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& Branne

VIAGEM
AS PROVINCIAS
DO

NORTE

POR

Antonio Ildefonso Gomes .

1856 e 1857 .

RIO DE JANEIRO.

TYP . ANBRICANA DE JOSÉ SOARES DE PINHO .


Rua da Alfandega n . 210.
1857 .

st
DEDICATORIA.

Sperne Voluptates,
nocet empta dolore Voluptas.

A' meus muito amados irmãos, que arrojados aos im


mundos carceres das provincias do norte , lamentam seus
já passados erros, chorando arrependidos seus desman
dos, seus desvios, a quem em fraternal visita eu recitei
estas consoladoras palavras do Redemptor : Non enim
veni vocare justos, sed pecatores. Porque não vim cha
mar os justos, porém sim os peccadores . Marcos 2 XVII .
II.

Lembrando -lhes ao mesmo tempo as edificantes p ara


bolas do bom pastor, que dá a propria vida por suas ove
lhas, que abandonando 99, vae buscar uma só desgar
rada, e triumphante a carrega aos hombros,congratulan
do-se com seus vizinhos. Da mulher que a muito custo
achou á noite uma das dez drachmas perdidas ; final
mente, a muito internecedôra e sublime do filho pro
digo. Lucas XV. ( David, Pedro , Paulo, Jeronymo, Agos
tinho, Magdalena, e Pelagia, foram criminosos.)
III .

Recebei amados meus, este testemunho de meu verda


deiro affecto, e perfeita consideração.
Sepultados nessas medonhas, tenebrosas masmorras,
de omminosa, cinistra, horrenda catadura ; coberto: do
andrajos, ruidos de vermina, macerados de privações, vi
gilias, angustias e miserias, carregados de ferro ;, des
prezados, abandonados e até já muito esquecidos de todo
o mundo .
IV .

Assim mesmo sois ainda para mim, mais nobres e res


peitaveis, que alguns excellentissimos malcriados, pexin
xeiros, lambazes, esſomiados, que andam por aqui enver
gonhando o Estado, que os alimenta, o Soberano que os
emprega . Vós outros , marchando na vereda da peniten
cia , do arrependimento , podeis ainda reformar vossos
costumes, fazer - vos homens novos, e uteis ao Estado.
V.

Emquanto que estes incorrigiveis excellentissimos sem


vergonha, perversos,e prevaricadores : affrontando o de
corum, e moral publica, fazendo grande parada , e solem
ne exposição, de immoralidade, prostituição,e venalidade ;
precipitam a si , e ao Estado, no insondavel abysmo dos
vicios, dos crimes ,abominação, abjecção, e ignominia.
Vale .

Antoniolldefonso Gomes.
VIAGEM
AS PROVINCIAS DO NORTE .
POR

Antonio Ildefonso Gomes.

1856 e 1957 .

I.

Aos 20 de Março (quinta- feira santa ) pedi ao Sr.ministro do impe


rio uma commissão para tratar de doentes de cholera, e obtive o se
guinte despacho :
« 2. Secção-Rio de Janeiro . ---Ministerio dos negocios do impe
rio , em 2 de Abril de 1856 .
« Digne-se V. Ex . dar suas ordens para que no thesouro nacional
se pague, em quanto durara respectiva commissão, ao procurador do
Dr. Antonio Ildefonso Gomes, que foi contractado pelo governo im
perial para prestar soccorros medicos as pessoas que na provincia
do Ceará fôrem atacadas da epidemia reinante, se esta ali se manifes
tar, a quantia de 7003000 men saes , começando a contar do dia em
que tem o dito doutor de seguir no vapor do norte, que sahe a 8 do
corrente, levando - se esta despeza ao credito concedido no decreto
n . 598 de 14 de Setembro .
« Deos guarde a V. Ex .-Luiz Pedreira do Couto Ferraz . - A
S. Ex. o Sr. marquez de Paraná . »
Assim recebi meu primeiro emprego publico na idade de mais de
62 annos, e fiquei muito agradecido ao imperial governo por dar-me
um meio decente de pagar a educação de meus pobres orphãos .
II .

Carissimos leitores, antes de narrar- vos minha viagem ( o que farei,


Jia por dia ) , me parece acertado fazer uma breve reflexão acerca das
locomotivas, ou meios de transporte em nosso paiz, e para isso vos
peço muito humildemente releveis a offensa , ferindo vosso collossal
orgulho. Sim ! amados meus , ninguem ama os que lhe apontam
defeitos .
1
- 2

I.

Transportes maritimos no Brasil, ou progressos da industriu


nacional.

Ha maštamente dous annos que precisando apresentar- me em


S.Paulo, com a maior brevidade possivel ,dirigi-me ao primeiro vapor
-que annunciou partir para Santos . Muito depois da hora annun
ciada para a sahida ( impreterivelmente começou a receber carvão,
e só no dia seguinte partio !
IV .

Outra mentira de gravissima importancia comprometteu a exis


tencia de todos os que nos achamos a bordo desse fementido trans
porte. Entre a ilha de S. Sebastião e o continente , defronte de
lindissima caxoeira daquella ; escangalharam-se as peças da obso
leta machina, já inteiramente incapaz de viajar ! Então diziam -se
bellas cousas entre passageiros e officiaes .... No fim de inuito tempo
e com imminente perigo , sempre chegamos a Santos .
N. B. Pouco depois essa barca fez uma viagem para os portos do
Sul , e até hoje ninguem sabe della !!!
Valha- nos Deos .
V.

Eu faltaria ao mais sagrado dos deveres se não declarasse, o


quanto me captivaram as maneiras urbanas e muito polidas dos
cavalheiros commandante e officiaes dos paquetes com quem tive
a honra de viajar : muito longe estou de dirigir- lhes a menor offensa
pessoal ; permittam - nos porém ( para o justo fim de corrigir nossos
defeitos ) algumas bem amargas reminiscencias de nossa viagem .
Sinto muito que, annunciando-se a sahida do paquete para o norte
para o dia 10 de Abril , só no dia seguinte, e já bem alto dia, se ve
rificasse !
VI .

Mais ainda me peza ver que foram precisos dous tiros da fortaleza
para o meu amigo o Sr. commandante respeitar a ordem de nosso
governo !
Eu lastimo, e muito me envergonho de um tal proceder !
Esse deleixo e inexactidão, ou franca mentira que caracterisam
a mór parte dos actos de nossa vida , revelam o nenhum apreço que
- 3 -

damos á verdade, por isso mesmo que ignoramos sua origem e seu
valor !
Acabo de ler uma viagem moderna ao Brasil , onde diz o via
jante, que o que mais admiravam os Brasileiros era vêl- o partir
sempre no dia a prazado ! Com taes costumes nunca seremos respei
taveis ; e colheremos o fructo da mentira, que é o nenhum credito
e o universal desprezo .
CAPITULO I.

ITINERARIO DO RIO DE JANEIRO Á CIDADE DA FORTALEZA, CAPITAL DO


NATAL E CEARÁ , TOCANDO NA BAHIA , MACEIÓ , PERNAMBUCO ,
PARAHYBA .

Sexta -feira 11 de Abril . —Deixámos a barra do Rio de Janeiro, com


sol já bem alto . Dêmos costas ao Corcovado , Gavia , e Pão d'Assucar .
O tempo estava sereno, o mar chão . Depois do almoço encontramos
um paquete vindo do porte .
Sabbado 12 de Abril. -Nada de novo senão o enjôo da maior parte
dos passageiros .
Domingo 13 de Abril.- Ao romper do dia avistámos á esquerda um
altevoro penedo, em forma de pão de assucar, que marca a barra da
Victoria , capital do Espirito Santo , e até perto da noite continuámos
a avistar terras altevoras , e nada de notavel vimos a 14 e 15 .
II .

Quarta -feira 16 de Abril.-- Avistamos o pharol de S. Paulo, antes de


amanhecer. Ao romper do dia vimos Itaparica, que olha para a cidade
de S. Salvador da Bahia de Todos os Santos , e progressivamente se foi
desdobrando á nossa vista o grandioso panorama. Cabo, pharol, con
vento e templo de Santo Antonio, rodeiados de arvores cultivadas,
onde predomina o coqueiro; a igreja e o fashionable bairro da Vic
toria, residencia favorita dos Inglezes e gentes de bom tom , que ali
buscam melhores ares , lindas vistas e optimos banhos de mar.
O Passeio Publico, bem marcado pelas graniticas pyramides, que
rompendo escuras ramagens de jaqueiras e mangueiras, se mostram
altevoras e sobranceiras .
Prolongando - se a vista , da direita para a esquerda , ou do Cabo,
Santo Antonio a Mont- Serrate, vê-se um altevoro promontorio, em
seguimento de circulo, de duas ou mais leguas, quasi todo coberto de
edificios.
- 4

III .

Para conceber- se uma idéa approximada da cidade da Bahia, sup


ponha-se que o morro da fortaleza de Santa - Cruz se prolonga, da
mesma altura , em semi-circulo na distancia de duas leguas .... nas
praias vê-se arsenal , alfandega, consulado, praca do mercado , an
tigos templos e a maior força de commercio . As ladeiras e flancos do
monte são (geralmente ) desertas; a summidade do promontorio é co
berta e a maior parte de sua extensão por altevoros edificios, pala..
cios , conventos e muitas igrejas, cujas impinadas torres lançando-se
aos ares fazem lembrar os minarets das cidades orientaes .
Bahia tambem se parece muito com a cidade do Porto na Lusitania .
IV .

Quinta-feira 17 de Abril .- Saltando hontem ás 9 horas da manhãa


nas praias, sorprendeu-me a grande altura das casas de 4 andares ,
paredes amarellas, vidraças em lozange, e outras formas desusadas,
ruas muito estreitas.
Atravessei um mercado abastecido de viveres , legumes,fructos, hor
taliças, aves, etc. Admirei o magestoso e marmoreo templo da Con
ceição da Praia , o Corpo Santo, passei pelo correio, alfandega, arse
nal de marinha ruas estreitas, casas altissimas : cho.via em cama
das, ou pancadinhas , a que chamam por aqui pirajás, desde que avis
tei a Bahia ,
V.

Subindo a ladeira da Conceição, deixei á esquerda o ramo que


vai surgir detrás do palacio da presidencia ; ganhei o collegio do Dr.
Francisco Pereira de Almeida Sebrão , hotel Figueiredo, consulado
francez e theatro . Entrei á rua direita do Palacio, rua direita da Mise
ricordia, rua direita da Sé, terreiro onde erigio-se um rico chafariz ,
que conduz aguas do Queimado e que jorrou pela primeira vez hon
tem em um ensaio. As estatuas e mais peças metallicas que ador
nam este chafariz já figuraram na exposição de Paris .
VI .

A esse terreiro, ou praça ( porque aqui chamam terreiro, assim


como em S. Paulo chamam páteos ás praças) vêm ter a rua do Bispo ,
onde, defronte de uma velha casa , e á esquina de um obscuro e triste
becco que vai ter ás escadinhas das Veronicas, mora em um palecete
- $

meu nobre amigo e collega o Sr. Dr. Joaquim de Sousa Velho , dig
no lente da escola medica da Bahia , companheiro de estudos medicos
em Paris.
Depois que o deixei em Paris em 1820, foi hoje a primeira vez que
nos tornámos a ver. Em sua casa almocei , jantei e ceei , e a este bom
amigo devo o apresentar -me a S. Ex . Rvma. o Sr. Arcebispo, ao Sr.
presidente Tiberio , e minuciosamente ver a escola de medicina,
onde apresentou -me tambem ao Sr. vice-director Dr. Jonathas Abbot,
e ao nosso companheiro nas viagens da Europa o Sr. Dr. Justiniano
da Silva Gomes. Conversei até alta noite em casa do Sr. Dr. Velho
com o Sr. Desembargador, e doutor em medicina Japiassú, e dormi
em casa do Sr. Dr. juiz municipal João Lasdilao de Figueredo Mello,
na estreita rua , ou travessa do Saboeiro , continuação da do Tijollo.
VII .

Quinta-feira 17 de Abril .-- Mosquitos, calorsuffocante e chuva , que


já não é pirajá, porém a cantaros, impediram-me o repouso. Parti ás
7 da manhãa debaixo de um temporal desfeito de grossa chuva e
vento ; desci pela mesma ladeira da Conceição , entrei nos dous tem
plos da Conceição da Praia , e Corpo Santo. Visitei o mercado, fui al
moçar ao paquete , que levantou o ferro e deixou a Bahia á uma hora
da tarde ; dobrámos o Cabo Santo Antonio ; vimos Rio Vermelho e
uma praia muito semelhante á Copacabana, nas infinitas areias.
VIII .

