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Volume I

1ª Edição Eletrônica

JOÃO JUSTINIANO DA FONSECA


Autor

Edição Eletrônica: L P Baçan

Setembro de 2005

EDIÇÃO IMPRESSA:
1996
Capa, Diagramação e Editoração Eletrônica:
Microtextos Edições Gráficas

Fonseca, João Justiniano da, 1920 -


Rodelas: Curraleiros, Índios e Missionários história / João Justiniano
da Fonseca. - Salvador:
298 p.: il.
1. História. I. Título
CDD - 869.93

Endereço do autor:
R. Mato Grosso, 478, ap 602
Edf. Mansão Real da Piyuba
Salvador - Ba. Cep.: 41.830-150 Tel.: (071) 3240-0100
joaojustiniano@terra.com.,br
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http://www.avllb.org/academicos/032/biografia.html

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Copyright © 2005 do Autor

Fundo musical: Abismo de Rosas - Américo Jacomino (Canhoto)/João


do Sul

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Marinha Grande - Portugal
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SUMÁRIO - VOLUME I

O AUTOR
DEDICATÓRIA
UMA PALAVRA DE AGRADECIMENTO
SINO DA ALDEIA
UM EXEMPLO DE BOA HISTÓRIA LOCAL - JORGE CALMON
NOTA DE INTRODUÇÃO
I - PASSADO REMOTO
II - O PRECURSOR
III - O DESCOBRIMENTO
IV - MISSÃO DE RODELAS
V - COLONIZAÇÃO
VI - ORIGEM DO NOME
VII - CONVIVÊNCIA
VIII - OS ÍNDIOS
IX - OS CAPUCHOS FRANCESES
X - MISSÃO DOS JESUÍTAS
XI - FRANCISCANOS E CARMELITAS
XII - OS CAPUCHINHOS ITALIANOS
XIII - O GENOCÍDIO
XIV - O MUNDO SERTANEJO
XV - OS CURRALEIROS DO SÉCULO XVIII
XVI - FIM DAS MISSÕES
XVII - FIM DAS SESMARIAS
XVIII - A FAZENDA RODELAS
XIX - A ALDEIA E O POVOADO NA DÉCADA DE 30
XX - A TRIBO TUXÁ
João Justiniano da Fonseca

É poeta e ficcionista, com incursões


na historiografia e na biografia. Nasceu
em Rodelas, Estado da Bahia, a 30 de
junho de 1920, filho de Manoel
Justiniano da Fonseca e Eufrosina Maria
de Almeida.
Servidor Público, João Justiniano da
Fonseca tem um longo percurso de
trabalho. Serviu ao Exército Nacional
entre 1940 e 1944, tendo aí realizado o curso de formação
de graduados – sargento. Preparou-se para a vida por via de
cursos intensivos, para realizar concursos públicos. Nesses
cursos estudou, além da matéria de conhecimentos gerais,
matemática, contabilidade geral e pública, geografia,
voltada especialmente para informações sobre portos
marítimos e fluviais, direito tributário, direito
administrativo, direito comercial, direito civil e direito
penal na área de crimes contra a administração pública.
Tem aprovação nos concursos públicos então realizados
pelos extintos - Departamento Administrativo do Serviço
Público (DASP) e Departamento Estadual de Serviço
Público (DSP\BA), para Escrivão de Coletoria Estadual
(Bahia) Fiscal de Rendas do Estado (Bahia), Escrivão de
Coletoria Federal e Agente Fiscal do Imposto de Consumo,
cargos reestruturados com denominação outra. Exerceu, por
concurso público, os cargos de Auxiliar de Coletoria
Federal, Escrivão de Coletoria Federal e Agente Fiscal do
Imposto de Consumo, correspondente, na atual
nomenclatura, a Auditor Fiscal da Receita Federal. Em
comissão, passou pelos cargos de Inspetor de Coletorias
Federais, Fiscal do Selo nas Operações Bancárias, Inspetor
Fiscal do Imposto de Consumo e Inspetor Fiscal de Rendas
Internas na área federal; Assessor Técnico de Planejamento
na área estadual (Bahia) e Diretor Administrativo
Financeiro da extinta COHAB/SALVADOR, na área
municipal. Aposentou-se como Auditor Fiscal da Receita
Federal com redução de tempo de serviço, como
participante de operações bélicas. Nomeado posteriormente
para o cargo vitalício de Conselheiro do Tribunal de Contas
dos Municípios do Estado da Bahia, renunciou à
aposentadoria federal para exercer o novo cargo, no qual
veio a aposentar-se em 1990, encerrando, então, sua
carreira no serviço público. Exerceu, ainda, o mandato
eletivo de Prefeito de sua terra natal no período 1967/1971
e posteriormente o mandato de vereador.
Obra Literária: Safiras e Outros Poemas (poesia lírica),
Sonhos de João (poesia lírica), Brados do Sertão (poesia
épico-social), Sonetos de Amor e Passatempo, Rio Grande
do Sul (poesia vária). Luiz Rogério de Sousa - Educador
Emérito (resumo biográfico e coroa de sonetilhos),
Cacimba Seca (romance), Terra Inundada (romance),
Grilagem (romance), Aquele Homem (romance), Rodelas -
Curraleiros, Índios e Missionários (história da colonização
na região das corredeiras do Rio São Francisco), Sertão,
Luz e Luzerna (contos), Cantigas de Fuga ao Tédio (poesia
lírica), Memórias de Pedro Malaca (romance). É editor da
Revista da POEBRAS SALVADOR, no 4º número em
2002.

Sites: http://www.joaojustiniano.net/
http://www.avllb.org/academicos/032/biografia.html
E-mail: joaojustiniano@terra.com.br

INSTITUIÇÕES CULTURAIS A QUE PERTENCE O


AUTOR
1 - Academia Goianiense de Letras, cadeira n. 47;
2 - Academia Petropolitana de Letras, sócio
correspondente, cadei-ra n. 103;
3 - Academia Anapolina de Filosofia, Ciências e Letras;
4 – Academia Anapolitana de Poesia Raul de Leoni, sócio
correspondente;
5 - União Brasileira de Trovadores, Secção de Salvador;
6 - FEBETE - Federação Brasileira de Entidades Trovistas,
sócio fun-dador;
7 - Centro Cultural, Literário e Artístico de "Gazeta de
Felgueiras", Felgueiras, Portugal - titular acadê-mico;
8 - Casa do Poeta Rio-Grandense - CA.PO.RI., sócio
correspondente n. 761;
9 - Clube Baiano de Trova - CBT, sócio efetivo n. 12;
10 - OBRAPPS - Ordem Brasileira dos Poetas e Poetisas
Sonetistas
11 - AVLLB - Academia Virtual de Letras Luso-Brasileira -
Acadêmico-fundador, cadeira 32.

OBRAS DO AUTOR

1 – Safiras e Outros Poemas (poesia). Edição gráfica -


Falângola Belém –PA. 1960.
2 – Brados do Sertão 1ª edição gráfica Imprensa Oficial da
Bahia/autor. 1963; 2ª edição gráfica do autor, 1974. Edição
eletrônica de Lourivaldo Perez Baçan, Portal CEN – Cá
Estamos Nós.
3 – Sonhos de João (poesia) - edição gráfica do autor 1974.
4 – Luiz Rogério de Souza – Educador Emérito (biografia e
poesia) – edição gráfica do Mensageiro da Fé/Comissão de
Promoção da Barra – Bahia, 1976.
5 – Cacimba Seca (romance) - edição gráfica CONTEMP
EDITORA LTDA - Salvador –Bahia – 1985.
6 – Terra Inundada – (romance) - edição gráfica da
CONTEMP EDITORA LTDA - Salvador –Bahia –1986.
7 – Grilagem (romance) - edição gráfica Editora Sol
Nascente, Salvador – 1991.
8 – Sonetos de Amor e Passatempo (poesia) - edição
gráfica Editora Sol Nascente, Salvador – 1992.
9 – Aquele Homem (romance) - edição gráfica Editora Sol
Nascente, Salvador - 1993. Edição eletrônica de Lourivaldo
Perez Baçan, Portal CEN – Cá Estamos Nós.
10 – Rodelas, Curraleiros, Índios e Missionária (história) -
edição gráfica Empresa Gráfica da Bahia com apoio da
Secretaria de Cultura da Bahia, 1996. Edição eletrônica de
Lourivaldo Perez Baçan, Portal CEN – Cá Estamos Nós.
11 – Rio Grande do Sul (poesia) edição gráfica da Empresa
Gráfica da Bahia com apoio da Secretaria de Turismo da
BAHIA, 1997. Edição eletrônica de Lourivaldo Perez
Baçan, Portal CEN – Cá Estamos Nós.
12 – Sertão, Luz e Luzerna (contos) edição gráfica Empresa
Gráfica da Bahia/autor, 2000. Edição eletrônica de
Lourivaldo Perez Baçan, Portal CEN – Cá Estamos Nós.
13 – Cantigas de Fuga ao Tédio (poesia) - edição gráfica
Empresa Gráfica da Bahia/autor, 2002. Edição eletrônica
de Lourivaldo Perez Baçan, Portal CEN – Cá Estamos Nós.
14 – Memórias de Pedro Malaca (romance) - edição gráfica
Empresa Gráfica da Bahia/autor, 2003. Edição eletrônica
de Lourivaldo Perez Baçan, Portal CEN – Cá Estamos Nós.
15 – Crônica dos Deuses (romance) - edição gráfica
Empresa Gráfica da Bahia/autor, 2005. Edição eletrônica
de Lourivaldo Perez Baçan, Portal CEN – Cá Estamos Nós,
16 – Canto de Natal (poesia). Edição eletrônica de
Lourivaldo Perez Baçan, Portal CEN – Cá Estamos Nós.
17 – Canto de Amor e Louvor a Pindorama (poesia).
Edição eletrônica de Lourivaldo Perez Baçan, Portal CEN –
Cá Estamos Nós.
18 – Leveza do Soneto (sonetos em dois tomos). Edição
eletrônica de Lourivaldo Perez Baçan, Portal CEN – Cá
Estamos Nós.
19 – Solidariedade (contos). Edição eletrônica de
Lourivaldo Perez Baçan, Portal CEN – Cá Estamos Nós.
20 – O Crime da Farmácia (novela policial). Edição
eletrônica de Lourivaldo Perez Baçan, Portal CEN – Cá
Estamos Nós.
21 – Luiz Viana Filho – O jornalista (antologia em dois
tomos). Edição eletrônica de Lourivaldo Perez Baçan,
Portal CEN – Cá Estamos Nós.
22 – A Vida de Luiz Viana Filho - Biografia. Edição do
Conselho Editorial do Senado Federal - Senado Federal,
Brasília - 2005. 288 páginas
23 – Participação em inúmeras coletâneas de poesia e
conto.
DEDICATÓRIA

Deixo minha reverência humilde ao antepassado, na


esperança de que outros, mais cuidadosamente e com maior
competência pesquisem e trabalhem para que o homem do
futuro saiba quem foi o homem de ontem, o que desbravou
a suor, lágrimas, flechas e bacamarte o nosso passado. Ai
da comunidade que não guarda e reverencia o seu passado,
que não cultiva e honra a lembrança daqueles que
construíram o seu patrimônio cultural, que não reconhece o
valor moral dos que se destacaram como exemplo de
trabalho e dignidade; essa, cria uma gente sem história e
sem raízes, sem tradições, sem glórias que passe à
juventude. Tanto é mais forte um povo, mais disposto a
enfrentar o futuro e vencer, mais inclinado a um destino de
sucesso, quanto mais conheça e honre a memória do
antepassado. Destaco, com muito orgulho, que os índios
rodelas, lutando contra toda espécie de dificuldades,
perdendo a cada dia um pouco do que era seu, souberam
manter as suas tradições e honrar a memória dos avós.
Tanto assim, que aí está a aldeia dos tuxás, gente que vem,
seguramente do tronco dos antigos rodelas.
UMA PALAVRA DE AGRADECIMENTO

a Mário Cerqueira, de Abaré, que me cedeu


documentos antigos, guardados pelo seu falecido pai, Elói
Cerqueira,

a Antônio Justiniano da Fonseca, de Rodelas, que me


ajudou nas pesquisas e reativou as lembranças.
SINO DA ALDEIA

Sino da Aldeia dos Rodela, tange,


tange a finados pela Igreja antiga.
Nunca mais a veremos, terna e amiga,
debulhando o rosário na falange.

Guarda a memória, que a memória esbanje


em teu bronze marcada, como em viga
que os séculos sustém e a história abriga,
a igreja, cuja morte nos constrange...

Guarda no bronze, sino, essa memória,


que glorifica um povo - firma a história,
eterniza em teu som o ontem da vida.

Quando o tempo passar e ninguém mais


souber da Aldeia e a igreja dos meus pais,
badala e sonoriza a era perdida!...
UM EXEMPLO DE BOA HISTÓRIA LOCAL

Quem examinar com atenção o mapa do Estado da


Bahia encontrará o nome de uma cidade na margem direita
do Rio São Francisco, no trecho em que ele serve de limite
entre a Bahia e Pernambuco. Naquele trecho o S. Francisco
se alarga o suficiente para abraçar várias pequenas ilhas. A
cidade em questão tem o nome de Rodelas. Na outra
margem do rio ficam as localidades pernambucanas de
Belém do S. Francisco e Itacuruba.
Com cerca de 4 mil habitantes, sustentando-se com
os recursos provenientes de modesta atividade econômica,
Rodelas nasceu de um aldeamento indígena fundado por
missionários. Ali estiveram, procurando converter e
aculturar os nativos, e sucedendo-se nesse trabalho, os
capuchinhos franceses, os franciscanos, jesuítas, carmelitas
e, finalmente, os capuchinhos italianos. Mas, seus
primeiros dias, como núcleo povoado, também se
confundem com as entradas promovidas, desde a cidade da
Bahia, pela Casa da Torre, a cuja sesmaria aquelas terras
pertenciam. Perto dali os sertanistas construíram currais
para o gado solto nas vastas pastagens. Por ali estiveram
nas andanças que os iriam levar ao Piauí e às áreas ainda
mais ao norte.
Nada, aparentemente, restou que lembrasse esses
primeiros visitantes. A aldeia indígena, no entanto,
ressurgiu sob a forma de comunidade de caboclos que
divide com o restante da população o espaço urbano. O
atual aldeamento de nativos data de 1944, quando a FUNAI
o criou. Serão poucos, ao que se presume, os índios puros,
constando a maioria de mestiços de índios com brancos,
pretos e mulatos. Eram, em 1964, 336 residentes.
Quem dá essas informações, e muito mais, é João
Justiniano da Fonseca neste livro, que leva o título de
RODELAS - CURRALEIROS, ÍNDIOS E
MISSIONÁRIOS. Para escrever o livro - elaborado num
estilo fluente e correto, denotando bom gosto literário -
João Justiniano trabalhou arduamente. Leu quantas obras
de cunho histórico continham subsídios para seu estudo, e,
principalmente, revolveu inúmeros documentos dos
arquivos das comarcas de Paulo Afonso, Glória e Curaçá, o
arquivo particular de Elói Cerqueira, e o da Escola Felipe
dos Santos, de Rodelas, além do Arquivo Público da Bahia
e do arquivo do Instituto Nacional do Índio, no Rio de
Janeiro.
Revelação de pesquisador e historiógrafo, João
Justiniano penetra numa área em que ainda não havia
estado. Realizava-se, literariamente, como poeta e
romancista. Teve editados oito livros nestes dois gêneros.
No campo abstrato e lírico da poesia: Sonetos de Amor e
Passatempo, Sonhos de João, Brados do Sertão e Safiras e
Outros Poemas. Romances: Aquele Homem, Grilagem,
Terra Inundada e Cacimba Seca. Fora dos livros, pôde ver
muitas das suas poesias publicadas em revistas e
suplementos literários de jornais. No volume número 15,
correspondente a agosto de 1987, da Revista da Academia
Petropolitana de Letras, várias páginas foram reservadas
para seus poemas.
O homem de letras, por vocação e desfastio, João
Justiniano tem, no curso de sua vida, se desviado, por
obrigação, do cultivo do verso e da prosa romanceada. Foi
prefeito de sua terra natal, a mesma Rodelas, e participou,
na qualidade de Conselheiro, do Tribunal de Contas dos
Municípios. Além da militância política, ao lado de Luiz
Viana Filho, seu amigo.
O livro que neste momento vem a público representa
como que o cumprimento de seu dever de filho para com o
torrão natal. Entendeu que lhe cumpria escrever a história
do seu município. E fez mais do que isso. Certamente
empolgado pelas revelações obtidas no decorrer das
pesquisas, e motivado, também, pelas leituras (entre as
quais a História da Casa da Torre, de Pedro Calmon),
logrou recompor a saga do desbravamento dos sertões
nordestinos, e, do mesmo passo, conseguiu reconstituir a
trajetória das nações indígenas que estiveram habitando a
área em torno de Rodelas. Fala da participação dos
duzentos guerreiros da tribo dos procás (mais tarde
chamados de rodelas e ultimamente tuxás) no terço de
Felipe Camarão que combateu, em Pernambuco, os
holandeses, no século XVII, e chega até perto do presente,
com a referência às famílias mais proeminentes de Rodelas,
sua genealogia e seus líderes. Um capítulo especial é
dedicado a uma mulher que se tornou responsável pelo
desenvolvimento cultural de Rodelas: a professora Dulcina
Cruz Lima, a cujas iniciativas, pertinácia e desvelo aquela
comunidade deve a criação de uma modelar estrutura de
ensino público. Ela tem o nome profundamente vinculado
ao crescimento da cidade ribeirinha, que começou a tomar
vulto já na década de 30 deste século, tornou-se sede de
município em 1963 e hoje é um centro em plena fase de
expansão.
O livro de João Justiniano da Fonseca é exemplo de
como do particular se pode partir para o geral. Representa
uma valiosa contribuição para a própria reconstrução da
história da Bahia, na medida em que reedifica uma de suas
partes essenciais, que é a extensão aos sertões da
colonização iniciada no litoral, e ali singularmente adaptada
em função dos fatores locais.
Diversos municípios da Bahia possuem história
escrita. A esses livros tenho reservada uma prateleira na
minha modesta biblioteca. Posso imaginar a preciosa ajuda
que viriam a dar para o preparo de uma história geral do
Estado, distribuída por quantos volumes fossem
necessários, se em cada município, dos quatrocentos que
existem na Bahia, houvesse um escritor com a inclinação
para a pesquisa e a competência narrativa de João
Justiniano, disposto a contar a história de sua gente. Isso
melhor definiria o nosso perfil, como povo, e concorreria
para melhor conhecermos a terra que nos deixaram,
engrandecida tanto quanto lhes foi possível, nos nossos
antepassados.

JORGE CALMON
NOTA DE INTRODUÇÃO

Sempre pensei em pôr no papel a memória de


Rodelas. Um sonho que vem da mocidade e com ele, o
título - História de Rodelas. E, em meio a tanto desejo bom,
tanto querer, tanto sonhar, ficou este no seu canto, à espera
do momento, o seu momento.
Não muito antes de falecer, Dulcina Lima, com quem
muitas vezes falava, entre outras tantas coisas, sobre o meu
pobre escrever, ela, que foi meu oásis na aridez política
local, me passou um exemplar do livro FLORESTA, de
Álvaro Ferraz e um manuscrito que trabalhara sobre nossa
terra. Era o rascunho para um pretendido trabalho destinado
a publicação no boletim da Coordenadoria de Educação em
Ribeira do Pombal, encomendado pelo coordenador. Por
falta de livros para pesquisa, não o concluiu. Com o escrito
de Dulcina, meu sonho tomou corpo de projeto e eu passei
a juntar a matéria. Escrevi um esboço à mão e coloquei, ao
lado do manuscrito de Dulcina, em uma pasta com esta
legenda - Projeto Rodelas. Mas os romances já andavam
rondando o meu espírito e acabaram chegando muito antes.
Parti para o Cacimba Seca, veio o Terra Inundada, em
seguida o Grilagem, para encerrar a temática da terra.
Encerrar, é um modo de dizer. Muita coisa fica na cabeça e
lá uma hora ressurge em forma de conto. A temática
sertaneja está em meu sangue, não sai nunca, irá comigo
para o chão do cemitério. É muito forte - além de vir no
sangue, vivi isso na infância e adolescência.
Pois bem, agora o livro de história. Abri o título e me
apeguei a ele do começo ao fim: RODELAS,
CURRALEIROS, ÍNDIOS E MISSIONÁRIOS. Como a
matéria sobre Rodelas, nesse espaço, se entrelaça,
inseparavelmente, com a história da região são-franciscana
e mesmo com a do chamado Sertão de Rodelas, acabei
realizando um trabalho que foi além da pretensão inicial.
Ainda que superficialmente, parte de Thomé de Souza
chegando em 1549 PARA FUNDAR A MUITO LEAL E
VALOROSA CIDADE DE SÃO SALVADOR DA
BAHIA DE TODOS OS SANTOS, com ele, Garcia
d'Ávila, os jesuítas, os mestres de obra e seus 320 soldados
e 600 degredados. Alcança a sesmaria dos rodelas, um
exagero de terra, com peão na "primeira cachoeira" - Paulo
Afonso, São Francisco abaixo e acima. Vem daí para
Sergipe até onde "encontrar terras povoadas", e isto seria
nas proximidades do litoral, e, para o sul, a entestar com
terras da Bahia, no Rio Real, o que correspondia a emendar
com a área já empossada pelos antepassados dos
requerentes, até o Rio Vermelho, na Bahia. Subia até o
Salitre ("última aldeia dos caririguassu"), a partir de onde
emendar-se-ia, mais tarde com as já suas terras de Jacobina,
daí para Geremoabo. Tudo isso? Tudo. E Pernambuco e o
Piauí, também, não há erro, o manuscrito de confirmação
da sesmaria da fazenda dos rodelas, existente no Arquivo
Público da Bahia, vai transcrito em seu inteiro teor; e as
outras doações na Bahia, Pernambuco e Piauí, são
miudamente anotadas por Felisbello Freire em História
Territorial do Brasil, de onde copiei parte.
O grande enfoque do livro, na verdade, está entre
Sorobabel e Pambu, na Bahia, em Pernambuco, entre Pajeú
e Cabrobó, e as ilhas desse trecho, onde se situavam os
índios procás, aos quais o português, simploriamente, deu o
nome de rodelas. Como está anotado nos escritos antigos,
as terras da margem baiana, do Sorobabé até a Vargem
Grande, bem como as ilhas e margem pernambucana nessa
faixa territorial, lhes pertenciam. Em escritos posteriores,
os rodelas apareceriam também na ilha de Assunção, antiga
Pambu, onde teve sede a chamada Freguesia de Rodelas. A
nação espalhava-se por muitas aldeias, diz o requerimento
dos descobridores. Acima de Pambu, em Aracapá, os índios
já eram da nação cariri.
Foi de Rodelas e vizinhança, quero dizer, da gente da
tribo procás, que em 1639 partiu um reforço de 200
guerreiros sob o comando de um moço índio que se
imortalizaria com o nome de Rodela, para, ao lado do índio
Felipe Camarão, pôr a correr os holandeses da ribeira das
Alagoas do São Francisco. Voltou herói o chefe guerreiro,
e seria batizado com o nome de Francisco - Francisco
Rodela ou Francisco Pereira Rodela. Aí, em Rodelas,
situaram-se os primeiros curraleiros da sesmaria, que
seriam, possivelmente, os primeiros das corredeiras do São
Francisco, para, em seguida, alcançar a margem esquerda
do rio e penetrar Piauí a dentro até as terras da Paraíba e
Rio Grande do Norte. Subindo o rio, até Carinhanha.
É certo que o trabalho ultrapassou, de muito, o
projeto inicial. Apresenta, além da pesquisa gráfica, isto é,
de livros publicados no passado que alcancei, papéis
inéditos que me pareceram preciosos. Nos inéditos, são
relacionados os curraleiros que foram gente em 1779 entre
o Sítio do Tará, no Xingó e o rio Salitre, caatinga a dentro,
onde se encontravam água e as melhores áreas para a
criação, bem assim, as primeiras escrituras de venda da
sesmaria pelos Ávilas, a partir da segunda metade do século
XIX e uma relação de curraliros dos século XX.
Dos primeiros curraleiros, os do século XVII, a
informação é pequena. Resume-se à oficialidade das tropas
dos Ávilas, curraleiros todos eles, na qualidade de rendeiros
do latifundiário, diga-se melhor, do dono do Nordeste. Os
nomes registrados nos escritos, são poucos: A partir de
1674, aparecem guerreando os índios do Piauí, ao lado do
coronel Francisco Dias d'Ávila, Domingos Afonso
Mafrense, celebrizado como Domingos Sertão, que viria a
requerer muitas terras no Piauí onde teve dezenas de
fazendas e fez fortuna, seu irmão Francisco Julião, o
capitão-mor Domingos Rodrigues de Carvalho e seu irmão,
capitão Francisco Rodrigues de Carvalho, o alferes Manoel
Gonçalves, segunda pessoa do capitão Francisco
Rodrigues. Mas, antes da guerra ao nativo, já estavam eles
no São Francisco. Domingos Rodrigues de Carvalho era
capitão no São Francisco em 1669. Domingos Sertão é
referenciado no Sobradinho a partir de 1671. Martinho de
Nantes menciona seu encontro com Francisco Rodrigues no
Pambu, quando ali chegou nos primeiros meses de 1672.
Em 1696 - e já eram 24 anos depois - aparece o capitão
Antônio Gomes de Sá, responsável pela expulsão dos
jesuítas da Missão de Rodelas. Estes são os que, por
alguma forma, se celebrizaram na área da Missão de
Rodelas e vizinhança, deixando, sem dúvida, a
descendência ou parte dela.
Colho em Barbosa Lima Sobrinho, Documentos do
Arquivo, vol. IV/V, o seguinte: em 1700 é anotado o nome
de um coronel Francisco Pereira Lima, comandante do
Sertão de Rodelas e Cabrobó; em 1711 vêem os nomes do
Capitão Luiz Pereira de Barros, como juiz ordinário do
sertão de Cabrobó e do capitão Manoel Caldas como juiz
de órfãos da Freguesia de Cabrobó e Rodelas; em 1757,
aparece o nome de João Nunes de Barros, nomeado Mem
Porteiropequeno da Freguesia de Cabrobó e Rodelas,
"solicitando tudo que pertencer aos cativos, pedindo e
tirando esmolas para os ditos cativos"; em 1782, Francisco
de Matos Enriques é nomeado comandante da Freguesia de
Cabrobó e Rodelas. Aqui, são os que se destacaram na área
da margem pernambucana, alguns dos quais viveram em
Cabrobó e ilha do Pambu, depois chamada Ilha de
Assunção. A esse tempo, Cabrobó e Assunção formavam a
Freguesia de Cabrobó e Rodelas. Os nomes Gonçalves,
Gomes, Sá, Rodrigues, Lima, são comuns ainda hoje em
Rodelas, enquanto os Carvalho, os Barro, os Caldas, estão
localizados na beira rio pernambucana, onde se encontram
também os Rodrigues, os Gomes e os Sá.
Os demais caíram no anonimato. Viveram
humildemente as duras lutas dos primeiros tempos e
deixaram o sangue plantado para multiplicar-se no
caatingão do bode. Pedro Calmon, mencionando Frei
Jaboatão, fala na existência de três filhas caboclas de
Francisco Dias d'Ávila, o segundo, que também se
perderam no anonimato: Clara Dias, casada com Alexandre
Gusmão de Barros, Clemência, casada com João Vieira
Lima e Albina, sem informações.
E aí vai o pouco que pude, para formar e guardar a
memória de Rodelas, apresentando documentos inéditos e
concatenando o escrito antigo em um livro nosso. Deixo
minha reverência humilde ao antepassado, na esperança de
que outros, mais cuidadosamente e com maior competência
pesquisem e trabalhem para que o homem do futuro saiba
quem foi o homem de ontem, o que desbravou a suor,
lágrimas, flechas e bacamarte o nosso passado. Ai da
comunidade que não guarda e reverencia o seu passado,
que não cultiva e honra a lembrança daqueles que
construíram o seu patrimônio cultural, que não reconhece o
valor moral dos que se destacaram como exemplo de
trabalho e dignidade; essa, cria uma gente sem história e
sem raízes, sem tradições, sem glórias que passe à
juventude. Tanto é mais forte um povo, mais disposto a
enfrentar o futuro e vencer, mais inclinado a um destino de
sucesso, quanto mais conheça e honre a memória do
antepassado. Destaco, com muito orgulho, que os índios
rodelas, lutando contra toda espécie de dificuldades,
perdendo a cada dia um pouco do que era seu, souberam
manter as suas tradições e honrar a memória dos avós.
Tanto assim, que aí está a aldeia dos tuxás, gente que vem,
seguramente do tronco dos antigos rodelas.
Encerro esta nota com a observação de que trabalhei
a história até à emancipação do município e a primeira
gestão político-administrativa. Não poderia falar da
segunda gestão, da qual fui o titular, e, quanto às seguintes,
falta-me isenção. Participei do movimento político local
nessa fase e as paixões ainda estão muito vivas.
Há também a anotar que essa é uma história literária,
que se permite, sem prejuízo da crônica, divagações e até
comentários.
I - PASSADO REMOTO
Garcia d'Ávila, o velho

A história de Rodelas há de começar, para fixar-se


nas raízes mais profundas, com o pecuarista Garcia d'Ávila,
cujos descendentes continuaram, nos sertões baianos, sua
obra de desbravamento e colonização iniciada em 1552 no
litoral norte da Bahia desde o bairro do Rio Vermelho,
onde então era o limite de Salvador. E continuará, para
marcar a grandeza de um passado rico de tradições, beleza
e glória, pelo capuchinho francês, fr. Francisco de
Domfront, ao que se sabe com segurança documental, a
primeira palavra de Deus vivida entre nós - quatorze anos.
Seguiram-se a este, durante onze anos, os jesuítas; e, depois
de um silêncio de quatro anos, quando não se tem
informação da presença de missionários, mas, segundo
Serafim Leite os jesuítas podem ter voltado, especialmente
para Rodelas, os carmelitas por onze. Os franciscanos,
parece que estiveram presentes só no Sorobabé, onde
continuaram mesmo depois da vinda dos carmelitas, não
em Rodelas. Finalmente os capuchinhos italianos durante
150 anos. Com efeito, o descobrimento da aldeia dos índios
rodelas, ocorrido entre 1641 e 1646, vem a partir da
expansão dos currais dos Ávilas. E o ciclo das missões
catequéticas se inicia com fr. Francisco de Domfront entre
1670 e 1671, para encerrar-se com o capuchinho italiano,
Frei Luiz de Gúbio em 1862, e lá se iam cento e noventa
anos de missão.
"Para fundar na Bahia de Todos os Santos, a capital
do Brasil - são palavras textuais de Pedro Calmon em
História da Casa da Torre, páginas 23/24 -, mandou o rei D.
João III, em 1549, um dos seus melhores soldados, Thomé
de Souza, com 320 homens de armas e seiscentos
degredados".
Destaque-se, de início, que a colonização do Brasil se
iniciou com soldados e criminosos degredados. Soldados
quase certamente compulsórios. E criminosos autores de
crimes tais, que sua presença era vedada no pais natal, por
isso recebiam a pena de deportação. Os crimes não vinham
definidos no ato de degredo. Poderiam ser de sangue ou
contra o patrimônio, poderiam em parte colocar-se entre os
chamados "crimes de lesa pátria" ou "lesa majestade" - os
nossos chamados crimes políticos, categoria que em 1720
enforcou Felipe dos Santos e fez arrastar seu corpo pelas
ruas de Vila Rica puxado na cauda de um cavalo bravio, e
em 1792, depois de levar o Tiradentes ao cadafalso, exilou
os demais Inconfidentes de Minas - neste caso, um sonho
de liberdade, não um crime, o que não é de duvidar tivesse
presença em alguns casos também entre os lusos, ao lado,
quase certamente, dos condenados pelo Tribunal
Eclesiástico. É coisa não revelada pela História. Os regimes
imperiais e ditatoriais, costumam andar para a tirania,
temos muitos exemplos disso. Demais, nesses longes
tempos, os conceitos sociais e políticos, a cultura, os
costumes e mesmo as convicções religiosas eram outros,
muito diferentes do que são na atualidade. O mais provável,
no caso dos degredados da colonização, só isso é justo
dizer quatro séculos e meio depois, é que fosse um pouco
de tudo - sangue, patrimônio, política civil e política
religiosa. De qualquer modo, o número era grande,
chegavam a ser dois terços da população aportada com o
fim de construir a capital do Brasil. Não bastaram os dois
primeiros sentenciados, aqueles com os quais nos
mimoseou o almirante Cabral, precisavam ser muito mais,
um povo. Pois não, para o Brasil desses tempos, seiscentos
homens eram um povo. Seriam ao menos a semente que
vinha para germinar e fazer povoar-se o novo país. E
despejada essa população no meio da qual deviam conter-se
ladrões e assassinos, na Bahia, de onde ia partir a
colonização - inicialmente Nordeste acima, em seguida nos
caminhos do Sul, aqui, seguindo os passos a Martim
Afonso de Souza. Outro fato a destacar, é que não se fala
de mulheres, parece que mulheres não vinham. Só homens.
Homens de arma - soldados; degredados - criminosos;
salvo seis jesuítas, os primeiros entrados na Colônia, tendo
o padre Manoel da Nóbrega como Superior, e os mestres
ferreiros, pedreiros e carpinteiros destinados à obra de
construção da cidade. Por mulheres, as índias bastavam,
mas, sempre em aventuras ou concubinato, muitas vezes
por meios violentos, jamais em casamento. Mais adiante
viriam famílias judias perseguidas pelas fogueiras da igreja
católica na célebre inquisição. Felizmente a família, ainda
que fugida. Com uma judia fugida, por sinal, casou-se
Garcia d'Ávila, repudiando a concubina índia dos primeiros
dias, que viria a ser a matriz de seus descendentes. Em
pouco mais, o africano escravizado, se não em família,
pelos menos com a presença feminina. E era nova
oportunidade para a aventura, o amásio e a violência sexual
do aventureiro português - quer fosse o criminoso, quer
fosse o soldado. Só muito para a frente viriam,
voluntariamente, os que se dispuseram a "fazer o Brasil" -
as famílias portuguesas dos primeiros séculos. Resulta
disso que a Bahia saiu parda. Parda, não do índio, que já o
era, e foi quase eliminado, sim do cruzamento
branco/negro/indígena - boa e feliz miscigenação que nos
proporcionou um caldeamento de fácil aclimatação à nova
terra, capaz do suor no trabalho rude dos primeiros tempos,
inclinado ao banzé e à capoeira, lânguido às vezes, presto a
seguir, sonhador, sem grandes ações de heroísmo e sem
nenhuma atitude de covardia - o baiano dos coqueirais;
firme ao braseiro do sol, arrojado no embate contra as
intempéries e a brutalidade da natureza, tão disposto ao
clavinote e à lambedeira quanto propenso ao sonho no
embalançar da rede, festeiro quando é o Reizado, o Santo
Antônio, o São João e o São Gonçalo, sem pretensões que
não sejam o pedaço de chão, de que tira a suor e lágrimas, o
pão escasso do sustento familiar e ao qual se afeiçoa ao
ponto de defendê-lo, quando necessário, ao custo do
próprio sangue - o baiano dos catingais.
"Entre aqueles - voltemos a palavra a Calmon -,
criado do governador, talvez de sua vila natal, São Pedro de
Rates - nome do primeiro curral, destacava-se o moço
Garcia d'Ávila, por ele tão estimado que o fez, ao
desembarcar, Feitor e Almoxarife desta Cidade e
Almoxarife da Alfândega".(1)
Eis pois Garcia d'Ávila, o primeiro. Agora, deve
dizer-se que esse não era um marginal, antes, um homem
de bem, trabalhador dinâmico - um empresário da pecuária,
que, se soldado vinha, logo deixou a farda, sem perder o
gosto pelos galões e brasões. Construiria para os
descendentes, além de fortuna em terras, bois e engenho, o
palácio feudal e as condições para alcançar o viscondado
após a conquista da independência.
Veio para o Brasil em 1549 na armada do
Governador Thomé de Souza, aqui entrando como criado
deste, ora se diz - como homem de armas, se diz
igualmente. A expressão seguinte, que parece definir a
condição pessoal do almoxarife, é do Padre Manoel da
Nóbrega, dirigida a Thomé de Souza - Cartas do Brasil, em
transcrição de Pedro Calmon - Introdução e Notas ao
Catálogo Genealógico das Principais Famílias, de Frei
Jaboatão, página 164: "Garcia d'Ávila... quando é tempo
sabe usar da boa criação que vossa mercê nele pôs".
"Criado" do primeiro governador geral (carta de Duarte da
Costa, em História da Colonização Brasileira, registra
Calmon). Se era criado, fez-se homem de armas, eis que,
"...na partilha das que vieram, coube ao dito Garcia D'Ávila
homem de armas, duas vacas". É natural que o criado do
homem de armas, salvo se fosse serviçal, e Garcia não o
era, seguisse, pelo menos inicialmente, os seus passos.
Feito Almoxarife, responsável pelas chaves do
armazém do reino, cedo se afastou do cargo para dedicar-se
à pecuária, recebendo, para isso, uma primeira sesmaria
situada entre as divisas da cidade recém fundada que
ficavam no Rio Vermelho e a sesmaria do conde de
Castanheira, a qual mais tarde viria a arrendar.(2)
Continuou crescendo ligeiro. Em 1552 "tem perto de
200 cabeças de gado, fora porcos, cabras e éguas",
transcreve Calmon de Notícias do Brasil, edição de Edgard
Falcão, pagina 26, São Paulo, 1974. Não se diz se recebeu
ou comprou novas rezes que desembarcassem, se as
adquiriu na pecuária local. Em razão do crescimento
requeria em 1º de maio e lhe era concedida a primeira
sesmaria, de "duas léguas pelos campos de Itapuã, entre os
limites da cidade e a sesmaria de 6 léguas de litoral e 14 de
fundos doada ao conde de Castanheira".(3)
"Não o impediram de desenvolver o rebanho, os
índios em volta dos currais. Soube conviver com eles, tanto
que em 1553 tirou uma cabocla da choça paterna, deu-lhe o
nome cristão de Francisca Rodrigues e dela teve uma
filha", que se chamou Isabel D'Ávila e foi a genitora de seu
neto e sucessor Francisco Dias D'Ávila (o primeiro).
"Enriqueceu Garcia D'Ávila no extenso domínio de Itapuã",
e "ali morava em 1559", explorando além de sua sesmaria
de duas léguas, a de Castanheira, que lhe foi arrendada "de
prazo e fatiota", continua Pedro Calmon em História da
Casa da Torre, página 26.
"De 1563 em diante, a colonização dirige-se para o
norte, em direção ao rio Real, quando Thomé de Souza,
obtém sua sesmaria em Outubro daquele ano, de oito léguas
de costa e cinco para o sertão".(4)
E é Garcia d'Ávila o introdutor dessa colonização
nordeste acima. Deu-se que, informa Pedro Calmon,
"ganhara Thomé de Souza em 1563 uma sesmaria de seis
léguas, acima da do conde de Castanheira. Viu-se (ou lhe
observou Garcia d'Ávila) que entrava nas terras já doadas.
Daí nova concessão, dois anos depois, de oito léguas (com
cinco de fundo) até o rio Real".(5) Esta substituía a
anterior, dada com erro de localização, e assim, anulada. E
lá iam com a colonização Nordeste acima, os vaqueiros de
Garcia d'Ávila, possivelmente entre estes alguns dos
componentes dos dois terços de criminosos importados.
Esse território, requerido pessoalmente por Thomé de
Souza "para pastagem do mesmo gado que tinha, o qual
trazia em terras alheias por as não ter suas", na verdade iria
pertencer a Garcia d'Ávila, a quem, por algum modo o
repassou, ainda que documento disso não se conheça, além
de conseguir-lhe o arrendamento da sesmaria de
Castanheira. Negócio de pai para filho. Não seria sem razão
que já se alvitrou a possibilidade de Garcia d'Ávila, cujos
ascendentes se desconhecem, ter sido filho natural de
Thomé de Souza. Por outro lado, ou o gado de Garcia
d'Ávila inicialmente lhe pertencera, ou teria havido, de
parte dele, uma falsa declaração de propriedade, para apoiar
o requerimento da sesmaria,(6) hipótese menos provável. É
de entender-se que Thomé de Souza, dono da primeira
sesmaria, fosse dono, igualmente, de parte dos bois, tudo
passando posteriormente a Garcia d'Ávila. Aí está o
primeiro grande latifundiário, cujos descendentes, por
expansão, viriam a apoderar-se de novas e mais crescidas
áreas na Bahia e Sergipe, no Sertão de Pernambuco e Piauí,
até alcançar áreas da Paraíba e Rio Grande do Norte,
passando a ser os donos do Nordeste. A Garcia d'Ávila,
aliás, aos seus sucessores, juntar-se-ia logo mais, na posse
de enormes áreas no Nordeste da Bahia, os Guedes de
Brito.
"Recomendara o rei D. Sebastião ao governador Luiz
de Brito, diz Pedro Calmon, transcrevendo Gabriel Soares
em referência ao rio Real, que se povoasse este rio, no que
ele meteu todo o cabedal, mandando Garcia d'Ávila, que é
um dos principais moradores da Bahia, com muitos homens
das ilhas e da terra que assentassem uma povoação".(7) Isto
se deu em 1574, e era o início da conquista de Sergipe,
continuada ininterruptamente pelos sucessores até alcançar
o São Francisco e ultrapassar suas fronteiras, atingindo,
para cima o rio Carinhanha, para o centro a Paraíba.
Ao falecer, deixava o velho Garcia os seus domínios
para o neto Francisco Dias d'Ávila, filho de Isabel d'Ávila,
seu herdeiro sucessor, uma vez que casado após o
nascimento da filha mameluca, com a cristã nova Mécia
Rodrigues, esta não lhe deu filhos, e tendo um filho com
uma negra, mais velho que Isabel, este morreu moço e as
negras netas, talvez por serem mulheres - em um tempo em
que a mulher não tinha senão que ser doméstica, quem sabe
por serem negras, receberam somente uma pensão e um
dote para o casamento, deixados em testamento e o direito
de residirem nas terras de Tatuapara, se o quisessem. João
Homem d'Ávila era o nome desse filho. A um Domingos
Fernandes Quaresma, cunhado de Francisco (seu cunhado
diz o testamento), portanto casado com uma neta dele,
Garcia d'Ávila, filha de Isabel, salvo se viesse de um
primeiro casamento, não revelado pela história, de Diogo
Dias, doava uma légua de terra. Manifestava ainda o
testamento, a existência de herdeiros de um falecido Garcia
d'Ávila, seu neto, moradores no Rio de Janeiro e
determinava que fossem acolhidos se viessem para a Bahia,
"pois são meus parentes" - é a expressão do ato de última
vontade. A História não revela filhos de Gil Vicente com
Isabel. E Garcia d'Ávila, conhecidos, só teve dois filhos -
Isabel e João Homem. De um destes, seria filho o neto
Garcia d'Ávila, sendo mais provável que de Isabel
(considere-se que o quinhão dos filhos de João Homem já
estava revelado no dote às moças e no direito de residirem
nos terrenos do testador), na constância de qualquer dos
seus dois casamentos, talvez do primeiro, levando-se em
conta a menor idade de Francisco quando morreu o avô.

NOTAS
1 - Pedro Calmon, História da Casa da Torre, pag. 23.
2 - Idem, idem, pag. 24:
3 - idem, idem, pag 24, com apoio em Gabriel Soares.
4 - Felisbello Freire, História Territorial do Brasil - Tipografia do
"Jornal do Comércio", Rio de Janeiro, ed. de 1906, 1º vol pag 17.
5 - Pedro Calmon, História da Casa da Torre, pag. 29.
6 - Felisbello Freire, ob. citada, pag. 17: Eu El-Rei faço saber aos que
este alvará virem, que Thomé de Souza do meu conselho me enviou dizer...
pedindo-me que para pastagem do mesmo gado que tinha, o qual trazia em
terras alheias por as não ter suas nem as querer tomar para si no tempo que
foi governador das ditas partes, lhe fizesse mercê de outra sesmaria de terra
na dita capitania... que podem ser oito léguas ao longo da costa e pelo sertão
dentro cinco léguas, hei por bem fazer mercê a Thomé de Souza das ditas
terras... Lisboa 20 de Outubro de 1563."
7 - Felisbello Freire, ob cit. pag. 29/30
II - O PRECURSOR
Francisco Dias d'Ávila, o primeiro

Isabel d'Ávila casou-se com Gil Vicente de


Vasconcelos, que foi morto pelos índios em Itapuã, onde
moravam. Casou-se segunda vez, com Diogo Dias, filho de
Vicente Dias e sua mulher Genebra Álvares, esta, filha de
Caramuru e Catarina Paraguaçu. Mencionado pela História,
tiveram um único filho - Francisco Dias d'Ávila. Cedo
também morreu-lhe o pai, sendo Francisco criado com o
avô Garcia, que o rumou nos caminhos da aventura
sertaneja e da pecuária extensiva, caatinga a dentro,
destinando-o a ser seu continuador na obra de conquista.
Falecendo Garcia em 1609 - e já estava nos 90 anos,
dos quais 60 no Brasil -, ficava o neto em idade que ainda
não lhe permitia a administração do patrimônio e o
comando da ação conquistadora, e porque morto o seu pai,
o avô deixou-lhe, em cláusula testamentária, como
procurador e administrador, a Manoel Pereira Gago,
homem honrado, seu rendeiro e leal amigo, o qual lhe
prestara "bons serviços e obras", confiando-lhe, desse
modo, o futuro do neto e a guarda do patrimônio (notícia
colhida em Pedro Calmon, que tem como apoio
documentos da Torre do Tombo).
Tal foi. Este Pereira Gago cuidou do patrimônio e
dos bens do curado, e fazendo-o ampliá-los, em nome dele
requereu novas sesmarias. Agiu tão cuidadosamente, como
se fosse um dono. E viria a ser, cunhando sua família na
herança do amigo, por via do matrimônio. Casou Francisco
com sua filha Maria Pereira (Maria ou Ana? Em História da
Casa da Torre está o registro de MARIA, em Introdução e
Notas ao Catálogo Genealógico registra-se ANA.(1) Deu-
lhe, mais, como cérebro político e empresarial da Casa da
Torre, que assim já era chamada, ao padre Antônio Pereira,
seu filho. Esse afim de Francisco, tão logo se ordenou,
tomou capelania na igreja de Nossa Senhora da Torre e daí
não saiu jamais até à morte, salvo para acompanhar o
cunhado Francisco Dias d'Ávila e mais tarde, o sobrinho-
cunhado Garcia d'Ávila e ainda o último sobrinho, o
segundo Francisco Dias d'Ávila, aos vastos sertões da
Bahia e Pernambuco.
Francisco (o primeiro) foi nomeado capitão das
gentes entre o Rio Jacuípe e o Rio Real, saiu a campear e
levou seus rebanhos ao vale do Itapicuru e ao rio Real. Em
1621, ano em que se casava, a 23 de agosto já requeria e
conseguia sesmarias aí, "alegando ter pacificado os
tupinambás e policiado os seus sertões". Ao lado do
cunhado padre, andou em busca de ouro e prata na região
de Jacobina. Em 1627, registrava-se a ordem de El-Rei e do
governador, para Francisco Dias D'Ávila descobrir as
sonhadas minas de prata de Belchior Dias Moréia, seu
parente do lado do pai - devia ser tio avô. E lá vão,
pecuarista e padre, sertão a fora, entre o sonho do metal
precioso e a realidade do chão sempre mais amplo para as
suas boiadas. Não descobrem ouro e prata, mas encontram
nitreiras no Salitre. Chegam ao São Francisco na região de
Juazeiro. Requerem e facilmente conseguem terras, mais
terras. Tangem seus bois para os novos pastos de
Jacobina.(2)
Não é ainda a esse Francisco, neto da índia Francisca
Rodrigues que Garcia d'Ávila fez sua concubina e bisneto
da célebre Catarina Paraguaçu, cavaleiro de léguas e léguas
de sertão que tão facilmente incorporava ao patrimônio
familiar, mas a seu filho Garcia d'Ávila, o segundo, sedento
de terras tanto quanto o pai e o bisavô, que Rodelas deve o
seu descobrimento.

NOTAS
1 - Pedro Calmon, História da Casa da Torre, pag. 40, Introdução e
Notas ao Catálogo Genealógico de Frei Jaboatão, vl 1, pag 158
2 - Pedro Calmon, em História da Casa da Torre, pag. 41, 56/57, 57-
rodapé e 69-rodapé.
III - O DESCOBRIMENTO
Garcia d'Ávila, II/Pe Antônio Pereira

Em 1646, já seria o filho de Francisco, Garcia


d'Ávila, segundo desse nome, bisneto daquele que entrara
na Bahia quase cem anos antes, o descobridor de Rodelas.
Tendo atingido a idade núbil quando morria o pai,
esse Garcia d'Ávila, casou-o o tio, padre Antônio Pereira,
com a sua irmã Leonor, tia do nubente, em 1642. Em 1641,
ainda adolescente, havia recebido o título de Capitão de
Ordenanças.(1) Era a continuação da Casa e do patrimônio
em família, já aí cruzada em quatro troncos - Garcia
d'Ávila/Pereira Gago/Caramuru/Dias. E com ele, ao seu
lado nas seguidas jornadas, continuou, na aventura em
busca de novas conquistas sertanejas. Era um padre
vaqueiro, mais poderoso certamente que o cunhado,
primeiro; que o sobrinho-cunhado, a seguir; os quais o
obedeciam sem nada objetar.
A fronteira dos seus domínios estava na pata do seu
cavalo",(2) diz Pedro Calmon do padre Antônio Pereira.
Da estirpe de Garcia d'Ávila com a índia Francisca
Rodrigues e de Diogo Álvares - o Caramuru, com a índia
Catarina Paraguaçu, o novo Garcia d'Ávila, vinha a ser
bisneto de uma índia e trineto de outra. Marcava-se, duas
vezes, do sangue de Pereira Gago. O Diogo Álvares salvo
de um naufrágio, segundo o registro, em 1509, dera na
praia do Rio Vermelho onde foi encontrado pelos nativos
agarrado às pedras como um caramujo - daí o seu novo
designativo nominal. Mais tarde o navegador corsário
Jacques Cartier o levou à Europa com uma das suas
mulheres índias - teve algumas, sendo Moema uma dessas e
deixou outros filhos além dos que gerou com a favorita - ali
batizou-se a nativa por Catarina Paraguaçu, o prenome em
homenagem à esposa do navegador,(3) casando-se em
seguida. Foi essa Paraguaçu mãe de Genebra; esta, esposa
de Vicente Dias e mãe Diogo Dias; este, pai de Francisco
Dias d'Ávila, que era pai do Garcia d'Ávila descobridor das
terras de Rodelas.
"Garcia d'Ávila, II. Sertanista e capitão, como os
anteriores do ramo Ávila, lutou na última fase da guerra
holandesa. Conquistou, com o cunhado, padre Antônio
Pereira, o sertão de Rodelas, no rio São Francisco (1646)",
registra Pedro Calmon em Introdução e Notas ao Catálogo
Genealógico de Frei Jaboatão, volume I, página 166.
Embora anote, aqui, o ano de 1646 referindo-se à
conquista, o que se deu nesse ano não foi ainda isso, porém,
conforme escreve documentadamente em História da Casa
da Torre,(4) o descobrimento das aldeias dos índios rodelas
("o rio de São Francisco lá em cima no sertão, onde
chamam aldeias de Rodelas", "que são muitas" - diz a
transcrição do papel, adiante). A conquista do chamado
Sertão de Rodelas, que segundo outros autores alcançava o
Piauí e, subindo o rio São Francisco chegava ao rio
Carinhanha, viria depois, sendo seu promotor Francisco
Dias d'Ávila, o segundo desse nome, e custaria muito
sangue indígena. Aliás, não foi nesse ano de 1646 senão o
requerimento da sesmaria, eis que estando as terras já então
"povoadas de gados", como aí se anotou, seu
descobrimento se dera anteriormente. Recebendo em 1641,
o título de capitão de ordenança, esse segundo Garcia,
percorria, a partir de então, os caminhos sertanejos, a seu
lado o tio Padre, que no ano seguinte o casaria com sua
irmã Leonor. Pouco antes, em 1639, um moço indígena que
se fez célebre com o nome de Índio Rodela, capitaneava
duas centenas de seus irmãos na luta contra o invasor
holandês. Não se sabe se Garcia d'Ávila, que, segundo
Pedro Calmon, também esteve nesse campo de luta, o
conheceu pessoalmente. Não há registro de que seu período
de campanha coincidisse com o do índio. Entre 1639 e
1641, só são dois anos, e não é impossível o encontro dos
dois chefes guerreiros, cada qual no comando de um troço
militar. Sabia, sem dúvida, de seus feitos heróicos e teria
informações sobre suas terras no Rio São Francisco. E
ávido por terras como era, mais que os antepassados, disso
tratariam, amigavelmente, quando do descobrimento das
aldeias do Rodela. Aliás, está escrito em Serafim Leite, que
o índio Rodela "matara 80 holandeses, favorecendo um
português que se lhe acolheu para o sertão". Seria o Garcia
d'Ávila esse português anônimo? Nesse caso, isso teria
influído na penetração daqueles sertões. Não se sabe, é uma
sugestão, falta elemento indicativo. Está nos autores da
história regional, que os índios rodelas foram sempre
amigos dos portugueses. E parece que nos sertões desses
tempos entendiam-se como portugueses todos os que não
fossem índios ou negros. Ainda que sempre engabelados,
os índios agrupados em catequese nas aldeias dos rodelas
foram realmente amigos do conquistador. O pleito abaixo,
primeiro que se conhece sobre o descobrimento, o
confirma. É de 1646 o requerimento a seguir:
"Dizem o Capitão Garcia D'Ávila e o Padre Antônio
Pereira que eles têm descoberto o Rio de São Francisco lá
em cima no sertão, onde chamam aldeias de Rodelas, a qual
terra descobriram eles suplicantes com muitos trabalhos
que passaram de fomes e sedes, por ser todo aquele sertão
falto de águas e mantimentos, abrindo novos caminhos por
paragens onde nunca os houve e com muito risco de suas
vidas e dispêndios de muita fazenda, resgates que deram ao
gentio para o poder obrigar ao conhecimento e povoação
das ditas terras em que despenderam mais de 2 mil
cruzados de fazendas e roupas com todas aquelas aldeias,
que são muitas, e por meio das ditas dádivas os ditos índios
como naturais e senhores das ditas terras lhas entregaram, e
como tais as povoaram de gado". "Isto foi em 1646. A
grande sesmaria foi confirmada em 1651 pelo governador-
geral", conclui Calmon, e indica a existência da certidão do
primeiro documento no Arquivo Wanderley de Pinho(5).
A Carta de Confirmação da Sesmaria, assinada pelo
Governador Geral João Rodrigues de Vasconcelos e Souza,
tem data de 22 de abril de 1651 e grafa "Aldeias do
Rodela" no singular, o que importa muito para o
entendimento da origem do nome da aldeia, depois cidade
de Rodelas. "Na parte onde chamam Aldeias do Rodela",
diz o ato de confirmação, copiando o requerimento. Do
registro infere-se que o nome veio, realmente, do índio
Rodela. Não eram os índios, sim e somente o índio, dando
seu nome às aldeias. A rodela, qualquer que fosse, ao que
parece, só por ele era usada. Depois o nome se estenderia
aos índios no seu conjunto, às aldeias e ao sertão, e isso,
confirma que nos tempos da colonização, os índios rodelas
foram gente notável. Ainda que mestre Calmon transponha
do primeiro requerimento, o nome no plural ("onde
chamam aldeias de Rodelas"), poderia haver equívoco na
cópia. Veja-se o teor da confirmação:
"João Rodrigues de Vasconcelos e Souza, Conde de
Castelmelhor do Conselho de Guerra, Senhor das Vilas de
Castel-melhor, Almendras e Valhelhas, Comendador das
Comendas de Pombal, Requião, Álvares, Fachal, Salvaterra
do Extremo e Santa Maria de Beja; Alcaide-mor dos
Castelos de Pombal, Salvaterra e Pena-maior Governador e
Capitão Geral deste Estado do Brasil. Faço saber, aos que
esta Carta de Sesmaria virem, que o capitão Garcia d'Ávila
e o padre Antônio Pereira me requereram em sua petição,
como haviam alcançado na Capitania de Sergipe d'El Rei a
sesmaria que ofereceram, de uma terra sita no Rio de São
Francisco, na parte onde chamam as aldeias do Rodela,
a qual eles tinham descoberto e povoado com muito
dispêndio de sua fazenda, por meio da qual haviam
facilitado aos moradores vizinhos o comércio com aquelas
Aldeias, de que resultara muito proveito à Fazenda Real, e
benefício desta República, e que por o dito sertão ser falho
de águas e pastos e se não poder povoar mais que a terra
capaz de criar gados, em razão do que lhes fora concedida
aquela sesmaria, me pediram lhes fizesse mercê confirmar
a dita terra, e mandar passar novo Título nela, reservando
sempre seu direito do tempo, que havia a estavam
possuindo: e vista a informação que sobre este particular
me fez o Procurador da Fazenda Real deste Estado mostrar-
me do dispêndio que têm feito, e ser grande o benefício,
que se segue ao Serviço de Sua Majestade, que Deus
guarde, de se povoarem aquelas terras, e serem pessoas
beneméritas, que têm cabedal para as povoarem e haverem
servido a Sua Majestade com satisfação, hei por bem, e lhes
faço em Seu Real nome dar de sesmaria a terra que contém
a sobredita Carta, que dela lhes havia passado, que é toda a
terra que se achar desde a primeira cachoeira, que o Rio
São Francisco faz, por ele acima até ultrapassar a última
Aldeia dos Caririguaçus, com as ilhas, pontas, enseadas,
pastos, matos e água, que a dita terra em si tiver, e da dita
cachoeira para baixo até entestar com terras que estejam
povoadas, e para a banda do Sul, que é o limite da
Capitania de Sergipe Del Rei toda a terra, que se achar até
entestar com o termo desta da Bahia pelo termo que a
divide no sertão, que é a terra que eles têm povoado, tudo
forro, e isento, e livre, sem pagar foro, pensão, nem tributo
algum, salvo o Dízimo a Deus, que pagarão dos frutos da
terra e criações que houver, com a cláusula de não
prejudicar a Terceiros, e lhes ficar sempre salvo o direito da
posse que tem das ditas terras, desde que as começaram
povoar até o presente, sendo porém sempre obrigados a dar
por elas caminhos livres ao Conselho para fontes, pontes e
pedreiras. Pelo que mando aos Oficiais de Justiça, a que
tocar metê-los de posse, lhes dê real, atual e efetiva, e a
todos os Ministros dela, a que o conhecimento desta com
direito pertencer a cumpram, e guardem, e façam cumprir e
guardar tão pontual e inteiramente como nela se contém,
sem dúvida, embargo nem contradição alguma. Para
firmeza do que a mandei passar sob meu Sinal e Selo de
minhas Armas, a qual registrará nos Livros, a que tocar, e
dentro em um ano nos da Fazenda Real deste Estado.
Francisco Cardoso a fez nesta Cidade do São Salvador da
Bahia de Todos os Santos, aos vinte e dois dias do mês de
Abril. Ano de mil seiscentos e cinqüenta e hum. Bernardo
Vieira Ravasco Secretário de Estado e Guerra de Sua
Majestade neste Brasil, o fiz escreve" Conde de Castel-
melhor" Carta de Sesmaria pela qual foi Vossa Excelência
servido dar em nome de Sua Majestade as terras nela
contidas ao Capitão Garcia d'Ávila e ao Padre Antônio
Pereira pelos respeitos acima declarados. Para Vossa
Excelência ver".(6)
Um mundo de pasmar. O ponto de partida era a
primeira cachoeira - Cachoeira de Paulo Afonso. Descendo
o rio, vagamente, até "encontrar terras povoadas". Para o
sul, a entestar com terras da Bahia, era o Rio Real, a partir
de onde já eram suas as terras que iam dar no Rio
Vermelho, em Salvador. São Francisco acima, até a "última
aldeia dos Caririguaçus", isto, no Salitre ou proximidades, a
partir de onde, em 1659 as terras seriam suas até alcançar
Jacobina, de cujos chãos o pai se apropriara anteriormente.
Aqui, há um fato importante a considerar: - o instrumento
de doação, que se conforma ao requerimento, oferece a
sesmaria "de uma terra sita no Rio de São Francisco, na
parte onde chamam as aldeias do Rodela", do Salitre até
Sergipe, nas proximidades do litoral, vindo, das duas
extremidades, até entestar com terras da Bahia, o que faz
entender que a todo este chão chamavam "aldeias do
Rodela", e isso está inteiramente em desacordo com o
registro histórico. Para quem descobria as Aldeias dos
Rodelas, posicionadas num trecho que não ia a mais do que
o Sorobabel e Pambu, na Bahia, área confrontante com a
foz do Pajeú e Cabrobó, em Pernambuco, era uma
concessão de quem oferecia no escuro, sem nem saber o
que oferecia. Nada a ver, a extensa sesmaria, com as
aldeias do Rodela, cujo nome servia apenas de pano de
fundo para a concessão. Os latifundiários da colonização
sabiam que ninguém conhecia a região e seus limites, as
distâncias, nada, e enganavam a autoridade, ou esta sabia e
queria que fosse assim mesmo? Já não há resposta e o
documento não poderia, por si só, ensejar uma revisão da
história. Mas, é certo que as áreas eram distintas, distintos
os nomes das tribos, tudo.
Como se vê do texto do primeiro requerimento, ao
capitão mor de Sergipe, na parte transcrita por Calmon - em
1646, as aldeias do Rodela estavam descobertas e os seus
campos povoados de boi. Descobertas e destinadas aos
currais, a partir da Bahia, pela gente baiana. Sem a data
exata do encontro, ali, das duas raças, a dos nativos,
"naturais e senhores das ditas terras" e a dos brancos, que
delas se apossariam a troco de dádivas de fazendas e roupas
certamente de bonita estamparia ou por meios violentos,
guerra e morte como viria a ser na conquista,
documentadamente esse 1646 há de ser tomado como o ano
do descobrimento - o papel acima transcrito será a certidão
do registro, que se fez com um pouco de atraso. A
colonização estava iniciada e viria a tomar desenvoltura a
partir da chegada dos missionários.
Mas, a descoberta não diz respeito unicamente a
aldeia que deu nome à cidade baiana de Rodelas e cujos
remanescentes ainda convivem, ali, com o descendente do
colonizador e seus negros e agregados, senão ao conjunto
das aldeias do Rodela, que eram muitas. A catequese dessas
aldeias, iniciada, ao que se sabe documentadamente em
1671, situava-se, nos primeiros tempos, no aldeamento
desse nome, onde era o centro das missões, e incluía os
agrupamentos indígenas das ilhas vizinhas, Jetinã,
Araticum e outras menores, tudo isso a cargo de um único
missionário. O padre assistia em Rodelas e visitava as ilhas.
Mais adiante, com os jesuítas, viria a incluir as aldeias das
ilhas de Acará, atualmente com o nome de ilha da Missão e
Sorobabé. A primeira defronte ao lugar hoje chamado Porto
da Missão na Bahia e Belém do São Francisco em
Pernambuco, a última defronte, na margem esquerda, à foz
do Pajeú e na margem direita ao lugar denominado
Sorobabel, hoje debaixo das águas da Barragem de
Itaparica, bem assim a aldeia de Arnipó, posteriormente
incorporada à de Rodelas e a aldeia de Caruru, que, viria a
ser anexada à de Sorobabé. Fala-se também, na era dos
Jesuítas e Carmelitas, de uma aldeia de Curumbabá,
assunto para outro capítulo.
Com os jesuítas aumentaria o número de
missionários, de modo que havia um no centro de Rodelas,
onde também residia o Superior, um em Axará e um
terceiro em Sorobabé, ao lado de cada um dos quais estava
um irmão, em regra estudante, para auxiliar no trabalho de
catequese. Com os capuchinhos italianos, a posição
residencial dos missionários não foi a mesma dos jesuítas.
Certas, nessa fase, eram as residências de padres em
Rodelas e Acará. Já não aparece a aldeia de Sorobabé, que,
sem dúvida, continuou com os franciscanos. Assim, sob o
signo de boi e vaqueiro, beira-rio e caatinga, cacimba e
paciente jornadear, nasceria Rodelas para o mundo
civilizado, enquanto começava a morte de seus índios, dia a
dia mais reduzidos em quantidade.
Segundo o registro de Nelson Barbalho, uma outra
aldeia de índios rodelas ficava na ilha de Pambu ou
Assunção, esta na jurisdição de Cabrobó, a qual, não consta
com esse nome da crônica de Martinho de Nantes que
menciona ali, a existência de índios cariris - só aparecendo
mais tarde, nos documentos de Pernambuco.
Em seguida ao descobrimento das aldeias de
Rodelas, seriam, logo mais, nas andanças, três cavaleiros da
Torre, eis que o Francisco Dias d'Ávila, o segundo, ainda
menino, a partir dos dez anos iniciou-se nas labutas
sertaneja ao lado do pai e do tio padre, montado à garupa
do cavalo do primeiro, notícia colhida em Pedro Calmon.
Este novo Francisco haveria de ser, no futuro, o
consolidador do patrimônio, o guerreiro matador de índios,
apesar de ser duas vezes descendente da raça dos brasis.
"A atividade propriamente sertanista de Garcia
d'Ávila, deve estar situada entre 1654 e 1669, quando é
Francisco Dias d'Ávila o verdadeiro bandeirante da Casa da
Torre", registra Pedro Calmon.(7) Mas, se o próprio
Calmon anota, documentadamente, o ano de 1646 como o
do descobrimento das aldeias do Rodela, por ele e o padre
Pereira, é certamente nesse ano que se inicia a luta
encerrada em 1669. A vida era curta para esses
desbravadores, sujeita a adversidades de toda espécie -
alimentação pobre nas jornadas, constituída em regra de
carne seca e farinha, paçoca, certamente alguma caça, para
os senhores, isso mesmo ou o que desse para a soldadesca e
os escravos. Não raro fome e sede, as borrachas vazias para
abastecer de cacimba em cacimba, em distâncias incertas.
O gozo maior era o de somar o exercício do poder e a
acumulação de terras, poder-se-ia dizer único - fazer
multiplicarem-se bois e cavalos, ampliar o patrimônio
familiar, o feudo, é bem a palavra, deixando tudo aos
sucessores. Fora disso, distrair-se com as pobres e
desprevenidas índias, ação repetidamente condenada, mas
condenada em vão pelos missionários. Nesses vinte e três
anos, Garcia d'Ávila, II, há de ter instalado e visitado
muitos currais na beira-rio São Francisco. Os currais são
um capítulo a parte. Ao falecer, deixava o filho Francisco
Dias d'Ávila afeito à lide das jornadas. Desse, o padre
Pereira, seu "tio-avô e ainda cunhado, jurava que seria o
mais valoroso cavaleiro da Torre dos antepassados",
escreve Pedro Calmon, e talvez a esse miúdo e sagaz
aventureiro, o padre coadjuvasse mandando menos que nos
anteriores titulares da Casa. O anão, para usar a palavra de
Calmon, tiradas a Nantes, revela-o a História, foi um frio e
cruel matador de índios.
A conquista do Piauí e do além São Francisco até as
terras de Carinhanha, ocorreu a partir de 1674, por este
segundo Francisco Dias d'Ávila, filho do descobridor das
aldeias dos rodelas, e já aí era o terceiro neto do primeiro
Ávila. Ao lado deste segundo Francisco, na conquista do
Piauí e guerra aos índios dessa região e mais tarde do
Salitre, em seguida de Canabrava, como adiante
detalharemos, iam Domingos Afonso Mafrense, alcunhado
de Domingos Sertão, que viria a ser o responsável pela
penetração piauiense, seu irmão Francisco Julião, os irmãos
Domingos e Francisco Rodrigues de Carvalho e Manoel
Gonçalves.

