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Prólogo: Local extravagante de gente extravagante.

DIA 25/1

Segunda-feira

8:00

Por mais que ainda fossem férias, a sensação depreciativa da mudança se sobressai sobre a
minha felicidade do verão, não que eu precisasse arrumar as malas nem nada, tudo já estava
devidamente arrumado. Mas ainda assim, ver o meu quarto vazio com apenas um colchonete
jogado no chão, bem lá no fundo, transmite um sentimento estranho de despedida e falta. Eu
não sou exatamente a pessoa mais analista, eu acho, mas as vezes é interessante fazer esses
exercícios mentais, pode ser que você perceba que sua vida é mais complexa do que você
pensa.

Mas quem liga no final das contas? Minha casa? Amigos? Família? Naaaah irmão, EU VOU
MORAR SOZINHO, mais ou menos.

- Fernando – chamou a voz da minha tia, ela estava me esperando do lada de fora para sair.

Depois de pegar a minha mala, saio do meu quarto e vou até a sala de casa, encontro com
minha tia, e juntos vamos para o aeroporto.

14:00

Eu queria ter o conhecimento a respeito de um fenômeno, e ele se chama a Inflação dos


Aeroportos. Se eu fosse tentar justificar os preços pecaminosos das coisas do aeroporto, eu
diria que é para os estrangeiros caírem na armadilha do Brasil, mas infelizmente eu tenho
certeza que deve ser alguma baboseira política por trás disso, que sinceramente, eu não estou
muito interessado em saber não. Manter minhas teorias férteis parece o melhor caminho para
mim, elas são mais divertidas, vamos concordar.

Após um tempo esperando, finalmente posso embarcar. Pego minha mala que não teve
necessidade de despachar, me despeço de minha tia, e entro.

17:00

Já em pleno voo, gasto meu tempo passando pelo catálogo de filmes que o avião
disponibiliza. Enquanto eu olhava as opções que eles davam, me passou o pensamento pela
cabeça de que, com dinheiro que eles devem ganhar, bem que eles poderiam comprar os
direitos de alguns filmes melhores. Não que eu esteja reclamando nem nada, afinal é apenas
um Bônus, e além disso eu poderia baixar algumas coisas para assistir antes de entrar no voo.
Só que existe um incômodo besta meu, me incomoda muito a possibilidade do colega ao meu
lado, por algum motivo, querer ficar de olho bobo no meu celular sem eu notar. Pode parecer
besteira, mas exibições a parte, eu tenho um instinto natural muito bom para saber quando
alguém está me olhando, e isso é muito chato.
Uma vez, bem no início do meu fundamental, tinha uma garota que eu acho que gostava de
mim. Ela costumava me olhar enquanto eu estava de costas, só que eu sempre olhava ela de
volta quando eu sentia algo, eu não entendia exatamente a situação, então eu ficava
encarando fixamente ela de volta. Algumas semanas depois ela pediu para trocar de sala.

21:00

Finalmente em território Paulista. Posso afirmar que quase todo aeroporto é semelhante, são
todos uma espécie de shopping reduzido e bem mais caro, digo isso tendo visitado uns 4 no
total em meus 16 anos de vida, minha família nunca foi muito de viajar.

Saio da área de desembarque e fico olhando para o salão de espera, procuro pelo meu tio no
meio das pessoas, até que finalmente o vejo acenando para mim.

O tio Francisco não é meu tio de sangue, ele é um amigo do meu pai que foi morar em
Santina, a cidade que eu acabei de me mudar. Ele era um homem adulto e alto, com um
sorriso simpático a mostra acompanhada de sua barba ainda a fazer. Eu gostava
principalmente de sua calvice a mostra para todos, era como se ele quisesse mostrar para a
sociedade que ele não havia nada para esconder, assim como sua barriga.

A gente sai de dentro do aeroporto e vamos em direção ao estacionamento, lá estava a


caminhonete dele a espera para nos levar até sua casa, entramos no carro e ele dá a partida.

O clima da noite que pairava sobre um estacionamento vazio a céu aberto era menos sinistro
do que eu imaginaria, até que a visão da Lua vermelha era bonita dali, na minha antiga cidade
não dava para enxergar a Lua escarlate muito bem.

