor me disse que o Padre estava dentro do café
nunca imaginei que seria assim: de polo azul, a faltarem-lhe alguns dentes
importantes, cabelo escuro com popa, barba e sempre de jola na mão. A
profissão dele abençoava tudo o que ele dizia a um nível hilariante.
Observava-o, ria e interagia com ele como um grande amigo, como aliás
fizemos com todas as pessoas que conhecemos naquele sítio. Levantei a
minha bebida em direção a ele para um brinde e ele levantou três jolas do
balcão.
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Incrível. Entretanto eram duas da manhã e o café ia fechar. Saímos todos cá
para fora. O Senhor Manel chamou-nos para o pé dele e perguntou a toda a
malta se queríamos ir ali comer um chouriço e um queijinho muito bom. A
expressão intensa na cara dele ao fazer o convite fez-me perceber que eles
iam retraçar. Fomos a pé até à casa do outro membro da banda filarmónica.
Pelo caminho conversava com o Shô Padre e perguntei-lhe o signo. Virou-se
para mim, estendeu a mão e com um sorriso disse:
- Joaquim!
Eu tentei adivinhar.
- Carangueijo?
- Não. Sou do melhor!
- Aquário? Virgem?
- Opá! Virgem sou!
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Dia 3 // 22 de Junho de 2019
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O Senhor Manuel tínha-nos convidado para a sardinhada da aldeia às 13h e
claro que fomos. Chegámos ao sítio combinado e deparámo-nos com várias
fileiras de mesas repletas de idosos sentados a conversar, um grelhador
cheio de sardinhas e muita conversa no ar. Vi logo o Shô Padre ao longe e
fui cumprimentá-lo. Sentava-se no lugar que ficava no meio da mesa
principal e, como as mesas eram longas, por um segundo pareceu-me A
Última Ceia. Apressaram-se em arranjar-nos lugar para sentar e num abrir e
fechar de olhos estávamos a comer sardinhas, batata e salada de pimento
no meio de montes de pessoas com idade para serem nossos avós.
Fizeram-nos sentir em casa. Provei o vinho da aldeia e conhecemos o Jorge,
um senhor simpático que gostou logo de nós. Destoávamos muito naquele
ambiente mas as pessoas gostavam de ver jovens.
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- Acabei de mandar uma de rajada com este senhor!
Disse-me o Salema com cara áspera ao lado do Jorge. Senhoras com
tabuleiros serviam melancia e melão, e quando peguntámos quanto é que
era o almoço disseram-nos que não precisávamos de pagar nada porque
tínhamos sido convidados.
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Fomos beber um café n’A Fonte com a Marta e o Danilo, casal que
conhecemos a noite passada. Claro que o Sr. Jorge pagou o café e ainda
pagou um bagaço ao Salema que fez cara áspera outra vez. Nós a rir. No
café o ambiente estava vivo como à noite. Cafés a sair de um lado para o
outro pelas mãos da Susana, a dona do estaminé.
- Não, não!
- Sim, sim!
E, a rir, encaminhei-os aos dois para o interior do café até que vi a cara do
Salema áspera pela terceira vez naquele dia.
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Arrancámos e fomos em direção a Sameiro, já na Serra da Estrela. Verde e
montanhas em todo o lado e nós a passar pelo meio delas em estradas
lindas. Azul no céu. Descemos para a praia fluvial que procurávamos e
mergulhámos. Vi peixes e apanhei sol. Eu e o Gui treinámos lançamentos de
cerejas para a boca um do outro a dez metros de distância. Passeámos pela
praia e vimos abóboras secas no chão que pareciam ovos de dinossauros.
Antes de bazar fui pedir ao pequeno bar da praia para saltar no trampolim
que lá estava mas descobri que era só para crianças e fiquei desiludido com
a regra.
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Continuámos pela estrada em direção a Manteigas e decidimos ficar lá essa
noite. Isto porque duas raparigas na praia nos disseram que hoje à noite iam
haver as festas de S. João em Manteigas. Já à entrada da vila que fica
exatamente no meio da Serra da Estrela, falei com um homem numa bomba
de gasolina que sugeriu que ficássemos no hostel Serradalto. Lá fomos.
Quarto para nós os quatro, check-in, o Salema perguntou à rececionista se
ela tinha batom do cieiro, banho, vestir e paguei o jantar a todos no
restaurante. Ofereceram-nos licor de mel divinal. Seguimos pelas ruas à
procura das festas.
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Fomos dar a uma praça com bancas de cerveja, muitos idosos e um palco
com música pimba. Bebemos, conversámos com velhinhas e conhecemos
pessoas aleatórias que vieram ter connosco. Passado um bocado descemos
as ruas e entrámos num bar: o bar do Senhor Januário.
O Sr. Januário era um homem nos seus quarentas e muitos que possuía uma
barba cuidada com quem fiquei a falar no balcão até que, passado um
bocado, tínhamos todos passado da mesa de esplanada para estar em pé no
balcão a conversar com ele e a comer camarões oferecidos. Sem falar nas
canecas. Conheci um cota motard um bocado estranho que me deixou usar
o seu casaco de cabedal cheio de insígnias.
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Saímos de lá e fomos para o palco de novo. Dei por mim estava a dançar
com o Gui e montes de pessoas todos abraçados a esticar as pernas
coordenadamente. Senti muito aquele concerto pimba: um guitarrista com
que fiz contacto visual percebeu que eu estava a ser mega fã naquele
momento, um homem nos seus cinquentas cantava juntamente com um
homem mais velho a tocar teclas que, no fundo, não estavam a ser tocadas,
ao mesmo tempo que cantava num microfone preso à cara.
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Dancei demasiado. Demos voltas pelas ruas de Manteigas que eu nunca
tinha visto e soube tão bem esta sensação de constante descoberta.
Chegámos a casa às seis e meia da manhã e relaxámos na varanda a beber
água já com a luz do início do dia. Fechámos as portadas e adormecemos.
O Gimbras, já sóbrio, a chegar ao hostel às 6h30 da manhã, onde eu relaxava com meias fluorescentes.
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Dia 4 // 23 de Junho de 2019
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NESTA VIAGEM NÃO HÁ TEMPO PARA NADA SEM SER ANDAR PARA A
FRENTE. UMA CONSTANTE SENSAÇÃO DE MOVIMENTO QUE NOS
OBRIGA A ACOMPANHÁ-LA. NÃO HÁ TEMPO PARA TRIPAR E TRAZ AO
DE CIMA A ESSÊNCIA MAIS VERDADEIRA DE CADA UM. TALVEZ POR
PASSARMOS TANTO TEMPO COM AS MESMAS PESSOAS.
