Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Hélgio Trindade
Departamento de Ciência Política, Universidade Federal do Rio Grande do Sul
6 Jan/Fev/Mar/Abr 1999 N º 10
Universidade em perspectiva
a partir de 1636, em Cambridge (Harvard), Filadél- rior. Daí ser da essência da instituição universitá-
fia, Yale, Princeton e Columbia (Benjamin, 1964). ria medieval o corporativismo, a autonomia e a li-
Cabe observar que há um padrão marcamente berdade acadêmicas.
diferenciado no ensino superior da América Lati- A nova instituição estrutura-se, originariamen-
na. Na América espanhola, a universidade se im- te, através das corporações de professores (Paris) ou
planta logo após a conquista e, até fins do século de estudantes (Bolonha), e as “repúblicas” de es-
XVII, existe uma rede de 12 instituições de norte a tudantes estrangeiros, organizadas por país de ori-
sul do continente. A primeira é de 1538, em Santo gem, que chamavam-se “nações” (Verger, 1990, p.
Domingo, na América Central; em 1613 é funda- 19-69). Havia uma significativa circulação de alu-
da pelos jesuítas a sexta universidade, situada em nos (ingleses, alemães, franceses, italianos, espa-
Córdoba, na Argentina. O modelo espanhol trans- nhóis e portugueses) e de professores entre os di-
plantado não é somente o da velha Universidade de ferentes centros. Inclusive, certos conflitos deram
Salamanca, mas sobretudo o da nova Universida- origem a novas universidades, tais como Orleans,
de de Alcalá, atual Complutense, e até fins do sé- Pádua e Cambridge, a partir de cisões em Paris,
culo XVII domina o padrão tradicional das facul- Bolonha e Oxford.
dades de teologia, leis, artes e medicina. Os três campos de formação que marcam a
No Brasil, a universidade se institucionaliza origem das universidades medievais são sucessiva-
apenas no nosso século, embora tenha havido es- mente a teologia (Paris), o direito (Bolonha) e a me-
colas e faculdades profissionais isoladas que a pre- dicina (Montpellier, sob a influência de Salerno e
cederam desde 1808, quando o príncipe regente, da cultura árabe).
com a transferência da Corte para o Brasil, cria o A universidade medieval se constitui de duas
primeiro curso de cirurgia, anatomia e obstetrícia. formas, ou espontaneamente (consuetudine) ou por
A “universidade temporã”, na expressão de Luiz bula papal ou imperial. Segundo alguns analistas,
Antônio Cunha, somente se organiza tardiamente, aqui termina a fase espontânea da criação das uni-
a partir da década de 20 de nosso século. Como versidades e elas passam a ser o produto de estra-
observa Anísio Teixeira (1989, p. 98), o Brasil es- tégias de papas ou imperadores. Como as univer-
teve fora do processo universitário quando o tema sidades enfrentavam conflitos com os poderes lo-
principal do debate, na século XIX, era “a nova cais da Igreja ou do governo, sucessivos papas ou
universidade, devotada à pesquisa e à ciência”. imperadores começaram a atribuir privilégios às
universidades para preservar sua autonomia.
A universidade medieval A expansão das universidades dá-se ao longo
dos século XII e XIII na França (Toulouse), Ingla-
A partir do século XII a universidade é inven- terra (Oxford, Cambridge) e Itália (Siena, Pávia,
tada e se institucionaliza apoiada no trabalho dos Nápoles), Espanha (Salamanca, Valencia, Vallado-
copistas e tradutores, que preservaram grande parte lid) e Portugal (Coimbra). Com a criação da Uni-
do legado greco-cristão para formar clérigos e ma- versidade de Valladolid, o rei Afonso, o Sábio, es-
gistrados. Em sua fase áurea, esta se organiza atra- tabelece a primeira legislação universitária elabo-
vés do modelo corporativo (Universitas scholarium rada por um Estado (D’Irsay, 1993, t. I e t. II).
