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um diário escrito e fotográfico de viagens sem plano

Miguel Luz
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ÍNDICE

4……….……….……..…….………….….….………..……Logo Se Vê (Prefácio)

5………….…….…….………….…….…….……..………Sozinho no Sul de Itália

151.…….….…..…….………….…….…….………….….……….….Carro À Vana

342….………….…….…….………….…….…….…..…Mais Ou Menos À Boleia

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Logo Se Vê

Uma das minhas maiores dificuldades na vida é lidar com uma constante
tendência de querer controlar tudo. Talvez fruto de um medo de não
aproveitar tudo ao máximo, proeza essa infelizmente impossível de
concretizar, ou talvez reflexo de uma sede insaciável de experiências que me
preenchem e inspiram.

Talvez por isso tenha enchido tantas páginas de um diário com a minha letra
de médico sem licenciatura numa área que se relacione, e se calhar é
também essa a razão pela qual fotografei centenas de momentos que
passaram à minha frente nestas três viagens reveladas nas próximas
páginas deste livro.

Viajar deve ganhar a todas as outras experiências no Concurso de


Apreciação Geral do Público. Pouquíssimas vezes, talvez nulas, ouvi alguém
dizer que não lhe agrada sair do sítio onde vive e entregar-se a uma
aventura por caminhos novos. Parece-me uma razão suficientemente forte
para ser o foco de umas férias ou para que a maior parte das nossas
recordações estejam ocupadas por algum tipo de viagem.

Mas é comum associar viajar com agitação. O esquema é sempre o mesmo:


escolher o destino, comprar os bilhetes, reservar alojamento, procurar os
restaurantes, marcar no mapa os monumentos imperdíveis, planear cada dia
ao ponto de, mesmo antes de sairmos de casa, já sabermos o que vamos
ver e o que vamos fazer. E isso soa-me stressante e aborrecido ao mesmo
tempo.

Proponho um novo método de viagem. Um que não se preocupe


antecipadamente com as horas a que se apanha o comboio, com o sítio
onde vamos dormir ou com os restaurantes que temos de experimentar. Uma
forma de viajar que nos permita estar aqui e agora, em vez de nos
entregarmos a uma constante preparação do momento que se segue. Uma
mudança de atitude que nos faça pôr a necessidade de controlo de lado e
que nos faça estar atentos ao que a viajem tem para nos oferecer. Deixarmo-
nos ir com o que aparecer.

Só podemos falar do que vamos fazer amanhã, amanhã. Hoje é hoje.


Amanhã…

Logo Se Vê.

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Sozinho pelo Sul de Itália

Setembro de 2019

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Dia 1 // 4 de Outubro de 2019

Acordei às quatro e meia da manhã e fiquei três minutos na cama a


mentalizar-me que ia mesmo levantar-me. Banho, iogurte nojento de ananás,
torrada no bolso, embrulhada num guardanapo. Saí de casa ainda de noite e
andei até à estação de comboios com a minha mala de campismo às costas.

Estava em Bologna há pouco mais de duas semanas e, como as aulas de


Erasmus só começavam dia 14, decidi viajar sozinho, rumo ao Sul de Itália,
sem plano. Tenho vindo a descobrir que esta é a mais autêntica forma de
viajar: deixar-nos levar e ver o que acontece e aonde vamos parar. Sem
nenhum motivo em especial, decidi que ia para Siena e depois logo se via.

O meu dia começava quando a noite de outros acabava. Pelas ruas vazias
passei por grupos que fumavam e bebiam os últimos copos enquanto eu
caminhava a passo rápido pronto para começar uma viagem de destino
incerto. Apanhei o comboio para que tinha bilhete e, depois de quatro
escalas em pequenas estações, eram oito da manhã quando cheguei a
Siena.

Uma visita de estudo saiu da mesma carruagem que eu e comecei a falar


com a professora que me deu indicações sobre a cidade que eu
desconhecia. Outra parte fulcral de viajar sem plano é não investigar muito
previamente sobre a cidade para que se vai e, chegado ao destino,
descobrir. A professora disse-me que podia ir com eles até ao centro e fomos
a conversar enquanto a turma nos seguia. Perguntei sobre gastronomia
típica, o que é que havia para ver e o que é que valia a pena até que
chegámos à porta da cidade e nos despedimos. Depois de deixar a mala na
estação, por cinco euros para o dia todo, vagueei pelas ruas de Siena.
Edifícios altos e ruas banhadas por grandes feixes de luz solar que a estrela
irradiava vigorosamente do céu formando contornos de luz à volta das
pessoas que caminhavam pela via principal. Tantos cães!

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Entrei numa igreja e fiquei surpreso com o seu tamanho visto do interior em
que o silêncio reinava. Não sou católico mas a arquitetura das igrejas sempre
me fascinou, pelo que deambulei por ali com a cabeça virada para cima
durante uns minutos. Passei pela Piazza del Campo. O chão da praça
redonda tinha um declive até ao centro e era marcada pela Torre Del Mangia.
Deitei-me a apanhar um banho de sol mas quando percebi que estava a
começar a adormecer, levantei-me e fui em direção ao Duomo.
A catedral, gótica, é invulgar pela quantidade de cores, padrões e desenhos
no seu interior. As colunas eram grossas e tinham padrões de zebra de verde
e branco. Andei pelas salas de um museu adjacente mas fartei-me
rapidamente.
Ouvi uma senhora a chamar-me.

- Mike!

Olhei para trás e vi um casal de idosos americanos. Pensei “porque não?” e


chamei-o.

- Is your name ‘Mike’?


- Yeah!
- I’m also Mike!
- There are so many of us out there!

Rimo-nos, despedimo-nos e nunca mais nos vamos ver. Questionei-me se


alguma vez aquele senhor iria, por algum motivo, lembrar-se do rapaz que
falou com ele durante dez segundos naquele museu em Siena.
Ainda na catedral subi até um dos pontos mais altos de Siena e, com vista
panorâmica, lancei o olhar em direção aos horizontes à minha volta.
Montanhas ao longe davam a impressão de que alguém os tinha recortado
com muito pouco jeito.
Cansado com quatro horas de sono procurei um parque. O tempo estava
agradável. Encontrei um parque chamado Orto dei pecci em que me deitei e,
depois de meditar, adormeci durante um quarto de hora.

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Acordei e, como já tinha passeado pela maioria dos pontos pelos quais Siena
é conhecida, pensei em opções para um próximo destino. Acabei por decidir
ir para a capital italiana e apanhei o primeiro comboio que consegui comprar,
às 17h45. Sentei-me e vinguei-me da noite mal dormida. Puxei a minha
sweatshirt ligeiramente para cima de modo a poder mergulhar a cabeça no
tecido e adormeci enquanto ouvia Rejjie Snow. Cheguei à estação de Roma
Termini às 21h30.

Apanhei um bus. Mais uma vez a internet salvou-me e consegui arranjar


casa para ficar por intermédio de uma rapariga que viu o meu post e que
tinha uma amiga a fazer Erasmus em Roma. Assim conheci a Beatriz: mais
uma prova da bondade das pessoas. Cheguei à morada que me enviou e ela
veio abrir-me o portão do condomínio.

- Olá!

Cumprimentámo-nos. Há sempre uma ponta de vergonha ao conhecer assim


alguém do nada mas basta começar a conversar para que ela se desvaneça.
Estava com mais duas raparigas, a Carolina, também portuguesa em
Erasmus, a Júlia, brasileira e o Júlio, belga que falava um português
engraçado. Fomos buscar pizzas e entrámos no prédio. A casa tinha tetos
altos e cinco quartos, um dos quais ela ocupava. O quarto era espaçoso e
tinha um sofá no canto em que eu pousei as minhas coisas.
O Júlio foi ao hall de entrada buscar uma foto do Papa Francisco e trouxe-o
para a mesa para jantar connosco. Ficou ali, à frente das pizzas, a olhar para
nós enquanto devorávamos Margheritas. Conversámos e jogámos ao eu
nunca com mais malta que apareceu, de outras nacionalidades. Uma dessas
pessoas era uma outra Carolina, uma miúda simpática e energética, também
portuguesa, do grupo deles.
Senti-me bastante à vontade com estas pessoas que acabara de conhecer, e
falávamos como se já nos conhecessemos há mais tempo.
À uma da manhã eles foram sair e eu fui dormir: tinha muitas ruas para andar
no dia seguinte.

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Dia 2 // 5 de Outubro de 2019

Acordei às 10h e saí do quarto porque precisava imperativamente de ir à


casa de banho. Deparei-me com três pessoas na cozinha a olharem para
mim. Os colegas de casa da Beatriz.

- The bathroom is occupied.

O quê? Não costumo acordar com tanta vontade me de sentar na sanita mas
este era um desses dias e havia uma fila!
Lavei os dentes na cozinha, vesti-me e saí de casa. Tomei um café num café
como pretexto para usar a WC. Saí do estabelecimento, desci a rua e
comprei uma banana e uvas num mercado de rua. Pedi a outro
estabelecimento para usar a WC, desta vez para lavar as uvas, e fui a andar
para o centro enquanto comia fruta fresca.
Roma! Tinha cá estado há 5 anos e não me lembrava de muita coisa. Andei
muito nessa manhã, porque a casa não era perto do centro e a cidade é
enorme. Revi o Coliseu, por fora, o Circus Maximus e o Arco Constantino
mas sentia-me numa Roma inundada de turistas por entre os quais eu tinha
de fazer fintas para me conseguir deslocar.
Almocei na Piazza Navona uma massa sentado no chão e senti-me cansado
das últimas horas a andar pelas ruas ou talvez ansioso pela quantidade de
gente com selfie sticks e ambições de fotografias de plástico.
Queria poder ter a cidade só para mim. Queria poder viver a cidade sem o
turismo em massa que distorcia a essência romana de que eu andava à
procura. E a única forma de fazer isso seria acordar de madrugada no dia
seguinte.
Andei, andei, andei. Não entrei em nenhum museu ou monumento mas vi
algumas piazzas. Passeei na Vila Borghese e deitei-me no meio de um
relvado um bocado.
Encontrei-me com a Beatriz e voltámos para casa.
Fiz o jantar, comemos e fui dormir cedo para acordar cedo.

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Dia 3 // 6 de Outubro de 2019

Como tinha combinado comigo, acordei às seis da manhã com pica: quando
se tem planos que nos entusiasmam é mais fácil sair da cama. Comi uns
cereais enquanto ainda estava escuro lá fora.
Saí e procurei o metro com o Google Maps que me fez andar às voltas e
dizer anseiras em voz alta. Tinha de chegar antes dos turistas! Foi stressante
o caminho até à Fontana di Trevi porque corria contra o tempo (e nunca
ganhamos essa corrida) mas acabei por lá chegar às 7h20.

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A fonte bonita com o azul a fazer pandã com o céu da manhã era palco para
uma fila de modelos que posavam para fotografias. Ri-me genuinamente
mas fiquei com alguma pena. Até numa viagem as pessoas procuram
massajar o ego. Procurar aquele sítio conhecido, cravar uma memória
instantânea aqui e acolá para poder mostrar aos outros que elas (sim, elas!)
estiveram ali. Mas nisto tudo será que repararam que o azul do céu da
manhã estava a fazer pandã com a cor da água? Abstraí-me e contemplei.
Tinha feito um percurso no dia anterior e segui a lista. Eu sei, eu sei. Sem
plano, logo se vê, bla bla bla. Mas quando se anda a fugir de turistas temos
de fazer alguns sacrifícios.
A seguir à famosa fonte percorri algumas ruelas com a luz do amanhecer e
entrei na Piazza Navona vazia às 8h00. Vi um cão a fugir dos donos e a
deitar-se num banco.
Pensei que, sem saber, o animal estava a tirar proveito daquele objeto como
é suposto, fazendo o que um humano faria e, por isso, ri-me.
O turbilhão de pessoas do dia anterior que me deixou algo nervoso
contrastava com a calma da manhã que me fazia sentir leve naquela famosa
piazza que, a esta hora, não tinha mais do que dois ou três italianos a
passear cães que se sentavam em bancos.
Fotografei.

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Continuei a pé para o Campo de Fiori e passei numa padaria conhecida
chamada Antico Forno Roscioli. Comprei pizza rossa só com molho de
tomate ainda quente acabada de fazer e piazza bianca feita só com a massa,
azeite e sal. Sentei-me nas escadas de uma igreja e às 8h40 estava a
deliciar-me a comer pizza. Nunca na minha vida o tinha feito tão cedo.
Um homem que passou à minha frente, na rua da igreja, olhou para o
edifício, benzeu-se em movimento e voltou a olhar em frente.

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Fui a pé até ao Vaticano e observei a Praça. Não entrei na igreja porque
estava cheia mas podia-se ver o interior da igreja, com a cerimónia a
decorrer, nos grandes ecrãs cá fora.
Apanhei um elétrico e senti-me no limbo entre acordado e a adormecer. Fui
ao MACRO, Museu de arte contemporânea de Roma que não achei nada de
especial mas que foi grátis. Isto tudo e ainda eram 13h00.
Apanhei novo elétrico em direção a Trastevere, um bairro do outro lado do
Rio Tibre. Passeei pelas ruas do bairro cheias de heras e outras plantas a
trepar e a sair das janelas. Entrei num restaurante para almoçar: uma pizza
de gorgonzola e pêra. Para sobremesa um tiramissu, como sempre. Uma vez
li em algum sítio que podemos aventurar-nos para coisas novas, o que nos
pode levar a descobrir algo que passamos a adorar, ou podemos cingir-nos
ao que já sabemos que gostamos muito. No caso de sobremesas em Itália
optei sempre pela segunda opção.
Fiquei cheio de comida e de energia e vagueei com boa disposição. Fui a um
mercado vintage e olhei para livros.

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Depois fui até ao Giardino degli Aranci, ou o Jardim das Laranjas, e vi o pôr
do sol com uma das vistas mais bonitas da cidade. Ouvia um homem que
tocava guitarra no jardim enquanto olhava pelo miradouro e via cúpulas e
monumentos a espreitarem por cima dos edifícios.

- ‘Tou em Roma! - pensei.

Ouvia Blood Orange, curiosamente. Já sem planos, vi um evento no


facebook que tinha a palavra Jazz e quando vi que era um concerto que
misturava hip hop com jazz decidi ir. Dancei a ouvir ¿Téo? enquanto
esperava pelo elétrico.

- Roma é mais bonita ao amanhecer ou depois das 21h.

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Cheguei ao sítio do evento, chamado Snatch club. Não faço ideia como mas
vim parar ao sítio certo: um bar com uma mini-rampa de skate lá dentro, que
serviu de palco para o artista que ia atuar. Comi dois cachorros quentes e
bebi uma cerveja. Conversei com o barman sobre skate e sobre de onde
vinha. Quando o concerto estava prestes a começar sentei-me na rampa.
O artista era um rapper e baterista de Nova Iorque, acompanhado de um
guitarrista e um baixista. Cantava e puxava pelo público do pequeno espaço
por cima de ritmos cheios de groove que tocava na bateria.
Teve o filho de três anos ao colo ou ao seu lado em pé durante praticamente
todo o concerto e, apesar dele tentar de tudo para receber atenção do pai e
perturbar a sua concentração, o artista tinha uma mão na baqueta e outra no
filho. Tocava sem qualquer esforço e sem se desconcentrar.
A certo ponto, enquanto tocava, o pai deu-lhe uma das baquetas e deixou-o
bater na tarola da bateria. O rapaz tocava descoordenadamente durante uns
segundos e o pai pegou-lhe na mão de novo impedindo que tocasse.
Novamente, quando decidia, o artista libertava a pequena mão e lá
começava ela a bater no tambor num ritmo aleatório. Fiquei boquiaberto e a
sorrir com tudo isto: o pai usava os ritmos descoordenados do filho como
parte da performance, quase fundindo-o com a bateria, criando ordem no
meio do caos.

Mais tarde conheci melhor o Mattia, o bartender que me convidou a ir skatar


no dia seguinte porque o bar estava fechado e podíamos andar na mini
rampa. Fiquei no balcão a conversar com ele até que decidi ir à rua, para a
frente do bar onde pessoas conversavam e fumavam. Queria conhecer
alguém e, como pretexto, pedi a uma rapariga se podia enrolar um cigarro.
Começámos a falar e disse-me que fazia anos. Dei-lhe os parabéns e
conheci a sua prima com quem simpatizei, a Silvia.
Ficámos a conversar e conheci as pessoas do grupo com que estava. Tudo
italianos. Conheci também a Chiara, uma rapariga engraçada que vestia um
casaco longo de cabedal e que bebeu demasiados shots de tequila porque
tinha acabado com o namorado no dia anterior. Elas as duas não se
conheciam mas, os três, criámos uma ligação imediatamente.
Lá dentro, enquanto a Chiara bebia mais um shot, contaram-me que quando
há muito barulho à frente do bar, a vizinha do sexto andar atira ovos. Quando
saímos novamente e tirávamos uma foto à frente do carro da Chiara, senti
uma pancada nas costas, olho para trás imediatamente e vejo um ovo a
partir-se no chão que tinha acabado de roçar em mim. Todos rimos e
apressámo-nos a encostar-nos ao edifício para ninguém levar com ovos na
cabeça.

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Fui-me embora às duas da manhã, exausto mas feliz. A última coisa do dia
foi ver um quiosque florista indiano que estava aberto 24 horas por dia.
Fiquei curioso e fui-lhe perguntar se estava mesmo aberto dia e noite. Como
não me entendeu em inglês nem no meu mau italiano, pus o tradutor a falar
por mim. Riu-se, disse que sim, eu ri-me espantado, e perguntei-lhe se
vende flores a estas horas. Riu-se e disse que sim novamente, dissemos boa
noite um ao outro e fui para casa dormir enquanto ele permanecia aberto
para o caso de alguém querer comprar uma flor às quatro da manhã.

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Dia 4 // 7 de Outubro de 2019

Acordei às 13h e apressei-me a sair de casa porque tinha combinado com o


Mattia ir skatar na mini-rampa do bar da noite passada. Vesti-me e saí de
casa e encontrei-me com a Chiara que também vinha ter connosco.
Enquanto esperávamos pela Silvia fomos a uma loja vintage em que estava
a dar música dos anos 70. Cá fora, num dos cabides que serviam de montra,
lia-se numa placa

UGLY CHICH CLOTHES: 2€

A Silvia chegou e fomos os três procurar sítio para almoçar. Encontrámos um


sítio que pareceu bom e sentámo-nos. Enquanto escolhíamos o prato
refletimos como o Mattia tinha ficado com os nossos números mas não nos
disse nada. Acabou por não nos dizer nada o dia todo - esse facto levou-nos
a ir almoçar os três. Falámos inglês e eu ria do sotaque delas. Os italianos
acentuam sempre as letras todas e, no inglês, pareciam acrescentar à
palavras uma letra final que não estava lá.

- Let’se goe!

Pedi uma pasta Calcio e Pepe e elas comeram straciatella que pensava ser
um sabor de gelado mas é, na verdade, um queijo fresco do sul do país.
Veio para a mesa uma tábua de queijos, mortadela e salame. Comemos,
comemos, comemos. Acho que nunca comi tanto fora como na minha
estadia de seis meses em Itália, sempre a dar a desculpa, a mim próprio, de
que a gastronomia faz parte da cultura para poder gastar dinheiro à vontade.
A cozinha italiana é mesmo das melhores do mundo e dei-lhes os parabéns
por isso como se tivessem algum mérito pelos feitos culinários dos seus
antepassados.
Do nada estou a almoçar comida incrível com duas italianas simpáticas e a
pensar em como estou em viagem e como gosto dessa sensação Estar “em
viagem” é nunca estar parado. Decidi ir para Nápoles no dia seguinte.
Pagámos 13 euros cada um e fomos a pé até à casa da Chiara. Fiz festinhas
aos dois pequenos cães dela e a seguir saímos de carro e fomos até
Trastevere onde bebemos uma cerveja no Bar San Calisto.
A Silvia era uma miúda com cabelo encaracolado, no limiar entre tímida e
extrovertida. Disse-me que era super sensível ao bocejo, bastava alguém
dizer a palavra para a fazer bocejar. A Chiara era um trovão sorridente que
falava alto e com olhos muito grandes, verdes e interessados. Gostei muito
destas duas pessoas e apesar de as conhecer há exatamente 24 horas sinto
que desenvolvemos uma relação especial e verdadeira, embora efémera.

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Despedi-me da Chiara porque ela tinha de ir para uma aula de teatro e fui
com a Silvia passear e ver as luzes de Roma à noite. Não voltei a ver a
Chiara e, ainda que tenhamos combinado encontrar-nos em Bologna, o mais
provável é isto ser só mais um daqueles planos que se vão com a mesma
rapidez que apareceram. E não é que me entristeça nunca mais a ver mas
tenho de me lembrar da efemeridade e impermanência das coisas para não
criar expectativas irreais e frustrar-me mais tarde.
Passeei com a Silvia por um Vaticano noturno e depois fomos buscar uns
fritos típicos da Sicília. Subimos pela Piazza del Popolo até ao miradouro
acima, Terrazza del Pincio. Via-se a cúpula da Basilica di San Pietro do
Vaticano e as ruas de Roma iluminadas. Ouvíamos Willow Smith.

Agradeci-lhe por me estar a mostrar aquilo e pelo momento bonito. Ela


agradeceu de volta. Há qualquer coisa nestas trocas. Muitas vezes quando
ajudamos alguém sabe-nos tão bem como sabe à pessoa que se sente
ajudada. Sabe bem receber mas sabe bem dar. E receber dá vontade de dar.
É um ciclo que todos devíamos cultivar em vez de viver nas nossas bolhas -
esquecer-nos por uns momentos do nosso umbigo.

Continuámos a andar: Piazza Venezia, Torre de Trajano, Coliseu, Fórum de


Trajano. Para voltar para casa acabámos por apanhar o mesmo elétrico. Na
viagem disse várias vezes a palavra “bocejo” e riamo-nos enquanto ela
bocejava de todas as vezes que eu o fazia. Saímos na mesma paragem e
despedimo-nos. Abraçámo-nos.