O carro andava pelas ruas noturnas daquela cidade nova, a movimentação de veículos estava
fraquíssima devido ao horário. Durante o nosso percurso era interessante olhar a estrutura de
um lugar que eu nunca estive, ruas estreitas com uma vegetação até que considerável nas
calçadas, casas variantes de pequenas residências coloridas até casarões de estruturas
tipicamente portuguesa. No percurso consegui reparar que já haviam algumas decorações pré-
prontas para o festival, as cores já vibravam até mesmo na noite.

- Foi tranquila a viagem? – Titio perguntou, para quebrar o silêncio.

- Sim senhor, eu assisti uns filmes que tinham no avião, então passou que eu nem vi.

- Assistiu o quê?

- Comando para Matar, aquele do Schwarzenegger.

- Ah sim, eu conheço, nessa época aí é que se fazia filme bom de verdade, sabia que eu vi o
primeiro Guerra nas Estrelas no cinema?

- O Senhor gostou das prequels?

- Das o quê?

- Os filmes que contam o passado.

- Ata, odiei esses, o terceiro até que é legal, mas espero que não tenham mais filmes.
A conversa se silenciou por ali, eu não tinha muito mais o que puxar de assunto, então achei
bem valido a gente ter mantido o silêncio, além disso a calmaria noturna me agradava. Então
graças ao nosso pacto de silêncio mental, se seguiu uma viagem bem tranquila até o destino
do carro, enquanto isso eu podia observas as luzes da noite. Senhores e senhoras com suas
cadeiras na rua conversando sobre suas memórias, casas noturnas com sons abafados que
podiam ser ouvidas de longe, além de vários bares sem previsão de fechar.

22:00

Chegando no destino, pude ver que adentramos uma parte mais nobre da cidade, o bairro era
bem bonito, assim como a casa. Então acho que se eu não souber administrar meu dinheiro
muito bem nesse tempo, o tio Francisco pode me emprestar uns trocados para eu não morrer
de fome. Já dentro da casa, o tio me mostrou onde estava o quarto de visitantes, ele me deu
boa noite e disse que o banheiro ficava no segundo andar e que se eu estivesse com fome, eu
poderia abrir a geladeira e pegar alguma coisa.

O quarto era simples e aconchegante, uma cama, um armário e uma janela com cortina que
dava para o quintal. Botei minhas coisas no chão e só me joguei na cama, cansado da viagem e
me questionando se eu deveria ou não tomar um banho, mas o peso dos olhos foi maior que o
peso da consciência, liguei o ventilador e entreguei minha mente para os carneirinhos.

00:00

Acordo de repente com uma fisgada no coração, eu estava suando um pouco mesmo com um
ventilador na potência máxima. A sensação que eu tive era como se um anzol tivesse se
prendido no meu coração e puxado ele para fora. Olho ao redor do quarto, e nada, olho para o
quintal, e nada, foi uma sensação muito estranha, era algo parecido com a minha sensação de
ser observado, porém muito mais amplificado. Esquecer aquilo e voltar a dormir parecia o
melhor a se fazer, mas antes eu precisava lavar o meu rosto suado. Subo assim como indicado
pelo tio e lá encontro a porta do banheiro aberta, assim me esbarro com outra residente da
casa. Era uma garota que devia ter minha idade com um moletom, devia ser minha prima. A
gente se acena envergonhadamente e ela entra de volta para seu quarto, lavo meu rosto e
volta a dormir.

DIA 26/1

Terça-feira

7:00

Logo ao acordar subo para o banheiro, na escada consigo ouvir que o restante da família do
meu tio já estava na mesa da cozinha, mas antes, eu necessitava de um banho, preciso dar
uma boa primeira impressão. Após me arrumar e colocar minha roupa favorita, eu desço para
tomar café com eles, a cozinha ficava na parte de baixo e era consideravelmente grande. Na
mesa, meu tio tomava café com leite junto de um pão, ao lado dele, uma mulher que julguei
ser minha tia se contentava com um simples café preto.
Olha, talvez o meu tio tenha sido mais bonito na juventude dele, porque só assim para
explicar a beleza da filha dele, ou talvez a titia tenha segurado toda a barra, não sei. Agora
conseguindo ter uma visão completa da garota com que eu me esbarrei ontem, pude ter
certeza que ela realmente tinha uma idade similar a minha. Seus longos cabelos castanhos se
assimilavam ao da mãe, seu par de olhos negros eram iguais ao do pai, e sua pele branca foi
advinda de ambos. Algo interessante que consegui reparar é que a pele dela não parecia ser
muito fã de sol, pude perceber pelo seu rosto e mãos, porque todo o rosto estava escondido
por debaixo de seu moletom, suas olheiras eram um tanto chamativas, mas não interferiam
como um todo.