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Começou a chover torrencialmente num abrir e fechar de olhos. Arrumámos
tudo e pusemo-nos no carro. Fomos outra vez até ao centro de Manteigas
beber um café e comer um panike. Seguimos viagem. O Gui O Quê? levou-
nos até ao Covão da Ametade onde tínhamos planeado acampar. Subíamos
a serra e víamos as pequenas grandes montanhas a passar na janela do
carro. Estava demasiado mau tempo na rua e decidimos ficar na Pousada da
Juventude, mais no alto da serra em Penhas da Saúde. Entrámos e fizemos
o check in com a rapariga que estava na receção.
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Grandes condições. Ficámos num quarto com quatro beliches e descemos
uma rua para jantar. Voltámos para a pousada, fizemos festinhas aos cães
da Mafalda, da receção, e jogámos snooker e ping pong num salão de jogos,
gigante mas vazio.
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Dia 5 // 24 de Junho de 2019
- Tá visto.
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Continuámos em direção a Viseu. Usei o telemóvel para necessidades
básicas. Até aqui temos conseguido respeitar a regra de só usar os
telemóveis quando é mesmo necessário. Neste caso, arranjar sítio para
dormir. Fizemos um vídeo, pu-lo no instagram e twitter e, dentro de
momentos, comecei a ter respostas.
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Já em Viseu combinei com a Alexandra encontrarmo-nos, que não conhecia
mas que pareceu simpática e prestável ao oferecer-nos casa para ficar
naquela noite. Mandou-me a localização e fomos até à casa dela e das
amigas. Ouvimos muito Goldlink nesta viagem, mais especificamente a
Herside Story.
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A certo ponto a polícia tocou à campainha por causa do barulho e saímos de
casa a pé até um bar local. Bebemos uma e conhecemos mais malta. A
Claudete tinha um exame no dia seguinte e estive sempre a chamá-la à
responsabilidade, lembrando-lhe que tinha o exame como um bom amigo
faria. Daí a pouco estavamos na fila para entrar numa discoteca de funk
brasileiro. O Gimbras com os óculos do Gui a dançar, o Salema a conhecer
malta à toa, o Gui a dançar com bóias que estavam na pista de dança e eu a
ver aquilo tudo e, não sei como, a dançar funk. A certo ponto tive de bazar.
Senti que o meu nível de resistência àquele tipo de música chegara à
reserva e saí da discoteca. Chegámos a casa às seis da manhã e
adormecemos nas camas de pessoas bondosas.
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Dia 6 // 25 de Junho de 2019
Acordei meio a sentir a noite anterior mas logo se dissipou essa sensação
quando fui almoçar com o Gimbras a um restaurante que ele me tinha falado.
O João Félix estava na mesa ao nosso lado a ver memes no telemóvel.
Quando saímos do restaurante ele estava a ser chateado pela CMTV à porta
do estabelecimento.
Passámos por eles e, já depois do futebolista ter ido embora, um dos
jornalistas, de aspeto esquisito, abordou-nos.
Fingi ficar hesitante para tornar a situação mais real. Não sei bem como é
que o jornalista acreditou que de facto era colega dele, mas quando me
pediu novamente por declarações disse-lhe que não seria possível, pus os
óculos de sol e virei-lhe as costas. O Gimbras partiu-se a rir. Voltámos a
casa das meninas, abraçámo-nos e agradecemos muito antes de nos
pôrmos novamente na estrada.
Direção? Não sabíamos. No dia seguinte íamos a uma prova de vinhos que o
Gimbras safou à pala, através do pai, no Pinhão então conduzimos até ao
Peso da Régua. Vimos pela primeira vez o Douro e fascinou-nos a paisagem
de montes trabalhados com linhas verdes, as vinhas. Parámos no meio da
cidade à margem do rio e ficámos um quarto de hora a falar à toa, como que
a descansar da responsabilidade de tomar decisões.
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Metemo-nos no carro e decidimos só ir em frente e ver o que acontecia.
Intuição ou não acabei por virar à direita num sítio e subir um monte.
Queríamos bater a portas para nos darem um sítio para acampar. Uma placa
dizia
QUINTA DO CÔTTO
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Acampámos por baixo de oliveiras e fizemos jantar no campingaz. Vimos a
vista que estava à nossa frente e ouvimos sons tranquilos. O Salema até
instalou a cama de rede dele. Adormecemos à uma da manhã depois de
ouvir Kaytranada na tenda.
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Dia 7 // 26 de Junho de 2019
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Depois de uma pequena visita à quinta sentámo-nos à mesa com cinco
copos, dois de vinho de mesa e três mais pequenos de vinho do Porto e com
a nossa guia sentada na ponta a explicar-nos os travos e odores. Foi uma
boa experiência em que percebemos os vários sabores e intensidades. Só
sei que ao meio dia demos por nós a rir da situação demasiado tocados.
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Saímos de lá, comemos um hambúrguer cada um e chegámos atrasados à
segunda prova, à tarde, porque o Gui e o Salema quiseram ir até à esquadra
da polícia pedir à GNR para soprar no balão para sabermos se alguém podia
guiar em vez de gastarmos dinheiro a pedir um táxi. Acusou. Pedimos táxi.
Na prova da tarde só comi queijo e depois apanhámos o comboio, peguei no
carro e seguimos para Vila Real. No dia a seguir ia chegar o Janito que se
vinha juntar à viagem e, aí, estaria o grupo completo.
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Lá passámos por dezenas de placas com nomes de aldeias que são tão
suscetíveis de fazer piadas que tivemos de criar uma regra: cada um tinha
um limite de três piadas por dia com nomes de aldeias aleatórias.
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Dia 8 // 27 de Junho de 2019
Saí da tenda e comi aveia com pêssego e banana com o Gui. Por este andar
já estamos fartos do ritual de montar e arrumar o campismo, mas se
queremos ser nómadas tem de ser assim.
O Salema foi buscar o janito que chegou de bus a Vila Real. Eles os dois
chegaram e era visível o sorriso do Janito pela janela do passageiro. O tétris
de porta-bagagens subiu de nível: agora éramos cinco, com mais uma mala.
