Você está na página 1de 38

(htt

ps:/ ASSINE O PREMIUM


/ww Matinal
(https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/) (HTTPS://WWW.MATINAL
w.m
www.facebook.com/MatinalJornalismo/)
atin Parêntese
(https://www.matinaljornalismo.com.br/parentese/) JORNALISMO.COM.BR/A
www.instagram.com/matinaljornalismo/)
aljor SSINE/)
nali(https://twitter.com/newsmatinal)
Roger Lerina
(https://www.matinaljornalismo.com.br/rogerlerina/)
kedin.com/company/matinaljornalismo/)
smo
.co

ACESSO PREMIUM
m.b
r)

ZapMatinal (https://ww Experimente Seu e-mail

w.matinaljor
Menu (https://www.matinaljornalismo.com.br/zapmatinal/) grátis nossas
nalismo.com newsletters! ENVIAR

.br/matinal)

Os territórios negros de
Desapaga POA (https://www.matinaljornalismo.com.br/categoria/matinal/desapagapoa/)

Porto Alegre: o Areal da


Baronesa, Ilhota, Colônia
Africana e o Mercado do
Bará
17 junho 2021 por Redação (https://www.matinaljornalismo.com.br/author/deborah/)

(/#facebook)

(/#twitter)
(/#linkedin)

(https://www.addtoany.com/add_to/email?
linkurl=https%3A%2F%2Fwww.matinaljornalismo.com.br%2Fmatinal%2Fdesapagapoa%2Fos-
territorios-negros-de-porto-alegre-o-areal-da-baronesa-ilhota-colonia-africana-e-o-
mercado-do-
bara%2F&linkname=Os%20territ%C3%B3rios%20negros%20de%20Porto%20Alegre%3A%20o
%20Areal%20da%20Baronesa%2C%20Ilhota%2C%20Col%C3%B4nia%20Africana%20e%20o%
20Mercado%20do%20Bar%C3%A1%20-
%20Matinal%20Jornalismo&linknote=A%20pesquisa%2C%20os%20textos%20e%20a%20elabo
ra%C3%A7%C3%A3o%20dos%20roteiros%20da%20s%C3%A9rie%20sobre%20a%20PRESEN%
C3%87A%20NEGRA%20na%20hist%C3%B3ria%20de%20Porto%20Alegre%20s%C3%A3o%20d
e%20Pedro%20Vargas%2C%20Jane%20Mattos%2C%20Manoel%20Jos%C3%A9%20%C3%81v
ila%2C%20Regina%20Parente%20e%20Orson%20Soares.%20A%20equipe%20de%20locu%C3
%A7%C3%A3o%20conta%20com%20Clara%20Falc%C3%A3o%2C%20Leila%20Mattos%2C%2
0Lucas%20Samuel%20e%20Carlos%20Raimundo%20Pereira.%20Os%20%C3%A1udios%20e%
20a%20trilha%20%5B%E2%80%A6%5D)
O Solar da Baronesa (atual edifício do Pão dos Pobres).

A
pesquisa, os textos e a elaboração dos roteiros da série sobre a
PRESENÇA NEGRA na história de Porto Alegre são de Pedro
Vargas, Jane Mattos, Manoel José Ávila, Regina Parente e Orson
Soares. A equipe de locução conta com Clara Falcão, Leila Mattos,
Lucas Samuel e Carlos Raimundo Pereira. Os áudios e a trilha sonora
tem a direção e criação de Bebeto Alves. A comunicação é do
Marketing da Ju e a edição é de Vítor Ortiz.

EPISÓDIO 8/ Os

territórios negros de P…
jun. de 2021 • DESAPAGA POA
Seguir

50:05

Ministério do Turismo, Secretaria Especial de Cultura, Secretaria Estadual da


Cultura e Fundação Marcopolo apresentam:

DESAPAGA POA – O podcast que chegou para desapagar os apagados da história


de Porto Alegre: negros, negras, negres, indigenas e periferias, às vésperas da
cidade completar 250 anos de sua data oficial de fundação.
Este projeto foi selecionado no edital Criação e Formação // Diversidade das
Culturas, // da Secretaria Estadual da Cultura – SEDAC/RS – e Fundação
Marcopolo // e é realizado com recursos da Lei 14.017 de 2020 (a Lei Aldir Blanc).

Esta primeira série terá 10 episódios que ficam disponíveis nos principais
agregadores de podcast, sendo transmitidos todos os sábados, pela rádio FM
Cultura (107.7), apoiadora do projeto.