- If you come to Bologna text me! And if I come back I’ll do it! - disse-lhe.
- It was so nice to meet you!

Abraçámo-nos e vi-a uma última vez ao longe, antes de dobrar uma esquina.
Nunca mais a vi. Andei, cheguei a casa lá para a meia noite e arrumei as
coisas. Despedi-me da Bea porque de manhã ela ia estar a dormir. Agradeci-
lhe muito e fui dormir quatro horas.

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Dia 5 // 8 de Outubro de 2019

Acordei às 5h14 e vi que faltavam 16 minutos para o acordar oficial. Voltei a


deitar-me e às 5h29 desliguei os alarmes. Lavei os dentes, dei um beijinnho
à Bea, peguei na mala de campismo e saí pela porta do prédio para uma
Roma escura. Outra vez, a ir. Napoli.

Cheguei à paragem no exato segundo em que o trem estava a chegar e


entrei. Pessoas a dormir, algumas acordadas, a maioria no limbo.
Gosto desta altura do dia.
Cheguei à estação. Fiz festinhas a um cão lindo e pedi ajuda ao dono para
encontrar a plataforma. É ridícula a quantidade de cães a que já fiz festinhas
neste país. O nível é muito superior ao de Portugal: os cães são bellissimi!

- Como se chiama?
- (…)
- È bellissimo!

Faço sempre dois segundos de conversa para quebrar o gelo e poder fazer
festas ao cão sem pressão do dono. Comi um croissant e entrei no comboio
direto para Nápoles. Durante a maior parte do tempo dormi, ou tentei dormir,
no banco a ocupar dois lugares horizontalmente.

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Saí do comboio e pus os pés em Nápoles.
Nápoles é o caos.
Confusão, sujidade e motas, carros, fumo, buzinas, pessoas num trânsito
psicótico. Mas estranhamente é um caos que me agrada. Sinto que ninguém
quer saber de nenhuma regra, especialmente de trânsito.
Fui a pé com a mala pesada até um hostel que encontrei na net. Deixei lá a
mala e só faria o check in à tarde. Saí só com a máquina fotográfica e andei
sozinho pelas ruas napolitanas.
Vi prédios degradados habitados, lixo espalhado pelos passeios, varandas
com itens aleatórios. As ruas inundavam informação e há sempre algo para
onde olhar num ambiente clandestino. Parei numas barracas que formavam
uma feira de rua por onde as motas passavam nos mesmos espaços
apertados que as pessoas. Noutra cidade nem uma bicicleta passaria por ali
sem ser à mão, em Nápoles passa uma mulher com os dois filhos na mesma
mota, sem capacetes, e ninguém quer saber. Vi pessoas ao telemóvel nos
bancos de trás das motas sem se agarrarem ao condutor e a andar rápido.
Andei muito e os pés doem-me mas esse é um sinal de que o dia rendeu.
Ouvi beats do J Dilla.
Ao levantar dinheiro perguntei a uma rapariga no meu italiano ranhoso

- Scusa, sai un buono posto per mangiare?


- Hm… Sorbillo.

Pesquisei na internet bons sítios para comer em Nápoles e esse era o


primeiro. Ok. Esperei 25 minutos até que chamarem o meu nome, enquanto
bebia uma cerveja e falava com uma senhora italiana que me dava
sugestões de sítios para ir. Entrei e comi uma margherita muito boa. Aqui, no
berço da pizza, as crostas são altas e arredondadas e a massa é fina no
centro pesado - é preciso agarrar a fatia ou dobrá-la para que os ingredientes
não caiam noutro sítio sem ser a boca.
Uma argentina sentou-se à minha frente. Era médica e tinha 31 anos. Disse-
me que estava no hostel chamado Neapolitan Trips. Vi as imagens na
internet e pareceu muito melhor que o outro então, a seguir ao almoço
caminhei 40 minutos até ao ex-hostel, peguei na mochila com a desculpa de
que afinal ia ficar numa casa de um amigo e caminhei quase uma hora até
ao hostel com um peso gigante às costas. Fiquei exausto e depois do check
in dormi 1h30.

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Saí, bebi um café e passeei. Passei em piazzas e ruelas sombrias no centro
histórico da cidade e procurei um restaurante numa lista gigante na internet.
Escolhi um pelo nome diferente que me chamou à atenção.
Cheguei ao Tandem mas estava cheio e a empregada levou-me e a outros
ao outro estabelecimento deles que ficava a seis minutos a pé dali. Entrei,
sentei-me e pedi uma pasta ragu.
Inesperadamente a música que estava a dar acabou e começou a tocar uma
versão acústica da Love is a Laserquest dos Arctic Monkeys. O meu rosto
iluminou-se, sorri e olhei em volta para ver se alguém tinha tido a mesma
reação. Qual era a probabilidade de eu escolher aquele restaurante, de entre
tantos outros, de estar cheio e acabar por ser levado a outro sítio e aí dar
uma versão alternativa de uma música da minha banda favorita que nunca
ouvi a dar em nenhum sítio público?
Senti que estava a acontecer para mim, então cantei baixinho na minha
mesa de uma pessoa. Será que sim? Será que a coincidência é romântica
como a imaginei ou não passa disso mesmo, uma coincidência? Esta
pergunta passa-me pela cabeça muitas vezes mas, como não é possível ter
uma resposta, prefiro sorrir e cantar baixinho.
A comida chegou e devorei tudo com parmigiano por cima. Paguei e saí.
Passeei e bebi uma cerveja numa piazza. Pensei em conhecer pessoas a
meter conversa mas decidi ir para o hostel e dormir.

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Dia 6 // 9 de Outubro de 2019

Esta coisa de ficar em hostels obriga a que, por vezes, me calhe um gajo que
ressona na cama de beliche por baixo da minha. A meio da noite irritei-me
mas superei.
De manhã vagueei pelas ruas do Quartiere Spagnoli. Mil varandas, motas a
ziguezaguear por entre as ruas ortogonais a subir e a descer, naquele que
senti ser o bairro mais típico e cru de Nápoles. As portas e janelas das casas
do rés-do-chão dos prédios degradados estavam abertas para a rua e,
através delas, vi mulheres a fazer limpezas, televisões ligadas, vi velhos
sentados à porta e crianças a brincar na rua. Havia, ali, uma certa calma. Os
prédios, altos, tornavam as ruas acolhedoras e, longe das estradas principais
e do trânsito caótico, o silêncio ouvia-se mais alto.
Enquanto me preparava para tirar uma foto um jato vindo de um balde de
água caiu do céu. À medida que passeava via, entre os prédios, um castelo
longíquo no topo da colina por que o bairro subia: o Castel de Sant’Elmo.
Decidi ir.

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Um balde de água no momento do disparo.

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Subi a colina ao sol por ruas e escadas inclinadas. A certo ponto olhei para
trás e vi Nápoles lá em baixo à beira mar e, mais à frente, uma pequena
grande massa de terra que emergia do horizonte. Continuei a subir e entrei
no castelo. Uma vista panorâmica permitia observar não só a ilha de Capri e
outras próximas bem como o Vesúvio. O céu limpo e eu também. Por vezes
vinham-me à cabeça pensamentos, nada em concreto, que me impediam de
estar totalmente presente. Pensamentos sobre estar a pensar em vez de
fluir. Mais tarde, sem esforço racional, desapareceram. Inspirei, absorvi a
paisagem e pus-me a descer tudo de novo.
Fui até à zona mais moderna da cidade, a zona mais restaurada, ao contrário
de partes em que reinavam os prédios cinzentos meio degradados, já sem
tinta. Entrei num pequeno restaurante apertado em que só havia duas
opções no menu que o empregado me deu a conhecer via oral.

- Margherita o marinara?

Margherita. O sol no vidro da porta criava um árco-íris que se estendia na


mesa em que eu me sentei e, quando a pizza chegou, fico com luzes
coloridas no meio. Tão boa, cinco euros. Saí e andei.
Passei pela ampla piazza dei Plebiscito e continuei pelo porto de Santa
Lucia. Finalmente tinha o mar mesmo à minha frente. Olhei para as pedras
em que o mar batia ao de leve e vi várias pessoas deitadas a apanhar sol,
outras na água de um azul esverdeado a nadar.
Cinco minutos de hesitação e decidi ir. Não tinha toalha nem calções de
banho mas como estava calor e vi homens mais velhos a usar tangas achei
que ninguém ia notar se eu ficasse só de boxers.
Desci para as pedras, tirei a roupa e aproximei-me da água. A altura de água
só começava a um metro da última rocha que estava à superfície. Certifiquei-
me que os meus pés estavam assentes numa rocha estável e, num salto,
mergulhei para a água mediterrânea.
Um refresco acompanhado por uma vista direta para o Vesúvio lá ao longe
fez-me rir em voz alta na água ao pensar que estava num cenário de filme
naquele momento.
Sozinho.

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Várias vezes nesta viagem me veio à cabeça o facto de estar sozinho,
sempre acompanhado de umas cócegas na barriga. Viajar sozinho é
diferente. Estou constantemente só comigo mas tenho também muitas
interações passageiras com pessoas que provavelmente nunca mais vou ver
na vida, e isso é libertador. Há uma liberdade muito forte em viajar sozinho.
Sinto que me ouço melhor, estou mais consciente do meu diálogo interior, e
aproximo-me a algo mais profundo em mim. Mas, apesar de sozinho, nunca
me sinto só num sentido pejorativo.

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Mergulhei, nadei, boiei, apanhei sol, meditei e mergulhei de novo. Sequei ao
sol deitado numa das rochas.
Vesti-me de novo e caminhei até ao Castel dell’Ovo com a pele molhada a
humedecer o tecido, onde olhei para o mar outra vez.
Comi chocolates num sítio conhecido chamado Gay-Odin. As empregadas
disseram-me para ir ao Duomo e lá fui eu ao sabor da brisa de um final de
tarde em Nápoles.

Depois fui até à Trattoria de Nenella, um restaurante barulhento e confuso,


mas muito típico, no Quartieri Spagnoli. Conheci um casal italiano que me
aconselhou no que comer. A mulher perguntou-me se gostava de bacalhau e,
sem me consultar ou me informar sobre os pratos, tomou a liberdade de
pedir por mim ao empregado. Muito simpáticos, sempre a tentar comunicar
mesmo que não falássemos a mesma língua. Comi pela primeira vez à
italiana: primeiro umas azeitonas e pão; uma antipasti, a entrada; primo
piatto, o primeiro prato; secondo piatto, o segundo prato. Entre os pratos
havia pasta, bacalhau, queijo e outras coisas típicas italianas. Tanta comida
que não fui capaz de acabar mas, para eles, aquela quantidade numa
refeição é o pão nosso de cada dia.

Saí e, ao lado do restaurante, vi algo que já tinha visto durante o dia naquele
bairro: uma senhora idosa que estava numa varanda a deixar cair um balde,
pendurado por uma corda que ia largando aos poucos até o balde descer ao
nível da rua. O dono da Trattoria da Nenella aproximou-se do balde, tirou um
saco de lixo lá de dentro e foi pô-lo no contentor. O balde voltou a subir.
Fiquei curioso e fui falar com ele. Disse-me que esta senhora era a big boss
(ou melhor, bige bosse), a dona do restaurante: a Nenella, que era a mãe
dele. Sorri.

Na mesma rua, uns passos ao lado da trattoria, havia uma concentração de


pessoas à frente de dois bares de Spritz e aí percebi: o Quartieri Spagnoli é
o Bairro Alto de Nápoles! Decidi ir para o meio das pessoas e pedir um copo
daquela bebida cor de laranja, tipicamente italiana, sem pensar na pressão
social que sentia por estar sozinho. Sabia que tinha de sair da zona de
conforto. Passados minutos estava a conhecer pessoas. Comecei por meter
conversa com um rapaz por causa de qualquer coisa que aconteceu e
ambos vimos mas já não sei o que fora. Sei, sim, que muitas vezes basta um
olhar ou comentar um acontecimento com um estranho para que uma
conversa floresça do nada, mesmo que a língua não ajude.

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A seguir a meter conversa com ele, as interações seguiram-se todas
espontâneamente com várias pessoas que estavam por perto e iam
aparecendo e desaparecendo. Toda a gente estava bêbada e eu poupava-
me para ir a Pompeia no dia seguinte. Lá bebi três Spritz e depois comecei
na água. Ainda improvisei com dois italianos, ali no meio da confusão, e à
uma da manhã fui para o hostel dormir, sem me preocupar muito com o urso
debaixo da minha cama.

Dia 7 // 10 de Outubro de 2019

Ao início, quando cheguei a Nápoles achei que tinha de ser cauteloso a


atravessar as estradas por causa da loucura da condução napolitana. Mas
passadas umas horas percebi que a regra que tantas vezes digo meio a
brincar em Portugal “O truque é não parar!” aqui é, de facto, a realidade sem
eufemismos. Os peões devem andar para a frente e atravessar a estrada
(com passadeira ou não, não interessa) e, à medida que atravessam, os
carros e motas ou abrandam ou contornam-nos. Diria até que é seguro, aqui,
atravessar sem olhar por os condutores estarem tão habituados a este tipo
de trânsito surreal, algo impensável noutros países.
Hoje, um homem de mota fez uma expressão de desilusão quando abrandou
ligeiramente para eu passar e eu não me atravessei à frente dele para lhe
dar prioridade.

De manhã apanhei um comboio vazio, com vista para o mar, para Pompeia e
cheguei lá às 13h. Fui num shuttle para o centro arqueológico da antiga
cidade romana e passei lá as três horas seguintes.
Foi mesmo interessante ver as ruínas tão bem preservadas e, ao vaguear
por lá, conseguia fazer desaparecer os turistas que estavam à minha volta e
substituí-los, na minha imaginação, por romanos de 79 A.C. a fazerem a sua
vida normal. A irem aos banhos relaxar, a ir comer fora, a ir às prostitutas e a
prestar homenagem aos deuses deles. O dia estava limpo e o Vesúvio
espreitava, quase como que a sunsurrar um aviso da sua imprevisibilidade.
Numa das ruínas estavam expostos ossos humanos e algumas caveiras.
Uma delas parecia olhar diretamente para mim e veio-me um pensamento à
cabeça: no fundo eu sou só isto. Um saco de ossos, com músculos, que
daqui a alguns anos vai desaparecer. E, neste entendimento, todos os
conceitos que a cultura me plantou na cabeça, a pressão social e cultural
que por vezes me restringem, significam zero. Mas passados 10 minutos já
me tinha esquecido disto.

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Não consegui ir ao vulcão por já ser tarde e voltei para Nápoles, em pé no
comboio cheio.

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Decidi ir para Palermo, na Sicília. Em Bologna tinha conhecido uma rapariga
de Verona, a Gaia que fez Erasmus no Porto, que me tinha dito que era
lindo. Durante a viagem já tinha pensado sobre se era boa ideia ir ou não
porque dia 14 começavam as minhas aulas mas, quando pensei que não
fazia ideia quando iria voltar a ter a oportunidade de lá ir, a decisão tornou-se
óbvia. Decidi alongar a viagem mais uns dias.

Havia um barco que partia de Nápoles às 20h15 e chegava a Palermo no dia


seguinte de manhã, mas estava a ficar tarde. Despachei-me no hostel,
arrumei tudo e fiz o check out e fui a correr com a mala pesada às costas até
ao porto, que ainda ficava a 25 minutos a pé. Com receio de perder o barco e
ter de esperar pelo dia seguinte, consegui comprar o bilhete e entrei no
pequeno cruzeiro pelo grande compartimento onde carros e camiões de
mercadorias estavam estacionados. Subi de andar numas escadas rolantes
e cheguei ao piso dos dormitórios. Apesar de haver a opção de quartos, tinha
comprado só um lugar numa cadeira e pensei que conseguiria arranjar um
sítio clandestino mais confortável para dormir. Pousei a minha mala na sala
das poltronas em que tinha comprado o meu lugar.

Saí da sala para ir explorar o navio e vi um homem, ao telemóvel, a chorar.


Não vertia lágrimas da cara em silêncio, chorava e soluçava. Assim que
desligou fui ter com ele e, no meu italiano, perguntei-lhe o que se passara ao
que me respondeu, com o olhar baixo, que recebeu uma má notícia.
Insisti para que desabafasse comigo.

- Mia muglie è morta. (A minha mulher está morta.)

Disse que estava a telefonar para informar os familiares. Fiquei sem


expressão e ligeiramente boquiaberto. Aproximei-me e dele e dei-lhe um
abraço. Aquele abraço durou pelo menos cinco segundos. Horrível, a
situação. Tudo o que pude fazer foi abraçar este estranho que, no fundo, é
mais um de nós. Sorriu-me levemente e acredito que durante um ou dois
segundos se tenha esquecido daquele inferno na terra por que está a passar,
ou que pelo menos tenha atenuado levemente a dor que não imagino. Disse-
lhe onde era o meu lugar, caso quisesse falar mais, mas não o voltei a ver.
Fiquei a pensar muito nisso na hora que se seguiu. Pensei em como ele era
um completo desconhecido para mim mas, face à situação, nos abraçámos
como se já nos tivessemos conhecido. Houve ali qualquer coisa subtil que
me fez sentir que estamos todos ligados.

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Saí por uma das portas para o convés e vi o barco a afastar-se das luzes de
Nápoles em direção ao escuro do mar. Jantei no restaurante e paguei 70
cêntimos por um pacote de maionese, sem me ter apercebido. Na fila do
restaurante conversei casualmente com um alemão que esperava pelo jantar
com a sua mulher e dois filhos. Disse-lhe de onde era, o que estava a fazer
ali e contei-lhe o que se tinha passado, porque sentia que precisava de
contar aquilo a alguém. Jantei sozinho numa mesa um hambúrguer seco
demasiado caro com batatas fritas.

A seguir ao jantar fui passear pelo barco. Era grande e estava


maioritariamente vazio. Tinha três andares, um cinema, um bar grande com
bancos e sofás, um pequeno casino, um restaurante estilo buffet e outro de
luxo, salas com poltronas e longos corredores com quartos que não
acabavam. Senti-me bem naquele barco. Um pouco como a sensação que
tive no comboio a ir para Barcelona: não há pressa, não há nada para fazer.
Perdi-me pelos vários andares até que fui ao mais alto e saí por uma porta.
Fui dar ao canil. Sem saber se podia andar por ali ou não, aproximei-me
devagar da porta e espreitei lá para dentro. Dois olhos dentro de uma jaula
quadrada olhavam para mim através das grades. O único cão naquele canil
estava ali sozinho. Fiz-lhe uma festa e voltei para baixo. Tinha reparado na
placa a dizer

CINEMA

e fui lá com intenções de ver o filme italiano que estava em mostra. O


empregado, que estava numa cabine à entrada onde se compravam os
bilhetes, olhava para o telemóvel sem reparar em mim e esgueirei-me por
entre a cortina que dava entrada na sala de cinema.
Estava vazia e o projetor mostrava um menu de DVD à espera de receber
ordens. Saí da sala discretamente e dirigi-me à bilheteira para perguntar
quanto era. Cinco euros, mas o cinema era o único sítio no barco onde não
se podia pagar com cartão, disse-me o homem. Eu não tinha dinheiro físico.
Perguntei se podia pagar noutro sítio ao que me respondeu que tinha de ser
ali e eu ri-me por ser a única pessoa no barco que queria ver o filme e dar
uso ao cinema mas não podia fazê-lo. Um italiano nos seus 30 e poucos
aproximou-se despreocupado e ouviu a conversa. Conversei com ele sobre o
filme, pensámos se valia a pena e, passado dois minutos, pagou-me o
bilhete e entrámos os dois no cinema. Agradeci-lhe e disse que lhe pagava
uma cerveja a seguir.

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O filme era um thriller em italiano, sem legendas. Foi bom para passar o
tempo embora os espaços entre as filas de cadeiras fossem tão apertados
que batia com os joelhos na cadeira da frente e, de 10 em 10 minutos, tinha
de procurar uma nova posição para as pernas para estar confortável.
Saímos da sala de cinema e convidei-o para ir até ao bar mas ele disse que
ia ler um pouco e dormir. Agradeci-lhe novamente.

- Grazie!

Fui procurar um sítio no barco para dormir. Na sala escura das poltronas
havia várias filas de cadeiras completamente vazias. Havia apenas três ou
quatro homens velhos na primeira fila já a dormir. Duas televisões estavam
ligadas e iluminavam as caras enrugadas adormecidas.
Ponderei dormir ali deitado horizontalmente a ocupar dois ou três lugares
mas as divisórias entre eles eram fixas pelo que desisti da ideia. Fui à minha
mala mudar de roupa para uma sweatshirt e calções confortáveis e saí da
sala. Passei no bar e vi pessoas deitadas ao comprido nos longos sofás do
espaço amplo, também maioritariamente vazio mas fortemente iluminado.
Perguntei ao empregado se podia dormir ali e ele assentiu com a cabeça
mas informou-me que as luzes ficariam acesas toda a noite e as várias
televisões ligadas a passar notícias pela noite fora, a que ninguém prestava
atenção. Escolhi o conforto em detrimento do barulho e estiquei-me num dos
sofás. Observei as pessoas que dormiam por uns momentos. Umas
encolhidas, outras esticadas, tapadas com cobertores ou vestidas com roupa
normal. Olhei para o lado e vi um casal a dormir profundamente, pensando
como nunca tinha visto estranhos a dormir tão detalhadamente. Passado um
bocado adormeci.

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Dia 8 // 11 de Outubro de 2019

Acordei às seis da manhã com um som estridente vindo das colunas que
gritavam para todo o barco.

- Buon giorno Signore i Signori.