NOTAS
1 - Pedro Calmon, História da Casa Torre, pag. 70.
2 - idem, idem, pag. 71.
3 - Pedro Calmon, Introdução e Notas ao Catálogo Genealógico das
Principais Famílias, de Frei Jaboatão, Vol 1, pag 161: "Catherine du Brésil".
4 - idem, História da Casa da Torre, pag. 71/72.
5 - idem, idem, pag. 71/72, rodapé 81: `"certidão ms., in arquivo
Wanderley Pinho, inédito". No arquivo do Museu do Recôncavo -
Wanderley Pinho, em abril de 1996, segundo informação da equipe, não se
encontra.
6 - Manuscrito no Arquivo Público da Bahia, Seção Colonial, 1813,
602, caderno 3, cópia no arquivo do autor.
7 - Pedro Calmon, idem, idem, página 83-rodapé.
IV - MISSÃO DE RODELAS
Frei Francisco Domfront

Onde, inicialmente, se localizou e onde teve vida a


Missão de Rodelas, administrada pelo capuchinho francês,
fr. Francisco de Domfront? As aldeias eram muitas, já se
disse, transcrevendo o requerimento dos descobridores. De
fato, tratava-se de uma nação, a dos procás, que povoava as
duas margens do rio e as ilhas. Pietro Vittorino Regni,
revelando-se inseguro para indicar, com exatidão, o "lugar
da missão fundada por fr. Francisco de Domfront", vai
buscar subsídio em Barbosa Lima Sobrinho e passa a
acreditar que seria em Pernambuco, nas imediações do
local onde é hoje Belém do São Francisco. Mas, é exato
que encontra essa dificuldade apenas para fixar o lugar da
instalação inicial da missão, não para indicar o local onde
ela se estabeleceu em definitivo, tanto assim, que sua obra
está referta da definição de Rodelas em terra firme da
Bahia. É uma dificuldade natural a quem trabalha tantos
anos depois, sem uma fonte segura de informações que se
contraponha às opiniões anteriores que se repetem em
cópia, quando a escassa documentação existente deixa
dúvida, cria interrogação, às vezes se contradiz,
apresentando, não raro, nomes de pessoas e de lugares,
datas divergentes de um papel para outro. Vejamos como se
manifesta o autor:
"Pela metade de 1672, escreve, fr. Martinho de
Nantes o encontrou - refere-se a fr. Francisco de Domfront -
em Recife. Ele havia ido à Cidade para fazer provisões para
a organização da missão entre os índios do grupo
rodela".(1)
"O S. Francisco, diz à página 212/213, dividia em
duas partes o sertão dos rodelas: a do norte, que se estendia
ao Piauí e pertencia à Capitania de Pernambuco e a do sul,
que compreendia uma larga faixa do território baiano, à
margem direita, com as famosas aldeias de Jacobina e
Geremoabo. Num território tão vasto, vai adiante, e de
confins tão incertos é difícil indicar, com exatidão, o lugar
da missão fundada por fr. Francisco de Domfront, no final
de 1671 ou início de 1672. Confrontando-se as indicações
dadas por fr. Martinho de Nantes com as de outros
relatórios e documentos oficiais da época, a localização
mais provável parece ser a ocupada pela atual Belém de S.
Francisco-Pe e seus arredores. Podemos crer que, ao menos
no começo, registra por fim, a missão se achava no
território de Pernambuco, pois, em 1672, para se
reabastecer das coisas necessárias a ela, o missionário
apelou para o Governador daquela Capitania."
Simples conjectura, baseada, por sinal, em ponto
frágil, é o entendimento de que a missão estava em
Pernambuco na oportunidade, só porque o padre foi
abastecer-se em Recife, como adiante indicaremos. Foi em
Rodelas, na Bahia, não em Pernambuco, está bem
entendido no Relato de Martinho de Nantes, que o recebeu
Francisco de Domfront nessa mesma oportunidade em que
vinha de Recife, onde fora "se reabastecer das coisas
necessárias" a sua aldeia. Mas, crendo na instalação da
aldeia em terras pernambucanas, Pietro Regni remete-nos a
Barbosa Lima Sobrinho.(2)
Com esse apoio escreve(3) que "a ilha de Setinã (ou
Jetinã, conforme a grafia usada no decreto do Governador),
devia corresponder à atual Belém do S. Francisco-PE,
indicada por Barbosa Lima Sobrinho como sede da missão
de fr. Francisco Domfront". O autor quis, sem dúvida, dizer
que o nome da ilha de Jetinã devia corresponder ao nome
da cidade de Belém, aliás, originá-lo. Na verdade, o Jetinã
cujo nome, segundo Barbosa Lima Sobrinho poderia ter ido
para aquela cidade, por pouco tempo, pois, chamando-se
sempre Belém, mudou-se-lhe o nome para Jatinã,
retornando, logo mais, o nome primitivo, acrescido do
topónimo São Francisco, era uma povoação pernambucana
em terra firme, dou o testemunho pessoal de quem pisou
dezenas de vezes aquele chão querido e o tem preso ao
coração. Até o evento da Barragem de Itaparica ainda
existia a povoação de Jatinã, não muito nas proximidades
de Belém do São Francisco, mas a cerca de cinco léguas rio
abaixo, defronte ao lugar denominado Jacó, na Bahia, meia
légua acima de Rodelas. Até o advento da rodovia, a gente
de Jatinã, trafegando em canoa, vinha fazer a feira semanal
em Rodelas, onde vendia sua produção de molhados, e
comprava produtos secos. De lá alcancei vindo as nossas
coreográficas dançadeiras de São Gonçalo, de muitas e
ternas saudades. É provável que essa movimentação, assim
fosse desde os primeiros tempos, reflexo do ir e vir de
índios e padres, quiçá de curraleiros e escravos. Na
verdade, a cidade de Belém do São Francisco posiciona-se
não em terrenos de Jatinã, mas em terras de Canabrava. E
seu nome pode vir, isto sim, de Nossa Senhora de Belém,
padroeira da missão da aldeia de Acará, uma ilha muito
próxima da cidade, hoje denominada ilha das Missões.
A indicação de Barbosa Lima é a de que "na margem
esquerda havia uma povoação, que ainda hoje se encontra,
sob o nome de Jatinã, sede do município pernambucano
(antiga Belém"), e confere com a povoação acima referida.
A ilha de Jatinã também existiu e ficava a meia distância
entre Jatinã, em Pernambuco e o local denominado Jacó, na
Bahia, confrontando, assim, com as duas localidades.
Autorizando a demarcação de terras para as aldeias
administradas pelo Centro Missionário de Rodelas, o que
acabou causando a expulsão dos padres jesuítas pela gente
da Casa da Torre, porque quiseram dar-lhe execução - o
Governador João de Lencastro colocava nestes termos a
situação física das referidas aldeias:
I - Para a aldeia de Achará, situada na ilha do mesmo
nome (Achará, Axará, Acará - grafam-se as três
denominações indistintamente), sinalava a ilha de Achará,
sede da aldeia, a ilha das Éguas, a ilha de Uxucu e a ilha de
Caburé, e mais uma légua em quadra de terra firme do lado
da Bahia, a ser demarcada imediatamente defronte da ilha
de Achará.
II - Para a aldeia de Rodelas à qual se anexava a
aldeia de Arnhipó, sinalava as ilhas de Jetinã, Vacayuviri,
Viri Pequeno, Pedra e Araticu, e mais uma légua em quadra
de terra firme do lado da Bahia a demarcar-se
imediatamente defronte da ilha de Jetinã.
III - Para a aldeia do Sorobabé, situada na ilha do
mesmo nome, à qual se anexava a aldeia de Caruruz,
sinalava essa mesma ilha e duas ilhas adjacentes, e mais
uma légua e meia em quadra de terra firme do lado da
Bahia, a demarcar-se em frente à ilha do Sorobabé.
Desenvolvamos um raciocínio simples: para
demarcar terras na Bahia, defronte às ilhas de Achará,
Jetinã e Sorobabé, seria indispensável que elas estivessem
próximas do lado baiano, ou pelo menos à sua vista, isto é,
face a face. E assim era.
Martinho de Nantes, na mesma tradução de Barbosa
Lima Sobrinho, ao relatar sua viagem a partir dos
Aramurus, escreve:
"Um fidalgo me deu um excelente índio, o padre
Anastácio me emprestou outro e eu parti a pé,
acompanhado de dois índios que o padre Anastácio me
confiou e de nosso negro, e do índio que eu havia trazido
da Paraíba. Chegamos a Rodelas depois de oito dias de
viagem. O padre Francisco de Domfront, de quem já falei,
recebeu-nos com muita alegria e caridade. Depois de um
dia de descanso, seguimos para Pambu, a cerca de vinte e
duas léguas acima pelo curso do rio S. Francisco. Tendo
chegado cerca de meio dia à capela de Pambu, construída
pelos portugueses, toda de taipa, fomos descansar...
Reúnem-se aí, pelo Natal e pela Páscoa, vindos de trinta
léguas e mais em redor, para cumprirem as suas devoções...
Tendo, eu dizia, chegado a Pambu, fomos descansar...
Chegou então um homem honesto, português, chamado
Francisco Rodrigues... O português me perguntou o motivo
de minha presença. Declarando-o, ele manifestou toda a sua
alegria e pediu para que me instalasse na ilha do Pambu,
bem defronte, onde havia uma bonita aldeia de cariris".
Veio a pé. O frade escritor é minucioso: "Tivemos
tanta felicidade que, embora nenhum de nós tivesse
experiência de carregar e descarregar cavalos e houvesse
caminhos muito difíceis, e até mesmo montanhas
escarpadas, das quais uma de perto de meia légua, sempre a
subir, e outro tanto a descer, e tão íngreme que eu me
admirava de que os cavalos não caissem no subir, ou não
rolassem ladeira abaixo ao descer, Deus nos ajudou de tal
modo que nada se quebrou e nenhuma carga se perdeu".(4)
Destaque-se, inicialmente, entre Pambu - terra firme da
Bahia e ilha de Pambu, locais diversos com o mesmo nome,
ainda hoje existentes. Há, a povoação baiana de Pambu e a
ilha de Pambu, território pernambucano, hoje denominada
ilha da Assunção. Ora, fr. Martinho chegou, à capela de
Pambu (e só podia ser na Bahia, a capela ainda lá está),
onde lhe foi proposto instalar-se na ilha do Pambu, bem
defronte. E vinha de Rodelas. Se esse Rodelas onde estava
fr. Francisco e de onde vinha fr. Nantes, se localizasse em
Pernambuco (Jatinã), chegaria ele a Cabrobó, igualmente
defronte à ilha de Pambu, mas do outro lado do rio. E para
estar em Pambu, do lado baiano, onde era a capela dos
portugueses, precisaria fazer duas travessias, para a ilha
primeiro, daí para terra firme na Bahia, sem contar que
andaria chão de uma légua na ilha. A ilha do Pambu, tem
frente, de um lado, para Cabrobó, em Pernambuco, do
outro para Pambu, na Bahia - eu a conheço de olhar, pelos
dois lados. Ao tempo da chegada de Martinho de Nantes,
não havia capela na ilha.
Se viesse de Cabrobó para chegar à ilha do Pambu,
depois à capela de Pambu, na Bahia, minucioso como foi
em sua "Relação", o frade mencionaria a passagem dos dois
braços de rio a canoa, como registrou a travessia para
Aracapá, bem assim a viagem anterior, de Penedo aos
Aramurus de fr. Audierne. Não poderia haver qualquer
dúvida sobre a localização da aldeia de fr. Francisco de
Domfront quando da passagem de fr. Martinho de Nantes.
Pelo menos não vejo como se possa estabelecer qualquer
dúvida à vista de tamanha clareza redacional. Se a missão
se iniciou em Pernambuco, não se sabe - quando não se
sabe é bom abrir-se uma possibilidade - aí demoraria
pouco, porque foi em Rodelas, terra firme da Bahia, que
Francisco de Domfront recebeu a Martinho de Nantes,
quando devia ter seis meses ou pouco mais de missionário,
salvo se sua presença entre os rodelas viesse do ano de
1670. No caso de o ponto inicial da missão ter sido em
terras pernambucanas, povoado de Jatinã, ou ilha de Jatinã,
logo passaria à fixar-se em terra firme de Rodelas.
Considerando-se que o missionário veio de Recife, isso é
possível. Bem entendido, se vinha pela margem
pernambucana, como anota Nelson Barbalho, subindo o
Capibaribe até às cabeceiras, para descer o São Francisco.
É certo que a povoação de Jatinã, apontada por mestre
Barbosa Lima e a ilha de Jatinã integraram a Missão de
Rodelas por muitos anos, até o desdobramento das áreas
jurisdicionais de Pernambuco e Bahia, em 1728.
Sabe-se, pelo relato acima transcrito, não vejo como
recusar a afirmativa, que fr. Francisco estava na aldeia de
Rodelas, Bahia, quando recebeu com "muita alegria e
caridade" a seu irmão de hábito. E sabe-se mais que essa
aldeia de Rodelas catequizada inicialmente por Domfront, é
a mesma que viveu mais de três séculos e foi sepultada em
1988 pelas águas da barragem de Itaparica. Pambu continua
na mesma posição em que a encontrou o historiador fr.
Martinho de Nantes. Apenas a capela não é a de taipa que
viu na chegada, mas a de grossas paredes de pedra e cal,
construída pelos portugueses, ou, quem sabe, pelos
capuchinhos - ele e seus irmãos ou outros seus irmãos
depois dele, e ainda lá está, pequenina e bela recebendo de
mais de trinta léguas em redor, os romeiros que vão pagar
promessas e orar ao seu milagroso Santo Antônio. Este,
continua sendo, para a região, o poderoso Santo Antônio do
Pambu, capaz de obrar milagres a léguas de distância.
Havia uma aldeia, uma bonita aldeia na ilha de
Pambu e sem dúvida a capelania em Pambu - terra firme.
Por sinal, Pambu, atual povoado, por algum tempo
jurisdicionado pelo município de Curaçá, posteriormente e
até hoje pelo município de Abaré, foi terra importante nos
velhos tempos. Elevado a freguesia em 1714, quando se
deu a criação da primeira vila do século, que foi a de
Jacobina, em 1722, estava incluído na sua jurisdição e em
1724 era elevado à categoria de distrito. Em 1872 foi
conduzido à categoria de Vila e Julgado.(5)
Quanto ao fato de fr. Francisco de Domfront
abastecer-se em Recife, isso, por si só, não poderia indicar
que a missão tivesse sede em Pernambuco. Primeiro,
porque o Hospício dos Capuchinhos, de onde viera o
missionário, situava-se em Pernambuco e aí era a sua
vinculação eclesiástico/administrativa, onde havia de
prestar contas da atividade missionária. Segundo porque,
mesmo sendo na Bahia a sede da missão - e sobre isso não
vejo dúvida -, a catequese alcançava as ilhas, que são
território pernambucano e também a terra firme na margem
esquerda do rio. A nação procás, ou rodela, não é demais
repetir, estava seguramente dos dois lados do rio e nas
ilhas, algumas destas, por sinal, nominalmente relacionadas
em documentos históricos. Ora, só porque a sede da
missão, local onde recebeu fr. Martinho de Nantes, ficava
do lado baiano, iria fr. Francisco abastecer-se na Bahia,
onde não havia uma casa da Ordem dos Capuchinhos?
Parece frágil demais, como apoio para a informação
histórica essa notícia do abastecimento do missionário em
Pernambuco.
Basta ver que a aldeia do Padre Teodoro Lucé, em
terras da Paraíba, também se abastecia em Pernambuco, eis
a palavra de Martinho de Nantes, na segunda Relação:
"Chegamos a Pernambuco...; Dois dias depois
chegou da missão o revendo padre Teodoro Lucé, que
estava na nação dos cariris na Paraíba, havia já cerca de
quinze meses, da maneira que descrevi na Relação anterior.
Não me resta dizer senão que o principal objetivo de sua
viagem a Pernambuco, nessa ocasião, é que havendo seis
meses que viera para abastecer-se do necessário...".(6)
A missão dos aramurus, dirigida então por fr.
Anastácio d'Audierne, que ficava em terras de Sergipe
devia abastecer-se também em Pernambuco, onde estava o
Hospício dos Capuchinhos, e onde, então, iam todos os
missionários da Ordem aos assuntos de sua catequese. Não
seria de outro modo, até porque a chefia jurisdicional das
Missões do São Francisco estava em Pernambuco. Não é
seguro que o abastecimento das aldeias se desse às custas
do governo local, sendo mais provável que a Ordem tivesse
recursos próprios.
Demais, as divisas entre províncias, nesses tempos,
eram incertas. Certa era só a terra dos indígenas
conquistada a ferro e fogo, pela morte e escravização dos
naturais, e a tentativa dos missionários de salvar pequenos
grupos aqui e ali, de serem dizimados. Por outro lado, da
mesma maneira como a chefia jurisdicional da missão que
alcançava terras de duas províncias, estava, então, em
Pernambuco, veio a ser na Bahia depois, por alguns anos,
só se dividindo entre as duas províncias, mais adiante. Leia-
se:
"O hospício da Penha, uma vez recuperado pelos
capuchinhos, foi posto sob a jurisdição desta Prefeitura da
Bahia, registra Pietro Vittorino Regni, para continuar -
deste modo aconteceu o que dizia o autor do Repertório da
fundação, isto é, que as partes foram invertidas. De fato, de
1656 a 1701 a missão baiana era dependente da de
Pernambuco: de 1710 a 1725, esta ficou sujeita àquela".(7)
Já se disse que a missão alcançava, desde os
primeiros dias, com fr. Francisco Domfront, além do
centro, localizado na aldeia de Rodelas, os aldeamentos das
ilhas Jatinã, Araticu e outras, menores, para citar as
relacionadas ao tempo de Francisco de Domfront.
Possivelmente, também o aldeamento de Jatinã, em
Pernambuco. A partir da administração dos jesuítas havia,
além dessas, as aldeias de Arnipó e Caruru, em terra firme
baiana, e a das ilhas de Acará e Sorobabé. A aldeia de
Caruru, que ficava bem mais perto de Curral dos Bois que
de Rodelas, e não se fala que fosse da nação procás, em
razão de dificuldades (desavença com os curraleiros), foi
anexada à de Sorobabé. Ainda com os jesuítas e na
passagem dos carmelitas, aparece também o nome da aldeia
de Curumbabá, já referida, cuja situação física se perdeu,
sabendo-se apenas, segundo o registro adiante indicado,
que se localizava em terra firme do lado da Bahia, a qual,
todos os caminhos levam a entender-se como sendo a
própria aldeia do Rodela. Curumbabá seria, quem sabe, seu
nome original, que os descobridores mudaram
portuguesmente em homenagem ao guerreiro Rodela, herói
na guerra contra os holandeses ou porque - como se há de
saber? - aí se apresentasse quando do descobrimento, à
frente dos seus guerreiros, aquele mesmo herói que Garcia
d'Ávila talvez conhecesse. Os outros nomes originais
permaneceram inalterados - Arnipó, Sorobabé, Acará, e
seus naturais eram também gente da nação procás, que veio
a receber o nome português de rodelas. O padroeiro desse
Curumbabá, era São João Batista, o mesmo da aldeia do
Rodela, hoje cidade de Rodelas, à qual correspondem,
igualmente, as indicações de localização. Não parece haver
dúvida sobre a dupla denominação. Além de serem os
mesmos o orago e a localização, é a mesma a nação -
procás. Depois disso, no escrito em que é incluída a aldeia
de Curumbabá, falta o nome da aldeia do Rodela, não
recusado em qualquer outro relatório. Quer dizer, ao tempo
dos jesuítas mudou-se o nome da aldeia, que assim
continuou com os carmelitas. Como veremos adiante,
quando da expulsão dos jesuítas, lá estava nessa
Curumbabá, o índio Francisco Rodela tentando defender os
seus missionários. Aliás, na era dos missionários italianos
desaparece, em definitivo, o nome - Curumbabá e reaparece
nome - Rodela. Veja-se:
"Lista das nove missões de que os carmelitas
descalços tinham tomado posse ou iam tomar, enviada a
Dom Pedro II pelo fr. André de S. Batista em 20 de
setembro de 1702.
1 - A missão de S. João de Curumbabá, em que
assistiram os muitos reverendos padres da Companhia de
Jesus, a qual fica em terra firme da parte da Bahia, a nação
dos índios que nela assistem se chama porcaz.
2 - A missão de Arinhipó, da mesma nação de índios,
em terra firme, foi administrada pelos Reverendos Padres
da Companhia, dista uma légua da acima referida.
3 - A missão da ilha de Axará com invocação de
Nossa Senhora de Belém da mesma nação de porcaz, na
qual assistiram os Reverendos Padres da Companhia de
Jesus".(8)
Da lista foram destacadas somente as aldeias da área
de influência de Rodelas. É de notar-se que o relatório
sobredito não menciona o nome de Rodelas, mas está
escrito que nessa Curumbabá "assistiram os muito
reverendos padres da Companhia de Jesus". Assistir, aqui,
está empregado como morar, residir. Ora, a aldeia do
Rodela era o centro, alguma coisa como a sede da missão,
tanto que aí estava o Superior. Havia na aldeia uma casa - e
eu a alcancei - que se chamava de convento e era a
residência dos padres. Não consta que nenhuma das mais
aldeias fosse dotada de uma edificação tal, salvo a de
Aracapá. Não se conhecem outras notícias dessa aldeia de
Curumbabá. Todas as indicações, vá a segunda repetição,
levam a Roma - isto é, a Rodelas. Parece que os jesuítas
quiseram reservar o nome "Rodelas", português, para o
conjunto das aldeias - "Missão de Rodelas", preferindo dar
a aldeia sede da missão, o nome de Curumbabá, e sem
dúvida aí está a sua identificação: Curumbabá - nome
indígena da aldeia, vila, cidade de Rodelas.
A aldeia de Arnipó ficava acima de Rodelas uma
légua, diz o relatório - a povoação que conheci, situava-se a
mais ou menos essa distância; eram, sem dúvida, o mesmo
lugar. Mais adiante, essa aldeia veio a ser anexada à do
Rodela. Em Arnipó alcancei uma Passagem, onde se
transportava da Bahia para Pernambuco o gado procedente
das caatingas de Rodelas, Curaçá, Juazeiro, Jaguarari,
Senhor do Bonfim e Campo Formoso, destinado à feira de
Arco Verde, entreposto de Recife. Uma barca fazia o
translado. Funcionários fiscais da Fazenda do Estado da
Bahia foram Lúcio José de Almeida, em seguida a este, seu
filho Cícero Rosas de Almeida, mais adiante seu sobrinho
Lucas Evangelista de Almeida. Negociantes de gado o
major Domingos Rodrigues Lima, depois seu filho
Policarpo Rodrigues Lima, Brício Tolentino Lima e
Manoel Justiniano da Fonseca, todos de Rodelas e ainda
Juvino Ribeiro, de Curaçá. Mais para a frente José Ribeiro
Zumba, Cícero Florentino da Fonseca, Antônio Florentino
da Fonseca e Antônio Rodrigues Lima, todos de Rodelas.
"O apostolado missionário, diz Pietro Regni, teve
início nos dois centros principais: Rodelas e Aracapá. No
primeiro nasceram Axará, Caruru e Sorobabé (estes dois
foram incorporados num só aldeamento, denominado nos
documentos como Caruru no Zorobabé". "A Aldeia de
Rodelas era formada por seis ou sete ilhotas, entre as quais
Setinã, a maior, e Araticu. Nelas viviam os setecentos
índios catequizados para os quais os missionários pediam
uma légua quadrada de terras às margens do rio do lado da
Bahia".(9)
Talvez seja por aí. Entre Rodelas e a margem oposta
do São Francisco, no lugar denominado Coité, havia não
menos que seis ilhas, uma ao lado da outra, separadas por
estreitos braços de rio, as quais, em minha época tinham a
seguinte denominação: ilha da Porta e ilha de Baixo, uma
abaixo da outra, separadas por um estreito e encachoeirado
corredor, e, no sentido da margem pernambucana, ilha da
Cobra, ilha da Viúva, ilha do Cupim, ilha do Cambaigá e
ilha do Coité, esta, bem próxima de Pernambuco. Logo
abaixo da ilha do Cambaigá, separada por um corredor,
ficava a ilha do Tucum. E, como já se disse, cerca de dois
quilômetros acima de Rodelas, mais próxima de
Pernambuco, a ilha de Jatinã. Lá em baixo, a cerca de uma
légua, a ilha do Sorobabel, em meu tempo já erodida e
quase feita em praia.
É possível que essas, ou algumas delas, considerando
que nem todas seriam habitadas pelos índios, mas somente
utilizadas para a lavoura ou a caça de roedores e jacaré,
fossem as ilhas da Missão de Rodelas de Domfront,
continuada e ampliada pelos jesuítas, mais logo
administrada pelos capuchinhos italianos. A matéria é vasta
e certamente voltaremos a ela. Alcancei os caboclos
morando em Rodelas e trabalhando nas ilhas,
especialmente na ilha da Viúva, que continuou sendo
terreno seu até à construção da barragem de Itaparica. Ali,
muitos deles construíam ranchos e permaneciam dias,
meses, no período da "cultura de vazante" entre a
semeadura e a colheita, correspondendo à fase de baixa do
rio, retornando à aldeia na enchente. Também a ilha da
Porta alcancei pertencendo em parte a alguns dos caboclos,
bem assim a Ilha de Baixo. É provável que antes da
descoberta já fosse assim, alguma coisa como a dupla
morada. Era-o certamente na época das missões. Nossos
índios eram canoeiros experimentados, conhecedores de
seu rio, cachoeira por cachoeira, pedra por pedra, e
morando na aldeia, trabalhavam nas ilhas. Falo agora do
meu tempo. Madrugavam na canoa para a ida, anoiteciam
para o retorno. Não eram preguiçosos como anotam alguns
autores, pelo menos assim não os conheci. Quando me
entendi, já não se dedicavam à caça, que, parece, nunca foi
o fraco dos rodelas, madrugavam na pescaria de tarrafa,
eram bons comedores de cabeça de curumatá e vendiam
peixe à população da vila. Ao iniciar-se a era do transporte
fluvial de Rodelas a Jatobá e a Juazeiro, os índios foram em
regra os remeiros. E bons remeiros. No curso Juazeiro a
Pirapora, destacou-se o índio rodelense Manoel de Souza -
Caboclinho, como prático, se não erro, do vapor Barão de
Cotegipe. Antes do exercício de prático de vapor,
Caboclinho foi piloto de uma barca no percurso Jatobá -
Juazeiro. O preguiçoso de que falam as crônicas antigas,
tinha uma razão de ser: o índio produzia para o seu
sustento, não precisava de mais que o pescado, a caça, a
fruta silvestre e uma pequena roça de legumes. Veio o
branco colonizador e o pôs escravo, para o suor de sol a sol
dos seus afazeres - suas minas, seus engenhos, suas
fazendas - e ele não se sujeitava a isso, rebelava-se, não
queria dinheiro, se não precisava de mais nada além do
alimento, a maloca e a esteira. Fugia da aldeia, ia esconder-
se nos campos seus conhecidos, perambulava sem rumo
certo, podia caçar animais silvestres ou gado, o que mais
facilmente encontrasse. Se eram seus os campos, também o
seria tudo que aí se continha.
Já não conheci os nomes Araticu e Pedra como de
ilhas. Havia, na Bahia, uma fazenda, depois povoado de
Araticum, entre Rodelas e Arnipó, que a barragem de
Itaparica engoliu, e, também engolido, foi um lugar
denominado Pedra, em Pernambuco, logo acima de Jatinã.
Sem dúvida muitos dos nomes mudaram, ainda que outros
se conservem. Havia uma ilha chamada do Tucum, acima
referida. Poderia ser a mesma registrada na História como
Araticu, não se sabe, o nome está muito próximo e a ilha
estava perto da ilha do Cambaigá, relacionada entre as
pretensões dos tuxá a partir de 1944. Que nome seria o
original da ilha da Viúva e por que recebeu esse último? E
o nome da ilha da Porta? Que nome viriam ter as ilhas de
Vacayuviri e Viri Pequeno, assim denominadas no ato de
sinalização de terras? Havia nas proximidades de Rodelas,
no sentido de quem desce o rio, um pico isolado que se
chamava Serrote, cujas bordas se prestavam a agricultura -
Serrote de mestre Néu. Aliás, entre as ilhas reivindicadas e
não conseguidas no após instalação da Aldeia dos Tuxás de
Rodelas, está o Serrote, o que deixa a pensar que essa
poderia ser a ilha da Pedra. Há, no documento de
sinalização de terras, uma referência a ilhas alcantiladas. E
ilha em alcantil, única na região, era o Serrote.
À vista do decreto do governador João de Lencastro
concedendo terra firme, na Bahia, defronte às ilhas,
havemos de pensar em situação próxima da Bahia, pelo
menos em posição que fossem vistas da margem direita.
Sobre isso não há nenhuma dúvida. A hoje chamada ilha
das Missões, entre Belém do São Francisco e o Porto da
Missão, vem a ser a antiga ilha de Acará. Está pouco acima
do povoado de Barra do Tarrachil, na Bahia. Aliás, a ilha
das Missões, sem deixar de estar defronte a terras da Bahia,
é mais próxima de Belém. A padroeira da Missão de Acará
era N. S. de Belém e é certo que o nome da Padroeira
inspirou a escolha do nome da cidade. Quanto às ilhas de
Jatinã e Sorobabé, que sempre tiveram o mesmo nome, a
primeira ficava defronte do Jacó, na Bahia e a última em
frente ao povoado Sorobabé, a meia distância entre a foz do
Pajeú, em Pernambuco e o Estado da Bahia, até serem
tragadas pelas águas da barragem.
O primeiro contato com o nativo rodeleiro deu-se
certamente no lado baiano - da Bahia partiram os
descobridores -, em Rodelas e suas proximidades. Rodelas
era terra dos índios da nação procás, isso está
repetidamente registrado. Da nação procás, eram
igualmente os índios de Arnipó, terra firme da Bahia. Eles
também residiam nas ilhas vizinhas, Jatinã, Araticu e nas
ilhas próximas, como fossem Sorobabé, Acará e Vargem,
convivendo com outras nações. Deviam estar igualmente
em Sorobabé, terra firme da Bahia defronte à ilha do
Sorobabé; Sorobabé (foz do Pajeú), Tacuruba e Jatinã, terra
firme de Pernambuco; Barra do Tarrachil, terra firme da
Bahia; e Riacho da Vargem, na Bahia, defronte à ilha da
Vargem. Os descobridores não passaram então, o São
Francisco para a margem esquerda, tanto assim, que o
requerimento se referia somente a terras à margem direita.
Dependiam, para a travessia, do ajoujo de muitas canoas
em que embarcassem sua cavalhada. E isso, quando mal se
aproximavam do índio, seria temerário.
O interesse em foco é Rodelas, Bahia, mas os
vínculos são tantos e tão apaixonante o assunto, que vale a
pena ir a um pouco mais. Barbosa Lima Sobrinho, faz o
seguinte registro:
"Meio século mais tarde, na relação das aldeias de
Pernambuco, na Informação Geral da Capitania de
Pernambuco em 1749, publicada no volume XXVII dos
Anais da Biblioteca Nacional, ainda se encontravam na
freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Rodelas, as
seguintes aldeias, incluídas na jurisdição pernambucana:
- Aldeia da Missão de S. Francisco do Brejo, situada
na Ribeira do Payaú, o missionário é religioso franciscano,
tem várias nações tapuias.
- Aldeia de Nossa Senhora do Ó, situada na ilha do
Sorobabé, o missionário é religioso franciscano, tem duas
nações de tapuias, porcás e brancarurus.
- Aldeia de Nossa Senhora de Belém, na ilha de
Acará, o missionário é capuchinho italiano, tem duas
nações de tapuias, porcás e brancarurus.
- Aldeia do Beato Serafim, situada na ilha da Varge,
o missionário é capuchinho italiano, tem duas nação de
tapuias, porcás e brancarurus.
- Aldeia de Nossa Senhora da Conceição de Pambu,
o missionário é capuchinho italiano, tem uma nação de
tapuias cariris.
- Aldeia de S. Francisco, situada na ilha de Aracapá,
o missionário é capuchinho italiano, tem uma nação de
tapuias cariris.
- Aldeias de S. Felix, situada na ilha do Cavalo, o
missionário é capuchinho italiano, tem uma nação de
tapuias cariris.
- Aldeia de Santo Antônio, na ilha Irapuá, o
missionário é capuchinho italiano, tem uma nação de índios
cariris.
- Aldeia de Nossa Senhora da Piedade, situada na
ilha de Inhamuns, o missionário é religioso franciscano,
tem uma nação de tapuias cariris.
- Aldeia de Nossa Senhora do Pilar, na ilha de
Coripós, o missionário é religioso franciscano, tem uma
nação de tapuias coripós.
- Aldeia de Nossa Senhora dos Remédios, situada na
ilha do Pontal, o missionário é religioso franciscano, tem
uma nação de tapuias tamaquiús.
- Aldeia de Senhor Santo Cristo, situada em Araripe,
o missionário é religioso capuchinho italiano, tem uma
nação de tapuias ialna.
Na freguesia do Rio Grande do Sul, ainda na
jurisdição de pernambucana, havia a seguinte aldeia:
- Aldeia de Aricobé, o missionário é religioso
franciscano da Bahia. Invoca-se Nossa Senhora da
Conceição, tem uma nação de caboclos aricobé, de língua
geral".(10)
É de destacar-se, inicialmente, que o autor relaciona
as aldeias jurisdicionadas, na oportunidade, 1749, pela
freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Rodelas, que
tinha sede na ilha de Assunção, antiga Pambu. Eram as
missões das ilhas, iniciadas em 1672 com fr. Martinho de
Nantes na ilha de Aracapá, que foram-se ampliando e se
estendendo às outras ilhas, até alcançar a Barra do Rio
Grande. Evidentemente, essa freguesia de Conceição de
Rodelas não tem a ver com a nossa historiada Missão de
Rodelas, senão pelo fato de que, nos primeiros tempos as
aldeias de Acará e Sorobabé pertenciam à jurisdição dessa
aldeia e pela presença da nação procás, em convivência
com outras nações, sem dúvida aparentadas, em algumas
das ilhas relacionadas, entre elas, segundo Barbalho, a ilha
de Assunção. Vê-se, que as aldeias do São Francisco eram
quase todas nas ilhas, e assim, em território pernambucano.
Mesmo a Missão de Rodelas, sediada em terra firme da
Bahia, incluía, no início, e por muito tempo assim foi, os
ilhéus da proximidade.
Pietro Vittorino Regni apresenta relação quase
idêntica, no mesmo período, 1748, 1749, administradas
pelos capuchinhos italianos. Veja-se a sua palavra:
"As missões capuchinhas do São Francisco eram as
seguintes:
1 - Nossa Senhora de Belém, situada na ilha de
Axará, o missionário é capuchinho italiano, tem duas
nações tapuias: procás e brancarurus.
2 - Aldeia do B. Serafim, situada na ilha da Vargem,
o missionário é capuchinho italiano, tem duas nações
tapuias: procás e brancarurus.
3 - Aldeia de N. S. da Conceição, situada na ilha do
Pambu, o missionário é capuchinho italiano, tem uma
nação de tapuias cariris.
4 - Aldeia de S. Francisco, situada na ilha de
Aracapá, o missionário é capuchinho italiano, tem uma
nação de tapuias cariris.
5 - Aldeia de S. Felix, situada na ilha do Cavalo, o
missionário é capuchinho italiano, tem uma nação de
tapuias cariris.
6 - Aldeia de S. Antônio de Irapuá, o missionário é
capuchinho italiano, tem uma nação de tapuias cariris".(11)
Também aqui está anotada a convivência da nação
procás, ou rodelas, com a nação brancarurus. Acrescenta
Regni, "que José Antônio Caldas, num `mapa geral' das
missões sujeitas à jurisdição da Bahia, arrola 35 aldeias das
quais 13 administradas pelos jesuítas, 5 pelos franciscanos,
4 pelos capuchinhos, 5 pelos carmelitas, 8 pelos padres do
hábito de S. Pedro". Contando-se a aldeia do Sorobabé,
possivelmente entregue à Ordem de São Francisco só
depois de elaborada a relação de Caldas, eram 6 as missões
dessa ordem, que em algum tempo estiveram a cargo dos
padres a seguir relacionados: Inhanhuns - frei Maurício de
S. Francisco; Juazeiro - frei Francisco de São Sebastião;
Pontal - frei José S. Gabriel; Curral dos Bois - frei Antônio
de Santa Ana Diniz; Coripós - frei Manoel S. Boaventura;
Sorobabé - frei Francisco de Santa Eufrásia.(12)
Os dois registros acima, relacionando a missão de N.
S. de Belém, da nação procás, situada na ilha de Axará, na
área de influência de Pambu/Aracapá no ano de 1749,
confirmam o seu deslocamento das Missões de Rodelas,
cujo centro vinha sendo a aldeia do mesmo nome, desde fr.
Francisco de Domfront, passando assim pela era jesuítica.
Segundo Serafim Leite, até 1692 havia só uma residência
dos jesuítas no São Francisco, em Rodelas, sendo superior
o Pe Agostinho Correia e sócio Pe. Felipe Bourel. Dois
anos depois, relaciona-se a residência da Acará, com o Pe
Francisco Inácio como superior e Ir. Gabriel da Costa, que
aprendia a língua dos índios, como auxiliar, isto, sem
desvincular-se da área de influência de Rodelas. A missão
desenvolvia-se rapidamente e mais adiante relacionavam-se
cinco aldeias na região. O autor não as menciona. Seriam,
além de Rodelas e Acará - Arnipó, Sorobabé e Caruru,
constantes de outras indicações. A data em que a aldeia de
Acará passa a área de influência de Pambu/Aracapá, pode-
se fixar na era dos capuchinhos italianos, entre 1728 e
1729, por razões que vão detalhadas em outro capítulo.
Depois de relacionar as aldeias das ilhas a partir de
Axará até ilha do Cavalo, o registro de mestre Regni
apresenta, com destaque, a de Rodelas, na Bahia, e a de
Porto da Folha, em Sergipe:
"Rodelas, Termo de Pambu, Paróquia de S. Antônio
de Pambu, padroeiro S. João Batista, diocese da Bahia,
Capitania de Sergipe d'El-Rei, Comarca de Jacobina; terra
possuída: uma légua, 200 almas, tribo procás, distancia da
Bahia 170 léguas"(13) - esta, a situação de 1749.
Ia-se pelo ano de 1713, quando os capuchinhos
italianos receberam as missões do São Francisco, iniciando-
se pela Missão de Rodelas, de onde, em 1696 haviam sido
expulsos os jesuítas. Até 1713 a administração foi dos
carmelitas, de que em outro capítulo falaremos. Com os
capuchinhos italianos, a aldeia de Sorobabé já não integra a
área da Missão de Rodelas, ali permanecendo, como já foi
dito, um franciscano. Talvez isso se desse antes de os
Carmelitas assumirem a missão, assim continuando.
Confirmando as informações de jurisdição acima
anotadas, em J. Capistrano de Abreu, Capítulos da História
Colonial, 6ª edição revista por José Honório Rodrigues, um
mapa de aldeias de índios oferece a mesma informação,
com diferença para o nome da tribo indígena que se registra
como sendo - piriás:
"Rodelas - termo de Pambu, paróquia de S. Antônio
do Pambu, padroeiro S. João Batista, diocese Bahia, missão
dos Capuchos italianos, capitania Sergipe, comarca
Jacobina, extensão de terra, uma légua, 200 almas, gentios
que a habitavam, piriás, distância da Bahia 170 léguas.
Nunca foi vila". A distância registrada por Antonil é de 80
léguas por dentro. Vieira anotou 120 léguas. Quanto ao
nome da tribo aqui indicado "piriás", que em outros autores
não se encontra, há de entender-se que seria uma simples
grafia diversa, como há outras (e muitas): Piriás = priás =
procás. Há muita divergência nos nomes das tribos e
nações, de autor para autor. A terra "possuída", na verdade
jamais existiu. Seria um equívoco dos autores. Foi
demarcada pelos jesuítas, expulsos por causa da
demarcação, e não apossada jamais.
Por felicidade, em Rodelas salvou-se um resto dos
nativos que, na região, o conquistador trucidou sem
piedade. Hoje a aldeia já não tem o nome de Rodelas, mas
de Tuxá - Aldeia dos Tuxás, cujos habitantes são tidos
como descendentes da tribo dos índios rodelas. A jurisdição
administrativa da aldeia, se faz pela FUNAI, por via do
departamento do órgão em Recife. Hoje há um Posto em
Paulo Afonso. Em capítulo distinto trataremos sobre os
Tuxá.
Mas, quem eram os índios rodelas ao tempo do
descobrimento? Uns dizem - tapuias, e é certo, uma vez que
o nome define o índio do sertão, contraposto ao tupi, do
litoral. Outros sustentam que são um ramo do tapuia cariri e
isso, parece que não - os cariris, como os rodelas, gentes da
etnia gê, formavam nações distintas, com língua própria,
ainda que não muito distante. Eram vizinhos na região do
São Francisco e talvez parentes, em razão de casamentos
entre índios das duas nações. Os cariris, mais numerosos,
subiam nordeste acima até a Paraíba, alcançavam a margem
direita e desciam a Jacobina e Canabrava, enquanto os
rodelas, de menor população, eram beiradeiros e ilhéus no
vale do Rio da Unidade Nacional.
Em Relatório do Museu do Índio do Rio de Janeiro
sobre os Tuxás de Rodelas, Hohenthal Jr. oferece esta
informação: "Aroderas (Rodelas, Rodeleiros). Uma tribo
"tapuya", que viveu ao longo do Rio São Francisco no
século XVII, segundo PISO MARCGRAF. MARTIUS
comenta em seus Beitrage que essa tribo não podia ser
identificada por seu nome, desde que rodela significa
simplesmente um ornamento labial em português, mas
BARBOSA LIMA SOBRINHO sugere que esse nome vem
de um pequeno escudo de forma circular que usavam os
índios dessa região. De acordo com Accioli de Cerqueira,
os Rodeleiros foram, durante algum tempo, aliados dos
Acroás, reduzidos pelos jesuítas em 1751. Os acroás em
outros tempos chegavam até a Comarca do Rio São
Francisco. PINTO classifica os rodelas como cariri, mas
não apresenta justificativa para essa classificação".(14) A
identificação da tribo rodelas está confirmada nos vários
autores, como sendo a nação procás. E vamos repetir que a
aldeia do Rodela identifica-se com a aldeia de Curumbabá.

NOTAS
1 - Pietro Vittorino Regni, Os Capuchinhos na Bahia, vol. 1, pag. 145.
2 - Idem idem, pag 212/213, Barbosa Lima Sobrinho, comentários à
Relação de Uma Missão no Rio São Francisco, de Martinho de Nantes, n. 6
e 7.
3 - Pietro Vittorino Regni, Os Capuchinhos na Bahia, vol. 1, pag. 214.
4 - Martinho de Nantes, tradução de Barbosa Lima Sobrinho, Relação
de Uma Missão no Rio São Francisco, pag. 35
5 - Felisbello Freire, H. Territorial do Brasil, pag. 151, 186, 187 e 223.
6 - Idem, idem, pag. 30
7 - Pietro V. Regni, Os Capuchinhos na Bahia, volume 2, pag 51.
8 - Idem, idem,, volume 1, pag 323.
9 - Idem, idem, volume I, pag 209, e 214.
10 - Barbosa Lima Sobrinho, Nota 46 da tradução de Relação de uma
Missão no São Francisco, de Pe. Martinho de Nantes, página 122/123.
11 - Vittorino Regni, Capuchinhos na Bahia, vol. I, páginas 211,
colhendo informação nos ABN.
12 - Memórias Históricas e Políticas da Bahia, vol V, pag 442
13 - Vitório Regni, idem, volume 1, pag 211 - extraído de José
Antônio Caldas em Notícia Geral de esta Capitania da Bahia.
14 - Museu do Índio do Rio de Janeiro, Relatório Sobre os Índios
Tuxá, em transcrição de Hohenthal Jr, 1960:43-4.
V - COLONIZAÇÃO
Francisco Dias d'Ávila, II

É necessário que se separe, para começo de história,


Rodelas, a aldeia indígena baiana, da freguesia de Nossa
Senhora da Conceição de Rodelas, na ilha de Assunção,
Cabrobó, Pernambuco, bem assim, da região cariri,
denominada Sertão de Rodelas. Há certa confusão no
registro histórico.
A colonização da aldeia de Rodelas, na Bahia, como
da extensa região sertaneja que recebeu, durante muito
tempo o nome de Sertão de Rodelas, estava iniciada com os
currais dos Ávilas. E já aí, tomando-se por base a data do
requerimento da sesmaria do Rodela, 1646, ia-se a um
século e meio do descobrimento do Brasil e um século da
fundação de Salvador. Diziam os autores do requerimento
que haviam "povoado de gado" as terras descobertas. E se
"povoaram de gado", com este ia o vaqueiro, fosse branco
ou negro, mameluco ou mulato, empurrando a colonização.
Na verdade era tudo isso. Os Ávilas, donos dos bois e das
terras são-franciscanas, já se sabe terem sido duas vezes
descendentes de índios, e, levando consigo os seus negros,
se faziam acompanhar também do branco e de parentes,
mestiços ou não. Pedro Calmon fala em parentes e amigos.
Por exemplo o nome Pereira que se espalha por toda a
região, será possivelmente o mesmo Pereira dos Ávilas -
Pereira Gago. De igual modo, o nome Dias, tão freqüente
nos primeiros tempos e até o século passado, talvez seja o
dos consanguíneos do pai do primeiro Francisco Dias
d'Ávila, Diogo Dias. Sem dúvida estavam o cativo, puxado
pelas algemas, o agregado e o aventureiro em busca da
riqueza, maior ou menor, conforme suas origens e a cobiça,
o desejo de posse, a coragem e o talento. Uns iam por mais,
outros por menos. Haviam os assalariados para as guerras
de caça ao índio que escravizavam para transformar em
dinheiro e os que pensavam na terra, em sesmarias ou lotes,
para a fortuna ou para o simples trabalho necessário à vida.
Domingos Sertão, por exemplo, partindo de terras
arrendadas no Sobradinho, fez a guerra aos índios do Piauí
com os Ávilas, e aí foi sesmeiro, acumulou fortuna.
O padre Martinho de Nantes registra o nome de um
Francisco Rodrigues no povoado de Pambu em 1672. Em
1674 um capitão Francisco Rodrigues de Carvalho, tendo
sob seu comando um alferes de nome Manoel Gonçalves,
denominado também Manoel Gonçalves Pereira estava nas
bandeiras do coronel Francisco Dias d'Ávila, II, como
capitão, guerreando índios no Piauí, depois no Salitre.(1) É
possível que seja o mesmo. Deve ter ficado como rendeiro
na beira-rio criando boi. Aliás, rendeiros já deviam ser
quando entraram na luta contra os índios, ele e seu auxiliar
Manoel Gonçalves, como em regra os oficiais guerreiros
dos Ávilas. Ao lado desse Francisco, também guerreou os
índios, seu irmão Domingos Rodrigues de Carvalho, na
categoria de Sargento-mor - segunda pessoa do comando
geral. Desse não se têm boas notícias. O registro que ficou
sobre ele, em Martinho de Nantes, é o de que foi o autor do
massacre, no Salitre, de quase 500 índios, presos e
desarmados, que degolou um a um. O nome disso é
genocídio. O escritor Euclides Neto, romancista e cronista,
tem uma pequena nota sobre ele em O Menino Traquino,
livro de crônicas, página 18: "Não pode gabar-se, por
exemplo, quem se prende à cepa de Domingos Rodrigues
de Carvalho, que degolou em uma ação, aqui nos sertões,
400 índios, conquanto 600 já se tivessem rendido". Teriam
ficado os dois, Francisco entre Cabrobó e Pambu, terra
firme ou ilha, para onde convidara o frade, oferecendo-lhe
apoio, e Domingos entre Pajeú de onde era capitão, e
Sorobabé, terra firme ou ilha. Nos primeiros tempos havia
bastante Rodrigues na região (em Pernambuco prevaleceu o
Carvalho). Em um levantamento populacional das fazendas
em terras dos Ávilas na região, no ano de 1779 -
manuscrito que vai transcrito em outro capítulo -, estão no
sítio do Curralinho um João Rodrigues e na fazenda Ibó
José Rodrigues, Cipriano Rodrigues e Manoel Rodrigues.
Há um Domingos Roiz na "fazenda de Rodela". No correr
da pesquisa para este trabalho, em documentos do final do
século XIX firmados nas fazendas Cachauí e Praia, esta
correspondendo à antiga sede da "fazenda de Rodela",
encontrei várias vezes o nome Roiz como abreviatura de
Rodrigues. Seriam este Roiz e aqueles Rodrigues
descendentes de um dos irmãos guerreiros? Ou de ambos?
Na fazenda Sorobabé, está em 1857 um Antônio Rodrigues
de Carvalho. O nome, aqui, é o mesmo, sendo possível que
seja de fato um descendente.
Em 1700 registra-se o nome de um Francisco Pereira
Lima no "S. Francisco de Rodelas". Esse São Francisco de
Rodelas, é, fora de dúvida, o Rodelas da ilha de Pambu -
Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Rodelas. O
governador de Pernambuco, Don Martins de Lencastro
escrevia a esse Francisco Pereira Lima, capitão-mor,
juntando correspondência para os missionários das terras da
jurisdição pernambucana, na qual chamava a atenção, no
sentido de que ali só se cumprissem ordens emanadas
daquela autoridade. Era certamente o começo dos conflitos
de jurisdição que andaram atrapalhando, de muito, a
catequese.(2)
No último quarto do século XIX, há um outro
Francisco Pereira Lima, entre Rodelas, Pambu e Curaçá,
ora funcionando como procurador dos Rodrigues Lima,
Gomes da Fonseca e Gonçalves da Fonseca, seus parentes,
ora assinando documentos com estes, como testemunha,
nas fazendas Cachauí e Praia, até onde o Escrivão de Paz
conduzia os livros de seu cartório. Esse último Francisco
Pereira Lima foi neto de Domingos da Fonseca e Azevedo
e está relacionado em 1881 como um de seus herdeiros,
representando sua falecida mãe, Maria Josefa de Sá. Seria
descendente, pelo lado paterno, do seu homônimo de 180
anos passados, ou os nomes coincidiram por acaso?
Da igreja, ali, só se encontra notícia a partir de 1671.
Em 1672 o capuchinho francês Martinho de Nantes inicia,
como já foi dito, seu apostolado no São Francisco. Na
passagem pela aldeia do Rodela, encontra, aí, o seu irmão
de hábito, também francês, fr. Francisco de Domfront, que
se iniciara na catequese por volta de 1671, quem sabe, 1670
ou até 1669, não se tem a confirmação de data. Em Pambu,
onde passa antes de alcançar a ilha de Aracapá, que foi o
seu destino, encontra um "capelão dos portugueses" cujo
nome não menciona, do qual, diz em seu relato, que
desobrigava até cem léguas para cima e trinta para baixo - o
que era um grande serviço prestado não ao índio,
certamente, mas aos introdutores da colonização. Este, não
exercia a catequese indígena, era o assistente religioso dos
portugueses e mamelucos da colonização, possivelmente
um dos rendeiros dos Ávilas, dos quais tudo e todas ali
dependiam. "Fr. Audierne - registra Pedro Calmon em
História da Casa da Torre - acusou Francisco Garcia
d'Ávila de ter mandado o capelão Manoel da Costa Carrilho
amotinar, contra ele, o gentio de Pambu". Dava-se isso
nove anos depois da chegada, ali, de Fr. Martinho. Seria o
mesmo capelão que andava cem léguas para ministrar os
sacramentos da religião de Cristo? Não é seguro dizer sim
ou não. Mas, levando-se em conta o tempo decorrido entre
as duas informações, é provável que sim.
Não há nenhuma dificuldade para destacar, nos
escritos da época, os fatos ocorridos na aldeia que deu
nome a atual cidade baiana cuja história venho tentando, e
os fatos referentes a aldeia dos cariris da ilha do Pambu,
mais adiante chamados de rodelas, já então também a ilha
de nome mudado para Assunção. No limite de meus
conhecimentos, a dificuldade está em saber a partir de
quando esse nome passa aos índios da ilha. Dos autores
lidos nenhum traz qualquer referência a isso. Sabe-se
apenas que ele aparece depois do início da catequese, sendo
certo que nos primeiros contatos, dos índios dessa aldeia se
dizia chamarem-se cariris. Em documento de 1700, acima
referido, o mais antigo que sei, já encontramos o nome de
S. Francisco de Rodelas, referindo-se à aldeia de Pambu.
Como haviam freqüentes deslocamentos de índios de aldeia
para aldeia, a critério, ora do governo, ora do sesmeiro, ora
dos próprios missionários, poderia ter ocorrido que algumas
famílias dos índios rodelas, que segundo o registro inicial,
eram tapuias do grupo procás e habitavam nas
proximidades, por exemplo nas ilhas da Vargem, Acará,
Jatinã, Sorobabé e outras, além de em terra firme em Jatinã,
Tacuruba e Pajeú, tudo isso da jurisdição de Pernambuco, e
Rodelas e Arnipó, na Bahia, fossem deslocadas para a ilha
do Pambu, onde, segundo Nelson Barbalho, tinha assento a
mais importante aldeia dos Rodela. Ou poderiam ter sido
reduzidos e confinados na ilha, índios rodelas acaso
esparsos. Também poderiam já aí se encontrarem, hipótese
menos provável, quando da chegada de Martinho de
Nantes, sem que este atentasse para a sua coexistência lado
a lado com os cariris, como estavam, na vizinhança, em
convivência com os brancarurus. Há que indagar e
pesquisar, se se quer encontrar a verdade histórica. Algum
documento pode contê-la e algum dia ser encontrado. A
cópia da cópia da cópia, gera confusão. Em Barbosa Lima
Sobrinho, Documentos do Arquivo, volume IV e V, onde
estão publicados papéis a partir de 1696, só encontrei, de
referência aos índios rodelas de Cabrobó, material com data
a partir de 1757.(3) Algum documento pode ter escapado,
mas, os colhidos estão postos em data muito posterior ao
início da catequese na ilha de Pambu.
Como está registrado acima, em 1672, os índios da
ilha hoje denominada Assunção, foram chamados de
cariris, veja-se: "Manifestou toda a sua alegria e me pediu
para que me instalasse na ilha de Pambu, bem defronte,
onde havia uma bonita aldeia de cariris".(4) Cinco anos
depois, em 1677, "o padre Anastácio de Audierne e o padre
José Chateaugontier haviam chegado e fundado cada um a
sua aldeia de cariris, também no rio abaixo, o primeiro no
Pambu e o padre José a duas léguas para cima".(5)
Não se fala em aldeia no povoado baiano de Pambu,
mas somente em uma capelania portuguesa. Essa antiga e
influente povoação, entrou em decadência a partir do
século XIX, ao ponto de perder a condição de vila e
julgado. Somente na ilha de Pambu, depois batizada por
ilha de Assunção, não em terra firme baiana ou
pernambucana em frente à ilha, fala-se na aldeia que fora
inicialmente chamada de cariris e em data não definida
passou a ser indiferentemente denominada, nos documentos
oficiais de Pernambuco, ora aldeia de N. S. da Conceição,
ora aldeia de Rodelas, ora Rodelas de Cabrobó e, parece
que por via disso, entrou no registro histórico como aldeia
de Rodelas. Essa ilha, com cerca de cinco léguas de
comprimento e entre três e seis quilômetros de largura, está
defronte de Pambu, no lado baiano, e de Cabrobó, no lado
pernambucano. Sobre os rodelas na ilha do Pambu, buscar-
se-á, adiante, oferecer maiores esclarecimentos
comparando os vários autores conhecidos.
Quanto à região cariri denominada Sertão de Rodelas
e amplamente historiada por Nelson Barbalho, parece
impossível, à vista de tanta divergência entre os autores,
alcançar a verdade. Estamos muito longe no tempo e sobre
quase tudo isso inexiste o documento ou quando existe é
conflitante, contradizendo-se os papéis. São chamamentos
oficiais da província de Pernambuco, nomeando coronéis,
capitães, alferes e comandantes, ou correspondência a essas
e outras autoridades. Tentar-se-ão, em meio à confusão,
pontos de luz para o esclarecimento.
A região que se chamou Sertão de Rodelas, na
indicação de vários autores, estava à margem esquerda do
rio São Francisco, "banda de Pernambuco", desde o rio
Pajeú até o rio Carinhanha, indo para o centro até à Paraíba
e Piauí, com incursões ligeiras à margem direita. Barbalho
chega a dar-lhe a extrema inferior no Moxotó, marcando-
lhe do lado baiano, divisas entre Jacobina e Geremoabo. O
de que se tem dúvida, é das fontes de apoio para os limites
desse território tão vasto que cobre área de quatro estados -
há muita contradição, repita-se, muita confusão
documental. É certo que os curraleiros do São Francisco
aprofundaram-se até alcançar terras hoje integradas aos
Estados do Maranhão, Ceará, Paraíba e Rio Grande do
Norte(6) e que a área referenciada coincidia com as terras
dos Ávilas.
Quer me parecer que a denominação de Sertão de
Rodelas para essa enorme extensão territorial, é puramente
teórica. Pensar-se e mesmo dizer-se. que toda ela era
habitada pelos índios rodelas é incorreto. Apontavam sim,
aqui e ali, pequenos grupos em convivência com outras
nações, é o que tenho entendido da leitura dos autores que
abordam a matéria. É possível que assim fosse, entre outras
razões, por via de casamentos unindo as diversas tribos da
região, que eram numerosas. O casamento, fazendo-as
aparentadas, conduzia ao bom relacionamento inter-tribal.
No correr dos tempos passados, esses aglomerados com as
mesmas características dos indígenas procás, denominados
rodelas pelo bandeirante, deviam ir ocupando espaços
vazios sertões acima, à margem fértil dos rios. O estudo dos
rodelas, que, por sinal, não avançou muito, põe-nos na
tranqüila posição de gente pacífica e de fácil convivência
não apenas com outros grupos indígenas, mas também com
o colonizador. Com a invasão de suas melhores terras pelos
entradistas e curraleiros, foram-se afundando para lugares
mais remotos, sertão a dentro, ou perambulavam sem
destino pelos campos. Esse constante perambular de tribos,
muitas vezes matando gado para alimentar-se e até
atacando fazendas, vem simplesmente do assalto ao seu
único chão fértil, à margem do rio. Nem todos se
sujeitavam ao confinamento da aldeia catequética e parte
dos que o aceitavam sentiam-se frustrados e fugiam,
somando-se aos erradios. A partir de ocorrências assim - é
um raciocínio, poderia ter-se generalizado o nome na
proporção de novas entradas. Também é possível que, na
penetração do Piauí, em cujas guerras eles estiveram
presentes ao lado do conquistador, fossem ficando novos
focos de seu povo disseminados na região. E mesmo São
Francisco acima, isso poderia ter acontecido, até porque os
rodelas mansos foram soldados dos Ávilas em seguidas
oportunidades. Donald Pierson,(7) registra que Acciooli de
Cerqueira "se refere a um grupo de Rodela em Minas".
Como chegaria tão longe? Com o nome de Rodelas mesmo,
além da aldeia baiana de Rodelas e dos rodelas da ilha de
Assunção, só se sabe de Oeiras, antiga capital do Piauí, que
assim se chamou nos primeiros tempos, e não tenho notícia
da razão disso. Tive, na mocidade, um amigo de Oeiras,
cujo nome o tempo apagou da lembrança, que me dizia
orgulhoso, que sua terra também se chamara Rodelas nos
seus primeiros tempos.
A anotação histórica mais antiga e a documentação e
papéis que lhe dão apoio, situam os índios rodelas, que são
o ramo "beradeiro" e "ilhéu" dos tapuias, nos terrenos
férteis e irrigados naturalmente pela enchente anual do rio
São Francisco dos dois lados e suas ilhas, entre a foz do
Pajeú e Cabrobó de um lado, do outro entre Sorobabé e
Pambu, não mais que isso. Por sinal, foi aí que prosperaram
as missões de catequese, primeiro com os capuchinhos
franceses, depois com os jesuítas, continuados pelos
carmelitas, depois com os capuchinhos italianos.(8) As
diferentes denominações para as várias tribos da região,
deixam claro que muitos povos indígenas a ocupavam, e
isso equivale a entender que o designativo rodelas para
tanto espaço pertencente a tanta gente, é algo que se pode
ter como simbólico. Há que analisar-se também a
possibilidade de a região ter tomado o nome de Sertão de
Rodelas, acompanhando as doações de sesmarias aos
Ávilas e seu aliado Domingos Sertão. Por exemplo, na
parte da Bahia, a área que foi dita Sertão de Rodelas
coincidia, exatamente, com as terras dos Ávilas - margem
do São Francisco entre Salitre e Xingó, e, para o centro,
Geremoabo a Jacobina.
Já Rodelas, a aldeia baiana, tem esse nome desde o
seu descobrimento em 1646 e o transferiu à cidade. Está à
margem direita do lago de Itaparica nas proximidades do
local onde, à margem do rio, foi descoberta como aldeia e
veio, depois de passar pela escala de vila, a ser a pequenina
cidade. Sempre conviveram lado a lado a população
indígena e a população branca ou de branca chamada, com
uma separação meramente simbólica das duas povoações.
A gente cabocla da aldeia de hoje, amestiçada pelo
cruzamento de índios, pretos e brancos, descende dos
antigos rodelas e dos tuxás, estes, vindos não se sabe bem,
da foz do Pajeú, para onde teriam descido da ilha da
Vargem, é um assunto a que voltarei buscando melhores
esclarecimentos no capítulo a ser dedicado à aldeia dos
tuxás.
Em uma região duramente tostada pelo sol, como é
esta, era natural a busca do oásis do rio, farto em bons solos
e dadivoso em peixe. Porque viviam em função do rio, os
nossos índios se fizeram lavradores e pescadores e quase só
isso eram os nossos indígenas, que pouco se aventuravam à
caça de caatinga. Na caça, a preferência era pela capivara,
que se multiplicava nas ilhas são-franciscanas. Parece que
alguém já disse que o São Francisco, foi para o nosso índio
e os que o sucederam antes da era tecnológica, o que foi o
Nilo para os egípcios na antiguidade, irrigando e adubando
anualmente as terras à sua margem. É verdadeiro.
A colonização e o povoamento no São Francisco,
como em toda a área dominada pela Casa da Torre, se deu
por via do arrendamento de terras. Senhoreando léguas e
léguas no Nordeste, como se anotará, detidamente, em
outro capítulo, os Ávilas não deixaram aos colonizadores
senão a alternativa de serem seus rendeiros e dependentes.
Os chefes da Casa da Torre, a partir do primeiro Francisco
Dias d'Ávila até metade do século XIX, não foram menos
que régulos, dos quais os curraleiros eram vassalos, sujeitos
ao seu regime de arrendamento e opressão.