Mas foi feito e lá nos pusemos no carro em direção ao Gerês.
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O Janito, à esquerda.
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2 horas de carro mais tarde estávamos a chegar ao Parque Nacional Peneda
Gerês. Grandes montanhas ainda maiores em dimensão e magnitude que na
Serra da Estrela, todas verdes, banhadas muitas vezes por água lá no fundo,
em baixo.
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Dia 9 // 28 de Junho de 2019
Comi aveia e pão com queijo depois de acordar. Tenho sempre tanta fome
aqui e a comida sabe sempre extremamente bem. Arrumámos tudo,
entrámos no bote e fomos até à Cascata do Arado.
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Mergulhámos. Água gelada mas se te habituas o frio sabe bem. O Gui meteu
a cabeça debaixo da cascata e eu deitei-me com o corpo submerso sentado
numa pedra menos funda.
Apanhámos todos sol deitados em pedras e alguns meditaram. Bazámos
pelo meio do rio de pedra em pedra e descobrimos que esta atividade é
realmente prazerosa.
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A seguir fomos almoçar numas mesas no meio da natureza umas sandes de
atum infinitas que mal cabiam no pão. O Salema atirou um tomate para longe
e todos lhe demos na cabeça. Resfrescámos cervejas numa fonte e
bebemos uma.
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Depois fomos até às cascatas do Tahiti e quase morri. Eram cascatas muito
altas e a pedra era escorregadia. Ao atravessar uma delas escorreguei, perdi
o equilíbrio e agarrei-me a um ferro. Mas se não me tivesse agarrado tinha
caído por ali abaixo. E se eu tivesse morrido? Fiquei sentado naquela rocha
um bocado em choque, e a pensar na vida que ainda tenho.
O sítio era muito bonito e a água límpida corria pela montanha abaixo com
subtileza. Estávamos num sítio alto e a vista era linda. Adormecemos todos
em cima dos rochedos e soube tão bem até que acordei, vi o Gui a despertar
com um tremor no corpo, passado um bocado o Gimbras e o Janito
acordaram mas o Salema continuava a dormir, mesmo à beira do precipício.
- Vou só mergulhar, mas antes vou beber água para estar molhado por
dentro e por fora.
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Bazámos. Fomos até outro parque de campismo onde nos instalámos e,
depois de tomar um banho a ferver, cozinhámos uma massa de vegetais
com demasiado molho teriyaki. Ao pegar na panela com um garfo e uma faca
para não se queimar na panela, o Salema deixou-a cair ao chão e perdeu-se
parte dos vegetais. Demos-lhe na cabeça outra vez e o Gimbras disse que
até estranhou uma das engenhocas dele não ter funcionado bem.
Acabámos, comemos e saboreámos, demos uma volta pelo parque de
campismo e acabámos num parque infantil a ser crianças. Lavámos a louça
e vimos escuteiros.
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Dia 10 // 29 de Junho de 2019
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Estacionámos e decidimos andar num trilho durante um quarto de hora para
chegar a um sítio que um amigo nosso nos tinha sugerido. Uns espanhóis
que também iam para lá indicaram-nos o caminho quando estávamos meio
perdidos, quase a desistir de procurar por estarmos a andar há meia hora e
não termos visto nada. Continuámos e valeu a pena.
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As rochas estavam cobertas por pequenos musgos que permitiam
escorregar e deslizar por elas, o que nos fez cair na água algumas vezes. Mil
tons de azuis e verdes.
Os putos espanhóis tinham tábuas de skate de dedo sem rodas para “surfar”
a água e diverti-me tanto a brincar com aquilo. Ficámos lá umas horas até
bazarmos e fazer aquela caminhada de novo que nos moeu de cansaço.
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Comemos um hambúrguer num café, viemos para o camping, jogámos
futebol de árvore (jogo que inventámos que consiste em passar a bola uns
aos outros a longa distância por entre as árvores) e descansámos.
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Fizemos jantar cedo pela primeira vez e comemos burritos: ninguém falava,
só se comia. De barriga cheia conversámos, viemos ao café do camping
beber uma cerveja e voltámos para a tenda para adormecer.
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Dia 11 // 30 de Junho de 2019
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Conhecemos um grupo de belgas escuteiros que se juntou a nós e
conversámos com eles. Já de noite fomos tomar banho os cinco ao mesmo
tempo, cada um no duche a seguir à cabine do outro, ocupando uma fila de
duches do balneário do camping. Do nada começámos a fazer uma jam com
sons, palmas e outros barulhos que ecoavam na casa de banho, nem
sempre vazia.
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Dia 12 // 1 de Julho de 2019
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Chegámos a Braga num instante e passeámos pelo centro a pé. O ambiente
da cidade estava muito agradável, calor, muita gente na rua e tivemos de ir
comer um gelado onde encontrámos um cão que tinha feito uma cirurgia às
orelhas. Passeámos mais, vimos flores bonitas e igrejas.
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Coincidência das coincidências: este ciclista aparece também na foto seguinte,
que foi tirada 15 minutos depois noutra zona da cidade.
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E ainda por cima olha para a lente. A lata…
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Tinha pedido casa na internet outra vez e assim conhecemos o Pedro: um
bacano de Viana do Castelo a viver cá em Braga que me respondeu e disse
que nos dava casa aos 5 e que tinha mesa de ping pong. Assim que li “ping
pong” nem pensei duas vezes. Viemos ter com ele, comprámos
hambúrgueres e fizemos o jantar. Conversámos sobre o facto da internet
permitir que nos conhecessemos e como isso é incrível. Jogámos ping pong,
ouvimos música e o Pedro foi mostrar-nos a noite de uma Braga numa
segunda-feira.
Fomos até à Sé mas estava tudo vazio. Sentámo-nos num bar com boa
música e chillámos um bocado até decidir voltar para casa. Já na casa do
Pedro, tocámos guitarra e cantámos coisas antes de adormecer em camas.
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Dia 13 // 2 de Julho de 2019
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Pus no instagram o último pedido de casa e recebi mensagem de uma
Carolina Diogo que me mandou foto de uma piscina. Fomos em direção à
casa dela. Quando chegámos ela ainda não estava na casa mas o irmão
abriu-nos a porta.
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- Quero fazer dinheiro para depois poder fazer o que gosto mesmo. - disse o
Diogo.