O navio estava a chegar ao porto de Palermo e ia atracar às sete da manhã,


mais cedo do que eu esperava.
Levantei-me, lavei os dentes na casa de banho das senhoras e fui ao convés
ver a costa aproximar-se.
A luz do sol recém-nascido escondido atrás das nuvens criava uma
atmosfera de um roxo-alaranjado no céu. Quando atracámos na Sicília, pus a
mala às costas e saí do barco.
Ri-me sozinho por estar num sítio sobre o qual nada sabia e, naquele
momento, não sabia para onde ir.
Comi um croissant com nutella e bebi um café para aliviar as poucas seis
horas de sono. Procurei um hostel. Vi um a 15 euros por noite chamado Via
Zara e fui a pé.
Cheguei à porta do prédio e toquei na campainha do andar do hostel.
Abriram-me a porta e subi. Conheci o Mario: siciliano, com barriga saliente,
com quem falei italiano e me transmitiu grande à vontade. O hostel parecia
uma casa normal: tinha vários quartos, espalhados pela planta do piso, casa
de banho e uma cozinha grande que servia também de sala, com o fogão,
lavatório, armários, frigorífico numa parede, uma mesa de jantar no meio,
uma televisão e vários sofás verdes. Ofereceu-me comida do pequeno
almoço embora ainda não tivesse feito o check in e foi muito prestável.
Mostrou-me o quarto para três pessoas onde eu ia ocupar uma cama. Tinha
um beliche e uma cama individual, que escolhi. Saí e fui a uma lavandaria
porque, a este ponto, a minha roupa estava nojenta. Paguei dez euros,
deixei-a a lavar e fui passear com a câmera.

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Ao contrário de Nápoles ou Roma, a cidade tem uma planta muito mais
ortogonal e as ruas são muito longas e sempre em linha reta. Partilhava um
pouco da degradação e sujidade com Nápoles, embora completamente
diferente. Entrei no centro histórico de Palermo. Ao vaguear vi placas com os
nomes das travessas e ruelas em árabe por baixo dos nomes em italiano.
Descobri que a Sicília estreve sob ocupação árabe desde 800 a 1100 e, por
isso, a ilha reteve muita influência de que beneficiou. Os árabes trouxeram
os frutos, citrinos, cana de açúcar, apelidos e arquitetura para a ilha que Itália
chuta.

Quando viajo sozinho tenho dois modos principais: a ouvir música ou sem
ouvir música. Há alturas em que complementam a viagem como uma
soundtrack na minha cabeça e há outras em que gosto de estar presente
sem distrações. Neste momento estava em modo ouvir música e disco soava
bem nos meus phones.

Entrei em igrejas lindas e, numa em particular, apreciei os ornamentos


esculpidos e pintados nas paredes e teto, provavelmente do período barroco.
Passeei, vi estátuas e voltei à lavandaria. Arrumei a roupa e voltei ao hostel
para deixar a mala. Na cozinha de estar do Via Zara ouvi um sotaque
americano e reparei numa mulher com traços asiáticos na casa dos
quarenta, mas cheia de energia e pele impecável.
Meti conversa: Lisa, do Canadá, fisioterapeuta na sua quinta semana de
viagem. Muito simpática, conversámos e convidou-me logo para me juntar a
ela e a uma rapariga paquistanesa, que entretanto conheci, numa caminhada
ao topo do Monte Pellegrino, uma pequena grande montanha ao lado do
porto. Hesitei. Mas, quando em dúvida, dizer que sim. Aceitei e pusemo-nos
a andar.

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Parámos para comprar fruta e água e, dali a pouco, iniciávamos a subida ao
monte que se avista ao chegar a Palermo de barco. A canadiana, que nunca
me disse a idade embora eu insistisse, caminhava depressa sem parar. Eu
acompanhava o passo rápido da Lisa sem grande esforço, mas a
paquistanesa ia ficando para trás e comecei a sentir-me mal quando esta nos
chamava, ao longe, a pedir para esperarmos.

Esta situação pareceu-me uma peça de teatro. Os dois extremos opostos


testavam-me para me fazer decidir se seguia o que queria, que era continuar
ao ritmo mais rápido, ou se ficava para trás para fazer companhia à outra
pessoa que, mais lenta, nos chamava constantemente e inventava desculpas
para pararmos. Chegou mesmo a irritar-me porque a palestiniana estava a
ser egoísta, mas só percebi isso uns passos mais à frente.
A Lisa, decidida, nem olhava para trás. De vez em quando gritava-lhe.

- Come on! You can do it!

Dizia-me que ela tinha água pelo que não ia morrer, e que não ia deixar de
subir aquela montanha como desejava porque alguém a tentava puxar para
baixo. De qualquer forma, encontrava-nos quando chegásse lá acima.

- Never let somone hold you back.

Nunca deixes que ninguém te impeça de fazer o que sentes que queres,
disse-me a mulher atlética que continuava no seu ritmo impressionante para
uma pessoa de, imagino eu, 40 anos.
Conversámos sobre como a outra tinha um ritmo mais lento e, em vez de
deixar o seu egoísmo tomar conta dela e nos tentar persuadir a ficar para
trás, devia ter tido o bom senso de nos dizer para continuarmos. Admirei a
atitude firme da Lisa e, quando percebi isto, deixei de me sentir dividido entre
os dois lados e continuei a andar como me apetecia. É preciso estar atento,
pensei, porque isto vai acontecer-me mais vezes na vida. Pessoas, e até
mesmo amigos que, sem se aperceberem, vão pedir-me para esperar por
eles e tentar impedir-me de continuar a subida ao meu ritmo. Devemos estar
disponíveis para ajudar os outros mas devemos estar sempre atentos ao que
sentimos. De outra forma vamos estar a vida toda à espera dos outros e a
sentirmo-nos frustrados com isso, ao privarmo-nos de agir livremente por não
querermos tomar a decisão, muitas vezes desconfortável, de os largar.
Quando estiver nessas situações espero lembrar-me deste dia em Palermo e
tomar a decisão mais acertada.

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Pareceu que a vida pôs a Lisa ali à minha frente para eu aprender isto.
Disse-me que o tempo é o bem mais precioso que temos. Como é
fisioterapeuta está constantemente a ver pessoas doentes ou paralisadas
até, e isso relembra-a do quão sortuda é por se conseguir mexer e subir uma
montanha.

- It’s never a waste of time if you’re happy and you chose to do it.

Chegámos ao topo e continuámos a descer pelo outro lado, por uma estrada
fechada que já não era usada, em direção a Mondello, uma das praias mais
conhecidas de Palermo. Na descida a paquistanesa acompanhou-nos.
A certo ponto a vegetação ao lado da estrada abriu-se e vi uma vista
fenomenal da praia, lá em baixo. Água azul clara, casas, árvores e uma
montanha muito verde.

- It’s worth the hike, right?


- Totally. - respondi-lhe todo suado.

Descemos uma estrada aos ziguezagues durante 45 minutos e, com os pés


em papa, chegámos à praia.
Pousámos as coisas e, passados uns minutos, elas as duas foram apanhar o
autocarro para voltarem para o centro da cidade. Honestamente, soube-me
bem ficar sozinho outra vez.

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Despi-me e fui de boxers em direção à água. A praia estava praticamente
vazia e a água tinha pouca altura. Andei alguns metros até haver
profundidade e mergulhei: temperatura perfeita, dei umas braçadas e ri-me
sozinho outra vez.

Pensei em como viajar é das melhores sensações e em como é assim que


quero viver: a experienciar constantemente a ausência de limites. Olhei para
a paisagem.

Nadei com a cabeça debaixo de água e passado um bom bocado levei as


minhas coisas para o passadiço de madeira que contornava a praia. Como
tinha os boxers molhados tive de os tirar e vesti o resto da roupa. Por dois
segundos fiquei nu em público mas ninguém viu.

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Apanhei o autocarro na paragem e duas raparigas bonitas conversavam
numa língua que não me era estranha. Meti conversa. Alemãs, bem
dispostas.
O autocarro, a abarrotar, apareceu e apanhámo-lo juntos. Falámos, em pé,
durante uma viagem atribulada cheia de abanões e pessoas a entrar e a sair.
A meio da viagem elas repararam que uma rapariga que conheciam estava
sentada num dos bancos de trás. Cumprimentaram-na e eu, mais afastado,
disse olá. Quando saímos do autocarro, no centro da cidade,
cumprimentámo-nos como deve ser. Pauline, francesa de cabelos longos e
encaracolados, estava em Palermo para fazer o seu segundo Erasmus.
Disse-nos que nesse dia à noite toda a gente ia sair à Piazza Sant’Anna e
convidou-nos para ir com ela. Achei boa ideia apesar de não fazer ideia onde
ou o que era. Trocámos contactos, despedimo-nos e segui caminho sozinho
até ao hostel.

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Passados 15 minutos cheguei à Via Zara e subi as escadas. No momento
em que entro no hostel, olho para a frente e vejo uma cara vagamente
familiar a agarrar uma toalha de banho e uma bolsa de higiéne.
A rapariga francesa de há 15 minutos. Pauline. Boquiaberto.

Ficámos um minuto a rir de espanto pela coincidência. Qual era a


probabilidade? Eu podia ter decidido sair da praia dez minutos mais tarde.
Aquelas raparigas podiam não ter apanhado aquele autocarro. Ou até
podiam, mas eu podia não ter escolhido meter conversa com elas.
Senti que a vida queria que eu a conhecesse. Como uma educadora de
infância que tem a certeza que duas crianças se vão dar bem e as empurra
uma para a outra e diz:

- Vá, brinquem.

Depois de pararmos de rir disse-me que estava a ficar no hostel até arranjar
um apartamento porque tinha chegado há uns dias. Ela foi tomar banho e eu
fui para o meu quarto a pensar sobre isto.
Tomei banho e fui para a sala de estar escrever. Conheci o Bino, um homem
italiano, careca e sorridente, nos seus 50s. Contou-me que viveu no México
tempo suficiente para saber falar uma mistura de italiano e espalhol. Conheci
também o Lino, um italiano igualmente simpático mas uns dez anos mais
novo que o outro.
Estavam no hostel sem saber quando iam sair. Pode parecer estranho, mas
este hostel parecia realmente uma casa, tanto na organização e aparência
das divisões como no ambiente que se fazia sentir. Mario, o dono, acolhia os
hóspedes todos com admirável hospitalidade e fazia todos sentirem-se em
casa e como que parte de uma família temporária.
O preço por noite era igual ou mais barato do que um quarto num
apartamento, pelo que percebo o facto de nem eles nem a Pauline se
preocuparem muito em procurar outro sítio para viver.
O Bino cozinhava uma pasta e perguntou-me se queria. Esfomeado, disse
que sim e agradeci, e ele cozinhou para nós os dois uma pasta vesuviana,
como lhe chamou, com alcaparras, tomate e azeitonas. Tinha um sabor
incrível: todos os italianos são autênticos chefs e levam a cozinha a sério.
Comemos e conversámos.
Tocam à campainha.
Como ninguém do staff estava no hostel naquele momento, fui abrir a porta.
E foi aí que vi o Mike pela primeira vez.

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O Mike era de Liverpool, tinha 30 anos mas tanto passava por 30 como por
16. Enquanto falávamos pareceu-me uma pessoa tímida mas na altura eu
não compreendi a magnitude da sua personalidade.
Acabei de comer e, a seguir, jantei uma segunda vez, porque o Bino
cozinhou de novo para ele, para uma vietnamita sorridente chamada Suan e
para Pauline, que entretanto tinha chegado à cozinha. Perguntou-me se
também queria e, a sorrir, disse que sim.
Uma garrafa de vinho e boa conversa em italiano. A Pauline falava italiano
razoável com uma pronúncia engraçada e eu ia acompanhando. Senti-me
imediatamente à vontade com ela e riamo-nos muito os dois. As palavras do
Bino saiam-lhe da boca arrastadas e não eram de fácil compreensão, mas
depois lá percebia o que ele queria dizer e respondia. Nunca o vi sem estar a
sorrir. A Suan também sorria mas acho que era por não perceber quase
nada.

Mais tarde combinei encontrar-me com a Pauline na Piazza Sant’Anna. Ela


saiu primeiro. Passado um bocado saí também e fui em direção à praça que
era muito perto do hostel. Andei dois minutos e vi um mar de gente num
espaço amplo entre ruas, com uma igreja a uma ponta e bares na outra.
Passei o olhar por muita gente até que vi a minha amiga francesa por entre
corpos e cabeças de estranhos.
Mas perdi-a imediatamente porque fui a um bar buscar uma cerveja e estava
a dar música tão boa lá dentro que fiquei ali sozinho a cantar Arctic Monkeys,
No Diggity, Chet Faker.
Falei com pessoas aleatórias e com uma miúda linda chamada Margherita.
Fui ao encontro das alemãs que tinha conhecido que me pediram ajuda:
tinham dois rapazes que não as deixavam em paz. O flirt dos italianos é um
dos mais agressivos dos países europeus, envolvendo muito o toque, e elas
não se sentiam confortáveis.
Cheguei ao pé deles, cumprimentei-as e cumprimentei os dois rapazes.
Perguntei aos dois, subtilmente, se não queriam ir conhecer miúdas por aí
comigo. Disseram que as queriam a elas.

- Oh, but they have boyfriends.


- Really?
- Yeah, I know them.

Disseram qualquer coisa em italiano um ao outro e foram-se embora


imediatamente depois da minha mentira.
Fomos os três beber uma cerveja ao hostel delas, na varanda. Acabei por
perceber que não eram assim tão interessantes e voltámos para a Piazza.

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É incrível a quantidade de rapazes que vêem como cães ao encontro de
raparigas giras. Dou por mim e estou com elas as duas mais quatro gajos
com intenções óbvias.
Aborrecido pela conversa inventei uma desculpa e bazei sozinho para outra
zona da noite de Palermo chamada La Vucceria. Depois de as ter salvo
deixei-as outra vez em território inimigo, mas não eram da minha
responsabilidade e a noite tem demasiadas possibilidades para me
preocupar com isso.
Passado um bocado elas ligaram-me e pediram-me a localização. Não devia
ter enviado. Vieram ter comigo novamente e não me diverti assim tanto na
sua companhia. Acabei por chegar a casa quase às cinco da manhã.
Pensava em como tinha perdido a Pauline e me teria divertido mais se
tivesse ficado com ela.

Quando entrei no hostel ouvi alguém a chorar na cozinha. Fechei a porta, dei
alguns passos e vi uma pessoa de costas que segurava um cigarro e uma
garrafa de vinho. Era ela. Aproximei-me e, embora mal nos conhecessemos,
abracei-a com força durante bastante tempo. Não sabia o que se passava
mas sabia que ela precisava de um abraço. Levei-a até à varanda do hostel
para conversarmos. Contou-me entre lágrimas patrocinadas por vinho que
tinha estado cá em Palermo um ano atrás e tinha-se apaixonado por um
homem com quem acabou por namorar, mas que tudo se desmoronou por
causa de inseguranças dela e imaturidade dele.
O que interessa aqui não são os pormenores, isso são coisas dela, mas
como conectámos tão rápido e a tentei fazer sentir-se melhor enquanto ouvia
o que ela me dizia e tentava ajudar com a minha perspetiva de amigo.
Parece tudo tão improvável que se torna difícil acreditar no caos. Cheguei no
exato momento em que ela tinha começado a chorar sozinha. Parecia, mais
uma vez, o educador de infância a fazer-nos conectar mais profundamente.
Nos dias seguintes senti o início de uma amizade pura, apesar de estar
sempre a gozar com facto de ser francesa e, ao mesmo tempo, me derreter
todo quando ela falava a língua.

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Dia 9 // 12 de Outubro de 2019

Sábado. Acordei ao meio dia.


Um amigo que fiz em Bologna umas duas semanas atrás, um alemão
chamado Ferdinand, chegava hoje a Palermo para se juntar a mim nos
últimos dias de viagem. Inicialmente estava muito focado na ideia de querer
fazer a viagem sozinho, mas a certo ponto percebi que é bom ser flexível e
experimentar outras coisas. Fiquei contente por ele vir e podermos partilhar a
experiência juntos.
O Ferdinand é um pouco mais alto do que eu, tem barba densa, voz
notavelmente grossa e usa constantemente os seus óculos de sol
graduados, mesmo em interiores, porque se esquece sempre dos óculos
normais. O seu riso é contagiante e parece sair da boca de um desenho
animado, contrastando com a sua voz normal. Assim que acordei mandei-lhe
mensagem e, com 17 horas de autocarro às costas, o meu amigo com um
riso engraçado tinha acabado de chegar à rua do hostel.
Abri-lhe a porta do hostel e demos um abraço. Instalou-se no meu, agora
nosso, quarto e saímos para comer.

Andámos pela Via Roma e acabámos na Vucceria numa boa trattoria.


Anchovas e pastas. A área era suja e cães de rua passavam por nós.
Pessoas fumavam nas varandas, famílias falavam entre andares e miúdos
conduziam motas sem capacete entre as ruelas. Um deles, de 13 anos,
pousou confiante para a minha câmera em cima da sua mota.
Queríamos ir à praia então comprámos fruta a um senhor velhote corcunda e
fomos a pé até à paragem de autocarros no Teatro Massimo. Esperámos
quase 45 minutos até que aparecesse um autobus, sentados num degrau a
ouvir música e a mostrar artistas um ao outro, do país de cada um.

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Rimos quando dois rapazes que não se conheciam, que ouviam música aos
altos berros na coluna bluetooth de cada um, entraram no mesmo autocarro.
Chega o nosso bus, entrámos e 20 minutos depois estávamos na praia em
que tinha estado no dia anterior. Céu nublado mas bom ambiente. Um
homem indiano que passou por nós vendia lenços e toalhas de praia.
Perguntei-lhe se tinha calções de banho e comprei-lhe uns verde tropa com
estrelas.
Corremos para a água e nadámos. Fiz o pino dentro de água mas o
Ferdinand não conseguiu. Sentámo-nos na areia e comemos fruta. A frase
mais icónica destes últimos dias foi dita dezenas de vezes pelo Ferdinand
por nenhuma razão em especial.

- Want some grapes?

Tínhamos comprado duas romãs para comer mas quando as provámos


estavam demasiado azedas. Espremi uma para cima de mim tomando um
banho de sumo avermelhado na areia. Rimo-nos constantemente e fui ao
mar lavar-me. Passado um bocado percebemos que ao nosso lado estava
uma milf a ler. Metemos conversa.

- Want some grapes?

Conversámos. Disse que era professora de yoga e vinha da Bielorrússia.


Fiquei com o número dela. Nunca mais a vi.
Já com frio decidimos voltar para o centro de Palermo. Ao subir a praia em
direção à estrada vejo, ao longe, o Mike de sandálias sentado num muro a
fumar de um vaporizador. Fomos ter com ele, apresentei-lhe o Ferdinand e
fomos os três em direção ao autocarro. Esta foi a primeira interação mais
longa que tivemos com o Mike. Como a paragem estava cheia de pessoas
que talvez enchessem o autocarro, comecei a tentar apanhar boleia.
Jogámos à bola com a segunda romã que não estava comestível e quase a
fizemos ser atropelada por um carro.
Ninguém nos deu boleia apesar do meu sorriso mas passado pouco tempo
entrámos no autocarro. Durante a viagem conversámos com o Mike. Disse-
nos que trabalha numa farmácia, no hospital, em Liverpool e que veio,
sozinho, passar uns dias de férias na Sicília.

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É uma tarefa complicada explicar esta pessoa e a sua personalidade porque,
ao mesmo tempo que se mostrava uma pessoa introvertida e tímida, à
medida que nos fomos conhecendo nos dois dias seguintes, senti-o a abrir-
se e a mostrar a sua essência pura. Porém, ao contrário das pessoas
normais, conhecer a sua personalidade mais a fundo só me deixou mais
confuso sobre o que se passava na sua mente. Muitas vezes demorava uma
eternidade a formular ideias e frases o que me fez ponderar se não teria
algum atraso a nível psicológico, ou se tinha tirado proveito da sua profissão
para interesses recreativos.
Tudo o que dizia era hilariante mas se fosse dito por outra pessoa não faria
rir. Talvez pelo sotaque britânico aliado a uma cara com uma expressão
indecifrável, que transparecia o mistério que envolvia os seus pensamentos.
Só sei que, tanto eu como o Ferdinand, o adorámos e rimos de tudo o que
ele fazia. Por vezes parecia uma criança que habitava um corpo de adulto.
Não interagia muito a não ser que lhe perguntássemos coisas e estava
constantemente ausente no seu mundo que estava claramente a anos-luz do
nosso.
Nessa viagem perguntou-nos se preferíamos o rabo ou os seios das
mulheres, uma discussão ridícula que todos os homens já tiveram. Mas
perguntou-o de uma forma curiosa e até inocente. Foi aí que o seu lado
negro veio ao de cima pela primeira vez.
Convidámo-lo para ir jantar connosco. Chegámos ao hostel e lá estava a
Pauline. Falámos com o Mário para o Mike vir para o nosso quarto e ficámos
os três juntos. Vi o vaporizador dele a carregar e disse-lhe que devia dar-lhe
um nome. Depois de quase 30 segundos a pensar com uma expressão de
neutralidade incompreensível lá disse um nome.

- Julius. Like Ceaser.

Rimo-nos e vestimo-nos. Despachámo-nos e saímos do hostel com a


Pauline, que nos levou a uma trattoria local fora da área turística.
As alemãs foram lá ter para jantar connosco o que, sinceramente, não me
estava a soar grande ideia porque o ambiente estava perfeito entre nós os
quatro. Mas tudo bem. A comida estava incrível: pasta com frutos do mar
numa quantidade absurda. O Mike foi o primeiro a comer porque pediu uma
entrada e, enquanto uma das alemãs falava com ele, eu via-o à minha frente
a devorar os seus mexilhões com avidez sem ouvir palavra do que ela dizia.
Descobri que, sem ser o típico aperto de mão formal muito inglês, ele não
sabia fazer cumprimentos com as mãos mais relaxadas. No primeiro dia em
que o conheci, naquela noite com o Bino no hostel, ensinei-o a bater a palma
da mão seguida de um punho mas não acredito que algum dia ele o vá

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conseguir fazer com fluidez. Era sempre muito rígido, mas divertimo-nos a
treinar estes cumprimentos com ele durante o jantar.
Como tinha esta aparência inocente, eu e o Ferdinand incentivámo-lo a fazer
gangsigns com as mãos. Qual foi o nosso espanto quando uniu o polegar ao
anelar, olhou para nós, que estávamos sentados à sua frente, e disse:

- It’s like I’m an alien.