NOTAS
1 - Pedro Calmon, Hist. da Casa da Torre, pag. 90/91: Domingos
Afonso Sertão, português de Mafra, que se domiciliara na fazenda do
Sobrado, à margem esquerda do São Francisco... Foi feito capitão da metade
da força (patente de 9 de julho de 1674); e a outra metade ficou com
Francisco Rodrigues de Carvalho, que levava como alferes Manoel
Gonçalves (patente de 23 de agosto). O sargento-mor, ou segunda pessoa,
foi Domingos Rodrigues, e os brancos somavam 100, sustentados pelo
próprio Francisco Dias d' Ávila, capitão-mor "da entrada às aldeias dos
guaisquais e oposição dos bárbaros galaches" (patente de 5 de junho de
1674). Reuniu-se-lhes o gentio rodela, chefiado por Francisco Rodela,
valoroso cariri, a quem se dera (patente de 24 de agosto) o posto de capitão
de aldeia.
2 - Pietro Regni, Os Capuchinhos na Bahia, vol. 1, pag. 177, nota de
rodapé: "Carta do Governador D. Francisco Martins de Lencastro em março
de 1700 ao capitão-mor do rio S. Francisco do Rodelas, Francisco Pereira
Lima" (AHU - capilha dos documentos relativos ao dito capitão-mor, fl 29):
"Remeto a vossa mercê as cartas para os missionários capuchos franceses, e
para os franciscanos, as quais vossa mercê fará entregar e advirta vossa
mercê que na jurisdição de Pernambuco não hão de ser obedecidas outras
ordens mais que as que forem expedidas por este governo e pela junta das
Missões cujo tribunal mandou Sua Majestade que Deus guarde, erigir nele
de que se fez a mim e a meus sucessores..."
3 - Barbosa Lima Sobrinho, Documentos do Arquivo, vol. IV: pag
8/9, 15,15v, 64/65, 52,53, 193v, 234.
4 - Martinho de Nantes, Relação de Uma Missão no Rio São
Francisco, tradução de Barbosa Lima Sobrinho, pag 36.
5 - idem idem, página 50.
6 - Donald Pierson, O Homem no Vale São Francisco, to I, pag 271.
7 - idem, idem, página 230, rodapé 24,
8 - Pedro Calmon, História da Casa da Torre, página 116.
VI - ORIGEM DO NOME
As Versões. O Índio Francisco Rodela.

Registra Nelson Barbalho, que "o vocábulo rodela


provém - Cronologia Pernambucana - do formato de um
escudo circular usado pelos tapuias como arma de guerra.
Segundo Ariston de Souza Ferraz, ele escreve, foi a forma
material desse instrumento bélico, semelhante a uma
pequena roda - rodela -, que deu o nome a um dos mais
valorosos combatentes da tribo - o índio Francisco. Ao
prenome Francisco foi acrescentado o nome Rodela,
passando a chamar-se Francisco Rodela. Mas, como a tribo
era substantivo coletivo, continua, a expressão começou a
ser usada no plural e, assim, o índio guerreiro ficou sendo
chamado Francisco Rodelas, cujo nome foi cantado em
prosa e verso, por sua bravura no comando de uma centúria
tapuia, no Terço de Antônio Felipe Camarão, durante a
guerra holandesa. E a região em que dominavam aqueles
indígenas, finaliza, recebeu o topônimo de Sertão de
Rodelas. Quem habita a região de Rodelas é rodeleiro".
"Acrescenta Souza Ferraz - diz ainda Barbalho - que
as comunidades da nação rodeleira receberam
denominações distintas, algumas ligadas à geografia
regional, outras fundadas em fatores diversos. Os índios da
ilha de Cavalo, de Aracapá e Pirapora, o de Cariris. Na ilha
de Assunção, foi situada a mais importante aldeia dos
tapuias, a qual recebeu a denominação de ALDEIA DE
RODELAS".(1)
Já vimos que Martinho de Nantes dava aos índios da
ilha de Pambu (depois Assunção), o nome de cariris, da
mesma forma que aos das ilhas de Aracapá e Cavalo, e em
nenhum momento os denominou rodelas ou disse da nação
procás na ilha. Segundo Serafim Leite e Barbosa Lima
Sobrinho em 1639, o índio Rodela destacava-se na luta
contra o invasor flamengo, à frente de 200 combatentes de
sua tribo. Em uma oportunidade matara 80 combatentes
holandeses, pondo as tropas inimigas para fora da região
são-franciscana de Alagoas. Saiu herói dessas lutas.
Certamente ainda não recebera, no batismo, o nome de
Francisco, uma vez que a referência nominal limitava-se a -
índio Rodela, no singular. Não se diz porque tinha ou
recebera esse nome.(2)
Veio, em 1646, o requerimento de uma sesmaria nas
recém descobertas terras dos índios chamados rodelas. Já aí
o nome estaria assim generalizado para a nação ou seria
implantado agora? Aplicado à comunidade indígena, creio
que é a primeira vez que aparece em documento. Os índios
se revelaram amigos dos descobridores, ver-se-á adiante. E
o nome ficou - aldeias dos rodelas, que eram muitas, dizia o
papel.
Quanto à origem do nome RODELA, que viria de
rodela - arma de guerra dos tapuias, pode ser isso, mas é
sempre bom lembrar que até onde sei, em nenhum
momento a crônica do índio Rodela na guerra holandesa
(quando ele se fez conhecido e foi assim chamado),
registrou esse fato nem disse dessa arma. Não alcancei a
obra de Souza Ferraz nem sei a fonte que o levou a
afirmativa, Barbalho não a menciona. Em história não se
acolhe a conjectura, portanto havemos de ter por válida a
informação.
Vale, entretanto, oferecer essa outra versão, de
Barbosa Lima Sobrinho: os índios rodelas eram assim
chamados "porque usavam um tipo de escudo redondo ou
por causa de um disco de madeira que colocavam nos
lábios como ornamento".(3) Falta convicção ao autor, sobre
a verdadeira razão do nome - arma ou ornamento.
Há de inscrever-se, também, a tradição local, pelo
menos a título de curiosidade: O nome rodelas, vem do
costume que tinham os indígenas dessa tribo, de usarem a
rótula do joelho do inimigo morto em combate, pendente
do pescoço como troféu de guerra. E no caso, a tradição se
robustece no fato de ainda hoje chamar-se, em Rodelas, de
"rodela do joelho", à rótula - osso móvel da articulação.
Estamos bastante longe da presença do índio Rodela na luta
contra os holandeses, 1639, e do descobrimento, 1646. Mas
as tradições seguem com os povos e sem perder-se,
projetam-se em futuro milenar, ainda que às vezes
revestidas do maravilhoso. Menino, ouvi repetidas vezes
essas notícias dos que vinham do século anterior com os
quais convivi. A professora Dulcina Cruz Lima, a grande
mestra de Rodelas e estudiosa de sua história, deixou-me,
em manuscrito que vai transcrito no apêndice, o registro
dessa mesma tradição. No caso de o nome ter origem no
uso da rodela do joelho como troféu de guerra, esse troféu
tanto poderia ser usado por vários guerreiros da
comunidade, os que tivessem a glória de o conquistar,
como unicamente pelo chefe, a título de distintivo. "Rodela -
também vale anotar a informação de Pedro Calmon -
escudo pequeno, de infantaria, em castelhano e português.
É palavra que está no Dom Quixote, de Cervantes".(4)
Jaime Séguier, Dicionário Ilustrado, registra: "rodela -
pequena roda. Escudo redondo, usado antigamente pela
infantaria". Quer dizer, não só o índio tapuia do Brasil
usaria - se é que usou - a pequena roda nas artes de guerra,
mas a infantaria portuguesa também a usava. Como se vê, o
nome é português - e com ele os soldados lusos batizaram o
herói índio na fase da guerra holandesa e os descobridores
de suas terras o confirmaram para a nação. Convicção,
convicção, não há de nada disso. Na verdade, a origem do
nome perdeu-se no tempo. Até onde conheço, surgiu aí,
com o cacique Rodela chefiando seus 200 guerreiros na
luta pela integridade portuguesa no Brasil. Porque era
assim chamado, ao que se sabe, não ficou escrito. Aliás, o
escudo, na definição léxica não é bem uma arma de guerra,
mas uma peça de defesa pessoal contra golpes de espada e
de lança, coisa da idade média, que chegou a dar o nome de
escudeiro ao pajem que conduzia esse instrumento para os
nobres. É de lembrar que se a rodela ou escudo existisse
entre os nossos indígenas como arma de guerra, então, teria
dado nome aos guerreiros, uma vez que todos a usariam, e,
assim, teriam sido chamados, na oportunidade da guerra
holandesa - "índios da rodela" ou "índios das rodelas", no
seu conjunto. Bem assim, o botoque, enfeite comum a
todos. Ao passo que o distintivo, simbolizando o comando,
o poder, devia ser usado unicamente pelo chefe, daí, o
nome - índio Rodela. Que rodela seria essa, é a dúvida.
A referência histórica, vamos recapitular, fixou-se no
chefe - índio Rodela, segundo se lê em Serafim Leite. E foi
a partir dele, que o nome se estendeu à tribo guerreira dos
rodelas, vindo a pluralizar-se ao tempo do descobrimento -
"aldeias dos índios rodela, que são muitas". No
requerimento da sesmaria, cinco anos depois da ação
heróica, se dizia aldeias dos índios rodela. Mais tarde o
cacique se batizaria, recebendo o nome de Francisco,
sendo, possivelmente, fr. Francisco de Domfront o autor do
batizado. Serafim Leite anotou Francisco Pereira Rodela,
quando lhe pôs na mão a catana para defender os jesuítas
na oportunidade da expulsão em 1696. Devia ser o mesmo,
aí por volta dos 75 anos, pouco mais, talvez 80, não se
suponha demasiada a idade para a ação - os índios viviam
muito, e o cacique Rodela, sendo um nobre, não deixaria
sem defesa os seus frades, insultados por outros índios. E
ainda era o chefe. Deu-lhe o historiador, aqui, o título de
sargento-mor, quando, segundo outros registros, era
capitão. Parece que sargento-mor é alguma coisa mais que
capitão. Tratando-se de longevidade e ação nobre, vale
lembrar que Domingos Sertão, ao lado de quem lutou
Francisco Rodela na conquista do Piauí, em 1704 ainda
lavrava escritura de doação de recursos e terras aos jesuítas
da Bahia e estaria beirando os 90.
O título de capitão, como honraria, veio-lhe na
oportunidade das lutas do Piauí. A data indicada é a 29 de
agosto de 1674. Quer o uso da arma de guerra tivesse
originado o nome do índio e sua tribo, quer o originasse o
uso da rodela do joelho como troféu de guerra, ou até o
botoque, qualquer das versões, salvo pela curiosidade de
saber, teria pouco significado, agora, o nome firmado para
imortalizar-se - índios da rodela, aldeia dos rodelas,
distrito, vila, cidade de Rodelas, sem nunca deixar de ser,
igualmente, aldeia de Rodelas. A aldeia é o conjunto
habitacional da gente de origem indígena, sempre
destacado da povoação das raças ditas branca e morena.
Ainda lá e assim continua, apenas mudado o nome para
Aldeia Tuxa. E ainda viria o nome de Sertão de Rodelas
dado à extensa região ocupada pelos cariris, procás e tantas
outras nações tapuias de diversas línguas, que pode ter-se
originado tanto do nome do chefe guerreiro Francisco
Rodela, quanto da nação dos rodelas, mais provavelmente
desta, eis que, conjectura por conjectura, a comunidade está
acima do indivíduo. Quem se sobressaiu nas guerras
indígenas ao lado do conquistador, foi um trato guerreiro
dos índios rodelas, comandado pelo capitão Francisco
Rodela, e isso, depois de haver-se distinguido na guerra
holandesa. De todo o modo, a celebridade dos guerreiros
rodelas fez irradiar seu nome para muitas terras.
Nelson Barbalho põe o índio Francisco Rodela "na
aldeia dos Rodelas de Cabrobó". Há, seguramente, um
equívoco em sua informação. O índio Francisco Rodela não
era cacique na aldeia de Assunção, mas na aldeia de
Rodelas, terra baiana.(5) Conforme registra Serafim Leite,
aqui está, na aldeia de Curumbabá (Rodelas), terra firme da
Bahia, o índio Francisco Pereira Rodela em 1696 de catana
em punho para defender os missionários jesuítas da sanha
dos Ávilas, só não indo ao vão derramamento de sangue,
porque os padres o contiveram. A informação de Serafim
Leite é vivida pelos seus irmãos de ordem, que a
testemunharam.(6) Aliás, o documento define a situação
sem deixar qualquer sombra de dúvida. Ei-lo: "Patente de
Cap. dos Índios da Aldea do Rodella no Ryo de S.
Francisco provida em Francisco Rodella. Affonso Furtado
de Castro de Mendonça. Por quanto convém prover o posto
de capitam da Aldea do Rodella no Ryo de Sam Francisco,
e que seja em pessoa de valor e experiencia militar: tendo
eu consideraçam ao bem que todas estas partes concorrem
na de Francisco Rodella, Índio de naçam: esperando delle
que em tudo o de que for encarregado do serviço de Sua
Alteza se sucederá muito conforme as obrigações que lhe
tocarem a confiança que faço de seu procedimento... Hei
por bem de o elleger e nomear como em virtude da presente
elejo e nomeio Capitam da referida Aldea para que como
tal o seja, use e exerça com todas as honras, graças,
franquezas e liberdade que lhe tocam e costumam gozar os
mais capitaens de semelhantes aldeas deste Estado. Pelo
que -------- por me tido e ordeno aos oficiais maiores e
menores ------------ ordenança deste Estado ------ honrem e
estimem e refutem por tal Capitam da referida Aldea e os
mais índios della façam o mesmo e obedeçam como devem,
e são obrigados. Para firmeza do que lhe mandei passar a
presente sob meu sinal e sello de minhas armas a qual se
registrará nos livros a que tocar. Antonio Garcia a fez nesta
cidade do Salvador, Bahia de Todos os Santos, em os vinte
e nove dias do mez de agosto. Anno de mil seiscentos e
settenta e quatro. Bernardo Vieyra Ravasco a fiz escrever.
Affonso Furtado de Castro Ryo de Mendonça.
Desta mesmo se passou outra no mesmo dia e hora
Capitam dos kariris da Ilha de Arracapá em Thomé de
Urarã".(7)
Como se vê, o capitão de índios Francisco Rodela
não foi nomeado para "a chefia da aldeia dos Rodelas em
CABROBÓ", mas, "Capitão dos Índios da Aldea do Rodela
no Ryo de S. Francisco". A aldeia dos rodelas no Rio São
Francisco é aquela mesma descoberta em 1646, de que o
Garcia d'Ávila (II) requeria a propriedade, estendendo-a,
pela margem baiana do rio, desde Sergipe até à última
aldeia dos caririguaçu (imediações do Salitre). Nessa aldeia
dos rodelas no Rio São Francisco, teve sede, por 190 anos,
a Missão de Rodelas. Já a aldeia dos rodelas em Cabrobó
(Ilha de Assunção, ex-Pambu), é outra coisa. Os
documentos de Pernambuco, transcritos de Barbosa Lima
(Documentos do Arquivo, volume IV/V), dão-lhe o nome
às vezes de Freguesia de N. S. da Conceição dos Rodelas,
às vezes de Rodelas em Cabrobó ou Cabrobó de Rodelas.
Era, indiscutivelmente, outra, que não a aldeia dos índios
do Rodela no Rio São Francisco.

NOTAS
1 - Nelson Barbalho, Cronologia Pernambucana, vol. 3, pag. 214.
2 - Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil, pag. 293,
rodapé, com apoio em Cadena, Relação Diária, 185.
3 - Vittorino Regni, obra citada, página 145 - colhido em Barbosa
Lima Sobrinho, Pernambuco e o São Francisco.
4 - Pedro Calmon, rodapé à pagina 71 de História da Casa da Torre.
5 - Nelson Barbalho, Cronologia Pernambucana, Volume 4º, tópico
622, página 157: "Nesse mesmo mês de agosto de 1674, dia 29, segundo o
livro de Registro de Patente, do Estado do Brasil, arquivado na Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro, são nomeados capitães os índios FRANCISCO
RODELAS, encarregado da chefia da aldeia dos Rodelas, em CABROBÓ, e
THOMÉ DE URARÃ, encarregado do comando dos cariris da ilha de
ARACAPÁ, sendo ambos os documentos assinados pelo governador-geral
Afonso Furtado de Castro do Rio e Mendonça, Visconde de Barbacena".
6 - Biblioteca Nacional do Rio de janeiro: "BN/DRD/DINF 055/96
Ref.BN:PB-365/96.... "o documento original encontra-se em mau estado de
conservação, faltando alguns pequenos pedaços e praticamente ilegível...."
(Gentil atendimento de Dirciléa Fernandes de Sá, com apoio em trabalho da
pesquisadora Maria José Fernandes). Cópia do papel em fax no arquivo do
autor.
7 - Serafim Leite, História da Companhia de Jesus, vol. 1, pag. 302:
"Entretanto, acudiu o sargento-mor da dita Aldeia, por nome Francisco
Pereira Rodela, Índio, o qual duas vezes se ofereceu aos padres. querendo
puxar pela catana para defendê-los, mas os padres sossegaram-no, para
evitar maiores males". A aldeia referida era a de Curumbabá, Rodelas, Bahia
, e a ocorrência está registrada, no episódio da expulsão dos jesuítas.
VII - CONVIVÊNCIA
Explorado e explorador

"Os cariris do sertão baiano e do médio e baixo S.


Francisco se mantiveram em bom relacionamento com os
portugueses, como foi observado pelo Pe. Fernam Cardim
que os descreveu como amigos destes".(1)
Quanto aos índios rodelas, é certo que estes
acolheram bem os descobridores e isso está perfeitamente
entendido no requerimento de sesmaria transcrito no
capítulo III: ..."despenderam mais de 2.000 cruzados de
fazendas e roupas com todas aquelas aldeias..." Quer dizer,
com pequenas dádivas "compraram" as terras e a boa
vontade dos legítimos senhores e tudo a partir daí, correu
tão bem, que os rodelas estiveram presentes às guerras de
matança da raça ao lado do conquistador, mais de uma vez.
Simples e ingênuos, deviam estar boquiabertos com a
presença vistosa, encavalada e armada a fogo, da nova
gente. A partir disso, pode-se dizer pacífica a convivência,
ainda que na base do engodo. E também é justo dizer-se
que a população indígena rodeleira conviveu desde os
primeiros tempos com a população branco/mestiça em
termos de explorado e explorador. Por exemplo, a sina de
vender sua terra a troco de nada - bugigangas aqui, adiante
fumo e cachaça, foi do nosso desprevenido nativo até
quando já não teve o que vender. Participou do massacre
aos seus irmãos, e, do mesmo modo que estes, morreu na
guerra. Tanto assim, que a gente indígena diminuiu, a
branca aumentou. Aliás, não diminuiu o indígena,
praticamente desapareceu. Não é dizer que fosse uma
absorção do sangue pelo cruzamento, não, este era
pequeno. Pequeno e coercitivo, violento e, no dizer dos
padres, escandaloso - extra-conjugal. Deu-se, ao contrário
da união de sangues, a simples eliminação da raça, a
matança nas injustas "guerras justas" e a escravização, e,
com esta, a morte espedaçada, aqui um, ali, outro. A gente
preta, na sua convivência ou servil com o Senhor ou
indiferente com o nativo, cruzou-se com ambos, de modo
que em Rodelas e vizinhanças não há negro de sangue
puramente africano, parece que não, há mulato e cafuzo,
cuja definição convencional entre nós é - escuro, moreno,
às vezes raposo, nos primeiros tempos dizia-se cabra. Com
isso, o negro salvou o próprio sangue, doando-o à
posteridade, enquanto do índio restou bem pouco. Já não
existe índio, mas caboclo meio sangue - uns poucos -, mais
vezes com o negro, menos vezes com o branco, de raro em
raro cruzado em três raças.
"A partir do momento em que os cariris aceitaram a
catequese, registra Batista Siqueira, por sua indiscutível
flexibilidade, passaram a vigorar dois planos culturais
simultâneos: cariris aculturados (caboclos); cariris
acossados pelos curraleiros denominados índios de corso.
Certos aldeamentos eram tão vigiados pelos religiosos e
seus auxiliares, que os ameríndios preferiam vagar, sem
rumo, a suportar a prisão espontânea da aldeia
militarizada".(2) A informação sobre o cariri, no caso, vale
para o rodela e as outras nações que se acomodaram na
aldeia, ao lado do branco, sob a tutela do padre.
De qualquer modo, em Rodelas sempre houve rusgas
e afagos, tempos de convivência tranqüila, tempos de
guerra fria entre os nativos ou seus descendentes e os
colonizadores ou seus descendentes. A desconfiança dos
remanescentes indígenas continua. Fez-se em escola. E
com a desconfiança, as rusgas. Fora do pequeno círculo dos
rodelas mansos, que cedo se aglomerou na catequese e
serviu ao conquistador, a situação foi outra, muito pior. O
sangue correu durante um século, mais. A guerra vem do
início da penetração.
Luta constante também houve entre o padre e o
colonizador. O elemento de ligação, muitas vezes anteparo
de choque, em regra de defesa do índio, foi o missionário.
Este queria o índio para a escola e a reza, para o rebanho da
igreja, aquele tinha-o para o trabalho, diga-se o termo
verdadeiro, escravo, só remunerado com o prato de pirão; a
chamada "guerra justa" é o testemunho mais eloqüente
disso. O missionário pretendia a légua de chão em torno da
aldeia para os índios, o colonizador a recusava, "precisava"
de todo o Nordeste para pasto de seu gado. Por razões
assim, houve constante luta entre o missionário e o
curraleiro. E o índio, que era a causa da luta, porque, contra
sua exploração pelo colonizador clamava o padre, nem
sempre lhe deu apoio, antes, muitas vezes o chamado índio
manso fazia o jogo de seu conquistador, em regra a troco de
pequenos presentes. Também é verdade que a gente da
Casa da Torre, dona da terra e até da vontade dos seus
rendeiros, aos quais coagia e dominava, impunha-lhes a sua
vontade, mesmo para a participação nas guerras, foi,
sobretudo com Francisco Dias d'Ávila, II, não apenas
violenta, mas sanguinária. Esse miúdo e valente
descendente de índios duas vezes, era um impiedoso,
desalmado matador de índios, deixa-o bem claro o
depoimento de Martinho de Nantes. Não se diga que teriam
sido os seus capitães, esses não o fariam sem a sua
autorização, antes, por ordens suas.
Deixemos a palavra a mestre Pedro Calmon: "Os
capuchinhos, eram ótimos políticos, o bandeirante, fino e
astuto como eles. Moveram, naquele vale tão amplo que
abrigava cinco raças e tão exíguo que não bastava a um
sertanista e um padre, a mais delicada das guerras". "Cada
missionário era um curador dos bárbaros e Francisco Dias
os trucidava". "Desde os primeiros tempos frades e
sertanistas divergiram, hostilizaram-se, estenderam para el-
rei mãos trêmulas de indignação. O senhor da Torre e o
capucho reproduziram o episódio". O capucho da
referência é o padre Martinho de Nantes. O dissídio entre
os catequistas e os conquistadores baianos, "encetado em
1675 - acrescenta o mesmo autor-, prolongar-se-ia até o
meado do século XVIII, porque a catequese tinha
exigências gulosas: queria a légua em quadra para as
aldeias e o conveniente terreno dos passais das freguesias.
Os homens da Torre, que senhoreavam 500 léguas, só
cediam uma delas mediante carta régia, provisão de
governador, ameaças de penas canônicas. Martin de
Nantes, porém foi contendor digno de Francisco Dias
d'Ávila".(3)
Outros registro há, e muitos, mas isso basta a
confirmar, não apenas a má convivência, sim a dura luta da
conquista, até extirpar-se a raça nativa dos brasis, da qual
resta um pouco na Amazônia, e entre nós, um que outro
grupo de remanescentes, por exemplo os índios salvos em
Rodelas e pouco mais.

NOTAS
1 - Vittorino Regni, Os Capuchinhos na Bahia, vol. 1, pag. 134
2 - Batista Siqueira, Os Cariris do Nordeste, página 38 e 39.
3 - Pedro Calmon, História da Casa da Torre, páginas 93/94.
VIII - OS ÍNDIOS
Língua, religião, cultura

Ficou anotado em capítulo anterior, que em 1646


Garcia d'Ávila II, e padre Antônio Pereira, requeriam, em
sesmaria, as terras dos índios rodelas, alegando que haviam
"descoberto o Rio de São Francisco lá em cima no sertão,
onde chamam aldeias de Rodelas". A descoberta dera-se
entre 1641 e 1646.
Quem eram esses rodelas? Que terras possuíam? De
que família nativa descendiam? Como viviam? Pouco se
registrou do nosso rodela, quase nada se estudou sobre ele
nesses velhos tempos, e resulta disso, que muito se apagou,
ficando pequena a memória. Viviam, só isso ficou anotado
com segurança, de caça e pesca, da coleta de frutos naturais
e da lavoura rudimentar na beira rio e nas ilhas, resumida a
abóbora e mandioca, milho e feijão, cabaça e algodão. Os
instrumentos agrícolas eram feitos de madeira e pedra. A
pedra, o barro e a madeira tinham grande importância em
sua vida. Estavam no estágio do fuso e já produziam, rede
de dormir e tarrafa de pescaria de fibra vegetal. Seus
utensílios de uso doméstico e vasilhame eram de barro
assado ao fogo e de cabaça, pedra ou madeira, na qual
usavam também o fogo para a escavação e até para abater
as árvores. Andavam nus ou quase nus, usando veste de
penas de ave mais como enfeite do que como roupa ou
agasalho. Isso se diz de todas as nações indígenas. Se não
era exatamente assim, era mais ou menos assim. "Os
paiaiazes não estão sujeitos a lei ou rei", registra Serafim
Leite, com apoio nos documentos deixados pelos padres
que em 1655 contactavam índios no sertão. "As moças,
enquanto se não casam, andam nuas. Depois de casadas
aplicam a si um vestido pouco formoso, de folhas de
árvores; e arrancam as sobrancelhas, as pestanas e a unha
do dedo polegar. Os seus cuidados não são mais que
petiscar a miúdo, e beber, e gastar o tempo em
divertimentos. E assim levam vida tranqüila e risonha". Os
homens "são bárbaros, grandes de corpo, e de rosto não tão
truculento e feroz como outros, de cabelo comprido, e
inclinados à guerra. São dotados de maravilhosa agilidade
de pés. A arte que mais ensinam aos adolescentes é esta:
colocam aos ombros grande peso, e logo se põem a correr,
indo outro atrás deles, e com um feixe de urtigas lhes
fustiga sem cessar as espáduas nuas; obrigados pela dor,
correm acima das suas forças, sem deixar rastro". "Enfim,
diz a seguir, agora transcrevendo Sexennium
Literaturarum, 1651-1656, do P. Antônio Pinto, Bras. 9,
16-18 - esta gente não parece tão bárbara e indócil, que se
não possa reduzir ao redil de Cristo, se os Nossos,
aprendendo a sua língua, quiserem tentar a sua conversão.
A messe parece madura para colher o evangelho".(1)
Esse não é um registro especialmente dos rodelas,
deles, infelizmente não nos ficou informação assim,
definitiva, sem margem a contestação. Diz respeito aos
paiaiás, mas, definido que se tratava de nações com laços
de parentesco e sólida relação de amizade, que adotavam os
mesmos princípios religiosos, não está longe de terem sido
os mesmos, os hábitos dos dois povos. E é, afinal, uma nota
simpática ao índio, quando há tantas negativas: essa gente
não parece tão bárbara e indócil, que se não possa reduzir
ao redil de Cristo, mas estabelece a condição: se os nossos,
aprendendo a sua língua, quiserem tentar a sua conversão.
Isso é certo para os rodelas, gente pacífica, amiga e aliada
dos portugueses que recebia bem a catequese.
A partir de 1671, iniciou-se a catequese dos índios
rodelas. Nosso indígena, pacífico por natureza, amigo do
colonizador, com o qual participara da guerra contra os
holandeses em 1639 e com ele convivia desde 1646 ou
pouco antes, acolheu bem o primeiro missionário, depois
dele os seguintes. E aglomerados que já viviam em suas
aldeias, a partir destas o padre os reunia para ensinar a lei
de Cristo e os costumes civilizados, as regras de vida em
sociedade, zelando mais especificamente sobre a educação
das crianças. Haveria de realizar, nesse mister, o
aprendizado da língua do nativo, para bem entendê-lo e
certamente ensinar o português. Martinho de Nantes, que se
iniciou com os cariris de Aracapá em 1672, registra que
cuidou inicialmente - antes do catecismo portanto -, em
organizá-los em sociedade civil. Devia ser pouco
proveitosa a catequese nestes primeiros tempos. Os padres
ensinavam rudimentos da lei cristã e rudimentos de vida em
sociedade organizada ao modo europeu. Os soldados, que
já estavam presentes antes dos padres, ensinavam as leis da
guerra, essa mais fácil de intuir, porque todos os povos
guerreiam e disso resulta que cada um quer saber mais que
os outros. Mas, aqui, havia uma particularidade: o
conquistador queria os índios mansos bem aprendidos nas
artes da guerra, para, ao seu lado, matar outros índios, os
que não se sujeitavam a entregar pacificamente as suas
terras e subjugar-se ao cativeiro ou pelo menos à vida
pacífica, por eles comandada, na aldeia. Os choques
começariam cedo, entre o padre e o colonizador e cedo o
índio estava sendo compulsoriamente usado na guerra
fraticida. É matéria para outro capítulo.
Há quem entenda que os rodelas eram um ramo da
grande nação cariri, cuja língua se aproximava da sua,
sendo esta como um dialeto daquela. Outros querem que
fossem parentes, entrelaçados por casamentos, vivendo as
mesmas terras ilhôas, beradeiras ou próximas à ribeira do
São Francisco e seus afluentes. Eram gês, se diz
igualmente, e traziam o nome original de procás,
constituindo-se em nação distinta. Outras nações próximas,
aparentadas, existiam - e por nação entendiam-se, então, os
povos indígenas que formavam um grupo lingüístico
distinto. A dificuldade está no fato de que havia muitos
dialetos, semelhantes uns aos outros, provindos talvez da
mesma raiz, da mesma língua-máter, assim como somos
originários da língua latina, da qual derivam tantos outros
idiomas. Para exemplificar, Serafim Leite, menciona língua
ainda mais difícil, referindo-se aos acarás o que deixa a
entender que eram diferentes o falar destes e o dos rodelas,
ainda que integrantes da mesma missão. O assunto empolga
e dá margem à divagação. As pessoas nascem e crescem,
casam-se, multiplicam-se, mudam de lugar e, não são
muitas, entre as civilizadas, as que sabem o nome dos
bisavós, algumas o sabem de tradição, sem um documento.
Quanto mais entre gente no estágio cultural do nosso
indígena.
Os índios do sertão nordeste eram chamados de
tapuias, para diferenciá-los da gente do litoral, que era tupi,
sendo os povos interioranos inimigos dos litorâneos. A
deduzir-se da notícia dos muitos autores que trabalharam
sem estudo do conjunto, na base da observação de grupos
isolados, pouco profunda, os tapuias não formavam uma
etnia, não tinham uma língua comum, não eram um povo,
senão muitos. Só os costumes de gente da selva, se
aproximavam e estes, sendo semelhantes aos do tupi, não
estavam longe também dos costumes da gente guarani. A
distância era grande e espessa a selva, a comunicação dava-
se através das caminhadas a pé ou por via de canoas
rústicas que não podiam ir a jornadas consideráveis.
Prevaleciam, sem dúvida as caminhadas. Curiosos e
aventureiros existem em todos os povos, devem ter existido
em todos os tempos. Mesmo o tupi e o tapuia, podiam
aparentar-se - as pessoas se multiplicam, não é demais
repetir - e, dito que eram povos inimigos, podiam dialogar e
conviver em determinado momento, sob certa condição e
em seguida romper e guerrear-se. A pessoa humana é isso,
nunca foi mais, não será menos.
Com o nome de rodelas, era indicado um grupo de
índios distinto dos cariris, que viviam na beira rio São
Francisco dos dois lados, nas margens de seus afluentes e
nas ilhas, numa área limitada entre Sorobabé e Pambu, na
Bahia, Pajeú e Cabrobó em Pernambuco, já se disse,
isoladamente ou em convivência com outras tribos, além
de, segundo alguns autores, apontar em pequenos
agrupamentos localizados numa vasta região a que se deu o
nome de Sertão de Rodelas.
"Entre os indígenas localizados nas ilhas ou às
margens do S. Francisco ou espalhados pelo sertão
nordestino, o grupo mais importante era o dos cariris. A
eles se juntaram outras tribos gês, como os procás,
chamados também rodelas", esta é uma definição de Pietro
Vittorino Regni.(2)
"Já em 1639, escreve Serafim Leite, se falava num
Índio Rodela, amigo dos portugueses e que, com os seus
índios, matara 80 holandeses, segundo a informação dada
na Bahia por dois soldados que tinham ido de Alagoas e
Rio de S. Francisco: - O inimigo já desamparou as alagoas
e o Rio de S. Francisco, segundo disseram dois soldados
que tinham vindo de lá, procedido de um índio principal
que chamam Rodela, que tinha muito gentio naquele rio,
que lhe matara 80 holandeses dos que ali estavam,
favorecendo um português que se lhe acolheu para o
sertão".(3)
Barbosa Lima Sobrinho também informa que "a
primeira notícia dessas aldeias apareceu na fase da guerra
com os holandeses, com a presença do índio Rodela,
mencionado nas crônicas da época. Felipe Camarão o
trouxera da região encachoeirada do médio S. Francisco
com duzentos tapuias de "monstruosa corporatura, na
linguagem de frei Giuseppe de S. Teresa".(4)
Essa mesma notícia, é assim descrita por Nelson
Barbalho: "em 31 de julho de 1639, D. Francisco
Mascarenhas, Conde da Torre, já instalado na Bahia, com
sua esquadra vinda da Europa para atacar Pernambuco e
tentar arrasar em definitivo o Brasil-Holandês, resolvendo
tática diferente, em combinação com o governador-geral,
manda que Felipe Camarão marche por terra, com seus
índios, a fim de, atravessando o rio São Francisco, penetrar
no SERTÃO DE RODELAS e, na aldeia indígena ali
existente, procurar entendimento com seu chefe, o Índio
Rodela, convocando mais guerreiros para a luta e
requisitando-lhes bastimentos, depois do que, devidamente
preparado, desça dos sertões pernambucanos e invada a
Mata do Litoral...".(5) Não precisou passar o rio para
encontrar a aldeia e o seu cacique, que mais tarde seria
glorificado com o nome de Índio Rodela. A aldeia, de nome
original Curumbabá, que no futuro seria denominada aldeia
do Rodela em homenagem ao seu herói, estava do lado
baiano. E aí o cacique, que certamente já usava a rodela,
mas não tinha ainda esse nome. Batista Siqueira, menciona,
com apoio em Vasconcelos (pag. 78 de Os Cariris do
Nordeste), a existência de um outro guerreiro célebre, de
nome Cerobabé, sem dúvida, o cacique da aldeia do
Sorobabé, não ficando, no entanto, a informação de que
participasse na luta contra os holandeses. É possível que
sim, considerando que era gente da mesma nação procás.
A cerca da monstruosa corporatura encontrada nos
índios rodelas por fr. Giuseppe de S. Teresa, mencionada
em Barbosa Lima Sobrinho, é oportuno transcrever o
trecho a seguir: "Este povo tapuia é robusto e de grande
estatura; os seus ossos são grandes e fortes e a cabeça é
grande e espessa; sua cor natural é atrigueirada, o cabelo é
preto e, de ordinário, o trazem pendente sobre o pescoço,
mas por diante, até acima das orelhas, cortam-no
igualmente, o que faz parecer que trazem um boné sobre a
cabeça. Contudo alguns deixam cortar todo o cabelo no
modo da nossa nação. Têm o cabelo muito grosso e áspero.
Não usam barba, nem trazem cabelos em alguma parte do
corpo. O cabelo do rei é cortado na cabeça como uma coroa
e, em ambos os polegares ele traz as unhas compridas, o
que, fora dele, ninguém mais pode trazer. As mulheres são
indiscutivelmente pequenas e mais baixas de estatura do
que os homens. São também de cor atrigueirada, mas,
bonitas de cara. Em geral eles atingem a uma idade mui
avançada; alguns contam 150, 160 e 200 anos".(6)
O "não usam barba", parece significar que sua barba
é tão rala, que parece quase nenhuma; ainda hoje é assim
entre nós com os caboclos de sangue predominantemente
nativo - quase não têm barba e são escassos de pelos no
corpo. São corpulentos, fortes, não altos. Só não
corresponde à realidade atual até onde a conheço, "o cabelo
muito grosso e áspero". Ao contrário disso, os nossos
descendentes de nativos têm o cabelo muito fino, sedoso e
pretíssimo, levando-os sem cãs pela idade afora. Há uma
observação que parece valiosa: se o rei, para distinguir-se,
mantém grande a unha dos polegares, querendo isso indicar
o símbolo do poder, então, o costume, entre os paiaiazes, de
as mulheres arrancarem a unha dos polegares quando se
casam, indicará submissão. E o cabelo do rei em forma de
coroa? Não seria, por acaso, o distintivo, que deu origem ao
nome de Índio Rodela, ao cacique? Estamos à frente de
uma crônica da época, que trata especialmente sobre os
Cariris, muito próximos dos rodelas: O cabelo do rei é
cortado na cabeça como uma coroa". Um cabelo assim em
coroa, dá a idéia de uma rodela. É certo que nada ficou
escrito sobre isto exatamente. A sugestão vale como
estímulo à pesquisa - divagar é próprio dos que têm
imaginação.
Outro destaque digno de nota é o de que, com a
participação desses índios na luta contra o invasor
holandês, conheceu-se que se tratava de guerreiros valentes
e homens de desenvolvida corporatura. Foi uma revelação.
O Cacique Rodela e seus índios, houveram-se com
tamanho brilho guerreiro, que seu nome se fez conhecido
nos rincões nordestinos. Na descoberta de suas terras anos
depois pelo coronel Garcia D'Ávila II, que possivelmente
conhecia seu nome e suas façanhas nas lutas de que, na
segunda fase ele próprio participara ativamente, e poderia
até conhecê-lo em pessoa, firmou-se o nome rodelas para
os grupos ribeirinhos da nação procás, que era a dele e
cujos guerreiros estiveram na luta ao seu lado. Quando os
referidos índios, já aí conhecidos com o nome do chefe
guerreiro, vieram, posteriormente, a participar das guerras
contra os seus irmãos do Piauí e mais tarde contra os do
Salitre, eram célebres, carregavam-se da auréola de heróis,
e o cacique, então batizado, tinha o nome de Francisco
Rodela, e recebera, portuguesa e desnecessariamente, um
título de Capitão de Índios. Revelaram-se amigos dos
portugueses e foram sempre seus aliados desde o
enfrentamento da invasão holandesa, assim continuando até
o fim.
Não obstante isso, houve quem sustentasse, até
missionários, mesmo os capuchinhos franceses, que os
índios tapuias do São Francisco, eram animais, não gente,
sendo impossível catequizá-los. Animais esses, que
vivendo a seu lado e sob sua dependência, foram seus
soldados não remunerados - para isso animais não eram.
"A atitude de desprezo ao índio no estado natural
continuou a caracterizar a catequese nos séculos seguintes e
foi esta uma das razões que tornaram pouco frutuosa a obra
missionária neste setor", registra Pietro Vittorino Regni.(7)
A observação é verdadeira. Martinho de Nantes, um dos
melhores, teve esse procedimento, que deixou escrito:
"como os encontrei mais animais que homens na sua
maneira de viver, apliquei-me, primeiramente, a formar
pouco a pouco uma vida racional e civil".(8) Formariam
mais que uma vida racional e civil, uma vida militarizada,
preparando-os para matar seus irmãos. Isso, se não era feito
pelos padres pessoalmente, era-o pela gente do governo sob
suas vistas e com a sua bênção. No desejo sadio de fazer
cristãos os índios, de evitar-lhes o pior, os missionários
cometeram muitas vezes o pecado do consentimento ou do
silêncio.
Estêvão Pinto(9) "refere que um jesuíta irlandês, um
certo Pe. Ricardo Flechno, visitador de sua Ordem no
Brasil no século XVII, considerava os índios como
jumentos doentes e fleugmáticos, úteis somente para o
trabalho; nascidos para a escravidão, por isso, dizia o tal
visitador, a natureza não dotou este país com outros
animais de carga afora os próprios índios. D. Pedro
Fernandes Sardinha, primeiro Bispo do Brasil, achava que
nossos índios não pertenciam ao gênero humano e que não
eram capazes de assimilar a doutrina cristã e por isso não se
considerava bispo daquela raça e se opunha a sua
catequese, feita por jesuítas".(10) Que mentalidade a desses
homens de Deus! Se assim pensavam frades e bispos, só
poderia era ser natural a autorização para matar e
escravizar. E por aí começavam as chamadas "guerras
justas". Mas, pobre do D. Sardinha! - parecia que
adivinhava a própria sorte, comeram-no os índios caetés
das Alagoas. Este, foi um raro português, vítima dos
hábitos antropófagos, que felizmente eram de poucas
tribos, seguramente não as da nação Rodelas. Mas os
índios, estes sim, foram trucidados, por força da
mentalidade do "colonizador", recheada de intransigência e
egoísmo, de delírio pela posse - cobiça, do lado dos
exploradores; de fanatismo do lado dos missionários, desde
os jesuítas aos capuchinhos, quer os franceses, quer os
italianos, que não obstante os reais serviços prestados ao
indígena, eram obscurecidos pelos velhos hábitos do
castigo necessário ao convencimento ou à salvação. Estava-
se em uma época em que a tônica eram os excessos
religiosos. Sem dúvida, os padres tinham o aprendizado
papal da inquisição e da salvação da alma pela fogueira na
face da terra, que a livraria da outra, nas profundezas do
inferno.
Fr. Bernardo de Nantes, capuchinho, que relevantes
serviços prestou às missões, por exemplo, traça, em sua
Relation e o Katecismo Índio, um quadro de vida que os
coloca na condição de animais, carecendo sair desse
estado.(11) As convicções da época inibiram o padre, isto
sim, impedindo-o de pensar em termos de diferença
cultural e costumes diversos, hábitos totalmente
incompatíveis com os da Europa.
O que é de pasmar, é que essa mentalidade
quinhentista passou pelos dias e séculos sem modificar-se
ou quase sem modificar-se. Por bem três séculos
prevaleceu, o preconceito: - índio e negro eram bichos, não
gente. O negro, porque veio escravizado e não tinha
alternativa, subjugava-se, ressalvados uns poucos que iam-
se fazendo em quilombos. O índio, dono da terra,
conhecedor dos seus campos, unidos em tribos, ia à guerra.
Foi arrasado.
O grande Apolônio Todi, apóstolo do sertão, tão
presente aos índios, tão cuidadoso com eles, construindo e
reconstruindo igrejas e capelas, escrevendo em 1808 ao
historiador Baltazar da Silva Lisboa, teve esta expressão:
"parece-me que V. S. não duvidará do meu dizer, tendo
visto mais ou menos que cousa são os índios, que são gente
de nenhum préstimo, por serem falsos, preguiçosos,
vingativos e luxuriosos ao último excesso. E por esse
motivo a gente índia não se pode atrair com o céu, porque a
fé deles não é firme; não se pode atrair com as riquezas,
porque não fazem caso nenhum dos bens do mundo; nem
com os pontos de honra, porque são sem vergonha. Enfim,
são bichos, que só com medo se alcança alguma coisa
deles". Era uma sentença. Em 1808, três séculos depois do
descobrimento, quando os índios, se tivessem sido tratados
como gente desde o início e se não fossem segregados os
que se salvavam da morte nas "guerras justas", nem
escravizados pelas suas mulheres e crianças, uma vez que
os guerreiros não se deixavam escravizar, já deviam estar
plenamente colonizados e integrados à sociedade, era uma
sentença condenatória: - são bichos que só com medo se
alcança alguma cousa deles.(12) Injusto julgamento,
marcado de incompreensão e intolerância, de desprezo,
chega até a parecer que de cansaço e má vontade. Mais
parecem palavras de um senhor de escravos, que de um
padre missionário. Há de perguntar-se: que fazia o padre,
melhor - que fez, durante tantos anos, ao lado desses
"bichos que só com medo se alcança alguma cousa deles"?
Servia a Deus castigando-se na dura convivência?
Eu disse integração à sociedade... Ah!, mas que
sociedade havia nos sertões desses primeiros tempos, onde
pontilhavam os aventureiros, e certamente eram presentes
os criminosos de toda espécie? "Desvanecidos os terrores
da viagem ao sertão, alguns homens resolutos levaram as
famílias para as fazendas, temporária ou definitivamente, e
as condições de vida melhoravam", registra Donald
Pierson, transcrevendo Capistrano de Abreu.(13) Não
seriam muitos os dispostos a constituir-se em sociedade
nesse mundo rústico e embrutecido.
Se os índios eram bichos, não gente, como diziam
todos, os padres, levando em conta o que entendiam como
licenciosidade - a prática do sexo sem que os casais se
escondessem de vistas estranhas e os homens se descem à
bigamia -, acrescentavam que eles não tinham nenhum
pudor e eram dados, além disso, costumeiramente à
feitiçaria.
Capistrano de Abreu, em Capítulos da História
Colonial, página 162/163, transcreve de Loureto de Couto,
esta apreciação: "No nosso reino de Portugal entre Colérico
e Trancoso habitavam povos brutos como animais
indômitos, tão rudos que uma família não entendia a língua
de outra com menos de duas léguas de distância, pelo que
eram julgados pelos povos confinantes como bestas, mais
feras que animais". Eram antropófagos os nossos índios?
Pois veja esta outra transcrição de Loureto, em Capistrano,
seguindo-se à anterior: "Nem nos deve admirar a
barbaridade destes povos, quando sabemos que dos
descendentes de Tubal e de outras nações políticas com que
se povoou Portugal se reduziram muitos dos seus
descendentes a tanta brutalidade que matavam e comiam
aos que dos povos vizinhos apanhavam ou em guerra ou em
ciladas". E ninguém se lembrou dessas coisas ao taxar o
índio brasileiro de animal sem rei, nem lei, nem Deus.
Havia contradição, muitas vezes, entre uns e outros
dizeres. Embora o lamentável conceito acima referido, fr.
Bernardo de Nantes não pôde negar a existência, entre os
cariris, da idéia de Deus, quando, conforme registra
Vittorino Regni, escreve em sua Relation, que estes
reconheciam um Poder Trinário, concebido na
personificação divina de: "Badzé que mora no céu; Politã
que, em língua cariri significa jovem, e Vanaguidze, assim
chamado pela veste que usa, feita com penas de pássaro".
Isso não anda longe da trindade cristã e nos inspira a
pensar em Badzé como o Deus Supremo, Politã, o jovem,
como Cristo, sendo Vanaguidze, assim vestido de penas,
como a pomba do Espírito Santo. E mais próximo é este
outro conceito do Poder Superior em três personalidades:
"A primeira é Ipadzu que quer dizer pai; a segunda Inhurá
que significa filho, a terceira, Ivichoe que equivale a
companheira das duas primeiras". Frei Bernardo refere,
conforme o sobredito historiador, "que numa tribo
denominada chumimi, havia uma percepção bem clara da
missão do filho. Criam aqueles índios que o pai tinha dois
filhos: o mais jovem se desentendeu com o mais velho. Por
isso, foi lançado na terra. Muito tempo depois, o filho mais
velho desceu do céu para procurá-lo. Mas foi tratado
barbaramente pelos descendentes de seu irmão e, por fim,
foi pregado numa árvore, onde morreu atormentado pela
sede. Após a morte apareceu aos índios ora aqui, ora ali e
finalmente o viram subir ao céu de cima de uma serra,
subtraindo-se, assim, definitivamente dos homens".(14)
Está muito próxima, essa lenda, da história do Cristo,
cuja Lei os padres buscavam transmitir aos índios. Tão
próxima que inspira a idéia de que daí derivasse. E era
possível. Estava-se a cento e sessenta anos da descoberta,
quando fr. Bernardo de Nantes se iniciou entre os cariris de
Aracapá e andava a região beradeira próxima, acima e a
baixo da ilha. A doutrina poderia perfeitamente ter
chegado, embora deturpada e em forma de lenda, antes do
missionário. Tanto mais que os rodelas, vizinhos dos
cariris, quem sabe, até seus parentes, já tinham estado ao
lado dos portugueses nas lutas contra os holandeses e um
pouco depois via-se um padre - o famoso Padre Pereira, da
Casa da Torre - presente ao descobrimento das aldeias dos
rodelas, cuja influência dificilmente deixaria de chegar a
Aracapá e Pambu. Por diabo que fosse esse padre Pereira,
rezava missas, ensinava traços de religião, até porque era
interesse seu - amansar os índios por via do temor e
adoração a um deus mais poderoso que ele próprio e os
seus sobrinhos.
Já Martinho de Nantes ainda que fale, também, na
ignorância dos cariris, os quais lhe pareceram inicialmente
"sem lei nem rei", chegando a escrever que os castigava,
para impor a obediência, retrata-os em termos positivos:
"São muito dedicados às suas cerimônias pagãs e às suas
tradições, que os favorecem, com a sua sensualidade, as
suas festas constituindo em danças, em festins à sua
maneira, verdadeiramente lascivas". E acrescenta: "Os
índios são criaturas racionais, filhos de Deus como nós
mesmos, conquanto muito ignorantes. Jesus Cristo morreu
para a salvação deles como para a nossa salvação. Não é
impossível convertê-los se dedicarmos a esse objetivo os
meios necessários".(15)
Não obstante um ou outro entendimento dessa
natureza, em virtude de apreciações e informações
preconceituosas por uns, maliciosas por outros, generalizou-
se, a idéia de que o nosso índio não tinha religião, nem
Deus, nem lei. Uns olhavam mal ou eram escassos de
inteligência bastante a ver à frente da absoluta diferença de
ambiente e de costumes, outros presos demais ao seu
padrão moral, às suas convicções religiosas, aos seus
princípios de educação européia e ao seu fanatismo, não
raciocinavam em termos de cultura diversa, de sociedade
fundada em valores diferentes, outros ainda, e sobretudo
estes, desejavam escravizar o índio, e para serem
autorizados a isso pelo governo, precisavam pintá-lo como
um animal feroz, um destruidor de brancos, um come-
carne-humana. As exceções foram raras.
Martinho de Nantes, em sua Relação, anota que os
cariris "tinham um deus para as culturas que a terra
produzia; outro para a caça; outro para os rios e as
pescarias, e a todos esses deixava tempo para as festas em
sua honra, e manifestavam sua adoração com alguns
sacrifícios, que incluíam as mesmas coisas que recebiam,
por meio de cerimônias pouco diferentes, constituídas de
danças, pintura no corpo, festins quase sempre impudicos,
praticando o adultério, a que não davam nenhuma
importância".(16)
E isto, sem qualquer dúvida, eram sinais de religião.
Tinham Deus e lhe faziam rogos, ou orações como nós o
fazemos, para que lhes proporcionasse coisas materiais - a
abundância do fruto, da caça e da pesca. Ofereciam-lhe
sacrifícios, "alguns sacrifícios", diz o escrito, e o
homenageavam com festas do mesmo modo que ainda hoje
o fazemos. Bom observar que os sacrifícios do homem a
Deus, foram, milenarmente e em todos os povos uma
manifestação religiosa, aí está o Antigo Testamento para
confirmá-lo. Bom lembrar, porque falamos de divindades,
que os deuses do Egito se desencontravam inteiramente do
Deus Uno dos israelitas, e ainda, que até o Bezerro de Ouro
foi deus dos judeus por algum tempo, enquanto Moisés se
ausentava para conversar com o Deus Supremo no Monte
do Sinai. Bom advertir que ainda agora, temos e realizamos
festas com manifestações pagãs para honrar os nossos
santos e aí vivem, e com muita força, no seio do povo que
não dispõe de diversões sofisticadas e luxuosas e não
menos impudicas que as do índio cariri, se é que se pode
falar de pudicícia nos nossos dias - aí vivem, dizia, as festas
populares de São João e São Pedro, dos Santos Cosme e
Damião, tantas, tantas. Nem seria de esquecer que no
alvorecer do século XXI, as religiões roem-se as entranhas:
judeus e muçulmanos matam-se impiedosamente e até a
Igreja Cristã tem uma diversidade sem conta de ramos
divergentes em guerra de tribuna e catequese.
Quem se atreverá a negar os deuses africanos, os
orixás sempre vivos e redivivos, renovados nas
manifestações cultural-religiosas afro-brasileiras? Aqui,
ficou o descendente para segurar a memória e ainda lhe
sobram as raízes na própria África. Do índio nada restou,
nem entre os rodelas e cariris, nem em nenhuma parte do
Brasil - ressalve-se a Amazônia -, porque ele foi dizimado,
não se pense nem se diga - aculturação. Se algum escapou,
o rigor com que foi tratado, quer para o trabalho escravo,
quer para a própria catequese, matou-lhe as tradições.
O Relato de fr. Martinho fala dos acontecimentos de
sua aldeia de Aracapá, mas, ele adverte: "Contudo, há
alguma coisa que se relaciona com a missão de padre
Francisco de Domfront em Rodelas e com o padre
Anastácio d'Audierne capuchinho, entre os aramurus do
mesmo rio S. Francisco". De sua informação, de que o
cariri praticava o adultério, a que não dava a menor
importância, disso pode-se bem dizer que o hábito, sem que
estivesse, então, longe dos costumes atuais no mundo
inteiro, havia de ser tomado como uma manifestação
cultural própria. Dormiam famílias inteiras, filhos, pais,
parentes, sabe-se lá quem mais, em uma mesma maloca
edificada para comportar 200 pessoas e sem olharem a
presença uns dos outros, sem pensarem nela, praticavam o
ato sexual com naturalidade.
Em meio ao quase unânime escandalizar-se dos
padres, houve um que entendeu os hábitos e a cultura dos
cariris, e o disse em seu Relatório de Missão. Foi o padre
Francisco de Lucé.
"Já vimos, diz o historiador Vittorino Regni, como o
relato de Fr. Francisco de Lucé constitui uma louvável
exceção com relação à atitude geral de desvalorização e de
menosprezo dos valores étnicos e culturais dos indígenas.
Vale a pena referirmos aqui um dos aspectos mais
significativos da sociedade tribal, posto em evidência pelo
missionário capuchinho. Trata-se do tipo de morada em uso
entre os índios da bacia do S. Francisco: a maloca. Era
formada de um grande galpão à maneira de meda, medindo,
geralmente, quarenta metros de comprimento por vinte de
largura, cujas estruturas de suporte eram feitas por uma
sólida contextura de varas, cobertas por uma camada
compacta de palhas de buriti".
"Conforme o testemunho de fr. Francisco, na maloca
podiam caber 200 pessoas. Geralmente era bem
estruturada; a cobertura em forma de carena, era
impermeável mesmo aos aguaceiros mais pesados. O
pavimento, de chão batido, era enxuto e bem limpo. Na
penumbra do vasto ambiente se gozava de uma temperatura
amena. Não havia divisões, nem andares, nem janelas, nem
chaminé. A fumaça do fogo aceso no centro da maloca
subia e, filtrando pelas brechas da palha, dissipava-se no ar.
Para o índio, a maloca servia de cozinha, sala de janta,
quarto de dormir, lugar de trabalho e de reuniões no tempo
das chuvas e de dança nas festas tribais".(17)
A tradicional habitação em malocas, representava,
evidentemente, um sistema de segurança contra eventuais
investidas de outras tribos - e vamos repetir que, ao que se
entende da História, os índios brasileiros guerream-se
muito entre nações diversas. De tão condenadas pelos
missionários, combatidas, impedidas, as malocas
desapareceram a curto prazo na era da catequese. As
aldeias indígenas passaram a ser organizadas em palhoças
ou casas de taipa, familiares, construídas coladas umas às
outras, no mesmo sentido de oferecer maior segurança
contra a invasão dos índios não aldeados, que os
colonizadores e mesmo os missionários, chamavam de
bárbaros ou brabos ou corsos. Eis como situa Batista
Siqueira a aldeia dos capuchinhos, reproduzindo notícia das
crônicas missionárias de São José do Mipibu: "Feita à
maneira de praça de armas, com todas as casas ligadas
entre si à semelhança de um quartel de soldados, numa
planície bastante extensa, com casas para oficiais, nos
cantos da aldeia, mais altas que as demais, com duas portas
uma em frente à outra, para entrada e saída. Há uma igreja
regularmente grande, com todas as alfaias necessárias ao
cerimonial. Alojam-se os índios, escolhe-se o capitão-mor.
Seguem-se as patentes inferiores. Nessa aldeia havia duas
companhias, cada uma com 140 homens, os quais faziam
muito bem os exercícios militares. Outras, que têm mais
semelhança de comunidade humana, continua o autor
transcrevendo as crônicas mencionadas, formam cabanas,
ou barracas compridas, desde o princípio até o cabo, sem
repartimento algum".(18)
As características das aldeias, não diferem entre os
índios da Paraíba e os do São Francisco, entre os cariris e
os rodelas ou paiaiás. Esse tipo de aldeia militarizada era
praticamente o mesmo em todo o Nordeste, fossem as
aldeias administradas pelos capuchinhos ou pelos jesuítas,
por outra ordem religiosa. Outra coisa que parece certa, é a
convivência em harmonia entre os cariris e os rodelas, que
guardavam a paz entre si. Os rodelas, segundo notícia
colhida em Batista Siqueira, eram parentes dos paiaiás. Há
notícias de que os paiaiás, os rodelas e os gurgueias
falavam um dialeto aproximado do cariri. Salvo alguma
eventual escaramuça entre tribos e a infeliz obrigação
imposta aos índios da catequese de acompanhar a guerra de
extermínio aos seus irmãos, essas nações viviam em paz.
Creio que havia razões para o entendimento e a paz - a
familiaridade: primeiro, habitavam as mesmas terras e se
casavam entre tribos diversas; segundo, a proximidade da
língua: conversando as pessoas se entendem, qualquer que
seja o seu estágio sócio-cultural, e os índios, logo ao serem
descobertos, mostraram-se pessoas lúcidas e cordatas. Não
fossem os maus tratos, a extorsão dos seus bens e terras, a
sevícia, a prática de prostituição de suas mulheres, a
violência de toda ordem, a colonização ter-se-ia feito em
paz e nossa raça, hoje, seria outra, bem diferente, caldeada
do sangue indígena.
Quanto ao conceito de governo entre os índios, há
alguma coisa no registro histórico que contrasta e se
contradiz, para deixar dúvidas no espírito do leitor. Veja-se
este trecho de Martinho de Nantes:
"As mulheres costumavam dominar seus maridos, os
filhos não respeitavam pai e mãe e nunca eram castigados.
Conquanto tivessem em cada aldeia um capitão ou
governador, só existia autoridade em tempo de guerra.
Havia entre eles feiticeiros ou, para dizer melhor,
impostores que adivinhavam o que eles pensavam.
Prediziam coisas futuras, curavam doenças, quando não as
produziam. Podia-se acreditar que alguns deles tinham
entendimento com o Diabo, pois não usavam, como
remédio, para todos os males senão a fumaça do tabaco e
certas rezas, cantando toadas tão selvagens quanto eles,
sem pronunciar qualquer palavra".(19) Faltou o padre dizer
se esse "remédio" curava ou não.
A referência ao feiticeiro, é confirmada pelo
documento histórico. Os índios do Nordeste tinham e
reverenciavam os seus pajés, adivinhos ou feiticeiros -
bisamus era o nome usado pelos paiaiás, que prediziam os
acontecimentos do futuro, quer na guerra, quer na paz.
Recomendavam os dias e os locais bons para a caça e a
pesca, as luas para o início do plantio. E ao mesmo tempo
exercitavam a medicina, sendo chamados a curar as
doenças de seus crentes. Verdade ou mentira, isso
sugestionava, e a sugestão, ainda hoje é usada como
método de cura psicológica. Os índios acreditavam num
ente superior, qualquer coisa como um deus, e os pajés
eram os sacerdotes de seu credo. Ser adivinho era condição
indispensável para o exercício do poder. Na aldeia, em
tempos de paz, o bisamu detinha maior poder que o
cacique, que se reservava para a chefia na guerra. O próprio
cacique, ao reunir seus comandados para a ação guerreira
rendia homenagens ao bisamu, rogando-lhe a predição dos
sucessos. Eles queriam a boa predição. E como nega-la sem
acovardá-los? Releve-se a menção a "entendimento com o
diabo", isso era um conceito do tempo, a que o padre não
fugiu - também sua educação tinha limites rigorosos. O que
não dá para entender, é o governo da mulher sobre o
guerreiro, ao comparar a referência por exemplo com a
ação guerreira do capitão Francisco Rodela e seus
comandados, de tão alto conceito nas guerras, seja contra
os holandeses, seja contra os índios do Piauí e do Salitre,
como já se disse. E mesmo com a disposição guerreira do
indígena, no geral. Em que pese a anotação do autor, no
sentido de que havia um chefe, mas só o obedeciam nas
guerras, é difícil entender sua falta de liderança na paz, bem
assim a quebra do poder do pajé, e esse governo da mulher
sobre o homem. Há alguma coisa destoante. O informe,
como que aponta para o conceito de próprio arbítrio, que
parece muito amplo, e pode ser por aí, que se possa
justificar a ampla liberdade, mas não o desgoverno. Cada
qual agia por si e defendia sua vida, o homem, a mulher e
mesmo a criança em idade de entendimento, o que indica
um salutar princípio de liberdade. Que a criança era solta,
livre, à vontade, é verdadeiro. Quanta vez ouvi, na infância,
a expressão: "criado como Deus cria batata", para indicar a
criança cujos pais davam pouco cuidado à sua educação -
os meninos indígenas, seriam assim, criados como Deus
cria batata, aprendiam com a natureza. O índio era livre nas
selvas, dono de si e de seus atos. Colhia cada qual seu fruto
e se alimentava, pescava ou buscava a caça na medida de
suas forças. Isso poderia significar que na auto-suficiência,
tinha-se ampla liberdade. Até aí, muito bem, mas
desgoverno, não, desgoverno não condiz com vida em
comunidade. Quando era a hora da guerra, precisavam
disciplinar-se sob o comando de um chefe, que assumia o
encargo da frente de combate, e então a disciplina e a
obediência se faziam mais rígidas, isso também se entende.
Aí reduzia-se a liberdade. O que parece fora de dúvida, é
que em tempos de paz a autoridade do pajé ou bisamu ou
feiticeiro, que nome se dê ao chefe religioso, era maior que
a do cacique. Entre os civilizados desse tempo, reis e
imperadores obedeciam à autoridade do papa, o poder civil
em geral curvava-se ao poder religioso. Até hoje se vê
coisa parecida.
Ainda acerca dos feiticeiros, foi regra geral nos
escritores indianistas anotarem a presença do sacerdote da
tribo na pessoa do pajé, que era ao mesmo tempo médico.
A este, por certo quis referir-se o padre Nantes. Por outro
lado, a dúvida, a indagação, o temor do desconhecido e a
busca de soluções por via do ocultismo, do sobrenatural, do
superior ao conhecimento humano, vêm com as pessoas
através dos tempos, não diria desde que o mundo é mundo,
mas, pelo menos desde que o mundo tem história. E aqui
está, ainda agora, com o homem da era moderna, da ciência
e tecnologia. Deus, quem é? - pergunta-se. Está
representado efetivamente em que religião, quando há
tantas? Quantas das que se dizem religião são seitas e qual
é a verdadeira?
Em religião, tanto quanto em costumes, a informação
que se tem é de que o padrão era o mesmo e, na área são-
franciscana, pouco se modificava de nação para nação.
Vale anotar que há autores que negam, de modo absoluto,
tomo essa informação a Vittorino Regni, a existência de
religião entre os índios brasileiros. Um desses é o
historiador João Ribeiro, segundo quem, "o temor da
superstição que existia no povo indígena, como também a
sua intuição de forças superiores não se pode registrar
como religião".
Seguramente, a Coroa Portuguesa fazia do nosso
indígena melhor juízo, que os seus colonizadores e
catequistadores. Veja essa transcrição, de ato datado de 14
de abril de 1755: "Que os meus vassalos deste reino e da
América que casarem com as índias delas não ficam com
infâmia alguma, antes se farão dignos de minha real
atenção e que nas terras em que se estabelecerem serão
preferidos para aqueles lugares e ocupações, que couber na
graduação de suas pessoas, e que seus filhos e descendentes
serão hábeis e capazes de qualquer emprego, honra ou
dignidade, sem que necessitem de dispensa alguma".(20)