- Bom dia – Disse o meu tio.

- Bom dia – Respondi rapidamente, de um modo que fosse direcionado a todos na mesa.

A minha tia me respondeu com um sorriso agradável, enquanto a garota que estava em pé
esperando sua torrada apenas acenou, acenei de volta. Me sentei na mesa e fiquei observando
a fartura que estava na minha frente.

- Não precisa ter vergonha de se servir não, tá Fernando? Pode comer á- vontade – Disse a
titia.

- Sim senhora, qual o seu nome? – Perguntei

- Amanda.

- Muito obrigado pela recepção.

- Relaxa, tu tá em casa, a gente vai te tratar como se tivesse em hotel chique até você se
mudar, antes de você ir a gente pede a conta – Disse o Tio Francisco num tom bem relaxado e
alegre, rindo logo após seu comentário cômico, eu não consegui não sorrir de leve.

- Você vai morar no Campus né? Já se decidiu entre o masculino ou o Unissex? – Perguntou a
garota enquanto se sentava com sua torrada já no prato.

- Masculino eu acho, posso-lhe chamar de? – Perguntei envergonhado.

- Liliam, mas pode me chamar de Lili. Eu quis saber por causa dos problemas com o unissex.

- Que problemas?

- As garotas não querem dividir o prédio com os garotos, e agora que as garotas não vivem
mais lá, a maioria dos garotos voltou pro masculino. Agora quem sobrou por lá vive como uma
facção que comando o Unissex.

- Lá é grande? O dos dormitórios normais?

- São 3 prédios separados para o segundo ano, os quartos são até que bons, você só precisa se
preocupar com o barulho dos seus colegas a noite. Vou te dar uma dica que um amigo meu me
falou, nunca denuncie o que acontece por lá, ou você vai ser marcado para sempre.

- Nem os dormitórios normais escapam? Selvagem.

- Poisé né? Irado! Eu que queria me mudar para o feminino, mas a mamãe não deixou.

- Tudo que você falou agora não me ajudou muito a mudar de opinião – Respondeu Amanda.
- Desculpa – Liliam ficou calada e começou a olhar apenas para o seu prato, ela parecia com
vergonha.

Com os 3 juntos na mesa, aproveitamos a refeição calmamente. Após o fim do café o tio
Francisco levou a Lili para a casa de uma amiga, e acaba que sobrou eu e a senhora Amanda na
casa. Para me aproximar, decidi ajuda-la com a louça.

- O que achou da cidade? – Perguntou ela.

- Pelo pouco que eu vi, ela é bem animada né? Eu tava um pouco cansado da viagem, então
não reparei em tudo, mas no que eu consegui eu gostei bastante.

- Uhum, normalmente é assim mesmo, mas agora que os preparativos pra festa estão
começando, pode se preparar pra ver uma cidade que não dorme, essa vai ser sua primeira vez
né?

- Vai, eu sempre via a Fiesta de Los Muertos na televisão, parece que fica bem bonito quando
começa de verdade.

- Nossa, como eu queria ter a sua idade pra poder andar por aí, andar sem medo de me cansar,
namorar e dançar, bons tempos. Olha, se eu fosse você eu aproveitaria bastante, poxa cara,
você vai morar sozinho sendo adolescente, você tem noção que você está realizando o sonho
de muita gente da sua idade? – Dizia ela num tom bem animado.

- Vou aproveitar sim, pode deixar, e poxa a senhora nem parece velha, eu diria que a senhora
tem no máximo 47.

- 40 – Disse ela, uma pouco desanimada.

- Ah...