Sexta -feira 18 de Abril.-Ainda hoje estou gozando ero saudosas re


miniscencias dos seductores affagos e carinhos da boa gente de S.
Salvador, da magestosa perspectiva do vastissimo porto da alterosa
cidade, outr'ora metropole do Brasil ! Seus verdejantes sombrios,
bosques de palmeiras, jaqueiras e mangueiras ; e essa imagem tão
profunda impressão gravou em meus sentidos , que a conservo tão
viva e fresca como se ainda a tivesse debaixo dos olhos .
Que recordações historicas me suscitam ! Recebemos 18 passageiros
a prða , e a ré 26 ; ás 5 da tarde encontramos um pequeno vapor da
companhia do Pedroso da Bahia.
IX .

Sabbado 19 de Abril. - Continúa o temporal, que além de atrasar


nos a viagem, tạmbem foi causa de yaraſmos a barra de Maceió , o que
- 6
se verificou ás 3 da tarde, quando viramos de bordo , e ancoramos ás
6 em o pessimo porto de Maceió ,defronte da nova rua e praia de Jara
guá . Estamos a 60 leguas de Pernambuco , e 6 milhas da emboca
dura do S. Francisco , que divide aqui Alagðas de Sergipe .
Domingo 20 de Abril . – Os navios não têm aqui outro abrigo mais
que um insignificante cabo ao norte , em baixo recife, que acompanha
a costa desde os abrolhos, e que neste lugar está submarinho ; e uma
vasta concava praia , onde furiosas quebram - se as espumantes
ondas .
A vista de terra é formoseada por alterosos negrejantes bosques,
simulando frondosas collossaes mangueiras, ou jaqueiras, que de
mais perto verifica -se não ser mais que coqueiros da Bahia , os
mais altos e possantes que eu tenho visto em todo o Brasil !
X.

20 de Abril.-ás 7 da manhãa saltei em terra por uma extensissima


ponte de madeira , encostada á parede de um vasto trapiche da praia
de Jaraguá .
Oh ! que admiraveis palmeiras! do porte de mastros de grandes na
vios , coroadas de grandissimas verde- negras frondes , carregadissimas
de flores e fructos de todo o tamanho ; por muito tempo contemplei
pasmado. Atravessei a muito extensa nova rua de Jaraguá , aterrada
e plantada de arvores para dar sombra. Ad unirei os lindos edificios
novos desta nascente capital das Alagoas . Um pharol em uma emi
nencia , o palacio da presidencia e alguns outros edificios são de
bom parecer, e alegram o viajante. O terreno é plano e a terra solta ,
porque vi nessa planicie , que fica além da cidade , excavações pro
duzidas pelas torrentes pluviaes.
As praias são cómoros de areias , como se ve em quasi todo o litoral
do Brasil .
XI .

Já me não espanta a fertilidade da terra de Palestina , mencio


nada nas Santas Escripturas , exaltadas depois por Joséphus, e muitos
outros historiadores e viajantes, depois que vi as parreiras de Maceió!
carregadissimas de flores e fructos de todo o tamanho, e grandes tabo
leiros de optimas uvas vendendo-se pelas ruas a 7 vintens a libra as
ordinarias, e por mais as muscateis , dedos de damas , etc. Disseram
me que ali ha uvas todo o anno ; o que facilmente acredito ; e a
mesma maravilha vi depois nas ladeiras do Araripe, que divide Ceará
- 7 -

do Piauhy, Pernambuco, Rio Grande, e Parahyba, em terrenos cal


carios, sempre regados por fontes perennes.
Além desses pasmosos coqueiros e parreiras vi em Maceió fi
gueiras bravas, centrantus, argemone , mexicanas malvaceas de flores
roxas, uma scrophularisea de lindas flores azues axilares, e o Rici
nus communis , ou palma Christi .
XII .

0 gado vaccum e cavallar desta provincia, assim como o da Bahia ,


é o mesmo que se cria em Minas nas margens do Rio S. Francisco,
e a que ali chamam curraleiros ; e não admira , porque estes tambem
bebem no mesmo rio : bois pequenos, valentissimos para o traba
Tho, carne saborosa : comem sal , que floresce na terra em lugares a
que chamam barreiros, onde tambem se encontram animaes silves
tres ; alé aves vão comer nesses barreiros .
Os melhores cavallos do Brasil: raça andaluza , muito leaes, sem ma
phas nem sestros , muito sadios , e vivem vinte e mais annos , prestan
do valiosos serviços , são ardentes , briosos e valentissimos : sempre
desferrados, não escovados nem tratados, sem outro alimento mais
que a herva do campo, viajam 8 e mais leguas cada dia , carregando
dous fardos de 7 arrobas cada um , e ainda por cima um matuto ,algu
mas vezes dous jogando as cartas .
XIII .

Deixamos Maceió domingo 20 de Abril ás duas horas da tarde, rece


bendo ahi a bordo 19 passageiros.
Segunda feira 21 de Abril. -Antes das 7 horas da manhãa dobrámos
o cabo de Santo Agostinho , e pouco depois começamos a ver Pernam
buco : Capella da Boa Viagem , Olinda ,etc .; quando porém nos appro
ximavamos á cidade, uma furiosa tempestade obrigou- nos a fugir
della , e só por tarde, debaixo de grossa chuva e impetuoso vento sal
tei em terra por uma muito velha escada de pedra e tijollo, junto ao
arsenal de marinha, por baixo das janellas do façanhudo hotel Fran
cisco .
Abriguei-me da chuva em uma loja de cabos de um Inglez, onde
conversei com o Dr. Gordon , medico inglez: pouco adiante entrei em
um magnifico templo , onde celebrava-se missa solemne por occasião
de abrir -se d'esse dia a assemblea provincial . Vi partir os figurões,
depois da missa, em ricos carros puxados por lindos cavallos ; con
- 8 -

templei por algum tempo mais o magestoso templo Corpo Santo .


onde se vê a mesma profusão de marmore lusitano que já tinha
visto na Bahia .
XIV .

Atravessei a grande e linda ponte do Recife, e á rua do Crespo


n . 11 entreguei uma carta de recommendação ao Sr. Antonio Luiz dos
Santos, negociante , que hospedou- me e tratou com toda a caridade .
Meu amigo Sr. Dr. Carlos Augusto da Silveira Lobo tomou -me em
um carro da praça , e debaixo de grossa chuva mostrou -me o mais
notavel da cidade capital de Pernambuco.
XV .

Bem agradavel'impressão fez em mim a vista desta magnifica Ve


neza Brazileira : grandes templos, conventos, palacios, grandissi
mas pontes , alterosas casas, riquissimo commercio , elegantissimas
lojas, muito povo nas ruas , riquissimas equipagens, lindissimos ca
vallos detypo andaluz ( os mesmos curraleiros de Minas) , e estes ainda
bebem no rio S. Francisco; grande bulicio nas ruas de seges,carros,
gente, animaes carregados entrando , outros sahindo .
XVI.

Ruas da velha Mauricéa , estreitas e tortas, as da nova cidade , lar


gas é bem alinhadas, todas calçadas, limpas, com passeios aos la
dos para os que andam a pé ; esses passeios porém muito irregulares :
uns de tijollos, outros de pedra do paiz, outros de asphalto , outros
de velho marmore , que já servio em outras obras .
O mercado, farto de legumes, hortaliças, optimas fructas, e por ex
cellencia as de Itamarica. Muito descontente voltei de uma visita que
fiz ao palacio episcopal ! Pareceu- me uma casa sem dono ; e pelo que
eu lá ouvi por conta de sua Ex. Ruma . , não está já em estado de con
tinuar a exercer as funcções de seu alto emprego .
XVII .

De todos os edificios públicos de Pernambuco o que mais me agra


dou foi o novo cemiterio, vasto, quadrado, bem murado ; cortado de
largas, nivelladas e bem alinhadas ruas ' ; ornadas de banquetas de
vigorosas roseiras, entrelaçadas de brancos jasmins, que maravilho
samente encantando a vista deleitam , exlasiam a alma pelo angelico
-- 9

mistico aroma ! Uma elegantissma gothica capella occupa o centro


do romantico prado ! Em quanto no silencio e recolhimento , minha
alına transportada á sublime eterna residencia da verdade , como que
já solta e livre do carcere mortal (verdadeira fabrica de excrementos )
contemplava, meditando nessas miserias da vida , a que o louco
mundo chamna honras e grandezas : Stultorum infitus esd numerus ;
um rustico patriotico canto de dous passaros ( penica- páo, e seriema )
mineiros, roubando minha attenção, augmentou minhas affeições
por este fascinante jardim . Realmente ! dá vontade de morrer em
Pernambuco só para morar em tão agradavel sitio !
XVIIT .

A vegetação aqui é vigorosa : malvaceas, convolvulaceas, pal


meiras, mangueiras, cajueiros. Ainda aqui vejo o mesmo gado curra
leiro de Minas, e não deve causar espanto , porque este tambem bebe
do mesmo rio S. Francisco. Hontem ás 4 horas da tarde, quarta feira
23 de Abril , para aproveitar a maré, mudou -se nosso paquete da La
meirão para as Laminhas, onde muito aborrecidamente balançan
do, esperamos até depois das 10 horas da noite as mallas do gover
no . As 8 horas da manhãa esperamos para entrar no rio Parahyba a
maré, que só depois das 4 horas da tarde chegou .
Entrando nesse rio da Parahyba do Norte , de uma desmoronada
obsoleta fortaleza que jaz á esquerda fallaram por busina (fortaleza
celebre na historia do Brazil); pouco depois começamos a ver a mar
gem direita do rio um extenso cordão de casas de palha , pittoresca
mente mergulhadas em um frondoso bosque de coqueiros da Bahia :
pobre, mas bem pittoresca habitação de pescadores : chama-se Cabe
dello ; fundeámos em lugar onde ouviamos os sinos sem ver a
cidade .
Quinta feira 24 de Abril. — Ás 8 horas da manhãa veio a nos
so bordo um escaler da alfandega com o Sr. José Florindo de Alba
querque, empregado da mesma . Deixámos a Parahyba ás 4 da tarde,
e uma hora depois estavamos no mar. Esse rio, que com a differença
de ser um pouco maior , muito se parece com o Inhomirim , não
permitte a entrada de maiores embarcações em marés baixas . Tem 3
leguas da fortaleza á cidade .
XIX .

Sexta feira 25 de Abril.- As 6 horas da manhãa estavamos ancora


dos defronte da pequena mas pittoresca cidade de Natal, capital do Rio
10

Grande , no rio Potinge . Ás 8 horas da manhãa, por alguns mendigos


que vieram a bordo, soubemos que o cholera fazia ali grandes es
tragos : com effeito , o Sr. presidente tendo recebido 5 medicos e
pharmaceuticos que comnosco vieram de Pernambuco, ainda man
dou convidar alguns dos que iam contractados para servir no Ceará !
Quando se entra na barra , avista-se logo em uma eminencia no
barranco direito do Potinge a pobre , porém formosa capital do Rio
Grande . O rio é navegavel só por 6 leguas ; sua entrada na barra é
perigosissima . Deixámos Natal ás 5 horas da tarde, recebendo a nosso
bordo o Sr. Desembargador Torrião e sua familia , que seguem para
o Maranhão ; navegámos todo o dia 26 de Abril sem ver terra .
XX .

Domingo 27 de Abril. -Chegámos hontem á meia noite á capital do


Ceará, bem marcada pelo pharol de Mucuripe, e não ousámos anco
rar antes de clarear o dia , temendo o terrivel porto ! Não desagrada á
primeira vista a cidade da Fortaleza . A costa do mar não offerece aqui
ás embarcações outro abrigo mais que o insignificante cabo de Mu
curipe, onde está o pharol e um baixo recife, quasi sempre coberto
pelo mar. Furiosas ondas se quebram nas brancas praias domina
das por alterosos cómoros de fina areia ! Acima mostra-se a grande e
não acabada fortaleza , que dá o nome á cidade . Mais acima avistam -se
dispersas, novas casas rodeadas de frondosos bosques de coqueiros,
cajueiros, mangueiras, e a famosa fructa de conde , aqui denomina
da áta , ou pinha ; o fundo da perspectiva é fechado pelo negro ser
rote Mamanguape .
XXI .