NOTAS
1 - Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil, vol. 1,
pag. 274, 275 e 276.
2 - Pietro Regni, Os Capuchinhos na Bahia, volume 1, página 133.
3 -Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil, página
293-rodapé, com apoio em Cadena, Relação Diária, 185.
4 - Barbosa Lima Sobrinho, tradução de Relação de Uma Missão no
Rio São Francisco 106, nota 6.
5 - Nelson Barbalho, Cronologia Pernambucana, 3º V. p. 72, to. 406.
6 - Batista Siqueira, Os Cariris do Nordeste, página 44, com apoio em
Elias Herckman, Descrição Geral da Capitania da Paraíba.
7 - Pietro Vittorino Regni, Os Capuchinhos na Bahia, vol 1, pag 120.
8 - Martinho de Nantes, Relação de Uma Missão no Rio São
Francisco, tradução de Barbosa Lima Sobrinho, página 8.
9 - Batista Siqueira, Os Indígenas do Nordeste, 176-177, com apoio
em E. Taunay, Visitantes do Brasil Colonial
10 - Vittorino Regni, Os Capuchinhos na Bahia, v 1, pag 118-rodapé.
11 - Vittorino Regni à página 169, vol. 1 da obra citada
12 - Pietro Regni - Os Capuchinhos na Bahia, vol 1, p. 120
13 - Donald Pierson, O Homem no Vale do São Francisco, T. I, p. 275
14 - Pietro Regni, Os Capuchinhos na Bahia, vol 1, pag 140.
15 - Martinho de Nantes, idem, idem, pag 43 e 99.
16 - idem, idem, página 4.
17 - Pietro Regni, Os Capuchinhos na Bahia, vol. 1, pag. 176/177.
18 - Batista Siqueira, Os Cariris do Nordeste, pag.. 47.
19 - Martinho de Nantes, idem, idem, pag. 4.
20 - Capistrano de Abreu, obra citada, pag.. 163, in Loureto de Couto.
IX - OS CAPUCHOS FRANCESES
As Missões entre Rodelas e Aracapá

A partir de quando fr. Francisco de Domfront está


presente na aldeia de Rodelas? Vittorino Regni estima-o
entre fim de 1671 e começo de 1672. Em 1672, pela
metade do ano, já se disse, fr. Martinho de Nantes
encontrou-o em Recife, onde cuidava de problemas
inerentes a sua missão. E só isso diz.
Aconteceu, conforme o registro do capuchinho
escritor, que a 30 de agosto de 1671 chegavam ao Brasil, de
Roma, via Lisboa, ele, Nantes, e seu irmão de hábito e
companheiro de estudos, fr. Anastácio d'Audierne.
Aportaram na Bahia e em seguida estavam em
Pernambuco, onde era então o Hospício. Destinavam-se ao
exercício da missão de catequese junto aos índios. Frei
Francisco de Domfront viera antes, em 1669.
Resolvidos os assuntos internos e tomadas as
posições, foram localizar-se, fr. Martinho de Nantes na
Paraíba, entre os cariris, a 70 léguas de Recife e fr.
Anastácio d'Audierne com os Aramurus, em Sergipe, vinte
e sete léguas acima da foz do rio São Francisco. O primeiro
chegava aos cariris, para auxiliar fr. Teodoro de Lucé, com
quem permaneceria por oito meses - "pouco depois das
festas de Todos os Santos", o que significa nos primeiros
dias de novembro. Frei Anastácio demorou-se algum tempo
no Recife, uma vez que só tinha seis meses na sua missão
de Aramurus quando ali passou fr. Martinho em metade de
1672.
Permanece a interrogação quanto a fr. Francisco de
Domfront com os rodelas. As escassas notícias que a ele se
referem, não dizem sobre a data de início de sua missão no
São Francisco. Teria sido na mesma oportunidade em que
veio fr. Anastácio, pelo ano de 1671? Sua vinda poderia ser
anterior à deste, até porque entrara no Brasil dois anos
antes dele e não se tem notícia do que fez e onde esteve
durante esse período. Por exemplo, o início dos trabalhos
de fr. Teodoro de Lucé entre os cariris da Paraíba se deu
em 1670, informa-o o próprio Martinho de Nantes. Há até
quem registre tempos bem anteriores para o início da
catequese no rio São Francisco, o que, para fr Regni,
mestre em assuntos de capuchinhos, é duvidoso. E se fr.
Francisco de Domfront, de quem se tem notícia da chegada
ao Brasil em 1669, mas, de sua presença em Rodelas só em
1671, aqui se iniciasse em seguida ao seu desembarque na
Colônia? Fica a pergunta a título de estímulo à pesquisa. O
início de sua missão em Rodelas está, documentado pela
Relação de Martinho de Nantes, em 1671.
"Certamente também fr. Francisco foi envolvido na
denúncia que, exatamente naquele período, foi levantada
contra os missionários franceses por João Fernandes Vieira,
o velho herói da libertação pernambucana",(1) registra
mestre Regni, de quem extraio, ainda, as informações a
seguir.
A denúncia, que não seria mais que uma suspeita,
informava à Corte que perambulavam por toda a província
de Pernambuco, alguns "frades capuchos barbados", como
missionários entre os índios, aos quais armavam contra os
portugueses. A acusação alcançava, em cheio, fr. Francisco
e seus irmãos missionários no São Francisco. Determinou-
se inquérito e recomendou-se a apreensão das armas. Não
se sabe o resultado do inquérito, mas é certo que todas as
dúvidas se desfizeram, porque o governador-geral Afonso
Furtado de Mendonça, grande amigo das missões,
aconselhou o governador da província pernambucana a não
tomar as armas que serviam para a segurança das aldeias
contra a invasão dos bárbaros. Ao contrário, ia adiante a
orientação, era preciso apoiar os missionários no serviço de
evangelização, que isso seria do agrado do rei.
Veja-se o registro do pesquisador, fr. Agatângelo do
Crato:
"1674 (setembro 09) - Carta do Governador Geral ao
Governador de Pernambuco aconselhando que ajudasse a
fr. Francisco de Domfront no seu apostolado, pois isto era
agradável ao Rei".(2) Fr. Francisco de Domfront continuou
sua missão entre os rodelas seguramente até 1677, quando a
ele se refere Martinho de Nantes, indicando-o como
vizinho, talvez até 1685, quando as suas aldeias passaram
aos jesuítas. É certo que só voltou a sua província entre
1686 e 1687 e não se têm notícias suas em outro lugar do
Brasil, como, igualmente, não há notícia de sua substituição
em Rodelas. Eis, sobre isto, o registro de mestre Regni:
"Com relação a atividade desenvolvida por fr. Francisco de
Domfront entre os rodelas, sabemos somente o que é
relatado por fr. Martinho de Nantes. Em 1677, ele se
achava certamente naquela missão. E é igualmente certo
que, pelo fim de 1686, não trabalhava mais aqui no Brasil.
Os documentos daquela época não falam de outros
capuchinhos franceses que o tenham substituído ali, por
isso, é lícito se supor que seus sucessores imediatos foram
os jesuítas, cuja atividade no sertão dos rodelas remonta a
1685, ao tempo da visita do padre João de Barros e de seu
confrade à missão francesa de Aracapá".(3)
"A escassez de documento, ainda informa, não nos
permite circunstanciar a origem das missões na bacia do
São Francisco nem o papel que desenvolveu ali fr.
Francisco de Domfront, que juntamente com fr. Anastácio
d'Audierne, iniciou o apostolado naquela região".(4)
Sua missão, ainda que possa ter começado em
Pernambuco, como antes se registrou, teve sede definitiva
na aldeia de Rodelas, terra firme da Bahia e alcançava, as
ilhas da vizinhança e a terra firme de Pernambuco na aldeia
de Jatinã, onde pode ter-se iniciado, aí demorando pouco.
As aldeias de Jatinã, terra firme de Pernambuco e Rodelas
ficavam quase vis à vis e entre elas estava a ilha de Jatinã,
onde havia outra aldeia. Mas, o rio, aí, era largo. Sem
dúvida a mudança da sede para a margem oposta, se é que
se iniciara em Pernambuco, facilitava ao padre o
atendimento aos seus índios, talvez aqui estivesse o maior
número deles. A área da missão era grande e certamente
trabalhosa. Para atender a tantos e em tantos lugares, o
padre precisaria viajar muito e mesmo assim as visitas
seriam relativamente espaçadas. Na fase dos jesuítas são
relacionadas como integrando a área da Missão de Rodelas,
as ilhas de Jatinã, Vacayuviri e Veri Pequeno, Araticu e
Pedra, que o governo destinara aos índios conjuntamente
com uma légua de terra em quadra, na margem baiana. É
possível que continuasse alcançando também a aldeia de
Jatinã, em terra firme à margem esquerda do rio. O vínculo
catequético dos primeiros tempos entre Jatinã e Rodelas,
mudar-se-ia em vínculo comercial e social tão forte e
duradouro, que em minha adolescência, pela década de 30,
convivi com os feirantes e dançadeiras de São Gonçalo que
de lá nos vinham, aqueles semanalmente, estas, de ano em
ano.
Por equívoco, Nelson Barbalho confunde Rodelas
com alguma ilha ou com a ilha do Sorobabé - quando
expressamente escreve: "diz-se ter sido Frei Anastácio
d'Audierne o primeiro missionário daquela ordem a
estabelecer-se ali, na ilha de Rodelas, quase em frente ao
Pajeú, trabalhando junto aos índios Aramurus. Pouco
depois, saindo do Recife e viajando pelo caminho do
Capibaribe até suas cabeceiras, daí descendo na direção do
S. Francisco, viria auxiliá-lo Frei François Domfront, e,
quando a missão já se sentia segura, passa a chefiá-la Frei
Boaventura de Becharel".(5)
Não existe ilha de rodelas, nunca existiu. Quase em
frente ao Pajeú estava a ilha do Sorobabé e os índios dessa
ilha eram os purus. Quanto ao frade capuchinho Francisco
de Domfront, já missionava na aldeia de Rodelas, quando
em 1672 veio Frei Martinho de Nantes, e, encontrando-se
no Recife em busca de auxílio para a sua aldeia, fizeram-se
companheiros de viagem. Sua missão, como antes se
registrou, tinha sede na aldeia de Rodelas, terra firme da
Bahia e alcançava, as ilhas da vizinhança. Fr. Anastácio de
Audierne, inicialmente localizado em Porto da Folha
(1671) entre os aramurus, deslocar-se-ia, cinco anos depois,
para a ilha do Pambu, onde passou a ser vizinho de
Martinho de Nantes, sendo o primeiro a estabelecer-se aí, e,
parece que esta é a razão do equívoco de Barbalho - na ilha
de Assunção, antiga Pambu, anotam os documentos de
Pernambuco, situava-se a freguesia de N. S. da Conceição
de Rodelas. Com os aramurus ficaria, com o afastamento
de fr. Anastácio, fr. Theodoro de Lucé, ido da Paraíba. A
dúvida quanto a fr. Francisco de Domfront é se ele veio
com fr. Anastácio em fins de 1671, princípio de 1672, e
neste caso, subindo São Francisco acima, não pelo
Capibaribe, ou se teria vindo logo ao pisar chão brasileiro
em 1669, 1670. Não há notícias sobre sua primeira viagem,
mas, apenas sobre aquela que fez em companhia de Nantes
até os aramurus de Sergipe, daí adiantando-se para espera-
lo dias depois em Rodelas.
Juntar-se-ia aos padres Martinho de Nantes e
Anastácio de Audierne, nas ilhas da região de
Pambu/Aracapá, o padre José Chateaugontier logo em
seguida à vinda de fr. Audierne em 1677. Isolado em
Rodelas, 22 léguas abaixo de Pambu, ficava fr. Francisco
de Domfront. Lá em baixo, a 60 léguas de Rodelas, mais
isolado ainda estava fr. Teodoro de Lucé. Por volta de 1685
o padre Francisco de Domfront era substituído em Rodelas
pelos jesuítas, em 1686 o padre Martinho de Nantes viria
para a Bahia, onde fundou o Convento da Piedade, sendo
substituído em sua missão são-franciscana por fr. Bernardo
de Nantes. Aos poucos foram-se indo embora do Brasil os
capuchinhos franceses, sem substituição, em razão de
dificuldades impostas pela Coroa Imperial. Na verdade
Portugal, embora reconhecendo os bons serviços de
evangelização prestados pelos missionários franceses,
temia sua presença na Colônia, preocupado que estivessem
a serviço de França, não da religião, ou tanto daquela,
quanto desta. Em 1702 ia-se o último, para não vir nenhum
nunca mais.
Ficou célebre a perseguição encetada pela Casa da
Torre a esses missionários e a sua resistência, a cargo
especialmente de Martinho de Nantes e Anastácio de
Audierne. Frei Francisco de Domfront jamais aparece como
participante das lutas contra o sesmeiro. Seria uma pessoa
acomodada, dedicar-se-ia apenas à catequese sem tentar a
defesa dos direitos humanos e a proteção física do indígena,
ou saberia conviver e não era hostilizado? De todo o modo,
parece ter sido uma figura apagada, da qual quase não se
fala. Impressiona a escassez de referências de Martinho de
Nantes ao seu irmão de hábito e de missão - que o
encontrou em Recife; que foi recebido por ele com muita
caridade; que era seu vizinho; - e mesmo o fato de não se
conhecer um relato, uma carta, nada, deixado por aquele
frade. Algum documento teria ficado e se perdeu. Tantos
anos entre os índios e nada dizer sobre eles nem sobre seu
trabalho evangélico?
Os franceses foram-se, mas a perseguição do
curraleiro-mor e seus rendeiros continuou, voltada agora
contra os sucessores na obra da Igreja, especialmente os
carmelitas e os jesuítas. Veremos a seu tempo. Ficou, além
do trabalho prestado e da luta em defesa do índio encetada
por Martinho de Nantes, a marca de um episódio negro, sua
presença pessoal na guerra contra os nativos. Veja-se a
notícia do chocante episódio, em que se envolvia toda uma
representação oficial da igreja - missionários de duas
ordens religiosas e um secular, ao lado do conquistador, na
chamada "guerra justa" aos índios:
"Pelo coronel Francisco Dias d'Ávila, a quem
pertenciam as terras do São Francisco, numa extensão de
trinta léguas para baixo e mais de cem para cima, recebi
ordem do governador da Bahia, em cumprimento da qual
fui obrigado a partir com os índios das quatro aldeias (em
rodapé indicam-se Rodelas, Pambu, Ibó e Aracapá), aos
quais se reuniram outras aldeias. Eu quis escusar-me,
porque com a minha ausência ficavam as aldeias sem
pastor. O Padre Anastácio não podia vir em todas as
ocasiões precisas, tão prontamente, para socorrê-los
espiritualmente, e nem tão pouco o Padre José. Mas os
índios que deviam seguir para a guerra protestaram dizendo
que lá não iriam sem mim, e alegaram razões justas. Diante
disso, parti com eles e todos os portugueses, formando 120
homens todos a cavalo.
"Em nossa companhia seguiram também o capelão
dos portugueses do rio e dois religiosos de São
Francisco. Marchamos contra o inimigo que se achava a
quarenta léguas de nós. Eles se tinham apossado de todos
os currais dos dois lados do rio, num espaço de trinta léguas
depois de terem massacrado os vaqueiros e os negros em
um número de 85, fazendo grande estrago no gado". As
aldeias das ilhas de Inhamuns, Coripós e Pontal, eram
administradas por franciscanos. De duas destas, deveriam
ter saído os religiosos que participaram da guerra ao lado
de Nantes
"Após alguns dias de viagem, descobrimos o
inimigo, quatro léguas distante do rio Salitre e perseguimo-
lo, em sangrentos combates, até às margens desse rio,
conseguimos desbaratá-lo, aprisionando cerca de 500, entre
homens, mulheres e crianças".(6)
Pobre inimigo! São decepcionantes a ida da igreja à
guerra de caça aos índios que tinha a nobre missão de
catequizar e a simplicidade com que o missionário trata-os
de inimigos, enfatizando que os perseguiu em sangrentos
combates. O capucho noticia expressamente a posse de
mais 130 léguas dos Ávilas no correr do rio (e noticia mal,
eram muito mais). As terras foram tomadas violentamente
aos índios, e estes, vivendo somente de sua acanhada
lavoura de vazante, peixe e caça, estavam desarvorados,
afundavam na caatinga e passavam fome. E passando fome,
restava-lhes a alternativa de caçar o boi metido no seu
pasto. Escarna um boi e vem represália, o vaqueiro
matando o índio. A essa represália sucede-se outra e vem a
cobrança em cima do vaqueiro! Depois é a revolta, a
violência, a guerra - "a guerra justa".
Terrível é a informação de que em sangrentos
combates conseguimos desbaratá-los, aprisionando cerca de
500. O padre, com o "conseguimos desbaratá-los", coloca-
se entre os combatentes e diz que prestou aos portugueses
assinalados serviços! - quando mais certo seria reconhecer
que laborou em um grande equívoco. Para atender à ordem
temporal, da qual, é certo, dependia a permanência da
catequese entre os selvícolas, participou da guerra contra os
índios selvagens com os seus índios mansos. Amargaria,
depois, fundas decepções e certamente se arrependeria.
Deixemos ainda a palavra ao padre, que é minudente
na informação. Descreve os combates e segue adiante:
"Receando serem dominados, os índios decidiram se
atirar ao rio de S. Francisco, que resguardava o seu flanco,
para o passarem a nado e, como o fizeram
precipitadamente, as flechas, que traziam nas costas, lhes
escaparam; de modo que eu tinha a impressão - e o escritor
se empolga para enumerar o prejuízo, em armas, do
inimigo - de que mais de mil flechas foram levadas pela
correnteza".
"Depois de cinco dias de descanso, atravessou-se o
rio, os portugueses (os portugueses e o francês) em
pequenas canoas que encontravam e os índios e cavalos a
nado. Acompanhamos as pegadas do inimigo - até parece
que o padre tinha mesmo inimigos, eis que a palavra se
repete amiúde no texto - que foi encontrado quase sem
armas e morto de fome. Renderam-se todos, sob condição
de que lhes poupassem a vida". A partir daí é a degola.
E, pasme a singeleza com que o padre se exime da
culpa: "Por minha felicidade, escreve, não assisti a essa
carnificina; não teria suportado, por injusta e cruel, depois
de se haver dado a palavra de que lhes seria poupada a
vida" - e já estamos na terceira página do relatório de
guerra de frei Martinho de Nantes.(7)
Pedro Calmon resume assim a tirada nantina: "Os
fugitivos tinham atravessado o S. Francisco. A tropa seguiu-
os, rastreando entre os marmeleiros bravos, com o padre
Martin de Nantes à frente de seus rodeleiros. Algumas
jornadas além surpreenderam os remanescentes da tribo
vencida. Renderam-se 600 a Domingos Rodrigues, que se
adiantara com 60 escopeteiros e 300 arcos - arcos
significam os índios dos padres, sem dúvida os rodeleiros
rastreadores, Nantes com eles, feito soldado ao mando de
Domingos Rodrigues, 300 por 60 -, exaustos, decerto
desenganados pelos pajés, renderam-se pedindo vida. E os
sertanistas degolaram quatrocentos, que resistiram.
Espetáculo hediondo. Foi em 1 de junho de 1676".(8) Há
na notícia um engano. Os sertanistas não degolaram
quatrocentos que resistiram, sim, quase quinhentos, os
mesmos que estavam presos: "os amarraram e dois dias
depois mataram, a sangue frio, todos os homens de arma,
em número de quase quinhentos".
Que maneira de civilizar! Na verdade não seriam
bárbaros os mortos, sim os que mataram. Vamos refletir um
pouquinho: que consciência humana seria capaz de cortar
quase quinhentas cabeças, uma a uma chegando à última
sem repugnância? Foi coisa de monstro.
"Havia já dois meses e meio - recuemos ainda um
pouco ao relatório do padre Nantes, para encerrar o capítulo
- que estava de volta à minha aldeia, e esperava, daí por
diante, viver em muita paz com os portugueses, depois de
haver prestado tão grande serviço, com a presença de
nossos índios. Mas surgiu uma nova guerra, a setenta
léguas de nossa aldeia, entre os portugueses e os cariris da
região, por motivo sem importância e muito pouco justo da
parte dos portugueses".(9)
NOTAS
1 - Pietro Vittorino Regni, Os Capuchinhos na Bahia, vol. 1, pag. 145.
2 - Agatângelo do Crato, Notícias Históricas dos Capuchinhos no
Brasil, R. 1, 145, 5, pag. 109.
3 - Pietro Vittorino Regni, Os Capuchinhos na Bahia, vol. 1, pag. 215.
4 - Pietro Vittorino Regni, Os Capuchinhos na Bahia, vol. 1, pag. 145.
5 - Nelson Barbalho, Cronologia Pernambucana., vol. 4, pag. 113.
6 - Martinho Nantes, Relação de uma Missão no S. Francisco,
tradução de Barbosa Lima pag. 49
7 - Idem, idem, idem pag. 49 a 53.
8 - Pedro Calmon, História da Casa da Torre, páginas 95/96.
9 - Martinho de Nantes, pag. 53.
X - MISSÃO DOS JESUÍTAS
Sua expulsão

Precisos esclarecimentos sobre a missão dos Jesuítas


em Rodelas, seu extraordinário trabalho de catequese e sua
expulsão, oferece-nos o historiador da Ordem, Pe. Serafim
Leite, segundo quem, o fundador das Missões de Rodelas
foi o Pe. João de Barros. Sua crônica a esse respeito, sob o
título - Rio de S. Francisco, encontra-se no volume 5 da
História da Companhia de Jesus no Brasil, entre as páginas
293 e 315. Outros autores, como Pedro Calmon e Pietro
Vittorino Regni, contribuem, igualmente, para o seu
entendimento. Também em Martinho de Nantes encontram-
se informações preciosas sobre o início desse trabalho
missionário.
Em 1669 os padres jesuítas saíam das Missões de
Jacobina e em 1673 a retomavam, com a reconstituição da
Aldeia de Sta. Teresa, em Canabrava, registra a crônica de
Serafim Leite. Ia, aí, um período de quatro anos. Encaixou-
se, nesse entretempo, uma outra atividade, conhecida com o
nome de Missão de Rodelas. E vem a afirmativa, que não
deixa margem a contestação: "O fundador das Missões de
Rodelas, da Companhia, foi o P. João de Barros, que já
desde 1669 fala da Aldeia de Sorobeba, com a qual estava
em contato".
Ao deixar as aldeias de Jacobina, o Pe. João de
Barros foi ser professor de Teologia no colégio de Olinda,
onde esteve até 1681, sendo, a partir de então, devolvido
aos seus cariris, dos quais foi um verdadeiro apóstolo,
dedicando-lhes toda a vida. Em 1683 era superior da aldeia
de Santa Teresa, em Canabrava, que deu origem à cidade
de Ribeira do Pombal. Amiudava, a partir daí, as relações
com os índios do São Francisco, "fundando, uma após
outra, as aldeias dos Acarás e dos Procás". Outra aldeia
fundada por João de Barros, foi a de Caruru, e
possivelmente a de Arnipó, da qual não se fala ao tempo de
Domfront.
Procás, eram os índios rodelas, e, nos termos em que
o texto foi colocado, corresponde às aldeias de Rodelas.
Ora, ficou dito em capítulo anterior, que o fundador da
aldeia de Rodelas foi o capuchinho Francisco de Domfront,
em 1671, talvez antes. Esta última informação é colhida em
Martinho de Nantes, e igualmente não comporta
contestação; seu relato é um documentário.(1)
Os padres capuchinhos franceses dispunham de
poucos trabalhadores para a seara do Cristo nas terras
indígenas do São Francisco. Eram três missionários nas
ilhas de cima, entre Pambu e Aracapá, e um em Rodelas e
ilhas vizinhas, cá embaixo, um outro em terras de Sergipe.
E a Coroa não liberava a entrada de novos padres franceses;
os cuidados, no particular, eram rígidos, havia o receio da
penetração de França no Brasil, tendo em vista precedentes
anteriores e não poucos. No século anterior, corsários e
aventureiros franceses infestavam nossa costa,
contrabandeando pau-brasil e outros produtos. Ao contrário
de permitir a entrada de novos missionários franceses,
ainda que se reconhecesse a boa qualidade de sua
catequese, desejava-se a repatriação dos que aqui se
encontravam, o que se fazia aos poucos, até sair o último
em 1702. Assim, chegava a hora da participação de outros
operários. Tendo vindo, em 1685, dois jesuítas visitar as
aldeias são-franciscanas de Pambu e Rodelas, cujo conceito
se espalhara entre os homens de Deus, aí estiveram três
meses com os irmãos capuchos e os nossos índios
beradeiros e ilhéus. Dessa fase certamente de observação e
sondagem, originou-se o seu estabelecimento nas terras de
Rodelas. Porque os capuchos franceses não tinham nem
esperavam outros missionários para a catequese do São
Francisco, pediram o apoio da Companhia de Jesus. Os
jesuítas acolheram com amor a nova tarefa. E no trabalho,
com maior número de padres, ampliaram a vinha,
"fundando missões", até que a Missão de Rodelas, que
inicialmente gerenciava uma aldeia com o capuchinho
Francisco de Domfront, ampliou-se para cinco com os
jesuítas. E estes, na observação de Nantes, tinham a
bondade de dizer que as aldeias foram fundadas pelos
antecessores. Por sinal, essa nota deixa o claro
entendimento de que as duas Ordens Religiosas fundaram
aldeias na Missão de Rodelas. (2)
Daí, que não há choque, nem equívoco, nem
contraste, sim confirmação entre as crônicas de Serafim
Leite e Martinho de Nantes. As aldeias dos índios rodelas -
procás - eram muitas. E entre elas estavam, além de
Rodelas, que continuaria a ser a sede da missão, centro
missionário como a crônica consagrou, a de Sorobabé, a de
Acará, a de Arnipó, a de Caruru. Em muitos fatos históricos
não se pode falar em data com precisão - os documentos,
escassos e esparsos, deixam margem, ocasionalmente, a
alguma confusão acerca disso. Ora, a aldeia contatada por
João de Barros em 1669, foi a de Sorobabé, o registro é
muito claro. Não diz, entretanto, como foi o contato: "fala
da Aldeia de Sorobeba, com a qual estava em contato". O
padre poderia ter estado de passagem aí, pois que, nesse
mesmo ano, saindo das aldeias de Jacobina, ia para o
professorado em Olinda. Era um homem dinâmico e
abnegado, dedicava-se inteiramente ao seu ministério junto
aos indígenas. Poderia, perfeitamente ter contatado os
rodelas de Sorobabé na ida de Jacobina a Olinda, fazendo
uma parada com essa gente de dialeto ainda desconhecido,
mas, sem dúvida próximo da língua cariri, que dominava e
da qual buscava aprender sempre mais. Poderia até, por
força do amor ao ministério e paixão pela causa, ter-se
demorado algum tempo, num começo de catequese. Ou
estivera no Sorobabé antes da ida a Olinda, é uma hipótese.
Não se diz se deixou continuador da obra iniciada. Poderia
ter deixado ou não. De qualquer modo, ficaria no seu
currículo a fundação da aldeia. Acará veio depois de 1683,
quando, superior da Missão de Santa Teresa, amiudava os
contatos com o São Francisco. Aí encontram-se as crônicas
de Serafim Leite e a de Martinho de Nantes, com uma
diferença de data que não poderia ser levada em conta. O
registro desse autor é o de que, em 1685 o Pe. João de
Barros e outro confrade jesuíta estavam assumindo as
aldeias de Rodelas. Uma indicação, situa-se depois de
1683, a outra em 1685 e é o encontro das duas crônicas. O
provável é que a fundação da aldeia de Acará tenha sido a
partir de 1685.
Quando em 1685, os jesuítas, sob a chefia do Pe.
João de Barros assumiram as Missões, era uma única
residência, localizada em Rodelas, onde viviam os padres, a
partir daí visitando as ilhas de Jatinã, Araticu e outras,
como fora com fr. Francisco de Domfront, que trabalhava
só toda a área. Mais adiante, os jesuítas dispondo de maior
número de missionários, a Missão desdobrou-se em duas
áreas - uma, com residência em Rodelas, assistindo as ilhas
vizinhas, a outra com residência na ilha de Acará,
alcançando as ilhas próximas. A residência da ilha de
Acará, esta sim, foi fundada pelos jesuítas, na pessoa de
João de Barros, enquanto a primeira, de Rodelas, fora
fundada por Francisco de Domfront.(3) As aldeias de
Jatinã, ilha e terra firme de Pernambuco, sem dúvida
continuavam assistidas pelo padre de Rodelas, que estava
mais próximo, muito mais próximo, que o de Acará.
A ânua de 1690-1691, informa Serafim Leite, narra a
morte de Pe. João de Barros e o estado das cinco aldeias
que fundou no Sertão do São Francisco, assim:
"Ao presente são 3.900 almas, divididas em duas
Aldeias maiores e três menores. Os Padres assistiram até
agora em uma principal e visitavam as outras. Agora
assistirão em duas, ainda que uns sejam Acarases e outros
Procases, diferentes na língua para dobrar o merecimento
do trabalho".(4) São, evidentemente, Rodelas, da nação
procás, aquela aldeia principal, em que inicialmente
assistiam os padres, e a ilha do Acará, segunda aldeia
maior, em que os padres passaram a assistir. Essa
informação de língua diversa é importante, pois os demais
autores têm os índios de Acará também como da nação
procás em convivência com a nação brancarurus, ambas
encontráveis igualmente na ilha da Vargem, bem próxima
de Acará e em Sorobabé, mas não se referem, a diversidade
de língua. É possível, então, que os brancarurus tivessem
um dialeto diverso. Em Rodelas não se menciona a nação
brancarurus, mas só a procás. O termo acarases, não será
mais que um gentílico que vem a significar moradores de
Acará, enquanto o gentílico procases, dirá respeito ao
natural da nação procás.
Com os jesuítas, que dispunham de mais gente para o
trabalho evangélico, a missão desenvolvia-se rapidamente.
Serafim Leite menciona cinco aldeias em 1692, sem as
relacionar.(5) Seriam, ao que se entende de outras crônicas
e relações, além de Rodelas e Acará - também Arnipó,
Sorobabé e Caruru. As aldeias de Rodelas e Acará,
contavam com a população indígena da sede e das ilhas
vizinhas. Mais tarde dar-se-ia a incorporação da aldeia de
Caruru à de Sorobabé, em razão de lutas entre os
missionários da primeira e os curraleiros locais, que,
dificultados nos seus interesses menores, puseram para fora
os padres. Estes, depois de andar de déu em déu em busca
de localização para os seus índios, juntaram-se aos
missionários da aldeia de Sorobabé. Continuavam todas as
aldeias, inclusive a da nova residência de Acará, na área de
influência de Rodelas, onde permanecia o centro
missionário dos índios rodelas e onde residia o Superior da
Missão ao lado do missionário da aldeia. Também na era
jesuítica, a aldeia de Arnipó foi anexada à de Rodelas, não
se diz porque, talvez para facilitar a assistência religiosa
aos índios. Assim, eram três residências: Rodelas, a
principal, onde estava a sede das Missões, Acará e
Sorobabé.
A data em que a aldeia de Acará passa a área de
influência de Pambu/Aracapá, vai situar-se na era dos
capuchinhos italianos, uma vez que da relação dos
Carmelitas - aldeias recebidas ou a receber com a saída dos
jesuítas, consta o seu nome no centro missionário de
Rodelas. Confirma-o o fato de, ao fim da era jesuítica, na
doação de terras aos índios de suas aldeias, aparecer o
nome de Axará. Podemos precisar que o desdobramento
vem a partir de 1728.
Os padres jesuítas entraram real e definitivamente na
Missão de Rodelas em 1685. Sabendo-se que o padre
Domfront saía ou estava prestes a sair, sem confrade que o
substituísse, dar-se-ia o convite aos jesuítas para assumirem
a missão. Sem dúvida esses "nossos missionários" referidos
por fr. Nantes, que ajudaram os jesuítas com "liberal
caridade", seriam os relacionados anteriormente: Anastácio
de Audierne, José Chateaugontier e Francisco de Domfront,
especialmente este, a quem os novos missionários
substituíam e também fr. Bernardo de Nantes, substituto de
fr. Martinho em Aracapá quando este se deslocou para a
Bahia.
Os missionários jesuítas administraram as aldeias de
Rodelas até julho de 1696, quando foram expulsos pelos
donos das terras, na decisão das "Mulheres da Torre",
Leonor Pereira Marinho, viúva de Francisco Dias d'Ávila e
Catarina Fogaça, viúva de Vasco Marinho Falcão.
É bom que se faça um retrospecto. A orientação da
Coroa Portuguesa para o ajuntamento de índios em aldeia,
foi uma política iniciada no século XVI, com Dom João III,
em recomendação ao primeiro Governador Geral, Thomé
de Souza. Considerava-se que os índios convertidos deviam
estar separados dos pagãos, para não prejudicar-se a
conversão. E aí começou o mal da segregação, que acabou
estabelecendo o rancor entre o "manso" e o "brabo", o
primeiro levado à guerra, ao lado do colonizador, contra o
segundo - irmão contra irmão, como se gozassem com o
auto-destruir-se. Apesar da orientação ter-se dado no
Governo Thomé de Souza, as primeiras missões só vieram
a instalar-se no Governo Mem de Sá.(6) E tão ruim quanto
isso, a aldeia ao lado da povoação dos brancos, acabou
criando atrito entre padres e colonizadores, pela exploração
destes contra os índios, pela promiscuidade com suas
mulheres, que os missionários não aceitavam. Segregado o
nativo, sem a terra onde plantar sua escassa lavoura,
praticamente impedido de se distanciar para a caça,
obrigados os homens válidos a matar e morrer na guerra, as
aldeias terminavam sendo um amontoado de mulheres,
velhos e crianças famintos, que os missionários cuidavam
com dificuldades e muita limitação. Sem terra para a
lavoura e sem espaço para a caça, os indígenas dependiam
da caridade.
Como medida de segurança do índio contra a fúria
possessiva do conquistador, que buscava acumular léguas
sobre léguas de chãos próprios, não deixando um metro ao
nativo, o governo previa a reserva de área suficiente para as
casas e roças do índio. Partia, para o estabelecimento dessa
reserva, do princípio, reconhecido oficialmente, de que as
terras pertenciam aos seus moradores - os indígenas. Pura
balela. Deu-se o aldeamento do índio manso, mas a terra
necessária a sua subsistência jamais lhe foi demarcada.
Outra era a realidade, a da força do poder econômico - e a
determinação legal, de destinação da terra ao índio, veio-se
renovando sem cumprimento, por bem três séculos.(7)
Ainda hoje é isto, o pobre no lugar do índio - isto é, o sem
terra - o novo sem terra, aliás. Este, como o índio nos
tempos antigos, sem espaço para a lavoura, passando fome,
vendo a morte dos filhos por inanição, invadem as terras
ociosas. Vem a polícia com ordem judicial de desocupação
da propriedade alheia, e metralha homens, mulheres,
crianças - quem estiver à sua frente, às dezenas.
Tropeço sobre tropeço, o aldeamento do indígena
convertido ao lado do colonizador, vem desde Mem de Sá,
a partir de quando, também, a ele foi reconhecido o direito
à terra, um direito que jamais se cumpriu. Em 1680, século
e meio depois, quando o gado avançava, inexoravelmente,
sertão acima, sobre a terra do índio e este, sem que tivesse
sido demarcada a gleba de seu uso, era morto e escravizado
pelos conquistadores que, em bandeiras autorizadas pelo
governo colonial faziam-lhe a monstruosamente chamada
"guerra justa", nova lei reforçava o seu direito de
propriedade. E a lei nova, como a anterior, como as que
viriam depois, como as de hoje quando se trata do direito
do mais humilde, ficava sem aplicação. Pois sim, os índios
não aldeados, que o homem civilizado chamava de corsos
ou brabos, eram vigiados e castigados, buscados para a
escravidão. Expulsos de seus melhores chãos, à margem do
rio, penetravam caatinga a dentro à busca de novo espaço.
E quanto mais se aprofundavam, mais difícil tornava-se-
lhes a vida. Sem a pesca e o solo da pobre lavoura de
vazante, a caça rareando, a seca continuada, acabavam,
para matar a fome, aproximando-se das fazendas e matando
alguma rês com que alimentar-se. Ah! por quê? Isso era
chamado de invasão e a reação dos curraleiros se fazia
sentir de pronto - índio por gado, matavam estes. E a contra-
reação: vaqueiros mortos e gado estropiado às dezenas.
Agora vinha a declaração da guerra justa por parte do
governo colonial, e o que não fosse morto em combate ou
degolado, seria escravo. Desgraça é dizer-se, confirmando a
secularidade do problema da terra no Brasil, isso que a
seguir registra fr. Pietro Vittorino Regni:
"Mais do que a caça ao índio com a finalidade de
mão-de-obra indígena, desnecessária para o cuidado do
gado que, vivendo à solta, não carecia de muitos
empregados, aos criadores interessavam as vastas terras dos
índios para nelas colocar suas manadas de bois e cavalos.
Por outro lado, para os índios, cujos meios de subsistência
provinham da caça, da pesca e dos frutos espontâneos da
natureza, a posse de grandes áreas era condição
indispensável à vida, por isso necessitavam sempre de
novas reservas para desfrutarem, quando se esgotavam
aquelas onde se achavam".(8)
Mas não, interessava tudo - a terra e a escravização, a
morte dos guerreiros, que não se sujeitavam à escravidão, e
assim foi nas guerras dos nossos sertões, quando
trucidavam-se os combatentes e escravizavam-se mulheres
e crianças. A consideração era simples: se não podiam ter
escravos os guerreiros, por causa de sua rebeldia, matá-los,
para diminuir a reincidência da guerra, que também tirava a
vida a homens brancos. Aí, dessa situação dramática,
espoliado o índio, morto e escravizado, sobressai o papel
do missionário na defesa daquele por cuja salvação da alma
dava-se inteiro. Se de tão longe vinha em nome do Cristo,
sob o duro padecimento de toda espécie de dificuldades e
sujeito às mais estranhas doenças, para salvar a alma, não
poderia, impassível, permitir a morte à fome e a matança na
guerra ou a escravização do gentio. E a luta se estabeleceu
entre o sesmeiro dono de centenas de léguas e uns pobres
missionários que desejavam um pouco para o seu aldeado.
Já haviam brigado os capuchinhos franceses, entre os quais
se destacaram no choque com os Ávilas, Martinho de
Nantes e Anastácio de Audierne. Agora brigavam os
jesuítas, de velhas tradições na luta em defesa do nativo.
E a disputa, no caso dos jesuítas da Missão de
Rodelas, teria o lance dramático da expulsão violenta,
barbarizada pela presença dos próprios índios da catequese
ao lado do prepotente dono da terra. Os jesuítas haviam
oferecido onze anos e meio de trabalho e sacrifício às
missões com jurisdição sobre Rodelas e ilhas vizinhas,
Acará, Arnipó, Sorobabé e Caruru, e eram expulsos pelos
índios capitaneados pelo procurador da Casa da Torre. A
história da colonização no São Francisco apresenta lances
"sui generis": Sendo todas as terras entregues a uma única
família, o chefe desta era o suserano. O rei estava longe e
sua voz diluía-se em muitas vozes intermediárias, tornando-
se quase um mito o poder real. Aqui, mandava e
desmandava o Chefe da Casa da Torre, coronel de
ordenanças do governo, comandante das tropas armadas,
que ele próprio selecionava e remunerava, cabendo ao
governo somente conceder o título da oficialidade. Os que
ocupavam o solo, faziam-no por arrendamento. E como
rendeiros do feudo, estavam obrigados a acompanhar o
senhor, se não em pensamento, porque este é
imprescrutável, pelo menos em palavras e obras,
participando inclusive de suas guerras - compromisso de
vassalo. Os padres missionários eram obrigados por lei a
pôr o índio manso a serviço da guerra de conquista contra
os irmãos. Trabalhadas com amor, as aldeias da Missão de
Rodelas, já se disse, desenvolviam-se rapidamente. Foi
quando o Governador João de Lencastro, dando curso à
determinação da Coroa, mandou demarcar as terras dos
índios. Então, era superior o padre Felipe Bourel. A história
é longa e marca uma das tantas manchas de sangue e
violência da Casa da Torre na fase de Francisco Dias
d'Ávila, II, e posterior, até o mando das duas viúvas Leonor
e Catarina. A situação só iria amenizar-se quando Garcia
d'Ávila Pereira alcançou a idade adulta e assumiu o
comando do patrimônio avoengo, dispondo-se então a pedir
a assistência dos capuchinhos italianos, aos quais apoiaria e
financiaria na missão junto aos índios de suas terras.
Para começo de notícia, vale dizer que a convivência
da Casa da Torre com os jesuítas, na Missão de Rodelas
iniciou-se mal. Assumindo a missão em 1685, já em 1686,
menos de um ano de trabalho, dava-se o primeiro atrito. E
não era pequeno. Insatisfeito com a presença dos jesuítas
em suas terras, Francisco Dias d'Ávila pôs sua gente e seus
velhos métodos em ação. Por meio de presentes - eram os
mesmos vistosos presentes dos dias da descoberta, fazendas
de bonito estampado, espelhos e quanta outra bugiganga
havia no tempo, talvez facão e machado - fez que os índios
abandonassem a aldeia, única então, de Rodelas. Os padres
procuraram a autoridade eclesiástica na pessoa do
arcebispo e a civil, na pessoa do governador geral. O
assunto foi levado à Relação e Dias d'Ávila citado.
Procurou salvação junto ao padre Martinho de Nantes, já
então residindo na Bahia. Exatamente Martinho de Nantes,
que hostilizara tantas vezes, com estes mesmos recursos e
pelas mesmas razões. O padre, conquanto fosse um homem
de luta e decisão, corajoso, inteligente, como já se revelara
em disputas com esse mesmo Ávila, era sem nenhuma
dúvida uma pessoa simplória, pode-se dizer, na sua
incorrigível boa fé, no seu imenso desejo de praticar a
caridade. Recebeu e ouviu Dias d'Ávila, que ia a pedir-lhe
conselhos. Mas, enquanto pedia conselhos, a víbora se
mostrava, sabia cortejar para em seguida morder. O que
desejava mesmo, conhecendo a índole ingênua do padre,
era solidariedade, pois chegou a dizer que preferia perder
tudo, todos os seus bens, mas não aceitava os jesuítas em
suas terras, porque estes, onde entravam, acabavam se
apossando de tudo. O padre ouviu e aconselhou, apaziguou -
ou pensou que apaziguasse - o seu ânimo. A conversa foi
longa, mas proveitosa, porque se restabeleceu a paz entre as
partes litigiosas - Dias d'Ávila e os jesuítas.
Provisoriamente. A cobiça e o egoísmo desse Dias d'Ávila
se fizeram proverbiais. Ele sentiu que naquele momento o
bote seria perdido e recuou. Provisoriamente.(9)
Esse é, resumidamente, um episódio das lutas entre
os Ávilas e os jesuítas. Mas a briga, na verdade é anterior à
entrada destes na Missão de Rodelas e mesmo anterior à
presença de Nantes no Brasil. Ou seja, antes de Francisco
Dias brigar com os capuchinhos franceses, depois com os
jesuítas, porque queria tudo e por cima de tudo, já seu pai
brigava com os missionários da Companhia de Jesus. Em
1669 Garcia d'Ávila, II, destruía as residências dos jesuítas
em Itapicuru e Geremoabo e a igreja de Caimbés. Laborava
num equívoco sem nome - a informação é de Serafim Leite -
acreditava que pelo fato de ter as terras da sesmaria, era
também senhor dos índios, como se fossem servos da
gleba. Escreve Serafim Leite que o padre Antônio da
Fonseca, a 15 de outubro de 1669, informava que a
destruição se devia à Casa da Torre, por ter ouvido dizer
que o padre Jacobo Rolando ia pedir terras ao rei para os
índios, três léguas para cada aldeia - informação do padre
Antônio Forti. Definitivamente, não era para o índio viver.
As lutas para a expulsão, onze anos e meio depois da
instalação dos jesuítas na Missão de Rodelas, começariam
na verdade, na aldeia de Caruru, onde os missionários
foram molestados pelos curraleiros vizinhos. Os padres
recusavam-se a ministrar os sacramentos aos brancos que
viviam em pecado público. Por isso foram obrigados a
procurar outro sítio para os seus índios. Deslocaram-se com
estes para a aldeia de Sorobabé, onde viviam os procás,
ficando as aldeias anexadas. Não foi por muito tempo.
Serafim Leite coloca assim a situação:
"No Rio S. Francisco foram vexados os Padres
Missionários e os índios da aldeia de Caruru pelos
curraleiros vizinhos, por os Padres se recusarem a
administrar os sacramentos aos que viviam impunemente
em pecado público. Obrigados a buscar sítio diferente para
a aldeia, onde pudessem tranqüilamente servir a Deus e à
salvação dos índios, que lhes incumbia converter, andaram
em vão mais de 200 léguas, entre idas e vindas, para pedir
socorro aos senhores das terras, contra os inimigos que
confiavam na audácia sem se guiar pela razão".(10) Iriam
encontrar apoio com os seus irmãos da ilha de Sorobabé, e
por pouco tempo, porque também estes seriam postos para
fora.
A velha luta do homem do campo pela terra, de que
cedo se apoderou o rico capitalista da cidade, vem, no
Brasil, deste a colonização - quando o índio foi
expropriado. Ponta a ponta deste país, foi assim. Mas, no
Nordeste a situação se agravou. Por doação governamental
desordenada, a Casa da Torre, que nasceu poderosa com
Garcia d'Ávila, protegido, criado ou filho, sabe-se lá, do
Governador Thomé de Souza, e poderosa cresceu nos seus
descendentes, com a proteção de quantos o sucederam na
chefia do governo, abiscoitou, só a poder de matar índios e
assinar requerimentos, uma extensão territorial que
alcançava área de quatro estados. Leis que garantiam o
chão necessário à sobrevivência do índio, por sinal
reconhecido em papel governamental como seu verdadeiro
dono, somavam-se sem cumprimento também desde o
tempo desse Thomé de Souza. Em 1696, quase duzentos
anos depois do descobrimento, o governador João de
Lencastro quis dar cumprimento às determinações do Rei,
sinalando distrito às aldeias do Achará, Rodelas e Caruru
no Zorobabé e expediu, nestes termos, o ato:
"Por quanto me consta que os índios das aldeias de
Achará e da Rodela e os do Caruru que ao presente
assistem na ilha do Zorobabé com outras a estas
ultimamente agregadas por minha ordem debaixo da
administração dos Padres da Companhia de Jesus no rio de
S. Francisco, não têm distrito bastante, certo e livre, de
terras para a sua vivenda, em que possam fazer
pacificamente as suas lavouras como manda Sua majestade,
que Deus guarde, e eles e os Padres seus administradores,
por este respeito padecem moléstias, e desinquietações
contínuas dos moradores e vizinhos que com éguas, gados e
ruim vizinhança os perturbam, por isso, em execução da
mesma lei de S. Majestade, atendendo ao número dos
índios, que atualmente estão nas ditas aldeias, e que agora e
pelo tempo futuro a elas se hão de agregar de outras aldeias
menores e ranchos espalhados de tapuias sem doutrina e
direção por este sertão, para atalhar os ditos inconvenientes
e perturbações, sinalo por distrito dos que moram na aldeia
de Achará, que são quase seiscentas almas, a ilha chamada
das Éguas, a do Achará, e a de Uxucu e a do Caburé. E,
porque umas das ilhas são de ribanceiras altas, outras
alcantiladas e outras salitradas, e por razão da sua
esterilidade os índios comumente plantam só na borda do
rio, por isso, sinalo de mais para a sua suficiente vivenda
uma légua em quadra na terra firme da parte da Bahia, cuja
demarcação começará imediatamente de fronte da mesma
ilha de Achará em que está situada a aldeia.
E logo a aldeia de Rodelas a que ordenei se
juntassem os índios de outra aldeia do Herenipó, sinalo por
distrito as ilhas que se chamam Jetinã, Vacuyuviri, Viri
Pequeno, Pedra e Araticu. E porque além da esterilidade, a
qualidade da terra acima referida, a primeira destas ilhas
não chega a légua inteira e cinco delas a quarto de légua, e
a dita aldeia de Rodelas, com a nova agregação dos índios
de Herenipó conta quase seiscentas almas, por isso também
a essa aldeia sinalo de mais uma légua em quadro na terra
firme da parte do território da Bahia, cuja demarcação
começará imediatamente de fronte da dita ilha que chamam
de Jetinã.
E aos índios da aldeia de Caruru, que passaram por
minha ordem, a se agregarem a outra aldeia de Zorobabé,
sinalo por seu distrito a ilha que chamam Zorobabé, com
duas outras menores adjacentes. E porque o número dos
índios chega a quase novecentas almas, e a principal das
três ilhas não chega a légua inteira com os mesmos
inconvenientes de esterilidade já referidos, por isso, a esta
aldeia mais numerosa que as outras, sinalo também em
terra firme da parte da Bahia uma légua e meia em quadra,
cuja demarcação começará "de fronte da dita ilha de
Zorobabé".(11)
Esse documento foi transmitido pelo Governador
João Lencastro aos padres jesuítas, a cujo julgamento
prudente, confiava a demarcação. Pior que antes. Os
vexames, perturbações e má vizinhança foram ao extremo
da expulsão pura e simples. Violenta. Perversa. Parece até
que rei não era rei, como sustenta o refrão popular.
A esse tempo já falecera Francisco Dias d'Ávila, o
registro vem de Pedro Calmon em História da Casa da
Torre. E o ato de violência do procurador dos Ávilas,
sargento-mor Antônio Gomes de Sá, decorreu de orientação
das "Mulheres da Torre". Como ocorreu:
O Padre Felipe Bourel, superior da Missão de
Rodelas - este informe é de Serafim Leite -, ao receber a
determinação do Padre Provincial para executar a ordem do
Senhor Geral, que por sua vez cumpria lei emanada da
Coroa, espalhou cruzes de demarcação das terras sinaladas
aos índios de suas aldeias. Primeiro as terras sinaladas a
aldeia de Acará, dia 19 de julho, é o registro do autor, em
seguida as da aldeia de Curumbabá, dia 21, depois da aldeia
de Zorobabé, dia 24. Tinha pressa. Mas também
apressaram-se os curraleiros. Já a 22 o Capitão
Fernandinho da aldeia dos índios da Vargem, que eram
administradas pelos capuchinhos franceses, passou junto do
porto defronte à ilha de Acará e, perguntado a que andava,
respondeu que ia levar uma ordem ao Padre Superior, para
que se despejasse para fora das terras da Casa da Torre. É
útil registrar que existe, ainda hoje, um lugar à margem do
São Francisco, lado baiano, pouco acima do povoado de
Barra do Tarrachil, denominado Porto da Missão, em frente
uma ilha, chamada Ilha das Missões. É, sem dúvida, o
"porto defronte à ilha de Acará", acima indicado. E a ilha
das Missões é a antigamente denominada Acará. Esse
"capitão Fernandinho, da aldeia dos índios da Varge",
sendo capitão índio, funcionava ao mando do preposto da
Casa da Torre. Não se fala que deixasse nenhuma ordem ao
superior, mas, diz-se que foi avistar o procurador da Casa
da Torre.
Ao passar de volta, no dia 23, disse que ia para sua
casa e que dia 24 devia ir à casa do sargento-mor Antônio
Gomes de Sá, procurador da Casa da Torre, onde estariam
reunidos todos os brancos curraleiros, para, no dia 25 vir
com ele botar, a 26, os padres para fora. Era a decisão dos
curraleiros, que davam o golpe definitivo. Estavam
somados, o proprietário das terras, de quem emanava a
ordem, e os seus rendeiros, principal dos quais era o
procurador. Assim foi. O Padre Felipe Bourel teve
informação de um seu conhecido, que os curraleiros se
reuniram na casa do sargento-mor Antônio Gomes de Sá,
decidindo não derrubar as cruzes, mas expulsar os padres.
O informante mencionava a presença, na reunião, de um
padre franciscano, de nome Agostinho (outro Agostinho,
não o jesuíta de Rodelas) que, assistindo em casa do
sargento-mor, "falou com outros brancos em como era bom
e acertado botar para fora os padres da Companhia", e à
bordoada, era a sua opinião. Quem seria esse padre? E por
que sua presença na reunião dos curraleiros? Pelo falar de
"como era bom e acertado botar para fora os padres da
Companhia", estava sem dúvida, de olho nas missões
jesuítas, para onde pretenderia ampliar o seu raio de ação -
benza-os Deus, a missionários desse quilate. O autor, em
regra, escreve o verbo assistir, no sentido de morar, residir.
Então, é possível que esse Agostinho, se não morasse na
residência do sargento-mor, aí pousaria, ao menos como
hóspede. Antecipe-se o registro de que a aldeia do
Sorobabé viria a ficar, em definitivo, sob a administração
dos franciscanos e que, pelo tempo gasto, entre os dias 22 e
23, possivelmente aí vivesse o sobredito procurador.
Certamente daí até a Tapera, região onde ainda hoje são
numerosas as famílias Sá e Gomes de Sá, nas duas margens
do rio.
Dito e feito. Não se menciona a presença pessoal do
procurador da Casa da Torre, no ato de expulsão, mas só de
capitão índio Fernandinho, da ilha da Varge. Dia 26 de
manhã, depois da missa, foi expulso o missionário de
Acará, padre Francisco Inácio, posto em uma canoa rio
abaixo, sem que lhe permitissem pegar barrete e chapéu ou
ao menos o breviário, os quais lhe seriam levados
posteriormente. "Os índios - entenda-se "os índios do
capitão Fernandinho" -, depois de roubada a roça do padre,
em que tinha seu sustento para mais de um ano, vieram por
terra, achando, nas três fazendas da Casa da Torre, que há
entre Acará até Curumbabá, já as vacas mortas pelos
vaqueiros para a matalotagem dos índios. Às três horas da
tarde apareceram os mesmos índios no Curumbabá. E
vindo na frente o Capitão da aldeia de Acará (capitão índio,
entenda-se), por nome Ventura da Cruz, entrou em casa dos
padres dizendo ao Padre Agostinho Correia, da Companhia
de Jesus, missionário da dita aldeia de Curumbabá, que os
brancos lhes ameaçavam de morte por amor das terras que
tomavam, se não botassem os padres para fora, e, sendo
assim, melhor era que despejassem os padres. Entretanto,
acudiu o sargento-mor da dita Aldeia, por nome Francisco
Pereira Rodela, índio, o qual duas vezes se ofereceu aos
padres, querendo puxar pela catana para defendê-los, mas
os padres sossegaram-no, para evitar maiores males".
Ao menos uma ação nobre. Eram os brios e a
dignidade do velho herói da guerra contra os holandeses,
guerreiro tantas vezes provado nas lutas do Piauí ao lado
dos Ávilas, agora em defesa dos seus padres. Honra ao
índio Francisco Rodela, honra aos índios da aldeia de
Rodelas, que não expulsaram os seus missionários como o
fizeram os das outras, antes, tentaram defendê-los. Não
convinha entretanto o derramamento de sangue e os
missionários contiveram o velho cacique. Saindo de cabeça
ao tempo, os padres de Rodelas, de fora, mandaram aos
seus índios, que os acompanhavam "com muito
sentimento" que fossem buscar barretes e chapéus. A
expulsão dos padres da aldeia de Rodelas (Curumbabá é
Rodelas), teve como agravante, dar-se à noite, ou quase à
noite. Pois não, os executores da expulsão entraram na
aldeia às três da tarde. Por menor que fosse o diálogo,
duraria duas ou três horas. Então, iria pelas 17, 18 horas,
quando foram empurrados estrada à fora. Na aldeia de
Rodelas residiam, além do padre Agostinho Correia,
missionário local, também o irmão Antônio Ferreira,
estudante que se ordenaria depois de deixar a aldeia, e o
padre Felipe Bourel, superior das Missões dos Rodelas.
Dia 27 era o Padre João Guincel, missionário na
aldeia do Sorobabé/Caruru, que madrugada, depois da
missa, era intimado, às pressas, pelo capitão índio da nação
Tacuruba, que se encontrava ali, a sair, antes que os
brancos viessem. Os índios, se diziam ameaçados de passar
pelo cutelo - célebre era o cutelo de Salitre e Canabrava e
de quanto mais a história não registrou - se os
acompanhassem. Como os demais irmãos, saiu sem nada
seu, somente mais tarde recebendo o mínimo, chapéu,
barrete, breviário.
Um branco, de nome Manoel da Silva, que estava,
havia meses, com os padres, quis acompanhá-los e com
eles saiu da aldeia de Rodelas. Naquela mesma noite
recebeu, por via de um escravo, o chamamento dos
curraleiros para que fosse até à casa da fazenda. Duas vezes
veio o recado e duas vezes o recusou. Dormiram debaixo
de uma árvore. A casa da fazenda era na Praia. Dia seguinte
vieram os índios e o levaram à força, e isso pode classificar-
se como um seqüestro.
Não queriam que os padres conduzissem consigo
uma testemunha ocular das ocorrências. A esse homem
bom, felizmente ainda foi permitido voltar e despedir-se
dos padres. Cento e setenta léguas viajaram os jesuítas, ora
a cavalo, ora a pé, registra a crônica de Serafim Leite.
Teriam ido dar aonde? Não o diz o autor. A caminhada dá
para chegar a Salvador, distante, como ficou anotado em
relato do padre Vieira, adiante transcrito, 120 léguas de
Acará. As distâncias eram estimadas. Crescido de 120 para
170 léguas o caminho, certamente fizeram o percurso via
Canabrava, de onde saíra onze anos e meio antes o padre
João de Barros para fixar-se na Missão de Rodelas. O
caminho conhecido, então, era descendo o São Francisco
para as imediações de Curral dos Bois, daí para
Geremoabo, Itapicuru, Canabrava. Depois de corridos os
padres, os seus agressores derrubaram a sua morada e a
igreja, acrescenta o autor. Era para ser definitiva a
expulsão, como de fato foi. Serafim Leite fala em doze
anos de missão dos jesuítas em Rodelas. Pelas minhas
contas dão onze anos e meio. Em 1685, está em Martinho
de Nantes, ajudaram a confessar pela Páscoa, e a Páscoa
está pelos meses de março, abril. O Relato da expulsão,
assinado já na Bahia, data de outubro de 1696, mas, esta se
deu em fins de julho. Contam-se onze anos e menos de
meio.
Nas três fazendas existentes entre o porto de Acará e
Rodelas, ficou anotado acima, os índios da Casa da Torre
encontraram pronta a matalotagem. Estas fazendas seriam
possivelmente Barra, Araticum e Praia, onde era a sede da
fazenda do Rodela, na confluência esquerda do riacho de
Rodelas com o São Francisco. Enquanto isso, os padres,
sem matalotagem, devem ter ido de esmola ao longo de
cento e setenta léguas.
Viria, em seguida a essa triste ocorrência, o relatório
dos jesuítas, encaminhado à Coroa.(12) À vista do
relatório, a questão foi examinada pelo Conselho
Ultramarino e o rei ordenou que se fizesse uma devassa e
se agisse com justiça. A ordem real é firme, quer pôr cobro
ao excesso e ao crime. Preliminarmente recomenda que se
reponham os padres nas terras de onde foram expulsos, sem
que, para isso, seja preciso esperar o resultado do processo
e a sentença. Tudo apurado, a solução foi no sentido de
que, indenizados dos prejuízos, se fizesse retornar os
missionários ao seu trabalho. Mas as garantias e a liberdade
de ação que esses pleiteavam, foi negada, para não
melindrar a Casa da Torre, que prestara grandes benefícios
à Coroa, povoando e colonizando os sertões às suas custas.
Os jesuítas recusaram-se ao retorno.(13)
Com a firme atitude da Corte, a Casa da Torre
procurou desviar a questão para insinuações de ordem
diferente e até de honestidade. Leonor Pereira Marinho,
dirigiu-se pessoalmente ao Geral da Companhia de Jesus
com informações que não estavam de acordo com os fatos.
Antes de decidir, o Geral ouviu, como de justiça, os padres
do Brasil. O Provincial respondeu que essa senhora, mal
orientada e com pouco escrúpulo de consciência,
pretendera simplesmente enganá-lo, e, como se recorria a
tais expedientes, o melhor era recusar missões onde
faltavam garantias de ordem material e moral. Assim o
processaram a El-Rei, que apesar disso determinou que se
continuasse a devassa para a punição dos culpados. "E aos
padres da Companhia se haviam de ter como escusos
dessas missões, pelas razões que representaram, em que se
houveram com louvável prudência e zelo".
Não encontrei notícia, nem em Serafim Leite nem em
outro qualquer autor, de que se punissem os culpados,
como tão firmemente mandava a ordem imperial. Serafim
Leite registra que "a 23 de novembro de 1700 passou El-
Rei um Alvará, em forma de lei, em que diz `que por ser
justo se dê toda providência necessária à sustentação para
os índios e missionários, que assistem nos sertões deste
Estado do Brasil, sobre que se têm passado repetidas
ordens, e se não executam por repugnância dos donatários e
sesmeiros, que possuem as ditas terras dos mesmos sertões,
hei por bem e mando que a cada missão se dê uma légua de
terra em quadra para sustentação dos índios e missionário'".
Definitivamente a ordem real se diluía sem cumprimento.
Este era mais um alvará para nada. Acumulavam-se, sem
cumprir-se, as leis e alvarás para que se distribuísse a terra
ao índio. Tendo ficado sem nenhum efeito a demarcação
que pôs expulsos os jesuítas, não se fez nova sinalização
nem se confirmou aquela. Talvez pela distância em que se
encontrava, o rei não era rei, pelo menos para um mínimo
de benefício ao índio. Os jesuítas não voltaram por falta de
garantias e porque a terra não fora distribuída aos índios,
como reclamavam. Vieram os capuchinhos italianos e não
se falou mais nisso, continuou a lei no papel e os índios
sem terra. Aliás, está no registro histórico que o governador
Lencastro, antes tão empenhado na distribuição da terra ao
índio, e que chegara a dizer que havia de prender os
procuradores da Casa da Torre e só não prendia as
Mulheres, por serem mulheres, a partir de certo momento
ficou tão acomodado, que mais parecia um daqueles
procuradores.
Serafim Leite, responsável pelas informações acima,
deixa aberta a possibilidade de os jesuítas terem voltado
por algum tempo. Não tem certeza, diz que "parece que
eles voltaram". O cipoal muitas vezes contraditório dos
papéis da época, deixa realmente certa confusão. Diz ele:
"Parece também que os Padres da Companhia
retornaram às Aldeias do São Francisco ao menos por
algum tempo. Dois anos depois dos sucessos de Rodelas, a
18 de dezembro de 1698, examinou-se no Conselho
Ultramarino uma descrição das Aldeias do Rio São
Francisco, e se mencionam Aldeias dos Jesuítas nesse rio.
A primeira a 11 léguas acima da Cachoeira de Paulo
Afonso. `Aqui está o rio Rodelas, que vai transversalmente
cortando um grande sertão, muito povoado, e neste distrito
há uma casa de Missão em Aldeia de Índios da Sagrada
Companhia'".(15) A apreciação poderia ser de documento
anterior à expulsão, examinado posteriormente, sem o
cuidado da advertência, eis que a recusa de Padre
Alexandre de Gusmão, foi taxativa: "E a nós também se
havemos de ter uma contínua desinquietação dos currais,
bois, éguas e vaqueiros vizinhos, contra o costume das
outras aldeias, que têm distrito desimpedido; e se se hão de
ver esses exemplos repetidos e impunidos; e se havemos de
ser missionários da Casa da Torre a seu mando e não
missionários da Companhia à ordem e obediência
unicamente de Sua Majestade e de quem está em seu lugar,
para bem dos índios - não nos convém voltar".(16) Mas, a
favor do sim, há um fato real: à vista das anotações dos
autores, encontra-se, na aldeia de Rodelas, um espaço
aberto, de quatro anos, durante o qual não se tem notícia de
missionário, entre a expulsão dos jesuítas e a entrada dos
carmelitas. Para evitar o seu esfacelamento, não se duvida
que a Companhia de Jesus, instada pela Coroa, aquiescesse,
apesar da recusa de retorno, em servir um pouco mais a
Deus, esperando a substituição de seus missionários, até
porque os índios de Rodelas não concordavam com a
expulsão dos jesuítas, antes, quiseram defender, pelas
armas, a sua permanência - o testemunho é de Serafim
Leite. Por outro lado, se há o registro da entrada dos
franciscanos em Acará e Sorobabé, mas não em Rodelas,
pode ter sido porque a essa aldeia voltaram os jesuítas.
Houve participação direta de El-Rei Pedro II, para
que se entregassem as missões do São Francisco aos
carmelitas, o que só viria a ocorrer em 1702 quando estes
assumiam a direção das missões em Arnipó, Curumbabá e
Acará.
"O Brasil era muito grande; nem faltou campo onde
os Padres da Companhia exercessem a sua atividade; mas o
Rio S. Francisco e os sertões da Bahia não lucraram, sob o
aspecto de proteção aos índios, e até sob o aspecto de
cultura geral, com a atitude hostil dos vaqueiros da
Torre",(17) desabafa Serafim Leite após indicar o destino
dos padres e irmãos expulsos de Rodelas, para acrescentar:
"logo depois ordenava El-Rei a D. João de Lencastro que,
sendo o sertão de Rodelas da jurisdição da Bahia, para
impedir os crimes atrozes que ali se cometiam, se
nomeassem juízes ordinários, de 5 em 5 léguas, para
tomarem conhecimento desses crimes e enviar os treslados
ao Ouvidor da Bahia".(18) Parece que também essa
determinação não se cumpriu, uma vez que não há notícia
disso. O juizado era o de Jacobina e outro só veio a surgir,
como segundo, no século XIX, em Pambu.
A informação de Serafim Leite sobre as missões
jesuítas depois da expulsão, fecha-se assim: "Entretanto,
encerrado o episódio de Rodelas, os jesuítas concentraram-
se em obra estável e duradoura, em plenos sertões, a meia
distância, entre a Bahia e o rio S. Francisco, nas aldeias dos
Quiriris, já então existentes e donde partira o surto para
estas de Rodelas no S. Francisco".(19)
Um pouco de notícia dos padres expulsos de Rodelas
e daqueles que ali serviram nos primeiros tempos:
Nem Martinho de Nantes nem Serafim Leite
registram o nome do companheiro de João de Barros em
seu trabalho missionário em Rodelas. O primeiro, por certo
esqueceu-lhe o nome; escreve que era um "italiano de
origem e portador de grandes virtudes e de grandes
predicados". O segundo, em rodapé, à página 294 de seu
livro citado, refere-se a uma carta de Jacobo Cócleo que
fala dele entre os "índios accarenses". Barbosa Lima
Sobrinho, em comentário à obra de Nantes, página 113,
escreve que João de Barros "não era ainda padre, quando
entrou pelos sertões da Bahia em companhia do padre
Jacobo Rolando". Essa notícia está igualmente em Serafim
Leite, obra citada, página 281, nestes termos: "Na primeira
metade do ano de 1666 o P. Jacobo Rolando e o Irmão João
de Barro, depois Padre, e que veio a ser o grande apóstolo
dos Quiriris, puseram-se a caminho da Bahia para os sertão,
demorando-se em missões pelo trajeto"; logo mais estavam
na região do Itapicuru, trabalhavam os paiaiás e em pouco
fundavam as chamadas aldeias de Canabrava e Jacobina.
Parece que foi o primeiro companheiro de João de Barros
nas penetrações missionárias do sertão, o seu orientador
como irmão estudante. Mas certamente já não estava nessa
área quando os jesuítas assumiam a Missão de Rodelas. Em
1684 ia para a Ilha de São Thomé, é um registro de Serafim
Leite.(20) Eram certamente, dois com o mesmo prenome,
Jacobo Cócleo e Jacobo Rolando. Serafim Leite anota
também o nome de um padre Jacques Cocle em Canabrava.
Seria o mesmo Jacobo Cócleo? O melhor entendimento
leva ao nome dos dois Jacobos - Cócleo e Rolando, sendo o
primeiro, Jacobo de Cócleo, aquele que esteve com o padre
João de Barros em Rodelas, entre os índios accarenses.
João de Barros, o apóstolo dos cariris, nasceu em
1639, coincidentemente o ano em que o índio Rodela, com
o qual certamente viria a conviver, se revelava nas lutas
para expulsão dos holandeses das terras brasileiras de
Pernambuco. Desembarcou na Bahia em 8 de janeiro de
1654 e em 1659 estudava no Colégio de São Paulo.
Professou a fé nas aldeias de Canabrava, a 15 de agosto de
1657. Faleceu na Bahia em 14 de abril de 1691. Vida curta
e profícua, dedicada inteiramente ao serviço das missões
indígenas. Vale acrescentar, mais, sobre o nosso apóstolo,
um registro do padre Antônio Vieira, visitador da Ordem,
dando conta ao Geral, em 1689, da distribuição das aldeias.
Apresenta-o Serafim Leite, à mesma página 294: "a 120
léguas, fica a missão de outros Tapuias, ainda de língua
mais difícil, chamada de Acarás. Aqui o P. João de Barros,
peritíssimo na sua língua, com contínuos trabalhos em os
buscar e trazer ao aprisco da igreja, de ensinar a sua rudeza
e padecer a sua dureza, adoeceu de modo quase incurável, e
tendo-se chamado por necessidade o seu companheiro,
ficou só. Não foi possível mandar logo ajuda, senão de dois
irmãos. Esquecido dos seus próprios males, instruiu-os o
Padre quanto pode, no Catecismo de Língua dos Tapuias, e
os mandou pelas aldeias, não sem fruto, sobretudo dos
meninos. Enviado enfim um padre, gastou cinco meses em
chegar, pelas dificuldades do caminho, e achou o P. Barros
quase tirado das fauces da morte. Repartindo os irmãos,
ficou cada padre com o seu companheiro". Parece que João
de Barros fixara-se, depois de a fundar, na aldeia de Acará.
A gente não deve ter pressa nem receio de alongar-
se, preocupado em evitar cansaço ao leitor, quando diz
sobre os grandes nomes e as grandes ações humanas,
quando registra fatos que dignificam e enobrecem o homem
e as nações, quando considera justo destacar e glorificar a
memória daqueles que foram úteis à vida das pessoas, dos
povos, das nações. Também me parece que antes de aviltar
o escritor, enobrece-o transcrever aqueles que lhe superam
no estudo e no saber, na pesquisa, no trabalho. Essas as
razões porque transcrevo ainda um pouco Serafim Leite,
que aqui se reporta a Ânua de 1690-1691: "Morreu neste
ano o P. João de Barros, natural de Lisboa, a quem se deve
a fundação destas cinco missões do Rio S. Francisco e a
maior parte das de Canabrava, Saco dos Morcegos e
Natuba. Sendo hábil para qualquer ocupação e ministério
da Religião, se sacrificou a Deus nos matos, e assistiu
quase 22 anos a vários Tapuias, vencendo as dificuldades
grandíssimas que no princípio se encontravam, aprendendo
com grande estudo as línguas e fazendo Artes, Catecismos
e Prosódias para os vindouros, e logo passando da fundação
de uma missão para outra, de diferente língua, que era
tornar a principiar o trabalho, quando era de se gozar o
fruto esperado. As incomodidades, que padeceu nas
viagens, a falta dos mantimentos, e muitas vezes do
necessário para a vida humana, os desgostos que tragou,
nas oposições que faziam alguns brancos aos seus santos
intentos, e as doenças que padeceu, são dignas de se
contarem da vida de qualquer varão apostólico. O seu
procedimento foi sempre tão religioso que mais parecia
angélico que humano. Todos os companheiros, que teve,
sempre o reverenciaram por santo, inimigo do seu corpo,
desapegado dos afetos terrenos, e só unido a Deus".(21)
Tal foi o apóstolo dos cariris, fundador das aldeias de
Acará, Sorobabé, Caruru e Arnipó, o primeiro jesuíta que
viveu as terras dos índios rodelas. Sem sombra de dúvida,
Rodelas teve grandes homens e grandes nomes em seu
passado, e o padre João de Barros se destaca entre os
maiores.
Os que foram expulsos. Eis a relação dos
missionários e irmãos expulsos:
1 - Padre Felipe Bourel, Superior da Missão do Rio
São Francisco. Natural de Colônia, na Alemanha, fundará,
ao deixar Rodelas, a aldeia de Apodi, no Rio Grande do
Norte.
2 - Padre João Guincel, missionário da Aldeia de
Sorobabé/Caruru. Foi para o Ceará, onde fundou o
Hospício de Aquiraz, vindo a falecer aí.
3 - Padre Francisco Inácio, missionário da aldeia de
Acará. Natural de Monção. Faleceu em Camamu, Bahia,
em 6 de dezembro de 1735.
4 - Padre Agostinho Correia, missionário da aldeia de
Curumbabá. Natural de Braga. Foi para o Ceará, onde
faleceu em 27 de julho de 1728.
5 - Irmão Antônio Ferreira, da missão de Curumbabá.
Natural de Eiras, Coimbra. Ordenou-se depois de deixar
Rodelas. Veio a falecer na Bahia em 10 de setembro de
1756.
6 - Irmão Manoel Ramos, da missão do Sorobabé.
Natural de Porto Alegre, não perdurou nas missões.