- Eu vou tentar fazer ambos logo de início. - respondi-lhe.
Jogámos snooker, andámos de streetsurf e fomos numa tour pela casa. A
certo ponto passou-me o telefone e disse:
Peguei no telefone.
- Tou man?
Atendi como se fosse um gajo da minha idade para depois perceber que
estava a falar com o pai dele.
- Eu aqui no escritório e vocês aí. Curto bué a tua cena meu, aproveitem aí!
Um bacano! A Carolina chegou com a cadela deles, a Lua, e fomos todos dar
um mergulho. Agradecemos-lhes pela tarde e fomos até à casa de umas
raparigas que nos ofereceram casa com simpatia.
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Quando chegámos à casa no centro de Coimbra já tinham comprado jantar
então começámos a conversar e a conhecermo-nos numa nova interação
sem expectativas. Inesperado. Conhecemos tantas pessoas que me deram
casa por terem desenvolvido uma relação de confiança comigo sem eu as ter
conhecido antes.
A certo ponto a Inês disse-nos que trabalha no call center de uma companhia
de telecomunicações e esteve sem exagero uma hora a falar com todos com
o modo “operadora de telecomunicações” ligado. A falar das vantagens do
seu serviço às três da manhã e todos nós a morrer a rir. O sotaque
carregado de Amarante ajudou.
Rimos muito nesa noite e dormimos no chão e numa cama, que o Gui
ocupou depois de ser vencedor num zerinho-ou-um.
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Dia 14 // 3 de Julho de 2019
Às vezes não chego a dizer estas coisas por medo de um embaraço sem
sentido, mas aqui disse do coração e pensámos no quão boa tinha sido a
experiência, e como é bom sermos um grupo que tem ideias e realmente as
leva para a frente. Lacrimejei sem ninguém ver num momento inesperado
em que o Salema disse mais uma das suas coisas ridículas e engraçadas
que é preciso ser amigo dele para perceber, ao pensar que estou, de facto, a
viver.
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Mais Ou Menos À Boleia
Agosto de 2018
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Em Agosto de 2018 eu e 3 amigos decidimos viajar à boleia pela Europa.
Definimos um percurso que passava por Espanha e França, sem nada
totalmente definido, e saímos de Sintra no dia 4 de Agosto com 2 tendas e
uns atuns de emergência.
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Dia 1 // 4 de Agosto de 2018
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Uma hora numa estação de metro a pensar em opções. Uma rapariga tentou
ajudar, falou ao telefone com alguém desconhecido e falou-nos de possíveis
hostéis para ficarmos, na zona do Sol, no centro de Madrid.
O Gui marcou reserva no primeiro e mais barato que apareceu e fomos até lá
a pé. Acabámos por chegar ao melhor sítio de sempre após estarmos
completamente desnorteados em relação ao plano, ao que iria acontecer a
seguir e, no fundo, ao nosso destino.
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- Boa sorte para o resto da tua vida. - disse-lhe o Gui depois de simpatizar
com ele.
O Janito não parava de mencionar o quão boa estava a ser a noite e eu não
podia deixar de concordar e cambalear a rir com ele. Numa rua cheia de lixo
encontrámos animais de plástico de brincar e fizemos um exército no
passeio. Parámos numa praça, rimámos e improvisámos num beat e, do
nada, conhecemos o Ras Deiverman: um cantor de reggae com uma energia
contagiante e grandes sons que nos mostrou. Mostrei-lhe a Manáda! e ele
cantava connosco.
Depois de nos despedirmos o Salema disse que quem lhe dera ser filho dele
e a partir desse comentário ninguém conseguiu dizer nada mais engraçado
sobre a situação.
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Dia 2 // 5 de Agosto de 2018
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Fomos ao supermercado comprar o jantar e almoço para o dia seguinte que
ia ser passado a apanhar boleias em direção a Barcelona. Mais tarde
perceberíamos que as coisas não iam ser assim tão simples.
Na cozinha fizemos uns bifes para o jantar, preparámos umas sandes para o
dia seguinte e vimos na internet o sítio em que nos íriamos posicionar para
apanhar boleia. Voltámos para o quarto. O ar condicionado foi uma dávida
nos constantes quarenta graus que sentíamos. Procurámos pedaços de
cartão no lixo que transformámos em cartazes em que escrevemos
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Dia 3 // 6 de Agosto de 2018
GUADALAJARA.
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Tentávamos apanhar boleia desde a paragem dos autocarros até que um jipe
parou no semáforo. Fui com um sorriso na cara pedir boleia ao condutor mas
o homem, sem expressão durante uns segundos, acabou por dizer que sim.
Passado um minuto passou lá de novo a fazer-nos sinal para entrar no carro.
A primeira boleia! Ia abrir a porta e ele disse-me para saltar para o banco de
trás do jipe sem teto nem parede. Levou-nos até uma bomba de gasolina
mas não à que queríamos pelo que tentámos falar com condutores porque
pensámos que seria mais fácil do que apenas usando cartazes.
Os espanhóis não são tão antipáticos como se diz, se falarmos com um
sorriso na cara mostram empatia, o problema foi que ninguém ia para onde
queríamos. Nem até à estacion de servicio conseguimos chegar.
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Desmotivados pensámos que não íamos conseguir viajar à boleia com a
facilidade que imaginámos. Criámos movimento e fomos ao supermercado
(ar condicionado!) comprar o jantar e procurar local para montar as tendas.
Duas pessoas que saíram do supermercado ao mesmo tempo que nós
deram-nos boleia até ao Parque del Rio em que ponderámos dormir até
vermos um boi lá dentro.
Era o zoo de Guadalajara. Fomos até ao parque de Coquin, que o Gui
batizou como Parque dos Coquinados, e deitámo-nos exaustos na relva.
Eu e o Gui fomos bater a portas de pessoas para tentar arranjar um pateo
trasero para pôr as tendas mas ninguém nos acolheu e voltámos para fazer o
jantar.
Fui com o Salema a outro supermercado porque nos esquecemos do
esparguete na caixa do primeiro só que, chegados ao sítio indicado,
percebemos que tínhamos deixado as carteiras nas mochilas e que aquilo
não era uma mercearia mas sim uma loja que vendia molduras que, ainda
por cima, estava fechada.