Domingo 27 de Abril. — Ás 7 horas da manhãa metteram a bordo uma


guarda da alfandega (o jocoso Paula Barros ), e intimaram- nos a qua
rentena, por virmos de portos empestados.
Depois das 4 horas da tarde despedi-me do São Salvador, levando
saudades de todos de bordo : Commandante, officiaes, passageiros,
criados, marinheiros, até da lustrosa , meiga e muita asseiada gati
nha do immediato , meu amigo o Sr. Mendo de Souza : todos me
trataram com tanta bondade a bordo, que não se apagam da memn
ria ainda hoje essas suaves impressões.
XXII .

Pela vez primeira vi uma jangada , e confesso que apertou -se -me
- 11

o coração quando me convenci de que nenhuma outra embarcação


era capaz de arrojar- me a essas praias ! A grande distancia da terra ,
mar furioso, levantando altas montanhas ondulantes, que ora tra
ziam a jangada acima do paquete, ora a enterravam nos profundos
abysmos, e correndo damnado horrisono, a grande distancia es
tronda, arrebenta com medonho ribombo, desfazendo a pavorosa
furia em placidas alvejantes espumas, que na branca areia se con
fundem . O que é uma jangada ? Seis ou sele páos de Tiburbú da gros
sura de minha côxa , de 4 a 5 varas de comprido , ligados por duas
travessas. Eis a unica embarcação que se acha para saltar na capital
do Ceará .
XXIII .

27 de Abril.- Vendo-me arrojado ás praias , todo molhado , e sujo


como quem escapa de um naufragio , dei muitas graças a Deos por
não ter sido peior minha sorte : dirigi-me com os companheiros
para uma casa da praia , guardada por soldados, onde deixamos nos
sas bagagens ( para ser desinfectadas), e marchámos pela praia, uma
legua ao norte da cidade, para o Lazareto de Jacuecanga da Lagoa
Funda , onde fomos bem recebidos por meu amigo o Sr. Francisco
Machado Guerra (Já vejo que alguem se assusta com o nome : Guer
ra ! Machado ! ) Não , não , enganam -se : é um perfeito cavalheiro,
e o nome é uma voz . Fomos bem dignamente hospedados em
optima casa nova com 3 vastas e bem asseiadas varandas , salas, e
quartos decentes ; toda a madeira é carnaúba . Situada em vasto e lin
do valle , limitado ao lado do mar por uma serra de finas e brancas
areias, e todo cercado de frondosas arvores silvestres , tem em frente
a famosa Lagôa Funda , que dá o nome ao lugar.
XXIV .

Segunda feira 28 de Abril.— A noite esteve fresca ; e algumas fracas


pancadinhas de breve intermittente chuvisco convidavam a dormir .
Ao romper do dia acordei ouvindo un triste , monotono, descopheci
do e saudoso canto de pequeno passaro (que depois acompanhou -me
por toda a parte nos sertões ) pardo de topete; anda sempre aos pares,
e pertence á familia dos apanhadores de moscas.
XXV .

Ergui-me cedo . Dei um passeio exploratorio á roda da pittoresca


casa rustica . Oh ! quanto é fertil, risonha e bella a natureza neste lu
- 12

gar! Um magnifico tapete de verde relva matizado de variadas flôres


se desdobra em vasto prado defronte da nova casa ; rodeia a lagôa ,en
costa-se nos cómoros de areias, esconde-se , perde-se debaixo de ver
dejante sombrio bosque de monstruosos cajueiros, soberbas palmei
ras, ramalhudas andirás, ou angelins, frondosos ziziphús ou joazei
ros sempre verdes, que nas seccas alimentão o esfomeado gado ; a
casca é optimo; sabão do fructo fazem- se as peitoraes pastilltas de ju
juba e nos desertos abrigam em sua hospitaleira sombra os fatiga
dos peregrinos. Macrophilas cocolobas, amorosissimas murtas, ba
lançando ao vento, puniceos , nutantes fructos .
XXVI .

Dos mais altos pincaros das arvores precipitam -se em cortinados,


bambinellas, grinaldas e festões , as misticas passifloras, asperas
dileniaceas, roseas apossinaes e asclepiades, luxuriantes convolvulos
de avelludadas argenteas folhas, atropurpureas campanulladas flores.
Na formatura do raso tapele entram as humildes grammas e cype
raceas ; pequenas cassias, clitorias salicarias, rasteiras malacras , ri
chardsonias, yonidium edizarum , etc.
As brancas areias do mar são cortadas por longas cordas de remi
reias maritimas, eo mesmo convolvulos capripede que existe em Bota
fogo e praia Vermelha .
Aqui vi pela primeira vez uma qualidade de cabras de malhas ver
melhas, que depois encontrei por toda a parte .
XXVII .

Emquanto pasmado , arrebatado e extasiado, contemplando ad


mirava as obras do Altissimo , uma bem conhecida, maviosa e triste
voz veio despertar minha attenção : applico o ouvido , e bem distincta
mente ouço : fogo pagou .... fôgo pagou.... Ah ! Cearenses ! roubastes
minha rolinha das Minas ! a companheira de minha infancia ,
testemunha de meus primeiros amores....
XXVIII .

Terça - feira 29 de Abril. –Vi anús pretos e brancos, sanhaçús, an


dorinhas das grandes e emigrantes ; o passaro que canta sempre, e
encontra-se por toda parte, é o papa moscas,
Entre muitos visitantes que aqui vieram hontem , mencionarei os
Srs . José Dias e Macieira, encarregado das obras publicas, e que edi
13 -

ficou esta casa em que residimos . Drs. medicos Cassianno, Ataba


lipa Americano Franco, ambos Bahianos, como eu aqui em com
missão do governo, os filhos do Sr. Dr. Uxôa , e muitos outros .
Que bella quarentena! Tinhamos sempre a casa cheia de hospedes,
passeiava - se por casas dos vizinhos, bem tratados pelo Sr. Francisco
da Guerra Machado, a quem está confiada a quarentena : este meu
amigo é muito cavalheiro, não tem geito para carcereiro, nem mes
mo para estalajadeiro .
XXIX .

Lendo, escrevendo , passeiando á roda da casa , banhando -me no


mar , assim passei em Jacuecanga desde 27 de Abril á noite até 4 de
Maio de manhâa , quando o governo provincial conheceu que a tal
quarentena era uma brincadeira e mandou-nos passeiar.
XXX .

Apezar de uma bem incommoda chuva , deixei o Lazareto de Ja


cuecanga ás 6 horas da manhãa, domingo 1 de Maio de 1856 ,
bem montado em um andaluso , que emprestou -me meu amigo
companheiro de quarentena , o Sr. Bernardino José Pereira Pacheco,
amassando areias movediças, entrei na capital do Ceará pela capella
do Patrocinio, e além das plantas já mencionadas vi de passagem :
Solaneas, Simanthéras, Rubiaceas, Bignoavias, ipé, que aqui chamam
páo de arco , Boeravias, conhecida aqui pelo nome de pegapinto, ou
batata de porco : na minha entrada voava um grande bando de pa
pagaios sobre a cidade .
XXXI .

Bem montado, e em cavallo alheio , em poucas horas corri toda


a cidade da Fortaleza , o que tambem não custa muito por ser ainda
pequena : ruas largas, bem alinhadas, magnificas praças, algumas já
plantadas de arvores para dar sombra , fontes em construcção, mer
cado bem provido de legumes, fructos optimos , pouca hortaliça por
que não platam , a terra porém produz espontaneamente tomates,
maxixes, serralha que ninguem aqui usa nem aproveita para nada.
Muito optimo e baratissimo peixe , a melhor carne de vacca do Brazil :
queijos, abacaxis , cajús, fructas de conde, melões, e melancias
daqui têm fama.
XXXII.

Todo o alinhamento de ruas, praças e a maior parte das obras pu


14

blicas desta cidade deve-se ao meu amigo o Sr. tenente coronel An


tonio Rodrigues Ferreira , bem digno presidente da municipalidade.
As praias cobertas de jangadas, que empregam -se na pesca , e a
maior parte dos jangadeiros são caboclos que moram em elegantes
casas de palha, de porta e janella, varandinha na frente, situadas nas
extremidades das ruas da cidade.
A capella da Conceição do outeiro da Prainha , plantada em um
monte de areias de extensa vista , é um dos mais apreciaveis lugares
desta cidade. Esqueceu -me dizer que a roda da lagoa de Jacue
canga vi plantas e pedras cobertas de ovos côr de rosa e transpa
rentes, de um caramujo fluvial aqui chamado Uruá , circular de pol
legada de diametro , tem a boca tapada com uma tampa ou rodella
crustacea movel ad libitum : abunda em todas as aguas do interior, e
nas grandes fomes o Uruá é grande recurso para alimentar os pobres,
assim como um mexilham de Aracati .

XXXIII .

Na igreja Cathedral, onde fui á missa conventual, apresentei -me ao


Sr. vice-presidente Joaquim Mendes da Cruz Guimarães, e o Sr. chefe
de policia Dr. Herculano Antonio Pereira da Cunha, que me rece
beram com muita bondade : tocando-se musica de theatro no acto da
missa ,eu fiz sentir a incompetencia da profanação de lugares sagrados,
e o grande escandalo que disso provinha.
Pessima agua de cacimba bebi nesta cidade ; de onde provém se
sões , ou intermittentes, macilentas cores dos habitantes, e uma incli
nação quasi geral a comer terra .
Tambem as lombrigas, e bixos de pés atormentam aqui mais que
em outras partes os meninos e gente pouco asseiada .
Constando- me que alguns de meus collegas declaram em seus
contractos com o governo não sahir da capital , ou a tantas leguas ar
redado della , pedi ao governo que me enviasse para lugar o mais
remoto da provincia , o mais ermo, para onde ninguem quizesse ir :
o que muito admirou contemplando minha decrepita catadura ! Para
acreditar na sinceridade de minhas intenções eu lhe asseverei que o
seu Ceará era muito pequeno para meus passeios , o que bem con
firmei depois viajando mais de 600 leguas de sertões .
XXXIV .

Só 3 dias de hospede na capital me concederam ; ſui logo man


.
15

dado para Icó a 80 leguas da capital em direitura , passando porém


pela serra e villa de S. Cosme e Damião de Pereiros ,onde fui mandado
em serviço publico e é muito mais .
CAPITULO II .

ITINERARIO DA CIDADE DA FORTALEZA A' CIDADE DE ICÓ , PASSANDO POR


ARACATI , RUSSAS , OU S. BERNARDO , LIMOEIRO , SERRA , VILLA DE S.
COSME E DAMIÃO DE PEREIROS .

Quinta -feira 8 de Maio de 1856. — A bom trabalhar consegui ar


rancar-me ( por aqui diz-se empurrar ) da Fortaleza, depois das 5 da
tarde ; pernoitei em Messejana (que já foi villa , e hoje é tapéra ) , em
a pobre casa do Sr. José Francisco dos Santos, sapateiro que já foi
soldado , e mora em uma pequena casa que pertence ao Sr. senador
Alencar .
I.

Caminho largo , dirsilo, areial profundo.


Depois de andar meia legua entrei em um maravilhoso carnaubal.
Oh ! que magestosa vista ! Alterosos troncos columnares corôados
de um chapéo de sol de brilhantissimas folhas envernizadas , em
fórma de resplendor .
Utilissima palmeira !
II .

Carnauba ( coripha ceripha ) é uma da mais uteis plantas do nurte :


a raiz é medicinal, e emprega -se nos mesmos casos em que se ap
plica a salsa parrilha ; do tronco fazem - se casas , cercas, e optimo com
bustivel para lenha .
Da folha tira -se cêra para velas, fazem -se chapéos , cobrem -se casas
e apparelham -se cangalhas albardas ; o fructo engorda o gado, co
me-se o palmito como de muitas outras palmeiras. Os mendigos e
doentes pobres, que desde a capital me cercam , são aqui em grande
numero . Antes de entrar na pobre casa onde devia passar a noite
andei de casa em casa vendo doentes, entre muitos outros o Sr. José
Ignacio Gadêlha, e o Sr. Igpacio, que padece horrivelmente de Pu
xado (assim chamam por aqui a asthma ) .
III .

O Sr. José Francisco dos Santos deu-me optima ceia, uma rede bem
lavada, tratou -me com maneiras affaveis e muito polidas, e nada quiz
16

receber de paga , sendo um pobre sapateiro que acaba de ser soldado !


A respeito de rede direi que todo o viajante nestes lugares deve trazer
sempre comsigo ; pois da Bahia até o Pará é a cama que todos ,
usan .
IV .

