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'flores vermelha ou azuis, mas nunca brancas’

Foi sempre assim.


As pessoas sempre eram neutras, até que o tópico fosse a escravidão. Sempre
tinham um lado a tomar, às vezes um pior que outro. Mas ninguém entendia o meu
ponto, naquela cidade todos estavam 'estragados', eles não queriam o progresso,
sempre nós que somos os contra a economia local.
Logo nada mais importará, sabe, quem precisa viver ao lado dessas pessoas?
Quem precisa viver com imbecis ao seu lado? Quem precisa? Ninguém, muito
menos eu, muito menos eu. Hoje será o último dia, o último que eu veria essas
pessoas, a última vez que escutaria suas vozes, a última vez.
Por hoje minha vida ainda foi normal, mas com o pôr do sol tudo mudaria. Uma
pequena mala apareceu ao lado da minha cama, na mesa do jantar não falei nada,
e a noite, na penumbra enquanto todos dormiam, eu singelamente iria embora, e
nunca mais voltaria.
Olhei por todo o espaço de minha casa, eu gostava dela, porém a sensação que
as pessoas que a habitavam me causavam, não era nem um pouco parecida. Eu
caminho pelo corredor, tentando ser o mais silencioso possível, tentando não ser
tomado pelo ódio. Eu caminho até chegar na entrada.
Uma grande porta me esperava, ela era toda de madeira e tinha uma pequena
janela onde dava para ver um pouco de lá fora. Eu a aprecio, era a última vez que
passaria por ela, logo uma vida diferente me aguardava. Eu a destranco com um
pequeno molho de chaves, tentando ao máximo não fazer barulho, e a abro. Do
lado de fora era uma noite linda, a lua brilhava e dava para ver pequenas estrelas
no céu.
Era um sinal para eu dar um último adeus a parte que eu mais amava de minha
terra, o jardim. O jardim era o lugar mais bonito da minha casa, era o lugar onde eu
compartilhava as mágoas com meu diário, era o lugar onde eu passava horas e
horas brincando com os canteiros de flores, e o mais importante de tudo, era o lugar
que eu chamava de lar. Eu passo por ele, pelos campos apreciando cada pétala
caída no chão, cada gota de água presente, cada formiga que andava pelas folhas,
era a última vez que eu o veria.
O foco de meu passeio logo foi tomado por uma moça, ela sentava perto das
rosas brancas, provavelmente as colhia, seus longos cabelos loiros, sua pele pálida,
suas roupas angelicais, e o mais intrigante disso, seu brilho natural, sim a bela
mulher brilhava na calada da noite. Quanto mais eu me aproximava, mais detalhes
eu percebia dela, como a rosa que colhia, que ao invés de branca era azul, algo no
mínimo curioso. Não vi sua face, ou talvez somente não a lembre, o que claro é uma
forte teoria, pois quando a minha presença foi percebida por ela, com um piscar de
olhos a mulher sumiu, deixando para trás somente a rosa azul no meio de tantas
outras brancas. Rapidamente a pego, a rosa não brilhava como ela, nem chegava
perto de sua beleza, era uma rosa simples, mas que deveria ser branca.
Mesmo o curioso acontecimento, logo me lembro da promessa, da promessa
que se eu passar a noite tentando entender o que ocorreu não será comprida. Eu
coloco a flor em meu bolso e saio andando pelos campos, as vezes apertando o
passo para que eu possa pegar o primeiro trem para o Kansas, e talvez ter
paciência para ir a Washington. O caminho à noite me causa o famoso sentimento
de liberdade, nunca mais eu irei voltar, nunca mais.

Depois disso minha vida passou como um piscar de olhos.