et magistrorum), em torno de uma catedral (Alma O que se pode resgatar do modelo medieval é
Mater), abarcando vários domínios do saber, como: uma concepção de instituição universitária com três
teologia, direito romano e canônico e as artes. elementos básicos: centralmente voltada para uma
A corporação de professores ou estudantes é formação teológico-jurídica que responde às neces-
a base da nova instituição, enquanto o termo stu- sidades de uma sociedade dominada por uma cos-
dium significava o estabelecimento de ensino supe- movisão católica; com uma organização corpora-
tiva em seu significado originário medieval; e pre- cipes. Essa tendência, iniciada no século XV e con-
servando sua autonomia em face do poder político cluída no início do século XVI, estabelece um dos
e da Igreja institucionalizada local. padrões da universidade européia: são instituições
doravante vinculadas ao Estado e este processo se
A universidade renascentista acentuará com a Reforma protestante.
A Reforma e a Contra-Reforma introduziram
Desde o século XV, as sociedade européias vi- um corte religioso radical entre as universidades. A
verão sob o impacto de transformações que come- reforma protestante luterana, com seus desdobra-
çam a mudar o perfil da universidade tradicional, mentos calvinistas e anglicanos, rompe com a he-
através de um longo processo de transição para a gemonia tradicional da Igreja e provoca uma rea-
universidade moderna do século XIX. ção contrária através da Contra-Reforma. A vida
O epicentro da Renascença é a Itália do Quat- intelectual do século XVI será marcada por esses
trocento e Cinquecento sob a impulsão das repú- dois vastos movimentos que determinam o futuro
blicas de Veneza e Florença dos Médicis e dos Pa- da Europa.
pas. O desenvolvimento das universidades de Flo- A ação de Lutero a partir de Wittenberg, no
rença, Roma e Nápoles e da Academia da Neo-Pla- centro geográfico da Alemanha, se espalha por to-
tônica serão centrais para o fim da hegemonia teo- do o território (salvo a Baviera e a Boêmia), geran-
lógica e o advento do humanismo antropocêntrico. do as primeiras universidades desde 1544 (Leipzig,
Se na Itália a ruptura com a Idade Média é Tübiguen, Marburg, Königsberg e Jena). A divisão
explícita na arquitetura, escultura, pintura e litera- dos protestantes, porém, favorece a reação do ca-
tura, para além dos Alpes o início do Renascimento tolicismo, especialmente por meio da Companhia
será mais disperso e a ruptura com a Idade Média de Jesus.
se fará de forma mais lenta. A Contra-Reforma teve no Concílio de Trento
O humanismo não atinge com mesma força a seu norte renovador que encontrou na Espanha for-
Universidade de Paris, que se mantém fiel às suas mas variadas de inovação: o barroco, a mística, a
origens, mas o acontecimento mais marcante será filosofia e a literatura nacional. A ação dos jesuí-
a fundação do Collège de France por François I tas amplia o campo universitário da contra-refor-
(1530), sob o signo dos novos tempos. ma na Alemanha, França, Países Baixos e Itália,
A universidade que realiza essa transição para especialmente com a criação da Universidade Gre-
o humanismo sem romper a tradição medieval é goriana, em Roma (1533).
Louvain (1415), situada no encontro entre a civili- Para além do humanismo renascentista, da Re-
zação francesa e a alemã. Torna-se um importante forma e da Contra-Reforma, o último elemento é
centro do renascimento literário na Europa, que vai a nova relação entre universidade e ciência, que terá
influir nas universidades inglesas, primeiro em Ox- um novo impacto transformador na estruturação da
ford e depois em Cambridge, onde Erasmo de Rot- vida universitária.
terdam ensina grego e se doutora em teologia.