Sexta - feira 9 de Maio. - Quando me dispunha a partir de Messejana


hoje ao romper do dia , fui cercado de pobres enfermos que me di
ziam : « Nosso imperador paga -te para tratares os pobres ; e por isso
deveis attender-nos » ; ao que eu respondi sempre aqui , assim como
em muitas outras partes onde me contavam esta mesma historia :
Que não só Sua Magestade paga -me por isso, mas tambem elle e
sua virtuosissima esposa todos os dias davam- me o edificante exem
plo, sendo os maiores amigos e consoladores dos pobres .
V.

Finalmente, empurrei-me de Messejana , já alto dia, e cabeça fóra


(em lingua do norte quer dizer marchar ein planice ; tambem se
diz : cabeça abaixo, cabeça a riba, dei costas a uma grande lagða ,
que aqui existe ,e sempre por areias passei outra lagoa, Paraná-Mirim ;
depois a do Eusebio , a sombria e triste lagoa dos Tapuios, cami
nhei muito tempo sobre aguas que corriam no caminho, ao meio
dia descansei junto á torrente pluvial Pacuti , em casa do pobre Sr.
Francisco Carlos de Paiva .
VI .

O modo de viajar neste sertões é : empurrar do pouso o mais cedo


possivel ; aproveitar a fresca da manhãa ; perto do meio dia descan
sa-se em lugar que tenha agua , á sombra de um oiticica , joazeiro ,
visgueiro , ou umbuzeiro até depois das 4 da tarde.
Cavallos lavados peiados de 3 pés e chocalho ao pescoço . Nem
homens e nem animaes podem aguentar o sol do meio dia ás 4 da
tarde nestes sertões . Neste descanso armam - se redes, arranja-se co
mida , que não passa de carne secca , farinha , rapadura e queijo ; e
fazem os sertanejos massa de farinha, agua e rapadura, a que cha
mam tijollo , para comerem com a carne .
Depois do descanso viaja-se até ás 8 ou 9 da noite : é admiravel
a desinteressada hospitalidade destes bons sertanejos ! Em desaffronta
de eu quasi forçar esta boa gente a receber dinheiro por um queijo,
obrigaram-me tambem a receber uma pelle de ovelha.
117

VJI .

Depois do descanso viaja sé ás 8 ou da noite ; é admiravel


a de interessada hospitalidade destes bosts Sertanejos ! lem / desaf
fronta (de eu quasi forcar esta poa gente a receber dinheiro por um
queijo, abrigaram -metainem a receber uma pele de ovelba.
Muito gostei de ver aqui mulheres e meninos todos occupados em
trabalho , fiando algodão , tecendo redes , fazendo rendas , crivos ou
cosendo . Oh ! santo trabalho ! origem de toda a riqueza .
VIII .

Vi hoje rolinhas de muitas especies, sabiás da praia , grolhas que


aqui chamam cancan , soffreu ou currupião , o mais lindo e elegante
passaro destas solidões ! Maracanãs,papagaios ,e entre os periquitos, o
formosissimo psitucus melanocephalus,periquito estrello . Fui ver mui
tos doentes pobres no barranco do Pacoti ; atravessei essa barrenta tor
rente com grande perigo de ser por ella arrastado cabeça a baixo ,
pois levava muita agua , e corria com muita velocidade . Sempre em
profundas areias marchei até á noite , dormi no taboleiro do Alaga
diço Grande em casa do Sr. Ignacio Carneiro . Uma negra velha , uma
cabocla quasi céga e um velho preto torrando farinha de mandioca
erão os unicos moradores desta fazenda .
IX .

Sabbado 10 de Maio .-- Passei hontem por uma grande fazenda na


cional que foi dos jezuitas, chamão-a Santos Lugares, aonde vi ma
gnificos buritis e soberbos andaiás ( mauritias e attáleas ) .
Comi pussás, pequenos fructos de um arbusto que pareceu-me mir
tacea ; colhi mangabas verdes; por fastidiosas areias marchei até ás 10
da manhãa, parei á margem da torrente Xoró no passo do Vaqueiro ,
em casa do Sr. João Francisco de Almeida .
Vi hoje aqui o páo branco, linda arvore da familia das Borragineas ,
sempre coberto de flôres brancas, donde lhe vem o nome , e a inte
ressante manissoba ; euphorbiacea de que se tira gomma elastica ,que
já deu aqui muito dinheiro ; tendo- se porém ajuntado areia para
augmentar o peso, perdeu -se essa origem de riqueza , ninguem a
quiz mais comprar.
X.

Passámos a noite à la belle etoille, á margem da lamacenta tor


3
18

rente Pirangi , em redes armadas nos ramos das arvores . Só me in


commodou , ao amanhecer Domingo um pungente frio.
Domingo 11 de Maio de 1856. - Acordámos tremendo de frio ; dei
xámos Pirangi ás 6 da manhãa, e ás 8 paramos para comer leite com
farinha, em casa do Sc. Antonio Garça, homem pardo, pai de nu
merosa familia,no paludoso e muito insalubre lugar chamado Ama
rellas .
Colhi uma linda scrophularinea de lindas flores luteas ebracteias
carmezins ( a qual achei por toda a parte até no Pará) ; uma elegan
tissima verbena pumila , as espigas de flôres azues ; vi muitas sinan
théras , e entre as leguminosas , a catingueira e o famoso páo -ferro ,
panaceia do sertanejo, muita areia , muita pobreza e as aguas podres.
XI.

As 11 horas descansámos na ribeira das Imburanas ; a agua aqui


é tão corrupta que os proprios animaes a rejeitam .
Mandei buscar agua potavel a mais de um quarto de legua , e o por
tador trouxe tambem uma grande optima melancia branca por dous
vintens, que no Rio de Janeiro não custaria menos de 3 patacas.
Massas enormes de cassiás (mata pasto e marianinhas ou camaras ),
sinantheras cobrem extensão de leguas destes areiaes .
XII

As carnaúbas e buritis annunciam sempre o que aqui chamam


ribeiras, ou lugares humidos : mangabas e pussás, encoutra -se em
terrenos enxutus, que chamam taboleiros .
Vimos hoje pombos trocazes, rolinhas, gralhas e um veado; dormi
mos na lagoa das Carnaubinhas, em a palhoça do pobre mestiço
Manoel Vicente . Sempre areias , e de hontem para cá , um mato
baixo e acanhado por onde passou fugo ha pouco; pequenos cercados
onde cultivam macaxeiras ( mandioca aipim ), milho, feijão, arroz e
optimas melancias que se vendem a vintem .
XIII

As 6 da manhãa empurramos de Carnaubinhas depois de atraves


sar uma varzea de mais de 2 leguas planissima inundada em o
tempo de aguas , e coberta de bosques de carnaubas : cheguei ao rio
Jaguaribe antes das 9 da manhãa, e esperei muito tempo por uma
canôa para passar ao barranco direito do Jaguaribe, onde está a ci
19 -

dade de Aracati, e não no esquerdo como erradamente marcam as


cartas geographicas.
XIV .

Hospedei-me em casa do negociante o Sr. Antonio Ferreira dos


Santos Caminha, para quem trouxe carta de recommendação do meu
bom amigo Sr. tenente - coronel Ferreira da Fortaleza, e os Srs. filhos
Caminhas trataram -me com toda a bondade.
Apresentei-me ao Sr. Dr. José Maria de Mello e Albuquerque, de
legado de policia e presidente da junta sanitaria ; não pude obter
dessa junta levar em minha companhia para Icó um parente estudante
de medicina, Francisco de Assis de Figueredo Neves, que acompa
nhou -me do Rio de Janeiro .
XV .

Oh ! que tormento tem um viajente para arranjar meios de conduc


cão nestes lugares ! E aqui muito mais que na capital da provincia .
Finalmente, graças aos Srs . irmãos Caminhas , consegui ajustar meu
transporte para Serra de Pereiros em 3 animaes por 228000 com
o Sr. Antonio José Thomaz de Vasconcellos .
Aracati passa por ser a primeira cidade de Ceará depois da capital ,
em população, commercio e industria : exporta muita cêra de car
nauba, calçado, sellas e arreios para ellas , etc. Seu porto, não admi
tindo senão pequenas embarcações, é comtudo mais frequentado que
o da capital , por offerecer um seguro abrigo .
XVI .

Aracati á margem direita do Jaguaribe , está rodeiada de uma vas


tissima planice perfeitamente nivellada por mais de 3 leguas á roda,
e vê-se muito ao longe para a lado do mar os cómoros de areias que
limitam a planice por esse lado, e marcam a praia maritima .
Aracati é bem abastecido de viveres , tem optimo peixe, abundan
tissimos mexilhões e outros mariscos , optimos melões e melancias
a preço infimo ; o povo é hospitaleiro, carinhoso e muito laborioso :
trabalha -se aqui muito em redes de algodão , crivos, bordados e ren
das a preço infimo.
XVII .

Sexta -feira 16 de Maio de 1856.-Empurrei-me de Aracati ás 7 da


manhãa, passei pela chacara do Sr. Antonio Ferreira dos Santos Ca
minha, atravessando uma immensa planice, que á esquerda estende
se por algumas leguas até o mar : pouco além da chacara do Sr. Ca
20

minha ganhei um valle , ainda mais baixo e humido, todo coberto


de carnaubas, acompanhando um braço do Jaguaribe, o qual atra
vessei ás 9 1/2 da manhãa em uma canoa , cavallos a nado na
passagem das pedras, defronte de um serrote, Areré , que comecei a
avistar desde que sahi de Aracati , e continuei a ver ainda por algu
mas horas depois que por elle passei .
XVIII .

Descansei ao meio dia em casa do Sr. João da Rocha , pardo , do


maneiras muito affaveis, no lugar chamado Ranxo do Povo; caminhei
até alta noite, sempre entre carnaubas , dormi em casa do bom pardo
o Sr. Germano Moreira de Lima no lugar chamado Páo - Branco, a me
nos de 2 leguas antes de chegar a Russas , villa de S. Bernado.
Sabbado 17 de Maio.--Não precisa ser rico, nem sabio, para aga
zalhar peregrinos ; basta ter bom coração .
XIX .

Sabbado 17 de Maio de 1856. -O Sr. Germano , regalou -nos com a


optima coalhada ,com rapadura e farinha para ceia , saborosissimo leite
com farinha para almoço ; foi a cavallo procurar meus cavallos , que
desappareceram do pasto , por estupidez do meu vaqueano , ou pra
tico , que contractei em Aracati ; e já hontem por ignorante errou o ca
minho, e me fez andar errado até alta noite !
Ao deitar-se , e antes de amanhecer, o Sr. Germano rezou com sua
familia : quando o dia clareou Sr. Germano estava tocando as vaccas
para fóra do curral, depois de tirar o leite , e acompanhando-as com
uma romantica cantiga pastoril, que agradavelmente sorpren
deu -me !
XX .

Chama-se aqui esta cantiga : « Boiar. » Acostuma-se o gado a bus


car o curral logo que ouve esse magico som pastoril , no qual não
se pronuncia uma só palavra ; porém unicamente um grito modul
lado.- Revien des vaches dos Suissos ! -0 Sr. Germano matou uma
cobra muito venenosa, quando ella formava o bote para morder -me.
XXI.

Já com sol bem alto deixei Pád--Branco , e meu bom Germano ; por
vasta planice sempre coberta de carnaubas, a que se mistura tambem
uma linda arvore da familia das borragineas (Cordia coberta de
21

flores branca donde lhe vem o nome de Páu-Branco , caminhei ;


cheguei á villa de S. Beruado, mais conhecida pelo antigo nome de
Russas.
Ao meio dia fallei ao Sr. Dr. juiz de direito , José Pereira da Graça,
Dr. Caminha e Dr. Henriques . Fui aqui muito atormentado por um
bando de importunos ociosos , que desde Aracati me perseguem e não
se fartam de olhar para um desconhecido , fazer- lhe mil preguntas,
rodeiando-o e acompanhando -o.
Receitei para muitos doentes pobres ; deixei Russas já perto da
noite, e pernoitei em casa do pardo Pedro José de Santhyago no lu
gar chamado Canto.
XXII .