Foi algo tão rápido que ainda tenho memórias intactas da noite do dia que fui
embora. Fazia 12 anos desde que me mudei para o Kansas, fui a outros estados,
mas com minhas antigas experiências nunca nem cheguei perto dos estados do Sul.
Dessas viagens Washington foi a minha favorita, um estado perfeito e cada pessoa
que eu conversava me entendia, como um deles, eu não irei mentir por todos esses
anos eu acho que nunca fui um sulista, eles sempre foram tão diferentes de mim e
agora eu finalmente me encontrei, encontrei o meu povo.
Eu era singelo rapaz que acabara de completar seus 16 anos quando tomei
aquela decisão, e acho que foi umas das melhores que já tomei em toda minha vida.
Eu trabalho para um jornal, enquanto tento começar minha carreira de escritor,
mesmo que não seja nada fácil, eu tento a cada dia mais. Meu trabalho não pagava
muito, mas o suficiente para ter uma vida digna, algo que já era uma vitória em
relação aos outros.
Às vezes em dias cansativos me pergunto sobre minha antiga vida, sobre
aquelas pessoas que decidi abandoná-las, aquela casa, aquele jardim, aquela
moça. Gostaria de saber como minha família está, como eles lidam com o fato da
escravidão ser abolida, algo que eles eram tão contras, algo que para eles era inútil.
Queria ver como a minha casa, deitar em minha antiga cama, andar pelos jardins,
ver diversas plantas e tentar ter um novo encontro com a bela moça que colhia
rosas.
Me lembro de noites, quando havia acabado de me mudar, olha a rosa e
tentava criar qualquer teoria sobre a senhorita, sobre quem ela seria, o que fazia em
meu jardim, essas foram umas das milhares de perguntas que ecoavam em minha
mente e me impossibilitaram de dormir por diversos dias, e ainda atualmente me
causa dúvidas. Para mim ela foi uma santa vindo até mim querendo me mostrar
algo, não sei direito, mas para mim ela era muito mais do que somente uma mulher
que brilhava, algo dentro dela me incentivava a continuar minha jornada, ir atrás de
um novo começo.
Hoje era só mais um dia comum, saí de casa cedo e cheguei tarde em casa,
não me dei ao trabalho de comer algo quando cheguei, eu só queria ir ao encontro
da minha cama. Em minha casa tudo estava normal, tirando o vaso de flores da
minha sala, normalmente eram girassóis que o habitavam, mas hoje um grupo de
rosas brancas o tomaram. Eu o olhei profundamente, as flores me atraiam, tudo
aquilo me trouxe as lembranças que tive em meu jardim, os momentos que passei
por lá e a mulher, era a única vez em tempos que eu pensará nela, mas que algo
queria que eu a reencontrasse.
Naquela noite quis quebrar minha promessa de nunca mais voltar para aquela
terra, eu precisava saber, eu precisava de respostas. Não sentia falta de nada, nada
mesmo, só uma imensa curiosidade de descobrir, de ter uma resposta para todas
aquelas perguntas. Mesmo que quisesse resistir, aquele sentimento era muito maior
do que eu poderia guardar. Depois de tudo que prometi, quebrar minha palavra por
um vago sentimento de curiosidade não parecia correto, mas pela manhã isso tudo
iria embora e nem me lembraria disso.
Pelo menos era o que eu achava, pela manhã uma breve lembrança da noite
anterior e um sonho sobre meu passado são as únicas coisas memoráveis, a
curiosidade percorre pelo meu corpo, a única coisa que eu conseguia sentir. O meu
trabalho estava bem adiantado, talvez faltar um pouco no trabalho não me faça ser
demitido, e se for eu poderia me dedicar mas no-- O que eu estou pensando, ser
demitido não é uma opção, eu preciso dele para sobreviver, eu devo ser idiota.
Mesmo assim vou até a estação e pego o trem mais rápido para minha cidade
natal, um pequeno vilarejo no estado da Flórida, com somente o protótipo do meu
livro e uma jaqueta. O trem não estava muito cheio, ainda mais sendo para uma
localização bem no meio do nada, e era uma quinta-feira.
Mesmo saindo cedo eu cheguei lá a tarde e até encontrar onde fica minha
casa, demorou mais tempo ainda. Mas ela era irreconhecível, a pintura estava
descascada, a porta entreaberta, as janelas sujas, quase como se não fosse
habitada em anos, talvez agora meus sonhos se realizassem, morar naquela bela
residência sozinho, só eu e Deus, sem aqueles idiotas. Eu entro dentro da casa, ela
estava suja, completamente abandonada, somente mobiliada, sem decoração, sem
nada, como uma alma vazia. Eu olho aquele lugar deprimente, sem aquela paixão
que eu sentia antes, a minha casa era só um grande vazio.
Decido ir para o jardim, o único lugar que ainda poderia me trazer conforto,
porém ao chegar lá eu vejo as flores semi-mortas, num estado horrível. Eu não
conseguia acreditar que em algum momento aquilo foi reconfortante para mim,
agora era o mesmo de ver alguém pisar sobre seus sonhos. Era uma cena péssima,
eu queria escapar de lá, eu só queria esquecer aquilo.
Num piscar de olhos o ambiente muda, eu estou de noite, no meu jardim, dessa
vez tão belo quanto antes, aquele lugar que guardo sempre um pedaço do meu
coração para lembrar. Eu saio caminhando por ele, por algum motivo me parece
maior do que antes, mas necessariamente não era algo ruim, eu teria mais a ver ali,
uma experiência que eu amava. Até que chego perto das rosas e lá vejo, a mesma
mulher denovo, seus mesmos cabelos loiros, suas mesmas roupas, sua mesma
pele pálida, ela colhia rosas, dessa vez ela era vermelha, porém o vermelho escorria
por tudo, por sua mão, e pingava pelas outras flores.
Eu tento falar com ela novamente, mas como anteriormente, ela some em um
instante novamente sem conseguir ver seu rosto. A rosa vermelha cai e começa a
manchar as outras que eram por sua vez brancas. Eu a peguei, aquele líquido
vermelho não era vibrante como tinta, e era bem mais denso que água. Cada vez
mais eu estava coberto por aquele líquido, minhas mãos já nem eram tão visíveis.
Logo, eu não consigo mais ver a noite, tudo foi tomado por aquele vermelho,
não sentia medo, ou fúria, mas algo bem menos concreto. Por algum motivo eu
conseguia sentir cada gota de sangue derramada naquela terra, cada um que foi
ferido injustamente ou até mesmo morto, eu sentia a dor das pessoas. Aquela dor
nunca acabava, eu sentia como dias, semanas se passassem e eu estivesse preso
ali.
Uma hora aquilo parou, aquela dor parou e eu me vi em um lugar
completamente escuro, com somente uma luz, aquela mulher luminosa me guiava,
não conseguia ver seu rosto muito menos o caminho, eu só confiava nela, mais
nada. Ela me guia até pararmos e ela se virar para mim, no momento que eu veria
seu rosto minha visão fica preta, e eu não acordei. Mesmo tudo isso acontecendo, o
que eu mais temia ocorreu, aquilo não ser um sonho. Esse era o fim da minha nova
vida, da minha nova jornada, aquilo não foi reconfortante, muito menos insuportável,
eu só senti. Eu tinha tanto para viver, mas a morte naquele momento pareceu tão
justo que nem reclamei.
Talvez eu não precisasse de respostas, talvez eu não precisasse saber, mas eu
vim, e acabei com tudo, agora eu era uma alma livre e solta pelo mundo, pronta
para habitar lindos jardins com lindas flores azuis ou vermelhas, mas nunca
brancas.

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