Abanou o sinal que fazia com a mão e um sorriso maroto surgiu no canto dos
seus lábios como uma criança que sabe que não devia dizer o que vai dizer
a seguir.

- Alien, bitch.

Partimo-nos os dois a rir. Não estávamos à espera e a forma como aquela


palavra lhe saiu da boca foi perfeita. Saímos do restaurante e a Pauline
mostrou-nos street art pelas ruas. Durante esta noite estivemos
constantemente a rir com ele. Não dele, mas com ele, que não tentava ser
engraçado - simplesmente se abria a pouco e pouco. E acho que ele gostou
de sentir que nós o compreendíamos ou que, pelo menos, tentávamos.
Entretanto, também a Pauline não pôde deixar de reparar na peculiaridade
da mente do Mike, que era sempre hilariante porque nunca era previsível,
talvez por vibrar numa onda muito diferente, mas paralela, à nossa.
A Carol, uma rapariga brasileira que tinha conhecido no hostel, veio ter
connosco e senti-me estranho a falar português num ambiente em que só
falo inglês ou italiano. É como se fosse uma mudança de um carro.
Bebemos um copo perto da Piazza Sant’Anna e conversámos. Conversar
com o Mike não era uma tarefa para qualquer um. Observei-o com
curiosidade sobre a maneira como opera no mundo e concluí que nunca
tinha conhecido ninguém tão estranho.
Levantava a mão e abanava-a subtilmente à sua frente como se estivesse a
inicializar o cérebro para formular a frase que estava prestes a dizer, pelo
que conseguia perceber que ele ia falar antes de abrir a boca.
Olhava o vazio e falava com lentidão. Quando lhe respondíamos das duas
uma: ou demorava uma eternidade a responder de volta, ou deixava frases a
meio e, pura e simplesmente, desistia delas como se nunca as tivesse
começado a dizer. Não de uma forma egoísta mas com uma pureza e leveza
de espírito que nos impossibilitava de sequer sentir algum tipo de irritação.
Tanto eu, como o Ferdiand e a Pauline, só nos ríamos.
É uma pessoa especial e talvez estivesse apenas a ser ele próprio, sem
seguir os códigos sociais que esperamos numa interação com alguém.

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A certo ponto comecei a notar que começou a fazer muitas piadas e
referências a “shit”, fezes. Ao início achámos piada mas à medida que
continuava começámos a achar suspeito.
A meio da noite, na sequência de qualquer coisa, parou no meio da rua,
olhou para cima, esticou as mãos e como que afastou umas nádegas
invisíveis de um rabo imaginário que estava suspenso sobre a sua cabeça.
Em seguida, pôs a língua de fora e fez um movimento circular.
Eu e o Ferdinand rimos pela aleatoriedade da performance e, só mais tarde,
depois de demasiadas piadas deste tipo, viemos a suspeitar que aquilo não
eram piadas. Percebemos que o Mike tinha um fetiche com fezes femininas:
ele confirmou-nos isso quando lhe apresentámos a nossa conclusão e ele
não negou. Por causa disto, e das constantes lambidelas a rabos
imaginários, baptizámo-lo com um novo nome:

MIKE, THE DIRTY FUCKING BASTARD.


(ler com sotaque do reino unido)

Passeávamos os três pela Vucceria, a rua com bares, quando o Ferdinand


foi pedir isqueiro a alguém para acender um cigarro.

- Scusa, tu hai un accendino, per favore?

Um homem negro alto de chinelos veio sorridente ao nosso encontro e


cumprimenta-nos.

- How are you?

Dá um passo atrás, dobra os joelhos e, do nada, salta para trás fazendo um


salto mortal no chão. Aterrou perfeitamente. Isto tudo num espaço de três
segundos. Fiquei boquiaberto. Percebi que estava a pedir dinheiro e dei-lhe
50 cêntimos. Ficámos a conversar e disse-nos que vivia em Palermo com a
mulher e com a filha.
Dois italianos de 20 e tal anos apareceram ao nosso lado e, meio bêbedos,
falaram agressivamente com o nosso novo amigo. Um deles segurava uma
moeda e o outro filmava com o telemóvel. Falaram com ele como se fosse
um animal, ordenando-lhe que repetisse a proeza.
Sucumbindo à ignorância dos dois por precisar de dinheiro, fez outro mortal
de chinelos e recebeu a moeda que aquela mão que o desprezava lhe atirou.
Foram-se embora.
Eu e o Ferdinand ficámos irritádos com a atitude e com o desrespeito deles.
O homem voltou-se para nós e disse-nos como prefere estrangeiros do que

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as pessoas que são naturais dali, porque a mentalidade italiana está muito
influenciada pela Máfia.
Não percebi a ligação com aquela situação, talvez estivessem a ser racistas
e estúpidos, não mafiosos, pensei. Mas ele referia-se à mentalidade mafiosa
que continua muito presente na maneira de pensar e agir de muitos italianos,
especialmente na Sicília.
A Máfia surgiu na Sicília, na época medieval. Originalmente não tinha como
objetivo os atos criminosos: foi uma organização criada pelos camponeses e
pequenos agricultores que se uniram contra os grandes senhores feudais
que, através de atos criminosos, lhes ficavam com as terras e bens.
Com o passar do tempo, várias pessoas se uniram aos camponeses para
obter proteção até que começaram a sistematizar um esquema de proteção
e expansão de negócios, através de proteção forçada - quem não pagásse
um imposto à organização sofreria de vandalismo nas suas plantações. Isto
acabou por evoluir muito para além dos vegetais, mas penso que era a essa
mentalidade ,que mistura dinheiro e ameaças, a que o homem se referia.
Chegámos os quatro ao hostel e estávamos nos sofás da sala quando o
Mike começou a imitar o Mario a falar com o seu sotaque siciliano.
Começámos todos a ter um ataque de riso. Não me lembro da última vez que
chorei tanto a rir.

Não é possível explicar a sua essência ou fazer justiça a nenhuma destas


situações sem o leitor ter estado no mesmo sítio que esta personagem.
Decidimos acordar cedo para irmos os quatro para a praia, mesmo tendo
noção que estávamos a desligar as luzes às seis da manhã.

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Dia 10 // 13 de Outubro de 2019

Com três horas de sono, arrastei-me da cama e fui comer o pequeno


almoço. O Mario oferecia-nos café, ovos, espinafres, feijões, torradas.
Depois, pusemo-nos a andar com garrafas de água até à paragem de
autocarro. Apanhámos um autocarro que nos levou a uma rotunda numa
zona mais fora do centro de Palermo e esperámos uma eternidade pelo
segundo bus que tínhamos de apanhar, mas não me aborreceu porque
estávamos sempre a conversar entre todos. A Pauline, sempre a fumar
cigarros, perguntava às pessoas que estavam na paragem se estávamos no
sítio certo. Passado bastante tempo, lá apareceu o autocarro e 20 minutos
depois saímos numa pequena aldeia de pescadores, a kilómetros dos
turistas, chamada Sferacavallo.

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Ruas calmas. Foi uma senhora que nos ajudou com a paragem em que
tínhamos de sair e que nos indicou a zona em que tínhamos bons
restaurantes.
Ao andarmos por ruas coloridas com montanhas que se encostavam ao mar,
o Mike virou-se para mim e disse que imaginava este tipo de ambiente calmo
em Portugal.
Disse-lhe que, fora das grandes cidades, tinha razão.
Parámos para comer um panini e umas bruschettas e andámos em direção à
reserva natural Capo Gallo onde queríamos mergulhar.
Andámos ao longo da beira mar e observavamos uma água tão límpida e
azul clara que banhava levemente as rochas. Do lado oposto à margem
impunham-se montanhas altas e áridas que dominavam a paisagem.
Chegámos a uma zona com pedras mais pequenas que se aproximavam do
que chamamos areia e pousámos as coisas.
Fui em direção à água e mergulhei. Quase sem ondulação à superfície, via-
se um fundo marinho incrível cheio de vida: peixes, algas e plantas que
curavam solos suaves por cima das rochas.
Abri os olhos debaixo de água. Demorámos algum tempo a chegar a uma
zona que possibilitasse nadar por causa da irregularidade do fundo nas
zonas em que as rochas agressivas não estavam cobertas por algas fofas.

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O Mike tinha ficado em pé mais atrás, durante uns 10 minutos, com a água a
dar-lhe pelos joelhos. Perguntámos-lhe o que se passava e respondeu-nos
que não sabia nadar.
Fiquei surpreso por este homem de 30 anos nunca ter aprendido algo tão
básico. Eu estava com o Ferdinand mais à frente quando olho para trás e
vejo a Pauline a ensiná-lo a nadar de bruços, exemplificando os movimentos
que permitiam ao corpo mover-se na água.
Ele tentou e conseguiu. Percorreu uns 10 metros a mover os braços
rapidamente na zona em que tinha pé mas sem tocar no chão, com a Pauline
a mover-se a seu lado. Parou e pôs-se de pé enquando tirava a água da
cara.

- I think you deserve at least some glasses of wine. - disse ele à francesa.

Todos rimos. O Mike, com a sua inocência, e a Pauline, com o seu lado
maternal a sorrir, abraçaram-se. Foi um dos momentos mais bonitos desta
viagem.

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Voltámos para a areia e sentámo-nos a ouvir música e a conversar. Na
sequência da conversa sobre como os italianos realmente usam muita
linguagem corporal, a Pauline explicou-me que, como as províncias italianas
tinham vários dialetos muito diferentes uns dos outros, o povo desenvolveu
ao longo do tempo todo um conjunto de símbolos “universais” que todas as
pessoas pudessem compreender, independentemente do seu dialeto.
É daí que vem a famosa mão com todos os dedos unidos a apontar para
cima que é utilizada por todos os italianos quando querem exprimir certas
emoções.

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No final da tarde, voltámos para a paragem de autocarro e tivemos de correr.
O Mike correu extremamente devagar mas o autocarro esperou e lá
entrámos.
Estávamos todos exaustos e conversámos a ouvir música num autocarro
vazio. Lá fora já estava escuro.
Inesperado como sempre, o Mike disse que gosta de tomar MDMA
ocasionalmente. É normalmente considerada uma droga de festa mas ele
prefere ficar em casa e tomá-la enquanto ouve ambient music.

- Oh, like that lounge/jazz restaurant music? - perguntei eu.

- No, like Ambient Music.

Ambient Music: é um género musical substancialmente focado nas


características timbrais dos sons, geralmente organizados ou executados
com o intuito de estimular a criação de uma "atmosfera", uma "paisagem
sonora" ou mesmo para apenas servir de complemento a certos ambientes.
Esse é o seu estilo musical favorito e acho que estes pormenores ajudam o
leitor a captar um pouco da essência desta pessoa.
Talvez a este ponto o leitor já se tenha perguntado o porquê do Mike se ter
tornado um assunto que dissequei com tanto pormenor. Acontece que esta
pessoa, apenas em dois dias e sem se esforçar de todo, teve um grande
impacto tanto em mim como no Ferdinand, e durante os próximos meses de
Erasmus lembrámo-nos dele com muita regularidade e sentíamo-nos
nostálgicos. Por isso, tento passar essa impressão para estas páginas.
A voltar para o hostel passámos por um sem abrigo que comia galinha frita.
O Ferdinand olhou para a comida, virou-se para mim e disse-me na sua voz
grossa:

- Uh. That looks nice.

Nunca tinha ouvido ninguém a elogiar assim a comida de um sem abrigo,


que comia no chão de uma avenida.
Depois de muitas tentativas falhadas de convencer o Mike a vir jantar
connosco ele acabou por ficar no hostel porque ia apanhar o voo cedo no dia
a seguir e sentia-se cansado, depois de ter dormitado na viagem de
autocarro.
O Ferdinand, eu e a Pauline fomos jantar com a Carol brasileira a uma
trattoria. Eu pedi uma pizza, o Ferdinand pediu uma pasta e, quando
chegaram à mesa, dividimos os dois pratos.
Quando chegámos ao hostel o Mike ainda estava acordado e despedimo-nos
dele com um abraço na esperança de o vermos de novo ainda nesta vida.

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Dia 11 // 14 de Outubro de 2019

De manhã tomámos o pequeno almoço e o Ferdinand mostrou-me músicas


de alguns artistas alemães.
Saímos do hostel e decidimos que, neste dia, íamos ser típicos turistas
porque ainda não tínhamos visto a cidade.
Procurámos uma loja de chapéus e comprámos dois chapéus a dizer Sicilia
com a figura da medusa, o símbolo da ilha.
Passámos por uma rua que tinha várias bancas a vender comida e roupa e
sentámo-nos numa esplanada para provar os clássicos arancini: bolas de
arroz cobertas de pão ralado fritas, com carne ou vegetais lá dentro.
Sobrestimámos estas pequenas: enchiam demasiado. Pedimos quatro e só
conseguimos comer duas.
Passeámos pela cidade e não tardou muito até nos sentarmos num café. Um
casal alemão, sentado à nossa frente do outro lado da rua, levou-nos a
imaginar uma realidade em que eu ia até lá e dizia uma frase qualquer
estúpida em alemão. Os próximos 40 minutos foram passados a usarmos o
Google Tradutor para dizer frases estúpidas na língua do outro, como um
jogo. Ele tentava falar comigo em português e eu tentava falar com ele em
alemão.

A linguagem é algo mesmo interessante: um código que pode ser muito


familiar para uns e completamente desconhecido para outros. Era o caso da
minha relação com o Alemão e a do Ferdinand com Português, daí nos
termos rido tanto ao ouvir a má pronúncia dos dois.
Saímos de lá e fomos comer um brioche com gelado - típico da Sicília, bolas
de gelado em pão doce. Incrível.
Entrámos na Catedral de Palermo mas era mais bonita por fora.

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Queríamos ir às Catacumbas e pelo caminho aventurámo-nos por ruas mais
pequenas, sujas e suspeitas. Demos por nós numa atmosfera zero turística,
com ainda mais movimento de motas, pessoas locais a andar na rua,
sujidade, crianças a brincar em hoverboards: estamos no ghetto de Palermo,
concluímos.

- The Real Palermo.

Claro que não era mesmo um ghetto mas ficámos com essa sensação.
Conhecemos um grupo de crianças que falava connosco com toda a
confiança e se ria por ver desconhecidos ali. Pediram-me para lhes tirar uma
fotografia. Vê-se bem a atitude da rapariga do hoverboard, que andava nele
tanto em pé como de joelhos, algo que nunca tinha visto.
Rimo-nos, experimentámos o hoverboard e passado um bocado despedimo-
nos para continuar o caminho até às Catacumbas.
Lá chegámos. Não sabia o que era - a única ideia que tinha era que seria
algo subterrâneo e sombrio, mas nem tinha pensado muito no que nos
aguardava. Descemos umas escadas para a cave de uma igreja e entrámos.
As catacumbas eram um conjunto de corredores utilizados para sepultar
defuntos e as de Palermo conservavam centenas de múmias, algumas
quase esqueletos, outras conservadas em tão bom estado que pareciam
olhar para nós ao atravessarmos os corredores.
Acho que nunca tinha visto um cadáver e vê-los com esta proximidade foi no
mínimo chocante. Só pensava que, embora sentisse um grande
distanciamento, um dia eu seria um deles, e é claro que essa ideia é
ligeiramente assustadora.
Depois de sair de lá, li que as pessoas iam visitar os familiares, já mortos,
nas catacumbas para conversar, pedir-lhes conselhos ou celebrar uma data
especial.

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Andámos pelas longas avenidas de Palermo com os nossos chapéus de
turista sempre na cabeça a conversar sobre como há pessoas demasiado
relaxadas e pessoas que não sabem relaxar.
Chegámos ao hostel e encontrámos a Pauline. Despachámo-nos e fomos
jantar só os três à mesma trattoria do primeiro dia em que jantámos todos. O
Mike já se tinha ido embora. Sentimos falta dele durante o jantar e, para
compensar, no lugar vazio da mesa onde ele devia estar sentado, pousámos
um copo, enchemo-lo de vinho e pusemos, ao lado, o meu telemóvel
desbloqueado que mostrava no ecrã a foto dele a dormir no autocarro.
Conversámos sobre como foi fixe nos conhecermos e como criámos uma
conexão tão rapidamente entre os quatro. Parecia que já nos conhecíamos
desde sempre.
Bebemos um copo e passeámos. Fomos até à catedral, ouvimos música nas
ruas vazias de segunda feira, vimos fontes e piazzas e conversámos sobre o
Mike. A Pauline mostrou-nos mais street art pelas ruas e estava
constantemente a dizer o quão gostava daquela cidade. Depois voltámos
para o hostel.

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Dia 12 // 15 de Outubro de 2019

Terça feira era o último dia da viagem. Tínhamos o bilhete para o comboio
das 20h55 mas até lá passeámos. Fomos andar por ruas aleatórias e ao
dobrar uma esquina ouvimos um estoiro.
Olhei alertado e vi miúdos a correr. Estavam a rebentar pólvora.
Conversámos com eles e ficámos a saber que tinham nove anos e
personalidade.
Convidaram-nos para jogar um jogo de futebol com eles e lá fomos nós para
o campo ali ao lado, sujo e de má qualidade.
Perdemos a vontade de estar ali quando outro miúdo mais velho que
apareceu, com 13 ou 14 anos, estava a tratar os mais novos com
agressividade, mas ao mesmo tempo era subtil, pelo que só se reparava se
se estivesse atento. Irritou-me quando, a meio do jogo, cuspiu para um
deles. O Ferdinand sentia o mesmo.

- That’s a little motherfucker. I wanna kick him.

Decidimos ir embora e ficámos a pensar em como devíamos ter dito alguma


coisa. Desejei que um dia alguém lhe venha a impôr respeito, porque se há
coisa que não gosto é de pessoas que tratam mal os mais fracos.
Fomos até ao Palazzo Real e definitivamente não valeu os 10 euros que
gastámos. Sentámo-nos no jardim durante uns 20 minutos e depois saímos
para encontrar a Pauline à porta do edifício.
Fomos até ao ghetto do dia anterior e sentámo-nos na esplanada de uma
loja de chocolates a devorar alguns que comprámos.
Passeámos mais. Jantámos uma pizza e fomos buscar as malas ao hostel.
Estava na hora.

Despedimo-nos da Pauline. Sentia-a triste por se despedir de nós, mas feliz


por a vida nos ter apresentado. Eu sentia o mesmo. Não faço ideia se a vou
voltar a ver, até porque recentemente tentei entrar em contacto com ela e o
número de telefone que tinha está desativado. Pode ser que nos
reencontremos, se a vida quiser. Logo se vê.

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Saímos do hostel depois de abraçar a nossa amiga francesa e iniciámos a
viagem de regresso a Bologna. Apanhámos o comboio na estação de
Palermo e descobrimos que as cabines tinham camas: duas em baixo, duas
em cima. Ficámos numa com mais dois homens mais velhos e, inicialmente,
foi estranho estarmos num ambiente tão próximo e tão íntimo, em que íamos
dormir. Mas depois de alguma conversa em italiano esse embaraço
desapareceu. Tentei dormir enquanto o comboio andava a alta velocidade
abanando o meu corpo e pensava em como nunca volto o mesmo depois de
uma viagem. Os dias esticam e as possibilidades concretizam-se. Fiquei
contente por o Ferdinand ter aparecido nos últimos dias, mas adoro
experienciar toda esta aleatoriedade (ou ordem?) sozinho no desconhecido.

Às vezes questiono-me se as coisas acontecem por acaso ou se há de facto


uma razão para tudo o que acontece. É fácil criarmos ligações onde elas não
existem, mas também é fácil e confortável decidir que isto tudo não passa de
um caos, uma aleatoriedade, e que tudo acontece por acaso.
Mas tive hoje um pensamento que me inclina mais para um dos lados: na
natureza, tudo tem um motivo de ser. Os seres vivos, as plantas, o mar, o
sol. Tudo serve para alguma coisa. E não me parece que nós, humanos,
fujamos a esta regra.

Chegámos a Bologna na manhã seguinte e carreguei a mala de campismo


de volta ao meu quarto na Via San Donato depois de uma aventura que
pareceu durar dois meses mas que na verdade foram 12 dias.

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Carro À Vana

Roadtrip pelo interior de Portugal

Junho de 2019

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Dia 1 // 20 de Junho de 2019, Sintra

Acordei às 8:30 e o Gimbras ligou-me. Tínhamo-nos esquecido de o avisar


que, na noite anterior, combinámos sair de Sintra uma hora mais tarde do
que tinha sido combinado. Apanhei-o com cara de amuado, a seguir passei
em casa do Gui que tinha adormecido e depois por casa do Salema. Chovia
e estava nublado mas sabíamos que daí a pouco já estaríamos num sítio
completamente diferente.

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Saímos de Sintra e fomos em direção a Vila Franca de Xira no meu Ford
Focus, sempre por estradas nacionais, o que acabou por nos levar pelas
aldeias e zonas meio-urbanas mais aleatórias. Parámos no Cartaxo para
comer umas sandes. Tínhamos como direção Ferreira do Zêzere mas
destino não sabíamos. Nunca soubemos por onde íamos passar, mas
tínhamos como objetivo chegar ao Gerês. Decidimos só ir e ver o que
acontecia.