Domingo 18 de Maio . Ao romper do dia deixamos nosso bom


-

Santhyago no seu Canto, agradecendo a bondade com que nos tratou ;


ganhámos o barranco esquerdo do rio Jaguaribe ; bebi grande cuia
de optimo leite, em um curral , e pouco adiante atravessámos o Ja
guaribe ao nascer do sol com grande perigo , nadando em alguns
lugares ; andámos 4 leguas por uma animadissima varzea , coberta de
bandos de passaros ,onde predominavam o papagaio e nuvens de pom
bas de arribação, que todos os annos apparecem aqui em prodigiosas
massas , e são de grande utilidade nos tempos de fome; banhei-me no
Jaguaribe , á vista da capella da aldeia chamada Limoeiro, onde des
ansei ; comi optimas melancias , ouvi missa , receitei para muitos
doentes pobres , fui muito importunado pelos curiosos , que se não
fartavam de olhar para as minhas barbas e de interrogar meu criado,
e meu vaqueano a meu respeito ; pernoitamos no lugar chamado
Lima , em casa do Sr. Francisco de Paula , que muito apreciou minha
visita , por ter um filho muito doente.

XXII .

Segunda- feira 19 de Muio.- Deixamos a casa do Sr. Paula antes


de clarear o dia , e sempre pela ribeira do Jaguaribe, ora á vista , ora
escondido ; sempre coberto por uma nuvem de pombas de arribação ,
que de manhãa voavam da esquerda para a direita , e á tarde da di
reita para a esquerda ; vendo lagðas cobertas de grandes patos , e ou
tras aves aquaticas ; descansámos ás 10 da manhãa no lugar chamado
André Dias, no retiro do padre Ambrozio, e fomos bem tratados pela
familia do seu administrador vaqueiro, Luciano.
22

XXIV .

Admirou - me o grande lucro que os proprietarios das fazendas dão


aos admiuistradores, a que chamam aqui vaqueiros ! De todo o
animal que nasce na fazenda, vaccam , ovelhum , cavallar ou suino ,
tem o vaqueiro um de cada 5, e muitas vezes um de 4 !
O vaqueiro, além do costeio do gado, tem alguns outros onus,
como : limpar os pocos ou bebedores do gado, cercar curraes e lu
gares de plantar, etc. Tambem os vaqueiros são quasi todos, ou pa
rentes, ou intimo amigo dos proprietarios.
XXV .

Larguei hoje o caminho de Icó , e a ribeira do Jaguaribe, no lugar


chamado Mocoz , além da Tapagem , e estou inarchando no caminho
da Serra e Villa de Pereiros : vi por aqui um grande gavião verme
lho ou aguia, que é um grande destruidor de gallinhas.
Deixei André Dias no riacho do Figueiredo, e pernoitei ás 8 horas
da tarde em casa do pobre mestico Manoel Ribeiro, casado com uma
parda.
1 XXVI .

Terça -feira 20 de Maio.- Antes de amanhecer deixei a casa de


Manoel Ribeiro , lugar chamado Extrema , descansei em casa do Sr.
Manoel Lopes Magalhães, no lugar chamado Grossos .
XXVII.

Terça -feira 20 de Maio .-Descansei no lugar chamado Grossos, em


casa do Sr. Manoel Lopes de Magalhães, caboclo, casado com uma
parda, Sra . Joanna Francisca de Jesus, que está em vespera de ter
o seu decimo oitavo filho, e em boa disposição de ter muitos mais.
Deixando Grossos,e o Sr. Magalhães depois de jantar, viajei com bello
luar até depois das 9 horas da noite , passei o lugar chamado Caixa-só,
e dormi no mato, não longe do lugar chamado Boa - Vista.
XXVIII.

Quarta -feira 21 de Maio . -Deixei o mato , e em casa do Sr. Bernar


dino da Silva Pinheiro , em Boa-Vista , almocei leite e ovos , e fui dor
mir em casa do Sr. Francisco Felix das Chagas, cunhado do Sr.
Pinheiro , no lugar chamado Genipapo, por ter desapparecido ahi os
cavallos que me conduziam .
23

Quinta - feira 22 de Maio . -Hoje ás 8 da manhãa acharam - se os


animaes, que desappareceram desde hontem á tarde, e parti sem
perder tempo ; passei por um terreno calcario fertilissimo ; o cami
nho estava fechado por uma cassia (matta -pasto ) em principio de flo
rescencia , que molhou - me de frio orvalho até o peito : os cercados
apresentavam vigorosissima plantação de milho, arroz, feijão e ma
caxeira , etc.
XXIX .

A Serra de Pereiros de longe apresenta alguns pontos salientes em


pão de assucar, que pareceram -me graniticos. Sua altura me parece
que não passará de seis a setecentos pés acima do terreno adjacente :
a subida da ladeira é penosa , por falta de caminho ; todo o terreno
da ladeira, assim como o da varzea jacente é fertilissimo : vi na
subida muita manissoba, bignonias, arueiras do campo, lindissimos
convolvulus, papilionaceas, sinantheras, malpigiaceas , tradescancias,
aroideas e immensas malvaceas , de cuja casca fazem cordas ; entrei
na villa de Pereiros ás 10 horas da manhãa .

XXX .

RETROSPECTO .

Desde que passei o riacho de Figueiredo, sahi da ribeira de Jagua


ribe, não vi mais carnaubas e páos brancos,pombas de bando que ha
tantos dias me acompanham em o fertilissimo valle de terra humus
arrastada pela torrente pluvial , entrei em terra esteril , ondulada , vi
outra vegetação ; algumas pedras ferreas, e vastas cordilheiras de
pedras em laminas ou taboas.
N. B. Desde a capital do Ceará até a Serra de Pereiros existem cas
caveis e muitas outras serpentes venenosas : muito folguei de ouvir
dizer por aqui alguns velhos praticos, e peritos no tratamento da mor
dedura destes reptis , que o melhor remedio é embebedar o mordido ,
e mettê- lo em agua fria por algumas horas ; pois essa é tambem mi
nha convicção ha muito tempo.
XXXI.

Da aldeia de Caixa-- só por diante comecei a ver muiłos doentes de


olhos (ophtalmias tar siunnas), que volta o bordo das palpebras com
as pestanas para dentro, causando dôres e tormentos horriveis ; cuja
enfermidade vi depois em todos os serlões , e sempre com mais inten
24

sidade nas terras altas, como na Serra de Pereiros , chapadão do


Araripe, etc. Tambem apparece por aqui uma qualidade de bobas
que apresenta grandes ulceras atoucinhadas, sempre dissorando
aguas , e tão roazes , que vão destruindo todos os tecidos do corpo
sem excepção dos proprios ossos .
XXXII.

O sertanejo applica o mercurio de curar bicheiras como medica


mento universal para curar todas as molestias da maneira porém
a mais brutal e perigosissima : vende-se mercurio em todas as casas
de negocio , e a todo o mundo ! Custa a crer ; porém é ali muito com
mum ver apresentar- se qualquer um ( muitas vezes um menino) a
uma taverna com um bollo de banana assada na mão e dizer : deite
me aqui seis vintens de mercurio ( nunca é menos de meia oitava ) ,
envolvê -lo em banana , engulir todo , e correr a metter-se em agua
fria e lavar todo o corpo por muito tempo; chama-se a isto tomar mer
curio quebrando o resguardo .
XXXIII .

Assim vi muitos envenenados , soffrendo horrivelmente até mor


rer ; outros cahem em um marasmo que dura annos . Dahi provém
o estrago dos dentes, pois é raro ver dentes na boca de um serta
nejo ! Genipapo é o deposito dos fardos de algodão de 6 a 7 arrobas
cada um , que vêm da Serra em costas de cavallos , ou bois; foi aqui a
primeira vez que vi bois servir de sella e cangalha , á moda oriental,
governados por uma argola mettida no septo nazal que divide as
duas ventas .
De Genipapo para beira-mar são os fardos conduzidos em brutaes
e grandes carros puxados por bois : esquecia -mé dizer que Sr. Cha
gas regalou -me em Genipapo com um jantar de tatú ensopado .
XXXIV .

Tudo nestes sertões recorda a vida pastorial dos antigos patriarchas,


ainda hoje praticada pelos Arabes ! Verdadeiros pastores , pouco se
occupam de agricultura : terras planas, sem pedras nem tocos que
obstem o emprego do arado ; sólo fertilisado pelo limo do nillo , nos
lugares aqui chamados vazantes ; curraes abarrotados de estrume de
gado de todas as qualidades ! Tudo , tudo aqui se esperdiça ; nem
uma folha de couve, nem planta alguma de horta . Os tomates e ma
xixes nascem espontaneos e silvestre nos campos.
25

Todo o trabalho é brutal ; atrasadissima industria . Não se conhece


uin moinho, nem monjolo , todo o trabalho é a braço de homem .
Eu expuz nas feiras um pequeno monjolo trabalhando que pas
mou toda a gente !
Perde - se toda a lãa de numerosissimos rebanhos de ovelhas ; os
carros são de uma construcção antiquissima e brutal que matam os
animaes que os puxam .
Causa admiração o atraso e embrutecimento em que se tem dei
xado ficar esta gente !
XXXV .

Quarta - feira 22 de Muio de 1857. - Entrando hoje nesta villa de


S. Cosme e Damião de Pereiros, que consta de uma só rua , de
mesquinhas casas terreas, e uma pequena igreja immunda ( como
são todas destes sertões ) , dirigi-me ao subdelegado, Sr. José Faustino
da Silva Saboia, e ao Rev. vigario padre José Manoel dos Santos Bri
gido. Dentro da igreja encontrei o cadaver de uma pessoa que por
ser pobre estava no chão, havia muito tempo ( disseram ) , esperando
quem o sepultasse; e assim ficou durante as preces que aqui se fizeram ,
estando a igreja cheia de povo .
XXXVI .

Apresentei ás autoridades os despachos do governo provincial que


me autorisavam a aconselhar os meios hygienicos necessarios para
previnir as molestias, e no mesmo instante pedi que se deixasse
de euterrar dentro da igreja , sendo attendido : marcámos um lugar
para semiterio fóra da povoação, e deixei escripto os seguintes con
selhos para bem da saude publica .
XXXVII .

« Villa de S. Cosme e Damião da Serra de Pereiros,aos 26 de Maio


de 1856 .

« Em cumprimento de ordem de S. Ex . o Sr. vice -presidente desta


provincia de 8 do corrente, tenho a pedir a VV . SS . , para bem da
saude publica :
« 1.° Se não sepultem mais cadaveres dentro das igrejas, porém
sim no semiterio por VV. SS . escolhido, e approvado por mim .
« 2. ° Em segundo lugar peço a VV. SS . , que sem perda de tempo
passem já a melhorar o pessimo estado da agua que serve nesta
villa ; mandando limpar de hervas podres, insectos e lamas, esses
poços que servem para uso do povo desta villa .
4
26

« No caso porém de não serem esses pocos susceptiveis de melhora


mento, abram-se novos, a fim de obter agua pota vel melhor que
a que actualmente existe .
<< Outrosim deve -se vigiar bem a qualidade de alimentos de que se
sustenta o povo ; que sejam sãos, e de boa qualidade.
« 3. ° Devem VV . SS . pedir ao governo provincial , que mande vac
cinar o povo deste municipio . Pois sendo as intenções de nosso pater
nal governo evitar calamidades publicas , se não deve esquecer que
no Maranhão e Pará a bexiga matou tanta ou mais gente que o
cholera costuma matar .
« 4. ° Em quarto lugar peço a VV . SS . que vigiem muito para o
asseio e limpeza da povoação, ruas, praças, quintaes e páteos das
casas desta villa : recommende - se aos chefes de familias o asseio
corporal na roupa e pelle, e os banhos frios como preservativo de
molestias .
« 5. • Finalmente, aconselho as fumigações : queimando- se de ma
nhãa e á tarde hervas aromaticas , nas praças , ruas e páteos das casas .
« Illms. Srs. tenente-coronel Antonio Martins Porto, presidente da
municipalidade ; José Faustino da Silva Saboia , subdelegado de poli
cia ; Rev.vigario José Manoel dos Santos Brigido ; Paulo Gonçalves de
Sousa ,secretario da municipalidade ; Manoel Gomes dos Santos,fiscal.
<< Deos guarde a VV. SS. - 0 Dr. Antonio Ildefonso Gomes, medico
em commissão do governo . )
XXXVIII.

O Sr. Manoel Gomes dos Santos, maior de 60 annos , homem cir


cumspecto, e de boa intelligencia , natural do Riacho do Sangue , é o
unico que applica remedios aos enfermos desta villa , e é chamado
por doentes para os tratar; seu filho , o Sr. Joaquim Manoel de Miranda
Santos, moço muito intelligente, e de maneiras muito polidas e affa
veis, prestou -me aqui valiosos serviços, servindo-me de ciceroni da
villa . Acompanhou-me ao banho , onde pude logo julgar da quali
dade das aguas desta villa , que não são mais que deposito de aguas
pluviaes em alguns lugares baixos , onde apodrecem no tempo da
secca , e tão nociva me pareceu que não voltei a banhos .
XXXIX .