Tudo corria mal e era fácil stressar mas senti que estes momentos pediam
para que os aceitássemos e ríssemos, flexíveis e sem rigidez quando ao que
devia ser. Aposto que o Kerouac diria que é isso que torna a estrada tão
estimulante, a imprevisibilidade. Se nos deixarmos consumir pelo falhanço
vamos desmotivar e acredito fortemente que lhe vamos conseguir daravolta.
Fizemos o jantar já com o esparguete e senti-me relaxado e satisfeito depois
de um stress exaustivo.
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Arranjámos sítio para dormir: era seguro pôr as duas tendas entre umas
árvores sem sermos vistos. Decidimos montá-las à noite, quando
escurecesse.
O jantar, bolonhesa feita no campingaz, foi o ponto alto daquele dia. Perfeito.
A comida sabe toda surpreendentemente bem quando estamos na estrada.
Falámos e comemos e depois fomos montar as tendas para dormir. Ficou
decidido que no dia seguinte apanhávamos um comboio para Barcelona.
Estava um calor ridículo e suei-me todo. Enquanto o Janito e o Gui dormiram
apertados com as mochilas dentro da tenda com medo que lhas roubassem,
eu e o Salema pendurámos as nossas nos ramos das árvores por cima da
tenda e pudémos esticar as pernas como deve ser.
Acabei por dormir algumas horas, suficientes, para acordar no dia seguinte
com energia para mais imprevisibilidade.
- Nunca consegues ser tão tu quando sabes que te estão a filmar. Há uma
pressãozinha lixada.
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Dia 4 // 7 de Agosto de 2018
Seis da manhã.
Acordei e estava de noite. Desmontámos as tendas e a falta de sono
tornava-nos mais engraçados.
Depois de tirar a mala das árvores e ter arrumado tudo, comemos. Cerelac.
Lavei os dentes no sistema de rega e o resto da malta fez o mesmo.
Sistemas de rega andam a revelar-se extremamente úteis.
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Fomos a pé até à estação de comboios e cuspimos no mesmo rio em que
tínhamos cuspido quando por lá passámos. Apanhámos o comboio com
direção a Barcelona às oito. Na casa de banho da estação o Gui falou-me
sobre fazer um gráfico de produtividade, escrever percentagens do uso do
tempo e depois durante quinze dias comparar a sua semelhança ou
diferença com a realidade, de forma a mudar e ser mais produtivo com
consciência.
Relaxante estar no comboio e não estar preocupado com para onde ir. Uma
viagem que noutra altura teria sido aborrecida revelou-se prazerosa neste
contexto e ainda hoje me lembro do quão bem soube aquela viagem de
comboio a olhar pela janela despreocupado e a passear pelas carruagens
enquanto os outros dormitavam. Dormi um bocado até que tivemos de sair
do comboio em Caspe porque havia un troço en construction, como disse o
pica simpático com cara de Hernando.
O resto do caminho até Barcelona foi feito de bus. Ajudámos um francês que
também ia para o mesmo destino e que não percebia nem 2 palavras do que
eu dizia, o que me fez considerar a possibilidade de estarmos lixados em
França. Mas isso é um problema para os nossos eu’s futuros.
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Assim que chegámos senti-me bem por estar novamente em Barcelona. Há
qualquer coisa nesta cidade que me puxa para cá ficar. Vi uma rapariga
bonita e loura a skatar e senti imediatamente o ambiente de Barcelona
totalmente inundado pela cultura do skate. Fiquei com pena de não ter
trazido o meu mas lembrei-me que não seria prático.
O Gimbras veio ter connosco a Barcelona e o grupo aumento para cinco.
Fomos até ao apartamento que tínhamos alugado e apercebemo-nos que as
condições eram incríveis. Relaxámos na varanda do quarto andar e fomos
tratar do jantar. Fizemos umas pernas de frango com arroz, bebemos jola e
conversámos. Aí conhecemos a Neuza. O senhorio tinha-nos dito que havia
uma senhora no prédio com uma doença que a tornava muito sensível ao
ruído. Pensámos que fosse só uma peta inteligente que inventou para não
fazermos barulho mas logo a seguir ao jantar ela apareceu a pedir para
baixarmos o volume da música.
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Fomos até ao spot de skate mais conhecido da Europa e a energia estava
incrível. Dezenas (centenas?) de latas no pavimento em frente ao museu de
arte contemporânea de Barcelona. Vozes e risos altos eram abafados pelo
barulho ensurdecedor de rodas de skate a bater no chão.
Comprámos cerveja a vendedores de rua e sentámo-nos no curb mais baixo.
Pedi o skate a um alemão e ainda saquei um kickflip, um treflip e um bigspin
apesar da descoordenação motora do momento e dos ténis de caminhada
que usava. Imagino-me tanto a viver nesta cidade, cheia de vida, skate e
pessoas de todo o mundo.
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Continuámos a andar. Do nada lembrei-me que quando estive em Barcelona
sozinho no início de 2017 tinha deixado uma tábua de skate que tinha
encontrado na rua dentro de um portão de um armazenamento de caixotes
de lixo de rua, que ficava ali perto. Pensei em ir ver se ainda estava lá. Ao
espreitar por baixo do portão vi uma outra tábua roxa e uma bola.
Quis muito. Puxei para abrir e não deu. Voltei costas e skatei com o skate de
um brasileiro que passou por ali durante uns minutos e, a seguir, tentámos
todos abrir a porta. A minha força multiplicada por cinco abriu a porta
facilmente e inesperadamente soou um alarme que nos fez panicar e correr
com a tábua e a bola numa fuga por entre várias ruas. Eles disseram que
ouviram sirenes da polícia mas eu não ouvi nada. Passeámos pelo bairro
gótico e, a seguir, fui com o Salema até mais longe. A viagem de volta até
casa foi um inferno por já estarmos tão longe, mas chegámos, comi cerelac e
dormi.
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Dia 5 // 8 de Agosto de 2018
E deram-nos 7 bilhetes. Parece que a vida, ou o que quer que seja maior do
que nós, não nos queria ali a perder mais tempo.
Almoçámos umas sandes e fomos de metro até à praia da Barceloneta.
Mergulhei no mar mediterrâneo e soube inexplicavelmente bem. O calor da
rua contrastava com a frescura quente do mar e a água parecia a de uma
piscina interior com aquecimento próprio ao ponto de só me apetecer sair e
entrar para ter aquela sensação de novo. Procurámos pedras e guardei
algumas no bolso.