- Por quê você não vai dar uma volta? Conhecer a cidade, você pode pegar o Metrô.

- Posso pegar o seu número caso eu me perca?

A senhora Amanda me passou o número dela, e depois disso ela me levou para estação de
metrô, ficava ali por perto, deu para ir a pé.

9:00

A experiência de pegar metrô pela primeira vez foi interessante, é mais confortável que um
ônibus comum, só que um tanto mais depressivo. Talvez a minha opinião a respeito do
conforto mude, se numa próxima e infeliz vez eu não conseguir um acento, ao menos eu não
preciso me preocupar em puxar a cordinha de parada, só precisei me sentar e me apoiar na
bolsa que eu levei.

Depois de descer na estação de la Plaga fiquei um tempo andando ali por dentro. A estação
de la Plaga era ambiente subterrâneo bem cheio, para onde eu olhava possuía lojas e entradas
para outros lugares, e muitas escadas, muitas escadas mesmo. Cada subida dava para um lugar
diferente com um nome que eu desconhecia, e por isso eu achei melhor me concentrar no
meu objetivo, que era chegar no centro de Santina. Após um tempo caminhando e esbarrando
em diversas pessoas apressadas, eu finalmente consegui achar a escadaria que dava direto
para a praça do Centro.
Acho bom dizer antecipadamente que a minha cidade não era muito... como podemos dizer,
‘’colorida’’, logo não me julgue com o quão impressionado eu fiquei com a revelação que a luz
do final da escadaria me fez. O centro era lotado, tipo, bem lotado, ele gritava cores vibrantes,
sejam dos preparativos da festa, das pessoas que andavam em direções paralelas com seus
celulares em mão, algumas com pinturas e outras não, todos se esbarrando uns nos outros
sem nem ao menos perceber, outdoors, vendedores ambulantes com balões de figuras que eu
desconhecia, telonas com seus anúncios em cima de prédios e muita música alta, tanto de
dentro das lojas quanto dos artistas independentes. Vendo tudo, isso eu necessito admitir que
foi uma visão impressionante, impressionante o suficiente para eu ficar uns bons 20 segundos
encarando a paisagem. De repente, eu sinto um flash de foto direto na minha cara, boto a mão
na direção do rosto devido ao susto.

- O nome dessa aqui vai ser, ‘’The Foreigner’’ ou que tal ‘’The First Surprise’’ – Disse a
fotógrafa.

- Oi? – Questionei confuso, ainda com a mão no rosto.

Depois que o susto passou, parei para olhar a garota da câmera. Provavelmente da minha
idade, pele negra e cabelo crespo curto, porém volumoso para cima, vestida de camiseta social
branca e calça jeans, eu diria que ela estava bem apropriada para o clima tropical.

- Você não se importa com essas invenções de direito de imagem não né? Né? - Ela perguntou.

- Hã

- Ai meu Deus, agora que vi, o ângulo pode melhorar, você pode levantar um pouco o queixo?

- Quê?

Ela tirou outra foto de mim rapidamente. Eu continuava estático, com um olhar confuso para
ela. Eu não estava ofendido nem nada do tipo, na verdade, até fico feliz que alguém quer uma
imagem minha, principalmente por ser uma garota bonita. Mas é que ela falava de um jeito
tão animado e tão rápido, que me deixou pensativo sobre como ela tirou uma foto minha sem
autorização, e ainda assim conseguia agir como se eu estivesse em um ensaio. Achei melhor
entrar na onda dela e não questionar sobre a necessidade dos nomes em inglês.

- Relaxa, eu sou figura pública – Respondi

- Ah? Sério? Você era o que? Subcelebridade na sua cidade?

- Como sabe que sou novo aqui?

- Ninguém que é daqui fica impressionado desse jeito, é o que? turismo? Visitar parente?

- Eu fui transferido, eu vim pra estudar aqui.

- Oh, sério? Qual Colégio? É o Trindade?

- Ah! Sim, esse mesmo, o Santa Trindade, como você sabia?

- Sou do Clube de mídias, me chama de Marília, a melhor repórter estudantil a seu dispor!

- Isso... não respondeu exatamente a minha pergunta.