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Primeira paragem, Vila de Rei, numa praia fluvial. Mergulhámos e
continuámos caminho. Ao avançar pelas estradas ladeadas por montanhas e
pedaços de verde deparámo-nos com nomes de sítios novos para nós.
Proença-a-Nova, Isna, onde ficámos num parque de campismo. A sensação
de estar em sítios de Portugal que nunca tínhamos visto é interessante. O
parque estava vazio. Tinha alguns tugas clássicos em bungallows, um casal
que nos deu um bocado de salsa e nós os quatro. Passava um rio por ali que
tinha sido aproveitado como praia fluvial. Montámos as tendas e fizemos o
jantar na nossa mesa de campismo com o campingaz emprestado do Artur.
Obrigado Artur! Massa com atum e cenas que comprámos no supermercado
onde fiquei dez minutos a escolher retraças.

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O fim do dia desenhava tons de azul violeta no céu durante o crepúsculo. A
luz desta altura do dia é tão fugaz e calmante.
Bebemos uma jola e fomos explorar o parque. Andámos de baloiço e com o
frio fomos conversar para a tenda grande do Gui.

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Nesta viagem decidimos não usar o telemóvel livremente e definimos uma
hora específica para o usar o mínimo e mais pragmaticamente possível. Há
anos que não estou vários dias seguidos sem a possibilidade de usar o
telemóvel e cria uma dependência que já senti várias vezes. Não é como se
estivesse viciado mas sabe bem cultivar a sensação de ausência de
telemóvel no bolso, bloqueando o impulso de o ver nos tempos mortos.
Assim, obriga-nos a ressuscitá-los criativamente, em vez de os enchermos
com informação descartável.

Dormimos e senti o downgrade desde a minha cama kingsize de Lisboa para


um colchão de ar com quatro centímetros de altura e um saco de cama, sem
me poder esticar sem dar uma joelhada no Salema.

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Dia 2 // 21 de Junho de 2019

Acordei em Isna com o som constante da cascata de água artificial. Tive de ir


à casa de banho e senti que era cedo demais. Saí da tenda descalço meio
zombie e vi o início do dia no céu. Vi as horas ilegalmente no iPhone: 5:50h.
Demasiado cedo. Quinei até às 9h, hora a que tinha combinado ir meditar
com o Gui. Quando abri a tenda vi a cara dele a sair da tenda em que dormia
com o Gimbras e, enquanto os outros dois sonhavam, nós fomos até à praia
fluvial.

Metemos as toalhas dobradas no chão e meditámos durante 15 minutos.

Abri os olhos e afastámo-nos da margem para saltar. Corremos e saltámos


coordenadamente, voando lado a lado a olhar um para o outro a rir antes de
sentirmos a mudança instantânea de temperatura no corpo. Nadámos
frescos e soube bem. Tomámos um banho de sol e concordámos em como
a tensão surge quando desejas, e que se estiveres satisfeito, sem desejar
que as coisas sejam diferentes, estás leve, despreocupado. É algo que devo
cultivar em mim e disse-lhe que, embora desafiante, estar presente no
momento parece ser a melhor solução para todas as crises possíveis.
Voltámos para as tendas e o Gimbras meteu a cabeça de fora da tenda. A
voz dele é sempre demasiado alta de manhã. Fomos com eles à beira da
água e o Gimbras mergulhou. O Salema dizia coisas aleatórias e com
entoações engraçadas em inglês e pressinto que isso vá acontecer durante
toda a viagem.
Comemos sandes de queijo e fiambre ao pequeno almoço e um pêssego do
Paraguai. Arrumámos tudo e saímos do parque de campismo de Isna, sem
saber para onde ir.

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O Gui tinha a chave da casa de uns amigos dos pais dele e decidimos ir para
lá e explorar a zona. Conduzi a ouvir música com o Gimbras ao meu lado e o
Gui e o Salema lá atrás. A casa ficava na Aldeia de João Pires e passado
algum tempo chegámos a uma povoação com um trator a circular na
estrada. Meio do nada. As pessoas, poucas ou quase nenhumas que
andavam nas ruas, olhavam para o nosso carro como se fosse uma nave
espacial.

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Entrámos por entre ruas pequenas com paredes e chão de granito, cheias de
flores de várias cores nos canteiros, e demos com a porta da casa que se
dividia em duas: de um lado da rua tinha a sala e cozinha no nº 33 e do outro
lado os quartos, no nº 32. Cheiro a velho, bom, muitos livros: o sítio perfeito
para passarmos uma noite.

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Deixámos as malas e fomos almoçar ao único restaurante da aldeia. Um
bitoque cada um. As pessoas, muito simpáticas e tranquilas.

- AÍ, OH GIMBRAS! TÁS NO MÓVEL, PUTO?

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Voltámos para casa e fomos logo meter-nos no carro em direção a uma praia
fluvial. Conduzi até lá a ouvir bLAck pARty e estacionámos lá ao pé. O sítio
era no meio de um vale de montanhas graníticas e uma cascata enchia uma
piscina de água cuja temperatura estava óptima. Mergulhámos e levámos
com a cascata nas costas.

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Conhecemos o Gin: um cão cor de raposa de um casal, ela inglesa, ele tuga
com uns Rayban e pinta de motoqueiro.
- Porque é que se chama Gin?
- Por causa do gin tónico. Uma vez ele bebeu gin como se fosse água e ficou
Gin.”

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Passeei e subi as formações rochosas, respirei o ar do campo, quente e
confortável e ao mesmo tempo cheio de fragrâncias indiscritíveis. Montanhas
com pinheiros e rocha circundavam-nos. Vimos uma casa de um moleiro e
muitos cactos. Saudades, Emílio. Senti-me sem objetivo, a passear e a
observar ao mesmo tempo que pensava no quão boa estava a ser a tarde.
Voltámos para o carro e, a conduzir para casa, vimos uma raposa no meio da
estrada. Parámos e fomos sorrateiramente por um caminho de terra batida
procurá-la mas o que vi durante mais tempo foi uma paisagem nova que se
estendia por kilómetros sem fim.

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Melgas mordem-me enquanto escrevo isto na rua à porta da casa, ou
melhor, entre elas.

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Vamos jantar. Comemos um arroz improvisado com feijão, chouriço e
cogumelos.
Queríamos beber uma cerveja e descemos até ao restaurante A Fonte, onde
tínhamos almoçado. Quando decidimos isto nunca imaginámos o que se
seguiria.

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Conversámos e discutimos o percurso da viagem numa mesa da esplanada.
Combinámos passar em Braga na vinda. A certo ponto sentimos frio e o
Salema e o Gui foram a casa buscar sweats, enquanto eu e o Gimbras
ficámos na nossa mesa.
Quando ele foi lá dentro pagar a conta final, apareceu um senhor de chapéu
com quem comecei a conversar. Disse que era daqui e falámos sobre a
Aldeia de João Pires que, para ele e para toda a gente dali, é o melhor sítio
para se viver. Falámos muito sobre religião e Deus e
ambos concordámos que Deus seria uma entidade superior que não
conseguimos definir, uma inteligência criadora das coisas. Mas não aquela
imagem de “Deus” católico que nos costumam impingir. No seguimento da
conversa disse-me que ali na aldeia é tudo gente boa. Lá dentro estava um
militar do exército, o Padre da aldeia…

- Espere. O Padre está lá dentro?


- ‘Tá sim.
- A beber jolas?
- Claro que sim! Quer conhecê-lo?

Parei durante dois segundos e disse que sim.


Entrei no café com luzes brancas fluorescentes atrás do senhor do chapéu e
vi cerca de dez pessoas, para além do Gimbras, todas na casa dos 50
menos a dona do café que era muito mais nova e o Padre, de trintas e
muitos.
Apertei a mão ao Padre a quem chamei Shô Padre.

- Shô? Atão mas queres que me vá embora?

Inesperadamente este interior do café proporcionou um convívio entre eu e o


Gimbras e estes cotas todos de entre os quais estavam dois membros da
Banda Filarmónica de João Pires. Um deles era o Senhor Manel, simpático,
paternal e com quem o Gimbras criou laços durante toda esta noite
surpreendente. Rodadas de jolas por conta da casa e muita conversa entre
todos nós. A hospitalidade destas pessoas é notável. Passado um bocado
apareceram o Salema e o Gui que entraram naquela que era a festa com o
maior contraste geracional que já presenciei.

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Fizemos todos um brinde à nossa. O Shô Padre era a maior personagem de
sempre. Quando o outro senhor me disse que o Padre estava dentro do café
nunca imaginei que seria assim: de polo azul, a faltarem-lhe alguns dentes
importantes, cabelo escuro com popa, barba e sempre de jola na mão. A
profissão dele abençoava tudo o que ele dizia a um nível hilariante.
Observava-o, ria e interagia com ele como um grande amigo, como aliás
fizemos com todas as pessoas que conhecemos naquele sítio. Levantei a
minha bebida em direção a ele para um brinde e ele levantou três jolas do
balcão.

- Três Shô Padre?!


- Foi uma obra que Deus fez.

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Incrível. Entretanto eram duas da manhã e o café ia fechar. Saímos todos cá
para fora. O Senhor Manel chamou-nos para o pé dele e perguntou a toda a
malta se queríamos ir ali comer um chouriço e um queijinho muito bom. A
expressão intensa na cara dele ao fazer o convite fez-me perceber que eles
iam retraçar. Fomos a pé até à casa do outro membro da banda filarmónica.
Pelo caminho conversava com o Shô Padre e perguntei-lhe o signo. Virou-se
para mim, estendeu a mão e com um sorriso disse:

- Joaquim!

Eu tentei adivinhar.

- Carangueijo?
- Não. Sou do melhor!
- Aquário? Virgem?
- Opá! Virgem sou!

Parti-me a rir. Do nada estavamos sentados à mesa do outro senhor da


banda com a mulher dele a trazer chouriço, queijo, presunto, tostas, pão e
ovos mexidos para a mesa. Fiquei incrédulo quando finalmente percebi:
estávamos num after. De cotas! A divertirmo-nos incrivelmente com eles. No
início da noite pensamos se encontraríamos pessoas da nossa idade e, no
fundo, nem foi preciso.
A comida não parava e cada vez que olhávamos uns para os outros, eu, o
Gui, o Salema ou o Gimbras só conseguíamos fazer um olhar que dizia
claramente “O que é que está a acontecer aqui???”.

Saímos de lá às três da manhã, despedimo-nos de todos e convidaram-nos


para a sardinhada da aldeia que seria no dia seguinte. Prometemos ir. Que
noite. Sem palavras. Quando chegámos a casa o Salema fingiu encarnar
um espírito e veio para o quarto em que eu e o Gui dormíamos dizer numa
voz diabólica “Este é o meu quarto preferido!” durante 20 minutos.

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Dia 3 // 22 de Junho de 2019

Acordámos naquela casa emprestada. A mobília e a decoração eram antigas


e estava tudo cheio de espelhos, quadros e cómodas com objetos religiosos.
Talvez tenha sido isso que inspirou o Salema a encarnar o espírito da noite
passada.
Arrumámos tudo no carro jogando de novo o, já clássico, tétris de porta-
bagagens.

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O Senhor Manuel tínha-nos convidado para a sardinhada da aldeia às 13h e
claro que fomos. Chegámos ao sítio combinado e deparámo-nos com várias
fileiras de mesas repletas de idosos sentados a conversar, um grelhador
cheio de sardinhas e muita conversa no ar. Vi logo o Shô Padre ao longe e
fui cumprimentá-lo. Sentava-se no lugar que ficava no meio da mesa
principal e, como as mesas eram longas, por um segundo pareceu-me A
Última Ceia. Apressaram-se em arranjar-nos lugar para sentar e num abrir e
fechar de olhos estávamos a comer sardinhas, batata e salada de pimento
no meio de montes de pessoas com idade para serem nossos avós.
Fizeram-nos sentir em casa. Provei o vinho da aldeia e conhecemos o Jorge,
um senhor simpático que gostou logo de nós. Destoávamos muito naquele
ambiente mas as pessoas gostavam de ver jovens.

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- Acabei de mandar uma de rajada com este senhor!
Disse-me o Salema com cara áspera ao lado do Jorge. Senhoras com
tabuleiros serviam melancia e melão, e quando peguntámos quanto é que
era o almoço disseram-nos que não precisávamos de pagar nada porque
tínhamos sido convidados.

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Fomos beber um café n’A Fonte com a Marta e o Danilo, casal que
conhecemos a noite passada. Claro que o Sr. Jorge pagou o café e ainda
pagou um bagaço ao Salema que fez cara áspera outra vez. Nós a rir. No
café o ambiente estava vivo como à noite. Cafés a sair de um lado para o
outro pelas mãos da Susana, a dona do estaminé.

- A melhor defesa é o ataque!

Disse o Jorge. O Shô Padre concordou. À saída do café agradecemos a toda


a gente e disse ao Jorge que tivemos muito prazer em conhecer a Aldeia de
João Pires. Com um sorriso na cara disse ao salema que lhe ia pagar outro
bagacinho.

- Não, não!
- Sim, sim!

E, a rir, encaminhei-os aos dois para o interior do café até que vi a cara do
Salema áspera pela terceira vez naquele dia.

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Arrancámos e fomos em direção a Sameiro, já na Serra da Estrela. Verde e
montanhas em todo o lado e nós a passar pelo meio delas em estradas
lindas. Azul no céu. Descemos para a praia fluvial que procurávamos e
mergulhámos. Vi peixes e apanhei sol. Eu e o Gui treinámos lançamentos de
cerejas para a boca um do outro a dez metros de distância. Passeámos pela
praia e vimos abóboras secas no chão que pareciam ovos de dinossauros.
Antes de bazar fui pedir ao pequeno bar da praia para saltar no trampolim
que lá estava mas descobri que era só para crianças e fiquei desiludido com
a regra.

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Continuámos pela estrada em direção a Manteigas e decidimos ficar lá essa
noite. Isto porque duas raparigas na praia nos disseram que hoje à noite iam
haver as festas de S. João em Manteigas. Já à entrada da vila que fica
exatamente no meio da Serra da Estrela, falei com um homem numa bomba
de gasolina que sugeriu que ficássemos no hostel Serradalto. Lá fomos.
Quarto para nós os quatro, check-in, o Salema perguntou à rececionista se
ela tinha batom do cieiro, banho, vestir e paguei o jantar a todos no
restaurante. Ofereceram-nos licor de mel divinal. Seguimos pelas ruas à
procura das festas.

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Fomos dar a uma praça com bancas de cerveja, muitos idosos e um palco
com música pimba. Bebemos, conversámos com velhinhas e conhecemos
pessoas aleatórias que vieram ter connosco. Passado um bocado descemos
as ruas e entrámos num bar: o bar do Senhor Januário.
O Sr. Januário era um homem nos seus quarentas e muitos que possuía uma
barba cuidada com quem fiquei a falar no balcão até que, passado um
bocado, tínhamos todos passado da mesa de esplanada para estar em pé no
balcão a conversar com ele e a comer camarões oferecidos. Sem falar nas
canecas. Conheci um cota motard um bocado estranho que me deixou usar
o seu casaco de cabedal cheio de insígnias.

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Saímos de lá e fomos para o palco de novo. Dei por mim estava a dançar
com o Gui e montes de pessoas todos abraçados a esticar as pernas
coordenadamente. Senti muito aquele concerto pimba: um guitarrista com
que fiz contacto visual percebeu que eu estava a ser mega fã naquele
momento, um homem nos seus cinquentas cantava juntamente com um
homem mais velho a tocar teclas que, no fundo, não estavam a ser tocadas,
ao mesmo tempo que cantava num microfone preso à cara.

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Dancei demasiado. Demos voltas pelas ruas de Manteigas que eu nunca
tinha visto e soube tão bem esta sensação de constante descoberta.
Chegámos a casa às seis e meia da manhã e relaxámos na varanda a beber
água já com a luz do início do dia. Fechámos as portadas e adormecemos.

O Gimbras, já sóbrio, a chegar ao hostel às 6h30 da manhã, onde eu relaxava com meias fluorescentes.

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Dia 4 // 23 de Junho de 2019

Acordámos tarde no quarto. Arrumámos tudo atrasados para o check-out. O


dia estava mais cinzento que os anteriores. Fomos almoçar a uma pizaria e
entretanto o Gui O Quê? ligou-me. Veio da Covilhã para nos mostrar sítios
bacanos. Fomos até uma praia fluvial brutal com água límpida e sítios para
saltar para a água, no meio de um vale repleto de floresta.
O Gimbras escreveu o nome dele debaixo de água, em xisto, e eu mergulhei
a ver peixes e pedras. Ambos usámos fatos de surf que tínhamos para nadar
na água fria.

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NESTA VIAGEM NÃO HÁ TEMPO PARA NADA SEM SER ANDAR PARA A
FRENTE. UMA CONSTANTE SENSAÇÃO DE MOVIMENTO QUE NOS
OBRIGA A ACOMPANHÁ-LA. NÃO HÁ TEMPO PARA TRIPAR E TRAZ AO
DE CIMA A ESSÊNCIA MAIS VERDADEIRA DE CADA UM. TALVEZ POR
PASSARMOS TANTO TEMPO COM AS MESMAS PESSOAS.

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Começou a chover torrencialmente num abrir e fechar de olhos. Arrumámos
tudo e pusemo-nos no carro. Fomos outra vez até ao centro de Manteigas
beber um café e comer um panike. Seguimos viagem. O Gui O Quê? levou-
nos até ao Covão da Ametade onde tínhamos planeado acampar. Subíamos
a serra e víamos as pequenas grandes montanhas a passar na janela do
carro. Estava demasiado mau tempo na rua e decidimos ficar na Pousada da
Juventude, mais no alto da serra em Penhas da Saúde. Entrámos e fizemos
o check in com a rapariga que estava na receção.

- Somos só nós aqui?


- Não, há mais cinco pessoas.

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Grandes condições. Ficámos num quarto com quatro beliches e descemos
uma rua para jantar. Voltámos para a pousada, fizemos festinhas aos cães
da Mafalda, da receção, e jogámos snooker e ping pong num salão de jogos,
gigante mas vazio.

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Dia 5 // 24 de Junho de 2019

O Gui acordou antes de todos, como sempre, e vimos chuva agressiva lá


fora. Mais uma manhã num sítio novo, mais uma sessão de arrumações,
partimos para a estrada. Conduzi pelas encostas da Serra da Estrela em
estradas molhadas intermináveis às curvas. Parámos para ver uma lagoa.
Saímos a correr do carro, com as mãos a proteger a cabeça das gotas, e
vimos a paisagem durante três segundos.

- Tá visto.

E voltámos a correr para dentro do carro. Passámos pelo Sabugueiro para


almoçar, a aldeia mais alta de Portugal, a 1950 metros de altitude.
Fomos a um canil de Serras da Estrela, fizemos festinhas e falámos com o
tratador. É triste ver cães fechados em vez de andarem à solta pelas
montanhas, livres a correr. Mas os seres humanos mandam nisto tudo, ou
pelo menos acham que mandam.

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Continuámos em direção a Viseu. Usei o telemóvel para necessidades
básicas. Até aqui temos conseguido respeitar a regra de só usar os
telemóveis quando é mesmo necessário. Neste caso, arranjar sítio para
dormir. Fizemos um vídeo, pu-lo no instagram e twitter e, dentro de
momentos, comecei a ter respostas.

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Já em Viseu combinei com a Alexandra encontrarmo-nos, que não conhecia
mas que pareceu simpática e prestável ao oferecer-nos casa para ficar
naquela noite. Mandou-me a localização e fomos até à casa dela e das
amigas. Ouvimos muito Goldlink nesta viagem, mais especificamente a
Herside Story.

Subimos ao 2º esquerdo e conhecemo-nos. Agradecemos pela ajuda e


fomos comprar coisas para fazer jantar para todos. Voltámos e trouxemos
também as malas de campismo gigantes. A Cátia e a Claudete deram-nos as
camas delas e dormiram todas na cama da Alexandra. A Cátia tinha OCD e
pediu-nos que tirássemos os ténis antes de entrar no quarto dela. Até tinha
uma daquelas vassouras com pano atrás da porta. Ficámos a conversar na
cozinha nós os quatro, elas as três e o Camões, namorado da Alexandra,
que fumava vape de limão. Fizemos traçado e bebemos enquanto se fazia o
jantar. Rimos e conhecemo-nos uns aos outros. Apresentávamo-nos através
de histórias que acabavam por também apresentar o resto dos amigos de
ambos os grupos. Comemos e ouvimos sons alto.

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A certo ponto a polícia tocou à campainha por causa do barulho e saímos de
casa a pé até um bar local. Bebemos uma e conhecemos mais malta. A
Claudete tinha um exame no dia seguinte e estive sempre a chamá-la à
responsabilidade, lembrando-lhe que tinha o exame como um bom amigo
faria. Daí a pouco estavamos na fila para entrar numa discoteca de funk
brasileiro. O Gimbras com os óculos do Gui a dançar, o Salema a conhecer
malta à toa, o Gui a dançar com bóias que estavam na pista de dança e eu a
ver aquilo tudo e, não sei como, a dançar funk. A certo ponto tive de bazar.
Senti que o meu nível de resistência àquele tipo de música chegara à
reserva e saí da discoteca. Chegámos a casa às seis da manhã e
adormecemos nas camas de pessoas bondosas.

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Dia 6 // 25 de Junho de 2019

Acordei meio a sentir a noite anterior mas logo se dissipou essa sensação
quando fui almoçar com o Gimbras a um restaurante que ele me tinha falado.
O João Félix estava na mesa ao nosso lado a ver memes no telemóvel.
Quando saímos do restaurante ele estava a ser chateado pela CMTV à porta
do estabelecimento.
Passámos por eles e, já depois do futebolista ter ido embora, um dos
jornalistas, de aspeto esquisito, abordou-nos.

- São colegas do Félix?


- Ah… Sim… Porquê? - disse eu parecendo credível.
- Podem só prestar umas declarações rápidas?
- Não sei… Ele não aprecia este tipo de invasão de privacidade.

Fingi ficar hesitante para tornar a situação mais real. Não sei bem como é
que o jornalista acreditou que de facto era colega dele, mas quando me
pediu novamente por declarações disse-lhe que não seria possível, pus os
óculos de sol e virei-lhe as costas. O Gimbras partiu-se a rir. Voltámos a
casa das meninas, abraçámo-nos e agradecemos muito antes de nos
pôrmos novamente na estrada.