O DESAPAGA POA tem o apoio também do Matinal Jornalismo, revista Parêntese


e RogerLerina.com; e os conteúdos detalhados (o roteiro para leitura, a
bibliografia e as imagens da pesquisa) ficam disponíveis no site
www.matinaljornalismo.com.br/desapagapoa
(https://www.matinaljornalismo.com.br/desapagapoa).

Eu te convido a seguir o Desapaga POA nas redes sociais e a colaborar com o


projeto na nossa vaquinha digital no site APOIA-SE
(https://www.apoia.se/desapagapoa) e também a compartihar os episódios com
seus amigos.

Neste episódio, vamos buscar africanidades nas origens negras do carnaval da


cidade na figura do Rei Momo Lelé, os territórios do Areal da Baronesa e da Ilhota
de Lupicínio Rodrigues. as marcas históricas da presença negra na Liga da Canela
Preta, uma das mais importantes entidades da história do futebol porto-
alegrense; e passear com pés negros pelo Morro das Sete Pedras da Colônia
Africana e pela história do Mercado Público e da remoção das quitandeiras da
Alfândega para a Praça do Paraíso e chegar no Bará e no Príncipe Custódio.

Museu de Imagens do Desapaga POA


PARTE 1
TERRITÓRIOS NEGROS: O ARREAL BARONESA, A ILHOTA E A
COLÔNIA AFRICANA
Jane Mattos

Em 03 de outubro de 1858, acontecia a primeira procissão da Irmandade do


Rosário de São Domingos e São Benedito. As ruas da Leal e Valorosa Porto Alegre
foram tomadas pelos devotos e confrades que, devidamente paramentados,
conduziam nos préstitos os andores e seus santos.

Dois meses depois, Abel, homem pardo e escravizado, com pouco mais de vinte e
cinco anos, carpinteiro de ofício, comprava sua liberdade pelo valor de
quinhentos mil reis em moeda corrente, pagos à sua senhora Baronesa de
Gravathay.
“Digo me a Baronesa de Gravatahy abaixo assignada que entre
os bens que possuo livres, desembaraçados, (…) hum meu
escravo pardo de nome Abel, de idade pouco mais ou menos
vinte e cinco annos, officio carpinteiro… que o referido no
estado possuinte em quantia superior a dois contos de reis – em
attenção á sua idade, e officio, almejam o mesmo escravo
libertar-se , mas não tendo para outrem se não a quantia de
hum conto e quinhentos mil reis, tenho referido para o
benefício dar-lhe a sua liberdade pela referida quantia de hum
conto quinhentos mil reis que ao fazer desta tenho recebido em
Moeda corrente, passando-lhe, como de muito boa vontade lhe
perdo-o a quantia de quinhentos mil réis para sempre se
mostrar reconhecido, e para que fique gosando de sua natural
liberdade, // como se de livre nascesse do Ventre Materno,
(…)Carta que vai por mim somente assignada.” (BARONESA DO
GRAVATAÍ)

Apesar da benevolência atribuída a si mesma, característica apontada durante


décadas por uma história aos senhores escravistas, a possibilidade de liberdade
de muitos escravizados, como a de Abel, se deu provavelmente pelo pecúlio
acumulado pelo exercício de seu ofício nas horas vagas e/ou, ainda, oriundo de
suas redes de parentesco ou dos fundos emancipatórios, como os promovidos
pela Irmandade do Rosário. Fato a ser lembrado nesses 133 anos de abolição, de
que a liberdade de milhares de escravizados, mesmo antes do ano de 1888, foi
decorrência da organização e luta dos escravizados, livres e forros.
Antes de liberto, o carpinteiro Abel emergia de outro documento – o inventário
do Barão de Gravathay, este datado de 1856, onde era listado e compunha parte
de uma grande escravaria, com outros 50 homens e mulheres sequestrados de
diversas nações africanas, referenciados como negros Mina, Congo, Benguela,
Cabinda e Cabo, e os nascidos em terras brasileiras – os crioulos.

De ofícios variados, os escravizados aplicavam seus conhecimentos de navegação


e carpintaria na construção e manutenção de iates, brigues de navegação e nas
demais propriedades do rico comerciante português e coronel do Exército
Imperial. João Baptista da Silva Pereira e Maria Emília de Menezes da Silva
Pereira, detentores do título nobiliárquico de Barões de Gravathay.