O humanismo literário penetra também nas Universidade e ciência
universidades alemãs e, apesar da resistência de Co-
lônia, será importante em Viena e Basiléia, mas so- O século XVII foi marcado, sobretudo, pelas
bretudo em Erfurt e Wittenberg. descobertas da física, astronomia e da matemática,
Um traço novo, porém, que aparece na evo- enquanto no século do XVIII o avanço foi predo-
lução da universidade alemã no século XIX é, com minante no campo da química e das ciências natu-
o desaparecimento do feudalismo, o controle pro- rais. Na transição entre os dois séculos fundam-se
gressivo das universidades pelos poderes dos prín- as primeiras cátedras científicas e surgem os primei-
8 Jan/Fev/Mar/Abr 1999 N º 10
Universidade em perspectiva
ção dos salários dos professores, contra a qual se da ordem social, num sentido ou noutro” (D’Irsay,
opõem os enciclopedistas, temerosos da negligên- 1993).
cia dos mestres. Com a expulsão dos jesuítas da Com exceção do Collège de France, a Univer-
França (1762), inicia-se o processo de estatização sidade tornou-se um instrumento do poder imperial.
do ensino superior pela Revolução e o Império. Seu sistema de escolas primárias, colégios, liceus e
As universidades, pois, não seguem um modelo faculdades profissionais (direito, medicina, ciências
único e a história da universidade, a partir do sé- técnicas), denominado Academia nas diferentes re-
culo XVII, se confunde, em grande medida, com as giões do Império, criou ainda as “faculdades isola-
vicissitudes das relações entre ciência, universida- das” com diplomas equivalentes e a École Normale
de e Estado. As novas tendências da universidade que se destinava à formação de professores. O novo
caminham em direção a sua nacionalização, esta- sistema estatal napoleônico foi eficiente na forma-
tização (França e Alemanha) e abolição do mono- ção profissional, mas as ciências não tiveram a evo-
pólio corporativo dos professores, iniciando-se o lução da universidade prussiana de Berlim.
que se pode denominar “papel social das universi- O impacto da guerras revolucionárias e napo-
dades”, com o desenvolvimento de três novas pro- leônicas afeta fortemente a Alemanha, provocando
fissões de interesse dos governos: o engenheiro, o uma mudança profunda em suas instituições, inclu-
economista e o diplomata. sive universitárias. Com a ocupação francesa da
Após a Revolução Francesa, a universidade margem esquerda do Reno, as universidades de Co-
napoleônica rompe com a tradição das universida- lônia, Mayence e Trier fecham e, depois, desapa-
des medievais e renascentistas e organiza-se, pela recem mais dezesseis universidades, dentre elas Er-
primeira vez, subordinada a um Estado nacional. furt. O Estado prussiano concentra seus esforços na
Num contexto de hegemonia e de expansionismo Universidade de Halle, mas com a derrota de Jena
francês, Napoleão funda, em 1806, a Universida- teve de renunciar a seus novos territórios. A Prússia
de imperial, subdividida em Academias, que se con- perde toda a sua base intelectual e a criação de uma
figura de forma inovadora, designando um “corpo nova universidade se impunha.
encarregado exclusivamente do ensino e da educa- A concepção de uma universidade fundada so-
ção pública em todo o Império”. Trata-se de uma bre o princípio das pesquisas e no trabalho cientí-
corporação, mas uma corporação criada e mantida fico desinteressado associado ao ensino amadure-
pelo Estado, tornando a educação um monopólio ce sob o impulso do Estado. Com a nomeação do
estatal. A universidade napoleônica e suas Acade- sábio Humboldt, em 1809, para o Departamento
mias se estendem aos Países Baixos e à Itália (Ri- dos Cultos e da Instrução Pública do Ministério do
beiro, 1975, p. 51-88). Interior, a nova universidade nasce da fusão com a
A universidade napoleônica torna-se um po- Academia de Berlim, garantindo a liberdade dos
deroso instrumento para criar quadros necessários cientistas e sob a proteção do Estado, da qual de-
para a sociedade e para difundir a doutrina do im- pendia seu orçamento anual.
perador: a conservação da ordem social e a devo- O problema da educação nacional colocava-
ção ao imperador que encarna, primeiro, a sobe- se de forma tão central na Prússia, quanto para a
rania nacional e, depois, supranacional. O meca- França napoleônica. A diferença era que, na ausên-
nismo-chave é o poder do governo de nomear os cia do Estado-Nação, o Estado prussiano era o por-
professores, assistido por um Conselho, porque o tador potencial da civilização nacional. Humboldt
imperador “quer um corpo cuja doutrina esteja ao distinguia Estado e Nação, sendo a educação par-
abrigo das pequenas febres da moda; que marche te da última, e a Universidade de Berlim foi conce-
sempre quando o governo dorme” e que seja “uma bida como o laboratório da nova Nação e não ape-
garantia contra as teorias perniciosas e subversivas nas de um Estado territorial legado por Bismarck.