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- Só sei que dissemos que íamos fazer isto e fizemos mesmo.
Tomámos duche no chuveiro da praia e fomos embora. Bebi uma cola e tive
quatro esgotamentos nervosos ao observar raparigas lindas de todos os
cantos do mundo. O Salema disse que já usou mais vezes as palavras
“ganda gata” em dez minutos em Barcelona do que num dia inteiro em
Portugal. Cinco minutos depois estava eu a vê-lo tomar banho num
bebedouro de rua.
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Fomos até às Ramblas e acabámos por ir parar ao bar que uma miúda nos
sugeriu: Ovelha Negra, onde bebemos uns copos e falámos com
desconhecidos de outros países. Ouvi Arctic Monkeys pelas calles do Bairro
Gótico até chegarmos à praia. Claro que falámos com meio mundo
entretanto mas não me lembro de pormenores.
Voltámos para casa de Uber. Acabo de me aperceber o quão ridículo isso foi
tendo em conta que isto é uma viagem à boleia mas, pensando bem, um
Uber pode ser considerada uma boleia paga.
Como eu, o Gimbras e o Janito chegámos primeiro que o Salema e o Gui,
que tinham a chave, ficámos num banco de rua à espera. Eles os dois
subiram e eu quis ficar mais um bocado na rua até que adormeci deitado no
banco a ouvir Arctic Monkeys. Passado um bocado um ciclista acordou-me e
perguntou-me se estava tudo bem. Durante uns segundos não fazia ideia de
onde estava. Agradeci-lhe e quando me dirigi para a porta do prédio
apercebo-me que não tenho o telemóvel e inteirei-me de que fui roubado.
Stressei. Fui dormir depois de 45 minutos a mudar passwords e, já na cama,
lembrei-me da noite anterior em que levámos a tábua e a bola que não eram
nossas.
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Dia 6 // 9 de Agosto de 2018
SANTA SUSANA
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É incrível como tudo pode acontecer. Quase me custou a acreditar na
bondade e genuinidade daquela senhora. O sorriso que esboçou ao dar foi
lindo de se ver, e o nosso ainda maior. Nem sei quantas vezes disse muchas
gracias durante toda a estadia. As possibilidades, abertas. Estou cansado,
mas feliz.
O passeio noturno soube bem: brincámos num parque infantil, vimos mais
relâmpagos sentados na praia e jogámos com uma bola que encontrámos na
rua. Não levei telemóvel e não me lembrei uma única vez de pôr a mão no
bolso: estive presente. Voltámos, comemos qualquer coisa e ascendemos
para o reino dos céus e dos lençóis lavados.
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Dia 7 // 10 de Agosto de 2018
Parece que estamos nesta viagem há muito mais do que de facto estamos.
Acordámos depois de grande soneca e a Anna ofereceu-nos presunto.
Depois de arrumarmos as coisas conhecemos o neto dela, um espanhol de
dezoito anos com a voz demasiado grossa.
Fomos ao supermercado comprar o necessário para fazer sandes na praia e
uma flor cor de laranja para oferecermos à Anna como símbolo da nossa
gratidão. Ela sorriu e seguimos viagem.
Chegámos à praia, montámos uma das tendas, comemos sandes de atum e
curtimos a água mediterrânea.
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O Janito e o Gui ficaram a meditar e fui com o Salema e com o Gimbras a
um restaurante porque ele queria comer mais qualquer coisa. Roubei
maionese. A princípio isto pode parecer um ato estúpido mas a maionese de
supermercado estraga-se depois de aberta e a que está nos pacotes selados
não, pelo que mais tarde se revelou uma ideia de génio.
Voltámos e fomos à procura de sítio para dormir. Nesta viagem as maiores e,
no fundo, únicas preocupações que temos são as necessidades básicas de
sobrevivência: comer e dormir.
Depois de algum tempo a procurar casas sem ter a mesma a sorte do dia
anterior, acabámos por decidir ficar a dormir ao relento na praia e fomos
comprar frango. Para podermos ir sair pensámos em enterrar as malas
dentro de grandes sacos de plástico pretos do lixo mas acabámos por
encontrar uns arbustos em que escondemos os sacos com as malas. Noutro
saco, em separado, deixámos os nossos sacos de cama e as colchonetes
prontas para quando chegássemos e fomos sair.
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Bebemos umas cervejas e procurámos sítios para sair sem serem discotecas
turísticas, mas nada. Até encontrarmos um bar chamado Monkey Thai.
Passados uns quartos de hora paguei shots a todos.
Num piscar de olhos estamos no balcão com as bartenders, completamente
bêbadas, a despejar-nos líquidos assustadores para os copos e diretamente
para a boca. O bar estava vazio mas era como se estivesse cheio. Só se
ouvia o Gimbras a dizer
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Dia 8 // 11 de Agosto de 2018
Seis horas depois acordo com o sol a queimar-me a pele, níveis de energia
na reserva e boca demasiado seca. Foi nesse momento que percebi o erro
que foi ter dormido na praia. Enfim, tínhamos de viver, ninguém o ia fazer por
nós.
Passámos esse dia num loop. De quinze em quinze minutos o calor tornava-
se insuportável, íamos mergulhar e voltávamos para a areia. Apanhar pedras
bonitas da rebentação e comer. Almoçámos num restaurante, vimos uma
gata grávida e um senhor, dono de um cão a quem fui fazer festinhas, disse-
me que podíamos ficar a dormir em casa dele se passássemos por
Montpellier, em França.
O Gimbras só podia viajar connosco durante aqueles 4 dias e, depois do
almoço, apanhou comboio em direção ao aeroporto e nós apanhámos outro
em direção ao desconhecido.
Depois do turismo algarvio que sentimos vivo em Santa Susana, decidimos ir
para uma vila medieval chamada Tossa, simplesmente porque chamou à
atenção. No dia anterior tinha visto o nome numa banca turistica de praia e
quando perguntei à senhora se valia a pena no meu espanhol
aportuguesado, ela disse-me que sim.
Todos os dias traçamos o plano desse dia e não fazemos ideia do que vai
acontecer a seguir. Acho que, por isso, nos sentimos mais presentes:
estamos constantemente a ver coisas novas.
Eu e o Gui ouvimos músicas de phones, coordenando-as ao mesmo tempo
nos dois telemóveis, aumentando o volume ao ponto de não termos nenhum
estímulo sonoro de fora e dançámos e saltámos na estação.
