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Diário de Sophýa Lasant

Weymouth, 2 de fevereiro de 2016. Fazem pelo menos oito dias desde que eles se
foram, e eu ainda não acredito que as coisas acabaram dessa forma, então resolvi iniciar
um diário, talvez se eu organizar os meus pensamentos possa chegar a uma conclusão.
Porém, mesmo repassando os fatos das últimas semanas diversas vezes na minha mente
nada se encaixa, seria melhor começar do começo... Por mais redundante que isso soe.

Minha existência nunca foi registrada nos cartórios, minha mãe me deu a luz em
segredo e meu pai morreu afogado um dia antes de eu nascer. Aos 6 anos ela me
expulsou de casa, me ter por perto era uma tarefa agonizante, as comidas apodreciam, a
colheita era devorada por gafanhotos, o gado ficava doente, qualquer problema era
muito provavelmente culpa minha, ela dizia que isso era uma maldição e não queria me
ver nunca mais. Naquela época morávamos na Sicília, era uma noite fria e eu não tinha
nada comigo exceto minhas roupas do corpo, eu pensei em pedir ajuda, mas todos
daquela pequena cidade aonde eu vivia já estavam cientes da minha situação, então
resolvi aceitar que eu não era desejada por perto, caminhei até a beira mar e me deparei
com um missionário viajante, o nome dele era Michel. Para minha surpresa ele me
adotou, eu sabia que não era boa idéia me envolver com alguém, dado os infortúnios
causados pela minha existência, mas antes que pudesse fazer qualquer coisa ele já
estava me levando com ele para a sua peregrinação. Meu novo pai era bastante fora do
comum, ele me disse que era praticante das artes mágicas e que procurava uma solução
para a morte, eu não entendi nada naquela época e até hoje não entendo muito bem, mas
ele me ensinou boa parte do que eu sei sobre o mundo, tanto o real quanto o fantástico.
Foram anos calmos, nós viajamos de lugar pra lugar, logo eu não causava nenhum tipo
de problema sério. (parte riscada********************************************
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*********************************************************), ele morreu e a
única coisa que me sobrou foi o manuscrito de Émigré, o livro que ele sempre levava
consigo, todas as suas anotações, tudo o que me restou. Eu ainda guardo ressentimento
por isso, aqueles que não conseguem aceitar a constante da morte não vão superá-la de
fato, eles moverão montanhas, darão sua alma e seu sangue, tudo isso para negar aquilo
que é tão natural quanto o nascimento. Eu não perdôo nenhum deles e não perdôo a
mim mesma por continuar o trabalho do meu pai. Ainda não engulo meu fascínio pela
morte.

Não me lembro da data ao certo, mas eram meiados do outono de 2009, eu acabava
de completar meus 14 anos, já havia 2 anos desde que o meu pai morreu, eu estava
morando numa ruela em Weymouth no interior da Inglaterra, lugar bem afastado das
multidões, então com a ajuda de um conhecido do meu pai me mudei para o prédio de
cima de uma loja de antiguidades que aparentemente não era afetada pelas minhas
“condições”. O nome do dono, confidente de meu pai, era Robert Layton, ou pelo
menos foi o que ele me disse, ele era um homem alto de pele morena e cabelos negros,
ele usava óculos escuros, acho que era cego, mas nunca tive certeza disso, eu raramente
o via exceto quando ele me levava as compras para o mês e algum dinheiro. Ele
geralmente ficava na loja, então eu sempre podia vê-lo quando bem entendesse, mas
minha presença é desagradável para os negócios, então no tempo livre eu geralmente
estava no meu quarto continuando os estudos sobre o manuscrito que meu pai deixou
em minhas mãos. Estranhamente naquela tarde tive vontade de andar pelas ruas, eu
geralmente faço isso durante a noite, mas alguma coisa me atraiu para fora de casa,
talvez fosse o cansaço, mas duvidei que isso tivesse alguma importância naquele
momento. Eu saí pelas ruas e becos como sempre, era agradável, não parecia haver
ninguém exceto as mesmas figuras de sempre, alguns mendigos, batedores de carteira,
trapaceiros, e por aí vai. No entanto, tinha alguém que eu nunca vi antes, era um garoto
baixo e loiro, parecia ordinário, haveria ele se perdido? Mudou-se para esse lugar
recentemente? Isso não importa, o que importa é que ele estava apostando com um
trapaceiro num jogo de cartas e incrivelmente ele ganhou, devo admitir que foi
incomum, ele não parecia ter mais que 12 anos, não foi magia, não foi sorte, ele sabia as
regras, isso era claro. Eu resolvi segui-lo pelos becos, minha curiosidade tomou o
melhor de mim naquele dia, continuei por alguns minutos, ele parecia saber aonde ir e
aonde evitar, até que ele chegou nas ruas mais abertas, lá eu vi pela primeira vez a
figura que me manteria intrigada por mais de uma década e também aquela que eu
chamaria de mentora por 7 longos anos. Mesmo daquela distância ela me viu, acenou e
sorriu, quando o garoto viu aquilo ele imediatamente se escondeu atrás dela, aquela
visão continua clara como uma foto na minha mente, era uma mulher alta, por volta dos
1,80 de cabelos negros, morena e de olhar gentil e confiante, ela usava uma roupa que
parecia ter saído de um filme de faroeste, o garoto atrás dela era bem baixo, tinha seus
1,40, vestia roupas bem comuns, uma blusa que parecia bem grande para o tamanho
dele, uma calça e um tênis, mas as cores combinavam perfeitamente com as roupas da
mulher, inferi que fossem irmãos, mesmo que adotivos. Aquela mulher com sua
esmagadora presença aproximou-se de mim, ela ajoelhou na minha frente e disse “Tem
algo de diferente em você, não é mesmo?”. Senti meu sangue gelar, seja lá como, ela
percebeu só de olhar para mim.