NOTAS:
1 - Relação de uma Missão no Rio São Francisco, Martinho de
Nantes, tradução de Barbosa Lima Sobrinho, pag 2
2 - Martinho de Nantes, obra citada, pag 19
3 - Pietro Vittorino Regni, Os Capuchinhos na Bahia, vol. 1, pag. 213
4 - Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil, pag. 295.
5 - Serafim Leite, obra citada, pag. 297
6 - Vittorino Regni, Os Capuchinhos na Bahia, vol 1, pag 124
7 . Pietro Vittorino Regni, Os Capuchinhos na Bahia, vol. 1, pag.. 124
8 - Pietro Vittorino Regni, Os Capuchinhos na Bahia, vol. 1, pag. 125.-
9 - Martinho de Nantes, ob cit pag. 91/92
10 - Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil, volume
5, página 299..
11 - Pietro Vittorino Regni, Os capuchinhos na Bahia, vol. 1, pag.
325/326 (anexo n. 3 à consulta do Cons. Ultr. de 18.06.1696 - AHU PA
Bahia, capilha de 1697).
12 - Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil pag.
300/304
13 - Idem idem pag 305
14 - Idem idem pag. 307
15 - Idem idem pag. 308.
16 - Pietro Vittorino Regni. ob. cit. vol. 1, pag 128-rodapé,
transcrevendo AHU PA Bahia, ano 1697 e Anais, vol. cit. pag. 366.
17 - Serafim Leite, obra citada, pag. 304.
18 - Serafim Leite, Obra citada, página 306
19 - Serafim Leite, idem,. idem, pag. 310.
20 - Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil, pag.
285/288
21 - idem idem, pag. 295
XI - FRANCISCANOS E CARMELITAS
Passagem rápida dos primeiros

Com a expulsão dos jesuítas houve um interregno. A


Coroa não se dispusera a ensejar a independência e a
liberdade de ação reclamadas pela Companhia de Jesus
para retornar às missões. Quando foi a hora de buscar
sucessores para os missionários expulsos de Rodelas,
surgiram dificuldades. Inicialmente pensou-se nos
carmelitas de Santa Teresa. Solicitados pelo governador
João Lencastro, estes recusaram-se. Não dispunham de
padres em número suficiente para o trabalho, foi a
alegação. Ouvidos os franciscanos, estes responderam de
pronto mandando alguns trabalhadores de Deus para as
missões são-franciscanas, pondo-os nas ilhas de Acará e
Sorobabé/Caruru. Com isso atendiam prontamente o
interesse e conveniência da Casa da Torre, que mantinha
uma secular amizade com os padres de sua ordem. Já o
velho Garcia d'Ávila recorria a estes em 1609, para fugir
aos beneditinos que supunha, queriam tomar-lhe parte dos
bens, indo homiziar-se no hospital da Misericórdia, onde
morreria assistido espiritualmente pelos franciscanos. Mas,
parece que não chegaram a assumir a aldeia de Rodelas,
não há registro sobre isto, mas só as de Acará e
Sorobabé/Caruru. Dois anos depois da entrada nas missões,
eram substituídos em Acará, por expressa determinação de
El-rei. Do mesmo modo que não desejava melindrar a gente
da Torre, a Coroa não se dispunha a aceitar a sua vontade,
que não deixava de chocar-se com o interesse da catequese
em nome de Deus. Para os pecuaristas eram só o boi e o
dinheiro, o poder econômico que interessavam. Aos
missionários interessava a alma do gentio. E a expulsão dos
jesuítas havia não apenas chocado, mas contrariado a Corte
de Lisboa. Em nome de Deus, é certo, se fazia tudo, tanto o
bem quanto o mal, se se considerasse que este viria em
socorro de Sua maior glória. Matar e escravizar índios que
se recusassem a submeter-se ao aldeamento vinha em
socorro das missões? Que fosse. Para isso existia a
declaração da guerra justa. Arrancar homens de sua terra
nos fétidos e terríveis porões negreiros servia à colonização
que se fazia em nome de Deus? Multiplicassem-se os
corsários ou se oficializasse o comércio do negro. Naquele
momento, chocavam-se o interesse do colonizador com os
interesses da catequese. Ia-se, assim, desfavorecer as viúvas
prepotentes. E a Coroa recusou a presença dos
franciscanos, que duraram pouco no São Francisco. El-Rei
D. Pedro II, pessoalmente, decidiu entregar as missões de
Rodelas aos carmelitas. Apreciando a 8 de fevereiro de
1700 a questão devidamente estudada pelo Conselho
Ultramarino, mandou tratar com os carmelitas, oferecendo-
se-lhes todos os meios e favores necessários ao bom
desempenho missionário. E dois anos depois, em 1702 os
carmelitas já assumiam a direção das missões no São
Francisco, em Arnipó, Curumbabá e Acará e logo depois a
missão de Porto da Folha, em Sergipe. E em pouco mais,
era uma decisão pessoal de El-Rei, Pedro II, que julgava
necessário entregar as missões a uma mesma Ordem, para
evitar choque ou ciúme entre missionário - sábio, o rei -,
seriam Pacatuba e as ilhas da região de Aracapá - Irapuá,
Cavalos e Pambu, onde já não estavam os capuchinhos
franceses. Por outro lado, há uma observação relevante a
fazer-se: os historiadores falam sempre de missionário
franciscano em Curral dos Bois e Pontal. Parece que essas
duas missões se iniciaram e continuaram sempre ocupadas
pelos padres dessa ordem. Também, a partir da saída dos
jesuítas, a missão do Sorobabé foi administrada pelos
padres franciscanos. De igual modo, os franciscanos
estiveram no Pajeú, em Inhamuns, e Coripós (informação
colhida em Barbosa Lima Sobrinho).
Foi trabalhosa, segundo fr. Vittorino, a negociação:
"O visitador geral dos carmelitas, fr. André de S. João
Batista, encarregado de executar as determinações do Rei,
aceitou a nova incumbência de sua Ordem e diante da junta
local das Missões, adrede reunida, declarou que seus
missionários (cinco do Carmelo da Bahia e um de
Pernambuco) estavam prontos para as missões que lhes
tinham sido designadas, tão logo tivessem recebido o
dinheiro da viagem. A 20 de setembro daquele ano ele
escreveu a D. Pedro II, informando-lhe sobre as decisões
tomadas e enviando uma lista das missões já preenchidas
pelos frades de sua Ordem e das que estavam em vista
serem assumidas".(1)
Da lista das nove missões, que os carmelitas
descalços tinham tomado posse ou iam tomar, enviada a
Dom Pedro II pelo Pe. Fr. André de S. Batista em 20 de
setembro de 1702, destaco, a seguir, as do Centro
Missionário de Rodelas, entre as quais já não se incluía a de
Sorobabé:
"1 - A missão de Corumbabá, em que assistiram os
Muitos Reverendos Padres da Companhia de Jesus, a qual
fica em terra firme da parte da Bahia; a nação dos índios
que nela assistem se chama porcaz.
2 - A missão de Aranhipó da mesma nação de índios,
em terra firme foi administrada pelos Reverendos Padres
da Companhia de Jesus a uma légua da acima referida.
3 - A missão da ilha de Axará com invocação de
Belém da mesma nação porcaz, na qual assistiram os
Reverendos Padres da Companhia de Jesus".(2)
D. Leonor não se conformava, queria os
franciscanos. E fez uma contraproposta. Ela se declarava
disposta a assumir todas as despesas necessárias ao
apostolado, sustentando as aldeias e os missionários às suas
custas. Exigia em contra-partida que as missões fossem
entregues aos frades de São Francisco da Província.
Embora considerada vantajosa pelo Conselho Ultramarino,
a proposta foi recusada pelo Rei, que reafirmou os
carmelitas e declarou que nada impedia D. Leonor de
sustentar as missões com estes padres. Decididamente era
uma questão pessoal. Agora, Rei era rei.
O poder econômico em nenhum tempo se curvou
facilmente. E a família da Torre, magoada, mas sem meios
de insurgir-se contra a decisão da Coroa, enfrentou os
carmelitas e sustentou a luta diretamente com eles, por via
de uma acolhida fria, diga-se exatamente - de má vontade.
Reclamava contra o trabalho missionário, julgando-o baixo,
considerando insuficiente o número de padres. Insinuações
malévolas foram lançadas e propagadas, inclusive contra a
conduta dos missionários, tidos como voltados para
interesses materiais. Os padres estavam coagidos, o que,
por sinal, não se deu somente com os carmelitas, mas com
todos os missionários, desde os capuchinhos franceses,
sobretudo com os jesuítas.
"As queixas chegaram até a Corte de Lisboa, diz
Vittorino Regni, e provocaram a intervenção do Rei, que
deu ordens bem definidas sobre a administração das aldeias
e solicitou a reforma da "Religião do Carmo", se isto fosse
necessário. É interessante observar, continua o autor, que
"os carmelitas não eram os únicos a ter pouca reputação
naquele período. O clima de preconceitos, de suspeitas e de
desconfiança abrangia também outros setores do clero
secular".(3)
Enquanto isso, havia no meio social alguma coisa
assim como um sentimento de saudade dos capuchinhos e
se considerava injusta e desnecessária a expulsão dos
franceses. Estes quiseram voltar. Mas Lisboa ainda os
embaraçava. Por outro lado, a catequese era ponto alto para
a colonização, todos o entendiam, mesmo os pecuaristas
que punham seu interesse econômico acima de tudo. Estes
queriam a presença do missionário como amparo aos seus
bens, uma vez que ela mantinha os índios presos à aldeia e,
mais que isso, sempre à sua disposição para as "guerras
justas". Afinal decidiu-se pelos capuchinhos outra vez. Mas
agora viriam os italianos. Ia-se pelo ano de 1709. Vejamos:
"Deste renovado clima de simpatia para com os
capuchinhos", a palavra é ainda de Fr. Vittorino, "em que
nos parece descobrir as premissas de sua retomada de
atividade missionária no Brasil, há importantes
testemunhas nos documentos oficiais. Conhecemos, por
exemplo, o parecer do Ministro Conselheiro de Estado da
Corte de Lisboa, Antônio Luiz de Menezes, que,
apresentando ao Rei, em 1709, um detalhado programa
sobre a organização do distrito das Minas Gerais, entre
outras coisas, sugeria medidas aptas a fecharem as portas
da zona de mineração aos representantes do clero secular e
regular que não tivessem incumbência puramente
espirituais ou que não fossem de bom exemplo e as abrisse,
ao invés, aos "borbônios" italianos, tão beneméritos pelo
trabalho desenvolvido e que estavam desenvolvendo
noutras colônias portuguesas".(4)
Para vencer as últimas resistências da Coroa, que
ainda mantinha a simpatia pelos carmelitas, "foi de
importância decisiva a ação diplomática do procurador das
missões e superior do hospício dos capuchinhos italianos de
Lisboa, fr. Jerônimo de Gênova. De fato, somente após seu
pedido formal, foi publicado o decreto régio de 18 de
março de 1709, pelo qual o Governo de Pernambuco ficou
autorizado a entregar aos capuchinhos italianos o hospício
da Penha".(5) O hospício da Bahia viria em seguida para os
capuchos italianos, e a partir daí as missões de Rodelas.
Tendo os carmelitas entrado em Rodelas em 1702, e
somente assumindo os capuchinhos italianos em 1713,
entende-se que aí estiveram os primeiros por onze anos.

NOTAS:
1 - Pietro Vittorino Regni, obra citada, vol. 1, pag. 250.
2 - idem, idem, vol. 1, pag. 323.
3 - idem, idem, vol 1, p 251.
4 - idem, idem, idem.
5 - idem, idem, vol. 1, pag. 253/54.
XII - OS CAPUCHINHOS ITALIANOS
Um século e meio de missões

Ia-se pelo ano de 1713, quando os capuchinhos


italianos receberam as missões do São Francisco, iniciando-
se pela Missão de Rodelas, de onde, em 1696 haviam sido
expulsos os jesuítas. Embora, por causa de dificuldades
várias, só tenham entrado no São Francisco em 1713, a
aprovação da troca deu-se em 1709. Aqui está o registro:
"1709, dezembro, 10: Decreto de D. João V de
Portugal aprovando a troca dos carmelitas pelos
capuchinhos italianos nas missões do S. Francisco".(1)
Com a entrega do hospício da Bahia, que fora, antes,
dos expatriados capuchinhos franceses, aos capuchinhos
italianos, e a aprovação destes para substituírem os
carmelitas no São Francisco, estava resolvido o impasse
criado nas missões entre a Coroa e a poderosa Casa da
Torre, a primeira desejando a permanência dos padres da
Ordem de Santa Teresa, esta não os aceitando de bom
grado em suas terras. Passavam-se as aldeias mais uma vez
aos capuchos, agora pelos italianos. Isto satisfazia a Casa
da Torre, ainda que, se pudesse escolher, preferiria os
franciscanos da província, de velha amizade familiar.
Como os missionários estivessem na África, ilha de
S.Tomé, em uma oportunidade de crise com o clero
ordinário, foram daí deslocados para a Bahia em 1710,
reiniciando-se, assim a era capuchinha no São Francisco.
Nestes termos coloca Vittorino Regni a situação:
"Foi o Procurador Geral quem solicitou a Propaganda
a autorização para enviar às missões do Rio S. Francisco os
missionários que se achavam ociosos e sem trabalho na ilha
de S. Tomé".(2)
A dificuldade inicial para entrada em campo dos
novos missionários, representada pela falta de recursos para
o custeio de transporte e manutenção do pessoal, foi
solucionada com a decisão do novo chefe da Casa da Torre,
Garcia d'Ávila Pereira, de assumir o ônus financeiro das
missões. Ele havia sugerido a entrega da catequese a estes
missionários, propondo-se a custear as despesas de
manutenção. E a partir daí, com o novo Senhor da Torre e a
nova ordem missionária, passou a ser de franco
entendimento e apoio, o relacionamento
missionários/sesmeiro, salvo no episódio da separação das
missões em terra pernambucana, quando Garcia d'Ávila
Pereira recusou-se a manter as despesas da área
administrada pelos capuchinhos do Convento da Penha. Até
as guerras entre conquistadores e índios, iam-se
escasseando. O extermínio, praticamente já ocorrera. Os
indígenas restavam poucos e fracos, sem condição para a
luta. A última revolta de índios, quando os restos foram
eliminados, se deu em 1727.
Eis em ordem cronológica, o nome e o resumo
biográfico dos capuchinhos italianos que, segundo
pudemos colher em Pietro Vittorino Regni, foram
missionários em Rodelas e na área da qual Rodelas foi o
centro da catequese desde o seu início, até o final. Há
falhas, certamente, e não poucas, é o que foi possível
conseguir:
1 - Frei Hipólito de Borgo S. Donnino.
Composto o quadro inicial, fr. Hipólito de Borgo S.
Donnino foi designado para Rodelas e Acará, enquanto iam
Fr. Gabriel de Bolonha para Pacatuba; fr. Estêvão de
Bolonha para S. Pedro no Porto da Folha; Fr. Apolônio de
Brescia para a ilha de Aracapá; fr. Felipe de Calvelo para
Pambu e fr. José de Malpignano para a ilha do Cavalo e
Arapuá.
A curto prazo, o quadro se desfalcava, quer pela
morte de uns, quer por suas precárias condições de saúde.
Vinham das terras de África envelhecidos, doentes e
sofridos. Melhor seja a palavra de Vittorino Regni:
"Bem depressa este quadro foi modificado ou pela
morte ou pelas precárias condições de saúde da mor parte
daqueles missionários, todos "bons", consoante ao juízo de
fr. Miguel Ângelo, mas de idade avançada e já duramente
provados pelas lides apostólicas nas plagas africanas".(3)
Entre os que pouco duraram na sua missão são-
franciscana e na vida, esteve o padre designado para
Rodelas, fr. Hipólito. Somente em 1713 chegava para a sua
nova missão, na qual certamente permanecia o missionário
carmelita. E aí durou pouco. Moço, aos 38 anos, já não
tinha saúde e foi autorizado a retirar-se para sua terra natal.
Continuou, entretanto, no seu apostolado até a morte, não
se sabe precisamente até quando em Rodelas. Veio a
falecer no Convento da Piedade, em Salvador em 1717, o
que equivale a dizer quatro anos após o início de sua
missão. Havia nascido em 1676. Sua profissão apostólica se
dera a 17 de março de 1694. Sua experiência missionária
fora no Congo, a partir de 1706, vindo dali para a Bahia.
2 - Frei Bernardino de Milão
- fr. Jerônimo de Matera.
As dificuldades de pessoal fizeram que as missões do
São Francisco na nova era capuchinha fossem sempre
precárias e sem continuidade. Vimos que fr. Hipólito de S.
Donnino, designado para Rodelas em 1710, somente
alcançaria a aldeia em 1713 e que, por problemas de saúde
cedo recolheu-se ao mosteiro, onde faleceu.
Em 1714 viriam outros missionários, para substituir
aqueles primeiros, que a morte ou falta de saúde levaram.
Destes, situou-se em Rodelas Fr. Bernardino de Milão, uma
vida inteira dedicada às missões. Depois de servir em
Rodelas durante oito ou nove anos, foi deslocado para a
aldeia de Rio de Contas. A julgar pelo registro de fr.
Vittorino Regni, que aqui diz oito, ali diz nove anos,
fixando a saída em 1729, fr, Bernardino, que entrou na
Bahia em 1714, só em 1720/21, veio para Rodelas, e era
um interregno entre os dois missionários, de pelo menos
três a quatro anos, a admitir-se a possibilidade de fr.
Hipólito ter permanecido na missão até o ano de sua morte -
1717. É certo que as aldeias não podiam ficar sem padre
durante muito tempo, pois isso seria o mesmo que a
debandada dos índios. É possível, então, que nessa e em
outras ausências de titular, a missão fosse assistida
provisoriamente, por meio de visitas periódicas de algum
missionário vizinho.
Tendo servido em Rodelas durante oito ou nove
anos, em 1729 fr Bernardino estava indo para o Rio de
Contas. Leia-se:
"Ficou a dita aldeia um mês sem missionário" (fala
de Rio de Contas), no mês de agosto de 1729, o Prefeito
deste hospício à petição do Exmo. Sr. Vice-Rei, mandou a
governar e fundar constantemente a dita aldeia e dar-lhe
forma de missão o Pe. Bernardino de Milão, o nosso
missionário capuchinho, que tinha já governado por oito
anos a aldeia de Rodelas, no seu tempo com 722 almas,
conservando-a sempre muito quieta, luzidia e sujeito
(sic)".(4) Deu-se que, depois de desligado do hospício da
Bahia, ao qual esteve vinculado por algum tempo, o
hospício de Pernambuco entrou em choque com esse, por
causa das missões nas ilhas do S. Francisco, que, sendo
terra pernambucana, estavam jurisdicionadas pelos
capuchinhos da Bahia. Instalava-se uma crise na catequese,
de si mesma já difícil e de pouco rendimento. Com isso,
tornavam-se maiores os sacrifícios aos missionários e
menor o aproveitamento religioso do índio. À constante
interrupção da palavra da igreja, ora em razão das lutas
entre missionários e vaqueiros, ora em razão da
insuficiência de padres, somavam-se as dificuldades
inerentes à língua e os dialetos cariris. Haviam freqüentes
mudanças de missionários, por doença, morte e outros
motivos, já se disse e demorava, às vezes de anos, a
substituição. Quando os padres, muitos deles idosos,
começavam a dominar um dialeto, surgia outro a superar, e
tudo recomeçava, ou mudava-se o missionário e voltava-se
ao começo.
Agora, como novo complicador, o conflito de
jurisdição. Corria o ano de 1728. A controvérsia já existia
desde 1725, quando se dera a separação jurisdicional da
Bahia e Pernambuco, a administração dos capuchinhos do
Convento da Penha, no Recife, pretendendo gerir as aldeias
da jurisdição pernambucana, para o que contava com igual
interesse e mesmo com o estímulo de parte do bispado e do
governador da província. "Foi envolvido nosso missionário,
fr. Bernardino de Milão, que havia nove anos, estava
administrando a missão dos Rodelas que, como sabemos,
moravam em ambas as margens do rio", registra Vittorino
Regni.(5)
Aconteceu que o governador da Bahia nomeara o
mataroa, que vinha a ser alguma coisa como o governador
geral dos índios das aldeias administradas pelo centro de
Rodelas, no conjunto. Em cada uma destas havia um índio
capitão-mor, com menor autoridade que o mataroa. Para
resolver um conflito entre índios do lado pernambucano,
inadvertidamente o frade mandou o mataroa Jorge Dias de
Carvalho, de Rodelas. Este entrou em território
pernambucano praticando violências tais, que gerou um
conflito entre os Governadores de Pernambuco e da Bahia,
o qual, viria a pedir desculpas, autorizando a prisão de seu
preposto indígena.
"Deste estado de tensão se originou, em 1728, um
grave incidente que se resolveu com a extinção daquela
parte da missão dos Rodelas que se achava em território
pernambucano, registra Vittorino Regni, para continuar: O
fato provocou acerba reação por parte do governador de
Pernambuco, Eduardo André Pereia, que exigia dos índios
de sua jurisdição obediência à autoridade do capitão-mor
Diogo Álvares de Oliveira, nomeado por ele".(6) Lá se ia
do centro missionário de Rodelas, a aldeia de Acará.
Separando-se "aquela parte da missão dos Rodelas que se
achava em território pernambucano", como diz o escritor,
então, iam-se também os índios das ilhas de Jatinã,
Vacayuviri e Veri Pequeno, Araticu e Pedra. Mas, quem
assistiria esses índios, se aí não havia missionário, e Acará
ficava bastante longe? Pode ter acontecido que estas ilhas
ainda continuassem na jurisdição de Rodelas, onde,
possivelmente, moravam os índios, que as ocupavam para o
trabalho de lavoura. Não se tem qualquer registro.
E fr. Bernardino acabou sendo "convidado" a fundar
e dirigir a aldeia de Rio de Contas, para onde foi em 1729,
deixando para trás os seus procás. Até aí Rodelas tinha 722
aldeados e com o choque entre as duas administrações
estaduais, passou a ter não mais que duzentos. Não ocorreu
interrupção no trabalho missionário, uma vez que em 1730
fr. Vitaliano de Romano estava na aldeia, como se verá
adiante. Fr. Bernardino de Milão faleceu em 1750.
Acerca da autoridade do mataroa rodeleiro, vale
transcrever, em tradução portuguesa, o trecho do original
em latim de fr. Romoaldo Donnino publicado por fr.
Vittorino na obra citada: "Na aldeia de Rodelas reside o
chefe supremo da família Mataroha (sic), ele mesmo de
raça índia, que exerce autoridade e inculca grande temor
entre os seus indígenas. Nas outras aldeias há um chefe
inferior, com o título de capitão-mor. Em cada uma delas
(como nas outras de outras ordens) o missionário
desempenha o papel de pároco in spiritualibus, de pai dos
negócios familiares e de governador na parte civil. E isto
por decreto do Rei".(7) Mataroa - chefe supremo, diz-se.
Segundo registra Vittorino Regni, tratava-se de um
"governador geral dos índios do S. Francisco". Esse chefe
supremo residia na aldeia de Rodelas. Nas demais, havia
um chefe inferior, com o título de capitão, diz-se ainda. A
figura do mataroa foi sem dúvida passageira. Entre 1720 e
1723, fala-se em Francisco Dias Mataroá nas guerras do
Piauí, inicialmente ao lado do conquistador, por fim ao lado
de seus irmãos índios. Agora, em 1728, já o nome do
mataroa é Jorge Dias de Carvalho. E não se menciona mais
a presença desse "Governador Geral dos Índios do São
Francisco". Talvez fosse uma invenção dos padres, que não
vingou, quiçá um resquício dos tempos do capitão
Francisco Rodela, cacique das muitas aldeias da nação
procás. Francisco Rodela, chefe natural da tribo procás,
residia na aldeia de Curumbabá (Rodelas) e tinha poder
sobre as demais aldeias da nação. Era um poder natural de
cacique, antes da invasão dos Ávilas. Nomeado capitão,
parece que seu título mudou, porque Serafim Leite o
chamaria de sargento-mor. Outros sucederiam Francisco
Rodela no título, mas de nenhum se disse mataroa.
Em 1722 fr. Jerônimo de Matera vinha para a ilha de
Acará, onde continuou depois que a aldeia passou à
jurisdição pernambucana. Sem dúvida foi deslocado do
convento da Bahia para o de Pernambuco. Não se têm
maiores notícias sobre ele depois da separação jurisdicional
Bahia/Pernambuco, mas, é certo que padre Jerônimo
continuou em Acará. Este padre foi missionário por quatro
anos no Congo. Na Bahia, designado para Acará, dedicou
os últimos anos de sua vida apostólica aos índios daquela
missão, a que tanto estimava e aí morreu placidamente em
1739, e já eram dezessete anos de permanência entre os
seus ilhéus. A notícia:
"1739, maio, 26: Morre em Axará fr. Jerônimo de
Matera depois de 17 anos de trabalho entre os índios
daquela missão baiana.(8)
3 - Frei Vitaliano de Romano.
Frei Vitaliano de Romano chegou ao Brasil em 1720,
indo para o Convento da Penha, em Pernambuco. Aí
demorou-se pouco e veio exercer seu apostolado nas
missões do São Francisco, às quais dedicou a vida inteira.
Entre 1730 e 1740 missionou em Rodelas, de onde foi em
1741 para a ilha da Vargem. Também em 1741, fr.
Bernardino de Scúrcula, que servia a seu lado, deixava
Rodelas.
4 - Frei Bernardino de Scúrcola.
Em 1728 fr. Bernardino de Scúrcola deixava sua
província com destino à África, Congo. Chegando na
Bahia, de passagem, com problemas de saúde, acabou
recebendo autorização para ficar. De início, ainda doente,
foi para a aldeia de Pambu, ficando ali durante algum
tempo auxiliando fr. Possidônio. Mais tarde viria para a
aldeia de Rodelas. Aqui esteve entre 1735 e 1741, período
em que aí servia também fr. Vitalino de Romano
(1730/1740). Nessa fase a aldeia conheceu um período de
crescimento, passando a ter de 506 a 600 aldeados, e isso
indica que melhoravam os tempos, talvez voltassem à
Missão de Rodelas os índios das ilhas vizinhas, os quais, se
estivessem, então, jurisdicionados pelo padre de Acará,
estavam sem dúvida mal assistidos, devido a distância. Fr.
Bernardino de Scúrcola ainda voltou a servir em Pambu, e
sempre sem saúde, viria a falecer no Convento da Piedade
em 26 de abril de 1751. Não encontrara forças físicas para a
viagem de retorno à pátria, ainda que a isso autorizado. Eis,
extraídas de fr. Agatângelo, obra citada, as suas notícias:
"1746, novembro, 16: "A Propaganda Fide acolhe o
pedido de fr. Bernardino de Scúrcola de voltar para a
Província depois de 15 anos de serviço em prol das almas
entre os índios de Pambu e Rodelas".(9)
"1750, março, 29: Ordem para o regresso de fr.
Bernardino de Scúrcola para a sua Província. Ele de
passagem para o Congo, sua meta, chegou aqui em tal
estado de saúde que não se viu com coragem de prosseguir
a viagem para a África. Trabalhou por algum tempo entre
os índios do S. Francisco".(10)
"1751, abril, 26: Morre na Piedade fr. Bernardino de
Scúrcola que, por motivo de doença não pôde prosseguir
sua viagem para o Congo. Missionou em vários centros do
S. Francisco".(11)
5 - Frei Boaventura de Occimiano.
Entre os missionários de Rodelas, está um santo. Sem
indicação de data, aqui esteve fr. Boaventura de
Occimiano, "frade humilde, simples, reservadíssimo,
austero, de profunda caridade para com o próximo, sempre
compenetrado da presença de Deus", isso lhe foi
reconhecido oficialmente pela igreja com um indulto em 23
de novembro de 1890, registra Vittorino Regni.
Nasceu em 4 de janeiro de 1708 e foi batizado com o
nome de Francesco Serretti. Entrou para o noviciado aos 16
anos em 1724, manifestando desde logo forte vocação
missionária. Veio para o Brasil em 1741, sendo designado
para a Bahia. Ficou inicialmente no Convento da Piedade.
Em 1748 foi mandado para as missões do São Francisco,
inicialmente na ilha da Vargem, onde ajudou o velho
missionário Vitalino de Milão. Durante algum tempo
trabalhou na aldeia de Rodelas. Suas condições de saúde
não lhe permitiram servir por muito tempo nas missões e
seria autorizado a retornar à província natal, onde faleceu
santamente aos 64 anos em 17 de outubro de 1772. Sabe-se
que missionou em Rodelas, por uma carta escrita a uma sua
irmã religiosa falando de suas missões. Não se sabe
exatamente quando nem por quanto tempo.
"1708, janeiro, 04: Nasce na Itália o Servo de Deus,
fr. Boaventura de Occimiano, que trabalhou por alguns
anos na aldeia da Vargem no S. Francisco".(12)
"1771, julho, 21: Carta do servo de Deus, fr.
Boaventura de Occimiano a uma sua irmã freira falando
sobre seu apostolado de Rodelas".(13)
"1772, outubro, 17: Morre na Itália o servo de Deus,
fr. Boaventura de Occimiano. Ordenado sacerdote se
dedicou à conversão dos hebreus cuja língua aprendera
muito bem. Mais tarde veio como missionário para esta
prefeitura. Trabalhou nas aldeias de Rodelas e Vargem
durante 10 anos com grande proveito para as almas. Seu
processo de beatificação foi introduzido em novembro de
1880".(14)
"1890, novembro, 23: Indulto da Santa Sé
autorizando a abertura inicial do processo informativo para
a beatificação de fr. Boaventura de Occimiano que
trabalhou entre os índios do S. Francisco".(15)
6 - João Batista de Caramânico.
Em 1741 fr. João Batista foi designado para o Brasil,
vindo para o convento da Piedade, na Bahia. Em 1748
estava em Acará. Em seguida à transferência de fr.
Bernardino de Scúrcola para Pambu, ficou cuidando
igualmente do centro de Rodelas, que já em 1741 contava
com 600 almas. Tendo presença ativa em Acará até 1761,
acumulou a aldeia de Rodelas até 1758, quando fr.
Anselmo de Andorno se iniciou ali.
Frei João Batista destacou-se na luta contra os
colonos para defender o direito dos índios, tornando-se, por
isso, vítima de torpes calúnias espalhadas pelo sargento-
mor Jerônimo Mendes, sem que se deixasse abater. Viveu
mais de vinte anos entre os seus acarases, dez dos quais
atendendo também os índios de Rodelas. Rico exemplo de
luta, de persistência na luta. Com certeza a aldeia de Acará
teve maior estabilidade nesses primeiros tempos da missão
capuchinha italiana. Padre Jerônimo de Matera, entrando
em 1722, aí esteve até a sua morte, em 1739. Em 1741
entrava padre João Batista de Caramânico, que também
ficou até o falecimento em 1761.
7 - Frei Anselmo de Andorno.
Em 1747 fr. Anselmo de Andorno estava na ilha de
São Tomé, África, como prefeito da missão ali sediada,
depois de já haver servido nas missões do São Francisco.
Retornou ao Brasil em 1754 e em 1758 estava na aldeia de
Rodelas, onde permaneceu durante os anos difíceis da
perseguição de marquês de Pombal.
Nessa quadra fr. Anselmo, que já era um homem
idoso, contando 36 anos de vida missionária, teve de
enfrentar a tarefa de reanimar a aldeia e reerguê-la, e o fez
com muito zelo e tenacidade. É incerta a data em que
deixou a missão de Rodelas, mas aí esteve até bem pouco
antes de sua morte, que se deu no Convento da Piedade em
1775 aos 91 anos de idade.
Era, além de inteiramente dedicado ao trabalho
missionário, um decidido homem de luta. Veio a Rodelas
nessa ocasião e em tão longeva idade, exatamente para
reerguer e salvar a aldeia, depois de haver chefiado o
Convento da Bahia e o de São Tomé, na África. Vejam-se,
sobre ele, os registros a seguir, de fr. Agatângelo de Crato
em Notícias dos Capuchinhos no Brasil:
"1730, abril, 29: Relatório do prefeito fr. Possidônio
de Mirândola à Propaganda sobre o estado geral das
missões são-franciscanas e apresentando fr. Anselmo de
Andorno como pessoa idônea para o suceder no cargo".(16)
"1754, abril, 29: Recurso apresentado à Corte por fr.
Anselmo de Andorno solicitando fosse impedida a
construção de um quartel militar em frente da igreja da
Piedade".(17)
"1748, julho, 02: Relatório do prefeito Anselmo
Andorno sobre a missão do S. Francisco".(18)
8 - Carlos de S. Seconda.
Fr. Carlos de S. Seconda, originário do Ducado de
Parma e Placência, Itália, chegava ao Brasil, designado
para o Convento da Piedade em 1759. Após 10 meses no
Convento, foi mandado para a aldeia de Rodelas, onde
permaneceu até à época da supressão pernambucana,
servindo ao lado de fr. Anselmo de Andorno, que aí estava
desde 1758. Não lhe faltaram dificuldades, lutas e
sacrifícios, como se vê, segundo registro de Vittorino, "de
uma carta sua endereçada ao tenente Francisco Alves
Pugas, em que, com teor profético, ameaçava de castigos
Jerônimo Mendes, o destruidor das missões". Há silêncio
das fontes, mas consta que teria sido acometido de doença
mental, que o levou a praticar alguns atos de que se
aproveitaram os inimigos para acusar os capuchinhos. Em
um desses momentos de loucura, segundo Regni,(19)
lançou a excomunhão sobre todos os índios de sua aldeia.
Essa excomunhão seria aquela célebre "praga" de que nos
fala a tradição local: "fica-te aí, Rodelas, que de rodelas
não passarás"? Foi recolhido à província natal, vindo a
falecer na viagem. Estava realmente doente. Entrara para a
Ordem em 1740 e se ordenara em 1746. Até 1761 esteve
em Rodelas. Vejamos as notícias de fr. Agatângelo, obra
citada:
" 1761, janeiro, 03: Carta de fr. Carlos S. Seconda ao
tenente Francisco Alves Pugas em que ameaça, com
castigos de Deus, Jerônimo Mendes Paz, o destruidor das
missões capuchinhas do S. Francisco".(20)
9 - Frei Apolônio Todi, o apóstolo do Sertão.
Rico e longo é o currículo de fr. Apolônio Todi,
grande a sua obra de evangelização e construção de igrejas,
entre as quais se destaca o trabalho da Via Sacra em Monte
Santo. Esteve em Rodelas por quatro anos, entre 1787 e
1791. Andava pelas missões do São Francisco e aqui parou.
Certamente a aldeia estava desassistida na oportunidade. O
último missionário antes dele, deve ter sido fr. Anselmo de
Andorno, que faleceu em 1775. Um raio havia danificado a
igreja e ele dedicou-se a reconstruí-la. A notícia de sua
morte, na palavra de fr. Agatângelo, obra citada:
"1828, julho, 14: Morre em Mairi-BA, o grande
missionário do sertão baiano, Apolônio Todi, o criador de
Monte Santo-BA.(21)
10 - Frei Felix Brisighella.
Para substituir fr. Apolônio, veio fr. Felix, que durou
pouco em Rodelas, sendo mandado em seguida para o
baixo São Francisco. "Parece, registra Regni, que seu
ministério ali se desenvolveu sob a dependência direta do
Arcebispo que lhe confiou a incumbência específica do
cuidado espiritual dos grupos índios do S. Francisco".(22)
Este missionário recebera o mandato apostólico em 19 de
julho de 1790. Chegou a Pernambuco em janeiro do ano
seguinte e de lá veio para a Bahia.
11 - Frei Mariano de Brusasco.
Depois que fr. Felix saiu, veio fr. Mariano de
Brusasco, que ficou em Rodelas por cinco anos. Sua
designação para a Bahia ocorreu em 1796. Sua pregação
em Rodelas deve ter começado dez anos depois de sua
entrada na Bahia, entre 1805 e 1810, a partir de quando, a
escassez de pessoal e os muitos problemas do apostolado
missionário já não permitiam aos capuchinhos continuar
com estabilidade seu trabalho assistencial à aldeia de
Rodelas, que esteve tempos sem missionário. Entre a saída
de fr. Felix Brisighella, que entrara em Rodelas depois de
1791 e aí se demorou pouco, e a vinda de fr. Mariano, ia
um vácuo de talvez quatorze anos. Depois de 1810, deu-se
outro vácuo até 1836. E já aí não havia vizinho para suprir
a ausência do missionário, Rodelas era a única aldeia então
missionada no São Francisco, as de Pernambuco foram
supressas com Pombal. Não há notícia nem de visitas
periódicas. Eram longas demais as interrupções, 14 e 26
anos, no entremeio um padre por cinco anos.
12 - Frei Paulo Maria de Gênova.
Rodelas foi o único aldeamento indígena que
sobreviveu à supressão dos centros do médio S. Francisco,
ainda que sem continuidade, como se verifica das
interrupções apontadas. Em 1836 aquela aldeia era
administrada por fr. Paulo Maria de Gênova. É provável
que desde a época de sua chegada, ele tenha desenvolvido
sua atividade missionária em Rodelas e nos arredores, com
a autorização de fr. Ambrósio de Arcévia. Em 1848 deixou
aquela aldeia e veio para este hospício da Piedade. Estava
sem saúde.
"1848, dezembro, 12: Ofício do Diretor Geral dos
Índios da Bahia ao Presidente da Província falando da saída
de fr. Paulo Maria de Gênova do centro missionário de
Rodelas.(23)
"1849, setembro, 10: Morre na Piedade fr. Paulo
Maria Gênova que trabalhou por vários anos no centro de
Rodelas".(24)
13 - Frei Paulino de Limone.
Com a saída de fr. Paulo, assumiu a aldeia de
Rodelas, em 1848, fr. Paulino de Limone, jovem
missionário, chegado da Itália. Seu apostolado na aldeia
durou pouco. Pela metade de 1851, foi chamado pelo
Comissário Geral para o Rio de Janeiro. Parece, que sua
presença em Rodelas continuou por mais dois anos, porque
somente em junho de 1853 viajou para o Rio.
Sem missionário, a aldeia de Rodelas passou ao
arbítrio de seculares, sempre mais preocupados com o que
comer e beber amanhã, do que com as almas e sobretudo
com a tutela de índios. Dilapidaram os bens da comunidade
indígena. Em 1855 Cena Madureira comunicava à
Presidência da Província as extorsões cometidas contra os
índios pelo administrador local, um André Francisco da
Silva, que se servia das terras deles para conquistar e
contentar boa clientela, esbanjava as suas rendas e ainda
comerciava com aguardente, desrespeitando as
determinações legais. Por este e outros abusos praticados
pelo vigário de Glória e pelo juiz municipal de Geremoabo,
sentia-se a urgente necessidade do retorno dos
missionários.
14 - Frei Luiz de Gúbio.
O Governador da Província oficiou à Câmara
juntando as reclamações e pedidos dos índios no sentido da
volta dos capuchinhos. E porque haviam chegados novos
missionários, foi providenciada a ida de fr. Luiz de Gúbio
para a missão de Rodelas, na qualidade de diretor e
catequista, com a finalidade de reorganizar aquele centro.
A assistência espiritual aos índios e a reorganização
da aldeia ocuparam o missionário por cinco anos. Finda a
reorganização e postas as coisas da aldeia em boa
regularidade, considerou-se desobrigado e retornou ao
Convento da Piedade em 12 de outubro de 1862, pondo-se
à disposição dos superiores para outras tarefas. Este foi o
último missionário capuchinho em Rodelas, e lá se haviam
passado 191 anos de missões religiosas, desde fr Francisco
de Domfront, para salvar um punhado de índios. Como
eram duros esses tempos! O governador da província ainda
o encarregou de fazer uma visita à região, a ver como
andavam as aldeias e o estado dos antigos catequéticos na
ausência dos missionários.
Fr. Luiz Giávoli de Gúbio nasceu a 21 de junho de
1821, entrou para a ordem a 10 de abril de 1837, veio para
o Brasil a 22 de junho de 1856.

