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O retorno

O tempo parece estar acelerado nos últimos tempos, há citações bíblicas, que
podem confirmar isso como uma teoria, ao passo que em qualquer conversa de esquina, ou
fila de supermercado você ouve algo a respeito: “dona Maria minha vida está tão corrida
ultimamente.” “Seu João é o fim dos tempos, ainda ontem estava começando o ano...”

Embora eu não seja físico e meu proposito aqui não seja comprovar a aceleração
repentina do tempo, não posso deixar de notar a realidade. Dias parecem semanas, semanas
parecem meses, e meses parecem anos... Quando me dei conta, já não sabia quanto tempo
de fato havia que tinha estado aqui pela ultima vez. Um silencio reinava sobre o lugar, se
real ou não eu não sei, estava tudo quieto em mim. O dia já se findava, a escuridão
imperava, e por um breve momento me vi completamente deslocado, até me lembrar de
que havia uma forma de encarar a densa noite, corri até minha cama, me deitei e aguardei
pacientemente o novo dia raiar, com a esperança de que com a luz do novo dia pudesse
encontrar o que me trouxera de volta aqui.

Pra minha alegria o tempo, dessa vez ao meu favor, fez o dia chegar logo e com
ele, sentimentos que eu não sabia que podia experimentar. Desci as escadas, por sorte toda
a casa ainda estava lá, exatamente como eu me lembrava, pra meu espanto com alguns itens
que nem eu sabia que existiam, mas não era a casa que me chamava mais atenção.

Passei correndo por toda a fazenda, contemplando todas as plantações, tudo lá,
como que me esperando. O galinheiro, um pouco deslocado dos outros animais, aquela
monstruosa construção logo atrás das galinhas era algo realmente notório, uma pilastra de
pedra gigantesca, um tanto quanto sombria, sombras de experimentos antigos, somente
contemplar aquela enorme montanha de pedras me dá calafrios, mas há muito mais que ser
reexplorado. Ainda dentro dos meus domínios, passo pelo curral das vacas e das ovelhas,
vejo ovelhas coloridas, num primeiro momento reluto e tento não acreditar nos meus
olhos, mas não resta dúvidas, aquelas ovelhas foram marcadas, alegria irradia dentro de
mim, ao lembrar que todo aquele império não era só meu, pessoas compartilharam comigo
de muito do que eu vivera ali. Me sinto grato pelo dom da amizade, mas não me dou o luxo
de parar.

Vejo minha antiga mesa de mapas, um hobbie antigo, a cartografia nunca foi meu
forte, mas o entusiasmo de poder explorar algo novo me fascinava, desbravei parte daquele
mundo, fiz alguns mapas, mas não consigo achar nenhum, outro sentimento começa a
brotar dentro de mim, aquele frio na barriga indicando um desafio, meu retorno pode não
ter sido em vão, ainda há trabalho a ser feito, começo ali mesmo a me imaginar explorando
lugares que eu ainda não tinha visitado, mas espera... onde estão meus mapas??? Se não
acha-los terei que explorar de novo o que já havia explorado, a essa altura, no entanto, isso
já não é algo que me importa, o tempo havia levado grande parte das minhas memórias,
reexplorar não só meu lar, mas como todo aquele mundo, não me parecia uma tarefa
entediante, antes, uma oportunidade, daquelas raras que a vida nos proporciona de ser feliz
com a descoberta de coisas bobas e pequenas que há muito já não nos surpreenderiam.
Desperto de meus devaneios, começo a procurar meus mapas, e não os encontro
em lugar nenhum, me sinto frustrado, mas no processo termino explorando o resto do
lugar, atrás da casa, vejo as bases de uma construção não terminada, um depósito a céu
aberto, a finalidade dele não me é muito clara, mas meus mapas não estão nele, vejo a
escada, obra de arte, marca o inicio dessas terras, que por sinal nunca tiveram nome e me
ocorre que preciso nomeá-las, mas não sem antes contemplar uma das máquinas mais
incríveis dentro daqueles domínios. O produtor de trilhos infinitos! E pra meu espanto, ele
ainda funciona.

É realmente louco pensar que coisas tão simples podem gerar em nós um
sentimento tão bom. Sabe quando por um milagre você encontra seu brinquedo favorito de
quando era criança no meio de um monte de tralhas guardadas, e não importa a idade,
quando se encontra o brinquedo favorito da infância, da aquela vontade de brincar? É
exatamente isso! Alguns simplesmente podem ignorar e seguir adiante, mas eu já fiz isso
tantas vezes, pra descobrir hoje que talvez, e aqui um grande talvez, eu devesse ter voltado
antes.

Olho pra cima e vejo a via expressa, que aquele miraculoso produtor de trilhos
infinitos nos proporcionou criar. Decido averiguar sua rota, e me deparo com uma nova
cena, logo após as plantações, estava a praia que por muitas vezes me serviu de
companheira para minhas explorações. Caminho aos arredores, percebo alguns nativos. A
via expressa começa justamente neles, estavam ali, pacatos como sempre, não pareceram
esboçar qualquer sentimento novo sobre minha presença, pra eles não fazia diferença se eu
estava ali ou não, pra mim sendo bem sincero, a presença deles era um conforto.

Resolvo seguir até o fim da via expressa para ver mais uma construção inacabada, um
projeto não tão faraônico quanto aquela montanha de pedras, mas igualmente
experimental. Um detalhe importante, fiz o percurso a pé, porque existia a via expressa,
mas não tinha veiculo para me transportar, por sorte, o carrinho estava no fim do caminho,
e pude voltar confortavelmente até minha casa.

Enquanto voltava, vi de longe um dos meus maiores traumas, o portal maldito, virei
o rosto, não era o momento de enfrentar aquilo, porém o frio na barriga aumentava, e
igualmente o sentimento que ainda havia muito que ser feito naquele lugar.

Retornei a praia, para passar o restinho do dia observando o mar. O dia estava
acabando, porém a luz trouxe à minha visão, aquilo que estava bem ali o tempo todo e eu
não conseguia ver, a alegria de pequenas coisas há muito celebradas, mas perdidas com o
tempo.

O que aconteceu de fato foi que voltar me fez ter uma sensação de espanto, uma
sensação de novo de novo. As memórias estavam lá guardadas, mas borradas, sem
precisão, o que fazia tudo muito nostálgico e vivo. Está resolvido, eu escolho ficar e viver
mais um pouco do mundo que já foi meu e agora é nosso.

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