Eu me assustei, sabia que não deveria ter saído de casa, nada de bom acontece
quando eu saio por aí, eu não queria causar nenhum mal para aquelas pessoas. Eu corri
o máximo que pude até o meu apartamento, já havia começado a escurecer e o clima do
lugar mudava junto com o cair da noite. Eu deitei sobre minha cama repleta de folhas e
livros, bagunçada como sempre, eu tentei esquecer o dia de hoje, tentei acalmar a mim
mesma enquanto esperava o sono chegar. Fiquei horas sobre a cama, eram 3 da manhã,
eu percebo esse segundo, em seguida mais um e o próximo. Por que isso? Por que eu
nasci. Foi a essa conclusão da qual eu cheguei naquela madrugada. Era impossível
continuar na cama, decidi levantar-me, peguei meu casaco e meu guarda-chuva e saí
pela porta sob o impulso dos pensamentos mais sombrios. E se eu pulasse do topo do
penhasco? Eu caminhei pelas ruas na madrugada e por volta das 4 da manhã cheguei até
alguns rochedos numa praia afastada enquanto fazia todo tipo de reflexões amargas. Eu
Sentei sobre uma pedra e olhei as ondas visitadas pela lua, logo em seguida ouvi algo
vindo na minha direção, ao virar para trás me deparei novamente com aquelas figuras
pitorescas, mesmo na escuridão da noite eu percebi rapidamente quem eram. Aqueles de
mais cedo, a mulher o garoto, eles tinham um ar inquietante sobre eles, a mulher me
fitava na distância, ela vinha até a minha direção calmamente, enquanto isso o garoto
andava agarrado à ponta do casaco estranhamente chamativo da mulher, ele me olhava
quietamente por trás dela. “Eu sei que é ser difícil, mas se acalme, não queremos o seu
mal.” ela me disse, agora numa distância perto o bastante para vê-la perfeitamente, seu
rosto tinha traços fortes, pareciam nativo-americanos, ela era tão estranha, mas mesmo
assim tudo parecia se encaixar, como se o próprio ar deslizasse em sua forma, era como
se ela entendesse algo que ninguém mais podia entender e o universo acenasse de volta.
Por outro lado o garoto era desconcertante, sua mera presença parecia errada apesar de
sua aparência ordinária, ele parecia extremamente envergonhado, completamente
agarrado a mulher, ele não me disse uma palavra. Eles se sentaram ao meu lado, naquele
momento eu não possuía ânimo algum para questionar ou ir embora, mesmo assustada
acabei aceitando a companhia de ambos. A mulher começou a falar, ela me perguntou
sobre vários assuntos, alguns bem ordinários, como o clima, comida local, bons hotéis e
afins. Nesse meio tempo o garoto começou a falar também, eles pareciam se entender
bastante, me disseram que se chamavam Mathias e Judith, os dois obviamente não eram
daqui, mas pelo que ambos me contaram vieram juntos de bem longe, algum lugar na
América Central.

Eles não pareciam querer nada de ruim e nem se importar com a minha situação, a
conversa continuou até o amanhecer, não lembro a última vez que me senti tão
confortável

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