10 Jan/Fev/Mar/Abr 1999 N º 10
Universidade em perspectiva
Ela se torna o centro da luta pela hegemonia inte- to mudaram os paradigmas científicos como suas
lectual e moral na Alemanha. relações com o Estado e a sociedade, a partir de sua
O primeiro reitor da Universidade de Berlim eficácia em termos econômicos e militares. Da mes-
foi o filósofo Fichte. A nova universidade se or- ma forma, as universidades, inseridas na produção
ganizava não pelas faculdades isoladas napoleôni- científica e tecnológica para o mercado ou para o
cas, mas de forma integrada, por meio das faculda- Estado, tanto nas economias capitalistas como so-
des de medicina, direito e filosofia. A hegemonia cialistas, ficaram submetidas a lógicas que afetaram
metodológica do “seminário alemão”, nascido em substantivamente sua autonomia acadêmico-cien-
Halle e Göttingen, torna-se a pedagogia integrado- tífica tradicional. Esta é a problemática que vamos
ra dos exercícios filosóficos, históricos e orienta- abordar nesta parte final de nossa exposição.
listas, em que o sincretismo religioso preponderou Uma análise histórica mais detalhada mostra-
sobre o confessionalismo protestante ou católico ria, por exemplo, que na França revolucionária,
(D’Irsay, 1993). após a fase em que os “aristocratas do saber” são
O movimento iniciado com a Universidade de perseguidos durante o Terror e a Academia de Ciên-
Berlim produz a recuperação progressiva das uni- cias e a própria universidade são fechadas, a ciência
versidades alemãs entre 1810 e 1820, dentro de uma é reabilitada. Um minuncioso livro sobre o período,
concepção de universidade que se estrutura pela do historiador da ciência Jean Dhombres (1989),
indivisibilidade do saber e do ensino e pesquisa, comprova que nesse período se assiste ao “nasci-
contra a idéia das escolas profissionais napoleôni- mento de um novo poder”. Nosso foco, porém, vai
cas (Weber, 1989). se restringir a essas relações no pós-Segunda Guer-
Resta referir que a fundação da Universidade ra Mundial.
de Londres como uma universidade livre, em 1828, Tanto nas sociedades industriais avançadas
por um grupo de liberais, tem como resposta a quanto nas universidades, a ciência e sua organiza-
criação do King’s College (Londres), em 1831, sen- ção tornaram-se um problema eminentemente polí-
do que Oxford e Cambridge se opõem a que a no- tico. A idéia de que todo o saber eficaz é, ao mesmo
va universidade seja constituída por carta real. De tempo, poder, segundo Ladrière, é muito antiga. A
um compromisso entre as duas partes, em 1836, se ciência perdeu a inocência no massacre apocalípti-
constitui como corporação de direito público a no- co de Hiroxima e, mais recentemente, com as in-
va universidade de ensino e pesquisa sob a influên- quietantes perspectivas da militarização do espaço.
cia de Berlim, que vai desencadear reformas nas Na sociedade moderna seria ingênuo imaginar
duas universidades tradicionais em meados do sé- que o sistema científico se organiza e se desenvol-
culo XIX. ve de forma autônoma. O ideal da auto-organiza-
Estabelecem-se assim as matrizes da universi- ção da ciência confronta-se cotidianamente com as
dade moderna estatal ou pública, influenciando a injunções da política científica governamental, sob
dinâmica das universidades na Europa e nas Amé- pena de inviabilizar-se em função do alto custo de
ricas, a qual até nossos dias traz para o centro da sua realização.