O casal possuía ainda uma chácara na Praia de Belas com uma extensão de
“duzentas e cinquenta braças de frente para a praia do Guaíba e fundos para o
Riachinho”, com uma casa de sobrado tendo uma cozinha, contra-peito e
senzalas, e ao lado uma casa ordinária com “palmos de frente”. Esta edificação,
localizada onde hoje está o Colégio La Salle Pão dos Pobres, foi construída por
mãos negras, nas primeiras décadas do século XIX, onde se destacava das demais,
ficando popularmente conhecida como o palacete da Baronesa.
A chácara da aristocracia porto-alegrense estava situada na grande região da
cidade baixa, marcada pelos contornos sinuosos do Riacho que definia a
fisionomia do lugar. Segundo o historiador Sérgio da Costa Franco, no seu “Guia
Histórico de Porto Alegre”, a cidade baixa seria toda a região situada ao sul da rua
Duque de Caxias, constituída em princípio pela rua do Arvoredo (atual Cel.
Fernando Machado) ainda no século XVIII, estendendo-se até rua da Olaria (hoje
Gal. Lima e Silva) e transversais menores. No sentido Oeste até a beira do Rio
Guaíba, abarcava as referidas terras da Baronesa de Gravathay, que ficavam na
margem esquerda do Riacho. O botânico e naturalista francês Auguste de Saint-
Hilaire, em sua passagem por Porto Alegre, em 1820, descreve esta paisagem do
lado oposto da cidade alta, tendo como fronteira a colina onde estava erigida a
pequena capela de Nossa Senhora da Madre de Deus.

Diz Saint-Hilaire:

“Embora construída somente no lado noroeste da colina, a


cidade possui várias casas no lado oposto, esparsas e
desalinhadas, entremeadas de terrenos baldios, pequenas e mal
construídas, quase todas habitadas pela população pobre.”

Após décadas da partida do viajante francês, as cidades opostas – Alta e Baixa –


juntaram-se em um contínuo. Mudanças possivelmente testemunhadas pelo
liberto Abel, de que falávamos, e pelas famílias originadas na diáspora africana.

Os arraiais ou arrabaldes, evocados no imaginário popular como lugares


bucólicos e pacatos, com chácaras e casas simples e dispersas observadas pelo
botânico Saint Hilaire, foram adensados antes mesmo da virada do novo século –
o século 20.
Chácaras como a da Baronesa foram loteadas com a valorização dos terrenos,
transformando-se em propriedades menores que seguiam novos
esquadrinhamentos definidos pelo poder público para áreas como a da Cidade
Baixa, e por vezes à revelia deste.

A abertura de novas vias e construções como as casas de moradias denominadas


avenidas, se espraiavam ao longo dos terrenos esquadrinhados na cartografia da
cidade … Aqui um parêntese: se chamava “avenidas” os conjuntos de casas de um
cômodo, dispostas lado a lado em uma pequena rua sem saída, como o atual Beco
do Guaranha, atualmente um quilombo urbano, último remanescente das tais
(entre aspas) “avenidas” que definiam a paisagem do território da Baronesa. Ai
eram acolhidos moradores que nos arraiais encontraram espaços de moradias
baratas, solidariedades e o partilhar das práticas culturais comuns, conferindo-
lhe sentidos diversos.

A historiadora Sandra Jathay Pesavento ressaltava que muitos arraiais de Porto


Alegre tiveram sua origem associada às questões étnicas, como Navegantes e São
Manoel, ligados aos imigrantes germânicos. Outros foram associados às
populações negras, como o Arraial da Baronesa e a Colônia Africana.

O Areal da Baronesa, um dos mais antigos arraiais de Porto Alegre – arraial no


sentido de bairro – no decorrer da primeira metade do século XX recebeu uma
série de pechas relacionadas ao perigo e a insalubridade, veiculadas por homens
letrados da cidade, jornalistas e cronistas, que atribuíam a ideia de uma imperiosa
desordem e malandragem a seus moradores, formado na sua maioria por
trabalhadores africanos e seus descendentes, nacionais e estrangeiros pobres.
Jornalistas e cronistas não raro influenciados pelas teorias raciais que pautavam
os debates da ciência naquele contexto histórico e que reverberavam nas práticas
dos gestores da recém formada República.
Dá má fama imposta pelos jornais, decorreram ações contínuas e sistemáticas
“levadas a cabo” pelos agentes do poder público, então imbuídos e orientados na
sua missão de higienizar e “sanar moralmente” a região, que levaram à expulsão
dos legatários da Baronesa para as áreas mais periféricas da cidade.