Direção? Não sabíamos. No dia seguinte íamos a uma prova de vinhos que o
Gimbras safou à pala, através do pai, no Pinhão então conduzimos até ao
Peso da Régua. Vimos pela primeira vez o Douro e fascinou-nos a paisagem
de montes trabalhados com linhas verdes, as vinhas. Parámos no meio da
cidade à margem do rio e ficámos um quarto de hora a falar à toa, como que
a descansar da responsabilidade de tomar decisões.

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Metemo-nos no carro e decidimos só ir em frente e ver o que acontecia.
Intuição ou não acabei por virar à direita num sítio e subir um monte.
Queríamos bater a portas para nos darem um sítio para acampar. Uma placa
dizia

QUINTA DO CÔTTO

Entrámos apesar do pessimismo do Gimbras. Entrámos a pé na quinta de


vinhos do nada ouvimos um latir de cão a aproximar-se rápido. Sai um cão
raivoso da porta principal da quinta e vai direto ao Gui. Fugimos todos, saltei
para cima de um muro e olhei para a cara de pânico do meu pobre amigo.
Um grito vindo do outro lado da porta precedeu um homem que nos
apareceu à frente: o enólogo, chamado Lourenço. Assim que ele gritou o
cão, que afinal era uma cadela, veio receber festas nossas e rimos todos do
Gui. Contámos-lhe a nossa história, deixou-nos ficar a acampar ao lado da
vinha e ainda nos ofereceu uma garrafa da quinta para provarmos.

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Acampámos por baixo de oliveiras e fizemos jantar no campingaz. Vimos a
vista que estava à nossa frente e ouvimos sons tranquilos. O Salema até
instalou a cama de rede dele. Adormecemos à uma da manhã depois de
ouvir Kaytranada na tenda.

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Dia 7 // 26 de Junho de 2019

Acordei e saí da tenda. Nesta manhã tínhamos a prova de vinhos então


arrumámos tudo rapidamente, agradecemos ao Lourenço e bazámos. Fomos
até ao Pinhão e às onze da manhã estacionámos na Quinta, onde o vinho é
aprofundado ao pormenor.

O desafiante tétris de porta-bagagens com que batalhavamos todos os dias.

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Depois de uma pequena visita à quinta sentámo-nos à mesa com cinco
copos, dois de vinho de mesa e três mais pequenos de vinho do Porto e com
a nossa guia sentada na ponta a explicar-nos os travos e odores. Foi uma
boa experiência em que percebemos os vários sabores e intensidades. Só
sei que ao meio dia demos por nós a rir da situação demasiado tocados.

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Saímos de lá, comemos um hambúrguer cada um e chegámos atrasados à
segunda prova, à tarde, porque o Gui e o Salema quiseram ir até à esquadra
da polícia pedir à GNR para soprar no balão para sabermos se alguém podia
guiar em vez de gastarmos dinheiro a pedir um táxi. Acusou. Pedimos táxi.
Na prova da tarde só comi queijo e depois apanhámos o comboio, peguei no
carro e seguimos para Vila Real. No dia a seguir ia chegar o Janito que se
vinha juntar à viagem e, aí, estaria o grupo completo.

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Lá passámos por dezenas de placas com nomes de aldeias que são tão
suscetíveis de fazer piadas que tivemos de criar uma regra: cada um tinha
um limite de três piadas por dia com nomes de aldeias aleatórias.

Chegámos a Vila Real e fomos em direção ao camping. Entrámos com o


carro no parque, estacionámos num dos caminhos de terra batida e
montámos as tendas.
Em toda a viagem tem havido uma árvore que está constantemente a
aparecer: o Meiteiro. Emana um cheiro desagradável a fluídos corporais
masculinos que nos fez baptizá-la com esse nome. Então de vez em quando
ouvia-se algum de nós

- Ai, puto! Que cheiro a Meiteiro!

Instalámo-nos, banhos, carbonara e conversa à noite sentados à mesa de


campismo. Ainda fomos dar uma volta por Vila Real mas voltámos cedo e
fomos dormir.

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Dia 8 // 27 de Junho de 2019

Saí da tenda e comi aveia com pêssego e banana com o Gui. Por este andar
já estamos fartos do ritual de montar e arrumar o campismo, mas se
queremos ser nómadas tem de ser assim.
O Salema foi buscar o janito que chegou de bus a Vila Real. Eles os dois
chegaram e era visível o sorriso do Janito pela janela do passageiro. O tétris
de porta-bagagens subiu de nível: agora éramos cinco, com mais uma mala.
Mas foi feito e lá nos pusemos no carro em direção ao Gerês.

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O Janito, à esquerda.

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2 horas de carro mais tarde estávamos a chegar ao Parque Nacional Peneda
Gerês. Grandes montanhas ainda maiores em dimensão e magnitude que na
Serra da Estrela, todas verdes, banhadas muitas vezes por água lá no fundo,
em baixo.

Fomos até um parque de campismo em que a senhora da receção foi


antipática e agressiva ao ponto de todos nós a detestarmos apesar de não a
conhecermos. Decidimos ir embora já depois de termos feito o check in.
Fomos até outro parque muito simpático em que montámos tudo.

Cozinhámos um caril com carne e às 22h e tal estávamos a comer. É quase


certo jantar tarde nesta viagem porque todo o processo de nos instalarmos
num sítio, montar tudo e preparar a comida demora mill vezes mais do que
numa casa. Ficámos a conversar e decidimos lavar logo a loiça porque
deixar para o dia a seguir de manhã é pior. Improvisámos em beats do J Dilla
e fomos dormir.

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Dia 9 // 28 de Junho de 2019

Comi aveia e pão com queijo depois de acordar. Tenho sempre tanta fome
aqui e a comida sabe sempre extremamente bem. Arrumámos tudo,
entrámos no bote e fomos até à Cascata do Arado.

Descemos até ao fundo de um vale e vimos um curso de água por entre


pedras que vinha de uma cascata alta. Água caía num penhasco e fazia uma
piscina natural numa cavidade de pedra. O barulho era forte mas a força da
água na água era mais. Há quanto tempo é que esta água está a correr?

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Mergulhámos. Água gelada mas se te habituas o frio sabe bem. O Gui meteu
a cabeça debaixo da cascata e eu deitei-me com o corpo submerso sentado
numa pedra menos funda.
Apanhámos todos sol deitados em pedras e alguns meditaram. Bazámos
pelo meio do rio de pedra em pedra e descobrimos que esta atividade é
realmente prazerosa.

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A seguir fomos almoçar numas mesas no meio da natureza umas sandes de
atum infinitas que mal cabiam no pão. O Salema atirou um tomate para longe
e todos lhe demos na cabeça. Resfrescámos cervejas numa fonte e
bebemos uma.

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Depois fomos até às cascatas do Tahiti e quase morri. Eram cascatas muito
altas e a pedra era escorregadia. Ao atravessar uma delas escorreguei, perdi
o equilíbrio e agarrei-me a um ferro. Mas se não me tivesse agarrado tinha
caído por ali abaixo. E se eu tivesse morrido? Fiquei sentado naquela rocha
um bocado em choque, e a pensar na vida que ainda tenho.

O sítio era muito bonito e a água límpida corria pela montanha abaixo com
subtileza. Estávamos num sítio alto e a vista era linda. Adormecemos todos
em cima dos rochedos e soube tão bem até que acordei, vi o Gui a despertar
com um tremor no corpo, passado um bocado o Gimbras e o Janito
acordaram mas o Salema continuava a dormir, mesmo à beira do precipício.

- Vou só mergulhar, mas antes vou beber água para estar molhado por
dentro e por fora.

Disse o Gui antes de mergulhar. Saltou para a água e os salpicos acordaram


o Salema.

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Bazámos. Fomos até outro parque de campismo onde nos instalámos e,
depois de tomar um banho a ferver, cozinhámos uma massa de vegetais
com demasiado molho teriyaki. Ao pegar na panela com um garfo e uma faca
para não se queimar na panela, o Salema deixou-a cair ao chão e perdeu-se
parte dos vegetais. Demos-lhe na cabeça outra vez e o Gimbras disse que
até estranhou uma das engenhocas dele não ter funcionado bem.
Acabámos, comemos e saboreámos, demos uma volta pelo parque de
campismo e acabámos num parque infantil a ser crianças. Lavámos a louça
e vimos escuteiros.

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Dia 10 // 29 de Junho de 2019

Acordei na tenda a ouvir pássaros. Comi uma banana e despachámo-nos a


sair do campismo. Fomos em direção a Portela do Homem por curvas
apertadas e pouco seguras que me fizeram dar uso à buzina como se fosse
um instrumento que tocava por cima do som que o Salema punha no rádio.
Subimos. Passámos por sítios paradisíacos e parámos o carro para apreciar
a vista.

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Estacionámos e decidimos andar num trilho durante um quarto de hora para
chegar a um sítio que um amigo nosso nos tinha sugerido. Uns espanhóis
que também iam para lá indicaram-nos o caminho quando estávamos meio
perdidos, quase a desistir de procurar por estarmos a andar há meia hora e
não termos visto nada. Continuámos e valeu a pena.

Um sítio paradisíaco, o mais bonito em que já estive. Um vale amplo com


rochedos enormes de lado e, no meio, um rio que passava com a subtileza e
agressividade que a Natureza tem, por entre as rochas e pedras de todos os
feitios. Piscinas naturais formavam-se e tornavam-se jacuzzis com a força da
água. Mergulhámos, saltámos e depois fui explorar rio acima sozinho.

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As rochas estavam cobertas por pequenos musgos que permitiam
escorregar e deslizar por elas, o que nos fez cair na água algumas vezes. Mil
tons de azuis e verdes.
Os putos espanhóis tinham tábuas de skate de dedo sem rodas para “surfar”
a água e diverti-me tanto a brincar com aquilo. Ficámos lá umas horas até
bazarmos e fazer aquela caminhada de novo que nos moeu de cansaço.

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Comemos um hambúrguer num café, viemos para o camping, jogámos
futebol de árvore (jogo que inventámos que consiste em passar a bola uns
aos outros a longa distância por entre as árvores) e descansámos.

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Fizemos jantar cedo pela primeira vez e comemos burritos: ninguém falava,
só se comia. De barriga cheia conversámos, viemos ao café do camping
beber uma cerveja e voltámos para a tenda para adormecer.

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Dia 11 // 30 de Junho de 2019

Acordei às oito e meia, pus a cabeça de fora da tenda e vi a do Gui a olhar


para mim. Fomos os dois meditar e conversar a seguir. Tomámos o pequeno
almoço no café do campismo e escrevi sobre os dias anteriores que me
faltavam. É difícil encontrar tempos mortos nesta dinâmica de viagem.

Encontrei o resto da malta ao sair do café em direção às tendas e bazámos


em direção à Portela do Homem para mergulhar numa piscina de rocha.
Ficámos lá pouco tempo até que viemos embora e passámos num
supermercado para comprar coisas para fazer um churrrasco no camping.
Grelhámos febras e outras coisas que me faziam um bocado de confusão
por ser um bocado de cadáver, comemos e bebemos.

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Conhecemos um grupo de belgas escuteiros que se juntou a nós e
conversámos com eles. Já de noite fomos tomar banho os cinco ao mesmo
tempo, cada um no duche a seguir à cabine do outro, ocupando uma fila de
duches do balneário do camping. Do nada começámos a fazer uma jam com
sons, palmas e outros barulhos que ecoavam na casa de banho, nem
sempre vazia.

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Dia 12 // 1 de Julho de 2019

Acordámos, arrumámos tudo e o Gimbras tomou o volante. Próxima


paragem: Braga. Viemos a ouvir Tyler, The Creator, Sam The Kid e GoldLink.

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Chegámos a Braga num instante e passeámos pelo centro a pé. O ambiente
da cidade estava muito agradável, calor, muita gente na rua e tivemos de ir
comer um gelado onde encontrámos um cão que tinha feito uma cirurgia às
orelhas. Passeámos mais, vimos flores bonitas e igrejas.

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Coincidência das coincidências: este ciclista aparece também na foto seguinte,
que foi tirada 15 minutos depois noutra zona da cidade.

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E ainda por cima olha para a lente. A lata…

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Tinha pedido casa na internet outra vez e assim conhecemos o Pedro: um
bacano de Viana do Castelo a viver cá em Braga que me respondeu e disse
que nos dava casa aos 5 e que tinha mesa de ping pong. Assim que li “ping
pong” nem pensei duas vezes. Viemos ter com ele, comprámos
hambúrgueres e fizemos o jantar. Conversámos sobre o facto da internet
permitir que nos conhecessemos e como isso é incrível. Jogámos ping pong,
ouvimos música e o Pedro foi mostrar-nos a noite de uma Braga numa
segunda-feira.

Fomos até à Sé mas estava tudo vazio. Sentámo-nos num bar com boa
música e chillámos um bocado até decidir voltar para casa. Já na casa do
Pedro, tocámos guitarra e cantámos coisas antes de adormecer em camas.

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Dia 13 // 2 de Julho de 2019

- Puto, nós podíamos viver assim.


Acordámos na casa que acabávamos de conhecer, comemos uma torrada,
tomámos banho, perdi no ping pong com o Pedro e despedimo-nos dele, um
desconhecido agora conhecido que a vida nos apresentou. Bola para a
frente. Entrámos no carro e fomos almoçar uma francesinha antes de nos
fazermos à estrada rumo a Coimbra.

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Pus no instagram o último pedido de casa e recebi mensagem de uma
Carolina Diogo que me mandou foto de uma piscina. Fomos em direção à
casa dela. Quando chegámos ela ainda não estava na casa mas o irmão
abriu-nos a porta.

Conhecemos assim o Diogo Diogo, um puto bacano de dezanove anos que


nos disse para entrar na casa gigantesca e com decoração moderna que me
deixou boquiaberto. Levou-nos até à piscina com colunas de jardim a
bombar sons e trouxe cervejas e Iced Tea. Conversámos sobre música,
programação e objetivos de vida.

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- Quero fazer dinheiro para depois poder fazer o que gosto mesmo. - disse o
Diogo.
- Eu vou tentar fazer ambos logo de início. - respondi-lhe.
Jogámos snooker, andámos de streetsurf e fomos numa tour pela casa. A
certo ponto passou-me o telefone e disse:

- Tens aí ganda fanboy.

Peguei no telefone.

- Tou man?

Atendi como se fosse um gajo da minha idade para depois perceber que
estava a falar com o pai dele.

- Eu aqui no escritório e vocês aí. Curto bué a tua cena meu, aproveitem aí!

Um bacano! A Carolina chegou com a cadela deles, a Lua, e fomos todos dar
um mergulho. Agradecemos-lhes pela tarde e fomos até à casa de umas
raparigas que nos ofereceram casa com simpatia.

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Quando chegámos à casa no centro de Coimbra já tinham comprado jantar
então começámos a conversar e a conhecermo-nos numa nova interação
sem expectativas. Inesperado. Conhecemos tantas pessoas que me deram
casa por terem desenvolvido uma relação de confiança comigo sem eu as ter
conhecido antes.

Daniela, Inês e Maria. Muito simpáticas, sempre prestáveis começaram a


fazer o jantar e admitiram que tinham estado a arrumar a casa porque íamos
lá. Jantámos às sete e bebemos mojitos feitos por mim e pelo Gimbras.
Conversámos, rimos, conhecemo-nos, uns na varanda, outros na cozinha
apertada e acolhedora. Falei com a Daniela sobre como é este tipo de coisas
que nos faz viver.

A certo ponto a Inês disse-nos que trabalha no call center de uma companhia
de telecomunicações e esteve sem exagero uma hora a falar com todos com
o modo “operadora de telecomunicações” ligado. A falar das vantagens do
seu serviço às três da manhã e todos nós a morrer a rir. O sotaque
carregado de Amarante ajudou.

Rimos muito nesa noite e dormimos no chão e numa cama, que o Gui
ocupou depois de ser vencedor num zerinho-ou-um.

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Dia 14 // 3 de Julho de 2019

Acordámos em Coimbra, ajudámos a limpar tudo e despedimo-nos delas


com um sorriso agradecido.
Rumo a casa.
Decidimos parar em Leiria para almoçar e liguei ao Leitão que veio ter
connosco mostrar-nos um sítio para almoçar e um pouco da cidade.
Passeámos pelas ruas cheias de street art, vimos a casa dele e despedimo-
nos a seguir.

O Salema conduzia e eu (shotgun!) escrevia sobre os últimos dias. Parámos


para pôr gota e daí até Sintra vim eu a conduzir.

- Esta viagem foi brutal. Gosto bué de vocês pessoal.

Às vezes não chego a dizer estas coisas por medo de um embaraço sem
sentido, mas aqui disse do coração e pensámos no quão boa tinha sido a
experiência, e como é bom sermos um grupo que tem ideias e realmente as
leva para a frente. Lacrimejei sem ninguém ver num momento inesperado
em que o Salema disse mais uma das suas coisas ridículas e engraçadas
que é preciso ser amigo dele para perceber, ao pensar que estou, de facto, a
viver.

Conhecemos tantas pessoas e sítios e trouxemos toda uma nova bagagem


de vivências connosco para casa. Deixei o Janito em casa da namorada,
depois o Salema na casa dele. À medida que o número de passageiros ia
diminuíndo uma sensação de melancolia vinha ao de cima, a sensação de
fim de algo tão bom. Deixei o Gui, depois o Gimbras e voltei para casa já
com o carro vazio como se fosse só mais um final de tarde normal em Sintra
com os meus pais à minha espera para o jantar.

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Mais Ou Menos À Boleia

Diário de uma viagem à boleia por Espanha

Agosto de 2018

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Em Agosto de 2018 eu e 3 amigos decidimos viajar à boleia pela Europa.
Definimos um percurso que passava por Espanha e França, sem nada
totalmente definido, e saímos de Sintra no dia 4 de Agosto com 2 tendas e
uns atuns de emergência.

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Dia 1 // 4 de Agosto de 2018

O calor ridículo que se sentia na rua impediu-nos de tentar apanhar boleia


para a capital espanhola e decidimos apanhar um bus no Oriente. A viagem
fez-se bem desde Lisboa. Conversámos, rimos, falámos sobre consciência
canalizada em forma e mais assuntos de reflexão, e pelo meio disso tudo, o
Janito entornou salada de feijão frade no banco.

Chegámos a Madrid às 21h, passadas oito horas, e sentiamo-nos


completamente à toa, mas daí a pouco estávamos mais. Fomos ao
supermercado comprar jantar e
pensámos ir para um local que a internet indicava como possível sítio para
acampar, mas não pensámos na possibilidade de que campismo selvagem
na cidade talvez não fosse assim tão seguro pelo que começámos a
perguntar a pessoas sítios para pôr as tendas às onze da noite.
Toda a gente disse que podia ser perigoso e ficámos reticentes.

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Uma hora numa estação de metro a pensar em opções. Uma rapariga tentou
ajudar, falou ao telefone com alguém desconhecido e falou-nos de possíveis
hostéis para ficarmos, na zona do Sol, no centro de Madrid.

O Gui marcou reserva no primeiro e mais barato que apareceu e fomos até lá
a pé. Acabámos por chegar ao melhor sítio de sempre após estarmos
completamente desnorteados em relação ao plano, ao que iria acontecer a
seguir e, no fundo, ao nosso destino.

Existe ou não? Está definido? Era suposto chegarmos aqui?

As possibilidades estavam todas abertas. Como estávamos de boa vontade,


aconteceu, suponho.
Chegámos ao hostel, barulho, álcool na recepção, pessoas. Subimos para o
quarto que tinha dez camas lado a lado, cima a baixo, dividido em duas
partes. Por esta altura era já meia noite e tal e nem tínhamos jantado. Tomei
banho enquanto comia uma banana.
Fui nu descascá-la ao lixo e passei por um gajo que não tinha visto, que
estava na cama dele. Voltei para a zona das nossas camas como se nada se
passasse, porque no fundo não se passava nada.
Saímos do hostel com indicações claras: para encontrar cerveja bastava
encontrar uma esquina e, para comida, bastava ir para a esquerda. Fácil.

Comprámos uma Mahou numa mercearia de chineses e vagueámos. A


sensação de estar sem plano, sem rumo, à deriva e ao sabor de um vento
quente, que fez o Gui dizer que parecia que estava a mergulhar no ar, foi
esplêndida. Abrasador.
Andámos à toa de chinelos e o Salema disse que dois travestis eram duas
armadilhas o que é engraçado e nada sexista. Conhecemos um homem de
polo azul chamado Marcelo, vindo de África, que tentava vender entradas
para discotecas às quais não iríamos de certeza.

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- Boa sorte para o resto da tua vida. - disse-lhe o Gui depois de simpatizar
com ele.

O Janito não parava de mencionar o quão boa estava a ser a noite e eu não
podia deixar de concordar e cambalear a rir com ele. Numa rua cheia de lixo
encontrámos animais de plástico de brincar e fizemos um exército no
passeio. Parámos numa praça, rimámos e improvisámos num beat e, do
nada, conhecemos o Ras Deiverman: um cantor de reggae com uma energia
contagiante e grandes sons que nos mostrou. Mostrei-lhe a Manáda! e ele
cantava connosco.

- Manáda! Bebendo limonáda! Comendo empanáda!

Depois de nos despedirmos o Salema disse que quem lhe dera ser filho dele
e a partir desse comentário ninguém conseguiu dizer nada mais engraçado
sobre a situação.

Chegámos ao hostel e sentámo-nos nos sofás do átrio. Eu e o Janito


conhecemos um brasileiro, o Gustavo, que falava espanhol perfeito e cuja
nacionalidade só percebemos a meio da conversa. Ao seu lado estava um
rapaz completamente embriagado a fumar um cigarro dentro do hostel que
não desistia de nos tentar convencer a seguir o nosso próprio rumo e a
encontrarmos a nossa própria fórmula em relação a raparigas. Isto porque o
Gustavo tinha feito sexo desprotegido há dez minutos e ele não aprovava de
todo a situação. Fomos dormir.