instituição universitária as complexas relações en- O fulcro do problema é que hoje não se pode
tre sociedade, conhecimento e poder. falar de ciência em abstrato, mas do que os homens
fazem em nome da ciência, por meio dela ou visan-
Sociedade, conhecimento e poder do seu desenvolvimento. E, na medida em que a
ciência também está submetida ao jogo do poder,
A complexa problemática — universidade, so- transforma-se, segundo Habermas, não só num ins-
ciedade, conhecimento e poder — tem seu ponto trumento nas mãos dos membros dos poderes eco-
crítico nas novas relações entre ciência e poder. Tan- nômicos e políticos, mas também no invólucro ideo-
lógico de todo sistema político avançado (Trinda- esforços para explorar as relações entre ciência,
de, 1985, p. 2-5).4 tecnologia e produção”. A dominação dos Estados
O que visam, em última instância, as políticas Unidos inquieta fortemente a Europa e a distância
científicas que se generalizam em todos os países tecnológica põe perigosamente em risco sua com-
senão colocar nas mãos do Estado ou de empresas petitividade. Apesar da ameaça nuclear e do fosso
multinacionais a definição de prioridades estratégi- que abre com a periferia do sistema capitalista, atri-
cas e da alocação dos recursos financeiros que esta- bui-se esse problema à “má orientação ou a apli-
belecem os parâmetros da pesquisa científica e tec- cações erradas da ciência”.
nológica? Torna-se imperioso reintroduzir a ques- A terceira fase é uma “época de desilusão com
tão ética, seja sob a forma de uma ética do pesqui- relação à ciência e tecnologia” e os cientistas são
sador, seja, sobretudo, de uma ética da comunida- considerados como instrumentos do poder militar
de científica em todos os seus ramos a propósito da e econômico e insensíveis aos graves problemas so-
ciência, de sua utilização e de sua responsabilida- ciais e ecológicos que os rodeiam. Esse desencan-
de social. tamento afeta também a indústria de alta tecnolo-
Em recente obra coletiva, Science et pouvoir, gia, especialmente a multinacional, e o crescimento
publicada pela UNESCO, Ferraroti (1996, p. 54- constante no domínio da pesquisa começa a dimi-
9) mostra como o “quadro ideológico-conceitual nuir seu ritmo.
do século XVIII” da ciência tornou-se “obsoleto” A última fase, que se inicia nos anos 70 com
e que “a ciência e os cientistas estão freqüente- os choques do petróleo, é um período de fraco de-
mente a serviço do poder constituído [...], fazen- senvolvimento econômico e cheio de incerteza. A
do evoluir a natureza do poder e dos que o exer- indústria pesada entra em crise e o Japão se expande
cem. A ciência e o poder têm uma influência cres- na indústria automobilística e eletrônica, inician-
cente sobre a fonte do poder e sobre as formas de do-se a era da microeletrônica, da automatização
seu exercício”. e da robotização da sociedade pós-industrial. O ba-
Dessa perspectiva, King, conselheiro do go- lanço do autor é de que “a pesquisa científica apa-
verno inglês e diretor-geral da OCDE, explicita es- rece como hipergeradora de poder, capaz de aumen-
sas novas relações entre sociedade, ciência e poder. tar ainda o poderio dos mais poderosos” (King,
Chama atenção para o fato de que a atitude geral 1996, p. 66-77, 99).
da opinião pública diante da ciência “oscilou en- A dependência da ciência com relação ao Es-
tre a veneração dos mistérios da ciência e o desprezo tado mudou radicalmente no pós-guerra, especial-
em face do seu poder maléfico”. mente pela estreita interação entre ciência básica e
King destaca várias fases na evolução dessas no- a ciência aplicada voltada para a utilização civil ou
vas relações no pós-guerra: numa primeira fase, após militar. Nos Estados Unidos, com a guerra da Co-
a crença num futuro construtivo e pacífico, “as con- réia e do Vietnã, o eixo tecnológico-militar mais
siderações estratégicas gerais e a emergência da guer- avançado passou para a costa do Pacífico. Sem os
ra fria orientam em grande parte o esforço de pes- financiamentos federais maciços nas universidades
quisa e de desenvolvimento para o esforço militar”. de maior prestígio, não teria havido o elo entre pes-
No final dos anos 60 uma nova fase se abre, quisa e alta tecnologia, especialmente na área de
marcada por uma expansão sem precedentes nos informática, que viabilizou o fascinante terror do
países capitalistas centrais e no Japão, e crescem “os videogame da Guerra do Golfo.
