Você está na página 1de 7

2.

O Buraco é fundo, acabou-se o mundo

Me levantei num solavanco achando que era segunda. Mesmo que fosse, o relógio ainda

marcava quatro e pouco, teria mais um quarto de hora para continuar dormindo. Mas corpo

cansado não se acostuma com fartura, nem mesmo quando lhe é devida. Não preguei mais o

olho. Tentei fazer corpo mole, ficar de cara pro ar, olhando as manchas de umidade se

encontrarem no vértice entre o teto e as paredes, na espera de ver o dia caminhar na minha

janela. Esse ócio todo não era da minha natureza. O que de novidade eu encontraria em olhar

para as manchas no canto das paredes e do teto se eu sabia que era infiltração da chuva da

semana? E olhar para elas me dava gastura. Casa de ferreiro, espeto de pau. Sabia que tinha

que impermeabilizar a parede por fora e continuava adiando esse trabalho. Nem era por

preguiça ou por cansaço. Nem sei porque não tinha feito ainda. Só sei que sentia que era algo

inacabado, que eu tinha que fazer, que era uma das obrigações que me apertavam a mente. Ao

mesmo tempo, também sentia que era só a minha mente que apertava, não era patrão, não era

gente, nem bicho comendo a parede, nem deus castigando minha delonga em fazer o que

estava posto. Era só eu e a culpa de não ter feito o que já deveria estar pronto há tempos, mas

ao mesmo tempo essa culpa vinha junto com um tipo de prazer em poder não fazer. O direito

à escolha.

Lembrei de um dia, quando era muito novo ainda, antes de haver filhos, antes do papel

passado, antes das linhas no canto dos olhos e na base da testa, antes da mão áspera, produto

de vida longa de trabalho que não posso reclamar, antes dessa hérnia no umbigo, antes das

dores e do desconforto de existir, um dia antes de tudo isso que é aqui agora entre esse

espelho e eu. Que maneira boba que a memória tem de residir na gente e, sem motivo

aparente, romper o hábito dos pensamentos e trazer coisas que pareciam esquecidas,

guardadas numa gaveta velha mofada. E esse tipo de lembrança parece ter governo próprio,
toma a cabeça como se a consciência não fosse nossa. Como se não houvesse raiz, traz a

lembrança de um dia que há muito tempo não pensava. Era um dia qualquer, nem sei o motivo

de ter voltado ou de ainda estar guardado na memória, já que foi um dia tão longe, da época

em que eu quase não tinha lembrança porque quase toda lembrança que tinha era do presente.

Nessa época, ainda era muito menino e o tempo só significava o sol que vem e a lua que

alumia o quintal à noite. Senti o cheiro que tinha aquela casa que morei com meus pais, com

quintal de fundo, cheio de pé de cana. Papai sentava em seu tamborete pela tarde, descascava

uma ruma de cana e a gente tudo sentado ao redor enquanto ele cortava os pedaços e

distribuía pros pivete tudo.

Curioso como toda essa linha do tempo que passa sem limite de tempo. Esse monte de dias

quase repetidos, como uma estrada planejada, vez ou outra, encontra um seixo estranho, um

cascalho, um tronco caído que nos faz desviar por outras beiradas, por tempos remotos e

delineares. Vez ou outra uma pequena surpresa, um inesperado de memória aparece. Mas

todos esses dias de hoje são dias tão parecidos que só a partir desses “seixos” e “carvalhos” e

“troncos caídos” é que podemos dizer em que ano foi, em que parte dessa linha aconteceu

qualquer coisa que seja.

Lembrei desse dia que era jovem. Era um dia bem comum, sem grandes acontecimentos para

registrar na memória. Nem sei porque lembrei. Coisa velha que há tanto tempo foi guardada,

só é lembrada quando a gente vê, quando tem alguma garra que se enfia na mente da gente e

puxa das gavetas empoeiradas, de uma vez só, sem que a mente se dê conta que tem um

invasor acordando as coisas guardadas.

Lembrei de outro dia também, em que eu era quase tão jovem quanto as células que se

regeneraram no dia de hoje. O dia que comprei um sapato azul. Que moda era aquela eu não

consigo lembrar, mas o sapato azul me fazia mais livre. Era meu jeito de ser jovem-transado,
da moda na capital. Nessa época, já morava na cidade, mas o dinheiro quase nunca dava para

essas extravagâncias. Hoje em dia, vejo jovens diferentes de mim andarem com sapatos azuis

semelhantes. Vejo jovens comprando roupas antigas em brechós e, algumas vezes até penso

ter voltado àquela época dos meus quase trinta anos, tempo tão distante que eu quase cheguei

a acreditar que foi invenção da minha memória. Nessa idade, você pensa que chegar a idade

de seus pais será tão tão distante que é quase incalculável. Um pedaço de terra que a gente não

avista. E eu havia chegado à idade que meu pai tinha na minha lembrança de criança. Trinta

anos. Quase. Idade de pai.

