Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Me levantei num solavanco achando que era segunda. Mesmo que fosse, o relógio ainda
marcava quatro e pouco, teria mais um quarto de hora para continuar dormindo. Mas corpo
cansado não se acostuma com fartura, nem mesmo quando lhe é devida. Não preguei mais o
olho. Tentei fazer corpo mole, ficar de cara pro ar, olhando as manchas de umidade se
encontrarem no vértice entre o teto e as paredes, na espera de ver o dia caminhar na minha
janela. Esse ócio todo não era da minha natureza. O que de novidade eu encontraria em olhar
para as manchas no canto das paredes e do teto se eu sabia que era infiltração da chuva da
semana? E olhar para elas me dava gastura. Casa de ferreiro, espeto de pau. Sabia que tinha
que impermeabilizar a parede por fora e continuava adiando esse trabalho. Nem era por
preguiça ou por cansaço. Nem sei porque não tinha feito ainda. Só sei que sentia que era algo
inacabado, que eu tinha que fazer, que era uma das obrigações que me apertavam a mente. Ao
mesmo tempo, também sentia que era só a minha mente que apertava, não era patrão, não era
gente, nem bicho comendo a parede, nem deus castigando minha delonga em fazer o que
estava posto. Era só eu e a culpa de não ter feito o que já deveria estar pronto há tempos, mas
ao mesmo tempo essa culpa vinha junto com um tipo de prazer em poder não fazer. O direito
à escolha.
Lembrei de um dia, quando era muito novo ainda, antes de haver filhos, antes do papel
passado, antes das linhas no canto dos olhos e na base da testa, antes da mão áspera, produto
de vida longa de trabalho que não posso reclamar, antes dessa hérnia no umbigo, antes das
dores e do desconforto de existir, um dia antes de tudo isso que é aqui agora entre esse
espelho e eu. Que maneira boba que a memória tem de residir na gente e, sem motivo
aparente, romper o hábito dos pensamentos e trazer coisas que pareciam esquecidas,
guardadas numa gaveta velha mofada. E esse tipo de lembrança parece ter governo próprio,
toma a cabeça como se a consciência não fosse nossa. Como se não houvesse raiz, traz a
lembrança de um dia que há muito tempo não pensava. Era um dia qualquer, nem sei o motivo
de ter voltado ou de ainda estar guardado na memória, já que foi um dia tão longe, da época
em que eu quase não tinha lembrança porque quase toda lembrança que tinha era do presente.
Nessa época, ainda era muito menino e o tempo só significava o sol que vem e a lua que
alumia o quintal à noite. Senti o cheiro que tinha aquela casa que morei com meus pais, com
quintal de fundo, cheio de pé de cana. Papai sentava em seu tamborete pela tarde, descascava
uma ruma de cana e a gente tudo sentado ao redor enquanto ele cortava os pedaços e
Curioso como toda essa linha do tempo que passa sem limite de tempo. Esse monte de dias
quase repetidos, como uma estrada planejada, vez ou outra, encontra um seixo estranho, um
cascalho, um tronco caído que nos faz desviar por outras beiradas, por tempos remotos e
delineares. Vez ou outra uma pequena surpresa, um inesperado de memória aparece. Mas
todos esses dias de hoje são dias tão parecidos que só a partir desses “seixos” e “carvalhos” e
“troncos caídos” é que podemos dizer em que ano foi, em que parte dessa linha aconteceu
Lembrei desse dia que era jovem. Era um dia bem comum, sem grandes acontecimentos para
registrar na memória. Nem sei porque lembrei. Coisa velha que há tanto tempo foi guardada,
só é lembrada quando a gente vê, quando tem alguma garra que se enfia na mente da gente e
puxa das gavetas empoeiradas, de uma vez só, sem que a mente se dê conta que tem um
Lembrei de outro dia também, em que eu era quase tão jovem quanto as células que se
regeneraram no dia de hoje. O dia que comprei um sapato azul. Que moda era aquela eu não
consigo lembrar, mas o sapato azul me fazia mais livre. Era meu jeito de ser jovem-transado,
da moda na capital. Nessa época, já morava na cidade, mas o dinheiro quase nunca dava para
essas extravagâncias. Hoje em dia, vejo jovens diferentes de mim andarem com sapatos azuis
semelhantes. Vejo jovens comprando roupas antigas em brechós e, algumas vezes até penso
ter voltado àquela época dos meus quase trinta anos, tempo tão distante que eu quase cheguei
a acreditar que foi invenção da minha memória. Nessa idade, você pensa que chegar a idade
de seus pais será tão tão distante que é quase incalculável. Um pedaço de terra que a gente não
avista. E eu havia chegado à idade que meu pai tinha na minha lembrança de criança. Trinta
Quando saio na rua e vejo tantas pessoas vestidas como nos vestíamos antes, penso que sou
um viajante no tempo. Penso que não envelheci tanto assim, esqueço que já sou mais velho
que meus pais eram na minha lembrança de criança. Esqueço que nem pais existem mais.