NOTAS:
1 - R. 2, 28, 2 em Notícias Históricas dos Capuchinhos do Brasil, fr.
Agatângelo de Crato, pag. 150.
2 - Pietro Vittorino Regni, Os Capuchinhos na Bahia, vol 2, pag. 32.
3 - Idem, idem, vol. 2 pag 33.
4 - Idem, idem, vol 2, pag 39.
5 - idem, idem, vol. 2, pag. 96.
6 - idem, idem, vol. 2, pag. 96.
7 - idem, idem, vol. 2, pag. 97-rodapé.
8 - R. 2, 129, 3 - em Notícias Históricas dos Capuchinhos do Brasil,
pag. 66., fr. Agatângelo de Crato,
9 - R. 2, 105,75 - idem, idem, pag. 140.
10 - R. 2, 104, 68 - idem, idem, pag. 42.
11 - R. 2, 105, 1 - idem, idem, pag. 54.
12 - R. 2, 135, 1 - idem, idem, pag. 10.
13 - R. 2, 135, 174 - idem, idem, pag. 89.
14 - (LC. 244) - idem, idem, pag. 127
15 - R. 2, 135 - idem, idem, pag. 142.
16 - R. 2, 93, 25 - idem, idem, pag. 55.
17 - R. 2, 168, 2 - idem, idem, pag. 55.
18 - R. 2, 60, 112 - idem, idem, pag. 80.
19 - Vittorino Regni, Capuchinhos na Bahia, vol. 2, pag. 198-rodapé,
20 - R. 2, 198,3 - Idem, idem, pag. 9/10.
21 - R, 2, 282, 3 - Idem, idem, pag. 85.
22 - Pietro Vittorino Regni, Os Capuchinhos na Bahia, vol .2, pag.
259.
23 - 2,493, 128 - Idem, idem, pag. 151.
24 - R. 2, 493,4 - Idem, idem, pag. 110.
XIII - O GENOCÍDIO
A "guerra justa", a degola e a escravização

A palavra apropriada ao crime cometido contra o


índio neste país - é genocídio. Não me parece que tenha
sido menos que isso a extinção do povo indígena,
calculadamente. Matava-se o índio nas malditas "guerras
justas", cortava-se o pescoço aos guerreiros aprisionados,
tomavam-se-lhes as terras, escravizavam-se as mulheres e
crianças e tudo isso estava justificado, a justificativa aceita
pelos cronistas da época, com a argumentação de que eram
bárbaros e ladrões de gado. Não precisarei de mais que esta
meia dúzia de palavras. A partir delas, basta transcrever os
autores, entre os quais, parece que só os padres
lamentavam, e mesmo lamentando, houve, entre estes, os
que tomaram parte nas guerras de matança acompanhando
os seus "índios mansos". E lamentar era tudo. Rolava o
barco da extinção de uma raça, placidamente sobre rios de
sangue.
Martinho de Nantes, tantas vezes citado e transcrito
neste trabalho como historiador das primeiras missões no
rio São Francisco, foi um deles. Vá, mais uma vez, a copia
de sua confissão é singela:
"Renderam-se todos, sob condição de que lhes
poupassem a vida. Mas os portugueses, obrigando-os a
entregar as armas, os amarraram e dois dias depois
mataram, a sangue frio, todos os homens de arma, em
número de quase quinhentos, e fizeram escravos seus filhos
e mulheres. Por minha felicidade, exime-se o padre de
culpa, não assisti a essa carnificina; não a teria suportado,
por injusta e cruel, depois de se haver dado a palavra de
que lhes seria poupada a vida".(1) Mas foi um dos
responsáveis pela barbárie, uma vez que participou da
guerra acompanhando os seus mansos cariris. Ele não só,
também outros religiosos, cujo nome não registra. É certo
que estava obrigado, por lei, a pôr os índios de sua aldeia à
disposição do Governo, para as chamadas "guerras
justas",(2) nunca, a segui-los, como o fez, com a alegação
de que sem a sua presença se recusariam. Enfim, purgou
bastante o pecado na luta pessoal que, a partir daí, travou
com o senhorio da Torre para defender os índios das
missões.
Mas, que se quer? O responsável pela matança desses
quase quinhentos índios, era referenciado em termos de
elogio. "Domingos Rodrigues de Carvalho era um bravo
sertanista, escreve Pedro Calmon, noticiando em seguida:
Capitão de ordenanças do distrito da Torre, fora destacado
no sertão do São Francisco em 1669 (patente de 4 de
dezembro). Escrevendo à Câmara, o governador dissera
dele, que era `pessoa inteligente, que tem comunicação com
os rodelas, tamaquins e outras nações volantes do rio de
São Francisco'.... Infligira aos rebeldes o primeiro castigo
no rio Verde, `matando grande número e aprisionando
outros e parte do mulherio, não lhe escapando mais de 68
espingardeiros'...".(3) Assim era o entendimento da
autoridade maior da Colônia do Brasil. À degola de quase
quinhentos índios, dava a dimensão de inflingência de
castigo aos rebeldes, louvando o aprisionamento do
mulherio, mais que isso, tecendo elogios ao assassino
responsável pelo massacre. Pobres! Nem espingarda
tinham, senão arco e flecha.
Entre 1671, data comprovada da presença de fr.
Francisco de Domfron nos sertões são-franciscanos e 1702,
quando o último capuchinho francês deixava o Brasil, o
depoimento que fica, é terrível: "O Brasil é um exílio e um
retiro para os diversos criminosos, condenados seja pelo
Tribunal de Inquisição, seja pela justiça comum. Esse país
se encheu assim de mais habitantes viciosos do que de
outros, pois que ali se vive com muita independência e
libertinagem e os crimes raramente são punidos", depõe
Martinho de Nantes.(4) E no dizer de fr Bernardo,
plenamente de acordo com as informações de fr. Martinho
e de outros missionários, a classe dos colonos no São
Francisco era formada pela escória da sociedade
portuguesa: "esta sociedade é o refúgio comum dos
criminosos, assassinos, desordeiros, os quais, para se
livrarem da justiça que os persegue, vêm para cá a fim de
evitar os castigos merecidos e vivem, na maioria, em
concubinato", diz o padre, conforme o registro de Pietro
Vittorino Regni.(5)
Pois estes, eram os colonizadores, rendeiros dos
Ávilas, e, nessa condição participavam da guerra ao nativo,
para escravizá-lo e apurar um dinheiro. Não poderia dar-se
menos que a barbárie conhecida.
"O ouvidor geral da comarca da Bahia, Dr. Manoel
da Fonseca Brandão - o registro é de Felisbello Freire -,
representou à coroa sobre a freqüência de delitos nas
margens do S. Francisco, refugiando-se os delinqüentes nas
aldeias que por aí existiam, impunes de seus delitos, pela
dificuldade da ação do juiz de Jacobina, muito distante da
zona em questão". A representação referenciada deve estar
situada até 1742, quando todo o sertão era jurisdicionado
pela Ouvidoria de Jacobina. Em decorrência disso, o
Conselho Ultramarino, criava a vila de Urubu em 2 de
outubro de 1745.(6) Que berrasse o ouvidor pela criação de
novos órgãos de justiça. No máximo tais órgãos
processariam os miúdos. Contra os grandes criminosos,
matadores de índios, não haveria processo, eles
representavam a Lei.
"Em companhia do capitão-mor - vamos analisar a
matança a partir de 1549 - vieram seis jesuítas, os primeiros
mandados a este continente, sobre cujos destinos tanto
deveriam mais tarde pesar", escreve Capistrano de
Abreu(7) continuando:
"Os jesuítas, superiores e alheios a este debate,
concentraram esforços na capitania de S. Vicente.
Transpondo a Serra do Mar, estabeleceram na ribeira do rio
Tietê uma primeira missão que tomou o nome do apóstolo
das gentes (25 de janeiro de 54)".(8) Seriam as almas
salvadoras de uns poucos, mas não podiam nada contra a
guerra sem fronteiras movida ao índio por determinação do
governo a que eles próprios deviam obediência e a cujo
serviço na verdade estavam, porque, se eram homens de
Deus e em nome de Deus vinham, só vinham pela
aquiescência do Poder e para servir conforme a sua
conveniência. Daí, o apenas lamentar e palidamente chorar
aos pés de el-rei, estender-lhe as mão pedindo misericórdia,
enquanto este, muita vez estabelecia normas de proteção
aos índios, quase nunca levadas em conta pelos seus
governadores provinciais do Brasil. Talvez deva-se aos
jesuítas a alma do Brasil, a fé, a vontade de ser da gente
que se caldeou nos trópicos em quatro séculos. Muito
sangue indígena escorreu, muito suor negro derramou-se, a
borra se diluiu, ficou uma raça nova, nem nativa, nem
africana, nem portuguesa - brasileira.
Mas, não vamos a São Vicente com os jesuítas, não
passamos a Serra do Mar. Basta-nos, para caracterizar
problemas iguais aos de Rodelas, onde estamos, situarmo-
nos no Nordeste, entre Bahia e Piauí, sul do Maranhão.
"A gente que de 2 anos a esta parte (1583) é gastada
nesta Bahia, parece cousa que se não pode crer; porque
nunca ninguém cuidou que tanta gente se gastasse nunca,
quanto mais em tão pouco tempo, escreve um jesuíta" - o
registro é de Capistrano de Abreu, com apoio em José de
Anchieta, "Informações dos Primeiros Aldeamentos da
Bahia", Cartas do Brasil. "Porque nas quatorze aldeias que
os padres tiveram, se juntaram 40.000 almas, estas por
conta e ainda passaram delas, com a gente com que depois
se forneceram, das quais, se agora as três igrejas que há,
tiverem 3.500 almas, será muita. Há seis anos que um
homem honrado desta cidade e de boa consciência e oficial
da Câmara que então era, disse que eram descidos do sertão
de Arabó, naqueles dois anos atrás 20.000 almas por conta,
e estes todos vieram para as fazendas dos portugueses.
Estas 20.000 com as 40.000 das igrejas fazem 60.000. De
seis anos a esta parte sempre os portugueses desceram
gente para suas fazendas, quem trazia 2.000 almas, quem
trazia 3.000, outros mais, outros menos, se chegam ou
passam de 80.000 almas".
"Ver agora os engenhos e fazendas da Bahia, achá-
los-ão cheios de negros da Guiné e mui poucos da terra, e
se perguntarem por tanta gente, dirão que morreu. Donde
bem se mostra o castigo de Deus dado por tantos insultos
como são feitos e se fazem a estes índios, porque os
portugueses vão ao sertão e enganam essa gente, dizendo-
lhes que se venham com eles para o mar e que estarão em
suas aldeias como lá estão em sua terra e que seriam seus
vizinhos. Os índios crendo que é verdade vêm-se com eles
e os portugueses por se os índios não se arrependerem lhes
desmancham logo todas as suas roças e assim os trazem, e
chegando ao mar os repartem entre si, uns levam as
mulheres, outros os maridos, outros os filhos e os
vendem".(9)
Não precisa mais. Vamos alcançar os cem mil, os
duzentos mil, não há estatística da carnificina, vamos
encontrar o fim da gente do Brasil. Resta só atentar para a
repetição das guerras de caça ao gentio, fosse simplesmente
para matar combatentes a quem se havia tomado a terra,
fosse para escravizar mulheres e crianças. Vamos continuar
transcrevendo, isso é mais que suficiente, porque diante do
depoimento de tantos, no passado, minha pobre palavra não
tem valia. Estamos agora em 1669, 86 anos depois dos
80.000 gastados nos engenhos:
"Para vencer os índios de Orobó... O governo da
Bahia chegou ao extremo, em assento de 14 de março 1669,
de declarar a "guerra justa" aos índios e mandar cativá-los.
Fato igual dera-se para a conquista de Sergipe, quase um
século antes. Estava legislado o cativeiro dos índios de
Orobó, devendo concorrer à guerra todos os lavradores que
precisavam de escravos. Em 1673 estavam vencidos os
índios e distribuídos como escravos por entre os cabos de
guerra, em número de mil e quinhentos".(10) Durara 4 anos
a matança, vinham por sobra os escravos. Outra guerra no
mesmo período:
"Nesse mesmo ano (1669), Fernão Carrilho,
comandou a bandeira do Geremoabo, cujos índios venceu e
o coronel Francisco Barbosa abriu uma estrada (1672) até o
rio Piranhas".(11) E 21 anos adiante do término desta
guerra, vem outra:
"Em 1693, novamente os índios revoltaram-se,
quando teve lugar a bandeira de João Amaro, que saiu de S.
Paulo em 18 de junho de 1693. Sobre esta bandeira diz
Southey: 'Reuniu-se a ordenança do distrito a este exército,
e todo ele foi percorrendo os sertões ao poente do Rio S.
Francisco e norte dos limites da Bahia, matando e
apreendendo selvagens, destruindo-lhes todas as
aldeias, e abrindo estradas para estabelecer pelo interior
comunicações com aquela Capitania. Remeteram-se para
a capital os prisioneiros, que foram em tão grande
número, que os melhores não deram mais de 20
cruzados por cabeça, vendendo-se a maior parte por
metade. Não era João Amaro homem, que, se satisfizesse
com atravessar uma vez o país, fez a tarefa
conscienciosamente explorando-a em todos os sentidos,
limpando-a tão bem de selvagens, que por mais de meio
século não se tornou mais a ouvir falar neles".(12)
Agora os Ávilas. Entre 1673 e 1676 matavam índios
no Piauí e no Salitre. No Piauí, até onde há registro, a
matança foi nos campos de batalha. No Salitre, sem dúvida
ao mando de Dias d'Ávila, seus soldados, sob a chefia de
um capitão, Domingos Rodrigues de Carvalho, seu lugar-
tenente, praticaram a degola já registrada.
"Em 1678 o mesmo coronel (fala-se de Francisco
Dias d'Ávila) comunicava ao governador o procedimento
dos índios de Quesquês do rio Pajeú, pedindo que contra
eles se declarasse guerra justa, a fim de conquistar o
território por eles habitado e cativá-los, como fez". "A
entrada de Francisco Dias d'Ávila a que atrás nos
referimos, foi motivada pela invasão dos Galaches nas
povoações do sul do rio S. Francisco, destruindo para mais
de 40 currais, os quais desceram em 60 canoas de umas
ilhas. Encontraram a resistência do capitão-mor Domingos
Rodrigues. Francisco Dias d'Ávila ofereceu-se então para ir
vencê-los e o alcançou".(13) Aqui, sem contar os mortos na
luta do bacamarte contra a flecha, eram degolados, do
mesmo modo que no Salitre, 180 indígenas. Afinal, o
matador Domingos Rodrigues de Carvalho aí estava
obediente ao chefe Francisco Dias, para praticar a degola.
"O seu filho Garcia d'Ávila Pereira, em 1720, pediu
auxílio contra os índios do Piauhy que prejudicavam os
currais que por aí possuía - era uma nova revolta dos
desterrados e famintos índios chamados de corso, que
sem outro meio de vida, matavam gado para alimentar-
se - e então teve o concurso de João Barbosa Ravelo, do
mestre de Campo Gonçalo da Costa Timudo, do
governador dos índios Francisco Dias Mataroá, do sargento-
mor Francisco de Xavier Pinto e Miguel de Abreu
Sepúlveda e dos franciscanos e capuchinhos da Piedade.
Em auxílio dessa expedição foram os índios da aldeia de
Geremoabo, sob a direção do mestre de campo Gonçalo da
Costa Timudo e das aldeias desde Curral dos Bois até os de
Inhunhum".(14)
"Continuava Garcia d'Ávila (Pereira) ainda em 1723
na conquista dos índios do Piauhy, com o fim de
estabelecer uma grande aldeia, sem os vencer, em vista da
demora dos auxílios que devia ter, segundo as ordens do
governo, principalmente do mestre de campo João Dias. E
então, os índios das aldeias de Pontal e Rodelas faziam
causa comum com os seus irmãos do Piauhy. A esse
primeiro grupo de guerreiros reuniu-se o célebre
governador de tribos Mataroá e os missionários
capuchinhos".(15) Vê-se, num raro momento de brio
sangrando, os índios rodelas, tradicionalmente aliados dos
invasores, ao lado dos seus irmãos. Estava-se no fim, os
pajés foram vencidos, a raça dos brasis vivia o seu último
instante. Era o extermínio.
Não se diga que isso foi colonização, porque não
passou de guerra de conquista, mais que isso, de massacre.
Com as bandeiras dos Ávilas no São Francisco, no Piauí, a
ação guerreira contra os cariris foi de extinção. Guerra de
conquista, matança e escravização, massacre, foi
igualmente a prática exercida pelos bandeirantes paulistas,
quer no Sul, quer no Nordeste, onde guerrearam mais de
uma vez por solicitação do governo da Bahia.
"Nossos missionários se viram obrigados, escreveria
Martinho de Nantes, que fora aliado dos Ávilas na guerra
do Salitre, a se opor à invasão violenta das terras dos índios
pelos portugueses, uma vez que os rebanhos devoravam as
plantações dos índios e os obrigavam a separar-se em
diversos lugares para poder viver, o que acabava impedindo
a presença das missões".(16) O capuchinho redimia-se,
talvez se roesse de arrependimento.
Creio que poderia fechar o capítulo, com a palavra
GENOCÍDIO. Parece que devo ir a um pouco mais, porque
o crime corria solto no sertão, fosse contra um povo, fosse
contra as pessoas de bem, que também as havia e não eram
poucas, senão a maioria.
Mesmo contra os criminosos comuns, não havia
providências punitivas. A própria autoridade judicial, sem
garantias, morria se não fugisse. O depoimento a seguir,
por ser de um governador de província, reveste-se da maior
importância, é a confissão de que nos sertões, a lei era a do
trabuco e quem tivesse maior número de capangas, índios
mansos ou soldados de ordenança, mandava e desmandava,
comandava à sua suserana vontade:
"Na Carinhanha vivia há poucos anos José Álvares
Brandão, um dos principais daquela povoação, e dos mais
abastados. Este homem foi atacado de dia dentro de sua
própria casa por um bando de facinorosos, os quais, depois
de o matarem, arrastaram o cadáver para a rua, assentando
sobre ele o chefe dessa quadrilha fez a barba, que tinha
jurado não tornar a fazer enquanto não tomasse aquela
vingança. Abaixo de Pilão Arcado em um sítio, a que
chamam de Zabelê, segundo minha lembrança, está
morando José Praxedes, que na vila de Paranaguá do Piauí,
com outro bando semelhante matou o comandante de dia,
em sua casa, e fazia o mesmo ao juiz se não fugisse, por
estes não quererem soltar uns presos que estavam na
cadeia, e depois arrombando esta, soltaram a todos os
presos que nela se achavam, correndo toda a quadrilha
como em triunfo da sua maldade, as ruas daquela vila, que
confina com a da Barra, e gritando em altas vozes - viva o
sr. José Praxedes".
"No ano de 1799, sendo juiz do julgado de Flores na
Ribeira do Pajeú, Agostinho Nogueira de Carvalho, homem
de muita probidade, e benquisto de todos, não lhe valeu
nem a sua muita bondade, nem a jurisdição que exercia,
para deixar de ser vítima da barbaridade de homens
perversos, que ao pé de sua própria casa o mataram, por
querer, sem armas algumas, e somente confiado na sua
mesma bondade, embaraçar aos matadores, que pretendiam
tirar uns presos de um tronco, que servia de cadeia. Todos
estes delitos ficaram impunidos, sem castigo, e sem o
vínculo das leis, os homens correram talvez menor risco no
primitivo estado da natureza, porque poucas paixões
produziam poucos delitos".
"A posição ou situação daqueles sertões do rio S.
Francisco é sem dúvida uma das causas de tantas
desordens. Um país que confina seis capitanias; muito
distante das cabeças de todas as comarcas; e ainda mais
remoto das capitanias dos governos; oferece uma fácil
evasão aos que nela cometem algum delito, assim como um
pronto e seguro asilo dos delinqüentes que vêm de
fora".(17)
Agora, sim, posso fechar o capítulo. A palavra é a
mesma - GENOCÍDIO. Mas, o crime comum correu solto
ao lado deste, eliminando os homens de bem, os que
contestassem a matança da raça dos brasis.

NOTAS:
1 - Martinho de Nantes, Reação de uma Missão no Rio São Francisco,
tradução de Barbosa Lima Sobrinho, pag. 53.
2 - Vittorino Regni, Os Capuchinhos na Bahia, vol 2, pag .97: "As leis
régias obrigavam o missionário a colocar à disposição os homens de sua
aldeia para o serviço militar, isto é, para a guerra entre irmãos. "As
conseqüências de tudo isto eram desoladoras. Segundo a afirmação de fr.
Possidônio, as comunidades indígenas, depauperadas de suas melhores
energias, haviam-se reduzido à concentração disforme de mulheres, crianças,
anciões e inválidos",
3 - Pedro Calmon, História da Casa da Torre, pag 89.
4- Martinho de Nantes, Relação de Uma Missão no S Francisco,
tradução de Barbosa Lima Sobrinho, pag 55
5 - Pietro Vittorino Regni, Os Capuchinhos na Bahia, vol 1, pag. 171.
6 - Felisbello Freire, História Territorial do Brasil, pag 165.
7 - Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial, pag. 46
8 - idem, idem, pag. 47
9 - idem, idem, pag. 52/53, reportando-se, em nota de rodapé a José de
Anchieta, Informações dos primeiros aldeamentos da bahia", Cartas do
Brasil, pag 377
10 - Felisbello Freire, História Territorial do Brasil, pag. 102.
11 - idem, idem, pag. 102.
12 - idem, idem, pag. 103
13 - idem, idem, pag 190/191.
14 - idem, idem, pag. 191.
15 - Idem, idem, pag. 193/204
16 - Martinho de Nantes, Relação de Uma Missão no Rio São
Francisco, tradução de Barbosa Lima Sobrinho, pag 40.17 - Barbosa Lima
Sobrinho, Documentos do Arquivo, Vol 4 e 5, pag 285, correspondência:
Carta do Governador Caetano Pinto de Miranda Monteiro, sobre sua viagem
de Mato Grosso
XIV - O MUNDO SERTANEJO
Léguas sem fim

Esta crônica destina-se a situar Rodelas, seus índios,


seus curraleiros e seus missionário, a chamada Missão de
Rodelas, que abrangia também as aldeias de Jatinã, Acará,
Arnipó e Sorobabé. Mas, há tão estreita vinculação entre
estas aldeias e as das ilhas da região de Pambu/Cabrobó,
que elas se infiltram na crônica. São informes superficiais,
abordagens rápidas, sem pretensão ao estudo. Chegando à
distribuição territorial, sinto impulsos de dizer um pouco
mais e, porque história puxa história, ainda que
superficialmente, alcanço o Sertão do Pambu e o ultrapasso
para compendiar o mundo sertanejo dos Ávilas. Parece que
não é demais. O problema da terra no Nordeste Brasileiro,
como aliás no Brasil inteiro, nasceu com a colonização. No
Nordeste, tudo começa com Thomé de Souza e seu
protegido Garcia d'Ávila, a quem não se sabe como, pois
não se tem ao menos um documento, passou-se a sesmaria
inicialmente requerida pelo ex-governador. Vieram seus
descendentes, a partir do neto Francisco Dias d'Ávila, o
primeiro, e foram requerendo, recebendo e acumulando
terras. Escreve Capistrano de Abreu, que para adquirir
tamanhas extensões gastou apenas "papel e tinta em
requerimentos de sesmarias". A matéria já foi estudada
amplamente por muitos autores, está praticamente
esgotada. Para enfeixa-la neste volume, não será necessário
mais que transcrever a crônica da antiguidade, os
documentos por ela alcançados.
Primeiro seja um dos mais sábios e antigos
estudiosos, dos mais argutos observadores do Brasil
Colonial:
"Sendo o sertão da Bahia tão dilatado, diz Antonil
em Cultura e Opulência do Brasil, edição portuguesa de
1711, fac-similada com posfácio de Luiz Ferreira da Rosa
Oiticica em 1969 - como temos referido, quase todo
pertence a duas das principais famílias da mesma cidade,
que são a Casa da Torre e a do defunto mestre de campo
Antônio Guedes de Brito. Porque a Casa da Torre tem
duzentas e setenta léguas pelo rio de São Francisco acima à
mão direita, indo para o sul; e indo do dito rio para o norte,
chega a oitenta léguas. E os herdeiros do mestre de campo
Antônio Guedes de Brito possuem desde o Morro do
Chapéu até a nascença do Rio das Velhas, cento e sessenta
léguas. E nessas terras, parte os donos delas tem currais
próprios, parte são dos que arrendaram sítios delas,
pagando por cada sítio, que ordinariamente é de uma légua,
cada ano dez mil reis de foro. E enfim, como há currais no
território da Bahia e de Pernambuco e outras capitanias, de
duzentas, trezentas, quatrocentas, quinhentas, oitocentas e
mil cabeças, assim há fazendas, a quem pertencem tantos
currais, que chegam a ter seis mil, oito mil, dez mil, quinze
mil e mais de vinte mil cabeças de gado, donde tiram cada
ano muitas boiadas, conforme os tempos são mais ou
menos favoráveis à parição e multiplicação do mesmo gado
e os pastos, assim nos sítios, como nos caminhos".(1)
Isso Antonil diz do sertão da Bahia e Pernambuco.
Mas, a Casa da Torre iria a muito mais, Piauí, Maranhão,
Paraíba. Era o trabalho de requerer e lhe concediam terras
vírgula a vírgula do requerimento, palmo a palmo o chão de
todas as léguas pretendidas. Eis o desabafo de Pereira da
Costa - Em Prol da Integridade do Território Pernambucano
- transcrito em Flávio Guerra, Pernambuco e a Comarca do
São Francisco: "A Casa da Torre, os herdeiros de Antônio
Guedes de Brito e Domingos Afonso Sertão, moradores da
jurisdição da Bahia, são senhores de quase todo o sertão de
Pernambuco".
"Do que temos escrito, precisamos tirar conclusões
de ordem econômica, que afetam não só o direito de
propriedade sobre o território, como as relações sociais em
que se colocaram os detentores desse direito perante o
Estado, escreve Felisbello Freire logo à página 21 de
História Territorial do Brasil, edição de 1906, volume 1,
para ir adiante:
"Em geral, os concessionários eram a nobreza da
capital da capitania, muitos deles órgãos e representantes
do próprio governo. Aí estão D. Álvaro da Costa, Thomé
de Souza, Miguel de Moura e muitos outros, cujas
sesmarias, pela grande extensão territorial, eram
verdadeiras donatarias, do dono da terra".
Dito isso, o autor confirma a palavra de Antonil - os
donatários porque não poderiam jamais ocupar tanto espaço
territorial, arrendavam as terras aos que iam realmente
trabalha-las, criando a classe dos agregados agrícolas.
Injusto e absurdo, inconcebível em termos de
administração, mesmo colonial, aliás, sobretudo colonial. O
homem da cidade detém a terra do sertão pelo favor do
governo e especula, tirando para si o lucro que o poder
público poderia obter a título de tributo. Todos os autores o
confirmam, de Capistrano de Abreu a Pedro Calmon,
porque todos têm acesso aos mesmos documentos
comprobatórios. E tudo de graça - "tudo forro, e isento, e
livre, sem pagar foro, pensão, nem tributo algum, salvo o
Dízimo a Deus, que pagarão dos frutos da terra e criações
que houver", é a expressão textual da Carta de Confirmação
da Sesmaria do Rodela. Mas não foi apenas no campo, na
cidade também a terra foi dada de favor a uns poucos.
Resultado da má distribuição inicial, é que o pobre não tem
um palmo de terra no campo ou na cidade, para o trabalho
ou para o barraco e o governo não encontra meios legais de
recuperar o necessário ao atendimento social - ao abrigo ou
à pequena roça, salvo ao custo de alta indenização e muita
briga com o poder econômico.
Vejamos a extensão das terras dos Ávilas. Seja nisso,
a palavra de Capistrano de Abreu:
"Na margem pernambucana do rio S. Francisco
possuía duzentas léguas de testada a Casa da Torre,
fundada por Garcia d'Ávila, protegido de Thomé de Souza,
a qual entre o São Francisco e a Paraíba senhoreava mais
oitenta léguas. Para adquirir estas propriedade imensas,
gastou apenas papel e tinta em requerimentos de sesmarias.
Como seus gados não davam para encher tamanhas
extensões, arrendava sítios, geralmente de uma légua, à
razão de 10$ por ano, no princípio do século XVIII. Um de
tais rendeiros, Domingos Afonso, por alcunha o Sertão,
partindo de um dos muitos Sobrados existentes no São
Francisco, aos quais se dá este nome por causa de
vagamente semelharem um edifício, fundou numerosas e
importantes fazendas nos rios Piauí e Canindé, legadas por
sua morte à Companhia de Jesus, a quem a coroa as
confiscou em proveito próprio, por ocasião de suprimir a
Ordem".
Felisbello Freire, relaciona, uma a uma, com
precisão, as sesmarias, requeridas e dadas à Casa da Torre.
É monótono o enunciado, de leitura quase penosa. Poderá
interessar a algum curioso ou pesquisador. Vamos
transcrevê-lo:
1 - "Em 1621, o notável proprietário de terras
Francisco Dias d'Ávila, senhor da Torre de Tatuapara,
obtém uma sesmaria de 10 léguas ao sul de Inhambupe,
acompanhando o rio para o oeste. Carta de concessão de 23
de agosto de 1621, 10 léguas de comprido e seis de largura.
No rio Inhambupe, lado do sul, correndo as 10 léguas de
comprido pelo dito rio acima, até chegar ao lugar por nome
Piridaguassutuba, com seis léguas de largura, começando
das cabeceiras de Belchior Dias Moreia, com todas as
pontas, enseadas que o mesmo rio apresentar".(3)
2 - "É assim que o capitão Garcia d'Ávila, nos
campos de Pindaguassutuba, a 10 léguas do litoral.... Carta
de 23 de maio de 1654, 6 léguas de largo e mais 2 do lado
do mar. Começando da passagem de cima do rio Subaúma
a até o de Inhambupe, correndo para ele acima do lado do
sul com 6 léguas de largo até os campos Pindaguassutuba
com mais 2 léguas da banda do mar, com todas as águas
para engenho, campos, lenhas, madeiras, testadas e
logradouros. As terras entre o sertão do rio Subaúma, com
6 léguas de largo foram de Francisco Dias d'Ávila, pai do
concessionário, e as duas do lado do mar, foram de novo
concedidas".(4)
3 - "Em 1659 o padre Antôino Pereira obtém sua
sesmaria de 20 léguas ao Sul do S. Francisco, a começar no
rio Salitre, que se constitui como o ponto de partida das 20
léguas, dez para um lado e dez para o outro. Carta de 2 de
janeiro de 1659, 20 léguas Pelo rio de São Francisco acima
no sertão, da parte do sul, toda a terra da barra do rio Salitre
no lugar onde se mete o rio São Francisco, que se tomará
como peão, descendo pelo rio de São Francisco abaixo até
encontrar com a dada que lhe deu o capitão-mor Baltazar
de Queiroz, que o concessionário tem povoado, e da barra
do Salitre 20 léguas de terra pelo mesmo rio de São
Francisco acima, rumo direito ressalvando pontas, enseadas
e ilhas que houver para cima e para baixo, mas do rio de
São Francisco para o lado do sul, a largura que houver na
jurisdição desta capitania, até entestar com a Bahia rumo de
leste a oeste, que divide uma da outra da nascença do rio
Real, para o sertão com outro ponto de comprimento acima
e abaixo quanto tiver pelo rio de São Francisco inclusive
dentro desta dada, a nascença do rio Itapicuru, e as serras
de Eigipe-Iba, e Jacobina com as mesmas que ficaram
dentro desta dada, com todos os seus logradouros".(5)
4 - "Em outubro de 1675 o Capitão Garcia d'Ávila, o
mesmo padre Pereira, Catarina Fogaça, Francisco Dias
d'Ávila e Bernardo Pereira, obtêm uma sesmaria de 10
léguas para cada um, isto é, 50 léguas pelo alto S.
Francisco, a começar do fim da sesmaria do padre Pereira.
Nos sertões do rio de S. Francisco acima, parte do sul,
começando no fim da sesmaria dada em 8 de abril de 1654
ao padre Antônio Pereira, correndo sempre o rumo direito
pela baixa do Baixo S. Francisco acima, ressalvando
pontas, enseadas, ilhas que o dito rio fizer, e caso se
encontre de permeio terras de caatingas e penedias, se
ressalvaram também, de sorte que as 10 léguas de cada um
sejam de pastos e terras onde possam criar gado, e para a
parte do sul a largura que houver até entestar com a
jurisdição da capitania da Bahia, fazendo rumo de leste a
oeste que dividir uma da outra, e da nascença do rio Real
para o sertão com outro tanto de comprido acima quanto o
que tiver pelo rio de S. Francisco acima com todas as
terras, matos, pastos, águas que ficarem da parte de
dentro".(6)
5 - "O mesmo capitão Garcia d'Ávila e os signatários
da sesmaria anterior, obtêm uma outra em continuação à
precedente estendendo-se até o Zaripe. Carta de 20 de
dezembro de 1658. No rio S. Francisco para cima,
começando das que estão povoadas até a última aldeia do
gentio Moipará da parte do norte até a terra chamada de
Zaripe, ficando esta dentro com outro tanto de largo abaixo
e acima quanto tiverem de comprimento pelo rio de S.
Francisco tomando por peão as serras que ficam juntas do
dito rio desta capitania (Pernambuco), fronteiras ao
Salitre, com todas as ilhas, pontas e logradouros. Foi
concedida em Olinda, em 22 de julho de 1658".(7) Lá
estavam eles dos dois lados do rio medindo chão a olho e
recebendo-o graciosamente.
6 - "O movimento de colonização da margem
pernambucana do rio S. Francisco veio da Bahia e era o
resultado de entradas pelo sertão resolvidas pelo governo,
em junta, com as principais autoridades da capitania, para
julgarem "justa" a guerra contra os índios que invadiam
sucessivamente as provisões do litoral, desde Cachoeira até
Ilhéus".(8)
O que se tem indicado acima, como concessão de
sesmarias à gente da Casa da Torre, ainda não é tudo. As
terras das aldeias dos índios rodelas, requeridas em 1646 e
em 1651 concedidas, como ficou anotado em capítulo
anterior, sem ao menos uma indicação divisória, partiam da
Cachoeira de Paulo Afonso (primeira cachoeira diz o ato de
concessão), pela margem direita do São Francisco rio
acima até alcançar o Salitre, a partir de onde seriam
também suas as terras, para o centro até Jacobina e daí para
Geremoabo. Rio abaixo, partindo de Paulo Afonso, iam até
onde se encontrassem "terras povoadas", e para o sul, até
dar com as fronteiras da Bahia, o que significa foz do Rio
Real. E as terras concedidas anteriormente, a Thomé de
Souza e passadas a Garcia d'Ávila, bem como as
concedidas a este próprio nas cercanias de Salvador,
contando-se as do conde de Castanheira, arrendadas por ele
"ad-perpetum" iam emendar-se às do rio Itapicuru e rio
Real, concedidas a seu neto Francisco Dias d'Ávila. Com
estas emendavam-se as mais recentes. Viriam também
outras terras à margem esquerda do São Francisco, que
estavam entre o rio Pajeú e e o rio Carinhanha, penetrando
longe as terras de Pernambuco, Piauí, Maranhão e Paraíba.
Era tudo, todo o mundo sertanejo, não ficava nada para
outrem!
Mencionamos as sesmarias concedidas aos nobres da
Casa da Torre, mas poderíamos indicar as concessões de
grandes áreas a Guedes de Brito, Bernardo Ravasco,
Francisco Brá e tantos outros, se isso não escapasse ao
rumo de nossa pequena história de Rodelas. De "justa em
justa", iam matando os índios e tomando-lhes as terras.
Para efeitos das "justas" não interessava interrogar se os
indígenas que matavam gado nos campos ou atacavam
povoações não o faziam em razão da fome e em legítima
defesa própria. Foi a ganância pela apropriação da terra,
sem nenhuma dúvida, e pela posse do escravo indígena, a
causa do genocídio. Sem isso, o homem dos brasis teria
sido colonizado pacificamente. São muitos os exemplos de
intercâmbio em plena harmonia nos primeiros tempos,
desde a festiva recepção a Cabral.
Há pouco a dizer sobre as concessões de sesmarias:
eram uma farra! Farra de conquistador em cima do assalto e
do extermínio da pobre gente armada a arco e flecha posta
em confronto de sangue com o trabuco português. Se eram
verdadeiros assaltantes das terras indígenas, os entradistas
do São Francisco, as autoridades concedentes
representavam a vilania e a insensibilidade - peço licença
para a rudeza de expressão. Criminosos todos, bandeirantes
e entradistas, sesmeiros e autoridades, tripudiando sobre a
fraqueza de uma pobre gente pasmada de tanta
monstruosidade. Iam os governadores de províncias, os
capitães-mores, os que detinham o poder, doando aos seus
nobres, as terras férteis, as melhores, as que, no sertão
ensejavam condição de vida ao nativo, enquanto este era
morto, escravizado ou tangido para a distância da caatinga
onde se fazia impossível viver. A Coroa, em cujo nome
tudo se fazia, ficava distante e desinformada. O abuso foi
tanto, que chegou ao ponto de impor-se a interferência do
rei. A intervenção foi decretada na carta régia de 20 de
outubro de 1783, cujo extrato é o seguinte:
"Para evitar oposições e prejuízos dos moradores do
Piauhy, sertões da Bahia e Pernambuco, por ocasião das
contendas e litígios que lhes moveram os chamados
sesmeiros, um excessivo número de léguas de terra de
sesmaria que nulamente possuem, por se não cumprir para
o que foram concedidas e dadas naqueles distritos a
Francisco Dias d'Ávila, Bernardo Pereira Gago, Domingos
Afonso Sertão, Francisco de Souza Fagundes, Antônio
Guedes de Brito e Bernardo Vieira Ravasco,
experimentando os moradores grandes vexações na ocasião
das sentenças contra eles alcançadas na expulsão de suas
fazendas e foros das ditas terras, sobre que mandei tirar
informações, necessárias e os sesmeiros me fizeram umas
representações em que foram ouvidos, e responderam os
procuradores de minha fazenda; sou servido em visto da
Resolução de 11 de abril e 2 de agosto do presente ano,
tomada pela Consulta Ultramarina, anular, abolir e cassar
todas as ditas ordens, sentenças que tem havido nesta
matéria, para se darem os fundamentos das demandas que
pôde haver de uma e outra parte, cancelando as mesmas
sesmarias por nova praça, todas as terras que eles têm
cultivado por si, seus feitores e criados, ainda que estas se
achem de presente arrendadas a outros colonos, nas quais
não se deve incluir as que outras pessoas entraram a rotear,
ainda que fosse a título de aforamento ou arrendamento,
por não serem dadas as sesmarias senão para sesmeiro as
cultivarem, não para repartirem e darem a outros que as
conquistem, roteem e entrem a fabricar, o que só é
permitido aos capitães donatários e não aos sesmeiros, aos
quais hei por bem que destas terras que lhes concedo pelas
terem cultivado eles mais que pedirem de sesmarias
estando nos distritos de suas primeiras datas e achando-se
incultas e despovoadas, se lhes passem carta de sesmaria
em que se deve pôr as cláusulas com que ao presente se
passam, declarando-se as léguas que compreenderem e as
suas confrontações e limites, com declaração de 3 léguas de
comprido e 1 de largo, 20 de outubro de 1753".(9)
A Carta Régia era uma lei revolucionária. Anulava as
sesmarias na parte não cultivada diretamente pelos
sesmeiros das famílias Ávila e Guedes de Brito e outros
nominalmente indicados, confinando-as ao limite de 3
léguas por uma, desde que povoadas e arroteadas pelos
sesmeiros. A partir daí, os rendeiros estavam garantidos no
direito de propriedade plena. Parecia. Parecia que os
sesmeiros perdiam. Parecia que os rendeiros ganhavam.
Fogo de artifício, parecia. Os rendeiros não ganharam, os
sesmeiros não perderam, porque, a rigor, a Carta Régia
jamais foi cumprida. Se o foi, por via de algum mandado
judicial, seria coisa rara, de modo que não há informação
sobre a extensão do benefício, quantos chegaram a pleitear
o título da terra, quantos continuaram sujeitando-se ao foro.
Uma coisa é certa. Na área a que nos limitamos, Rodelas,
Sertão do Pambu, ninguém se utilizou desse direito. A terra
era longe de tudo, inclusive da Justiça, posicionada então
em Jacobina, os rendeiros eram, na quase totalidade,
pessoas pobres e sem dúvida desprevenidas. Mais uma
Carta Régia sem execução. Rendeiros continuaram,
pagando o foro anual, até a segunda metade do século XIX,
quando os viscondes da Torre, desinteressados do sertão, já
sem gado no pasto, venderam os chãos aproveitáveis das
velhas sesmarias.
A observação a seguir, do governador de
Pernambuco, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, dá a
entender que em nenhum lugar a provisão do rei teve
efeito. Leia-se:
"O terceiro meio consiste - fala de fontes de renda da
Fazenda na Província - nos foros, que nesta capitania
pagam as terras dadas em sesmaria, a saber, até trinta
léguas de distância da marinha seis mil reis por cada légua,
em maior distância quatro mil reis. Pelo qual título não
percebe a Fazenda Real cousa alguma no rio S. Francisco,
porque a Casa da Torre da Bahia apoderou-se de todos
aqueles terrenos de uma e outra banda, em virtude de uma
antiga sesmaria (falo agora pelo que respeita ao lado de
Pernambuco) dada sem conhecimento de causa, contrária
aos fins porque se dividem assim as terras entre os
sesmeiros, e até impossível de verificar-se, pois que não
cabia nas forças de uma família o poder arrotear, e povoar
mais de duzentas léguas de extensão, e outras tantas de
largura.
O Senhor Rei D. José já quis emendar aquela antiga
desordem anulando a dita sesmaria e todas as mais da
mesma natureza, dando as sábias providências que constam
da sua Real Provisão de 20 de outubro de 1753, que junto
por cópia. Nesta capitania porém não se lhe deu execução
alguma, as cousas ficaram no antigo estado, e a Casa da
Torre vai percebendo de cada fazenda de gado doze mil reis
de foro; experimentando aqueles povos algumas vexações
dos seus procuradores e embaraços de demandas,
principalmente na Ribeira do Pajeú, pelas contestações que
tem a Casa da Torre com a família dos Burgos da mesma
cidade da Bahia, os quais Burgos pretendem que a dita
ribeira esteja incluída em outra semelhante sesmaria, que
lhe foi dada de quarenta léguas de extensão.(10)

NOTAS:
1 - Antonil - João Antônio de Andreoni, Cultura e Opulência do
Brasil, ed. port. de 1711, fac-símile de Luiz Ferreira Oiticica em 1969, pag.
186.
2 - Capistrano de Abreu, Cap. da História de Colonial, pag 125.
3 - Felisbello Freire, História Territorial do Brasil, Vol I, pag. 29/30 e
30-rodapé.
4 - idem, idem, pag. 31 e 31-rodapé.
5 - idem, idem, pag. 33 e 33-rodapé.
6 - idem, idem, pag. 33 e 33-rodapé.
7 - idem. idem, pag. 34 e 34-rodapé 1.
8 - idem, idem, pag. 37.
9 - idem, idem, pag 194/195.
10 - Barbosa Lima, Documentos do Arquivo, vol IV e V, pag. 288.
XV - OS CURRALEIROS DO SÉCULO XVIII
Do Xingó a Sobradinho

A partir da entrada de Garcia d'Ávila, II, e padre


Antônio Pereira nas aldeias do Rodela, em 1646, começaria
o povoamento. Senhores de léguas e léguas de terras na
Bahia, em Pernambuco e Piauí até os confins, chegando ao
Maranhão e Paraíba, os Ávilas, que se fariam mais tarde em
Casa Nobre, jamais poderiam colonizar, nem sequer
conhecer tanto chão. Teve-se por irregular a doação de tão
grandes extensões e até foi anulada pela Coroa, como ficou
anotado em capítulo anterior, sem que os governadores de
província e o governador geral tomassem uma providência
para regularizar a situação. Aqui mandavam estes mais que
o rei, em nome de quem doavam. E sobre eles mandava a
força do poder econômico, sempre essa potência
incontrolável. Foi assim, que a colonização nas terras dos
Ávilas se efetuou pelos rendeiros, seus verdadeiros
povoadores - curraleiros e povoadores. Os rendeiros, seus
agregados e escravos, foram a gente dos primeiros tempos.
Já não há documentos do primeiro século que nos permitam
relacionar os bravos da caatinga sertaneja. E eles não foram
tão poucos. Dos primeiros ficou registrado apenas o nome
dos capitães guerreiros e procuradores dos Ávilas. Dos
bandidos também, em parte ficou o documentário escrito,
os cronistas de então mencionaram alguns deles. As
notícias dos crimes e atrocidades, aqui ali, apontam por
toda parte na história do São Francisco do Brasil colonial.
Mas, dos heróis da pecuária não se falou e eles existiram
certamente. Bem sucedidos que fossem, currais com
milhares de rezes, curtiram o sertão bruto, enfrentaram
fome e sede muitas vezes, muitas vezes doenças, que, se
não levavam à morte de pronto, traziam-na muito cedo na
vida, em plena mocidade, no melhor da maturidade. A
morada dos vaqueiros, nos primeiros dias foi o rancho de
pau a pique e folhas na cobertura, em seguida veio a casa
de taipa. Mesmo os curraleiros-rendeiros, a regra era
construírem a casa de taipa, salvo um ou outro, de grandes
posses. Dos latifundiários Ávilas, que têm história
registrada, sabe-se que em geral morreram moços. Embora
todo o seu poder e toda a sua riqueza, todo o brilho das suas
tropas matando índios, o destino dos lutadores não os
poupou. Dos demais não se sabe os nomes, salvo os seus
capitães. Uns raros, como Domingos Sertão, foram
longevos. Quase todos desapareciam cedo. E o patrimônio,
porque só pudesse ser administrado pelos bravos, se os
filhos não o eram, ia abaixo, acabava-se cedo também. Os
filhos dos que fizeram o sertão do primeiro século, a partir
da terceira geração, em regra já eram pobres, ou porque a
divisão dos bens não deixasse tanto a tantos herdeiros, ou
porque muitos não sabiam enfrentar a brava luta - é preciso
ser bravo para ser bem sucedido no campo, ainda hoje. Os
próprios Ávilas, duzentos anos depois da penetração na
área de Rodelas, já não iam ao catingão e abandonaram a
pecuária.
Tentaremos, se não a história, que seria impossível,
hoje, salvo de um ou outro, pelo menos o registro do nome
dos curraleiros do segundo século da colonização e do
terceiro, na região de Rodelas, que encontramos em papéis
inéditos da época. A sesmaria das aldeias do Rodela tinha
início em terras de Sergipe pela beira-rio do lado baiano e
fim nas proximidades do Salitre. Muito chão que jamais foi
rodela, os conquistadores levaram de uma penada, para
aproveitar-se de suas rendas.
Vamos encontrar no Tombo da Casa da Torre,
arquivado na seção Colonial e Provincial do Arquivo
Público da Bahia, dois manuscritos do século XVIII, 1779,
que relacionam a população dessas fazendas. Os papéis não
ensejam boa leitura. O tempo os corroeu muito, antes que
fossem recuperados, de modo que há muito de ilegível. Não
só a ação do tempo, o trabalho em si mesmo, que não foi
elaborado com vistas ao futuro, a que chegou, tem falhas.
Há muita abreviatura difícil de entender e a caligrafia nem
sempre é boa. De modo que a leitura é penosa e o
aproveitamento deixa a desejar. Os nomes, hoje, são
totalmente esquecidos; são pessoas apagadas, das quais
nem os descendentes saberão. A memória de família, salvo
a da nobreza, quando é escrita, perde-se cedo entre nós,
aquele que chega à lembrança da quarta geração, anda
longe. Dois outros documentos - um traslado de escritura e
uma relação de pessoas a quem as propriedades deviam ser
escrituradas, ensejam, em parte, o conhecimento dos
pecuaristas e lavradores do século XIX, numa área restrita -
sertão de Curaçá a Geremoabo, diz o papel. Já aqui, há
pessoas conhecidas e outras que poderão ser identificadas
pelos familiares.
Para que fique o nome desses bravos que queimaram
os seus dias pela glória de ter boi e bode ou apenas pela
necessidade de viver, relacionamos o nome dos que
viveram o século XVIII, no limite da legibilidade dos
papéis, que alcançam desde o Sítio de São João do Tará, no
Xingó aos Municípios de Curaçá, Juazeiro e Sobradinho,
área do antigamente chamado Sertão de Rodelas ao sul do
Rio São Francisco. Incompletos às vezes, com bastante de
ilegível, vale o registro do que foi possível aproveitar, ao
menos como prova de que o sertão teve quem o enfrentasse
com denodo. Os curraleiros do século XVII, ficam sem
registro, não há nada que os alcance, nenhuma fonte de
referência, salvo quanto aos "principais", já mencionados.
Sem dúvida, muitos dos curraleiros de 1779 são
descendentes dos que o foram antes, a partir de 1646, do
mesmo modo que os do século XIX, são em parte
descendentes daqueles do século anterior, relacionados. É
certo que quando os padres franceses chegaram, em 1671,
1672, já havia rendeiros-curraleiros, o depoimento de
Martinho de Nantes dá informação de alguns deles. Parte
desses que viveram os currais do século XVIII, como tantos
outros que os viveram no século XIX, eram gente nova, a
tradição menciona até portugueses recém-chegados da
pátria para "fazer o Brasil". Ainda havia muito espaço
desocupado. Porque os filhos dos curraleiros de 1779
chegaram ao século XIX e os destes ao século XX, os
nomes do passado continuam presentes em nossa gente. Os
Gomes e os Sá, por exemplo, que vêm, possivelmente, do
sargento-mor Antônio Gomes de Sá, procurador da Casa da
Torre em 1696 e talvez de algum seu colateral, estão
plantados entre nós para os séculos dos séculos. Bem assim
os Rodrigues, os Carvalho, que poderiam descender dos
irmãos Domingos e Francisco Rodrigues de Carvalho, os
Pereira, talvez sangue de colaterais dos Ávilas no ramo
Pereira Gago. Muitos dos ancestrais poderiam ser
identificados ainda hoje pelos descendentes, se, naqueles
manuscritos do século XVIII abaixo publicados, lhes
tivessem assentado o nome de família. Mas não, os filhos
eram apenas João, Maria, José e Francisco, o que torna
quase impossível a identificação. E até do nome dos chefes
de família, que se registrou inteiro e mesmo de algumas
fazendas, parte foi roída pelo tempo. Só uma paciente
análise dos nomes em cada fazenda ou nos povoados
nascidos do crescimento populacional de algumas dessas,
poderia resultar em eventual proveito. Vejamos, para
ilustrar, duas tentativas de identificação: É nome conhecido
dos seus descendentes de hoje, Bernardina Ramos de
Assunção (minha terceira avó), que viveu em Rodelas na
segunda metade do século XIX, morrendo bastante idosa.
Seu pai, Lucas Fernandes de Rezende, foi morador no
Sorobabel, onde ela, possivelmente nasceu. Em 1779, vivia
no Sorobabel, uma Bernardina, filha de Manoel da Roxa de
Souza e sua mulher Maria Ramos da Souza. Essa
Bernardina, que residia com os pais, era a sexta filha do
casal, e seria, então, criança. As moças se casavam cedo.
Poderia ter-se casado com Lucas Fernandes de Rezende,
vindo a ser mãe daquela Bernardina Ramos de Assunção.
Ou seria avó? A contagem do tempo, deixa-a mais perto de
ter sido mãe. Francisco Rodrigues Lima, genro de
Domingos da Fonseca e Azevedo e pai de Domingos
Rodrigues Lima, viveu em Rodelas entre a primeira metade
e a segunda do século XIX. Em 1779 um Domingos
Rodrigues, ainda em começo de vida, porque não tinha
filhos, residia na fazenda do Rodela, com sede na Praia,
mesmo lugar que foi o de Francisco Rodrigues Lima e parte
de seus descendentes diretos. É quase certo que seria pai ou
avô deste Francisco, talvez pai. Tenha-se em conta a
freqüência com que as pessoas dão o nome dos pais e avós
a seus filhos. Por seu lado, o Domingos Rodrigues de 1779
seria filho ou neto de um dos irmãos Domingos e Francisco
Rodrigues de Carvalho. Destaque-se que além desse
Domingos Rodrigues - ou Roiz, naquele ano de 1779
existiam, nas fazendas relacionadas, dez outros Rodrigues -
ou Roiz. O primeiro desses, na fazenda Tabuleiro, logo
abaixo de Curral dos Bois, o último, na fazenda Ipueira
Danta, acima de Ibó. Poderiam, ao menos em parte, ser
gente do tronco dos irmãos capitães Rodrigues de
Carvalho. É um raciocínio. O primeiro Lima da região,
referido em documento antigo, é Francisco Pereira Lima,
no ano 1700, em Cabrobó, como anotado em capítulo
anterior. Seu tempo se não corresponde ao de Francisco
Rodrigues de Carvalho, 1670, no mesmo local, está muito
próximo. É possível que as famílias se ligassem pelo
matrimônio para dar nome aos Rodrigues Lima da
atualidade. Os nossos Rodrigues Barbosa poderiam vir
desses mesmos Rodrigues Lima com o tronco dos Barbosa
moradores da fazenda de Rodela em 1779. Por sinal, o
nome Barbosa é bastante freqüente entre os moradores da
época.
O que a seguir se transcreve, são dois documentos
que nos dão a saber quem foram os nossos catingueiros da
beira São Francisco na região do Índio Rodela, descendo o
rio até além da Cachoeira de Paulo Afonso, subindo até o
muncípio de Sobradinho:
MORADORES DAS FAZENDAS EM 1779:
SÍTIO SÃO JOÃO DO TARÁ - Casa de Bento José,
sua mulher Lourença Maria - escravo Felix; seu irmão
Manoel José - escravo Francisco, - 5 pessoas. Felisbello
Freire, em História Territorial do Brasil, pag 130, menciona
em 1790 o nome de Manoel José de Souza no Sítio do
Tará, já não indicando o nome de Bento, que talvez
morresse.
FAZENDA XINGÓ - Escravo Antônio e sua mulher
Cora; filhos Antônio, João - 4 pessoas. Aqui, só os escravos
residiam, o senhor ficava à distância.
FAZENDA RIO DO SAL - Casa de Inácio Francisco
e sua mulher Francisca Xavier; filhos Francisco, Manoel,
Antônio, Margarida, Ana, Joaquina, Jacinto, Marcelina;
escravos Vitoriano, Jerônima; fâmulos Cipriano,
Domingos; escravo da fazenda, Gonçalo - 15 pessoas. A
existência de escravos do morador e escravo da fazenda,
com registro destacado, dá a entender que o morador, no
caso esse Inácio Francisco, era vaqueiro - por sinal,
vaqueiro bem situado, dono de escravos.
FAZENDA TAPERA - Casa de Felix do Rego;
escravos Francisco, Domingos, João, José - 5 pessoas.
FAZENDA DO MALIMBA - Casa de José
Alexandre; escravos Joaquim, agregados Rita Maria, filhos
Tomaz e Maria - 5 pessoas.
FAZENDA DE SERRAS - Casa de Valéria Barbosa;
filho José Correia, escravos Manoel, Lugvência, Maria - 5
pessoas. Casa de Faustino Zabelo e sua mulher Joana
Gomes; filhos José, Manoel, Antônio, Leonardo, Maria,
Ana, Domiciana, Inez - 10 pessoas. Casa de Luiz Francisco
e sua mulher Silvana; filha Antônia - 3 pessoas.
FAZENDA SÍTIO ALEGRE - Casa de Felix Alves e
sua mulher Francisca Monteiro; filhos Sebastião, Francisco,
José, Bernardino, Manoel, Jerônimo, Pedro, Rosa; escravos
João, Antônio, Joaquim, Ana - 13 pessoas. Casa de
Domingos Francisco e sua mulher Maria Bernarda; filhos
Bernarda, Vitor, Francisca, Antônia. Florência - 7 pessoas.
FAZENDA DAS QUEIMADAS - Casa de Manoel
Teixeira e sua mulher Brasida Teixeira; filhos Antônio,
Manoel, José, Vitoriano, Bento, Rosa. Inácia; escravos
Manoel, Manoel, Maria, agregada Rosa, filho Simplício 14
pessoas.
SÍTIO MANDACARU - Casa de Manoel José de
Santana e sua mulher Damiana de Souza; filha Vitória;
escravos Ana, José, Percópio, Luciano, Rosa - 8 pessoas.
Casa de Antônio de Souza e sua mulher Vitória Maria;
filhos João e Veneranda - 4 pessoas. Casa de Inácia Roiz;
filhos João, Pedro, Francisco, Josefa, Juliana; negra forra
Rosa, neto Vitório - 8 pessoas.
SÍTIO DO SACO DO TABULEIRO - Casa de Luiz
Barbosa e sua mulher Ana Vieira; filhos José, Fulgência,
Maria; escrava Antônia - 6 pessoas. Casa de José Barbosa e
sua mulher Clara Maria; filhos Manoel, José, Mamede;
escrava Luíza, fâmula Joana - 7 pessoas.
FAZENDA TABULEIRO - Casa de Bartolomeu
Roiz e sua mulher Cimiana Roiz; filhos Felix, Francisco,
Manoel, Antônio, José, Escolástica, Maria, Joana,
Francisca; escravo Manoel; fâmulos Antônia, Ana, Antônia
- 15 pessoas. Casa de Antônio Roiz Javilim e sua mulher
Juliana Maria; fâmula Clara - 3 pessoas. Casa de Pedro
Roiz e sua mulher Maria Rosa; filhos Pedro, Manoel,
Bernardina (ilegível) - 6 pessoas. Casa de Gonçalo José,
sua mulher Ana Maria; filha Jacinta, escravo João - 4
pessoas. Casa de Janoário Gonçalves e sua mulher Lauriana
Maria - 2 pessoas. Casa de Maria Barbosa; filhos Antônio e
Ana - 3 pessoas.
BREJO DO BURGO - Casa de Antônio (ilegível);
filhos José, Janoário; escravos Tereza, România, Ágata,
fâmulos Geraldo, Germano, José, Ana - 10. Casa de
Manoel Barbosa; escravos Cristóvão, Eufrásia, Antônia - 4
pessoas. Casa de Antônio José e sua mulher Luíza Maria;
filhos Luiz, Remualda, Maria, Ana, Francisca, Antônia,
escravos José, João; agregados Domingos da Cunha e sua
mulher Ana Souza, filhos José, Anacleto, Ángela;
agregados Antônio, Antônia Perpétua, filhos Vital, Antônio
Inácio, Fidelis - 21 pessoas.
CURRAL DOS BOIS - Casa de Francisco Gomes e
sua mulher Ana Maria; filhos Domingos, Francisco,
Apolinário, Luiz, Rita; fâmula, Albina - 8 pessoas. Casa de
João Carlos e sua mulher Izabel Maria; filhos Antônio,
Gonçalo, Ronilta; na mesma casa, Gonçalo Bezerra, seu
filho José Bezerra - 7 pessoas. Casa de Carmo Bezerra e
sua mulher Rita Caetana; filhos: Pedro, Maria, Anna - 5
pessoas.
FAZENDA DO RIO FUNDO NOVO - Casa de
Francisco Barbosa e sua mulher Antônia Maria; filhos
Maria, Anna, Francisca, Antônia; escravos José, João - 8
pessoas. Casa de João Theodózio e sua mulher Guardiana
Maria; filhos Antônio, Francisca, Anna - 5 pessoas. Casa de
Arcângelo Teixeira e sua mulher Josefa Maria; filhos
Guardiana, Antônio, Maria - 5 pessoas.
RIO FUNDO VELHO - Casa de Antônio Pereira e
sua mulher Maria de Amansa; filhos Raphael, João,
Antônio, Josefa, Giminiana, Izabel - 8 pessoas.
FAZENDA DE TAPARICA - Casa de Valeriano de
Souza e sua mulher Antônia Cordeira Passos; filhos
Antônio, Francisco, Calixto, Feliciano, Manoel, Antônia,
Maria - 9 pessoas. Casa de Matias Teixeira e sua mulher
Clara Maria; filhos Manoel, Pedro, José, Lauriano, Matias,
Clara, Antônia, Silvana, Francisca - 11 pessoas. Casa de
Romualdo e sua mulher Feliciana; filho Manoel - 3
pessoas. Casa de Manoel Antônio e sua mulher Maria
Vitória - 2 pessoas.
FAZENDA CAPIM GROSSO - Casa de Lauro; filho
Gonçalo, agregado Manoel - 3 pessoas.
FAZENDA DO SACO - Casa de Florência Lopes;
filhos Anna, Antônia, Margarida, Maria - 5 pessoas. Casa
de Francisco da Cunha Monteiro e sua mulher Maria da
Roxa; filhos Francisco, Antônio, Rosa - 5 pessoas.
FAZENDA DA VARGE COMPRIDA - Casa de
Caetano Fagundes e sua mulher Florinda - filhos Nicásia,
Margarida Maria, Vitório, Lourenço, Caetano; escrava
Anna, agregados Manoel Antônio e Margarida, seus filhos
Antônia, Anna, Remualdo, Pelônia - 15 pessoas. Casa de
Bernardo e sua mulher Grasia; - 2 pessoas. Casa de Miguel
Roiz e sua mulher Ana Maria; filhos Domingos, Flávio,
Maria, Simão, Daniel, Miguel, Merência, Maria - 10
pessoas. Casa de Gonçalo de Souza e sua mulher Chatarina
da Costa; - 2 pessoas. Casa de Fernando Teixeira e sua
mulher Riza Maria; filhos Antônio, Valentim e Terência - 5
pessoas. Casa de Leanor Gonçalves; netos Antônio,
Manoel, Miguel, Francisca, Anna - 6 pessoas.
FAZENDA DAS ABÓBORAS - Casa de Manoel
Leandro e sua mulher Rosa Maria; filhos Remualdo,
Manoel, Anna, Antônia, Florência - 7 pessoas. Casa de
Manoel Pereira e sua mulher Flávia; netos Luiz, Viviana - 4
pessoas.
FAZENDA DO CARURU - Casa de Caetano de
Souza; escravos Anna, Ilena, Maria, Joaquim, Margarida,
Vitoriano, Pedro, Caetano; fâmula Andreaza; escravo
casado com forra: Domingos, sua mulher Anna Virgínia,
filhos Ângelo, Vitória, Maria - 15 pessoas. Casa de Julião
Araújo e sua mulher Izabel da Costa; filhos Estêvão,
Antônio, Marsalino, José, João, Simplícia; sogra Bastiana -
9 pessoas.
FAZENDA MALHADA DO SAL - Casa de
Agostinho Duarte e sua mulher Maria Conceição; fâmulo
José; escravos João, Domingos, Mariana, João - 7 pessoas.
FAZENDA DA TACOTIARA - Casa de Caetano
Freire Leite e sua mulher Maria Madalena; filhos Anna;
escravos José, Maria, filhos Felix, Antônio, Gervásia,
Josefa, Joana, Izabel; fâmula Anna - 12 pessoas. Casa de
Luiz Freire e sua mulher Anna Thereza; filhos Vicente,
Ignácio, Luiz, Francisco; escravos José, Domingos,
Thereza - 9 pessoas. Casa de Caetano Freire do Vale e sua
mulher Marcela Maria; filhos Mariana, Floripes; escravos
Manoel, Marsalino, Ágada - 7 pessoas.
FAZENDA DO GRAVATÁ - Casa de Joaquim de
Almeida e sua mulher Maria da Silva; filhos Lourenço,
Jacinto, Francisco, Manoel, Joaquim, Maria, Bernardina,
Marsalina, Anna, Margarida; neta Maria; escrava Leonor -
14 pessoas.
FAZENDA DA TAPERA - Casa de Miguel Coelho
de Aguiar e sua mulher Antônia Teixeira; filhos Joaquim,
Escolástica, Ricarda, Antônia, Anna, Clara, Theânia,
Bebiana; escravos João, (ilegível), Flávio, Leandro, Gerini,
Izabel, Izabel, Lauriana - 18 pessoas, sendo 8 escravos,
indício de boa posição econômica. Casa de Joaquim Pereira
e sua mulher Maria Antônia; filhos Lauriano, Alexandre;
escravos Pelônia - 5 pessoas. Casa de José Pereira e sua
mulher Francisca Xavier; escravo (ilegível) - 3 pessoas.
Casa da viúva Anna Barbosa; fâmulos Benta Lopes; Miguel
Lopes e sua mulher Luzia; Juliana; Clemência e seu filho
João - 7 pessoas. Casa de Francisco Alz. e sua mulher
Cipriana; - 2 pessoas. Casa de Miguel Coelho moço e sua
mulher Maria Leonor; filhos Francisco, Antônio, Augusto,
Maria, Rita, Quitéria - 8 pessoas. Casa de João Lopes e sua
mulher Anna Maria; filhos Manoel, Antônio, Domingos,
Joana, Gertude, Anna; sua sogra Pascoa, filhos Francisco,
José, Antônio, Maria - 13 pessoas.
FAZENDA DO PENEDO - Casa de Ignácio
Maxado; filho Ignácio; escravos Antônio, José, Luiz,
Antônio, Gabriel, Maria, Rosa, Atanásia, Anna, Bonifácio;
fâmulos Antônio Lau, Manoel Libório e sua mulher
Micaela de Almeida; filhos José, Jorze e Quitéria - 18
pessoas (devia ser um homem rico, esse Inácio Maxado,
para possuir 10 escravos e manter 3 serviçais, tendo
trabalho para todos, e, possivelmente, exercia a lavoura - as
terras baixas de Penedo se prestavam bem à agricultura -,
além da pecuária). Casa de (ilegível, parece Loureno)
Maxado e sua mulher Francina Xavier; filho Domingos;
escravos Cipriano, Josefa, Manoel, Anna - 7 pessoas. Casa
de Antônio da Silva e sua mulher Bernarda de Souza; filhos
Antônia, Francisco; fâmulo João - 5 pessoas. Casa de
Sebastião Coelho e sua mulher Luiza Maxado; filhos Rosa,
Jacinta; fâmula Anderiza - 6 pessoas.
FAZENDA VARGE GRANDE - Casa de Manoel
Carvalho; filhos José, Luiz; escravo Maria - 4 pessoas.
Casa de Francisco de Souza Carvalho e sua mulher Glória
Maria; filhos José e Antônio - 4 pessoas.
FAZENDA DO SOROBABÉ - Casa de Manoel da
Roxa de Souza e sua mulher Maria Ramos da Souza; filhos
José, Matias, Antônio, Bento, Margarida, Bernardina,
Maria; escravos Maxiniano, Francisco, Caetano, Feliciana,
Paula, Anna, Catarina; neto José - 17 pessoas. Casa de
Manoel Paes de Souza e sua mulher Antônia Alz.; filhos
Antônio, Pedro, José, Sarafim - 6 pessoas.
FAZENDA DE RODELA - Casa de Antônio José da
Silva e sua mulher Margarida Delcruz do Nascimento;
filhos Anna, Francisca, Antônia, Francisco, Manoel,
Nicolau, Maria José; escravos Miguel, Teodísio; agregado
Agostinho - 12 pessoas. Casa de Bonifácio Barbosa e sua
mulher Antônia Francisca; filhos José, Reza, Antônio;
escravos Anna, Joaquim, Felix; agregado Antônia - 9
pessoas. Casa de Antônio da Silva de Andrade e sua mulher
Antônia Marta; filhos Anna, Rosa, Antônia, Francisco;
escravos Maria, Eusébio, Maria; agregado Lutensiana - 11
pessoas. Casa de Domingos Roiz e sua mulher Maria da
Conceição - 2 pessoas. Casa de Manoel Fagundes de Souza
e sua mulher Brízida de Souza; filhos Manoel, Felix;
agregada Feliciana - 5 pessoas.
FAZENDA LOXETICUM - Casa de Miguel da Silva
e sua mulher Francisca Maria do Espírito Santo; filhos
Hirônimo, Miguel, Francisco, Vitório, Manoel, Jenuário,
Maria, Joaquina, Rosa, Perpétua; agregados Inácia, José,
Bibiana, Thereza, Josefa - 17 pessoas. Casa de Antônio da
Silva e sua mulher Marta Maria; filhos Anna - 3 pessoas.
Casa de (ilegível, parece Tomaz) Alz. de (abreviado, parece
Jeir) e sua mulher Anna Maria; filho Manoel - 3 pessoas.
Casa de Sinésio Pinto e sua mulher Josefa Maria; filhos
José, (ilegível), Antônio, Izabel, Maria, Margarida,
(ilegível), Quitéria, Anna - 11 pessoas. Casa de Gonçalo
Ribeiro e sua mulher Antônia dos (ilegível, parece Santos);
filhos José, Gonçalo, Francisco - 6 pessoas. Casa de Izabel;
filho Nazário; - 2 pessoas. Casa de Miguel José; escravo
Manoel - 2 pessoas. Essa fazenda Loxeticum, será
certamente Araticum.
FAZENDA DA BARRA - Casa de Manoel Francisco
da Conceição e sua mulher Anna Maria; filhos Davi,
Daniel, Francisco, Manoel, Siana, Maria, Feliciana,
Antônia; escravos Rosa, José, (ilegível), Manoel - 13
pessoas. Casa de Antônia Simôa; filhos Pantaleão, José,
Arcanjos, Maria; escrava Maria - 6 pessoas. Casa de
Francisco Dias e sua mulher Rita Maria; filhos Braz,
Inácia, Damiana, Cosma, Josefa, Tomaz, Zaquiel, Eugênia -
10 pessoas.
SÍTIO DO ROSÁRIO - Casa de D. Thereza de Sá;
filhos Francisco, Maria, Nezer, Maria, Antônia, Manoel,
Anna, Vitorino; escravos João, Antônia, Manoel, Anna,
Josefa, Nicácia, José, Domingos, e cria o filho Jerônimo -
18 pessoas, destacando-se a posse de 8 escravos, para
indicar a sólida situação econômica de D. Theresa de Sá.
Casa de Maria Felizarda; filhos Manoel Antônio,
Francisco, Ignez, Nicácia, Bernarda, Antônia - 7 pessoas.
SÍTIO DO CURRALINHO. - Casa de (ilegível,
parece Áurea) de Macedo; escravo Joaquim, Agregados
(ilegível), menino Laureano, (ilegível) velho - 4 pessoas.
Casa de José Ribeiro e sua mulher Juliana Barbosa; filhos
José, Ângelo, Quintiliano, Basília, Inácia, Antônia - 8
pessoas. Casa de Antônio Barbosa e sua mulher Maria
(ilegível); filhos Joana, Maria, Anna, Felipe - 6 pessoas.
Casa de Maria Pereira, escrava de Pedro de Albuquerque;
filha Josefa; netos Natácio, João, Matias, Maurício - 6
pessoas. Casa de João Rodrigues e sua mulher Maria
Pereira da Conceição; - 2 pessoas.
FAZENDA DO TARAXIL - Casa de Manoel
Moreira da Silva; filho Liborino; escravos José, Maria,
Lautério, Quitéria, Manoel; agregados Maria e Quitéria - 9
pessoas.
FAZENDA XOROXÓ - Casa de Manoel Cornélio;
escravos José, Gonçalo - 3 pessoas.
FAZENDA DONA CUSÉ - Casa de Manoel Ribeiro
da Cruz; filhos Francisco Lucas; escravos Manoel e sua
mulher; Pedro; agregados Diôgo Lopes, José Dusa e sua
mulher Francisca dos Anjos e filhos Aniceto e Florência;
outro agregado Geraldo e sua mulher Antônia, Antônio
Francisco e sua mulher Vitorina e filhos Joliam, Genubeba
e Antônio - 18 pessoas. Essa fazenda D. Cosé, será,
possivelmente, Icozeira.
FAZENDA DA PEDRA - Casa de Joaquim Lopes -
1 pessoa. Casa de Miguel Barbosa e sua mulher Francisca;
filhos Manoel, José, João, Tomaz, Custódia, Jerônimo;
escravos Anna, Francisco; agregado Tomaz - 11 pessoas.
FAZENDA DO SÃO JOÃO - Casa de Gonçalo de
Almeida e sua mulher (ilegível) Pereira; escravo João - 3
pessoas.
FAZENDA DO IRAPUEA, IRAPUÁ (pouco legível)
- Casa de Pedro Grácia e Juliana Pereira; filhos Teodósio,
Euzébia, Geraldo, Manoel; agregados Jerônimo Fagundes e
sua mulher Josefa, filhos Maria, Marcos, (ilegível),
Damário, Albino, Francisco, Anna, Manoel, Francisco - 16
pessoas.
FAZENDA SANTO ANTÔNIO - Casa de Luiz
Coelho, Vitoriano e Grácia - 3 pessoas.
FAZENDA DO JATOBARANA - Casa de Narciso e
sua mulher Anna; filhos Narciso, Crispim, Arcânjela,
Nacência - 6 pessoas. Casa de Erônia - filhos Silvina,
Domingos, Francisco, Bibiana - 4 pessoas. Casa de
Teadório e sua mulher (ilegível); filhos Simião, Anna - 4
pessoas. Casa de Marçal e sua mulher Eufrarida; filhos
Manoel, Euzébio, Volante, Anna, Margarida, Luiza - 8
pessoas. Casa de Josefa; filhos Vitorino, Astácio, Maria,
Sílvia, Antônia, Juliana - 8 pessoas. Casa de Pedro Dias e
sua mulher Marcolina; filhos Miguel, Bernarda, Radózia - 5
pessoas. Casa de Maria Francisca; filho Gabriel; agregados
Manoel, Luciana, Manoel Dias, Bernabé - 6 pessoas. Casa
de Ignácia Maria (ilegível); filhos Francisco, José, Manoel,
Anna, (ilegível); escravo José; agregados Águida,
Margarida - 8 pessoas. Casa de Manoel Gomes de Almeida
e sua mulher Anna; filhos Manoel, Antônio, José, Quitéria,
Mourel, Anna, Venância, Maria - 9 pessoas. Casa de
Francisco (ilegível) e sua mulher Faustina - 2 pessoas. Casa
Francisco (ilegível) e sua mulher Simianna; agregada Anna -
3 pessoas Casa Antônia; filha Castora; neta Josefa - 3
pessoas.
FAZENDA VARGEM - Casa de Pedro Alz Feitoso;
escravos Ignácia, João, Ignácio, Manoel, Manoel, Manoel,
José, José, Luiz, João, Joaquim, Antônio, José, Lutério,
Pedro, Gregório, Francisco, Francisco, Manoel, Luiz,
Manoel, Romualdo, Miguel, José, Valério, Gertrudes,
Vicença, Gertudes, Quitéria, Antônia, Manoel, Grácia,
Monta, Anastácia, Damiano, Francisca, Maria, Ignácia,
Ilina, Ladenila; agregada Ilina; vaqueiros Manoel Gomes,
José Libório, Ilário (ilegível), Genebaldo (ilegíveis), Felix
Lopes, Ignácio Marinho, Geraldo Gomes, Antônio Dias. O
proprietário 1, escravos 40, agregada 1, vaqueiros 8, - 50
pessoas. Fica o especial destaque de que, na fazenda de
Pedro Feitoso, havia 40 escravos, a maior concentração de
cativos da região. Devia ser uma grande fazenda, de criar e
plantar
FAZENDA EIBO - IBÓ? Casa de Micaela Pereira,
viúva - filhos Antônio, Maurício, João, José, Pedro,
Manoel, Izabel; escravos José, José, Simiam, Eladora, Luiz,
Flávio, Marcelo, Joaquim, Maria, Anna, Genebaldo,
Euzébia - 20 pessoas, sendo a viúva, 7 filhos e, como
indício de sólida riqueza, 12 escravos. Casa de Felix
Arahújo e sua mulher (ilegível); filhos Manoel, Leonor - 4
pessoas. Casa de Damianna; filhos João, Eiria, Águida,
Tomázia, Anna, Maximiano, Josefa - 8 pessoas. Casa de
Luiz (ilegível) - 1 pessoa. Casa de Manoel da Roxa e sua
mulher Anna; filhos Pedro, Onolídio; escravos Rosa - 5
pessoas. Casa de José e sua mulher Francisca; - 2 pessoas.
Casa José (ilegível) e sua mulher Angélica; filhos
Francisca, Anna - 4 pessoas. Casa de Grácia; filha
Bonifácia; - 2 pessoas. Casa de Manoel Pereira e sua
mulher Eleodória; filhos Rumana, Manoela - 4 pessoas.
Casa de Úrsula Pereira; filha Custódia, Luíza da Costa - 2
pessoas. Casa de Custódio Dias e sua mulher Josefa
Pereira; filhos Custódio, José, Manoel; agregados Maria e
um menino seu filho - 7 pessoas. Casa de Manoel Barbosa
e sua mulher Anna; filhos Miguel, Rafael, Ponlianda,
Manoel, Francisca, Anna, André - 9 pessoas. Casa de José
Rodrigues e sua mulher Caetana; filhos Agostinho, Narcisa,
Antônio, Manoel, Maria, Josefa, Julianna, Anna - 10
pessoas. Casa de Cipriano Rodrigues e sua mulher Geralda;
filhos João, Antônio - 4 pessoas. Casa de Valentim Cardoso
e Joana; filhos Venâncio, João, Maria, Manoel - 6 pessoas.
Casa de João da Costa e sua mulher Fabiana; filhos Manoel
- 3 pessoas. Casa de Manoel Pereira de Souza e sua mulher
Florinda; - 2 pessoas. Casa de Antônia Maria (ilegível);
filhos João Severa, Antônia - 3 pessoas. Casa de Manoel
Rodrigues e uma mulher Madalena; Agregados (dois
nomes ilegíveis), Manoel de D. Antônia, José, Antônio,
Anna - 8 pessoas. Casa de Felix Soares e sua mulher Iny;
filho Gonçalo - 3 pessoas. Vinte residências
FAZENDA DO PAMBU - Casa de Ilário Pereira e
sua mulher Juliana; Filhos João, Jenuária, Luciana, Antônio
- 6 pessoas. Casa do vigário Manoel Nunes da Silva
Cartaxo; escravos João, Bastião, Joana - 4 pessoas.
BARRA DO BREJO - Casa de Felix da Roxa e sua
mulher Maria Cardoso; filhos Manoel, Francisco, Sutério -
5 pessoas.
IPUEIRA DANTA - Casa de Maria do Ó; filhos
José, Eugênia, Manoel, Izabel, Felipa, Francisco - 7
pessoas. Casa de Anna Fogaça; filho Jandio - 2 pessoas.
Casa de Joaquim Soares e sua mulher Maria Joary - 2
pessoas. Casa de Domingos Pereira e sua mulher Anna
Roiz; filhos João, Marta, Anna, Joanna, Brasida - 7
pessoas. Casa de Jóia Maria; filhos José, Manoel, Antônio,
Joaquina - 5 pessoas. Casa de André Pereira e sua mulher
Francisca da Silva; filhos Eufrazida, Maria, Anna, Claudina
- 6 pessoas. Casa de Maria Caetana - 1 pessoa. Casa de
Felix Roiz e sua mulher Andreza Gomes; filhos Marcos,
Manoel, Quitéria, Sertório - 6 pessoas.
BARRINHA - Casa de Faustina Cardoso; filhos
Simplycio, Manoel, Tomaz, Cornélio, Matias, Guardiana -
7 pessoas. Casa de Futurosa Maria - 1 pessoa. Casa de
Anicácia da Costa - 1 pessoa. Casa da viúva Quitéria de
Almeida; órphãos João, Joanna, Estêvão, Nanda - 5
pessoas. Casa de Cristenor - 1 pessoa. Casa de Felipe e sua
mulher Marta Pereira - escravos Pera e Felix - 4 pessoas.
FAZENDA DO JENIPAPO, DE JOSÉ PIRES - Casa
do vaqueiro Francisco Nunes da Mota; filhos Vitorino
Cardoso, José Lôpo; escravos Antônio, Luiz, Manoel,
Florinéia, Luiz; escravos da fazenda Maximianno, Diogo,
Joaquim, Leandro, Cornélio, Maria, Maria, Gregório,
Pedro, agregada Anna; moradores Maximianno, Simôa
(forra); filhos João, Branco, Domingos, Luiz, Felix,
Manoel; escravos Mateos; Germano de Simôa - 28 pessoas,
contando-se 16 escravos, com o destaque de o proprietário
não residir na fazenda, sim, o vaqueiro; devia ser gente
muito bem posicionada. Casa de João (pouco legível,
parece Cordeiros) e sua mulher Maria Pereira; filhos
Nasário, Loduvico; escravo Ricardo - 5 pessoas. Casa de
José Francisco - 1 pessoa. Casa de Caurros de Oliveira e
sua mulher Josefa; escravos Rita, Lucianna, Bibianna;
agregados Domingos, Maria - 7 pessoas. Casa de Florêncio
Roiz e sua mulher Izabel - 2 pessoas. Casa de (abreviado,
parece Bernardo) da Roxa e sua mulher Anna do Rego;
filhos Manoel, Antônio; escravos José, Francisco,
Lucianna, Teadória, Felisarda, Teadora, Cipriano - 11
pessoas, sendo 7 escravos, para indicar boas posses. Casa
de (abreviado parece Bernardo) Pereira e sua mulher Ilária
Francisca; filhos Luzia, Joanna, Manoel, Antônio, Miguel -
7 pessoas. Casa de José Vieira e sua mulher Cornélia - 2
pessoas. Casa de Cosme e sua mulher Maria da Silveira;
filha Anastácia - 3 pessoas. Casa de Bento dos Santos e sua
mulher Vivalda; filha Eugênia - 3 pessoas. Casa de Manoel
Jorge e sua mulher Anna Geralda; filhos Maria, Antônia,
Annacleta, Marcelina, Maria, Tomaz, Marciana, Luciano -
10 pessoas.
BOM JESUS - Casa de João Francisco e sua mulher
Anna Maria; filhos Senhoria, Izabel, Florêncio, Anna,
Leodoro, Maria; escravos Luiz, Anna, José, Manoel,
Sebastiana, José, Ignácio, Antônia, Simião, Maria, Maria;
agregado (abreviado, parece Bernardo) José Pereira - 20
pessoas, entre as quais, 12 escravos, que lhe davam o
destaque de gente bem apossada. Casa de Levi Emy e sua
mulher Antônia; filhos Margarida, José, Maria - 5 pessoas.
Casa de Francisco Cardoso e sua mulher Maria do Ó; filhos
Felipe, Jacinta - 4 pessoas. Casa de Felipe de Oliveira e sua
mulher Rita Pereira; filhos Maria, Ludovina, Raimundo,
Venceslau, Manoel, João, Anna - 9 pessoas.
POÇO DE FORA - Casa de Boaventura, escravo
João - 2 pessoas.
FAZENDA DO PIAM - Casa do vaqueiro Bento
Pereira e sua mulher Maria Pereira; filhos Francisco,
Florêncio, Constâncio, José, Manoel, Maria, Gonçalo,
Nazário, Ilário, Bento, Lutéria; escravos da fazenda Felipe,
José, Bonnifácio - 16 pessoas.
FAZENDA DA CACIMBA - Casa dos escravos
Manoel Cardoso, João, Antônio, Manoel, Geraldo,
Francisco - 5 pessoas. Casa de Carlos Gomes e sua mulher
Maria Simôa; filhos José, Francisca, Antônia - 5 pessoas.
Casa do vaqueiro Damião Luiz Pereira e sua mulher
Damiana; escravos da fazenda Bento, Maria, Bernarda,
Escolástica, Eugênio, Gonçalo, Santa Anna - 9 pessoas.
Casa de (abreviado irreconhecível) e sua mulher Maria
Nunes; filhos José, Maria Joaquina, Francisca, Catarina,
escravos Antônio, Antônio, Paulo, Geraldo, Ignácio, Paula,
agregados Francisca - 14 pessoas. Casa de Antônio
(ilegível) e sua mulher Maria Pereira; filhos Luciano,
Joanna - 4 pessoas. Casa de José Pereira e sua mulher
Josefa; filho Martinho - 3 pessoas. Casa da viúva Izabel
Maria; escravos Maria e Francisco - 3 pessoas. Casa de
João Nunes; escravos Temóteo, Domingos, Rita, Izabel,
Ilária - 6 pessoas.
SÍTIO VIÇOSA - Casa de Francisco Nunes da Silva
e sua mulher Tereza Maria; filhos Alexandrina, Lodegária;
escravos Francisco, Tereza, Narciso, Gotarda, Josefa,
Manoel, José; agregado (ilegível) - 12 pessoas. Casa de
João Grz. e João de Sá - 2 pessoas.
MANGA - Casa de Antônio Alz. e sua mulher Izabel
Maria; filhos Apolinário, Claudiana, Florêncio; escravos
Gonçalo, João, Sebastiana, Facundo, Romana, Joana;
agregado José Saraiva e Ponciana - 14 pessoas, sendo 6
escravos.
FAZENDA DA LAGOA (ilegível, parece DA
TIJUCA) - Casa de Antônio; escravos Bernardo; vaqueiro
Gonçalo Pereira e Anna; filhos Gonçalo, Antônia, Anna,
Joanna, Pucídio, Maria, Catarina, João - 11 pessoas.
FAZENDA DO JAQUINICÓ - Casa do escravo José
Prudente - 1 pessoa.
MORCEGO - Casa de João Rafael e sua mulher
Maria Barbosa; escravos Joaquim, Francisco, Maria,
România, Sátiro - 7 pessoas, sendo 5 escravos. Casa de
Mariana de Jesus; escravo (ilegível) - 2 pessoas. Casa de
Romária; filho Manoel - 2 pessoas. Casa de Inez e
Ambrósio - 2 pessoas. - Casa de Manoel José da Costa;
escravos Joaquim, Josefa, Felisbela - 4 pessoas. Casa de
Anna Gomes; filhos Joanna e Maria - 3 pessoas. Casa de
Frutuoso e sua mulher Sufia; filhos Anna e Quintiliano - 4
pessoas. Casa de Miguel Marques; filhos Anna e José - 3
pessoas. Casa de Antônio Alz - 1 pessoa. Casa de José
Simplício - 1 pessoa. Casa de Quitéria; filhos Romaria,
Joanna, Anna - 4 pessoas. Casa de Josefa - 1 pessoa. Casa
de Valéria Pereira; filhos Maria, Anna, Inicácia, Vitorino -
5 pessoas. Casa de Antônio Pereira e sua mulher Izabel
Barbosa; filhos Maria, Sinésia, Anna, Lucas, Antônio - 7
pessoas.
FAZENDA (ilegível, parece BOQUEIRÃO) - Casa
do vaqueiro Bernardo Cardoso; escravos da fazenda
Manoel, Amaro, Cristovam - 4 pessoas. Casa de Antônia da
Rocha; filhos Januária, Eufrasida, Inácia - 4 pessoas. Casa
de Manoel Pereira Truta; escravos Antônio, Felix,
Francisco; agregado Domingos - 5 pessoas. Casa de José
Pereira Truta; escravos Antônio e Francisco - 3 pessoas.
Casa de Manoel Leite e Bento Leite; escravo Ilias - 3
pessoas. Casa de Lamberto e sua mulher Maria Simôa - 2
pessoas. Casa de Maria Pereira; filha Francisca - 2 pessoas.
Cada da viúva România; filhos Manoel, Giminiana - 3
pessoas. Casa de Vicente Francisco e sua mulher Maria
José; filhos Maria, Manoel, Miguel, Luciano; escravos
Lubina, Laurianna, Jacinta, Juvência; moradores Antônio e
Antônia - 12 pessoas. Casa de Antônia Pereira; filhos (2
nomes ilegíveis) - 3 pessoas. Casa de (ilegível) de Siqueira
e sua mulher Ignácia de Oliveira; filhos (6 nomes ilegíveis) -
8 pessoas. Casa de Josefa; filho Antônio - 2 pessoas. Casa
de Antônio de Souza e sua mulher Anna; filhos João,
Florentino, Sutério (3 nomes ilegíveis) - 8 pessoas. Casa de
Felix Bento e sua mulher Anna Maria - 2 pessoas. Casa de
Manoel Pereira e sua mulher Francisca; filhos Manoel,
Vidal; escravos Francisco; agregados José e Eugênia - 7
pessoas. Casa de João Barbosa e sua mulher Maria Barbosa
- 2 pessoas. Casa de Antônia Maria; filho Crispim;
agregado Felix Pereira - 3 pessoas. Casa de Anselmo e sua
mulher Catarina; filha Anna - 3 pessoas. Casa de Jorge
Gomes e sua mulher Marta; filhos Anna, Rita, Eugênia,
Francisca; escravo Manoel - 7 pessoas. Casa de João da
Cunha e sua mulher Perpétua; filho João - 3 pessoas.
CARAÍBAS - Casa da viúva Maria Roiz; filhos
Reza, Teodória, Leandro, Eugênia, Izabel, Gonçalo,
Antônia; escravos Maria, Matias - 10 pessoas. Casa de José
Amaro; escravo José - 2 pessoas.
SURUBIM - Casa de Bento Barbosa e sua mulher
Ana; filhos Teodória, Francisca, Roque, Domingos;
agregado João - 6 pessoas. Casa de Manoel Barbosa e sua
mulher Rosa Maria; filhos Maria, Eusébia, Francisco,
Florêncio, Josefa, Ignácia, Izifirina - 9 pessoas. Casa de
José Francisco e sua mulher (ilegível); filhos Sinciano,
Izabel; agregado Antônio José - 5 pessoas. Casa de José
Coelho - 1 pessoa. Casa de Antônio Aliz e Joanna Dantas -
2 pessoas.
ROÇADO - Casa da viúva Anna Barbosa; filhos
Francisco, João, Antônio, Tomaz, José, Manoel; escravos
Anna, Domingos; agregado Leonor - 9 pessoas. Casa de
Anauto Nunes - 1 pessoa. - Casa de Antônia da Costa - 1
pessoa. Casa de José Antônio e sua mulher Izabel; escravo
Inez - 3 pessoas. Casa de Manoel Batista; filhos José,
Manoel, Maria, Vitorina; escravos Joaquim, Antônio, Felix,
Maria, Teadoro, Anna; agregados Catarino e Ana; escravos
Anastácio e Tereza - 15 pessoas, contando-se 8 escravos,
indício de riqueza.
LAGOA - Casa de João Aliz. e sua mulher Antônia
Maria; escravo Francisco - 3 pessoas. Casa do vaqueiro
Felix Aliz. escrava da fazenda, Francisca - 2 pessoas. Casa
de Bibiana - 1 pessoa.
OITEIRO - Casa de Ventura e sua mulher Maria
Cardoso; um agregado de nome ilegível 3 pessoas. - Casa
de Gonçalo e Francisca; filhos Antônia, Maria; escravos
João, Catarina, Margarida - 7 pessoas. Casa de Antônio
Soares e sua mulher Ciprianna; filhos Felix, agregada
Ignácia - 4 pessoas.
CURRALINHO - Casa de Manoel Mendes e sua
mulher Antônia José; filhos João, Maria, Vitorino; escravos
Anna, Joaquim; um agregado de nome ilegível - 8 pessoas.
Casa de Euzébio Pereira e sua mulher Izabel Cardoso;
filhos José, Luiz, João, Maria, Joanna, Vitória; agregada
Anna - 8 pessoas.
FAZENDA DO (ilegível, parece BURGO ou
MORGO) - Casa de (abreviatura irreconhecível) e sua
mulher Eugênia; filhos Eugênio; escravos Francisco,
Manoel, Bento, Gonçalo, Maria, Izabel, Maria, João,
Mateus, Antônio; agregado Jacinto - 14 pessoas, contando-
se, para atestar a riqueza, 10 escravos. Casa de João Ribeiro
e sua mulher Tereza Maria; filhos João, Leandro - 4
pessoas. Casa de José da Silva e sua mulher Francisca;
filhos Rosa, Maria; escravos Antônia, Manoel - 6 pessoas.
Casa de Manoel e sua mulher Quitéria; filhos José, João,
Joana; escravos João, Joaquim, Marta, Jorge, José, Antônio
- 11 pessoas.
BOM JESUS - Casa de Joaquim Vieira; agregados
Lourenço, Marcelo; escravo Gonçalo - 4 pessoas. Casa de
Josefa Ambrite - 1 pessoa. Casa de Pedro e sua mulher
Romana; filhos Januário, José, Brízida - 5 pessoas. Casa de
José Romaria - 1 pessoa. Casa de Joanna; filho Pedro - 2
pessoas. Casa de Ilenza - 1 pessoa. Casa de Martinho e sua
mulher Perpétua Rosa - 2 pessoas. Casa de João Barbosa e
sua mulher Maria - 2 pessoas. Casa de Ventura e sua
mulher Izabel; filhos Nazária, Ignácia - 4 pessoas. Casa de
Francisco Felix; escravo João - 2 pessoas.
Contam-se 1.591 pessoas, sendo 354 escravos - 22%.
Levando-se em conta que há falhas nos papéis, seriam um
pouco mais. Quem quiser avaliar as riquezas da época,
conte os escravos por residência. Na Jatubarana, por
exemplo, com 13 moradores, há um único escravo. Eram
pessoas pobres. Outra observação é que os rendeiros
mantinham uma razoável quantidade de agregados.
Contados um a um, 40. Isso não quer significar escassez de
local para sede de fazenda, sim a existência de gente pobre,
talvez simples empregados. Proporcionalmente à
população, o número dos agregados era pequeno. Pessoas
sem condição econômica para arrendar terras e iniciar sua
pecuária em local próprio, encostavam-se ao chão do
parente, do compadre, do amigo ou do simples patrão. O
agregado, em geral, representava a figura do homem que
construía sua casinha de taipa, alguma coisa como o
barraco da cidade grande, plantava de meia um pedaço de
chão, criava galinha e mais que isso, poderia ter um porco
no chiqueiro. Prestava serviços eventuais, a dia. Constituía
família e se multiplicava, mas não lhe era permitido criar
ou construir residência sólida, por isso vivia de favor.
Tinha uma obrigação irrecusável: atender ao chamamento
do senhorio, quando este precisasse de seu trabalho, e um
direito sagrado, receber o custo da diária, em regra
arbitrada pelo senhor. Não era um escravo, mas também
não era um cidadão independente, parece que um meio
termo. Criar, na fazenda, só se permitia ao vaqueiro, pelos
animais ganhos em quarteação, isso mesmo, dentro de um
certo limite, ultrapassado o qual teria de vender os animais,
e vendê-los ao dono da propriedade, nunca a outro, salvo
com sua permissão. Poderia arrendar o seu lugar e mudar-
se.
As primeiras fazendas plantaram-se à margem do
São Francisco, cobrindo áreas extensas. E nem toda a
margem se apropriava aos currais. Em seguida vieram as
margens dos rios secos e até dos pequenos riachos onde se
encontrasse um veio de água aflorada ou local viável para a
cacimba. Vê-se, do registro acima, que em proporção ao
espaço, tão amplo, na sesmaria dos Rodela no trecho à
margem do São Francisco entre o Xingó e o Salitre, as
áreas ocupadas fora da beira-rio, não eram muitas e na
atualidade ainda é assim. A terra de caatinga é pobre, seca e
ruim, prevalece o chão improdutivo, léguas e léguas
desérticas. A calamidade das grandes estiagens, não é de
hoje, sempre existiu. Nos velhos tempos o recurso do cacto
como ração era utilizado com fartura, por isto mesmo, hoje
é praticamente esgotado.
Vale destacar que a população escrava correspondia
a mais de um quinto - 22%, do total de habitantes da área.
Muita gente. Não se fala em escravos índios. Talvez já não
existissem então, até porque, seguramente não se
sujeitavam ao trabalho escravo e lhes era muito fácil fugir,
estando na sua caatinga da qual conheciam todos os
meandros. Poderiam estar na classificação dos agregados,
como simples trabalhadores da fazenda. Como já se disse,
avaliava-se a fortuna pela posse do escravo. Rico que se
prezasse, curraleiro que se quisesse dar como bem situado,
devia ter escravos. Em geral não tinha uma boa casa, com
um mínimo de conforto. A cama costumava ser de couro e
muitas vezes as portas internas, como, aliás o geral dos
utensílios, borracha para água, alforje, sacos de transporte
de carga, mochilas de milhar os animais e tantos outros
objetos - por isso mesmo alguém cognominou de
civilização do couro. A ostentação da fortuna apresentava-
se no número de escravos e cabeças de gados, nos bons
cavalos de montaria, sela e carona bem trabalhadas e
tacheadas à prata, bridas, estribos, rebenque, esporas de
prata, um cadeirão na sala e a rede no alpendre, os cordões
de ouro apresentados à missa, pela patroa.