Apanhámos o comboio e, em Blanes, trocámos para um bus. Chegámos a
TOSSA DE MAR.
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Talvez por intuição, perguntei a um taxista sítios bons para acampar e se
havia caça, como em Santa Susana. Ele disse que ali era tranquilo e falou-
me de um sítio lindo chamado Cala Bona. Explicou-me que pescava nos
tempos livres e que ali era o seu local de eleição.
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Dia 9 // 12 de Agosto de 2018
Todos os dias acordei com o Gui a acordar. Ele mal desperta levanta-se e
começa a viver, em vez de demorar uns minutos a iniciar as funções do
corpo como o resto das pessoas normais.
Acordei com calor num espaço minúsculo com o Salema ao meu lado. A
tenda estava cheia de luz e lembrei-me de onde estava. Abri o fecho, saí e
levantei-me. Ainda com os olhos esbugalhados vi um azul forte que se
estendia por kilómetros sem fim até ao infinito. O céu estava limpo e de um
azul mais claro. Olhei em volta e vi uma imensidão de árvores e arbustos
numa paisagem dominada pelo azul, o verde e o amarelo-terra. Inspirei.
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Meditei com o Gui. Demos um passeio pela serra que habitávamos e
comemos cereais. Um polícia vestido com roupa de atletismo passou pelo
trilho que atravessava o nosso camping e disse-nos que estávamos a
interromper o caminho mas nós estávamos mais preocupados em conseguir
acordar o Salema.
Arrumámos as coisas, pusemos as malas noutro sítio e descemos da colina
para mergulhar no braço de mar que entrava pelas arribas adentro criando
uma zona paradisíaca com água de um azul-esverdeado transparente.
Mergulhámos. Nadei tranquilamente a olhar para o fundo com os olhos
abertos debaixo de água. Vi um francês a usar óculos de mergulho e fui
pedir-lhos. Nunca tinha respirado pelo tubo de uns óculos de mergulho
durante tanto tempo como neste dia. Vi peixes e senti-me parte daquele
ambiente aquático que me envolvia.
Mais tarde almoçámos uma salada de atum com grão e adormecemos todos
à sombra passageira de uns pinheiros.
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Quando acordámos montámos as tendas, preparámos o jantar e comemos.
Antes de escurecer totalmente subimos até ao topo da colina e já mal
conseguia distinguir as feições da cara dos outros.
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Dia 10 // 13 de Agosto de 2018
Acordei depois de um bom sono e comi uns cereais na mesma taça que o
Janito. Fizemos isto várias vezes para poupar louça.
Meditei sozinho em cima da minha toalha dobrada, colocada num tronco de
uma árvore que formava um banco natural. Senti-me calmo e focado depois
de vinte minutos sentado a respirar e foi palpável a diferença que teve na
minha disposição durante esse dia. Por estar mais atento aos impulsos que
cada situação criava em mim, e por ter maior controlo sobre os mesmos,
reagi muito menos a tensões, emoções negativas, conflitos e pequenas
coisas que poderiam desencadear reações maiores. Passar tanto tempo com
amigos também tem um lado menos bom: irritamo-nos facilmente uns aos
outros. E várias vezes, em certos pontos da viagem, sentia tendência para
discutir. Meditar ajudou-me a reconhecer quando esses momentos estavam
prestes a acontecer e não reagir aos impulsos.
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Tínhamos decidido deixar Cala Bona neste dia por isso fomos dar o último
mergulho, e que bem que me soube. Senti a água no corpo e este a fluir
subtilmente pela massa líquida. Dei uns mergulhos e boiei um bocado.
Rejuvenesceu-me e depois fomos arrumar as coisas para iniciarmos uma
caminhada até ao centro de Tossa, onde tomámos banho nos chuveiros da
praia (o Janito lavou os dentes), comemos e procurámos maneira de chegar
a Girona.
Fomos até uma gasolinera. Pedi boleia a um condutor de um jipe e ele disse
que não ia nessa direção. Um BMW branco parou na bomba e o Janito
chamou-me à atenção para isso.
Numa viagem (vida) como esta não nos podemos dar ao luxo de perder
oportunidades por constrangimento ou desconforto e, portanto, não pensei
duas vezes. Fui falar com a senhora que saiu do carro.
Confesso que, depois de todo o falhanço que foi tentar apanhar boleia em
Guadalajara, não estava à espera de grande resposta da parte dela e achei
que ia ser só mais uma pessoa que não ia nessa direção. Mas ela sorriu e
disse que ia, e subitamente abriu-se uma possibilidade.
CASSÀ DE LA SELVA
Ajudámo-la a carregar o carro com coisas das mudanças e senti que nos
ajudámos mutuamente, não por obrigação, mas de uma forma totalmente
espontânea e natural. Como se não bastasse confiar-nos a chave do carro
para o carregarmos enquanto ela arrumava coisas em casa, bem como a
chave de casa e nos deixar sozinhos durante essa noite, fez questão de nos
cozinhar um jantar cheio de presunto em cima de pão com tomate, pinchos,
botifarras e outras salsichas com nomes estranhos. Comprámos o pão e
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bebida e ela quis pagar a carne toda. Para não falar de que nos fez uma
quantidade animalesca de comida. Ficámos gratos. Jantámos no terraço da
sua casa, num final de tarde que pintava tons alaranjados no céu.
Não jantou connosco porque o marido ia chatear-se e voltou de manhã para
nos levar a Cadaqués.
Pela primeira vez na vida fui acordado pelo Salema, que em todas as
ocasiões em que dormimos no mesmo sítio é o último a sair do saco de
cama.
A Anna chegou bem cedo, antes das oito, e pusemo-nos a caminho. Falámos
sobre a independência da Catalunha, mostrámos-lhe música e ela falou-nos
do seu sonho. Contou-nos que se fartou de trabalhar e que quer agora abrir
o seu Hotel “para ricos”, limitado, no centro de Tossa, daí nos termos
encontrado naquela bomba de gasolina. Achei boa ideia e fiquei contente por
ver alguém que não é propriamente jovem a deixar o trabalho que não a
preenche e fazer o que realmente quer.
CADAQUÉS (droga?)
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Depois de bebermos um café com a Anna e nos despedirmos dela com
abraços fortes e lhe agradecermos por tudo do fundo do coração fomos
visitar a casa do pintor surrealista.