Quando saio na rua e vejo tantas pessoas vestidas como nos vestíamos antes, penso que sou

um viajante no tempo. Penso que não envelheci tanto assim, esqueço que já sou mais velho

que meus pais eram na minha lembrança de criança. Esqueço que nem pais existem mais.

Uma sensação estranha de ser filho sem pai nem mãe.

Esses dias, pela rua, quase comprei um desses sapatos azuis. Passei em frente um brechó e

tinha um bem semelhante àqueles. Mas esses cacarecos da minha juventude têm preço de

relíquia agora. Soubesse disso, teria guardado tudo para vender hoje. Como aquela gente que

coleciona coisas velhas que, com o tempo, assumem valores assombrosos sem que se saiba

qual o real motivo de num tempo passado valerem quase nada e num outro tempo valerem

mais que o sossego de não ter dívidas a pagar.

Pensando bem, até as músicas são as mesmas. Tenho uma filha que ouve Belchior dia e noite

desde os catorze anos. Vejo muita coisa de mim nela, mas ela não me conhece para ter essa

percepção. Nos faltou tempo e hoje parece tarde para buscar o tempo perdido. Se ela soubesse

que experimentei felicidade pela primeira vez no dia trinta de maio de 1986, quando a segurei

nos braços. Hoje conversamos coisas triviais, não temos muito em comum, não tive tempo de

construir isso com ela e agora parece tarde. Passei muito tempo construindo paredes e não
percebi que construía paredes entre nós. Essa distância me aflige enquanto deito na cama

olhando as manchas de infiltração. As manchas não me respondem o que pergunto, não me

orientam a quebrar essas paredes involuntárias, mas pelo menos com as manchas eu sei o que

fazer.

Desisti de esperar o dia. Demorou demais, parecia vir de jegue lá de onde judas perdeu as

botas. Levantei, sentei na beirada da cama, calcei o chinelo e fui cagar, me banhar, lavar o

rosto. Retirar a cara do dia de ontem para vestir a cara do dia de hoje. Levantei o rosto e, no

espelho, junto com o cheiro de cuscuz que vinha da cozinha, a cara de hoje parecia a mesma

de ontem.

Cada dia novo vejo mais manchas. Agora mesmo, no espelho, reparo que além de manchas,

há pequenas crateras fazendo do meu rosto uma superfície lunar sobre um pescoço encolhido.

Repito gestos e trejeitos para perceber quando elas ficam mais evidentes. Todos esses dias eu

fui o rapaz de sapatos azuis, mas todos esses dias eu fui outra coisa também. Não sei se ainda

sou gente. Tenho braços, pernas, corpo e mente, mas não sei que classe de gente eu sou ou se

deixei de ser gente e virei ponteiro de relógio, marcando repetidamente as horas, os minutos e

os segundos. O relógio estava puído, fosco, gasto. O vidro era turvo e já não podia enxergar

muito bem algumas partes dos números, o que era irrelevante. Depois de tanto tempo, já

sabemos de cór onde fica cada número.

Passei pela cozinha onde minha senhora coava o café de costas para a porta. Já não nos

comunicávamos tanto. Ela já conhecia meus passos, assim como meu cachorro, achado há

alguns anos, conhecia o barulho do meu carro antes que eu virasse a esquina. Fui direto para o

quintal, limpar as bostas desse achado. Aquele monte de mosca fazia o desjejum e eu sentia

esse misto de cordialidade, em não querer atrapalhar a refeição, com a ojeriza de saber que,

assim que me aproximasse com a pá, elas voariam em bando, desnorteadas, vez ou outra até
esbarrariam suas perninhas pequenas de bosta na minha boca. Como um bicho cheio de olhos

tem a audácia de sujar minha boca de bosta, justo eu, um humano tão grande. Deve ser o

terror que as deixa atordoadas, o prenúncio da possibilidade de morte.

Depois de lavar as mãos e o rosto novamente, mas no tanque, voltei para a cozinha. A mesa

posta me esperava. Agora era minha vez de desjejuar. Comi rápido e em grandes quantidades

por vez. O café servia para descer o seco do cuscuz. A batata doce dava a sustância para ir à

feira sem fome, comprar apenas o necessário. Não que isso fosse preciso, sou muito certo com

minhas contas, sei exatamente o que precisamos na dispensa da semana.