NOTA:
1 - Arquivo Público da Bahia, Seção Colonial e Provincial, Colônia,
Relação de moradores (fazendas) 1779, Caderno 4, manuscrito.
XVI - FIM DAS MISSÕES
Dilapidação do patrimônio

"Pode-se dizer - registra Felisbello Freire -, com raras


exceções, que cada aldeia foi a origem de uma vila, com o
seu aparelho civil", e continua:
"Capuchos italianos":
Missões de Arapuá, Kariris, Urucapaca, Pambu,
Vargem, da tribo Porcazes, Axará, Rodelas, Paracatuba,
Rio de Contas. A aldeia de Rodelas de índios da nação
Porcães tem 600 almas, a de S. Pedro, situada no Porto da
Folha, da nação karapató, 360 casais e a de N. S. dos
Remédios, 335 casais e a dos Grens do Rio de Contas, tem
100 almas".(1)
"Das missões em suas terras prosperaram com os
capuchinhos italianos - a notícia, agora, é de Pedro Calmon,
em História da Casa da Torre -, Rodelas, no Pambu -
freguesia em 1714, distrito 1724, vila em 1832".(2)
Felisbello Freire, em sua História Territorial do Brasil, não
oferece qualquer registro indicativo sobre a elevação de
Rodelas a freguesia, distrito e vila, deixando somente, ao
mencioná-la entre outras a vaga expressão de que "com
raras exceções, cada aldeia foi a origem de uma vila". E
Rodelas parece estar entre as exceções, eis que em outros
autores também não se encontra o registro de sua elevação
a freguesia, distrito e vila. Antes, Capistrano de Abreu, tem
esta notícia: "nunca foi vila". Certamente mestre Calmon
quis referir-se a Pambu, até porque diz "Rodelas, Pambu", e
as datas indicadas correspondem exatamente às da elevação
de Pambu a freguesia, distrito e vila. A indicação de
Rodelas, teria sido um lapso de redação. O certo é que o
velho aglomerado humano dos Rodela, que somava índios,
curraleiros e escravos, embora continuasse sob a direção
dos missionários capuchinhos até princípios da segunda
metade do século XIX, passou à jurisdição eclesiástica de
Glória em 1842, o que quer significar que somente a aldeia
ficava, a partir de então, sob a jurisdição missionária,
enquanto a gente dos currais passava a jurisdição paroquial
diocesana. O registro é de Felisbello Freire:
"Freguesia de S. Antônio do Curral dos Bois. Pela lei
de 8 de abril de 1842 foi criada essa freguesia,
desmembrada de Pambu, tendo por limites ao poente o
riacho de Rodelas, ao nascente Propriá, ao sul o rio S.
Francisco e ao norte S. João Batista de Geremoabo".(3) Os
limites da nova jurisdição eclesiástica aqui indicados,
alcançavam a área do atual município de Rodelas que vai
desde a extrema de Glória até cerca de um quilômetro
acima da sede municipal, à margem direita do riacho de
Rodelas, mais tarde chamado riacho do Amarim. Assim, a
partir da confluência, na margem esquerda do riacho, onde
era a fazenda Praia, para as caatingas às fazendas Malhada
Grande e Inveja, até fazenda Cachauí à margem do rio e
fazendas Caraibinhas, Coronon e Cercado para as
caatingas, continuava a jurisdição eclesiástica de Pambu.
Quatro anos depois, a divisão passaria a ser no riacho do
Tarrachil, já aí incluindo na jurisdição eclesiástica de
Glória toda a área do atual município de Rodelas. Eis o ato:
"Freguesia de Santo Antônio da Glória. A lei de 13
de maio de 1846, assim denominou a antiga freguesia
chamada de Curral dos Bois, dando-lhe os seguintes
limites: `ao norte o rio S. Francisco, ao nascente a freguesia
de N. S. do Buraco, ao sul S. João Batista de Geremoabo,
servindo de divisão entre elas as fazendas de S. José, e
Algodões, no poente o riacho Tarrachil e por este acima a
encontrar com a divisão de Geremoabo, ficando portanto, a
de S. Antônio da Glória à margem oriental do mesmo
riacho'".(4)
Nestes dois limites territoriais está Rodelas, sem
sombra de dúvida, no primeiro a partir do riacho de
Rodelas, pouco acima da povoação, como já se disse, no
último desde o riacho do Tarrachil, cerca de 25 quilômetros
acima, deslocado, como se vê, da jurisdição eclesiástica da
freguesia de Pambu para a de Santo Antônio da Glória. Na
última indicação divisória incluía-se toda a área do atual
município. Não obstante essa jurisdição oficial, Rodelas
continuaria com os missionários italianos certamente até
1852, 1853, aí presente fr Paulino de Limonte.
Sem missionário a partir de 1853, e já integrada à
jurisdição eclesiástica de Glória, a aldeia de Rodelas passou
ao arbítrio de seculares. Surrupiaram, impiedosamente, os
bens da comunidade. Em 1855 essas extorsões contra os
índios, foram denunciadas. Responsáveis pelas extorsões e
abusos, eram o vigário de Glória e o juiz municipal de
Geremoabo, segundo a denúncia. Sentiu-se a urgente
necessidade do retorno dos missionários. Foi providenciada
a ida de fr. Luiz Giávoli de Gúbio para a missão de
Rodelas, na qualidade de diretor e catequista, com a
finalidade de reorganizar aquele centro, como ficou
anotado em capítulo anterior.
"O Presidente da Província, João Lins Vieira
Cansanção de Sinimbu, no seu relatório à Câmara em 1 de
maio de 1857, aludia a vários apelos dos índios rodelas que,
inclusive, haviam enviado comissões à Capital com vistas a
obter um religioso capuchinho que tomasse conta do centro
e falava do projeto a fim de satisfazer seus pedidos, uma
vez que tinham chegado para a Piedade novos
missionários".(5)De reorganizar a aldeia, ocupou-se por
cinco anos, a partir de 1857, o padre Luiz de Gúbio. As
soluções se davam lentamente e o padre ia dois anos depois
da denúncia. Finda a reorganização considerou-se
desobrigado e retornou ao Convento da Piedade em 12 de
outubro de 1862. Seria o último missionário capuchinho em
Rodelas. Encarregado de visitar a região são-franciscana e
ver a situação das aldeias, ofereceu um julgamento simples:
a população genuinamente indígena era muito resumida, as
aldeias constavam apenas nos mapas e nos decretos de
nomeação de administradores locais. A catequese
propriamente dita já não existia nem valia a pena
reorganizá-la.
Quase dois séculos de iniciadas, com muitas
dificuldades embora, as missões haviam operado seu
resultado e deviam estar realmente esgotadas. Os índios -
os que restaram, poucos - estavam aculturados. Podiam
incorporar-se à sociedade. Era a sua opinião. Restava
acolher no seio da sociedade a sobra dessa gente. Opinou
muito bem. Em Rodelas, por exemplo, fora assim. Dera-se
o extermínio da população indígena e a aculturação das
sobras. As missões estavam esgotadas. Salvaram uns
poucos, bem ou mal os introduziram nos caminhos da
religião a cujo serviço vieram. Estavam aculturados os que
restaram. Podiam incorporar-se à sociedade e ir por si
mesmos ao destino da espécie humana, à palavra divina -
crescei e mutiplicai-vos. É certo que continuariam, como
fora antes com a raça indígena, a ser enganados e
extorquidos em suas terras - é a inexorabilidade do mais
forte pisando o mais fraco em todos os lugares e em todos
os tempos, com todos os povos.
Ainda que subsistisse, marcando os tempos, a palavra
de excomunhão - fica-te aí, Rodelas, que de rodelas não
passarás - a aldeia continua, e a seu lado, a população do
branco rodeleiro, descendente do vaqueiro, sem faltar o
sangue do cativo. Aliás, a palavra de excomunhão, ainda se
repete na localidade, e quando as coisas dão ruins, lá vem a
lembrança: - de rodelas não passa mesmo! Não creio que
isso signifique o triunfo do vil em detrimento do honrado.
Não, os bons nunca deixaram de ser bons, os maus são
sempre maus. A vida continua, boa e má, aqui e alhures. É
o destino da pessoa humana, que em Rodelas não podia ser
diferente.
Retomemos o curso da história. Com a saída do
frade, os desmandos retornaram e, persistentemente
continuaram. Os índios eram, como sempre, espoliados em
suas terras de ilha, únicas que lhes restaram. O governo de
Pernambuco, por via da municipalidade local arrendou a
mor parte a terceiros, deixando-lhes área insuficiente.
Vivendo numa faixa de necessidade que os missionários já
classificavam de miséria e assim continuou por longo
tempo - esta pobre crônica tem mostrado que a ação de
grilagem em chãos brasileiros se iniciou com a colonização
conquistadora -, aos poucos vendiam o que ainda possuíam,
em regra a troco de doses de cachaça e nacos de fumo,
algum dinheiro necessário ao pão da sobrevivência, até o
último pedaço. Os compradores não investigavam da
legalidade da compra, da capacidade do índio para vender.
Queriam terras e queriam mais terras, em uma região em
que havia pouco espaço aproveitável para a lavoura, quase
só praticada na vazante do rio, especialmente nas ilhas.
Fossem as terras dos índios, fossem de Deus, do diabo, não
importava, os descendentes do colonizador queriam-nas
para si. Quem as possuísse e por necessidade quisesse
vender, tinha pencas de comprador. Na verdade, em
Rodelas tudo era pequeno e pequeno continuou sendo,
índio, branco, mameluco, cafuzo, mesmo os curraleiros
arrendatários dos Ávilas na sua maioria. A essa altura, era a
segunda metade do século XIX, os tabuleiros à margem do
rio estavam esgotados de pastagem e os pecuaristas
ganhavam as margens dos riachos secos, caatinga à dentro,
em busca de algum minadouro ou de local prestável à
construção do tanque, da pequena aguada. E eram poucos
os da pecuária. Agora, a grande maioria era de gente sem
ocupação, tentando um pedaço de terra na beira-rio ou na
ilha para plantar batata. Seria pior a partir do fim do século,
com a abolição da escravatura. Os negros, sem senhor e
sem pirão, mendigavam e destes, tinham sorte os que se
aproximavam do índio, casavam-se na aldeia, índio-
ficavam a família.
Atormentados pela fome e torturados pelo abuso de
toda espécie, os remanescentes indígenas e seus filhos
cruzados no sangue africano continuaram a caminhada do
protesto e da reclamação junto à autoridade governamental.
No final do século o Antônio Conselheiro baixava em
Rodelas. Tinha barba como os capuchinhos, como estes
usava um longo batão, só diferente na cor, o que não os
dessemelhava. Rezava como os padres, fazia penitência e
pregava a penitência. Construiu um cemitério na aldeia, e já
não era sem tempo, porque no único até então existente, ao
lado da igreja, enterravam-se ossos sobre ossos - brancos,
índios e pretos, mamelucos e cafuzos, e já o rio havia uma
vez invadido o campo santo, levando muitos restos
humanos. O Conselheiro acertou em cheio com a
necessidade local. O cemitério por ele construído passou a
servir ao sepultamento dos mortos de toda a população,
indistintamente, e só em 1956 Rodelas teria um outro
cemitério, construído ainda na administração de Glória,
pelo prefeito Amâncio Pereira, ampliado em 1964 pelo
prefeito Manuel Moura.
Ao tomar o rumo dos sertões de Chorrochó e
Canudos, o Conselheiro esvaziou a aldeia. Os índios eram
seus adeptos e muitos o seguiram. Uns retornaram, outros
foram sepultados no Alto do Bom Jesus.
Em 1944, foi reorganizada a aldeia, com a
denominação de tribo Tuxá, sob a proteção da FUNAI. Já
não se falava em capuchinho, em religião e igreja. Era
apenas manter um resto de caboclos, descendentes dos
índios salvos do extermínio impiedoso praticado pelos
curraleiros, entre os quais prevaleceu, nos primeiros
tempos, sem nenhuma dúvida a violência de todo gênero.

NOTAS:
1 - Felisbello Freire, História Territorial do Brasil, vol. 1, pag. 98/99.
2 - Pedro Calmon, História da Casa da Torre, pag. 139
3 - Felisbello Freire, História Territorial do Brasil vol. 1, páginas 230.
4 - Felisbello Freire, História Territorial do Brasil vol. 1, páginas 230.
5 - Pietro Vittorino Regni, Os Capuchinhos na bahia, vol 2. pag 95.
XVII - FIM DAS SESMARIAS
O varejo da gleba

A venda das terras anotadas em escritura pública da


Casa da Torre como Sertão de Curaçá (anterior Pambu) e
Sertão de Geremoabo, se fez por via de um atravessador,
chamado capitão Antônio Simões de Paiva, de Mata de São
João, que montou como procurador na região a um
Sebastião José Lopes e este saiu de relação na mão,
procurando os rendeiros. Quando o rendeiro não dispunha
de recursos para a compra, se desinteressava ou já não
existia e os seus herdeiros, igualmente por falta de meios
financeiros ou desinteresse, a ela renunciavam, o chão ia
para novas mãos. Mais para a frente, esse capitão Paiva
assinava, pessoalmente e em nome de sua mulher, de quem
tinha procuração, escrituras de venda de imóveis no
Tabelionato de Capim Grosso. Morrera o procurador
Sebastião ou lhe fora retirada a procuração. Muita terra era
seca e improdutiva e para essa não houve comprador. As
sobras, seriam passadas a Nicolau Tolentino da Conceição,
que, sem dúvida, não as utilizaria nem venderia no total.
Esse negócio, se deu em duas etapas. Já em 1839
eram vendidas as fazendas de Campo Maior, no Piauí. Em
1842 um cidadão de nome Antônio Joaquim da Costa, com
o título de comandante superior de Sento Sé, investido de
procuração do visconde da Torre, vendia as terras do
sertão, numa área que se compreendia entre os termos de
Curaçá e Geremoabo, incluindo Rodelas e Glória. Foram
compradores os rendeiros. Alguns destes pagaram o valor
em dinheiro, outros assumiram compromissos de
pagamento, assinando um papel que se denominava "fico".
Verificar-se-ia, mais tarde, que o procurador não tinha
poderes para a transferência da propriedade imobiliária, por
lhe faltar a autorização da viscondessa, e a partir daí, as
vendas se fizeram nulas. Nulo o negócio, em uma primeira
fase, a viscondessa da Torre, a partir de 1855, já então
viúva, convalidava, por via de seu procurador, capitão
Jerônimo Pires de Carvalho, parte das vendas de 1842,
certamente as que foram quitadas. Falecida a viúva, em
1857 o inventariante dos visconde e viscondessa da Torre
transferia as terras ainda não negociadas, ao capitão
Antônio Simões de Paiva, que, residindo em Mata de São
João, assinou a escritura em Salvador pelo seu procurador
Sebastião José Lopes. A escritura faz remissão ao ato
anterior, de 1842, e declara que os rendeiros cuja compra
da propriedade teve-se por nula, foram convidados a
regularizar a situação e não atenderam ao convite. Ficava, é
também do texto da escritura, o comprador Antônio Simões
de Paiva obrigado a restituir os "ficos" dos sinatários da
operação de compra e venda nula, bem assim, o valor da
parcela em dinheiro que alguns destes pagaram, o qual foi
compensado no preço ajustado. Ainda da escritura consta a
relação de todos os rendeiros que haviam participado da
primeira operação, que se tivera por nula. E o procurador
Sebastião José Lopes saiu pelo sertão procurando esses
rendeiros para refazer o negócio. Entre as escrituras não
confirmadas, por falta de pagamento do fico, estava a da
fazenda Rodelas. Salvo o caso da confirmação, que parece
ter-se limitado aos que em 1842 haviam pago o preço
ajustado integralmente, ou o fizeram mais tarde à
Viscondessa por via de seu procurador Jerônimo Pires de
Carvalho, o valor, 15 anos depois, era bem maior. A
operação de revenda aos rendeiros durou anos. Por
exemplo a fazenda Rodelas, que incluía as terras onde era
situada a aldeia, seria operada em 1864. É possível que
constassem rendeiros novos, herdeiros de quantos,
incluídos na relação, haviam dormido e até transferido o
título de arrendamento. Os três primeiros signatários da
escritura realizada em 1842, não participaram do segundo
negócio, apesar de ainda viverem na oportunidade. Eram o
capitão Lucas Fernandes de Rezende, sua filha Bernardina
Ramos de Assunção e Inácio Gonçalves da Fonseca. Não se
tem notícia da razão da desistência. É certo que as famílias
Rezende e Fonseca estavam interligadas por laços
matrimoniais. Bernardina era casada com Lucas Fernandes
da Fonseca, irmão de Domingos da Fonseca e Azevedo,
tendo o casal um filho, de nome Lucas Evangelista da
Fonseca, casado com uma filha de Domingos, Josefa Maria
de Sá. Inácio Gonçalves vem a aparecer como comprador
da fazenda Sorobabel, conjuntamente com outros. Por sinal,
o nome de Inácio está na relação constante do traslado de
1857, como participante, em 1842, do negócio nulo da
fazenda Rodelas e, como cabeça da compra da fazenda
Sorobabel, na relação firmada por Nicolau Tolentino.
A nova compra da fazenda Rodelas foi encabeçada
por Domingos da Fonseca e Azevedo, tendo o capitão
Lucas Fernandes de Rezende funcionado como testemunha,
e dela participou Lucas Fernandes da Fonseca. Sendo um
documento de real significado para a história regional,
apresentamos, a seguir, a relação, constante da escritura de
1857, dos rendeiros cujo ato de compra, de 1842, foi tido
por nulo, e uma outra relação, esta, indicando as áreas
arrendadas, das quais as eventualmente não vendidas aos
rendeiros, seus herdeiros ou outros interessados e as sobras,
vendiam-se a Nicolau Tolentino da Conceição, signatário
da relação, conjuntamente com o procurador Sebastião José
Lopes. A venda de 1857, foi realizada pelo inventariante da
Casa da Torre, Baltazar de Aragão Bulcão.
Lista dos rendeiros que, no traslado de 1857 figuram
como compradores em 1842, dos terrenos, cujo negócio se
fez nulo: "Cândido da Silva Gericó; Gonçalo de Souza;
Manoel Francisco Gomes Rego; Lucas Fernandes de
Rezende,(2) Domingos Nunes; Francisco Lucas Maciel;
Francisco Dias Pereira; Maria da Natividade; Maria
Claudiana e Angélica Maria; Antônio Luiz da Conceição;
Izidório Alz. da Conceição; José Cavalcante de
Albuquerque; Francisco Dias Lopes; José Alz. Brandão;
Manoel de Jesus do Bonfim; Manoel Julião Pereira;
Cipriano Felix dos Reis; Bernardino Ferreira Nunes;
Antônio Dias Guerra; Francisco José da Graça Leite; José
Rodrigues da Cruz; Plácido Álvares; Faustino Pereira de
Jesus e Maria José; Ana Francisca de Andrade; Manoel
Francisco Maciel; Manoel Gomes das Virgens; Francisco
Miguel; Isabel Maria; Isabel Pereira; Eufrase Soares de
Melo; Manoel Lourenço de Araújo; Manoel Rodrigues
Rocha; Hilário Pereira de Souza; Inácio Gonçalves da
Fonseca; José de Afonseca(1) e Manoel Calixto; D. Rosa
Maria Clemente David; Gonçalo Rodrigues da Costa; Luiz
José de Santana; Francisco João Dias; Themóteo
Rodrigues; Manoel da Cruz Soares; João Paulo da Silva;
Anacleto Pereira Jatubarana; Clara Maria; Inácio de Souza;
Albino Teixeira e Themóteo; Pedro Pereira Leal; Rofina
Maria; João Gonçalves Teixeira; D. Ana Michela de
Barros; Manoel Teixeira de Assunção; Antônio Gomes da
Silva Tamarindo; Alexandre Dias Pereira; Manoel Joaquim
Monteiro Botocudo; Francisco Antônio de Cerqueira; João
Gomes da Cruz; Lucas Fernandes Rezende,(2) Luiz
Pereira; José Manoel da Moita; Felipe Cardoso; Bernardino
Alves de Sena; Antônio dos Santos Barbosa; José Alves de
Sales; Izidório Nunes da Paixão".(3)
Na face do papel que serve de capa ao traslado de
escritura, encontra-se a relação, não oficial evidentemente,
dos seguintes rendeiros não constantes no corpo do
documento:
"Compradores de terras de Rodelas -
Domingos de Afonseca e Azevedo, Manoel Ciriaco
de Afonseca, Zacarias Gomes de Sá, Manoel Soares de
Afonseca, Simplício Gomes de Sá, Lucas Fernandes da
Fonseca, Aleixo Gonçalves de Afonseca, Miguel Gomes de
Afonseca, Francisco Rodrigues Lima, Antônio Rodrigues
Lima e Manoel Gomes de Afonseca". Eram os que viriam a
assinar a nova escritura de venda e compra em 1864.
Em uma carta datada de 20 de setembro de 1865,
dirigida pelo capitão Antônio Simões Paiva a seu
procurador Sebastião José Lopes, aquele afirma que tem
por parte contratada, vender ao alferes Nicolau Tolentino
da Conceição, pela quantia de 2:200$000, todas as terras
que faltaram vender, das compradas em 6 de abril de 1857
aos herdeiros da Casa da Torre. Autoriza a escritura da
venda, exigindo uma relação do referido Nicolau Tolentino.
Em carta de 19 de junho de 1867, a esposa do capitão
Antônio Simões Paiva ao procurador, confirma a venda
feita pelo marido ao sobredito Nicolau. A relação a seguir
está grampeada a essa correspondência e é assinada pelo
procurador Sebastião José Lopes e por Nicolau Tolentino
da Conceição:
Nome das pessoas e nome dos terrenos:
1 - Anacleto Pereira Martins - Uma porção de terreno
na Jatubarana. 2 - Izabel Pereira - Uma porção de terreno
na Jatubarana. 3 - Alexandre Dias Pereira - Uma porção de
terreno na Jatubarana. 4 - Ana Francisca da Trindade -
Fazenda Pau Preto. 5 - Albino Teixeira e outros - Uma
porção de terreno na Jatubarana. 6 - Albino Teixeira da
Conceição e Temóteo de Jesus - Uma porção de terreno na
Jatubarana e Mandacaru. 7 - Antônio Lins da Conceição -
Metade da Fazenda Alagoa. 8 - Antônio Gomes S.
Tamarindo - Uma porção de terreno na fazenda Ibozinho
ou Alagoa Vermelha, Cacimba e Areia. 9 - Angélica Maria
e Maria Claudina de Santa Ana - Metade da Fazenda
Salgado. 10 - Bernardino Pereira Nunes e outros - Fazenda
Boqueirão. 11 - Manoel David Barbosa - Uma porção de
terreno no Pambu. 12 - Cassiano Felipe dos Reis e outros -
Metade das terras de S. José. 13 - Domingos Nunes - Uma
porção de terreno na Jatobarana. 14 - Francisco Lucas
Maciel - A parte que tinha na Fazenda Pé da Serra, na qual
é meeiro com as herdeiras do finado Bernardino Gomes
Rego; assim mais para si e como procurador de seu mano
David Alves Maciel; a Fazenda 3 Irmãs, uma porção na
Jatubarana, pertencente a seu pai Manoel Francisco Maciel,
no lugar aonde tem suas propriedades; outra porção no
lugar St. Antônio; outra porção na Serra Queimada; e outra
posse no lugar Várzea da Ema, hoje perdidas. 15 -
Francisco Lucas Maciel p/ si e como procurador de Albino
Teixeira, Eusébio Francisco Maciel, Cipriano Francisco
Maciel, Martinho Bispo de Braga, Francisco Alves da
Conceição, p/ si p/ seus filhos Manoel, Maria Reis,
Sabarim, além da compra de Manoel Francisco Maciel - A
Fazenda Macururé. 16 - Faustino Pereira de Jesus .... -
Fazenda Pambu. 17 - Francisco João Dias - As terras da
Fazenda Poço Verde. 18 - Francisco Miguel - Uma porção
de terreno denominado Saquinho. 19 - Felipe Cardoso e
Assunção e Jacinta Maria da Luz - Metade das terras da
Faz. Serra Preta. 20 - Gonçalo Rodrigues da Costa - Sítio
do Lucas - chamado. 21 - Inácio de Souza Ferreira -
Fazenda Aracapá. 22 - Hilário Pereira de Souza e ten.
Manoel Rodrigues Barbosa e herdeiras da finada Izabel
Maria - Uma porção de terra à margem do Tarrachil ou
Poço Doce, chamado, outra no Riacho dos Bois e outra na
Barra. 23 - Inácio Gonçalves de Afonseca(4) p/ si e como
procurador de Antônio Gonçalves, Bernardino José,
Themóteo Gonçalves, Joaquim Gonçalves Torres, Antônio
Rodrigues de Carvalho, Gabriel Gomes de Sá e Inácio
Gonçalves Torres - Fazenda Sorobabel. 24 - José Alves de
Sales - Metade da Faz. Lagoa do Mandacaru. 25 - João
Gonçalves Teixeira - Uma porção de terra no Ibó. 26 - José
de Afonseca(1) e Manoel Calixto - As terras da Fazenda
Serra Preta. 27 - Luiz José de Santana e outros - Uma
porção de terreno na Barra do Tarrachil. 28 - Manoel
Gomes das Virgens - A terça parte e metade das terras da
Fazenda Mandacaru. 29 - Manoel Joaquim Monteiro
Botocudo - As terras da Fazenda Travessa das Pedras, no
Riacho da Tapagem, hoje apelidado Botocudo. 30 - Manoel
Julião Pereira - As terras denominadas Cabeça da Vaca. 31 -
Manoel Ferreira da Encarnação - Uma porção de terreno no
Ibozinho ou d'Areia. 32 - Maria da Natividade - As terras
da Fazenda S. José. 33 - Cândido de Souza Jericó, as
herdeiras do finado José Lins de Carvalho, Alexandre
Fernandes da Silva, Josefa Maria das Virgens, Francisco
José da Silva, Manoel Alves Lins de Carvalho e Narcisa
Maria de Jesus - Uma porção de terreno no Bom Jesus e
parte da Fazenda Ibó. 34 - Plácido Alves da Silva - Terreno
Alagoa do Tijuco chamado. NB - O terreno d'Alagoa de
Tijuca ocupado por Plácido Alves da Silva, que se acha
para vender, principia do bebedor que fica acima do
cercado do mesmo plácido, da Engazeira chamado ali a
vereda da Perdição em uma grande baraúna que fica acima
e próxima da referida vereda. 35 - D. Ana Michaela de
Barros - Parte do terreno Ibó. 36 - Gonçalo da Souza e os
herdeiros de Manoel de Souza - Uma porção de terreno no
Ibozinho, que foi reunida a compra que fizera o capitão
Jerônimo Pires de Carvalho.
Vide:
O direito de haver dos herdeiros do Exmo. Sr.
Visconde e da viscondessa Aragão, como Procurador
daqueles, recebo do capitão Lucas Fernandes de Rezende,
uma ordem de pagamento assinado por aquele Capitão
Lucas, proveniente das compras que este e outros fizeram.
(as) - Sebastião José Lopes - Nicolau Tolentino da
Conceição.(5)

NOTAS:
1 - Este José de Afonseca, é José Soares da Fonseca, filho de
Domingos da Fonseca e Azevedo (primeiro do primeiro casal) - conhecido
por Casuza, que se localizou na região de Chorrochó e é o ascendente dos
Pacheco de Menezes. Está nas duas relações
2 - Lucas Fernandes Rezende tem o nome repetido na relação de 1857.
Seguramente corresponde ao primeiro negócio da fazenda Rodelas, de cuja
compra desistiria e talvez de outra, possivelmente Sorobabel, de que também
desistiu no negócio de 1864. É possível que, então, fosse um homem de
idade avançada, que deixava os negócios aos descendentes. Talvez Inácio
Gonçalves da Fonseca, que na segunda relação encabeça a compra da
fazenda Sorobabel, viesse a ser seu neto, filho de Lucas Fernandes da
Fonseca e Bernardina Ramos de Assunção.
3 - Traslado de escritura em original nos arquivos do autor
4 - Inácio Gonçalves da Fonseca, aqui relacionado para a compra da
fazenda Sorobabel, conjuntamente com outros, também está na relação
correspondente à compra de 1857. Certamente os dois documentos
relacionam-se com o mesmo negócio.
5 - Documento original nos arquivos do autor.

NOTA À EDIÇÃO ELETRÔNICA:


"1 - Este José de Afonseca, é José Soares da Fonseca, filho de
Domingos da Fonseca e Azevedo (primeiro do primeiro casal) - conhecido
por Casuza, que se localizou na região de Chorrochó e é o ascendente dos
Pacheco de Menezes. Está nas duas relações".

Na nota acima pode haver um equivoco. Só depois de publicado o


livro, vim a ter a notícia de que a fazenda Rapador, antes de ser de
Domingos da Fonseca, fora de um José Fonseca. É informação de família
passada por Heron Freire Lima, bisneto de Domingos. Outras informações
de família confirmam a existência de José Fonseca. É possível, então, que o
José de Afonseca anotado como comprador da fazenda Rodelas de 1842 tida
por nula, fosse realmente esse José Fonseca, dono anterior da fazenda
Rapador, que a passaria a Domingos da Fonseca. Em 1864 já não estaria
vivo e a propriedade estava com Domingos da Fonseca. Compra ou herança?
XVIII - A FAZENDA RODELAS
A família Fonseca

A fazenda conhecida pelo nome Rodelas e


denominada na escritura de venda e compra - Rodelas de
Cima, com uma légua de testada no São Francisco e três
para o centro, situava-se numa faixa que cobre a atual
cidade de Rodelas e a aldeia dos Tuxá, uma ao lado da
outra, e, salvo engano, vem a corresponder à légua de terra
demarcada pelos jesuítas em 1696 para a aldeia de Rodelas.
Isto faz entender que aquela demarcação não teve efeito. A
terra dos índios demarcava-se em frente à ilha de Jatinã,
partindo daí em procura da aldeia e além dessa até uma
légua do ponto inicial, que, segundo a tradição, dava no
local denominado Cruz, onde havia um velho cruzeiro
encimando um monte de pedras, talvez o mesmo que fora
plantado na demarcação dos jesuítas. A fazenda fazia
divisa, em cima, com a fazenda Araticum em uma lagoa
cujo nome é ilegível no documento original, localizada,
segundo a tradição, logo abaixo do Jacó, que ficava
confronte mais ou menos ao centro da ilha de Jatinã, e
próxima da Praia, esta à margem esquerda da foz do riacho
Rodelas, onde era a sede da propriedade. Embaixo dividia-
se com terrenos dos herdeiros da Casa da Torre ocupados
pelos herdeiros de Francisco Xavier e José Gomes da Silva,
ainda conforme a tradição, na mesma Cruz. Foi vendida em
1864 por Antônio Simões de Paiva e sua mulher Francisca
Ricarda de Carvalho, os quais haviam adquirido as terras
do sertão do Pambu à Casa da Torre, em 1857. Foram
compradores, conjuntamente, Domingos da Fonseca e
Azevedo, Manoel Ciriaco da Fonseca, Zacarias Gomes de
Sá, José Soares da Fonseca, Simplício Gomes de Sá, Lucas
Fernandes da Fonseca, Aleixo Gonçalves da Fonseca,
Miguel Gomes da Fonseca, Francisco Rodrigues Lima,
Antônio Rodrigues Lima, Manoel Gomes da Fonseca,
Cipriano Francisco da Fonseca e Francisco Tolentino da
Fonseca. Destinava-se, especialmente, a dar cobertura legal
às terras ocupadas pelos compradores como rendeiros,
desde o rio até às caatingas três léguas para o centro. Era
uma família só - os Fonseca, pai, filhos, genros e parentes
próximos que tinham propriedades alocadas na área ou
outras razões para associar-se na empresa.
Por exemplo, Manoel Ciriaco da Fonseca e Lucas
Fernandes da Fonseca, consta que eram irmãos de
Domingos da Fonseca, José Soares da Fonseca, Miguel
Gomes da Fonseca e Manoel Gomes da Fonseca, eram seus
filhos, Francisco Rodrigues Lima, Antônio Rodrigues Lima
e Aleixo Gonçalves da Fonseca eram genros, Francisco
Tolentino da Fonseca era filho de Manoel Ciriaco. Faltam
documentos que confirmem as ligações familiares de
Cipriano Francisco da Fonseca, Zacarias Gomes de Sá e
Simplício Gomes de Sá. Cipriano Francisco da Fonseca,
indica-o o nome de família, seria filho de Francisco João da
Fonseca e assim, neto de Domingos da Fonseca. Zacarias e
Simplício Gomes de Sá, seriam possivelmente ligados à
família de sua segunda esposa, da qual, os filhos receberam
- o Gomes, ou até das duas primeiras mulheres, que
poderiam ser irmãs, uma vez que todas as filhas dos dois
casais recebem o nome de Sá. Ou seriam simplesmente
rendeiros de terras na fazenda, em algum lugar que não se
sabe, dessa área de uma légua por três? Entre si, Cipriano e
Simplício poderiam ser irmãos ou pai e filho. Fique a
observação de que em alguns papéis, grafa-se o nome de
fazenda Rodela em outros, fazenda do Rodela ou fazenda
de Rodela.
Já não existiam as fazendas dois séculos antes
ocupadas por milhares de cabeças de gado. Eram, então,
dos Ávilas, o chão e as sedes de fazenda arrendados a
diversos curraleiros, estes, por sinal, os verdadeiros
colonizadores e povoadores. Fora-se, há muito, a guerra
fria entre conquistador e missionário, os locais mal
recordavam a matança de índios. As terras prestáveis à
agricultura ou ao pastoreio até então arrendadas, foram
sendo vendidas a partir de 1857. As da fazenda Rodelas,
compradas, como foram, por um grupo de pessoas, a cada
uma dessas competia uma "posse" e com essa definição
seriam efetuadas as transmissões a partir de então, quer na
venda e compra, quer na sucessão hereditária. Muito
catingão da antiga sesmaria, por sinal nunca ocupado, ficou
sem dono, pasto comum às reses de todos os criadores
próximos, por falta de comprador. Sem dono ficariam,
aliás, quase todas as terras da região, salvo a área ocupada,
pela quebra da cadeia sucessória, porque herdeiros de
miúdas posses de uma propriedade comum se
desinteressavam delas e, enquanto uns não as incluíam nos
inventários, considerado o seu desvalor, outros já não
tinham o que inventariar além da posse, que não passava de
uma ficção, de tão diluída que estava.
Feita a compra em comum, cada um continuou
ocupando o seu espaço. Domingos da Fonseca situava-se
na fazenda Rapador, onde exercia a pecuária, à cerca de
uma légua e meia do rio pelo caminho tortuoso, talvez não
mais que uma légua em linha reta. Não consta que tivesse
propriedade à margem do rio na fazenda Rodelas, era um
legítimo catingueiro, dono de muito boi, cavalo e bode e
possuía duas fazendas de pecuária nas caatingas - esta, do
Rapador e a de Itaparica, a qual estava em terras da fazenda
Araticum, de cuja compra também participou, tendo, aí,
além da fazenda de centro, meia légua de terras à margem
do rio, por três de fundo, conforme consta de seu
inventário.
O ato foi assentado pelo Tabelião de Paz João Pereira
da Silva Leal, tendo como testemunhas Leopoldo Dias da
Fonseca e o capitão Lucas Fernandes de Rezende. Não
assinam a escritura Manoel Gomes da Fonseca e Cipriano
Francisco da Fonseca, assinando-a, por outro lado, sem que
fosse indicado como procurador nem como testemunha,
Zeferino Franca da Fonseca, possivelmente a rogo
daqueles. A escritura foi lavrada no lugar denominado
Varze Grande, Distrito de Tapera da Boa Esperança,
freguesia de Glória, Termo de São João Batista de
Geremoabo, Comarca de Monte Santo. A sede da
propriedade, localizada na Praia, do lado de cima do riacho
de Rodelas, pertencia, então, à jurisdição do Termo da Vila
de Capim Grosso. Mas, quase toda a sua área, posta abaixo
do riacho, situava-se na jurisdição do termo de Geremoabo.
O tabelião foi vindo à Varze Grande, para o ato. Essa é a
mesma fazenda Rodelas de Cima comprada em 1842, vinte
e dois anos passados, por Lucas Fernandes de Rezende,
Bernardina Ramos de Assunção, Inácio Gonçalves da
Fonseca e outros, cuja operação se fez nula por falta da
uxória e do pagamento do fico. Como já se disse, nenhum
desses três esteve na compra de 1864. Tantos anos
passados, poderiam ter negociado ou por algum modo
cedido a outrem o título de arrendamento. Inácio Gonçalves
da Fonseca compraria, com outros, a fazenda Sorobabel
(Sorobabé era o nome antigo), onde também morava Lucas
Fernandes de Rezende, que não participou da compra. Não
há notícia da razão pela qual não se efetivara o pagamento
do fico. É possível que a falta da assinatura da mulher do
vendedor na procuração e a informação de que a transação
era nula, tenham sido a causa. Os compradores, ao que se
sabe hoje, eram pessoas do mais alto conceito na localidade
e de posses.
XIX - A ALDEIA E O POVOADO NA DÉCADA DE 30
Lavradores de vazante