O Vale do Silício, com as mais avançadas em-
presas de informática concentradas entre Palo Alto
e San José, na Califórnia, não teria se tornado o pólo
9 Ver também Trindade, 1996. mais dinâmico do mundo sem financiamentos as-
12 Jan/Fev/Mar/Abr 1999 N º 10
Universidade em perspectiva
sociados à guerra fria e à conquista espacial. Recen- uma vez que as atividades acadêmicas de pesquisa
te livro sobre a Universidade de Stanford e a guer- social acadêmica parecem não ingressar no “circuito
ra fria tem um capítulo intitulado “Stanford vai à efetivo de sua utilização” e “muito menos nas are-
guerra”, no qual está descrita essa relação comple- nas de decisão dos assuntos relevantes”.
xa entre a universidade, seus departamentos das Assim, as complexas relações entre conheci-
áreas científicas e tecnológicas e os financiamentos mento e poder interpenetram a sociedade contem-
governamentais para o desenvolvimento de pesqui- porânea em todos os níveis, da esfera pública ao
sas (Lowen, 1997). mercado, recolocando uma questão central de na-
Como observa Federico Mayor, diretor-geral tureza ética.
da UNESCO, “o sucesso da ciência tornou as rela-
ções entre a comunidade científica e o Estado mais O desafio da universidade
complexas que antes”, mostrando a contradição
entre os cientistas que dependem crescentemente Neste complexo contexto, o que se espera da
dos recursos do Estado mas não querem ser gover- universidade? Primeiro temos de ter consciência de
nados por ele e os governos que querem planejar a que, para além do público e do privado, a própria
pesquisa e orientá-la para os setores economicamen- instituição universitária está em crise. Pela primei-
te mais promissores (Mayor, 1996, p. 142). ra vez na história, a crise da universidade é a crise
Até aqui falamos das “ciências duras” e de sua da própria instituição multissecular na sociedade
relação com a sociedade e o poder. E o que se pas- de conhecimento em que os mecanismos seletivos
sa nas ciências sociais e aplicadas? desenvolvidos, de financiamento da pesquisa cien-
Este tema é abordado por Brunner e Sunkel tífica ou social, básica ou aplicada, querem restrin-
(1993), no livro intitulado Conocimiento, sociedad gir a universidade à sua função tradicional de for-
y politica, no qual afirmam que os pesquisadores mar profissionais polivalentes para o mercado.
sociais “recolhidos em seus domínios tradicionais O Ataque à universidade, título de um clássi-
de produção — departamentos ou centros de pes- co livro de um especialista inglês em educação su-
quisa — se encontram cada dia em maior desvan- perior sobre o poder exterminador da “era Tha-
tagem com relação aos analistas simbólicos que tcher”, confronta-se com a tradição de que a uni-
cumprem as mesmas funções em novos domínios versidade tem de cumprir sua “missão pública”
(consultorias privadas, assessoria legislativa, agên- numa sociedade em que o espaço público se trans-
cias de análise e organismos internacionais)”. nacionaliza.