- A gente fica sabendo de tudo, dos alunos que entram e dos que saem. Vasculhar o histórico
dos novatos é praticamente de lei, assim a gente as vezes acha algo legal pra publicar.
- Não sabia que os professores liberavam essas fichas.

- É aí que tá, gatão, eles não liberam – Respondeu a mim com uma piscada.

- Compreendo...

- Vou usar suas fotos para um concurso que vai ter no colégio, você vai deixar né?

- Sem problema, mas porque do nome em inglês? – Não resisti.

- A exibida da presidente gosta, tataravô Inglês e já deu nisso.

Poucos minutos depois a Marília precisou se despedir, umas amigas dela apareceram e
chamaram por ela. Eu até que pensei em pedir o número dela, mas a gente estaria no mesmo
colégio, então não havia a necessidade de me apressar. Após esse meu primeiro encontro
escolar, saí da frente da estação e botei minhas pernas para andar pelo Centro.

10:30

Entrei em diversas lojas, eu gostava de entrar e não comprar nada, as vezes era pelo produto,
as vezes pelo ar-condicionado. Cheguei em algumas áreas onde o fluxo de pessoas ia
diminuindo conforme o beco, mas eu sempre andava por onde eu via que possuía polícia,
tanto para eventuais perigos quanto para eventuais percas de caminho.

Andei o suficiente para passar pela área industrial, por uma praça, por uma igreja, por um
parque, consegui até ver o portão de entrada do colégio que eu ia estudar de relance, deu pra
reconhecer pelas fotos, mas decidi não ir até lá para não estragar a magia do primeiro dia.
Peguei mais um metrô, dessa vez eu decidi ir para a área do litoral e visitar a praia.

11:00

A minha ida para longe do Centro se demonstrou um erro rapidamente. Quando eu fui pagar
a minha água de coco, tive que me levantar da mesa, e assim acabei cometendo o erro de
deixar a minha bolsa ali, e quando eu volto, adivinha? A minha bolsa tinha sumido. Eu só não
entrei em desespero porque lá só tinha alguns materiais de desenho, minha carteira e celular
estavam no meu bolso, eu tinha levado a mochila para desenhar as paisagens e fazer um mapa
depois, só por diversão mesmo, parando pra pensar agora minha identidade estava lá, droga.
Achei válido retornar o quanto antes de volta para o Centro.

12:30

De volta ao Centro, a fome e a derrota estavam me incomodando. Procuro pelas redondezas


alguma barraca de rua, como eu ainda não conhecia o local eu não queria me arriscar de
entrar sem querer em um restaurante caro, e assim uma cafeteria de rua me chamou atenção.
A loja ficava dentro, mas tinham algumas poucas cadeiras na frente do estabelecimento para
os clientes que desejassem tomar um ar, ou para os infelizes que desejassem ler um livro na
cafeteria, parecia um lugar aconchegante. Me sento na última mesa vazia, o atendente me
entrega o cardápio e vejo que os preços estavam agradáveis, talvez eu tenha achado meu
refúgio. Chamo pela atendente e peço um sanduíche e café preto com pouco açúcar, eu ainda
estou na transição para o café puro.

É um pouco difícil eu descrever o quão envolvente era para mim a sensação de poder
aproveitar aquele café quieto, enquanto observava os pedestres passando pela rua, só faltaria
uma chuva leve mesmo para eu poder chorar. De preferência dentro da loja, é claro.

- Com licença, eu posso sentar aqui? – Disse uma voz perto de mim.

Olhei em direção a voz, infelizmente era um cara, chutaria ter minha idade, ou 1 ano mais
novo. Ele era um pouco menor do que eu, talvez 1,75, sua pele era branca, seu cabelo era liso,
escuro e curto, se enrolando em algumas partes. Eu tentaria não comentar sobre isso, mas o
par de olhos azuis dele eram um pouco difíceis de ignorar, admito, quando gente de olho raro
te encara, é um tipo de sensação de observação que poucos filmes de suspense conseguem
transmitir. Muito provavelmente ele era popular com as garotas, afinal ele era bem bonito, as
vestimentas meio gótico-punk dele devem fazer sucesso com elas. Uma calça jeans rasgada
daquelas que eu odeio, blusa preta curta com a barriga de fora e brincos em ambas as orelhas.