Enquanto espreguiçava saciado, minha esposa retirava a louça suja. As crianças ainda

dormiam e por isso as palavras demoravam a ecoar pela casa. Havia uma certa paz nessa

rotina silenciosa, um aconchego seguro de que nada será diferente do que é. Mas não sei dizer

se esse aconchego era acolhida ou acuada.

No caminho da rua da feira, a brisa fria da manhã se juntava com o sol de depois da chuva.

Fazia aquele cheiro de mato molhado que me lembrava, vagamente, meus dias de criança.

Essa é uma época da qual guardo poucas recordações. As recordações sempre vêm assim,

com um cheiro, uma porta antiga, uma vizinha que lembra a velha benzedeira que morava na

rua atrás da casa de meu pai. Não desgosto de lembrar da infância que tive, mesmo que tenha

sido dura, se contada para os jovens de hoje. Me lembro muito da liberdade que

experimentava, da maneira como o mundo se mostrava maior do que é hoje. Acho que parecia

menor hoje por conta dessas tantas construções que tomaram o lugar da terra. Essas

construções que a gente do sertão edificou. Não desgosto nem mesmo de lembrar das surras

de pau, do sangue que escorria vez ou outra, dos vergões na pele. Tudo isso fazia parte de um

tempo que ficou perdido na memória e que, vez ou outra, vem essa garra intrometida se fingir

de seixo ou cascalho ou tronco jogado e, sem pretensão que eu tome conhecimento de sua
origem, resgata todas essas memórias no meu corpo como se esse corpo ainda fosse aquele

corpo de menino que andava descalço na terra e subia em pé de árvore. Disso sinto falta. Não

que eu não pudesse me descalçar agora e subir nesse pé de árvore logo ali à frente. Mas que

desvairado eu seria se fizesse isso.

Nessa altura da vida, fui percebendo que a vida foi me levando. As decisões mesmo eu tomei

quando era muito jovem, depois fui seguindo o fluxo. Acredito que não houvesse alternativa

além dessa. Seguir o fluxo. Cada dia de uma vez. Mas eu poderia ter escolhido o lado

esquerdo ao invés do direito. Há coisas que nos parecem tão naturais, coisas que estão na

cumbuca do automático, que são mais coerentes de serem escolhidas, feito destino, feito

caminho que se faz todo dia e que são os pés que vão, não o destino traçado na cabeça.

E se naquele caminho que faço todo dia, ao invés de virar pra um lado eu virasse para o outro

será que haveria uma pedra, um pedaço de pau, um tronco de árvore ou um senhor que me

perguntasse sobre uma rota que desconhecia ou qualquer coisa imprevisível que mudasse a

direção do meu destino? A vida será que é isso, esse conjunto de coisas iguais que fazem o

ontem e o hoje e o amanhã serem trigêmeos da mãe-tempo? Brincar de “e se” deixa o cabra

meio frustrado. Por isso sempre achamos justificativas para acreditar que estamos melhores

com as escolhas que já foram feitas e que não podem ser mudadas.

A feira é sempre a mesma. Pode ser de quarta ou de domingo, é sempre a mesma. Mas essa

mesmice tem seu encanto. Essa mesmice específica tem seu encanto. Não é como aquele

poema que diz sobre a fraqueza das mãos, sobre um coração que não se mostra, sobre um

rosto triste de olhos amargos, sobre um retrato perdido. Nem é como aquela música em que os

ratos correm comendo fotos e ossos antigos do passado. Essa mesmice é de luz do sol, fria,

talvez lúgubre. Mas uma mesmice de corpo automático que anda no mundo sem governo.
Antes eu ia à missa todo domingo. Mas tanto se falava de alma e era essa alma que eu nunca

sentia. Mas o corpo eu sinto. Sinto as dores, sinto as rugas, sinto a lágrima. Sinto o sal da terra

vermelha. Sinto agora esse corpo que vai sabendo onde ir e que me carrega.

Dia de domingo é dia de feira. E não há nada que me deixe tão feliz, se é que isso existe, do

que dia de feira. Geladeira cheia, cheiro de comida fresca que a preta faz. Dia de cuidar dos

passarinhos. Dia que parece não ter governo mesmo dentro da rotina. Dia de lavar o carro.

Nesse dia, o corpo descansa mesmo fazendo tudo. Dia que ligava pra mainha. Dia em que o

dia parece não findar e quando finda fica aquele amargor da nostalgia. O domingo carrega a

precisão da reflexão, pois foi o dia que Deus descansou. E a gente se sente meio deus

também, podendo escolher, mesmo que as escolhas feitas acabem sendo as mesmas do

domingo passado. Domingo é sempre o dia que não parece que a gente é fraco. Dia que

parece que a gente é gente.

Você também pode gostar