Trata-se de reconhecer o fato de que se “está Uma das vertentes da visão neoliberal em edu-
constituindo um sistema que parece cada vez mais cação superior é uma concepção teórica sustentada
um contexto de mercado dentro do qual se organi- por alguns especialistas em economia da educação
zam os serviços desenvolvidos pelos analistas sim- e gestão do ensino superior ligados ao periódico
bólicos”, no qual se “valoriza o serviço final mais Policy Perspective, da Universidade da Pensilvânia,
do que o conhecimento”. Utilizando-se do conhe- e que resultou de um conjunto de seminários inter-
cimento disponível das ciências sociais, o que inte- nacionais. A lógica do modelo é de que a universi-
ressa é o “serviço que o manipula, operando os efei- dade deve “responder a diversas necessidades que
tos práticos buscados”. lhe são externas”, tornando-se cada vez mais uma
Os autores consideram que esse novo quadro “organização multifuncional, indispensável e utili-
de “globalização do mercado de analistas simbóli- tária”. Este novo modelo internacional, válido in-
cos” cria novas formas de financiamento em expan- clusive para os Estados Unidos, deve ter uma forte
são e torna obsoletas as formas “que no passado ênfase na graduação e ser cada vez mais seletivo na
permitiam o desenvolvimento das universidades”, pesquisa, fazendo com que “a prestação de serviços
econômicos e sociais faça parte em igualdade com o ensino superior. Um bom exemplo é o Manifes-
a pesquisa de novos conhecimentos”. 5 to “Por uma reforma urgente para salvar a univer-
No livro Reinventando o governo, de Osborne sidade pública”, lançado por um grupo pluralista
e Gaebler, os autores apresentam o exemplo da Fa- de pesquisadores (Vários, 1998).
culdade Técnica Fox Valley em Wisconsin, com 45 Outra iniciativa da qual faço parte, juntamente
mil alunos, como a “instituição pública mais com- com uma rede de pesquisadores de várias univer-
pletamente voltada para o cliente”. A proposta dos sidade, é o CIPEDES, nascido no bojo da revista
autores é de que “a única e melhor maneira de fa- Avaliação e da consciência de que é preciso enfren-
zer com que os prestadores de serviços públicos res- tar a questão de forma interdisciplinar e levando em
pondam aos seus clientes é colocar os recursos nas conta a vasta literatura internacional que tem de-
mãos dos clientes e deixá-los escolher”. E concluem batido este problema crítico das sociedades atuais:
sem rodeios: “se os clientes controlam os recursos, o destino da universidade.
são eles que escolhem o destino e a rota” (Osborne Federico Mayor, concluindo o livro Science et
e Gaebler, 1994, p. 190). pouvoir, dirá que “o conhecimento é o poder, mas
Essa é a problemática dentro da qual é preci- o poder de criar, de prever e de evitar. Aplicar este
so repensar as saídas para a universidade enquan- conhecimento para o bem da humanidade é a sabe-
to instituição social e, de modo específico, os dile- doria. Conhecimento e sabedoria são as duas garan-
mas da universidade pública brasileira. tias de um futuro comum melhor” (Mayor, 1996,
Sem fugir do debate brasileiro, devemos rom- p. 142, 177). Conclui citando esses versos proféti-
per seus limites. O debate atual tem uma agenda cos do poeta espanhol Otto René Castillo:
proposta pelo governo e ficamos circunscritos a
Un dia los intelectuales apoliticos de mi pais seran
uma atitude meramente reativa. A problemática é
interpelados por el hombre sencillo de nuestro pueblo.
latino-americana e, mesmo nos países com forte
Se les preguntara sobre lo que hicieran
tradição de ensino público hegemônico, como Mé-
cuando la patria se apagava lentamente
xico, Argentina e Uruguai, a expansão do ensino
como una hoguera dulce, pequeña y sola.
privado é um fato significativo, indicando uma nova
tendência. Do privado sob a hegemonia do públi-
co (Daniel Levy, anos 70) passamos progressiva-
mente para o público submetido à expansão des- HÉLGIO TRINDADE é professor titular do Depar-
tamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia, Ciên-
controlada do privado (Levy, 1980). 6
cias e Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Por isto professores e pesquisadores compro- Ex-reitor da UFRGS e ex-presidente da Associação dos Di-
metidos com os destinos da universidade pública rigentes de Instituições Federais de Ensino Superior (ANDI-
brasileira precisam se aglutinar em fóruns, centros FES), realizou seu pós-doutorado na Universidade de Stan-
e núcleos fora do governo para pensar alternativas ford, Califórnia.
e retomar a iniciativa de uma agenda política para
Referências bibliográficas
5 Ver o periódico Policy Perspective, do Institute for AVALIAÇÃO (1997). Ano 2, v. 2, nº 4 (6), dez.
Research on Higher Education, Universidade da Pensilvâ-
nia, especialmente os números de 1993: “The Transatlantic BENJAMIN, Harold R. W., (1964). La educación superior
Dialogue” e “Na Uncertain Terrain”. en la republicas americanas. Nova York: McGraw-Hill.