Desde Genipapeiro, que está já nas faldas desta serra, sinto um


frio bem incommodo ,que por 5 dias que aqui me demorei por ordem
do governo provincial não deixou de incommodar -me. Constando a
esta pobre gente que eu era pago pelo governo para tratar dos doentes
27

pobres, fui todos os dias rodeado de consultantes , e até arrastaram


me para longe da villa até mais de duas leguas, onde esta Serra
divide a provincia do Ceará da do Rio Grande do Norte, no lugar
chamado Baixio , em casa de um pobre Sr. João Baptista de Almeida ,
que entre muitos doentes apresentou -me uma filha já moça com um
aneurisma do coração.
Neste lugar do Baixio avistei terras do Rio Grande do Norte : neste
passeio mostraram-me em um lugar ermo, na passagem de um
cinistro bosque, os estragos das ballas nas arvores á beira do cami
nho, onde ha pouco tinham assassinado dous cangasseiros, tambem
assassinos ( chamam por aqui cangasseiro o homem armado de todas
as armas, que ordinariamente é um assassino de profissão ).
XL .

Mesmo neste passeio de duas leguas fóra da villa fui obrigado a


entrar em muitas choupanas de pobres , que me pediam para ver
doentes : entre esses mencionarei o laborioso Sr. Silvestre , com muito
numerosa familia , e todos opilados, sem pinga de sangue rubro no
corpo ( por beberem agua podre ) ; aqui , como no sertão de Minas para
cura desta molestia ,usam beber em jejum leite de vacca , com a urina
da mesma em partes iguaes ; eu lhes aconselhei o uso do ferro limado
engulindo uma pitada em jejum , outra antes de jantar e muito exer
cicio .

XLI .

Conheço hoje o Brasil , desde o Jaguarão ao Oyapock, e grande


parte do interior : posso por isso dizer alguma cousa a seu respeito .
Essa enfermidade de opilação, a que lambem chamam anemia , e mo
lestias venerias , principalmente a boba africana, são o maior fla
gello deste paiz. Até da vizinha provincia do Rio Grande do Norte
vieram doentes consultar-me ! Entre outros lembra -me um Sr.
fazendeiro de nome Guerra, e a Sra . D. Antonia , casada com o Sr.
Antonio Luiz de Albuquerque.
XLII .

Ainda mesmo em perigo de tornar- me fastidioso a meus amaveis


leitores, não passará desapercebido o caracter de um homem que
vi em Pereiros.
O pardo Antonio Vianna , ferreiro, de 30 annos de idade, mora no
fim da villa , em mesquin ha palhoça , com sua mulher e 3 filhos,
28

todos muito doentes ; e a causa da enfermidade de todos é molestia


veneria, que Vianna ganhou em vida libertina, e transmittio a todos.
Admira , porém , a força da alma deste homem ; não desacorocoa,
combate a pobreza trabalhando sem descanso : quando se enfada com .
o calor da forja, corre para a chacara a tratar de uma lindissima
plantação de viveres e tabaco , que lhe sustentam a casa ; combate a
enfermidade procurando medico e medicamentos, e tratando com todo
o zelo sua enferma familia .
XLIII .

Vianna tanto não teme esses dous inimigos, que ainda apresenta
batalha a um terceiro : Vianna aprende a ler com outra alma forte ,
que é a do Sr. João Nepomuceno Silva do Nascimento ,homem branco
parente do senador Alencar. Nascimento, ainda moço , é um defunto
da cintura para baixo ; ha muitos annos ganha seu pão ensinando
primeiras letras , e já foi rico !
Vianna mandou vir Nascimento de muitos dias de viagem , e o sus
tenta e paga só para conhecer as letras !
Eia pois, ó Vianna ! Recebe minhas felicitações em testemunho
de respeito e veneração por tua bravura, que não succumbe diante
de taes inimigos do homem em sua atribulada e curta carreira de
vida . Toma porém meu conselho , amigo Vianna; nada tendes ganho
com essas tres brilhantissimas victorias emquanto não alcançares
uma , que é tudo . Combate agora as más inclinações de teu co
ração : vence, triumpha da gula e luxuria ; emquanto frequentares
os sambas de Pereiros ( chama-se aqui Samba á impudica dansa , que
em Minas chamam batuque) , não deixarás tambem a cachassa e as
prostitutas , que são a perdição tua e de tua infeliz familia, bem digna
de melhor sorte .... Vale .
XLIV .

Meu amigo o Sr. Saboia , por obsequiar-me levou- me uma tarde a


passeiar a cavallo fóra da villa de Pereiros , a Catolé, chacara do Sr.
Matta , que tem um engenho de canna puxado por bois, e uma
grande plantação: notei que laranjas e bananas não são aqui da me
lhor qualidade .
Quando aqui cheguei informaram -me da existencia de uma en
fermidade desconhecida, que aqui está matando muitas crianças e
mulheres, e pelo signal que me deram ,logo suppuz, o que depois me
certifiquei, vendo a enferma Joaquina , moradora no lugar chamado
Recanto : escarlatina grangrenosa .
29

XLV .

Em parte nenhuma vi ainda tanta molestia de olhos como aqui !


Causa dó ver uma familia inteira toda doenle de olhos , muitas incu
raveis , e muitos já cegos com os olhos arrebentados.
A maior parte com as palpebras enroladas para dentro , as pestanas
arranhando e ferindo o globo do olho com horrives dôres !
Duvido que o Egypto seja mais inimigo dos olhos humanos que
nossos sertões do norte, e muito principalmente nos lugares altos .
Para fazer-se idéa da pobreza da villa de Pereiros direi que paguei
aluguel de casa nessa villa a 3 vintens por dia, de 22 a 27 de Maio, 5
dias a 60 réis por dia 300 rs. Ethnographia: a maior parte da gente,
que tenho visto nesta provincia são pardos ,a que aqui indignamente
chamam cabras .

XLVI.

Terça -feira 27 de Maio . — Tencionando deixar Pereiros antes do dia ,


por ter ali terminado minha missão medica , o não pude fazer por
chover muito toda a noite , e amanhecer chovendo; quando porém , já
dia alto, me retirava, e achando-me já fóra da villa , o Sr. presidente
da camara fez me voltar para consultar sobre o tratamento de enfer
mos que elle tinha em sua fazenda , longe desta villa.
A uma legua distante da villa comecei a descer a serra por um tri
lho ou vereda , a que chamam estrada : caminhei cinco leguas de
pessimo caminho, e sem ver passageiro, nem morador algum ; parei
para o descanso no lugar chamado Carapuça, onde encontrei o Sr.
Luiz Paulino de Albuquerde Cavalcanti,um dos mais notaveis morado
res de Pereiros , para quem trouxe carta de recommendação; admirei
um lindo cavallo castanho em que este Sr. vinha montado , e ainda
mais pensando eu que era novo, disse-me o Sr. Cavalcanti que seu
cavallo tinha mais de 18 annos,e asseverou que oscavallos aqui vivem
25 e mais annos servindo bem .
XLVII .

Aqui na Carapuça conversei com o Sr. João Lourenço Pedrosa ,


morador de Lavras, que traz cavallos carregados de rapaduras com
pradas no Cariri, e mostrou -me uma pimenta que de la traz com
muita estimação, a que chamam pimenta de macaco ( fructa de ca
peba ou pariparoba ). O Sr. Pedrosa , emquanto descansava na rede
cosia um gibão de couro para vender. ( Aqui a maior parte da gente
anda vestido de couro. )
30

Empurrei- me de Carapuça ; parei na Lagða -Grande em casa do Sr.


Antonio da Cunha Oliveira , que padece do coração ; pernoitei debaixo
de uma latada de oiticica á entrada da casa rustica do Sr. Antonio
Cosme de Albuquerque Mello , no lugar chamado Carnaubal, pas
sando por lindas varzeas e planicies de Carapuça para aqui .
XLVIII .

Fui bem tratado pelo Sr. Mello e sua nobre familia , que conver
sando a respeito do café que aqui no Ceará usa beber, fraquissimo :
uma colher de café moido para 8 ou 10 chicaras; a senhora pedio -me
lhe ensinasse a regra usada aqui no Sul , ao que eu respondi que
achava melhor que continuassem com sua moda, visto gostarem do
café assim fraco , porque a moda do Sul prejudicava a saude e tam
bem a bolsa .
Quarta -feira 28 de Maio . - Ao romper do dia empurrei- me da la
tada do Carnaubal do Sr. Antonio Cosmé , e cabeça fóra , palinhando
por mais de 4 leguas de campo beu nivellado e alagado , cheguei
antes do meio dia á cidade do Icó , hospedando -me em uma praça no
centro da cidade em casa do Sr. Dr. juiz municipal , servindo interi
namente de juiz de direito, José Vicente Duarte Brandão , filho do rico
fazendeiro Sr. Bernardo Duarte Brandão .

XLIX .

Quarta - feira 28 de Maio . - Casa junto á igreja. O Sr. Dr. Brandão ,


na qualidade de presidente da junta sanitaria de Icó , é aqui o meu
superior a quem vim remettido com despacho do vice- presidente do
Ceará , ordenando que depois de demorar-me em Pereiros o tempo
necessario, para de accordo com as autoridades da villa providenciar
e aconselhar tudo quanto me parecesse necessario para bem da
saude publica, me apresentasse á junta sanitaria de Icó , onde devia
fixar minha residencia ás ordens dessa junta de Icó, a quem devia
obedecer .
L.

Se bem pedi ao governo do Ceará para mandar -me para bem longe,
melhor me servio ! Chego hoje a Icó doente do estomago e intesti
nos , por beber aguas podres .
Cansadissimo, esfalfado já da penosa viagem , por máos caminhos,
já pelos muitos doentes que sercam -me por toda parte . Quando cuido
estar no lugar de meu destacamento para tomar algum repouso, é
31

quando recebo tres officios, dous do governo do Ceará e um desta


junta de Icó , intimando -me para seguir quanto antes para a villa da
Barra do Jardim no Cariri,nas ladeiras do Chapadão, impropriamente
chamada Serra .
Quinta- feira 29 de Maio . -Forçoso foi ficar aqui em Icó hoje por
não achar conducção para o Cariri . Paguei o aluguel de 3 cavallos de
Pereiros para Icó 14 leguas , ao Sr. Manoel Sabia , 8 $000 . Ajustei hoje
com o Sr, Francisco Ferreira Borges o aluguel de 3 cavallos para
conduzir -me amanhãa de Icó ao Crato ( 30 leguas) por 15$000, e foi
ne preciso comprar uma sella para meu criado.
Banhei-me com o Dr. Brandão no barrento Salgado , um dos prin
cipaes confluentes do Jaguaribe, que corre perto da casa do doutor, e
fiquei descontente porque a agua dessa salgada torrente ,além de muito
suja estava bastante quente.
LI .

Icó é uma cidade importante central do Ceará ; deposito de algo


dões e mais generos que aqui chegam em costas de animaes, e
daqui seguem em carros para o litoral. Não fica longe da provincia
do Rio Grande ; é um baixo serrote que avista -se bem perto da cidade
e separa da Parahyba, chama- se Camará . Icó está situada em uma
extensissima planicie, que por dizer acaba aonde principia o terreno
oudulado , pedregoso, onde bem claramente se percebe a subida para
a cordilheira do Araripe .
Icó tem ruas largas, bem alinhadas, formosas praças, 4 ou mais
igrejas, boas casas,lojas bem sortidas, tem um theatro , e mais alguns
edificios publicos em construcção .

LII .

O Sr. Dr. Thiberge, medico francez aqui residente ha annos, é o


director dessas obras, que executa muito bem pelos conhecimentos
architecticos que possue .
Fui aqui honrado com a visita dos Srs. Rev. vigario padre Miguel
Francisco de Frota , o pharmaceutico José de Castro Bacellar, e outros
senhores .
32

CAPITULO III .

VIAGEM DA CIDADE DE ICÓ A ' VILLA DA BARRA DO JARDIM PASSANDO POR


LAVRAS DA MANGABEIRA , CAPELLA E POVOAÇÃO DA VENDA (HORRIVEL
FUNGUS HIEMATHODES ), MORRO DOURADO, RIACHO DOS PORCOS, MISSÃO
VELHA , ENGENHO DA TIMBAUBA , CIDADE DO CRATO , VILLA DE BARBALHA ,
CHAPADÃO DO ARARIPE , IMPROPRIAMENTE CHAMADO SERRA .

I.