“Emboscadas” e Banda Oriental eram nomenclaturas associadas ao arraial, desde


os tempos memoráveis. A pecha de “Emboscadas” – segundo o professor e
cronista Achylles Porto Alegre – advinha da vegetação do Areal composta de
matos cerradíssimos e muitos capões existentes nas imediações do Riachinho (o
Jacareí, atual Dilúvio) e que tornavam este lugar intransitável, servindo de refúgio
aos escravizados fugidos do cativeiro.

O alabê e ativista negro Walter Calixto Ferreira – mestre Borel – morador da


Baronesa desde a primeira infância, desde os idos anos de 1920, relacionava a
nominação de Estado Oriental à existência de um reduto militar, o da Brigada. Os
quartéis da Brigada Militar foram erguidos ao longo da Praia de Belas, em terras
lindeiras à antiga chácara da Baronesa Emília Pereira, nos anos de 1890.

Os soldados deste corpo policial, na sua maioria não brancos, e também


estigmatizados, estampavam as colunas dos jornais locais, acusados de
promotores das contendas geradas no estranhamento ou nas rixas com os ratos
brancos, a polícia administrativa, especialmente quando ultrapassavam os limites
dos pontilhões sobre o Riacho.

Estes pontilhões espalhavam-se ao longo do Jacarezinho – nome antigo do Arroio


Dilúvio – e possibilitavam a ligação do Areal da Baronesa com o restante da
cidade baixa. Eram as portas de entrada e saída do arraial constantemente
rememorado como Areal pela farta areia que cobria a extensa faixa da orla do
Guaíba, nominação encontrada nos registros públicos da Intendência Municipal
para referir a região: Areal da Baronesa.
Noventa anos após a liberdade do carpinteiro Abel, o então Areal se tornara um
dos principais espaços carnavalescos da cidade, tendo seu próprio Rei Momo
Lelé, e primeiro rei momo negro de Porto Alegre, entre os anos de 1948 e 1951. Foi
em fevereiro de 48 que o carnavalesco Adão Alves de Oliveira – de por todos
chamado de Lelé – sentado em um pequeno barco que adentrou o Riachinho,
margeando as antigas terras da Baronesa, chegou ao ponto marcado para abrir os
festejos momescos. Ao desembarcar, seguiu em passeata com o cortejo real pela
rua da Margem (hoje João Alfredo) e subiu os degraus do coreto da rua Baronesa
de Gravataí, antes ocupado pelos músicos da Brigada que executavam diversas
marchas carnavalescas. Lelé, trajado como um rei africano, agradeceu a recepção
e pronunciou o seu discurso aos foliões que aguardavam:

“Povo, povo do meu reinado, é com grande satisfação, não


medindo esforço, nem energia para vir lá da Etiópia para abrir o
carnaval aqui no Brasil”

A antropóloga Josiane Abrunhosa – em sua dissertação de mestrado de título


Bambas da Orgia: Um Estudo Sobre o Carnaval de Rua de Porto Alegre; seus
carnavalescos e os territórios negros analisa a fala do rei momo Negro Lelé,
apontando para a forte carga simbólica na evocação da Etiópia, estabelecendo
uma ligação de Lelé com suas origens africanas e também dos foliões que
promoviam e participavam do carnaval, reafirmando assim seu pertencimento
étnico.

Mas por que este país africano? Por que era este país o eleito como um símbolo
para os descendentes dos africanos do Areal da Baronesa?
Estas indagações motivam a dissertação de mestrado da historiadora Iris Graciela
Germano, trabalho intitulado Rio Grande do Sul, Brasil e Etiópia: os negros e o
carnaval de Porto Alegre, nas décadas de 1930 e 40, que constata a recorrente
alusão ao país africano nas narrativas dos vivenciadores negros do carnaval da
cidade. A autora aponta duas possibilidades para este fascínio com os etíopes:
uma política e a outra mítica.

A resistência dos etíopes desde 1896, na guerra ítalo-etíope, sob o comando do


Imperador Menelick II, às investidas dos italianos em seu território no cenário do
neocolonialismo, e noutro período, de 1935 a 1941, quando lutaram contra os
ataques do Ditador Benito Mussolini até a sua expulsão, suscitam ambas as
possibilidades, política e mítica para essas referências à Etiópia no carnaval
porto-alegrense.