Esses dias, pela rua, quase comprei um desses sapatos azuis. Passei em frente um brechó e
tinha um bem semelhante àqueles. Mas esses cacarecos da minha juventude têm preço de
relíquia agora. Soubesse disso, teria guardado tudo para vender hoje. Como aquela gente que
coleciona coisas velhas que, com o tempo, assumem valores assombrosos sem que se saiba
qual o real motivo de num tempo passado valerem quase nada e num outro tempo valerem
Pensando bem, até as músicas são as mesmas. Tenho uma filha que ouve Belchior dia e noite
desde os catorze anos. Vejo muita coisa de mim nela, mas ela não me conhece para ter essa
percepção. Nos faltou tempo e hoje parece tarde para buscar o tempo perdido. Se ela soubesse
que experimentei felicidade pela primeira vez no dia trinta de maio de 1986, quando a segurei
nos braços. Hoje conversamos coisas triviais, não temos muito em comum, não tive tempo de
construir isso com ela e agora parece tarde. Passei muito tempo construindo paredes e não
percebi que construía paredes entre nós. Essa distância me aflige enquanto deito na cama
orientam a quebrar essas paredes involuntárias, mas pelo menos com as manchas eu sei o que
fazer.
Desisti de esperar o dia. Demorou demais, parecia vir de jegue lá de onde judas perdeu as
botas. Levantei, sentei na beirada da cama, calcei o chinelo e fui cagar, me banhar, lavar o
rosto. Retirar a cara do dia de ontem para vestir a cara do dia de hoje. Levantei o rosto e, no
espelho, junto com o cheiro de cuscuz que vinha da cozinha, a cara de hoje parecia a mesma
de ontem.
Cada dia novo vejo mais manchas. Agora mesmo, no espelho, reparo que além de manchas,
há pequenas crateras fazendo do meu rosto uma superfície lunar sobre um pescoço encolhido.
Repito gestos e trejeitos para perceber quando elas ficam mais evidentes. Todos esses dias eu
fui o rapaz de sapatos azuis, mas todos esses dias eu fui outra coisa também. Não sei se ainda
sou gente. Tenho braços, pernas, corpo e mente, mas não sei que classe de gente eu sou ou se
deixei de ser gente e virei ponteiro de relógio, marcando repetidamente as horas, os minutos e
os segundos. O relógio estava puído, fosco, gasto. O vidro era turvo e já não podia enxergar
muito bem algumas partes dos números, o que era irrelevante. Depois de tanto tempo, já
Passei pela cozinha onde minha senhora coava o café de costas para a porta. Já não nos
comunicávamos tanto. Ela já conhecia meus passos, assim como meu cachorro, achado há
alguns anos, conhecia o barulho do meu carro antes que eu virasse a esquina. Fui direto para o
quintal, limpar as bostas desse achado. Aquele monte de mosca fazia o desjejum e eu sentia
esse misto de cordialidade, em não querer atrapalhar a refeição, com a ojeriza de saber que,
assim que me aproximasse com a pá, elas voariam em bando, desnorteadas, vez ou outra até
esbarrariam suas perninhas pequenas de bosta na minha boca. Como um bicho cheio de olhos
tem a audácia de sujar minha boca de bosta, justo eu, um humano tão grande. Deve ser o
Depois de lavar as mãos e o rosto novamente, mas no tanque, voltei para a cozinha. A mesa
posta me esperava. Agora era minha vez de desjejuar. Comi rápido e em grandes quantidades
por vez. O café servia para descer o seco do cuscuz. A batata doce dava a sustância para ir à
feira sem fome, comprar apenas o necessário. Não que isso fosse preciso, sou muito certo com
Enquanto espreguiçava saciado, minha esposa retirava a louça suja. As crianças ainda
dormiam e por isso as palavras demoravam a ecoar pela casa. Havia uma certa paz nessa
rotina silenciosa, um aconchego seguro de que nada será diferente do que é. Mas não sei dizer
No caminho da rua da feira, a brisa fria da manhã se juntava com o sol de depois da chuva.