- Sem problema – Respondo.

Ele se sentou na minha mesa e chamou o garçom para fazer o pedido dele.

- Vai querer alguma coisa? – Ele perguntou para mim.

- Não não, valeu – Respondi confuso.

Eu não sei se ele queria pagar o meu pedido como retribuição, ou se ele perguntou por
educação, mas eu não estava afim de nenhuma das 2 opções de qualquer forma. Eu não quero
parecer mal-educado, mas eu só queria ficar sozinho, se ao menos fosse uma garota gótica.

- E aí, aproveitando o pré festival? Acho que meu momento favorito do ano é esse, quando a
festa ainda não começou e eu consigo ver vocês turistas chegando. – Ele disse.

- ? - ?.

- Vi pela sua identidade, pega sua bolsa aqui inclusive, você perdeu ela na praia.

Ele tirou do chão a minha bolsa, aquela que achei que havia sido roubada, uma sensação de
alívio passou por todo o meu corpo. Eu facilmente o tornaria minha nova figura paterna, se
não fosse a idade dele e o rosto meio feminino dele que estava começando a ficar difícil de
ignorar.

- Eu achei que tinha sido roubada, muito obrigado – Respondi com um sorriso.

- Na verdade, ela realmente foi, só que os caras que a roubaram deixaram cair no meio da
fuga, sorte a sua que eu estava lá pra pegar. Aliás, você tem identidade reserva? Porque eu só
reconheci o seu rosto por causa da identidade que tava no bolso da frente.

- Não, mas obrigado pelo toque, qual seu nome inclusive?

- Miguel Vasconcelos, mas eu deixo você me chamar só de Miguel, e o seu seria?

- Fernando Luís Neto.

- Luís... gostei.
Após um tempo de conversa com Miguel eu descobri que ele também era de fora. O Miguel
nasceu no México, mas mora no Brasil a uns bons anos. Ele estuda no Colégio Edimura, que é
uma outra instituição da cidade, não fica muito longe do Trindade pelo jeito que ele contou.

Em nenhum momento ele citou algo sobre família, então eu achei melhor não comentar nada
sobre. Fico feliz de talvez eu ter conhecido meu primeiro amigo da cidade, a gente conseguiu
aproveitar uma conversa agradável, o fato de ambos sermos apreciadores de um café de
qualidade ajudou bastante na nossa comunicação.

14:00

Miguel olhou para o relógio dele e viu o horário, então ele pediu a conta para o garçom.

- Luís, você acredita em destino? – Miguel perguntou.

- Porque essa pergunta do nada?

- Você não acha que foi tudo certinho demais? Você vir para essa cidade e perder a bolsa, ter
esquecido sua identidade na mochila, e eu ainda ter conseguido te achar nessa cidade.

- Pera, agora que eu parei pra pensar, por que você só não entregou a bolsa pra polícia?

- Vi ali uma oportunidade de fugir do meu cotidiano. Procurar por uma pessoa no meio de uma
cidade parecia uma ideia legal o suficiente pra eu fugir da rotina. A gente repete o ‘’todo dia’’
todo dia, é algo muito simples, mas eu acho particularmente interessante, mas enfim, você
não respondeu minha pergunta.

- Se eu acredito em destino? Acho que... não? Foi tudo só uma grande coincidência, eu acho,
foi bem específica e sortuda? Foi, mas ainda continua sendo apenas uma coincidência, é o que
eu acredito é claro.

- Algum motivo em específico?

- Eu prefiro não acreditar que, meio que não importando o que eu faça, eu já tenho um fim
planejado. Tipo, acreditar em destino quer dizer que eu não tenho pensamentos e decisões
próprias? Existe outra coisa maior que já disse o que eu vou fazer? Não, eu não gosto disso.

- Intrigante, eu vejo por outro lado sabia? Eu penso que tudo que a gente tá fazendo aqui
agora já foi premeditado, como você mesmo disse, por uma força maior. Eu acredito que você
resumir tudo isso, a apenas uma mera coincidência, seria pensar bem pequeno, não acha? O
Universo é infinito, não acho que as coisas sejam desorganizadas dessa maneira, prefiro
acreditar que nossas ações já estão escritas.