14 Jan/Fev/Mar/Abr 1999 N º 10
Universidade em perspectiva
CUNHA, Luiz Antônio. A universidade temporã: o ensino TRINDADE, Hélgio, (1985). Discurso-Programa. Ação
superior da colônia à era Vargas. São Paulo: Civilização PROPESP 1985-1988, Documento Síntese. UFRGS, 21
Brasileira, Edições UFC. jan.
DHOMBRES, Nicole, (1989). Naissance d’un nouveau __________, (1996). Universidade em perspectiva. Porto
pouvoir: sciences et savants en France, 1793-1824. Pa- Alegre: UFRGS.
ris: Payot. TRINDADE, Hélgio, LUCE, Maria Beatriz, (1996). Mu-
D’IRSAY, Stephen, (1993). Histoire des universités fran- dança e desenvolvimento da universidade pública na
çaises et étrangères. Tomos I e II. Paris: Auguste Picard. América Latina. Seminário Internacional da Associação
FERRAROTTI, Franco, (1996). La Révolution industrielle dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Supe-
rior. Brasília: ANDIFES.
et les nouveaux acquis de la science, de la technologie et
du pouvoir. In: MAYOR, Federico, FORTI, Augusto. VÁRIOS, (1998). Por uma reforma urgente para salvar a
Science et pouvoir. Paris: UNESCO, Maisonneuve & universidade pública. “Separata CIPEDES”. Avaliação,
Larose. nº 1.
FRIENDBERG, Erhard, MUSSELIN, Christine, (1989). En- VERGER, Jacques, (1990). As universidades na Idade Mé-
quête d’universités: étude comparée des universités en dia. São Paulo: UNESP.
France et en RFA. Paris: Éditions l’Harmattan. WEBER, Max, (1989). Sobre a universidade: o poder do Es-
GUADILLA, Carmen Garcia, (1996). Situación y principales tado e a dignidade da profissão acadêmica. São Paulo:
dinamicas de transformación de la educacion superior en Cortez.
America Latina. Caracas: CRESALC/UNESCO.
KING, Alexander, (1996). Science et technologie depuis la
fin de la seconde guerre mondiale. In: MAYOR, Federi-
co, FORTI, Augusto. Science et pouvoir. Paris: UNES-
CO, Maisonneuve & Larose.
KOGAN, Maurice. The Attack on Higher Education.
LEOPOLDO e SILVA, Franklin et al., (1996). Conciliação,
neoliberalismo e educação. São Paulo: Annablume, Fun-
dação UNESP.
LOWEN, Rebecca S., (1997). Criating Decode War Univer-
sity: The Transformation of Stanford. Los Angeles: Uni-
versity of California Press.
MAYOR, Federico, FORTI, Augusto, (1996). Science et
pouvoir. Paris: UNESCO, Maisonneuve & Larose.
OSBORNE, David, GAEBLER, Ted, (1994). Reinventando
o governo: como o espírito empreendedor está transfor-
mando o setor público. Brasília: M. H. Comunicação,
ENAP.
POUR UNE MODÈLE EUROPÉEN D’ENSEIGNE-
MENT SUPÉRIEUR, (1998). Rapport de la comission
presidée par Jacques Attali. Paris: Stock.
RIBEIRO, Darcy, (1975). A universidade necessária. 5ª ed.
Rio de Janeiro: Paz e Terra.
TEIXEIRA, Anísio, (1989). Ensino superior no Brasil: aná-
lise e interpretação de sua evolução até 1969. Rio de
Janeiro: Instituto de Documentação, Fundação Getúlio
Vargas.