Missão de Rodelas ou Missão de Rodela, foi o


primeiro nome do povoado, nascido ao lado da aldeia,
como fartamente indicam os registros dos missionários.
Entre os bens arrolados em 1881, no inventário de
Domingos da Fonseca, consta "uma casa no lugar
denominado Missão de Rodela". Plural menos ou mais,
artigo masculino ou preposição, tudo isso é hoje coisa que
só interessa à curiosidade intelectual. Digamos que o
povoado se firmou com o nome de Missão de Rodelas, até
porque essa foi a grafia utilizada nos documentos dos
primeiros tempos e registrada na história.
Até 1931, Rodelas eram, praticamente, o grupo
indígena e pessoas outras que viviam em função das ilhas e
dos terrenos de vazante da beira rio, alguns lavrando terra
própria, outros na condição de meeiros ou trabalhadores
diaristas da lavoura, gente pobre, em geral os descendentes
de escravos, agregados e vaqueiros. Aí moravam também
os homens de comércio, que podiam ser ao mesmo tempo
fazendeiros e proprietários de terra, utilizando-se, para o
trabalho da lavoura, de meeiros ou de diaristas, também
chamados de trabalhadores de aluguel. Compravam pele de
bode, peles silvestres e algodão, que renegociavam em
Juazeiro. Vendiam tecidos, bebidas, sal, fumo,
instrumentos agrícolas, como machado, enxada, facão e
outros produtos e miudezas não produzidos na localidade.
As lojas tinham variado sortimento, que ia do tecido à
rapadura e o mercado de fumo. Havia uma feira semanal,
no Domingo, que reunia as gentes da redondeza, abrigando-
se os feirantes em barracas montadas e desmontadas toda
semana. Somente na segunda década do século XX se
construiria um barracão para a feira.
Moravam aí, também os barqueiros. Era o tempo do
transporte fluvial, através de barcaças, que navegavam até
Juazeiro e até Jatobá e do transporte cargueiro - tropas de
muares. Em Jatobá e Juazeiro estavam os terminais de
estrada de ferro que partiam de Piranhas e de Salvador.
Piranhas é um porto fluvial que se entronca com o porto
marítimo de Propriá, este, interligado aos portos de
Aracaju, Maceió e Recife, que, a esse tempo, se faziam
ligar a Jatobá por aquele pequeno trecho ferroviário. As
barcas levavam os produtos locais, traziam os de fora.
Vinham de Jatobá especialmente o sal do mar - sal grosso,
ensacado - e filtros de arenito, artefato de produção daquela
povoação altamente requisitado na região beradeira do São
Francisco - alguns outros produtos procedentes do
comércio do litoral norte. Vinham de Juazeiro os tecidos, a
bebida, instrumentos agrícolas, outros produtos, em parte
adquiridos aí, em parte comprados na praça de Salvador por
via dos caixeiros-viajantes, que representavam o comércio
grossista. Não se importavam farinha, arroz e outros
cereais, nem açúcar, salvo em escassa quantidade. A
produção local de farinha e cereais sustentava o consumo.
Como substituto menos custoso do açúcar, usava-se a
rapadura, de produção local ou descida do Rio Grande via
Juazeiro, ou do Cariri, pelo transporte de carga. Da região
chamada de Freguesia - Antas, Cícero Dantas, em
transporte cargueiro vinha o fumo em rolo. Os barqueiros
não se limitavam à prestação do serviço de transporte de
mercadorias. Antes, ao lado do fretamento de mercadorias,
exerciam o comércio de porto em porto. Vendiam e
compravam tudo que fosse objeto de comércio na região.
Saiam de Jatobá carregados de sal e pedras de filtro e
paravam de porto em porto, vendendo-os. Voltavam
carregados de rapadura e quanto produto fosse requisitado
no rio de baixo, igualmente vendendo o produto de porto
em porto. Eram os chamados regatões ou negociantes da
carreira do rio.
Barqueiros de que se tem memória em Rodelas:
Saturnino José de Almeida, que pessoalmente
acompanhava a sua barca. Faleceu moço e mais adiante o
seu filho Lucas José de Almeida foi barqueiro, por pouco
tempo. O major João Alventino Lima possuiu uma
embarcação na carreira do rio, mantendo esse negócio por
via de um administrador. Ao falecer, ficou à frente de seus
negócios, o Sr Frontino, irmão da viúva. Anos depois, José
Alventino Lima, que era criança quando faleceu o pai,
assumiu todas as suas antigas atividades, inclusive a da
navegação, que dirigiu pessoalmente. José Lima demoraria
pouco no ramo, deixando-o para realizar o curso de
medicina. João Francisco da Fonseca, primeiro marido de
Maria Merandolina da Fonseca - Sindinha, e João Miranda
da Fonseca, irmão desta, também foram barqueiros em seu
tempo. João Miranda veio a ser substituído na atividade por
Pedro Fernandes da Fonseca - Pedro Bastiana, que adquiriu
a embarcação. Outro que em seu tempo exerceu a atividade
de barqueiro, foi Manoel José da Fonseca, conhecido por
Manoel Cazusa.
Os fazendeiros - já não havia os grandes curraleiros,
sim, pequenos criadores -, numa fase de assinalada pobreza
da pecuária, a não ser que tivessem estabelecimento
comercial no povoado, moravam cada qual na sua fazenda,
embora alguns deles tivessem casa no povoado, que
utilizavam durante os dias das novenas de São João e quase
só. Na fazenda, cuidavam melhor de seus animais - bode,
boi e cavalo. Pelos anos de 1929/1930, o medo de Lampião
tangeu as gentes do campo para Rodelas, como foi no alto
nordeste baiano, as pessoas correndo para a cidade mais
próxima. Então, o povoado e a aldeia, tinham o aspecto de
povoação única, sem distinção, a não ser pelas casas
caiadas, de cá e as casas de taipa, de lá. Diga-se que não
eram ricas as casas caiadas, uma ou outra se destacava
como maior, apresentando um floral no frontispício. Havia
um único sobrado - o da família do major João Alventino
Lima, já então falecido, que fora, no seu tempo, talvez o
melhor patrimônio da localidade, senhor de engenho,
pecuarista, comerciante e proprietário de barca, portador do
título oficial e da espada da majoria. Os caboclos - não se
dava mais o nome de índio ao remanescente indígena - os
morenos e os brancos trabalhavam sua pequena lavoura em
igualdade de condições, viajando para as ilhas nas mesmas
canoas, uns dando carona aos outros, conforme fosse a
precisão do momento, sem queixas que se soubesse. As
queixas e rusgas só surgiriam após a instalação do Posto
Indígena, uns escorando os outros: os possuidores de terra
com medo que os índios, apoiados no governo tomassem os
seus pedaços de chão - não haviam propriedades grandes -,
os índios achando que as terras eram suas e lhes foram
tomadas, querendo-as agora de volta. Foi mais ou menos
assim nos primeiros anos do Posto Indígena dos Tuxá de
Rodelas.
Acontecia em Rodelas alguma coisa diferente dos
demais latifúndios. Proprietário único por mais de dois
séculos, foi a Casa da Torre, todos os mais eram rendeiros
seus, alguma coisa como agregado, devendo obediência. Os
índios, de quem as terras foram tomadas nos primeiros
tempos, situavam-se agora, apenas e muito mal, nas ilhas.
Com o retalhamento, pela venda a diversos, da sesmaria da
Casa da Torre, as pessoas que compraram parcelas do
latifúndio, eram os chamados rendeiros, uns, talvez
descendentes dos antigos arrendatários, outros, detentores,
por compra, das benfeitorias e direito de arrendamento,
outros mais, rendeiros recentes. Queriam o título de
propriedade apenas para garantir a área usada em
arrendamento. Como a cabeceira da fazenda era na margem
do rio, partindo daí para o centro, a regra foi comprar uma
extensão de terra delimitada na beirada, com demarcação
de umas tantas léguas de fundo, dimensão suficiente a
alcançar o espaço ocupado na caatinga. As ilhas, após
extinta a missão, passaram à propriedade do Estado de
Pernambuco, que as entregou a administração da Prefeitura
local. Esta, arrendava-as miudamente, em áreas medidas a
braças. Os remanescentes indígenas que ocupavam cinco
ou seis delas por delimitação do Governador Geral do
Brasil, João de Lencastro em 1669, em cumprimento a
determinação da Coroa, perderam-nas uma a uma, ficando
reduzidos à que se chamou ilha da Viúva. Além dessa,
algum caboclo isoladamente conservou algum pedaço em
outras ilhas, e, quanta área a Prefeitura considerasse não
ocupada ou desnecessária aos caboclos, ia arrendando a
outras pessoas. Isso, foi, seguramente, um avanço no
patrimônio da antiga aldeia. Mas, havemos de considerar
que a população de origem indígena estava muito reduzida
e a descendência de rendeiros, vaqueiros e escravos, tão
pobre quanto aquela, era bastante mais numerosa.
Por outro lado, o que lhes restou de posse, foi sendo
vendido pelos próprios caboclos. O comprador, com o
instrumento de compra do domínio útil em mão, ia à
Prefeitura da Jurisdição, Belém do São Francisco e
arrendava a área correspondente a essa posse. E, pedaço em
pedaço, com pouco os índios não tinham terra para a sua
lavoura. Não é dizer que vendessem as sobras, não,
venderam tudo. E agora, as duas partes se consideram
donas. Daí as queixas, que puseram as duas povoações
divergentes. O Serviço de Proteção ao Índio, com Posto
instalado em Rodelas, jamais deu a solução da terra
necessária ao trabalho do remanescente indígena que
tutelou e tinha por dever amparar, talvez porque cedo
entendesse as razões de tanta gente pobre em uma terra
igualmente pobre, tanto em economia, quanto em terrenos
agricultáveis. Eram, praticamente, as ilhas e as terras de
vazante da beira rio, estas ainda mais escassas que aquelas,
umas poucas dezenas de rezes. De modo que, os índios
ficaram sempre com a ilha da Viúva e só. Como benefício,
além de irrigar a ilha, a FUNAI criou uma escola na aldeia,
regida por uma professora leiga, diga-se. A primeira
regente possuía um título - sobrinha do Chefe do Posto. Seu
marido também teve um emprego na Casa. A que iria
substituí-la mais adiante, integrava a aldeia. Deve ter sido
uma boa mestra; fora aluna de destaque da Professora
Dulcina Cruz Lima. Fora a irrigação da ilha, a escola e
algum benefício pouco significativo, o Posto Indígena de
Rodelas teve uma realização: acirrou os ânimos entre o
descendente do índio e o descendente do vaqueiro ou
agregado. A médio prazo a situação se acomodou e o
relacionamento voltou a ser o anterior, uma povoação com
os mesmos problemas e dificuldades, a mesma pobreza, as
mesmas necessidades materiais, sem assistência médica
oficial, sem estradas, um padre na desobriga anual do São
João.
A partir de 1929, o povoado cresceu com a vinda da
gente do campo, como forma de proteger-se contra o
assalto dos bandidos. É verdade que o policiamento não era
lá essas coisas, mas, estava-se em um tempo em que muitas
pessoas dispunham do seu rifle, e assim, havia uma
população armada. Ao lado disso, como reforço à polícia,
os fazendeiros e comerciantes de melhor situação
econômica, punham homens contratados em arma.
Vejamos se consigo retratar a povoação dessa época.
Da igreja para cima, a aldeia; da igreja para baixo, o
povoado. Divisa, simbólica, poder-se-á dizer, era a igreja,
com um pequeno espaço livre entre os dois agrupamentos
populacionais. Olho para trás e vejo. Em primeiro plano a
igreja de São João Batista, provavelmente a mesma erigida
pelos missionários em tempos remotos, nos primeiros anos
da colonização, talvez pelos jesuítas. Se houve uma
primeira igreja, construída pelo missionário Francisco de
Domfront, é possível que não fosse mais que uma pequena
capela de taipa, assim se construía no sertão desses longes.
De taipa, encontrou o padre Martinho de Nantes a igreja do
Pambu - igreja dos portugueses, como disse, onde havia um
capelão português. Escreveu Nantes, que o capelão de
Pambu desobrigava até 100 léguas para cima e 30 léguas
para baixo, dos dois lados do rio. A mais ou menos 100
léguas acima de Pambu, ficava a Passagem de
Juazeiro/Petrolina, a 30 léguas abaixo, mais ou menos,
pode-se marcar Sorobabé/Pajeú, além de Rodelas. Tudo
isso era área de índio e parte disso já estava povoada de
vaqueiros. Garcia D'Ávila II, havia entrado em Rodelas em
1646, talvez antes, e fr. Francisco de Domfront chegava em
1671, mais cedo que fosse, em 1670, cinco, seis anos anos
de espaço entre os dois. A afirmativa do requerimento da
sesmaria dos índios Rodela, foi, em 1646, a de que "havia
povoado de gados" aqueles sertões. É provável que nesse
1671, em Rodelas, possivelmente na Praia, já estivesse
situado um curral. Talvez em Várzea Grande e Sorobabé,
Penedo e Tapera para baixo, para cima em Araticum e na
Barra do Tarrachil. Haviam portugueses certamente nesses
lugares ou em algum deles (portugueses e baianos
mamelucos, como eram os Ávilas) e havendo portugueses,
aí desobrigaria o capelão português do Pambu. A desobriga
concentrava as pessoas em um só lugar. Poderia ser na sede
da fazenda, localizada na Praia, um quilômetro acima da
aldeia indígena, poderia ser na aldeia. É mais provável que
fosse na aldeia; os índios Rodela revelaram-se amigos dos
portugueses muito cedo, não é impossível que se
relacionassem ainda em 1639, na guerra contra os
holandeses e o padre, mesmo não sendo missionário, mas
capelão somente, tinha interesse em mostrar Cristo aos
índios. Já existiria uma capela quando padre Domfront
chegou a Rodelas? Certamente não. As missas de desobriga
poderiam ser rezadas debaixo de uma latada, foi assim nos
primeiros tempos, a primeira missa do Brasil realizou-se
em campo aberto, altar improvisado. É possível que a
primeira capela se fizesse com a chegada do missionário,
que dispunha de tempo integral e sem prazo entre os índios.
Mas, essa capela não seria mais que uma pequena casa de
taipa, quiçá de palha.
Voltemos ao começo da década de trinta. Seriam
umas quarenta casas no povoado, outro tanto, um pouco
menos, na aldeia. A alfabetização era a do mestre-escola,
pago pelos pais do aluno. Logo, não seriam muitos os
alunos, era uma gente muito pobre. As crianças em idade
de escola, estavam também na idade de ajudar no trabalho.
Conta-se de mestre Lucas - Lucas Evangelista de Almeida,
como mestre-escola, que, entre outros, teve como aluno o
Dr. José Alventino Lima. Não alcancei sua escola. Devia
ser muito escasso o seu saber. Para trás dele, não há
memória. Vamos anotar que José Pedro de Almeida -
Cazuzinha, avô de Lucas, foi um homem de boas letras e
talvez ensinasse aos próprios filhos, que todos eles sabiam
ler, sendo os do primeiro casal - Lúcio e Saturnino -
razoavelmente letrados. Na fazenda, tínhamos por esse
tempo, o mestre Manoel Rufino, descido de Patamuté ou
Barro Vermelho, que agrupava os meninos das vizinhas
fazendas Nonô, Rapador, Barro Branco e Salinas, alguns do
Moreira. Com a mudança dos fazendeiros para Rodelas, ele
acompanhou os seus alunos, que aí, possivelmente
somaram-se com outros. Deve ter começado pelos fins de
1929, durando pouco, pois em 1930 viria a professora Alice
Cantarelli, não formada, mas bem preparada. Houve um
ano bonito, de escola moderna, com ensino de arte e poesia.
Alice vinha de Itacuruba, em Pernambuco, havia cursado a
escola normal, deixando-a antes de diplomar-se. Só ensinou
durante um ano. Foi, sem dúvida, a precursora. Em 1931
seria a vez da Polícia Baiana na educação do povoado,
representada na pessoa do mestre-escola - Cabo Otílio,
integrante do destacamento. Parece que em 1932 foi Vasco
Moura. Não me lembro de ter sido aluno de nenhum desses
dois. Em 1933 seria a professora Dulcina Cruz Lima, a
grande educadora de Rodelas, de quem terei oportunidade
de falar longamente. Recém-formada em Recife, veio como
professora pública de sua terra, nomeada pelo Governo do
Estado da Bahia. Tinha 20 anos de idade. Dedicaria toda a
vida à sua terra e a sua gente. Não se casou para ter
dedicação a filhos; só a Rodelas, à escola e aos alunos se
dedicava. Por longos anos, o único destaque de Rodelas, a
única boa referência, foi a escola de Dulcina, alguma coisa
como uma pequena universidade, de titular único,
atendendo com amor, sem distinção de índios, morenos e
brancos, matrícula rodando os sessenta alunos. Dulcina deu
vida nova a Rodelas, preparou os caminhos não só para a
educação, hoje bem desenvolvida, com duas escolas de
formação de professoras, mas para o desenvolvimento. É
matéria para outro capítulo.
A igreja de Rodelas não era mais que uma capela,
cujo frontispício, muito pobre, sem torre, sem florais, sem
beleza, subia dos laterais em ângulo agudo. Único
destaque, o São João Batista da Porta da Igreja, no seu
nicho. No altarzinho muito modesto, um outro São João
Batista.
Ao tempo do início de sua missão, fr. Apolônio Todi,
que esteve com os rodelas entre 1787 e 1791, encontrou-a
danificada por um raio e a recuperou, esse registro ficou em
capítulo anterior. Era uma edificação modesta e sem beleza,
mas sólida, construída a pedra e cal, grossas paredes para
resistir aos séculos. Na enchente as águas do rio batiam-lhe
quase no topo do cais, até que um dia levaram-no em parte.
Um alto cais sobre o qual vinha o muro do cemitério - em
seguida a este, a 10, 12 metros, a parede lateral da igreja,
cuja frente dava para as cabeceiras do rio. Ficava, assim, o
cemitério rente ao oitão da igreja, tomando todo o seu
comprido e indo uns metros além, para o lado de cima. Em
um nicho cortado na parede frontal estava o São João
Batista de Rodelas - dizia-se São João Batista da Porta da
Igreja, para distinguir do São João Batista do Altar, este,
uma imagem de madeira. O da Porta da Igreja, trabalhado
em um bloco maciço de pedra, cara larga, à feição do índio,
hoje posto no alto de um pequeno mastro à frente da igreja
da nova cidade, havia quem doutrinasse, era, na verdade,
São João Evangelista. Reza a tradição que foi aparecido na
cachoeira de Rodelas, pouco acima da aldeia, descoberto
pelos índios canoeiros. Avisados do aparecimento, os
padres foram vê-lo. Em seguida organizaram uma procissão
fluvial, muitas canoas, trazendo-o para a igreja, onde foi
posto no altar. Dia seguinte havia desaparecido. Voltara
para o seu lugar no rio. A procissão se repetiu e segunda
vez o santo retornou ao seu pedestal, na cachoeira, olhar
voltado para as nascentes. Alguém teve a idéia de colocá-lo
à frente da igreja. Para isso abriu-se um nicho na parede e
lá ficou o santo a cavalheiro das águas do seu rio, vendo-as
descer no sentido do mar. Essa história, não mais que uma
lenda, vinha contada de geração para geração e alcançou
meu tempo de menino, não sei se ainda vive. Registrei-a no
romance Cacimba Seca. Em que tempo o aparecimento,
não encontrei informação. Quanto ao cais da igreja sobre
este a parede do cemitério, cabe o registro de que aquele
que vinha dos primeiros tempos foi levado por uma
enchente grande, sendo reconstruído, ou pelo menos
recuperado, ao que se informa, por D. Idalina Lima, viúva
do major João Alventino Lima. Nessa oportunidade, o rio
levou, consta, porção de restos humanos. Afinal o cemitério
foi sepultado pela barragem de Itaparica, conjuntamente
com a igreja, a aldeia e a já então cidade de Rodelas. Nem
um marco se pôs neste lugar, para indicar o chão do
antepassado.
De volta à igreja, para continuar o retrato da terra.
Para o lado de baixo, o convento. Havia um convento ou
assim chamávamos, copiando o nome transmitido pela
tradição. Uma comprida e baixa casa de taipa construída
sobre alto alicerce que lhe servia de cais, a antiga morada
dos padres missionários. Quando o conheci, ai morava uma
família de índios. Por esse tempo, os frades haviam ido
mais de setenta anos antes.
Para cima, era a aldeia. Havia um espaço que pode
ser estimado em 30 metros, mais ou menos, entre a igreja e
a primeira casa, formando uma passagem para o rio, o qual,
mais adiante seria ocupado por três residências da gente
branca. Em frente à igreja, onde se dizia "do lado do mato",
havia uma meia dúzia de casas de taipa, ocupadas pelos
morenos. Para cima a aldeia. Pequenas casas de taipa,
baixas, unidas parede a parede, aliás, parede-meia, em duas
filas, uma do "lado do rio", outra do "lado do mato", salvo a
separação por becos que facilitavam a movimentação.
Ao fim da aldeia o cemitério que veio a substituir o
da igreja, construído seguramente pelo Antônio
Conselheiro, em uma de suas primeiras paradas na descida
de Pernambuco, antes de fixar-se em Canudos, via
Chorrochó. Esse Campo Santo, apesar de edificado em área
da aldeia, servia a toda a população de Rodelas. Realmente
nunca houve distinção na morte, sempre igual para todos. O
cemitério anterior, obra dos missionários, também servia a
toda a população. Quando se construiu um terceiro
cemitério, assim continuou sendo, como o é, hoje, com o
Campo Santo da Nova Rodelas.
Em frente ao cemitério, um cruzeiro erguido sobre
um mirante bastante elevado e espaçoso, ladeado de
balaustrada, onde as pessoas costumavam ir a passeio nas
tardes de fim de semana ou onde paravam no ensejo da
visita aos seus mortos. Era um ponto de lazer. Daí,
recostada ao parapeito, a gente mirava o rio e os campos,
via o sol deitar-se no ocaso, os jovens namoravam e
poetavam, sonhavam certamente.
Para cima do cemitério, vinha o cercado de mestre
Elias Moura - mestre Pedreiro, que, com a instalação da
Aldeia dos Tuxá, seria demolido, criando um largo espaço,
aos poucos ocupado por novas moradas de índios,
Essa aldeia que conheci na década de 30, era a
mesma dos primeiros tempos, certamente com alguma
alteração. As modificações se davam muito lentamente, ora
crescendo, ora diminuindo o fluxo populacional, em um
aglomerado humano que, na antiguidade, ia de 130 para
600 pessoas e retornava de 600 para 130, em razão de
perseguição, guerra e fuga, desentendimento entre currais e
missões, isso é histórico. A partir de 1929, ampliar-se-ia em
número de casas no correr dos anos até à inundação de
1988, sem perder nunca o aspecto. Sempre a mesma coisa,
casas enfileiradas uma ao lado da outra, duas alas, frente a
frente, já agora algumas de alvenaria, rebocadas e caiadas.
Para baixo da igreja, a partir de um pequeno beco de
separação com o convento, vinha a "povoação dos
brancos", os descendentes dos colonizadores. Eram
também casas coladas umas às outras, muitas de parede-
meia, com a diferença única, para as da aldeia, de serem de
alvenaria e caiadas, algumas de beira-bica trabalhada. Uma
ou outra com um floral na fachada.
Isso se modificaria totalmente a partir de 1935, 1936,
quando nos chegou um pedreiro de nome João Batista, um
mestre no polimento à colher - cimento queimado -. Depois
de reconstruída a primeira frente de casa, com parapeito e
reboco a cimento branco polido e salpicado de variada cor,
houve uma febre, todos queriam aquela beleza. E a velha
beira-bica de cornija e os raros floreios trabalhados
carinhosamente por mestre João Gualberto Freire, o artista
dos florais, ou pelo seu mestre ou o mestre deste e outros
na sucessão dos tempos, cederam lugar ao platibanda, e,
não raro, à fachada polida.
Benevides Gonçalves da Fonseca; Manoel Gomes da
Fonseca - Nonô; Lucas Gonçalves da Fonseca; Pedro
Fernandes da Fonseca - Pedro de Bastiana; Lucas
Fernandes da Fonseca, sucedido por sua viúva Bernardina
Ramos de Assunção; Vitória Angélica da Fonseca; major
João Alventino Lima, possuidor do único sobrado;
Saturnino José de Almeida, sucedido por sua viúva Firmina
Ramos de Sá; Lúcio José de Almeida, sucedido por sua
viúva Rosinha da Fonseca Lima; Domingos Rodrigues
Lima; João Gualberto Freire; Vítor Cazusa; capitão
Eustáquio Tolentino da Fonseca; Florentino Gomes da
Fonseca; possuíram casa residencial no povoado. Outros,
que não ficaram memorizados. Não seriam certamente os
primeiros, por exemplo Domingos da Fonseca, antes de
quase todos estes, teve aí uma residência, como se faz
declarado em seu inventário. Muitos desses moravam na
fazenda - quase todos -, e vinham ao povoado nos dias de
feira, nas datas festivas da igreja, especialmente no São
João. Em 1930, quase todos já não existiam. Novas gentes
eram proprietárias dessas casas, havidas pela herança ou
por compra. Muitas delas estavam divididas em duas, ora
em razão da crescente pobreza, ora em razão da escassez de
espaço para novas construções. Rodelas espremia-se para
os lados entre o rio e um depressão sujeita a alagamento em
oportunidade de enchente mais elevada, no comprido entre
a igreja e uma propriedade rural.
A rua era bastante larga, tinha, pode-se dizer, largura
de praça. Mais ou menos na parte central do povoado, posto
bem no meio da rua, existia um barracão, onde
funcionavam dois estabelecimentos comerciais - lojas, se
dizia, reservando-se uma área alpendrada em toda a
extensão do imóvel, correspondente a dois terços da
edificação, para a realização da feira semanal. Quando o
conheci, lojistas aí eram Domingos Almeida e Manoel dos
Santos. Em 1968, essa rua foi mesmo transformada em
praça - Praça Dr. José Lima -, recebendo um jardim central
em toda a sua extensão.
O agrupamento de morenos moradores em frente à
igreja, um agora, outro depois, cederia espaço aos brancos,
por venda de suas casas, indo construir novas residências
mais para o fundo - por detrás da Rua, se dizia -, mais ou
menos confronte às residências anteriores, chamando-se ao
novo agrupamento, inicialmente, de Rua dos Morenos ou
dos Raposos. Diversos morenos que antes de 1930 residiam
fora da povoação, em casas espalhadas no Alto do Sabará,
talvez como os fazendeiros, por medo a Lampião, foram-se
agrupando, aos poucos, nessa nova rua. A partir desse
agrupamento residencial, nasceria a rua D. Bosco, em
frente aos muros das residências dos primeiros tempos, em
toda a sua extensão. Os chamados morenos ou "raposos",
eram em regra descendentes de branco e negro. Os
descendentes de branco ou de negro com índios, quase
sempre integravam-se à aldeia e aí residiam.
XX - A TRIBO TUXÁ
A reorganização da aldeia

Já se disse que em 1862 o último missionário, frei


Luiz de Gúbio, capuchinho italiano, deixava a Missão de
Rodelas. A aldeia havia sido entregue ao padre da freguesia
de Glória nove anos antes, em 1853. Logo dois anos
depois, em 1855, denúncias de furto e dilapidação do
patrimônio da tribo, envolviam o administrador da aldeia, o
pároco de Glória e o Juiz Municipal de Geremoabo. A
gente índia de Rodelas era uma tribo de tradições e renome
e mereceu a atenção do governo. Em 1857 designava-se fr.
Luiz de Gúbio para reorganizá-la. Este, ao cabo de cinco
anos, dava por finda sua tarefa. Achava que já não havia
espaço para a permanência da missão, os índios, cerca de
130, contados adultos e crianças, estavam aculturados. A
Missão de Rodelas era a ultima que saía do centenário
projeto missionário do São Francisco, as outras já não
existiam, os caboclos haviam-se dispersado ou permanecia
algum resto deles em aglomerados sem qualquer
organização.
A partir daí, ia-se também a velha aldeia do herói
Francisco Rodela, sua gente entregue à própria sorte. O que
se salvara de índios, buscou, a partir de então, manter-se
agregado para salvar-se, e assim foi durante mais de oitenta
anos sem dispersar-se. Extraordinário exemplo de crença
no próprio destino e de persistência na luta, esse, do nosso
caboclo, que soube manter o espírito de corpo e a
solidariedade entre as pessoas. Simples intuição, vontade
de ser, valores espirituais aprendidos dos missionários em
dois séculos de catequese, resquício da cultura nativa. Eram
uma família e uma família continuaram sendo, todos juntos,
um por todos, todos por um. Seu patrimônio em terras, tudo
que restava da avalanche anterior, se resumia a algumas
ilhas, isso mesmo sem o título oficial de propriedade. E iria
encurtando dia a dia, ano a ano, ou porque as ilhas,
integradas ao patrimônio do Estado de Pernambuco, fossem
sendo arrendadas a outras pessoas pela autoridade que as
administrava, ou porque, na parte apossada pelos indígenas,
fossem sendo vendidas, pedaço aqui, pedaço ali,
individualmente, pelos seus ocupantes, para cobrir
necessidades pessoais ou familiares prementes. Tudo, de
todos os pobres, em todos os lugares, com todos os povos é
assim. A necessidade obriga a vender o patrimônio para
matar a fome e em seguida, quando não há mais o que
vender, a fome sempre mata.
O fausto, o tempo de milhares de rezes se
multiplicando no campo vasto, há muito se passara.
Rodelas era, agora, uma vasta pobreza, os ricos morreram e
os seus filhos, acrescidos oito, dez por casal, de geração em
geração, estavam tão esgotados quanto as caatingas, as
secas mais constantes, os recursos naturais reduzidos a
quase nada. A Casa da Torre já se havia retirado da
pecuária local e só lhe restavam as terras e benfeitorias
plantadas em suas fazendas - currais, cercas, tanques e
cacimbas feitos em tapera. Em 1842 iniciava a venda das
propriedades no sertão do Pambu e até já as vendera no
Piauí. Em 1857, depois de anuladas escrituras anteriores,
para cuja assinatura o procurador não tinha a uxória,
negociava todo o sertão do Pambu e Geremoabo com uma
única pessoa, o capitão Antônio Simões de Paiva, que se
encarregaria de repassar as propriedades aos rendeiros. Os
pecuaristas, antigos rendeiros e ex-vaqueiros e seus
descendentes, poucos e de poucas rezes, que quando
chegavam a uma centena eram uma fortuna, um ou outro
com mais que isso, ocupavam espaços sempre mais
distantes do São Francisco, nos seus afluentes secos, onde
houvesse uma minação, para usar a pastagem natural, na
beira rio esgotada. No comprido da margem do rio, ficavam
os que se dedicaram à lavoura, aproveitando as nesgas de
vazante para a cultura anual de mandioca, batata, feijão de
corda, milho e melancia, e mais que isso, para a criação de
algum bode. Em Rodelas, os descendentes de índio salvos
da hecatombe, porque dispunham da única terra boa para a
lavoura, aquela que não dependia de chuva - as ilhas
irrigadas e adubadas naturalmente pela enchente anual do
rio, chegavam a ser a gente de melhor condição de vida. A
cobiça e mesmo a luta pela sobrevivência, ingredientes da
economia em todos os tempos e em todos os lugares, com
todas as raças, representadas nas pessoas de maior posse,
procuraram apossar-se das ilhas. E os remanescentes do
índio, desprevenidos do futuro, iam vendendo pedaço a
pedaço, e, assim, empobrecendo em igualdade de condições
com os remanescentes do vaqueiro e do escravo. Mas,
sempre unidos especialmente na revivência de suas
tradições culturais, os caboclos mantinham o espírito tribal
e jamais deixaram de ter-se como índios e índios dizer-se,
não obstante os muitos cruzamentos negros e brancos, mais
freqüentes nos tempos pós-missão. E porque se
consideravam índios, aprenderam a entender que o
Governo tinha o dever de apoiá-los contra os que
exploravam. De tanto pleitear e reclamar e lutar pelos seus
direitos preteridos, alcançaram ser atendidos pela FUNAI,
que criou um Posto Indígena em Rodelas. Era 1944 e se
haviam passado 82 anos do último missionário. Dos velhos
tempos não devia restar ninguém, talvez um ou outro
macróbio que fosse criança em 1862. Nesse 1944, das suas
ilhas, tradicionalmente ocupadas desde antes das missões,
restava aos caboclos a ilha da Viúva, e nem toda, parte dela
já fora vendida. Reagrupados os remanescentes dos índios
rodelas e organizada a aldeia, sob a direção da FUNAI, a
ilha da Viúva, e só esta, foi despejada de algum ocupante
estranho à raça e entregue a eles para o seu trabalho.
A aldeia recebeu, então, o nome de Tuxá - Tribo
Tuxá. Sem dúvida a opção nominal foi dos remanescentes,
que de há muito assim se autodenominavam. Temos a
confirmação disso, em um documento local, anterior à
reinstalação da aldeia. A Ata da Festa do Dia da Juventude
realizada a cinco de setembro 1941 pela Escola Estadual
Felipe dos Santos, regida pela Professora Dulcina Cruz
Lima, confirma que os Tuxá já assim de autodenominavam
a esse tempo: "... à margem do belo São Francisco uma
regata onde alguns jovens, verdadeiros titãs do remo, na
maior parte descendentes da tribo Tuxá, que habitou a
aldeia de Rodelas, deram uma demonstração da força e da
habilidade com que costumam vencer as águas do grande
caudal".
Vamos acompanhar os relatos a seguir, e é possível
que tenhamos luz sobre os índios do Rio São Francisco
para chegar às origens dos tuxá antecessores dos neo-
aldeados Tuxá de Rodelas. O cipoal é grande, há menos
história e mais idealizações. O que realmente prevalece é o
nome da nação procás, chamada de rodela pelo colonizador
português, e parece que dela, como um ramo familiar,
nasceu o tuxá - caboclo de flecha e maracá, como os
próprios remanescentes se dizem. Certamente - isso ficou
em registro dos primeiros tempos, e porque vem dos
primeiros tempos é irretorquível -, o nome Rodela
apareceu, como já se registrou, com o cacique do grupo de
200 guerreiros nativos que Felipe Camarão recrutou no Rio
São Francisco para guerrear, ao seu lado, os holandeses.
Por alguma razão que não é tão certa como registram
alguns autores da crônica atual, porque a da época não o
disse, o cacique recebeu o nome de Índio Rodela. Seus
comandados eram gente de forte corporatura e valente na
guerra - baixos e espadaúdos, de compleição robusta,
braços grossos de remeiro, ficaram-me os caboclos de
Rodelas na lembrança de criança e adolescente. Diz-se que
usavam uma arma de guerra em forma de disco que os
lusos e castelhanos chamavam de escudo ou rodela; diz-se
que usavam de enfeite uma roda presa ao lábio inferior;
repito que ouvi, em menino, que usavam, pendente do
pescoço, como troféu de guerra, a rodela do joelho do
inimigo morto em combate. Usavam a arma, o botoque ou a
rodela do joelho? Usavam? Seriam todos os Índios que
usavam? Seria apenas o chefe, como distintivo e por isso
mesmo só ele foi chamado de Índio Rodela na fase da
guerra holandesa? Interrogações sobre conjecturas. O que
ressalta do bom entendimento da crônica, é que só o chefe
usava a rodela, qualquer que fosse esta - arma, botoque,
rótula do joelho. E, diga-se, a versão da rótula fica mais
próxima do real. Fez-se conhecido e herói, o Índio da
Rodela, que além de guerrear os holandeses, guerrearia
também os Quilombos e Palmares. Quando chegaram as
missões em suas terras e ele as recebeu, tomou o nome de
Francisco por batismo - Francisco Rodela, ou Francisco
Pereira Rodela como registra Serafim Leite. Era certamente
mais uma homenagem ao pobrezinho de Assis.
"P.I.T. Rodelas. Este nóvel P.I.T., fundado no ano
passado, está situado à margem direita do Rio São
Francisco, junto à vila do mesmo nome, no Estado da
Bahia, com uma população de 212 indígenas", registra o
relatório anual de 1945, da 4ª Inspetoria, da FUNAI no
Recife.(1) A fundação do Posto, vinha ao encontro de um
antigo anseio dos caboclos de Rodelas, que buscavam,
incessantemente a proteção do Governo para resguardar-
lhes os direitos naturais, as tradições da raça, a cultura
indígena que, embora bastante estilizada, em parte
deturpada, faziam por manter. Com dupla morada, no
povoado baiano e na ilha da Viúva, onde tinham roça e
passavam a temporada entre a semeadura e a colheita,
viviam os tuxá na oportunidade da instalação do Posto
Indígena e assim continuaram até o evento da Barragem de
Itaparica. A ilha da Viúva, segundo anota o Relatório
mencionado, tinha 3 quilômetros de comprimento por 150
metros de largura. O espaço era insuficiente e para seu
melhor aproveitamento a FUNAI fez irrigar a ilha,
inicialmente por meio de rodas-d'água, mais adiante, com o
evento da eletrificação nas ilhas, por meio de elotrobombas.
Desse tempo, apresenta-se uma relação dos caboclos
que ainda conservavam o nome indígena, no que me parece
conter uma boa parcela de invenção; os nossos índios
sempre gostaram de exibir os seus valores, e porque os
perdessem de geração para geração, criam alguma fantasia.
Uma coisa é certa na relação: trata-se de pessoas com
nítidos traços fisionômicos indígenas. Eu as conheci, talvez
fossem de sangue puramente nativo. Essa é a lista:
1 - João Gomes - Apaco Caramuru; 2 - Cordolina
Batista - Tuchá Zumbi; 3 - Maria Clara - Tuchá Tenni; 4 -
José Luiz da Cruz - Cá Arfer; 5 - Manoel Dias - Cá Quatix;
6 - Águida Dias - Cá Quatix; 7 - Joana Dias - Cá Cangat; 8 -
Eduardo Luiz da Cruz - Jurum; 9 - Antônio Brune de Assis -
Arquia; 10 - José Brune de Assis - Flechiá; 11 - Maria
Maciana - Quaquicá; 12 - Luíza de Souza - Jurutumpan; 13 -
Martins Maciano - Pripiri; 14 - Maria Pequena - Quaqui; 15
- Manoel Umbá - Canca Aribá; 16 - Leocádia da Conceição
- Juncá; 17 - Leocádia Barbosa - Atairá; 18 - Augusto
Manoel - Araçá; 19 - Rufino de Araújo - Cataá; 20 -
Adauto Misael - Tupacaí; 21 - Bernardina Maria - Travan
Chuá; 22 - Virgínia Gomes- Parratar; 23 - Carmina Gomes -
Carraté.(2) Da relação, pelo menos Carmina Gomes -
Carraté, viúva de João Leonardo, ainda vive em 1996,
quando faz-se este registro, sendo que seu filho Ormando, é
o pajé da tribo.
Vinte anos depois, segundo relato assinado pelo
Agente Roberto Floriano de Albuquerque a 31 de dezembro
de 1964, o posto era "composto de 336 almas aldeadas, de
ambos os sexos: maiores, masculinos 74; femininos 89;
menores, masculinos 86; femininos 87; residentes em casas
construídas de tijolos, cobertas de telhas e parte de taipa,
num total de 54 casas, todas construídas pelos índios com
seus próprios esforços, formando uma vila alinhada com o
plano da cidade de Rodelas, iluminada com energia da
Hidrelétrica do S. Francisco - CHESF numa área de 336
metros lineares de frente, à margem do rio S. Francisco,
localizada no Estado da Bahia".(3) Era o crescimento
populacional de 50%, muito bom como vegetativo.
Tushá, é a grafia de William D. Hohenthal Jr. em seu
relatório de visita a aldeia dos Tuxá em Rodelas, realizada
entre 1951 e 1952. "TUSHÁ: PIT Rodelas é um posto; há
como 200 índios descendentes da tribo Tushá morando na
aldeia que é uma continuação da rua principal da pequena e
pobre "cidade" de Rodelas. A sede do posto e a aldeia estão
situados na beira meridional do Rio São Francisco. As
únicas terras oficiais que possuem os Tushá são na ilha da
Viúva... Antigamente, segundo as informações tribais, o
seu território aborígine incluía as ilhas do Jatobá, da Porta
(ou da cajueira), do Meio (ou da Craibeira), do Serrote e de
João Boa (ou de Baixo), todas perto de Rodelas, e toda a
extensão do rio desde a ilha do Sorobabel até a ilha de
Assunção, um longo trecho de território fluvial. Não tenho
certeza se esta foi a extensão verdadeira do tempo pre-
contacto, ou se é baseada no território mais tarde sob a
jurisdição da Missão de Rodelas. Mas, de qualquer
maneira, a ilha da Viúva não satisfaz as necessidades
quanto a terreno, dos Tushá. Eles precisam de mais terras".
Disse bem, não satisfazia realmente.
"Acima do rio, acrescenta Hohenthal em seu
relatório, na Ilha de Assunção, perto de Cabrobó, há
remanescentes de uma tribo chamada Trucá. Os índios ali
dizem que antigamente os Trucá falavam a língua, ou
melhor, um dialeto muito parecido, com o dos Tushá, e que
as duas tribos culturalmente eram ligadas, pois ambos os
dois grupos pertenciam à "nação procás" (Procases?), nome
famoso, registrado historicamente pelos padres jesuítas no
século décimo sétimo (vide Historia da Companhia de
Jesus no Brasil, Padre Serafim Leite, tomo V, livro I,
capítulo XV, pag, 294-95)". Talvez esse trucá não seja mais
que uma má pronúncia do Tuxá ou Tushá, indicada ao
visitador pelo nativos - é um nome não constante da crônica
da antiguidade.
Segundo suas observações e a coleta da notícia local,
os tuxá de Rodelas viviam em melhor situação antes da
instalação do posto, que depois. A razão, escreve, é que
"anteriormente os fazendeiros locais empregavam os índios
como peões, pagando-lhes pelo trabalho. Quando foi
estabelecido o posto, os índios abandonaram seu emprego
na esperança que o governo lhes forneceria terreno para
cada um". Não se deu a solução da terra que chegasse a
todos os aldeados, e eles ficaram "na posição de não ter
nem emprego (pois outros indivíduos foram utilizados),
nem terrenos próprios. Resultado, muitos dos homens
emigraram para São Paulo, para buscar emprego, deixando
atrás as famílias, que agora passam miséria".(4)
As ilhas tradicionalmente pertencentes aos índios
Rodela, dos quais remanescem os Tuxá, eram mais ou
menos isso. Os nomes mudam-se com os tempos e os
hábitos. Em capítulo anterior ficou o registro das ilhas a
eles sinaladas pelo governador João Lencastro, com os
nomes oficiais de então, certamente aquelas que já
ocupavam, e ficou, igualmente, o nome pelo qual conheci
as ilhas próximas de Rodelas. Em quantidade é mais ou
menos isso. Deve-se notar que poderiam não estar
nominadas todas as ilhas dos nativos, senão as maiores e
mais importantes.
O que não parece de acordo com o registro antigo - e
disso Hohenthal também não tem certeza -, é a extensão de
terra firme, entre Sorobabel e Pambu (ilhas de Sorobabé e
Assunção) como sendo de posse dos índios de Rodelas.
Foi, sem nenhuma dúvida, das aldeias do Índio da Rodela,
sua área de ocupação, nas duas margens do rio e nas ilhas,
terra sua pela lei natural, mas, com a colonização, deixou
de pertencer-lhes, foi doada em sesmaria a Garcia d'Ávila,
II, e Padre Antônio Pereira, como está anotado em outro
capítulo. Ainda assim, não era terra que pertencesse
exclusivamente aos índios de Rodelas, mas, no conjunto,
aos índios das muitas aldeias do Rodela. O que
posteriormente se demarcou para os índios Rodela e, tendo
sido a causa da expulsão dos jesuítas ficou em ser,
correspondia a uma légua de rio por uma légua de fundo,
num trecho que segundo a tradição, ia da Praia à Cruz - um
quilômetro para cima da aldeia e cinco para baixo, e era a
mesma terra da chamada fazenda Rodelas, em 1864
vendida pelo capitão Antônio Simões de Paiva, que a
adquirira à Casa da Torre, a diversos rendeiros.
A retirada para o Sul, em busca de trabalho, muitas
vezes vã, era e é dos índios, dos morenos, dos brancos de
Rodelas e do Nordeste, onde a pobreza apodera-se de
todos, só lhe escapando a reduzida elite econômica - que
precisamente em Rodelas já não existe -, sangue-suga da
miséria de todos os tempos, em todos os lugares, com todas
as raças.
A aldeia dos Tuxá, convive com a população da
cidade ao lado. Pode-se mesmo dizer, que apesar da natural
desconfiança do índio e das leis específicas que dispensam
a aldeia de licença para edificações e isentam de imposto
predial e territorial etc, tendo-a como fora do perímetro
urbano, esta e a cidade integram-se, são as duas uma
comunidade só. Com o advento da Barragem de Itaparica,
sem terra contínua que abrigasse toda a gente da aldeia,
criam-se duas povoações para os Tuxá, a que permanece
em Rodelas, com a área a ser ocupada nas imediações de
Malhada Grande e uma deslocada para o município de
Ibotirama. Serão, agora, duas aldeias. E olhe aí os Rodela
ou Tuxá para refletir o nome na história de amanhã! Mas,
decorridos oito anos do enchimento da barragem, até agora
a área de lavoura não foi beneficiada e a informação que se
tem é a de que a gente Tuxá vive às custas da CHESF, que
oferece mensalmente a quantia de 220,00 reais a cada uma
famílias de caboclos, seja esta grande ou pequena.
"Dos 43 grupos históricos localizados no próprio rio
e excluindo-se aqueles das áreas contíguas, Hohenthal
aponta apenas nove grupos sobreviventes, referindo-se a
eles como grandemente reduzidos em número, misturados
com outras raças e muito aculturados aos costumes neo-
brasileiros", registra o Relatório do Museu do Índio do Rio
de Janeiro sobre os Índios Tuxá.(5)
"Todos esses grupos sobreviventes, continua o
relatório, têm sido sujeitos às influências aculturadoras de
tantas gerações que, superficialmente pelo menos, são
culturalmente, indistintos das povoações neo-brasileiras do
local. Fisicamente, eles mostram traços de uma longa e
contínua mistura racial com indivíduos das raças primárias
negra e caucásica. Nenhum grupo conservou mais que
umas poucas palavras de sua língua aborígine, sendo essas
de valor duvidoso. Porém tudo isso não importa muito para
os caboclos sobreviventes dessas tribos indígenas, que
talvez foram outrora numerosas. Eles se consideram índios
e são como tal considerados pelo governo federal".
A aculturação mencionada já era referida no século
passado, pelo padre Luiz de Gúbio que a entendera e
dissera em 1862. No entender do autor do Relatório do
Museu do Índio, os Tuxá de Rodelas, como de resto "os
grupos indígenas do Nordeste, na atualidade, são
constituídos de remanescentes de diversos grupos
originariamente independentes, que se mesclaram e
permanecem unidos para sobreviver". Pelo menos para os
Tuxá de Rodelas, isso é exato.
Tuxá (Tuchá, Tushá), é ainda transcrito de
Hohenthal, "estes índios foram encontrados juntamente
com os periá, em 1759, no Rio São Francisco, na região
imediatamente oposta à confluência do Rio Pajeú, o que os
coloca nas redondezas de Rodelas".
Hohenthal diz o que está registrado em capítulo
anterior: "em 1696, os padres jesuítas foram expulsos por
essa poderosa família de latifundiários. Contudo, os índios
ficaram, e Rodelas era regularmente populacionada por
volta de 1702, quando tinha cerca de 600 almas. Em 1852
havia no local 132 índios, compreendendo 33 famílias, cuja
economia se baseava na pesca e no cultivo de mandioca.
Em 1952 existiam cerca de 200 Tuxá no Posto Indígena de
Alfabetização e Tratamento de Rodelas. A economia é
ainda essencialmente baseada na pesca e na agricultura,
mas a população flutua devido ao fato de os homens
procurarem freqüentemente trabalho em outros locais".(6)
Essa transcrição confirma o que acima já se tem escrito
sobre a matéria, o nosso índio viveu, em todos os tempos,
da pequena lavoura de subsistência - feijão, milho,
mandioca, abóbora, algodão, complementada pela coleta de
frutos silvestres, a pesca e a caça - mais a pesca do que a
caça, assim os encontrara fr. Martinho de Nantes em 1672,
e o escreveu. Mas, o que assombra é a redução
populacional indígena. Está registrado em capítulo anterior,
que em 1729, com fr. Bernardino de Milão, havia 722
índios na aldeia, os quais, em razão da separação da área
pernambucana, se reduziram a 200. Logo reorganizada,
contava ela, entre 1735 e 1741, sob a direção fr. Vitalino
Romano, com 600 aldeados. Já aí não havia a matança da
guerra. Por que diminuía a população indígena de Rodelas?
Sem dúvida não seria apenas a busca de trabalho fora, que
fizesse reduzir 600 habitantes a 200. Sem os missionários,
atribulados pela pelos furtos e perseguições dos
administradores e vizinhos, até de padre e juiz municipal,
registra-o a história, os índios certamente se dispersaram.
Não há outro entendimento, dispersos em pequenos grupos,
rumavam para novos destinos. Encontrariam outros lugares
onde trabalhar e viver, ou morreriam ao deus dará?
Os "Periá mencionados com os Tuxá, foram
reduzidos no século XVIII, juntamente com os Pankaruru,
associando-se, também, aos Tuxá, no ano de 1789, perto da
confluência dos rios Pajeú e São Francisco",(7) registra o
relatório citado. São listados outros nomes como Poriá,
Porcaz, Procazes, Procães, Progês, tudo isso representando
a diversidade de grafia para a nação procás, ao que temos
entendido da leitura de vários autores. Os Tuxá visitados
por Hohenthal em 1952, autodenominavam-se tribo Tuxá,
e da nação prokás, anota o visitador.
"Indivíduos dessa tribo, dizem-se pertencer a uma
das duas famílias ká e tuxá, termo que adicionam a seus
nomes como sufixo designativo. Isto reflete possivelmente
a existência no passado, de um sistema de "moieties", ou
divisão social dual da tribo", anota o Relatório, sempre com
apoio em Hohenthal.(8)
As citações acima confirmam o registro histórico
mais antigo - os índios Tuxá não eram originariamente da
aldeia de Rodelas. A História não fala deles aí na
antiguidade. Aliás, o que se tem sobre os Tuxá na
antiguidade é quase nada, parece que eram um ramo dos
procás - ou rodelas, que habitava a ilha da Vargem. "Em
1672, frei Martin de Nantes, capuchinho francês, iniciou
esforços missionários... no trecho das ilhas conhecidas por
São Felix entre os Tushás e na ilha do Cavalo", registra
Donald Pierson.(9)
Os Rodela estavam, além de na aldeia que recebeu o
seu nome, também na extensão compreendida entre a foz
do Pajeú, de um lado e Sorobabé do outro, até Pambu e
Cabrobó, em terra firme e nas ilhas, convivendo com outros
grupos. E o ramo dos Tuxá, da nação procás, estava
referenciado na ilha da Vargem, com os brancarurus, de
onde desceram ao Pajeú, daí a Rodelas, aldeia na qual as
primeiras crônicas não referenciam esse ramo indígena. A
versão local colhida por Elizabeth Nascer, de que eles
teriam vindo para Rodelas a partir da aldeia do Sorobabé no
após arrasamento da ilha por uma grande enchente, que
poderia ser a de 1792 ou não, parece pouco provável. A
administração da aldeia do Sorobabé, após a expulsão dos
jesuítas em 1696, não retornou ao centro de Rodelas,
entregue aos missionários capuchinhos italianos, mas foi
para a administração dos franciscanos, como já era a da foz
do Pajeú. Não há um registro antigo que posicione os Tuxá
como habitantes de Sorobabé, onde vivia o grupo purus ao
lado dos brancarurus, aos quais se anexaram, antes de 1696,
pelos jesuítas, os carurus. E os índios da aldeia de
Sorobabé, dos quais não há notícia após o arrasamento da
ilha e entre os quais talvez não estivessem os Tuxá, antes
de virem para Rodelas, mais provavelmente
acompanhariam Nossa Senhora do Ó para Tacaratu, se não
se dispersassem.
No presente, isto é, após a instalação, pela FUNAI,
da aldeia com nome de Tuxá em 1944, é a luta constante,
repetitiva e sempre sem solução, pela posse da terra,
arrancada seguidamente ao índio desde tempos remotos; é a
tentativa, de parte do caboclo, no sentido de sensibilizar a
autoridade federal para ter o seu apoio; é a guerra fria com
os que imagina serem seus inimigos - e nem sempre o são.
A questão da terra é complexa. As informações dos vários
inspetores da FUNAI que visitaram a aldeia dos Tuxá nos
seus primeiros anos e os diversos pleitos ao Governador de
Pernambuco e reclamações junto ao Prefeito de Belém do
São Francisco, alguns dos quais encaminhados pelo
Marechal Rondon, se desencontram. Há quem fale num
arquipélago de 30 ilhas na antiguidade pertencentes aos
índios, mas o pleito se põe em até dez.. Há quem fale em 10
ilhas, para pleiteá-las. Há quem mencione apenas cinco, e
parece que com estes conforma-se a verdade histórica.
Creio que o pecado original, foi a dose, bastante forte para
envenenar. Primeiro, os pleitos não podiam subestimar o
conhecimento da história regional pelas autoridades
regionais; nunca houve trinta ilhas na área da missão de
Rodelas, sem contar que a ela se somavam as aldeias de
Acará e Sorobabé, que tinham as suas próprias terras. Nem
ao menos 10, mas 5 ou 6 eram as ilhas de Rodelas. Os que
relacionam 10, de certo por informação dos caboclos,
levam em conta ilhotas não relacionadas nos tempos
históricos, quando nem eram ocupadas para a lavoura, por
ser escasso e inundável o seu solo. Segundo, a aldeia
reorganizava-se com 200 pessoas, crianças inclusive, e não
havia como, de bom senso, pensar-se em entregar tanta
terra a tão poucos, deixando a população muitas vezes
maior que os aldeados e tão pobre quanto estes, sem o chão
para a sua pobre lavoura. Estávamos trezentos anos longe
da colonização portuguesa, toda a gente, agora, era
brasileira nata, e a redistribuição de terra haveria de ser
entendida no sentido de alcançar todos os que dela
careciam para viver. Terceiro, a Prefeitura alegava, e com
razão, que a renda das ilhas pesava muito em seu também
pobre orçamento, e que os indígenas, sendo apoiados pelo
governo federal, a este cabia custear as suas despesas, não à
municipalidade. Resultado de tanto erro é que os Tuxá de
Rodelas receberam em 1944 a ilha da Viúva e dessa não
passaram até 1988, quando ocorreu o fechamento da
barragem de Itaparica. E pior agora. A FUNAI não
conseguiu convencer a CHESF - o que é um absurdo, a
relocar os índios em um mesmo lugar, ou então estes se
desentenderam. Resultado: diz-se que ficará uma aldeia em
Rodelas, outra em Ibotirama. Consta que, dos que foram
para Ibotirama, os mais velhos morreram, talvez de
saudade, os moços querem voltar, mas, não há espaço para
eles aqui.(11) Ao cabo e ao fim, chega-se à conclusão de
que o Serviço de Proteção aos Índios deixou de proteger o
nosso caboclo exatamente quando o responsável pelo dano
era - ainda é - uma empresa do Governo Federal. Fundado
em 1910, com uma Inspetoria Regional no Recife em 1924,
só em 1944 chegava a Rodelas. As terras ficaram as
mesmas do tempo anterior à instalação do Posto e agora os
caboclos são despedaçados. Hoje, como ontem, o miserável
é que paga a fatura. Praza a Deus que a divisão da aldeia
dos Tuxá não seja o prenúncio de sua extinção.
Na luta pela posse da terra e queixas somadas no pós
instalação do Posto Indígena de Rodelas, pode-se
classificar o desentendimento ocorrido em 1957 entre o
Posto e a Prefeitura Municipal de Glória, que
jurisdicionava a Vila de Rodelas. O chefe do Posto iniciou
a construção de uma cerca de arame farpado, que fechava a
aldeia, isolando-a da população da vila e continuava pelos
fundos da aldeia para o centro, com projeto de cercar o
Barreiro - lugar onde se produziam tijolos. A Prefeitura
embargou a obra, porque feria, era o seu entendimento, as
posturas municipais, pondo de baixo de cerca uma parte da
área urbana, e fechando, além disso, o único lugar que se
conhecia com argila própria à produção de tijolos. Levou a
matéria à Justiça e o trabalho foi interrompido. Seis anos
depois, Rodelas alcançava a categoria de município. A
posse da Câmara de Vereadores e do Prefeito se deu a 7 de
abril de 1963. Em uma ação muito bonita e honrosa para a
sua pessoa e para o nome do município, já a 22 de abril o
Prefeito Manuel Moura assinava um acordo com o Chefe
do Posto, demarcando a área da aldeia, que reconhecia
como posse legítima dos caboclos, a qual, assim, ficava
fora do chamado perímetro urbano. Em seguida
encaminhou um projeto de lei À Câmara Municipal,
assegurando aos índios, em definitivo, a posse da terra e
assumindo encargos financeiros no apoio à aldeia, inclusive
na manutenção de suas tradições. Vão, a seguir, como
documentos que reputo significativos na história de
Rodelas, o termo de compromisso e o projeto, que foi
transformado em lei:
"Aos (22) vinte e dois dias do mês de abril do ano de
(1963) hum mil novecentos e sessenta e três, a Prefeitura
Municipal de Rodelas, representada pelo Prefeito Manuel
Moura e o Serviço de Proteção Indígena, representado pelo
Chefe do Posto de Rodelas, Sr. Manoel Olímpio Novais,
estabelecem uma linha divisória dos terrenos pertencentes
ao aldeamento e à Prefeitura Municipal de Rodelas, que
será devidamente marcada, com dois pilares a serem
levantados pelo Sr. Manuel Moura, Prefeito Municipal, um
no alinhamento do oitão leste, isto é, lado de baixo da casa
de José Brune e o outro (10) dez metros acima do canto
norte do cemitério municipal (cemitério novo), para
servirem de fácil exame e verificação. Com o acordo ora
celebrado, as partes - a Prefeitura Municipal de Rodelas e o
Serviço de Proteção Indígena, Posto de Rodelas, dão por
encerrado o antigo litígio quanto aos ditos limites, no que
são unanimente acordes, inclusive no reconhecimento de
que nenhuma das partes fica prejudicada. Vale lembrar
neste termo, que o limite ora adotado, coincide exatamente
com a antiga pretensão da maioria dos atuais remanescentes
da tribo Tuchá, em Rodelas aldeada. Essa pretensão
resultou na construção de um pequena cerca de arame que
dividia a rua, partindo das imediações da casa de José
Quelé, para a casa de José Brune, tendo sido feita pelo
Posto de Proteção Indígena de Rodelas. Cada uma das
partes ficará com uma via autêntica deste termo, fazendo o
uso que desejar e uma terceira via, também autêntica,
servirá de base para o arquivamento da ação movida pela
Prefeitura Municipal de Glória, quando a ela pertencia o
atual município de Rodelas, contra o Serviço de proteção
Indígena, na pessoa do Sr. Manoel Olímpio Novais. Assim,
para constar e para que tenha real valor em todos os foros,
lavrou-se o presente termo, que depois de lido e achado
conforme, vai assinado pelo Sr. Manuel Moura, Prefeito
Municipal e pelo Sr. Manoel Olímpio Novais, Chefe do
Posto do Serviço de Proteção Indígena de Rodelas. (as)
Manoel Moura - Prefeito de Rodelas, Manuel Olímpio
Novais - Chefe do Posto do Serviço de proteção Indígena
de Rodelas. VISTO (as) Tubal F. Viana, Confere com o
original.(12)
"Ante-projeto de lei n 8, de 14 de agosto de 1963.
Limita a área de terra urbana, reconhece terra indígena e dá
outras providências.
O Prefeito Municipal de Rodelas, Estado da Bahia
Faço saber que a Câmara Municipal de Rodelas,
Estado da Bahia, decreta e eu sanciono a seguinte lei:
Art. 1º A área urbana de Rodelas, lado oeste, limitar-
se-á com terrenos da Tribo Tuchá, cuja posse será
reconhecida como legítima.
Art 2º A linha divisória da área urbana do Município
de Rodelas, com a posse da Tribo Tuchá partirá do oitão
oeste da casa de José Quelé, seguindo em frente, passando
pelo oitão leste da casa de José Brune, atingindo o marco a
ser construído a 10 metros oeste do canto norte do
cemitério municipal.
Art. 3º Fica aberto o crédito de CR$10.000,00 que
correrá por conta da dotação orçamentária 8.99.4, para o
atendimento de despesas diversas.
Art. 4º A municipalidade prestará colaboração ao
Serviço de Proteção aos Índios, do Ministério da
Agricultura, nos melhoramentos que se fizerem necessários
para conduzir amparo e benefícios aos indígenas, tais como
aterro do alagadiço existente na dita área, participação do
índio nos benefícios advindos com a instalação do Posto
Médico (a ser construído), auxílio anual à realização de
festejos e cerimônias tribais, transformação do antigo
cemitério, em ruínas, na dita área localizado, em jardim,
além da participação dos benefícios oriundos da rede
elétrica e serviço de água encanada, já em gozo.
Art. 5. Esta lei entrará em vigor na data de sua
publicação, revogadas as disposições em contrário
Gabinete do Prefeito, 14 de agosto de 1963. Manuel Moura,
Prefeito.(13)
Uma informação impressionante sobre a facilidade
com que foram despejados os índios de suas terras até com
a participação direta de autoridades eclesiásticas, vem da
ilha de Assunção. Na ilha de Pambu, depois Assunção,
havia uma aldeia indígena nos primórdios da colonização,
aliás, anterior a ela. O padre Martinho de Nantes já a
encontrou em 1672. A partir de 1677 aí foi missionário o
padre Anastácio de Audierne. A missão continuou com os
carmelitas e afinal com os capuchinhos italianos até 1760,
quando se deu a supressão. Por causa do gado de Francisco
Dias d'Ávila e algum de seus rendeiros, posto nessa ilha,
onde destruiu roças de índios, houve briga de missionário e
curraleiros e o gado foi despejado fora. Denúncias, queixas,
reclamações chegaram a el-rei. E afinal ao indígena acabou
sendo reconhecida a posse da ilha, tanto assim, que por
ocasião da venda, pelos seus descendentes, das antigas
propriedades no rio São Francisco, as ilhas estiveram de
fora. Pois bem, aqui está o relato de como as terras
passaram dos índios a terceiros.
"Por volta de 1910, na ilha de Assunção, no rio São
Francisco, foi posto em prática um processo singular de
esbulho de terrenos contra os índios Tuxá e seus
descendentes, que as ocupavam desde tempos imemorais.
Constituiu em obter dos índios licença para construção de
uma capela consagrada a Nossa Senhora de Assunção. Essa
licença, registrada posteriormente em cartório, como
doação, serviria de base para a expedição de títulos de
propriedade em que o vendedor era a Santa Padroeira,
representada pelo bispo de Pesqueira e o comprador, um
potentado local. Este fez sentir aos índios a força de seu
título possessório, obrigando-os a se colocarem a seu
serviço, pagar foros pela ocupação das terras, ou
abandonarem a ilha como intrusos.
À medida que eram escorraçados de suas terras, os
índios se juntavam aos bandos que perambulavam pelas
fazendas, à procura de um lugar onde se pudessem fixar.
No começo do século, vários desses magotes de índios
desajustados eram vistos nas margens do São Francisco.
Alimentavam-se de peixes ou do produto de minúsculas
roças plantadas nas ilhas inundáveis - únicas cuja posse não
lhes era disputada - e trabalhavam como meeiros e como
peões das fazendas vizinhas".(14) Os fatos estão detalhados
no relatório dos inspetores Tubal Fialho Viana que visitou a
ilha e colheu farta informação. A ilha foi vendida a diversas
pessoas, interessadas na lavoura, mas os problemas com os
remanescentes do povo indígena foram criados pelo sr.
Pereira Dum, sucessor hereditário do Sr. João Parente de
Sá. e por compra, de vários outros (relatório no apêndice).

NOTAS:
1 - Relatório sobre os Índios Tuxá, de Rodelas, anexo n. 6.
2 - Relatório sobre os Índios Tuxá, de Rodelas, anexo n. 3. Essa
relação é de 1946 e está assinada por Manuel Olímpio Novais.
3 - Relatório sobre os Índios Tuxá, de Rodelas, anexo n. 28.
4 - Relatório sobre os Índios Tuxá, de Rodelas, anexo n 1.
5 - Museu do Índio, do Rio de Janeiro, Relatório sobre os Índios
Tuxás, pag. 3, com transcrição de Hohenthal Jr. 160:42.
6 - Museu do Índio, do Rio de Janeiro, Relatório sobre os Índios
Tuxás.
7 - Museu do Índio, do Rio de Janeiro, Relatório sobre os Índios
Tuxás
8 - Museu do Índio, do Rio de Janeiro, Relatório sobre os Índios
Tuxás
9 - Donald Pierson, O Homem no Vale do S Francisco, T. I, pag. 258
10 - Museu do Índio, do Rio de Janeiro, Relatório sobre os Índios
Tuxás 11 - Museu do Índio do rio de Janeiro: ANEXO N. 10, Ofício do
Diretor do S.P.I (Recife), ao Interventor Federal no Estado de Pernambuco,
ANEXO N. 11, ofício do chefe da 4a Inspetoria Regional ao Interventor Gen
Dermeval Peixoto, ANEXO 12 - INFORMAÇÃO, ANEXO 13, cópia de
ofício de 24 de setembro de 1951 ao Interventor Gen. Dermeval Peixoto,
ANEXO 24 - Relatório de Raimundo Dantas Carneiro. Transcritos em
inteiro teor, no Apêndice
12 - Museu do Índio, do Rio de Janeiro, Relatório sobre os Índios
Tuxás (Rodelas Bahia), an n. 26.
13 -Museu do Índio, do Rio de Janeiro, Relatório sobre os Índios
Tuxás (Rodelas Bahia), an n. 27
14 - Museu do Índio, do Rio de Janeiro, Relatório sobre os Índios
Tuxás
15 - Relatório do Inspetor Tubal Fialho Viana (O Relatório vai
transcrito no Apêndice

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