Fazia aquele cheiro de mato molhado que me lembrava, vagamente, meus dias de criança.
Essa é uma época da qual guardo poucas recordações. As recordações sempre vêm assim,
com um cheiro, uma porta antiga, uma vizinha que lembra a velha benzedeira que morava na
rua atrás da casa de meu pai. Não desgosto de lembrar da infância que tive, mesmo que tenha
sido dura, se contada para os jovens de hoje. Me lembro muito da liberdade que
experimentava, da maneira como o mundo se mostrava maior do que é hoje. Acho que parecia
menor hoje por conta dessas tantas construções que tomaram o lugar da terra. Essas
construções que a gente do sertão edificou. Não desgosto nem mesmo de lembrar das surras
de pau, do sangue que escorria vez ou outra, dos vergões na pele. Tudo isso fazia parte de um
tempo que ficou perdido na memória e que, vez ou outra, vem essa garra intrometida se fingir
de seixo ou cascalho ou tronco jogado e, sem pretensão que eu tome conhecimento de sua
origem, resgata todas essas memórias no meu corpo como se esse corpo ainda fosse aquele
corpo de menino que andava descalço na terra e subia em pé de árvore. Disso sinto falta. Não
que eu não pudesse me descalçar agora e subir nesse pé de árvore logo ali à frente. Mas que
Nessa altura da vida, fui percebendo que a vida foi me levando. As decisões mesmo eu tomei
quando era muito jovem, depois fui seguindo o fluxo. Acredito que não houvesse alternativa
além dessa. Seguir o fluxo. Cada dia de uma vez. Mas eu poderia ter escolhido o lado
esquerdo ao invés do direito. Há coisas que nos parecem tão naturais, coisas que estão na
cumbuca do automático, que são mais coerentes de serem escolhidas, feito destino, feito
caminho que se faz todo dia e que são os pés que vão, não o destino traçado na cabeça.
E se naquele caminho que faço todo dia, ao invés de virar pra um lado eu virasse para o outro
será que haveria uma pedra, um pedaço de pau, um tronco de árvore ou um senhor que me
perguntasse sobre uma rota que desconhecia ou qualquer coisa imprevisível que mudasse a
direção do meu destino? A vida será que é isso, esse conjunto de coisas iguais que fazem o
ontem e o hoje e o amanhã serem trigêmeos da mãe-tempo? Brincar de “e se” deixa o cabra
meio frustrado. Por isso sempre achamos justificativas para acreditar que estamos melhores
com as escolhas que já foram feitas e que não podem ser mudadas.
A feira é sempre a mesma. Pode ser de quarta ou de domingo, é sempre a mesma. Mas essa
mesmice tem seu encanto. Essa mesmice específica tem seu encanto. Não é como aquele
poema que diz sobre a fraqueza das mãos, sobre um coração que não se mostra, sobre um
rosto triste de olhos amargos, sobre um retrato perdido. Nem é como aquela música em que os
ratos correm comendo fotos e ossos antigos do passado. Essa mesmice é de luz do sol, fria,
talvez lúgubre. Mas uma mesmice de corpo automático que anda no mundo sem governo.
Antes eu ia à missa todo domingo. Mas tanto se falava de alma e era essa alma que eu nunca
sentia. Mas o corpo eu sinto. Sinto as dores, sinto as rugas, sinto a lágrima. Sinto o sal da terra
vermelha. Sinto agora esse corpo que vai sabendo onde ir e que me carrega.
Dia de domingo é dia de feira. E não há nada que me deixe tão feliz, se é que isso existe, do
que dia de feira. Geladeira cheia, cheiro de comida fresca que a preta faz. Dia de cuidar dos
passarinhos. Dia que parece não ter governo mesmo dentro da rotina. Dia de lavar o carro.
Nesse dia, o corpo descansa mesmo fazendo tudo. Dia que ligava pra mainha. Dia em que o
dia parece não findar e quando finda fica aquele amargor da nostalgia. O domingo carrega a
precisão da reflexão, pois foi o dia que Deus descansou. E a gente se sente meio deus
também, podendo escolher, mesmo que as escolhas feitas acabem sendo as mesmas do
domingo passado. Domingo é sempre o dia que não parece que a gente é fraco. Dia que