- Você é religioso?

- Não exatamente, mas eu acho que exista sim uma força superior.

- Você quer dizer que, eu e você... estamos conectados? Que repentino.

- Podemos pensar assim, não sei de que forma é claro, mas o futuro dirá para a gente. Acredito
que não haverá a necessidade de trocar números, afinal, eu ainda acho que a gente vai se
encontrar por aí, no mínimo no festival a gente se encontra, que as bruxas não lhe peguem,
até mais Luís.
Miguel deixou o dinheiro dele em cima da mesa, e foi embora acenando para mim. O
atendente pegou o dinheiro e disse para mim que ele havia pago a minha conta também, bem
que eu estranhei a quantia que ele deixou ali em cima, pensei que era gorjeta. Decidi me
levantar e pegar o metrô para voltar para casa.

20:00

Depois de jantar com meus tios eu entrei para o quarto, peguei minha mochila e tirei meus
materiais de desenho. Desde o começo eu queria muito fazer o mapa da cidade mentalmente,
ao menos dos lugares que eu visitei.

22:00

Após finaliza-lo, o sono me bateu e decidi ir dormir. Minhas aulas iam começar 7 de fevereiro,
então os próximos dias eu iria ficar aqui na casa me preparando para outra mudança. Sinto
meus olhos começando a pesar, era melhor eu me deitar.

0:00

Acordei sozinho dessa vez, meu rosto estava suado e o relógio dizia que era meia-noite. Me
levantei e decidi sair do quarto para subir até o banheiro, no caminho, novamente, acabo por
encontrar Liliam, pelo visto ela gosta de perambular nos corredores da casa pela madrugada.
Minha suspeita de que ela realmente dormia de moletom se tornou uma infeliz verdade, que
tragédia, mas eu ainda seguro a esperança que ela tira quando for dormir de verdade, já que a
cara dela não demonstrava sono, mesmo com olheiras salientes. Dei um aceno envergonhado
a ela, e ela respondeu com um pior ainda, não sei se ela tem problema de comunicação ou se
era a minha cara de recém acordado, enfim, terminei o que eu tinha que fazer e fui dormir.
DIA 7/2

6:30

Tio Francisco levou eu e a Liliam de carro até o portão da Escola, eu estava com minha
mochila e mala comigo, eu iria direto para o dormitório antes da cerimônia de boas-vindas.
Quando eu saí do carro pude ver o colégio bem ao fundo, parecia que a gente teria que
caminhar um pouco ainda. Segui Liliam até dentro do portão, assim descubro que a gente teria
que pegar um ônibus ainda. A parada de ônibus tinha muitos alunos posicionados, muitos
estavam animados enquanto esperavam o ônibus, alguns conversavam e outros estavam em
seus celulares, pude ver que a Lili era bem popular pela quantidade de alunos que veio falar
com ela. Eu não diria que eu sou antissocial, eu apenas prefiro ter um bom contexto pra
conversar com alguém desconhecido, o que eu não tinha ali no momento, por isso decido
apenas botar meu fone e esperar pelo ônibus, que não demorou tanto.

No caminho do ônibus pude ver que o colégio tinha bastante vegetação em volta, os alunos
pareciam bem animados dentro do transporte. Acredito que a maioria é amigo desde o
fundamental, então se eu quiser ter alguém para conversar, eu terei que fazer meu corres. Eu
não quis falar com minha antiga colega de casa no ônibus, devido a ela já estar rodeada de
outros alunos. Eu acabei por não conseguir desenvolver muito uma comunicação ao longo dos
últimos dias que eu passei na casa dos Tios, então eu chuto que o problema não era minha
cara de morto. Eu achei que seria mais rápido para chegar no colégio, mas o ônibus fazia vários
desvios no caminho por áreas que ele não poderia passar.

7:00

Após o transporte parar, todos os alunos desceram e eu consegui observar o colégio de perto.
A estrutura do Trindade era bem grande, com 3 andares de altura e uma torre de sino ali por
perto, a visão de um colégio tão grande com tantas pessoas me assustava um pouco, acredito
que aqui começa uma nova fase da minha vida. Ao fundo, consigo escutar o barulho da
cerimônia que não tardaria por começar.

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