Nutro interesse por design de interiores e fascinaram-me as ideias fora da
caixa que ele teve para a casa: colocou um espelho inclinado numa parede
em frente à cama especificamente para poder ver o sol a nascer ao acordar.
E tinha um urso verdadeiro mumificado no hall de entrada.
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Depois da visita fomos a pé em direção ao centro, como sempre com as
malas pesadíssimas às costas, e vimos a água límpida e transparente da
praia. Enquanto nos deliciávamos com a frescura do mar o Janito tirou areia
do fundo do mar, pô-la na cara e pôs-se a mover-se lentamente só com a
cabeça de fora. A cor negra fez com que parecesse um soldado a aproximar-
se lentamente da praia prestes a iniciar a ofensiva. Fiz o mesmo e ficámos
com areia nos olhos.
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Saímos da praia, fomos comprar frango para cozinhar e passámos uma hora
a bater a portas de casas, pedindo jardim para montar as tendas. Não
conseguimos nada mas um homem quis ajudar-nos e saiu de casa descalço
para nos mostrar um sítio ali perto que era bom para acamparmos sem
sermos vistos. No meio de oliveiras e arbustos, construímos um fogão de
xisto para proteger a chama do campingaz, cozinhámos o jantar, comemos e
fomos dormir.
Ficámos ainda uma hora a conversar os quatro, já com as tendas fechadas e
cada um no seu saco de cama. Tínhamos ouvido uns barulhos mas
pensámos ser só o Transmuntana, o vento forte que soprava e que passeia
constantemente por todo o norte da Catalunha. Mas a certo ponto ouvi o que
me pareceu o roncar de um porco. Abri a tenda, levantei-me e apontei uma
lanterna. Javalis. A mim pareceram-me inofensivos e até me deu vontade de
fazer festinhas mas o resto da malta teve medo que nos atacassem e achou
melhor fecharmo-nos nas tendas. Achei ridículo e, dentro da tenda, fui ver à
internet e consta que há mais ataques de javalis a ser humanos do que de
tubarões.
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Dia 12 // 15 de Agosto de 2018
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Em vinte minutos o Gui e o Janito apanharam uma e eu e o Salema
apanhámos outra passados 40 minutos. O segredo é não desmotivar e
acreditar que vai aparecer alguém.
Apanhámos boleia de um catalão nos seus vinte e muitos anos, de óculos de
sol, que trabalhava nos barcos em Cadaqués e que ia até Figueres buscar
umas coisas a casa e a seguir ia ter com a namorada para folhar. Perguntei-
lhe o que fazia normalmente depois do trabalho e ele disse, com um sorriso
“fumar e folhar!”
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Já escuro, tocados, precisávamos de encontrar um sítio para dormir e vimos
nos mapas uma área verde próxima. Pusemo-nos a andar na direção da
mesma mas ao chegar lá percebemos que estávamos demasiado expostos.
Com a mesma estratégia encontrámos outro sítio para dormirmos, um
parque mais selvagem onde nos deitámos ao relento, sem tenda, e
adormecemos.
Acordei com a luminosidade do nascer do dia a espreitar por cima da linha
do horizonte e voltei a dormir.
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Para nossa surpresa ofereceu-nos almoço em casa dos pais dele e
comemos um peixe no forno que a mãe nos preparou na companhia do
Lucky, o cão que fazia anos. Só conseguíamos olhar um para um outro e
sorrir pela probabilidade da situação.
Enquanto o Gui e o Janito chegavam a Olot noutra boleia, fomos dar uma
caminhada com os nossos dois novos amigos até à cratera de um pequeno
vulcão inativo nas paisagens verdes e calmas de Olot. Toda aquela zona é
vulcânica e eles tinham um vulcão praticamente no pateo trasero.
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Encontrámos o resto da malta e o Felipe levou-nos de carro a ver uma aldeia
em cima de uma rocha chamada Castellfollit de la Roca, andar pelas ruas
medievais de Besalú e mergulhar num lago gigante ali perto.
Depois deixou-nos numa saída da cidade para apanharmos boleia e
rapidamente conseguimos quatro lugares para Vic com o Paul, um asiático
que gosta de viajar de carro, sozinho. Fomos apertados com as malas e
vimos as montanhas de Montserrat.
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Encontrámos um descampado com algumas canas a um canto. Não havia
espaços verdes naquela cidade então acabámos por montar as tendas ali
mas, como estávamos muito expostos e é proibido acampar na rua em
Espanha assim sem mais nem menos, arrancámos algumas canas e
encostámo-las às tendas para as camuflar.
Jantámos e fomos deitar-nos num passeio ali perto a olhar para o céu.
Ouvimos algumas músicas do Damn. do Kendrick Lamar e conversámos
sobre como é boa a sensação de andar assim à deriva, ao sabor do vento.
Depois de algumas risadas fomos dormir.
O Salema queria ter usado o gás pimenta, que trouxe de casa, no que quer
que seja que fez barulho nos arbustos perto das nossas tendas mas,
infelizmente, não teve oportunidade.
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Dia 14 // 17 de Agosto de 2018
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Continuámos na nossa busca pela boleia mas, novamente, ninguém com
quem falámos ia para Lleida, nem nessa direção, o que nos desmotivou e
trouxe ao de cima todo o cansaço do mundo que tínhamos vindo a acumular.
Neste momento estava sozinho com o Salema e começámos a falar sobre
acabar a viagem ali. Ele não queria desistir, eu estava reticente e enquanto
falávamos disto o Gui e o Janito, que estavam ali perto a falar com pessoas,
apareceram e contaram-nos que tinham estado a pensar na mesma coisa.
Parecendo que não, viajar à boleia é cansativo. Desde o peso que levamos
connosco às costas até à constante atenção que temos de ter focada no
momento para tratarmos do que é essencialmente preciso. Mas por outro
lado sentimos uma liberdade viciante que, a meu ver, se aproxima de uma
sensação de urgência, de sobrevivência urbana, sem a possibilidade de
morrer por não ter comida para essa noite ou por não encontrar um sítio para
dormir, porque há sempre um supermercado ou um hostel por perto.
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O plano era não haver plano, mas queríamos chegar a França. O trajeto
acabou por ser muito mais curto do que esperava, tinha expectativas para
mais e seria até fácil aborrecer-me com isso. Mas há uma frase que diz
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Texto, fotografias e edição: Miguel Luz
29/11/2022
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