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Dia 2 // 5 de Agosto de 2018

Acordámos e, depois de ficarmos duas horas a rir, comer Cerelac, tomar


banhos e arrumar coisas, fomos até à cozinha fazer o almoço. Comemos
carbonara com talheres de plástico e passeámos aleatoriamente pelas calles
de Madrid até entrarmos num parque que baptizámos como Parque dos
Repuxos, depois de termos passado uma hora a saltar e a banhar-nos no
sistema de rega para combater o calor abafado que se sentia fora da
sombra. O Janito perdeu os óculos de sol.

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Fomos ao supermercado comprar o jantar e almoço para o dia seguinte que
ia ser passado a apanhar boleias em direção a Barcelona. Mais tarde
perceberíamos que as coisas não iam ser assim tão simples.

Na cozinha fizemos uns bifes para o jantar, preparámos umas sandes para o
dia seguinte e vimos na internet o sítio em que nos íriamos posicionar para
apanhar boleia. Voltámos para o quarto. O ar condicionado foi uma dávida
nos constantes quarenta graus que sentíamos. Procurámos pedaços de
cartão no lixo que transformámos em cartazes em que escrevemos

BARCELONA POR FAVOR :)

Só adormecemos depois de uma discussão quase política entre dois


partidos. O primeiro, eu e o Salema, com noção das horas de sono
necessárias (ou simplesmente calões), queríamos acordar meia hora mais
tarde do que o Gui e o Janito, que queriam obrigar-nos a acordar às sete e
meia.

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Dia 3 // 6 de Agosto de 2018

Acordámos às sete e quarenta e cinco e ficámos na cama até às oito. Mais


tarde nesse dia, ao relembrar esta conquista, eu e o Salema batemos com os
punhos. Tomei um banho gelado que me acordou mais do que precisava e
comi Cerelac outra vez, arrumámos tudo e às oito e meia estávamos na rua.
A luz da manhã nas ruas de Madrid estava bonita. Entrámos num comboio e
saímos na estação de São Fernando para chegar ao sítio em que planeámos
apanhar as primeiras boleias mas as próximas duas horas a tentar não
deram em nada, o que nos levou a reduzir progressivamente a ambição da
boleia à medida que o tempo passava. Passada uma hora, para além do
cartaz a dizer BARCELONA que tínhamos desde início, segurava um novo
cartaz onde se lia ZARAGOZA e, passado mais um bocado, arranjámos
outro pedaço de cartão com a palavra GASOLINERA na tentativa de chegar
a uma bomba de gasolina para conseguirmos a grande boleia mais
facilmente. Não deu em nada e decidimos mudar de sítio. Foi aí que
chegámos a

GUADALAJARA.

Chegámos à pequena cidade que fica a 65 km de Madrid através do mesmo


comboio que nos levou a São Fernando e, depois de perguntar a um velho o
caminho para a estacion de autobus, para lá nos dirigimos. Passámos por
uma ponte alta que passava por cima de um rio. Cuspimos para o precipício.
Tínhamos o plano de apanhar um autocarro local para Taracena porque
vimos na internet que havia uma estacion de servicio em que dava para
apanhar boleia na A2 em direção a Barcelona. O que se seguiu então foi um
falhanço total.

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Tentávamos apanhar boleia desde a paragem dos autocarros até que um jipe
parou no semáforo. Fui com um sorriso na cara pedir boleia ao condutor mas
o homem, sem expressão durante uns segundos, acabou por dizer que sim.
Passado um minuto passou lá de novo a fazer-nos sinal para entrar no carro.
A primeira boleia! Ia abrir a porta e ele disse-me para saltar para o banco de
trás do jipe sem teto nem parede. Levou-nos até uma bomba de gasolina
mas não à que queríamos pelo que tentámos falar com condutores porque
pensámos que seria mais fácil do que apenas usando cartazes.
Os espanhóis não são tão antipáticos como se diz, se falarmos com um
sorriso na cara mostram empatia, o problema foi que ninguém ia para onde
queríamos. Nem até à estacion de servicio conseguimos chegar.

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Desmotivados pensámos que não íamos conseguir viajar à boleia com a
facilidade que imaginámos. Criámos movimento e fomos ao supermercado
(ar condicionado!) comprar o jantar e procurar local para montar as tendas.
Duas pessoas que saíram do supermercado ao mesmo tempo que nós
deram-nos boleia até ao Parque del Rio em que ponderámos dormir até
vermos um boi lá dentro.
Era o zoo de Guadalajara. Fomos até ao parque de Coquin, que o Gui
batizou como Parque dos Coquinados, e deitámo-nos exaustos na relva.
Eu e o Gui fomos bater a portas de pessoas para tentar arranjar um pateo
trasero para pôr as tendas mas ninguém nos acolheu e voltámos para fazer o
jantar.
Fui com o Salema a outro supermercado porque nos esquecemos do
esparguete na caixa do primeiro só que, chegados ao sítio indicado,
percebemos que tínhamos deixado as carteiras nas mochilas e que aquilo
não era uma mercearia mas sim uma loja que vendia molduras que, ainda
por cima, estava fechada.

Tudo corria mal e era fácil stressar mas senti que estes momentos pediam
para que os aceitássemos e ríssemos, flexíveis e sem rigidez quando ao que
devia ser. Aposto que o Kerouac diria que é isso que torna a estrada tão
estimulante, a imprevisibilidade. Se nos deixarmos consumir pelo falhanço
vamos desmotivar e acredito fortemente que lhe vamos conseguir daravolta.
Fizemos o jantar já com o esparguete e senti-me relaxado e satisfeito depois
de um stress exaustivo.

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Arranjámos sítio para dormir: era seguro pôr as duas tendas entre umas
árvores sem sermos vistos. Decidimos montá-las à noite, quando
escurecesse.

O jantar, bolonhesa feita no campingaz, foi o ponto alto daquele dia. Perfeito.
A comida sabe toda surpreendentemente bem quando estamos na estrada.
Falámos e comemos e depois fomos montar as tendas para dormir. Ficou
decidido que no dia seguinte apanhávamos um comboio para Barcelona.
Estava um calor ridículo e suei-me todo. Enquanto o Janito e o Gui dormiram
apertados com as mochilas dentro da tenda com medo que lhas roubassem,
eu e o Salema pendurámos as nossas nos ramos das árvores por cima da
tenda e pudémos esticar as pernas como deve ser.
Acabei por dormir algumas horas, suficientes, para acordar no dia seguinte
com energia para mais imprevisibilidade.

- Nunca consegues ser tão tu quando sabes que te estão a filmar. Há uma
pressãozinha lixada.

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Dia 4 // 7 de Agosto de 2018

Seis da manhã.
Acordei e estava de noite. Desmontámos as tendas e a falta de sono
tornava-nos mais engraçados.
Depois de tirar a mala das árvores e ter arrumado tudo, comemos. Cerelac.
Lavei os dentes no sistema de rega e o resto da malta fez o mesmo.
Sistemas de rega andam a revelar-se extremamente úteis.

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Fomos a pé até à estação de comboios e cuspimos no mesmo rio em que
tínhamos cuspido quando por lá passámos. Apanhámos o comboio com
direção a Barcelona às oito. Na casa de banho da estação o Gui falou-me
sobre fazer um gráfico de produtividade, escrever percentagens do uso do
tempo e depois durante quinze dias comparar a sua semelhança ou
diferença com a realidade, de forma a mudar e ser mais produtivo com
consciência.
Relaxante estar no comboio e não estar preocupado com para onde ir. Uma
viagem que noutra altura teria sido aborrecida revelou-se prazerosa neste
contexto e ainda hoje me lembro do quão bem soube aquela viagem de
comboio a olhar pela janela despreocupado e a passear pelas carruagens
enquanto os outros dormitavam. Dormi um bocado até que tivemos de sair
do comboio em Caspe porque havia un troço en construction, como disse o
pica simpático com cara de Hernando.
O resto do caminho até Barcelona foi feito de bus. Ajudámos um francês que
também ia para o mesmo destino e que não percebia nem 2 palavras do que
eu dizia, o que me fez considerar a possibilidade de estarmos lixados em
França. Mas isso é um problema para os nossos eu’s futuros.

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Assim que chegámos senti-me bem por estar novamente em Barcelona. Há
qualquer coisa nesta cidade que me puxa para cá ficar. Vi uma rapariga
bonita e loura a skatar e senti imediatamente o ambiente de Barcelona
totalmente inundado pela cultura do skate. Fiquei com pena de não ter
trazido o meu mas lembrei-me que não seria prático.
O Gimbras veio ter connosco a Barcelona e o grupo aumento para cinco.
Fomos até ao apartamento que tínhamos alugado e apercebemo-nos que as
condições eram incríveis. Relaxámos na varanda do quarto andar e fomos
tratar do jantar. Fizemos umas pernas de frango com arroz, bebemos jola e
conversámos. Aí conhecemos a Neuza. O senhorio tinha-nos dito que havia
uma senhora no prédio com uma doença que a tornava muito sensível ao
ruído. Pensámos que fosse só uma peta inteligente que inventou para não
fazermos barulho mas logo a seguir ao jantar ela apareceu a pedir para
baixarmos o volume da música.

Jantámos, rimos, bazámos de casa e passámos na alimentación.


Percorremos a pé a Grand Via de Les Corts Catalanes em direção ao centro
da cidade e, por entre ruas, surgiu o MACBA a espreitar.

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Fomos até ao spot de skate mais conhecido da Europa e a energia estava
incrível. Dezenas (centenas?) de latas no pavimento em frente ao museu de
arte contemporânea de Barcelona. Vozes e risos altos eram abafados pelo
barulho ensurdecedor de rodas de skate a bater no chão.
Comprámos cerveja a vendedores de rua e sentámo-nos no curb mais baixo.
Pedi o skate a um alemão e ainda saquei um kickflip, um treflip e um bigspin
apesar da descoordenação motora do momento e dos ténis de caminhada
que usava. Imagino-me tanto a viver nesta cidade, cheia de vida, skate e
pessoas de todo o mundo.

- Esta cidade é um festival! - disse o Janito.

Entretanto conhecemos o Sami, o francês de signo leão que fazia anos.


Falámos com ele e achamos uma grande coindicência o facto de estarmos a
ir exatamente em direções opostas e nos termos encontrado a meio do
caminho: nós a tentar chegar a França, ele estava a tentar ir para Portugal.
Assim que decidimos bazar, a polícia decidiu aparecer a tirar toda a gente de
lá. Deve ser dos melhores sítios para passar a noite na cidade.

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Continuámos a andar. Do nada lembrei-me que quando estive em Barcelona
sozinho no início de 2017 tinha deixado uma tábua de skate que tinha
encontrado na rua dentro de um portão de um armazenamento de caixotes
de lixo de rua, que ficava ali perto. Pensei em ir ver se ainda estava lá. Ao
espreitar por baixo do portão vi uma outra tábua roxa e uma bola.
Quis muito. Puxei para abrir e não deu. Voltei costas e skatei com o skate de
um brasileiro que passou por ali durante uns minutos e, a seguir, tentámos
todos abrir a porta. A minha força multiplicada por cinco abriu a porta
facilmente e inesperadamente soou um alarme que nos fez panicar e correr
com a tábua e a bola numa fuga por entre várias ruas. Eles disseram que
ouviram sirenes da polícia mas eu não ouvi nada. Passeámos pelo bairro
gótico e, a seguir, fui com o Salema até mais longe. A viagem de volta até
casa foi um inferno por já estarmos tão longe, mas chegámos, comi cerelac e
dormi.

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Dia 5 // 8 de Agosto de 2018

Depois de nos despacharmos saímos do prédio. Entrámos no metro e


ficámos dez minutos a ver se valeria a pena comprar o bilhete de dez
viagens, até que uma família de ingleses passou por nós.

- Do you want some tickets?

E deram-nos 7 bilhetes. Parece que a vida, ou o que quer que seja maior do
que nós, não nos queria ali a perder mais tempo.
Almoçámos umas sandes e fomos de metro até à praia da Barceloneta.
Mergulhei no mar mediterrâneo e soube inexplicavelmente bem. O calor da
rua contrastava com a frescura quente do mar e a água parecia a de uma
piscina interior com aquecimento próprio ao ponto de só me apetecer sair e
entrar para ter aquela sensação de novo. Procurámos pedras e guardei
algumas no bolso.

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- Só sei que dissemos que íamos fazer isto e fizemos mesmo.

Tomámos duche no chuveiro da praia e fomos embora. Bebi uma cola e tive
quatro esgotamentos nervosos ao observar raparigas lindas de todos os
cantos do mundo. O Salema disse que já usou mais vezes as palavras
“ganda gata” em dez minutos em Barcelona do que num dia inteiro em
Portugal. Cinco minutos depois estava eu a vê-lo tomar banho num
bebedouro de rua.

Passeámos pela parte moderna da cidade e fomos comprar o jantar.


Comemos e bebemos em casa. Durante o jantar, ao encostar-me para trás
na cadeira, queimei um bocado de cabelo numa vela aromática e cheirou a
pipoca. Saímos do apartamento e descemos para o metro onde vimos uma
barata a comer uma pipoca. Lembrei-me do meu cabelo.

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Fomos até às Ramblas e acabámos por ir parar ao bar que uma miúda nos
sugeriu: Ovelha Negra, onde bebemos uns copos e falámos com
desconhecidos de outros países. Ouvi Arctic Monkeys pelas calles do Bairro
Gótico até chegarmos à praia. Claro que falámos com meio mundo
entretanto mas não me lembro de pormenores.

Na praia mergulhámos outra vez no paraíso, só que desta vez nus, e


curtimos as massagens que as pedras nos faziam nas costas quando os
nossos corpos deslizavam nelas ao serem puxados e empurrados pela
rebentação para dentro e fora de água. Vagueámos pelas ruas com os
calçoes molhados até que parámos numa rua e ficámos a ver relâmpagos no
céu durante meia hora. Sempre que um relâmpago se via, ouvia-se um
“ohhhh!” coletivo e vários gritos. Outras pessoas passavam sem perceber o
que se estava a passar.

Voltámos para casa de Uber. Acabo de me aperceber o quão ridículo isso foi
tendo em conta que isto é uma viagem à boleia mas, pensando bem, um
Uber pode ser considerada uma boleia paga.
Como eu, o Gimbras e o Janito chegámos primeiro que o Salema e o Gui,
que tinham a chave, ficámos num banco de rua à espera. Eles os dois
subiram e eu quis ficar mais um bocado na rua até que adormeci deitado no
banco a ouvir Arctic Monkeys. Passado um bocado um ciclista acordou-me e
perguntou-me se estava tudo bem. Durante uns segundos não fazia ideia de
onde estava. Agradeci-lhe e quando me dirigi para a porta do prédio
apercebo-me que não tenho o telemóvel e inteirei-me de que fui roubado.
Stressei. Fui dormir depois de 45 minutos a mudar passwords e, já na cama,
lembrei-me da noite anterior em que levámos a tábua e a bola que não eram
nossas.

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Dia 6 // 9 de Agosto de 2018

Acordei, stressei mais um bocado mas tivemos de fazer o checkout do


apartamento e ser pragmáticos em pouco tempo. Saímos do prédio e
almoçámos numa tenda de bocadillos.
Percebi que era uma escolha minha ficar a pensar e a lamentar-me sobre a
situação ou continuar a viagem a viver o presente, pelo que apanhámos o
metro para o centro e fui arranjar outro telefone. Enquanto o Salema veio
comigo tratar das logísticas tecnológicas, os outros foram para a Apple store
pesquisar nos Macs o nosso próximo destino. Despedimo-nos da cidade às
quarto da tarde e apanhámos um comboio para Santa Susana, um sítio com
serra à beira mar. Quase de certeza que se não mo tivessem roubado, não
teríamos vindo parar aqui.

SANTA SUSANA

Depois de uma viagem de comboio com chuva torrencial e relâmpagos em


que tivemos uma conversa com umas russas que se estavam a rir
demasiado para a piada que o diálogo teve, chegámos a um sítio que
parecia o Algarve de Espanha. Como sentimos frio comprámos uma
sweatshirt turística cada um e fomos ao LIDL comprar o jantar.
Saímos de lá e tentámos bater em portas de casas para dormir. Inicialmente
a ideia era acampar na serra mas quando fui carregar o telemóvel à receção
de um hotel o rececionista disse-me que havia cães de caça e concluímos
que isso seria uma forma muito estúpida de morrer.

Na primeira casa em que batemos apareceu um homem mal educado e


mandou-nos embora.
A segunda foi a casa da pessoa mais bondosa que conheci nesta viagem até
agora: a Anna, uma senhora já nos seus setentas que nos abriu a porta
depois de uma leve hesitação. Levou-nos para dentro de casa e deu-nos o
melhor sítio para dormir onde obtive a melhor noite de sono de toda a
viagem.
Uma cave enorme com um sofá gigante. Foi muito simpática: deu-nos
colchões e o comando do portão da garagem, que tinha porta para a cave,
para se quiséssemos sair à noite, dizendo que podíamos vir às horas que
nos apetecesse desde que não ficássemos borrachos. Cozinhámos o jantar
com o campingaz no chão da garagem e saímos à noite para passear.

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É incrível como tudo pode acontecer. Quase me custou a acreditar na
bondade e genuinidade daquela senhora. O sorriso que esboçou ao dar foi
lindo de se ver, e o nosso ainda maior. Nem sei quantas vezes disse muchas
gracias durante toda a estadia. As possibilidades, abertas. Estou cansado,
mas feliz.
O passeio noturno soube bem: brincámos num parque infantil, vimos mais
relâmpagos sentados na praia e jogámos com uma bola que encontrámos na
rua. Não levei telemóvel e não me lembrei uma única vez de pôr a mão no
bolso: estive presente. Voltámos, comemos qualquer coisa e ascendemos
para o reino dos céus e dos lençóis lavados.

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Dia 7 // 10 de Agosto de 2018

Parece que estamos nesta viagem há muito mais do que de facto estamos.
Acordámos depois de grande soneca e a Anna ofereceu-nos presunto.
Depois de arrumarmos as coisas conhecemos o neto dela, um espanhol de
dezoito anos com a voz demasiado grossa.
Fomos ao supermercado comprar o necessário para fazer sandes na praia e
uma flor cor de laranja para oferecermos à Anna como símbolo da nossa
gratidão. Ela sorriu e seguimos viagem.
Chegámos à praia, montámos uma das tendas, comemos sandes de atum e
curtimos a água mediterrânea.

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O Janito e o Gui ficaram a meditar e fui com o Salema e com o Gimbras a
um restaurante porque ele queria comer mais qualquer coisa. Roubei
maionese. A princípio isto pode parecer um ato estúpido mas a maionese de
supermercado estraga-se depois de aberta e a que está nos pacotes selados
não, pelo que mais tarde se revelou uma ideia de génio.
Voltámos e fomos à procura de sítio para dormir. Nesta viagem as maiores e,
no fundo, únicas preocupações que temos são as necessidades básicas de
sobrevivência: comer e dormir.
Depois de algum tempo a procurar casas sem ter a mesma a sorte do dia
anterior, acabámos por decidir ficar a dormir ao relento na praia e fomos
comprar frango. Para podermos ir sair pensámos em enterrar as malas
dentro de grandes sacos de plástico pretos do lixo mas acabámos por
encontrar uns arbustos em que escondemos os sacos com as malas. Noutro
saco, em separado, deixámos os nossos sacos de cama e as colchonetes
prontas para quando chegássemos e fomos sair.

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Bebemos umas cervejas e procurámos sítios para sair sem serem discotecas
turísticas, mas nada. Até encontrarmos um bar chamado Monkey Thai.
Passados uns quartos de hora paguei shots a todos.
Num piscar de olhos estamos no balcão com as bartenders, completamente
bêbadas, a despejar-nos líquidos assustadores para os copos e diretamente
para a boca. O bar estava vazio mas era como se estivesse cheio. Só se
ouvia o Gimbras a dizer

- Está muy fraco!

E elas a encherem-lhe o cocktail quase até transbordar. Não me lembro de


muito mais até à manhã seguinte.

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Dia 8 // 11 de Agosto de 2018

Seis horas depois acordo com o sol a queimar-me a pele, níveis de energia
na reserva e boca demasiado seca. Foi nesse momento que percebi o erro
que foi ter dormido na praia. Enfim, tínhamos de viver, ninguém o ia fazer por
nós.
Passámos esse dia num loop. De quinze em quinze minutos o calor tornava-
se insuportável, íamos mergulhar e voltávamos para a areia. Apanhar pedras
bonitas da rebentação e comer. Almoçámos num restaurante, vimos uma
gata grávida e um senhor, dono de um cão a quem fui fazer festinhas, disse-
me que podíamos ficar a dormir em casa dele se passássemos por
Montpellier, em França.
O Gimbras só podia viajar connosco durante aqueles 4 dias e, depois do
almoço, apanhou comboio em direção ao aeroporto e nós apanhámos outro
em direção ao desconhecido.
Depois do turismo algarvio que sentimos vivo em Santa Susana, decidimos ir
para uma vila medieval chamada Tossa, simplesmente porque chamou à
atenção. No dia anterior tinha visto o nome numa banca turistica de praia e
quando perguntei à senhora se valia a pena no meu espanhol
aportuguesado, ela disse-me que sim.
Todos os dias traçamos o plano desse dia e não fazemos ideia do que vai
acontecer a seguir. Acho que, por isso, nos sentimos mais presentes:
estamos constantemente a ver coisas novas.
Eu e o Gui ouvimos músicas de phones, coordenando-as ao mesmo tempo
nos dois telemóveis, aumentando o volume ao ponto de não termos nenhum
estímulo sonoro de fora e dançámos e saltámos na estação.
Apanhámos o comboio e, em Blanes, trocámos para um bus. Chegámos a

TOSSA DE MAR.