Sexta -feira 30 de Maio de 1856 .-- Empurrei-me de Icó já bem


alto dia , com meu criado Beltrão, Assorianno , que acompanhou -me
desde o Rio de Janeiro , e o Sr. Francisco Ferreira Borges , que alu
gou-me 3 animaes para conduzir-me ao Crato , por 15 000 30 leguas.
Nesse mesmo dia comprei ao Sr. Borges o poldro Camará de 4 annos ,
em que eu ia montado, por agradar -me apezar de estar magro .
Talvez ninguem acredite que os cavallos nesta terra principiam à
trabalhar antes de se desmammar ! Vi meninos apeiar- se de cavallos
de menos de anno de idade, e correrem estes para as mãis a mammar.
II .

Sahindo de Icó marchei por duas leguas em planicie; depois o ler


reno mudou de figura, tornando -se ondulado , e tambem apresentou
outra vegetação . Adeos carnaubas, que me acompanham desde a
capital da provincia. Adeos páos brancos, agora vejo campos agres
tes, acanhadas arvores tortuosas, terreno secco e pedrento-pedregoso .
III .

A Juas leguas e meia parei na fazenda de Santo Antonio , para be


ber leite, e comprar queijo fresco ; sendo que eu levava bastantes
curados, que deu- me a boa familia do Sr. Brandão em Icó .
Deixei Santo Antonio e o bom vaqueiro Silva , que a administra , e
algumas leguas adiante parei no lugar chamado Carrapicho, para
dar milho a meu cavallo Camará : caminhando sempre por lindas
paizagens, pernoitei já com escuro em casa de um mestiço , Sr.
Lopes, no lugar chamado Barra das Pendencias, e fiquei muito agra
decido ao Sr. Lopes por consentir que meu Camará passasse a noite
amarrado dentro do cercado das plantações, aonde havia melhor
pasto.
IV .

Sabbado 31 de Maio.- Deixei Barra das Pendencias ao romper do


33

dia , caininhei 6 leguas de máos caminhos e agradavel paizagem ,


apeei-me na porta do Rev. Sr. padre José Gonçalves da Costa ,na praça
da villa de Lavras da Mangabeira, onde esperava por mim meu amigo
Sr. Dr. Leandro Ratisbone Chaves Mello.
Esta pequena villa , situada em agradavel planicie ; é notavel por
ser lugar onde já se tiroui ouro , como bem o indica o nome, e tam
bem porque o riacho Salgado aqui furou um serrote para sua pas
sagem em medonho lugar chamado Boqueirão .
Vi aqui um lindo cavallo de 4 annos já bem manso ,quese vendia por
cento e vinte mil réis ( 1208000) .
V.

Depois de almoçarmos largamente, ao meio dia partimos de Lavras


eu ,o Reverendo , Dr. Ratisbone,e um pardo de Pernambuco amigo do
padre, e caminhando sem parar : atravessámos montes e valles, 5 ou
mais riachos , ou o mesmo riacho em muitas partes , com agua até aos
peitos do cavallo . Chegámos ás nove da noite á pequena povoação
denominada Venda .
Domingo 1 de Junho de 1856. - 0 Sr. padre José Gonçalves da Costa
é o capellão deste lugar : pequena rua de casas de palha, que termina
em uma praça quadrada , onde está a mais pobre , suja e indecente
igreja que tenho visto ! Sem porta , as cabras, porcos e todos os ani
maes entram e sahem ; imagens que por sua imperfeição parecem ver
dadeiras caricaturas .
VI .

O lugar é muito agradavel , em uma ladeira á margem esquerda do


Salgado, que fertilisa e embeleza a paizagem , ao mesmo tempo que
fornece abundante pesca .
Quando depois da missa nos dispunbamos a continuar viagem , fui
embargado pelo Sr. Vicente Ferreira da Cruz, cunhado do Sr. capitão
Antonio Pinto da Costa , morador a 3 leguas daqui, para ir até lá
receitar para a Sra . D. Joaquina Theresa de Jesus, que se acha
doente ha mais de anno , de uma postema ao lado do peito (disseram
elles). Com effeito , nunca vi molestia mais horrenda !
A pobre senhora não se deita já ha inuitos mezes ; nem acha po
sição alguma , que lhe dê repouso ; seu algoz é um grande tumor,
Fungus hemathodes,que principia debaixo do seio esquerdo, toma todo
elle, vai ao hombro, espaduas , desce as costas, estende - se até á co
lumna vertebral, invade o braço esquerdo, onde existe ja enorme ul
cera gangrenosa, no cotovello .
Š
34

VII .

Côr pallida amarellada , febre continua : o tacto não mostra fluctua


ção em parte alguma : como por exploração faço com o bisturi
profunda puncção na parte que me pareceu mais apropriada ; quasi
a não sente ; corre sangue aguado. Que fazer ?
Quando se não podem curar as molestias , manda a arte suavisar
as penas , prolongar a existencia .
Voltei á Venda por caminho pessimo já alta noite , com muito pe
rigo,molhei-me ao passar o riacho do Salgado a nado, não pude dor
mir o resto da noite, porque enquanto vejo luz , não posso conciliar
o somno, e um dos meus companheiros desperta logo que lhe tiram
um archote de diante dos olhos !
Seja pelo amor de Deos .
VIII .

Quarta- feira 2 de Junho de 1856. -Partimos da Venda ás 7 da


manhãa depois de banhar- nos no Salgado; e por caminho pedregoso
não plano, mais capoeiras que campos , descansamos em um lu
gar chamado Tropas, ainda á vista do Salgado, que desde Icó nos
mostra o caminho de Cariri, e onde tomei segundo banho antes de
jantar .
Deixamos Tropas, e por máos caminhos, terreno pedregoso , e muito
desigual , offerecendo em recompensa optimas vistas, passamos por
Morro Dourado , que na verdade parece conter ouro ; assim como o
riacho dos Porcos que atravessei , poucas horas depois, me pareceu
muito semelhante ao diamantino territorio do Serro do Frio em Minas ;
muito bonito pareceu-me o caminho hoje ; dormimos em uma ob
soleta povoação e freguezia de Missão Velha , em casa do Rev. vigario
padre Felix Aurelio Arnaud .
IX .

Desde Lavras da Mangabeira piso terreno aurifero. Terça -feira 3


de Junho partimos de Missão Velha ás 7 da manhãa, agradecendo
muito ao Rev. Sr. Arnaud a caridosa e muito carinhosa hospitalidade,
e marchando por uma planicie arenosa , humida , e fertil, que pisamos
desde hontem , cerca de duas leguas antes de aqui chegar, paramos
no Brejo Secco, fazenda do finado Sr. José Pinto de Sá Barreto , ho
mem probo , que legou a seus descendentes um nome respeitavel , e
justamente venerado ainda hoje.
Descansamos no Engenho da Timbaúba , propriedade do Sr. Dr.
35 -

Marcos Antonio de Macedo , notabilidade desta provincia , naturalista


mineralogico, que deu a idéa e levantou uma carta topographica,
mostrando a possibilidade de metter aguas do rio S. Francisco no
Ceará . Feliz lembrança ! E me pareceu praticavel, quando visitei
esses lugares. Fui muito obsequiado pela respeitavel Sra . mãi do
Dr. Macedo. Aqui provei pela vez primeira o fruto do Umbú , it
gloria destes sertões ; uma especie de maracujá aqui chamado sus
piro ; e não sei se o sabor ou o aroma exaltarei primeiro , porque
ambos regalaram -me ao mesmo tempo . Optimos figos, excellentis
simas mangas , superiores a todo o elogio . Já vejo que estas terras cal
careas e salgadas, se deterioram a agua tambem aperfeiçoamo
fructo .
X.

Com saudades deixei Timbaúba, caminhando sempre por fertilis


simos vargedos , onde as torrentes pluviaes depositam a terra vegetal
arrastada das ladeiras da vasta cordilheira do Araripe, que tenho já
diante dos olhos desde hontem : cheguei ao engenbo dos Buritis, per
tencente ao Sr. Brito , respeita vel lavrador, que traja como todos nes
tes sertões : camisa de fralda solta sobre seroula ; o que muito es
tranhei a principio ! principalmente para a igreja ; e meu criado Bel
trão , tanto sympathisou com esse uniforme, que sacrificou por elle
outros arranjos que me pareceram preferiveis !
0 Sr. Brito regalou - nos com delicioso caldo de canna , ou garápa
( como aqui e em outras provincias chamam ) , emquanto que nossos
cavallos devoravam bogaço fino ensopado de caldo e espumas das ta
chas, que os engorda muito .
XI .

A galope , nos empurramos de Buriti ; e assim fizemos nossa en


trada na cidade do Crato , debaixo de um sol abrasador á uma hora
da tarde do dia terça feira 3 de Junho de 1856.
Mais de dez leguas antes de chegar ao Crato, cabeça da comarca do
famoso Cariri , avista -se a vasta cordilheira do Araripe, em cujas fral
das jaz sepultada esta infeliz, entre dous degráos da ladeira do Araripe ,
serrotes que correm parallelos , deixando no meio um triste, sinistro
valle, onde corre o sujo riacho Grangeiro, que limpo e crystallino se
precipita da risonha ladeira de Loanda , e Batatal . Tão perfeita
mente enterraram esta desgraçada, que quando se entra , ou se vai a
ella , o primeiro objecto que della se avista é a ponta da branca torre
da matriz ( obra de Dr. Thiberge ) , des cendo por extensa ladeira de
- 36 -

terra muito vermelha , em cujo meio , olhando -se à direita enxerga-se


entre matos a ominosa obsoleta trempe de sinistra catadura , que
ainda hoje brada aos céos pelo assassinato do mais infeliz que
criminoso Joaquim Pinto Madeira !
XII .

O que estão fazendo ali aquelles tres velhos páos , já ha muito sem
uso , já quasi cobertos de mato ? Servirão só para lembrar o tragico
lastimoso fim de Pinto Madeira ? Porque ninguem lança mão delles
para lenha , e até o tempo, que tudo consome, ainda os respeita ? Acaso
quererá a Providencia que elles vejam o justo castigo dos assassinos
de Joaquim Pinto Madeira ?
Ob ! justiça , justiça , justiça celeste, justiça de DEOS ! Arreda , pati
fes e bandalhos, deixa passar a justiça de DEOS ! Diante della
todo o joelho se dobra ; toda a cabeça se inclina ; todo o coração se
humilha : nos céos , na terra, e nos abysmos do inferno, tremei ,
malvados....!
XIII .

Bem triste e ominosa é a vista de Crato . Tres ou quatro ruas na


direcção do immundo riacho Grangeiro, que sahe limpo e crystallino
de suas risonbas nascentes , sujam -as porém os lavradores com a
irrigação das terras, antes de entrar nesta cidade . As casas aqui são
( á excepção de meia duzia ) terreas e de pessima construcção ; sem
mobilia, sem os commodos necessarios para familia , e animaes do
mesticos; não se usa por aqui ter cavallos em estribaria, mandara -se
para os cercados fóra da cidade pagando-se a quem os trate , o qual
tratamento consiste em dar-lhes capim e olhos de canna a comer ,
e banhos ; nunca se almofacam nem penteiam .
XIV.

Hospedei-me em casa do meu amigo companheiro de viagem Sr ,


Dr. Leandro Ratisbone Chaves Mello , na praça da matriz, e tivemos
a distincta honra de ser visitados pelos Srs . Reym . vigario Manoel
Joaquim Ayres do Nascimento, Antonio Ferreira Lima Sicupira , filho
de meu respeitavel amigo da Fortaleza , que , como já disse, ordenou
se depois de viuvo ; o Dr. juiz de direito Domingos José Nogueira Ja
guaribe, Bernardo Juca , Dr. Manoel Joaquim Coelho Bastos do Nas
cimento, sobrinho do Rev , vigario .
37

XV .

O Sr. Dr. Jaguaribe, presidente desta junta sanitaria , é aqui o meu


superior a quem devo obedecer ; e desde o primeiro dia em que nos
vimos (3 de Junho) até o ultimo em que nos despedimos ( 13 de No
vembro) , sempre captivou -me com suas maneiras affaveis, muito ur
hanas, e natural bondade .
Quarta feira 4 de Junho. - Meu pobre Camará passou mal a
noite, pouco capim ; por falta de cavalhariça dormio no campo aber
to , onde outros esfaimados tambem comeram o pouco capim que
se lhe deu , e elle , enfadado, quebrou as prisões e fugio : quando
de manhãa o não vi julguei-o furtado , por ter lido no Araripe, jornal
desta cidade, annuncios de furtos de cavallos : felizmente achou - se á
margem do Grangeiro , procurando com a bebida supprir a falla da
comida. Em companhia do meu vizinho sapateiro, Sr. Valentim Al
ves Moreira , e Dr. Rabisbone, banhei- me no Grangeiro. dentro da
chacara do rico negociante Sr. Joaquim Lopes Raymundo do Bilbar,
que está aqui edificando a melhor casa do Crato , debaixo do risco do
Dr. Pedro Thiberge : como já disse , a agua deste riacho quando aqui
chega é suja , pelo uso que della fazem na parte superior; e por
isso não me satisfez o banho .
XVI .