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Talvez por intuição, perguntei a um taxista sítios bons para acampar e se
havia caça, como em Santa Susana. Ele disse que ali era tranquilo e falou-
me de um sítio lindo chamado Cala Bona. Explicou-me que pescava nos
tempos livres e que ali era o seu local de eleição.

- Cuando te despiertes por la mañana y salgas de la tienda, dirás "¡puta


madre!”.

Aquela descrição bastou para decidirmos ir.


Fizemos compras grandes para fazer o jantar daquela noite, almoço e jantar
seguintes e apanhámos um taxi porque estava a escurecer e o sítio ficava a
uma hora a pé do centro da pequena cidade turística.
Saímos do táxi e descemos um trilho no meio do nada à procura de um sítio
para montar as tendas. A escuridão impossibilitava que percebessemos a
geografia do local, só sabíamos havia arribas por perto porque
conseguíamos ouvir o mar a bater nas rochas lá em baixo. Não fazíamos
ideia para onde ir.
Subitamente uma luz saltou-nos à vista do meio da escuridão. Uma voz,
atrás da luz, indicou-nos o caminho para contornar as arribas e chegar até ao
outro lado, onde o taxista nos tinha indicado como o sítio perfeito para pôr as
tendas.
Encontrámos um sítio plano no topo de uma pequena península ladeada por
arribas e, enquanto uns faziam o jantar, os outros montavam o abrigo. Por
causa do escuro não conseguimos perceber mais do que algumas sombras e
o som do Mar Mediterrâneo a bater nas arribas. Estávamos alto.
Fomos dormir cedo à espera de ver a extensão de mar de manhã, através da
abertura da tenda, e poder dizer “¡puta madre!” como o taxista.

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Dia 9 // 12 de Agosto de 2018

Todos os dias acordei com o Gui a acordar. Ele mal desperta levanta-se e
começa a viver, em vez de demorar uns minutos a iniciar as funções do
corpo como o resto das pessoas normais.
Acordei com calor num espaço minúsculo com o Salema ao meu lado. A
tenda estava cheia de luz e lembrei-me de onde estava. Abri o fecho, saí e
levantei-me. Ainda com os olhos esbugalhados vi um azul forte que se
estendia por kilómetros sem fim até ao infinito. O céu estava limpo e de um
azul mais claro. Olhei em volta e vi uma imensidão de árvores e arbustos
numa paisagem dominada pelo azul, o verde e o amarelo-terra. Inspirei.

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Meditei com o Gui. Demos um passeio pela serra que habitávamos e
comemos cereais. Um polícia vestido com roupa de atletismo passou pelo
trilho que atravessava o nosso camping e disse-nos que estávamos a
interromper o caminho mas nós estávamos mais preocupados em conseguir
acordar o Salema.
Arrumámos as coisas, pusemos as malas noutro sítio e descemos da colina
para mergulhar no braço de mar que entrava pelas arribas adentro criando
uma zona paradisíaca com água de um azul-esverdeado transparente.
Mergulhámos. Nadei tranquilamente a olhar para o fundo com os olhos
abertos debaixo de água. Vi um francês a usar óculos de mergulho e fui
pedir-lhos. Nunca tinha respirado pelo tubo de uns óculos de mergulho
durante tanto tempo como neste dia. Vi peixes e senti-me parte daquele
ambiente aquático que me envolvia.
Mais tarde almoçámos uma salada de atum com grão e adormecemos todos
à sombra passageira de uns pinheiros.

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Quando acordámos montámos as tendas, preparámos o jantar e comemos.
Antes de escurecer totalmente subimos até ao topo da colina e já mal
conseguia distinguir as feições da cara dos outros.

Ouvi a Flight of The Navigator do Childish Gambino e refleti durante um


bocado sobre como é que tinha chegado ali. Não foi nada planeado ao
pormenor, ao contrário: a uma constante aceitação das oportunidades que
vinham na nossa direção. Fomos todos dormir.

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Dia 10 // 13 de Agosto de 2018

Acordei depois de um bom sono e comi uns cereais na mesma taça que o
Janito. Fizemos isto várias vezes para poupar louça.
Meditei sozinho em cima da minha toalha dobrada, colocada num tronco de
uma árvore que formava um banco natural. Senti-me calmo e focado depois
de vinte minutos sentado a respirar e foi palpável a diferença que teve na
minha disposição durante esse dia. Por estar mais atento aos impulsos que
cada situação criava em mim, e por ter maior controlo sobre os mesmos,
reagi muito menos a tensões, emoções negativas, conflitos e pequenas
coisas que poderiam desencadear reações maiores. Passar tanto tempo com
amigos também tem um lado menos bom: irritamo-nos facilmente uns aos
outros. E várias vezes, em certos pontos da viagem, sentia tendência para
discutir. Meditar ajudou-me a reconhecer quando esses momentos estavam
prestes a acontecer e não reagir aos impulsos.

Por vezes esqueço-me que o mais importante na meditação é reconhecer os


momentos em que a mente se distrai como vitórias, por perceber que tal
aconteceu, e depois voltar ao objeto de atenção, em vez de sentir que falhei.
A meditação é este início constante porque não é suposto chegar a lado
nenhum.

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Tínhamos decidido deixar Cala Bona neste dia por isso fomos dar o último
mergulho, e que bem que me soube. Senti a água no corpo e este a fluir
subtilmente pela massa líquida. Dei uns mergulhos e boiei um bocado.
Rejuvenesceu-me e depois fomos arrumar as coisas para iniciarmos uma
caminhada até ao centro de Tossa, onde tomámos banho nos chuveiros da
praia (o Janito lavou os dentes), comemos e procurámos maneira de chegar
a Girona.
Fomos até uma gasolinera. Pedi boleia a um condutor de um jipe e ele disse
que não ia nessa direção. Um BMW branco parou na bomba e o Janito
chamou-me à atenção para isso.

Numa viagem (vida) como esta não nos podemos dar ao luxo de perder
oportunidades por constrangimento ou desconforto e, portanto, não pensei
duas vezes. Fui falar com a senhora que saiu do carro.
Confesso que, depois de todo o falhanço que foi tentar apanhar boleia em
Guadalajara, não estava à espera de grande resposta da parte dela e achei
que ia ser só mais uma pessoa que não ia nessa direção. Mas ela sorriu e
disse que ia, e subitamente abriu-se uma possibilidade.

Perguntou quantos éramos e, tendo exatamente quatro lugares, metemo-nos


pela estrada fora com a segunda Anna que conhecemos. É uma catalã
bonita de quarenta e sete anos, que se revelou a pessoa mais bondosa com
que nos cruzámos nesta viagem.
Conversa, conversa, risos, conversa.
Disse que disse logo que sim porque não resistiu ao meu sorriso quando a
abordei e aí achei ter hipóteses até, mais tarde, ela falar no marido.
Contámos-lhe a nossa história e, assim que lhe falámos que andámos a
bater a portas, apressou-se a oferecernos casa para ficar. É inacreditável a
confiança que teve em nós. Levou-nos até

CASSÀ DE LA SELVA

onde tinha um apartamento que estava a vender. Disse-nos que, se


quiséssemos, nos podia levar a Cadaqués no dia seguinte porque tinha de ir
lá levar umas almofadas que vendia.

Ajudámo-la a carregar o carro com coisas das mudanças e senti que nos
ajudámos mutuamente, não por obrigação, mas de uma forma totalmente
espontânea e natural. Como se não bastasse confiar-nos a chave do carro
para o carregarmos enquanto ela arrumava coisas em casa, bem como a
chave de casa e nos deixar sozinhos durante essa noite, fez questão de nos
cozinhar um jantar cheio de presunto em cima de pão com tomate, pinchos,
botifarras e outras salsichas com nomes estranhos. Comprámos o pão e
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bebida e ela quis pagar a carne toda. Para não falar de que nos fez uma
quantidade animalesca de comida. Ficámos gratos. Jantámos no terraço da
sua casa, num final de tarde que pintava tons alaranjados no céu.
Não jantou connosco porque o marido ia chatear-se e voltou de manhã para
nos levar a Cadaqués.

Dia 11 // 14 de Agosto de 2018

Pela primeira vez na vida fui acordado pelo Salema, que em todas as
ocasiões em que dormimos no mesmo sítio é o último a sair do saco de
cama.
A Anna chegou bem cedo, antes das oito, e pusemo-nos a caminho. Falámos
sobre a independência da Catalunha, mostrámos-lhe música e ela falou-nos
do seu sonho. Contou-nos que se fartou de trabalhar e que quer agora abrir
o seu Hotel “para ricos”, limitado, no centro de Tossa, daí nos termos
encontrado naquela bomba de gasolina. Achei boa ideia e fiquei contente por
ver alguém que não é propriamente jovem a deixar o trabalho que não a
preenche e fazer o que realmente quer.

CADAQUÉS (droga?)

As estradas longas e planas transformaram-se em estradas às curvas muito


acima do nível do mar e paisagens montanhosas e verdes apareciam nas
janelas do carro. Estávamos a chegar a Cadaqués. Fica numa pequena
península mesmo no sítio onde os Pirinéus acabam e começa o
Mediterrâneo. Chegámos a uma vila numa baía com uma paisagem ridícula
e cores surreais, onde Salvador Dalí viveu grande parte da sua vida.

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Depois de bebermos um café com a Anna e nos despedirmos dela com
abraços fortes e lhe agradecermos por tudo do fundo do coração fomos
visitar a casa do pintor surrealista.
Nutro interesse por design de interiores e fascinaram-me as ideias fora da
caixa que ele teve para a casa: colocou um espelho inclinado numa parede
em frente à cama especificamente para poder ver o sol a nascer ao acordar.
E tinha um urso verdadeiro mumificado no hall de entrada.

“The difference between me and a madman is that i’m not mad.”

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Depois da visita fomos a pé em direção ao centro, como sempre com as
malas pesadíssimas às costas, e vimos a água límpida e transparente da
praia. Enquanto nos deliciávamos com a frescura do mar o Janito tirou areia
do fundo do mar, pô-la na cara e pôs-se a mover-se lentamente só com a
cabeça de fora. A cor negra fez com que parecesse um soldado a aproximar-
se lentamente da praia prestes a iniciar a ofensiva. Fiz o mesmo e ficámos
com areia nos olhos.

Fomos às compras e fizemos uma feijoada sentados no chão. Pessoas


passavam e julgavam-nos mendigos mas nós estávamos longe de querer
saber. Passámos a tarde na praia linda daquela vila ventosa. Lavámos a
louça com a água dos nossos cantis e com detergente. Mergulhámos e
relaxámos sem ter nada para fazer até que o nível de conforto do Salema
atingiu o seu apogeu quando ele adormeceu na areia da praia que era
composta de pedras, usando uma das maiores que encontrou como
almofada.

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Saímos da praia, fomos comprar frango para cozinhar e passámos uma hora
a bater a portas de casas, pedindo jardim para montar as tendas. Não
conseguimos nada mas um homem quis ajudar-nos e saiu de casa descalço
para nos mostrar um sítio ali perto que era bom para acamparmos sem
sermos vistos. No meio de oliveiras e arbustos, construímos um fogão de
xisto para proteger a chama do campingaz, cozinhámos o jantar, comemos e
fomos dormir.
Ficámos ainda uma hora a conversar os quatro, já com as tendas fechadas e
cada um no seu saco de cama. Tínhamos ouvido uns barulhos mas
pensámos ser só o Transmuntana, o vento forte que soprava e que passeia
constantemente por todo o norte da Catalunha. Mas a certo ponto ouvi o que
me pareceu o roncar de um porco. Abri a tenda, levantei-me e apontei uma
lanterna. Javalis. A mim pareceram-me inofensivos e até me deu vontade de
fazer festinhas mas o resto da malta teve medo que nos atacassem e achou
melhor fecharmo-nos nas tendas. Achei ridículo e, dentro da tenda, fui ver à
internet e consta que há mais ataques de javalis a ser humanos do que de
tubarões.

Adormeci com barulhos de porcos falsos e acordei várias vezes durante a


noite acreditando que estava dentro de um avião com demasiada turbulência
quando o vento empurrava as paredes da tenda sem misericórdia.

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Dia 12 // 15 de Agosto de 2018

Acordei com o vento e comemos uns pêssegos e croissants de chocolate.


Tenho-me esquecido de referir que literalmente todos os dias sem exceção
comemos pelo menos dois pêssegos do Paraguai cada um e ainda não me
fartei. Fomos dar um último mergulho à praia, lavámos a loiça do jantar de
ontem no chuveiro, comprámos almoço e fomos tentar apanhar boleia para
Figueres, um sítio que a segunda Anna nos tinha sugerido.
Quando estávamos em Tossa de Mar decidimos que já não fazia sentido
continuarmos a tentar chegar a França porque só nos restavam mais alguns
dias de viagem. A este ponto o nosso objetivo era chegar a Bilbau, ficar lá
uns dias e depois apanhar um bus para casa.
Estivemos algum tempo a torrar ao sol enquanto segurávamos novos
cartazes com o nome do novo destino. Mais de uma hora e meia à beira da
estrada não nos rendeu nenhuma boleia e, desmotivados e sem energia,
fomos fazer o almoço sentados à sombra no chão de uma rua. Fizemos as
saladas no prato de cada um, comemos e rimos de coisas parvas.
Interessante como termos comido e descansado durante uns momentos
intensificou-nos notavelmente a boa disposição. Confiantes, fomos tentar
outra vez.

Quero só fazer um parêntesis para referir que desde que chegámos a


Cadaqués eu e o Salema temos repetido em diversas situações
“Cadaquésdroga?” só porque é estúpido e tem piada. Foi com o Salema que
eu aprendi a rir das coisas mais estúpidas e, às vezes, é o que nos salva.

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Em vinte minutos o Gui e o Janito apanharam uma e eu e o Salema
apanhámos outra passados 40 minutos. O segredo é não desmotivar e
acreditar que vai aparecer alguém.
Apanhámos boleia de um catalão nos seus vinte e muitos anos, de óculos de
sol, que trabalhava nos barcos em Cadaqués e que ia até Figueres buscar
umas coisas a casa e a seguir ia ter com a namorada para folhar. Perguntei-
lhe o que fazia normalmente depois do trabalho e ele disse, com um sorriso
“fumar e folhar!”

Quando chegámos ao destino ele parou o carro e disse-nos que ia só buscar


uma coisa a casa. Ficámos desconfiados até que o vimos a voltar a pé com
três cervejas na mão. Brindámos naquele calor e depois deixou-nos ao pé do
Museu do Dalí que eu, o Janito e o Gui fomos visitar. O Salema percebe um
nada de arte nem acho que tenha muito interesse, visto que a melhor parte
da Casa do Dalí, para ele, foi descobrir que tanto ele como o artista usavam
o mesmo champô da Johnson’s Baby, pelo que foi sozinho ao McDonnalds e
aos Montaditos comer tapas e beber cerveja.

Saímos do museu depois de uma lufada de cultura e deparamo-nos com o


Salema meio tocado sorridente a olhar para nós. Fomos todos comer e
beber. Estivémos constantemente, em toda a viagem, a fazer sinfonias com
diferentes sons e batuques que nos faziam sentir uma pequena orquestra.
Fizemos uma dessas na esplanada em que estávamos.

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Já escuro, tocados, precisávamos de encontrar um sítio para dormir e vimos
nos mapas uma área verde próxima. Pusemo-nos a andar na direção da
mesma mas ao chegar lá percebemos que estávamos demasiado expostos.
Com a mesma estratégia encontrámos outro sítio para dormirmos, um
parque mais selvagem onde nos deitámos ao relento, sem tenda, e
adormecemos.
Acordei com a luminosidade do nascer do dia a espreitar por cima da linha
do horizonte e voltei a dormir.

Dia 13 // 16 de Agosto de 2018

Acordei depois de noite de sono mais confortável do que esperava,


arrumámos as coisas, comemos numa padaria e fomos tentar apanhar boleia
para Olot ou Lleida, ambos sítios a caminho de Saragoça, que ficava entre
nós e Bilbau.

Eu e o Salema, de cartaz na mão e sorriso na cara, apanhámos boleia tão


rápido que nem deu tempo para nos aborrecermos ou para sentirmos
cansaço nas pernas. A sensação de conseguir uma boleia é tão satisfatória
mas contrasta totalmente com a frustração que facilmente nos invade
quando esperamos horas em vão. Nunca se sabe. O Felipe ia a Olot visitar
os pais e levou-nos de bom grado. Até se ofereceu para nos mostrar alguns
pontos interessantes daquela zona quando lhe dissemos que era mais difícil
ver todos os sítios bonitos quando se está a viajar à boleia.

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Para nossa surpresa ofereceu-nos almoço em casa dos pais dele e
comemos um peixe no forno que a mãe nos preparou na companhia do
Lucky, o cão que fazia anos. Só conseguíamos olhar um para um outro e
sorrir pela probabilidade da situação.
Enquanto o Gui e o Janito chegavam a Olot noutra boleia, fomos dar uma
caminhada com os nossos dois novos amigos até à cratera de um pequeno
vulcão inativo nas paisagens verdes e calmas de Olot. Toda aquela zona é
vulcânica e eles tinham um vulcão praticamente no pateo trasero.

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Encontrámos o resto da malta e o Felipe levou-nos de carro a ver uma aldeia
em cima de uma rocha chamada Castellfollit de la Roca, andar pelas ruas
medievais de Besalú e mergulhar num lago gigante ali perto.
Depois deixou-nos numa saída da cidade para apanharmos boleia e
rapidamente conseguimos quatro lugares para Vic com o Paul, um asiático
que gosta de viajar de carro, sozinho. Fomos apertados com as malas e
vimos as montanhas de Montserrat.

Já em Vic, localidade cujo nome nunca tínhamos ouvido na vida, apanhámos


boleia para Manresa, outra incógnita, numa carrinha que também nos levou
aos quatro. Chegámos à cidade industrial no meio do nada e a luz do dia não
durava muito mais tempo: tínhamos de assegurar as necessidades básicas.
Fomos comprar outra feijoada e arranjar sítio para dormir. Primeiro
ponderámos ficar ao lado de uma casa abandonada mas a ideia dissipou-se
quando percebemos que, depois de escurecer, todas as casas abandonadas
se tornam muito mais assustadoras.

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Encontrámos um descampado com algumas canas a um canto. Não havia
espaços verdes naquela cidade então acabámos por montar as tendas ali
mas, como estávamos muito expostos e é proibido acampar na rua em
Espanha assim sem mais nem menos, arrancámos algumas canas e
encostámo-las às tendas para as camuflar.

Jantámos e fomos deitar-nos num passeio ali perto a olhar para o céu.
Ouvimos algumas músicas do Damn. do Kendrick Lamar e conversámos
sobre como é boa a sensação de andar assim à deriva, ao sabor do vento.
Depois de algumas risadas fomos dormir.

O Salema queria ter usado o gás pimenta, que trouxe de casa, no que quer
que seja que fez barulho nos arbustos perto das nossas tendas mas,
infelizmente, não teve oportunidade.

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Dia 14 // 17 de Agosto de 2018

Acordámos cedo e arrumámos as tendas rápido para não correr riscos.


Comemos e fomos ao ALDI pedir para lavar a loiça. Comprámos almoço. O
resto da manhã e início da tarde foi passado a tentar apanhar boleia para
Lleida. Falámos com pessoas, esticámos os cartazes, sorrimos até nos doer
as bochechas mas nada. A única boleia que conseguimos foi para uma
bomba de gasolina ali perto.

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Continuámos na nossa busca pela boleia mas, novamente, ninguém com
quem falámos ia para Lleida, nem nessa direção, o que nos desmotivou e
trouxe ao de cima todo o cansaço do mundo que tínhamos vindo a acumular.
Neste momento estava sozinho com o Salema e começámos a falar sobre
acabar a viagem ali. Ele não queria desistir, eu estava reticente e enquanto
falávamos disto o Gui e o Janito, que estavam ali perto a falar com pessoas,
apareceram e contaram-nos que tinham estado a pensar na mesma coisa.

Falámos entre todos e concordámos que já estávamos cansados e que


estava a ser impossível sair daquela cidade industrial. Decidimos que a
viagem acabava ali. O leitor talvez esteja a pensar em como seria
interessante que não houvesse um ponto final tão abrupto para esta história,
mas às vezes é preciso saber quando largar algo que já deu o que tinha a
dar.

Parecendo que não, viajar à boleia é cansativo. Desde o peso que levamos
connosco às costas até à constante atenção que temos de ter focada no
momento para tratarmos do que é essencialmente preciso. Mas por outro
lado sentimos uma liberdade viciante que, a meu ver, se aproxima de uma
sensação de urgência, de sobrevivência urbana, sem a possibilidade de
morrer por não ter comida para essa noite ou por não encontrar um sítio para
dormir, porque há sempre um supermercado ou um hostel por perto.

No nosso quotidiano temos estas necessidades básicas asseguradas: a


fome não é para nós um problema como é para outros animais, e é fácil
esquecermo-nos que, no fundo, só precisamos disso. Ao sair da zona de
conforto e viver uma realidade nómada com tendas às costas e latas de atum
nas mochilas, aproximamo-nos da nossa natureza e os problemas que
criamos nas nossas mentes tendem a desaparecer. Estamos mais presentes.

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O plano era não haver plano, mas queríamos chegar a França. O trajeto
acabou por ser muito mais curto do que esperava, tinha expectativas para
mais e seria até fácil aborrecer-me com isso. Mas há uma frase que diz

“É o falhanço em atingir uma idealização nossa que nos torna, ultimamente,


em quem somos.”

E, por isso, estou satisfeito. Esta viagem foi o que foi.

Divertimo-nos, rimos e vimos coisas diferentes. Apesar de algum stress, as


coisas desenrolaram-se sempre naturalmente bem. Foi uma experiência
nova que permitiu expandir a minha perspetiva em relação à realidade que
vivo e que me mostrou o poder das possibilidades: certas coisas, afinal, não
são assim tão impossíveis. Soube bem carregar todo este peso às costas.

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Texto, fotografias e edição: Miguel Luz

29/11/2022

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