Tive o prazer de gozar ao principio da noite da vista da lua nova,


que me não lembro de a ter visto , nunca , tão brilhante e esplen
dida ! assentado fóra de casa na praca , conversundo com os Drs . Ja
guaribe, e Ratisbone.
Quinta feira 5 de Junho. — Re cebi hoje um magnifico presente de
mais de 20 mangas com que brindou- me meu amigo Sr. Dr. Jagua
ribe : nenu o succo therebintaceo caustico que exuda da casca de nos
sas mangas , nem o acido repugnante junto ao caroço, nem a aspera
estopa que incommoda os dentes, encontra-se nestas deliciosas man
gas do Cariri ! é o suprasummum da perfeição neste genero, e tam
bem não prejudicam a saude.
XVII .

Recebi hoje a visita dos Srs. Simplicio Luiz da Rocha, Pinheiro ,


Caminha , irmão do meu amigo de Aracati.
Ás 8 horas da manhãa apresentou -se um filho do Sr. José Geraldo
Bezerra, parente do meu amigo Dr. Rabistone, pedindo para eu ir a
2 leguas d'aqui receitar para seu pai muito doente, no lugar cha
mado Loanda .
- 38

As duas da tarde empurrei-me do Crato em companhiu do moço


e do meu amigo Dr. Ratisbone ; fóra da cidade tomamos á direita ,
atravessámos o Grangeiro , debaixo de sombrio bosque, subindo sem
pre um plano inclinado, ou ladeira do Araripe, por mais de uma ho
ra , esquipando entre um fascinante bosque de lindissimas palmeiras,
catolés, andaiás , macaúbas (já se não vê Carnaubas) , quando da porta
do Sr. Bezerra , nas nascentes do Batatal ( principal confluente do
Grangeiro ), lanço os olhos a léste . Oh ! que arrebatadora vista ! Ex
pande-se o coração, extasia -se a alma : eis uma fraca imagem
da Bemaventurança !
Os olhos primeiramente devorarain em grosso ; entram depois nos
pormenores : é um mar tempestuoso que levanta serras sobre
serras de fluctuantes ondas de verduras ; entre ellas existem valles,
onde em meandro serpenteam arroios de crystallinas aguas, que
murmurando se vão perder nos paludosos cannaviaes .
XVIII .

Analysando agora o painel , vejo innumeraveis casitas de palha


por baixo dos palmares ; ao lado uma engenhoca puxada por bois
moendo canna para rapadura e cachaça, louros cannaviaes , escuros
bananacs, pomares sempre verdes , sempre carregados de fruto , por
terem sempre na raiz agua corrente .
Bandos de papagaios, maracanās, jandáias , periquitos, atroam ; en
tre esses importunos , com prazer se escuta o mimoso -- soffreu - lerno
canario, immensos bandos de cardiaes de topete vermelho, tão co
muns ali , como aqui os serradores , papa capim ; todos fallam em
sua lingua , que não entendemos ; supponho , porém , que dizem amor,
prazer, ou dôr .
XIX .

Ai de mim ! não posso prestar ao Sr. Bezerra ! Um enexoravel can


cro o róe pelas guélas ; e já o não leva , com menos de 60 annos !
E' preciso morrer ; ninguem aqui veio para ficar !
Sexta feira 6 de Junho . - Levantei-me muito cedo para arranjar
minha sabida hoje para o Jardim ; com o Sr. José Joaquim Pinto ,
mestiço, ajustei para mipha conducção um boi , governado pelas ven
tas , para cargas , e um cavallo para montada de meu criado Beltrão
por 5 000 12 leguas .
Receitei para o Sr. Antonio Francisco Corrêa Motta Labatut, para
varios doentes da casa do Sr. Bilhar, e para muitos pobres.
39

XX .

Officiei hoje ao Sr. presidente do Ceará, dando conta de minha


missão ; assim como tambem o fiz na cidade de icó , logo que ali
cheguei. 3

Ás duas da tarde de 26 de Junho empurrei-me do Crato , em com


panhia do Sr. Lucio Aurelio Brigido dos Santos, irmão do meu amigo
vigario de Pereiros , e cabeça a riba ( porque sabimos de um fundão)
ganhámos o alto do mesmo sanguinéo morro, por onde aqui entrei , e
cabeça a baixo, cabeça a riba , cabeça fóra , por subidas, descidas, al
guns iaboleiros, poucos, caminhámos até ao pôr do sol , sempre por
capoeiras, mato pequeno, quando do alto de chapadão elevado avis
támos lá no fundo de um verdejante brejo uma pequena branque
jante povoação, que pareceu - nos estar no fundo do valle : quando
porém ganhámos esse vastissimo, fertilissimo brejo, vimos que Bar
balha não jaz no lameiro, porém em alteroso outeiro, que domina
todo o valle .
XXI .

A nova e elegante villa da Barbalha está rodeada de impensa var


jaria por um lado ; e esse admiravel brejo todo cultivado, com muitos
engenhos de cannas, optimos melões, e melancias, e muitas planta
ções de viveres, donde tira subsistencia uns, e riqueza outros ; são im
mensos areaes , não tão ferties, porém dão mantimento, lenha e al
gum pasto para criação.
Obrejo de Barbalha é bordado de um soberbo bosque de altáleas,
debaixo das quaes palmeiras enxergam-se pittorescas cabanas de ca
boclos e mesticos de sangue negro , a que indigna e injustamente
chamam por aqui Cábras.
XXII.

A villa consta de tres ou quatro pequenas ruas, contendo casas


muito mais elegantes e commodas que as do Crato. A igreja é inde
cente, muito suja e terrea , sem assoalho nem calçada. Ossos de de
functos dispersos no pavimento , e toda borrada de andorinhas.
XXIII.

Sabbado 7 de Junho.- Mandei José Pinto partir muilo cedo para o


Jardim com seu filho o menino Amaro , tocando o boi de carga , em
quanto eu fiquei abarbado em um grande loboro (assim chamam aqui
o trabalho, e é Latino de labor, laboris ); rodeiado de muitos doen
are
a
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tes pobres, os quaes tambem nunca se esqueciam de cantar-loe a


velha historia : -- Nosso Imperador te paga para nos prestares ser
viços .
Emfim , já bem tarde , e com ardentissimo sol , á hora em que aca
bei meu laboro, tem utrei-mede Barbalha, e o meu hospede, e bom
amigo Sr. Lucio , dignou-se impor-me (ninguem leva a mal este ver
bo, porque aquiquer dizer - honrar com a sua companhia ) , e bem se
vê que é um grande obsequio , e nunca uma affronta ! Atravessei
grande planicie arenosa coberta de pequeno mato , depois subi uma
ladeira do Araripe , e já bem perto do cume meu amigo Sr. Lucio
entregou -me ao Sr. Francisco Monteiro Saraiva, fazendeiro morador
nesse lugar, e retirou -se para Barbalha .
XXIV .

O Sr. Saraiva impoz-me, cabeça a riba , por pessima vereda de gado,


e ganhando o alto do chapadão, todo coberto de capim agreste e ar
vores tortas , por um trilho de gado, todo atrancado de arvores tor
tas, e em zig -zagues, ora desviando -me para a direita , ora á esquer
da , quasi sempre abraçando o pescoço do cavallo, e o amigo Saraiva
galopando adiante, rindo-se do meu vexame em semelhante laboro ,
quando isto para elle é um recreio ; assim corremos até alcançar
José Pinto , menino Amaro , e o boi da carga chamado estrangeiro.
XXV.

Regressou o Sr. Saraiva, continuei meu martyrio, porque o caminho


é sempre o mesmo. Descansámos no meio do chapadão, debaixo do
um visgueiro colossal mimosa , de ramos deitados no chão, formando,
perfeita sombra ; fizemos fogo, armámos redes nos galhos ; neste
tempo passou por nós um athletico pardo bem montado á gineta , to
dinho ( expressão desta provincia ), todinho encourado, que quer di
zer vestido de couro , e armado até os dentes ! A esta visão em tal
7
lugar, no meio de um bosque de sete leguas sem morador , José
Pinto tremeu : o homem lançou sobre nós olhar indagador, e vendo
que eu e meu criado traziamos boas armas, fez-nos uma profunda
cortezia e seguio, com muita satisfação do meu pacifico mestico José
Pinto, que depois de o ver bem longe disse : «que cabra cangasseiro !»
deve ser um dos muitos criminosos que estão escondidos no
Exú, provincia de Pernambuco, a treze leguas somente distante do
Crato,
XXVI.

Exú tem fama de ser o asylo dos assassinos e das onças. Can
gasseiro chamam aqui a um homem bem armado , que tambem or
dinariamente é um assassino de profissão. Não ha muitos annos que
essa gente governava todos os sertões do centro do Brazil . Com
todo o sangue frio e impavidez matavam aqui na barra do Jardim
aos domingos, quando havia muito povo junto para a feira, depois
iam os matadores muito tranquilla , e devotamente ouvir sua missa ,
e voltavam as suas casas, quando muito bem lhes parecia , bem certos
de que ninguem os incommodava , porque tinham a protecção das pri
meiras autoridades do lugar.
XXVII .

De Barbalha á ladeira, o terreno , como já disse, é chato e arenoso ;


entre outras arvores apresenta uma linda da familia da Sapindacea ,
bem descripta por Martius, e outros , aqui conhecida por Tinguí , de
cujo fructo oleoso fazem sabão, e empregam a casca para matar peixe :
matas de cajueiros silvestres produzindo pequenos fructos aqui cha
mados cajúís , cobrem montes e valles ; muitos leguminosas , duas
arueiras do campo, e pés de flôr roxa , especie de caroba, em arvores
ambas : nas ladeiras predominam as palmeiras ; no alto , piquís,
mangabas, oleo de copahiba, Vochisias sambaíbas , e outras dileniaceas,
ipés deflor-amarella , sendo os das vargens de flôr roxa.
XXVIII.3

N.B. Tanto o gado domestico como animaes silvestres devoram


com avidez as flores de ipés e visgueiros, quando cahem e cobrem a
terra ; assim como os fructos sacharinos das mangabas, visgueiros e
faveiras, mimozea muito proxima ao barbatimão . Veados, porcos,
emmas , são aqui mortos pelos caçadores, que os esperam escondi
dos, aonde têm essas flôres, 01 frutas no chão. Não deixarei ainda
meu visgueiro do Chapadão sem fazer conhecida a jandaíra .
XXIX .

Abelhas grandes , vermelhas, voam á roda do nosso fogo , e é sem


pre seu costume procurar o fogo ; chama-se jandaira. Empurrei
me do descanso e corri só adiante sempre pela mesma atravancadis
sima asinhaga ; ás 3 horas da tarde comecei a perceber que descia ; ás
4 avistei a villa da barra do Jardim , onde entrei ás 4 e meia . Apeei-me
6
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em casa do Sr. João Emilio Capiberébe, em uma distilaria de aguar


dente, que com rapaduras prepara o vinho donde a extrahe .
Domingo 3 de Junho .-Aqui estou são e salvo, de tantos incommo
dos e perigos ( graças ao Senhor) , no lugar de meu destacamento , a
cento e vinte leguas da capital desta provincia .
XXX .

Quando aqui cheguei hontem á tarde fui visitar, o velho e cego


vigario Sr. Antonio Manoel de Souza , com mais de 80 annos , natural
da Serra do Martins da provincia do Rio Grande do Norte , que esteve
preso muitos annos por negocios politicos , Fui depois á trezena de
Santo Antonio, dirigida pelo Rev. padre Joaquim de Sá Barreto , coad
jutor, para quem eu trouxe cartas e jornaes do Crato.
Esta igreja, ainda não acabada , já ameaça cahir o telhado sobre o
povo, por má construcção , como todas destes sertões ; acha-se no
maior abandono, sem portas, muito suja, indecente, emfim é um
escandalo .

FIM.

il

TYP. AMERICANA DE JOSÈ SOARES DE PINHO ,


Rua da Alfandega n . 210.
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