Para a historiadora, as lutas e vitórias do povo etíope foram os motivos que


levaram o país a ser um símbolo de resistência e de libertação para os africanos e
seus descendentes em várias partes do mundo, inclusive para os negros de uma
cidade do extremo sul das Américas, que encontraram no Areal da Baronesa o
lugar de resistência e refúgio citado nos escritos de Achylles Porto Alegre.

No sentido mítico, a família real da Etiópia reivindicava a sua ascendência


dizendo-se herdeira de Menelik, filho da Rainha de Sabá com o rei Salomão,
apontando para a origem bíblica do povo africano, sua resistência e os
significados partilhados na diáspora.
Nestes anos de resistência etíope, o folião carnavalesco e músico negro porto-
alegrense Lupicínio Rodrigues ou Lupi, como era conhecido, cantava e escrevia
inúmeras composições musicais relatando seu cotidiano. Canções de amores e
desencontros, sendo ele também o compositor do Hino do Grêmio Futebol
Porto-alegrense e da música cantada por muitos cantores Brasil afora: “Se acaso
você chegasse”.

Em 1936, suas primeiras composições foram gravadas pela RCA Victor, abrindo
caminho para o seu reconhecimento nacional. Na sua trajetória profissional,
atuou como bedel, cargo encarregado de funções administrativas na faculdade de
Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e foi também proprietário
de bares e restaurantes da cidade.

Lupi nasceu na Ilhota, em 1916, onde aprendeu a jogar futebol desde a tenra idade
e a festejar o carnaval que tomava as ruas da pequena ilha no miolo da Cidade
Baixa, demarcada pelas águas do Riacho. O Riacho, como já referido, marcou a
fisionomia da Cidade Baixa, teve várias denominações ao longo da história:
Riachinho, Arroio, Arroio Jacareí, Jacarezinho, Arroio Dilúvio ou da Azenha. Sua
nascente está no território do município de Viamão, no Parque Saint-Hilaire, e
seu percurso atravessa a cidade de Leste a Oeste, tendo sido retificado e
canalizado entre os anos de 1940 e 1970, numa das maiores obras sanitárias da
história de Porto Alegre.
A Ilhota surge da necessidade de alterações na altura da Cidade Baixa e diante das
sucessivas enchentes do Riacho, especialmente a impactante enchente de 1941.
Durante a administração do eterno intendente José Montaury de Aguiar Leitão
(eterno por que governou de 1897 a 1924, por 27 anos) ocorreram tentativas de
minimizar as cheias, tendo sido preparada uma estrutura de escoamento para as
águas que se acumulavam nas margens do Arroio, através de um canal que
interligou seus extremos. Esse canal foi aberto eliminando a acentuada curva que
havia justo na Cidade Baixa. A obra, porém, não resolveu o problema das cheias.
Pelo contrário: com essas medidas, houve um estrangulamento de uma parte de
terra formando uma Ilhota.

Foi neste pedaço de terra margeado pelas águas revoltas e chamado de Ilhota que
a família de Lupicínio foi morar. Um lugar considerado relativamente próximo ao
centro da cidade, nos entremeios da Azenha, Cidade Baixa e Menino Deus.

Tal como a família do músico, foram também estabelecer-se neste espaço outras
famílias de migrantes do interior. Deste modo, ocupando a Ilhota desde o início
do século XX, alugando casas ou mesmo comprando seus terrenos.

O historiador negro e doutor em História José Antônio dos Santos, no seu livro
Liga da Canela Preta: A História do Negro no Futebol, revela a trajetória familiar
dos Oliveira Rodrigues. A matriarca Abigail Oliveira (nascida em 1890) era
lavadeira, ofício que exercia na manutenção da renda da família, composta por 21
filhos. O patriarca, Francisco Rodrigues – que foi porteiro da Faculdade de
Comércio durante quase toda a sua vida (havia nascido em Canguçu em 1880). O
casamento de Francisco e Abgail já fora porém em Porto Alegre, tendo lugar na
Igreja do Rosário, a irmandade dos negros, da qual era confrade.
Francisco Rodrigues era letrado como Marcílio Freitas e João Baptista Figueiredo,
mantenedores de O Exemplo, jornal da imprensa negra iniciado em 1892. Os três
compunham a direção de uma das mais importantes associações da história do
futebol gaúcho, a popularmente chamada de Liga da Canela Preta, uma
associação composta de vários times, todos com maioria negra entre seus
jogadores.

José Antônio dos Santos refere ainda em seu livro sobre a Liga que Lupicínio
contava que seu pai fazia “parte da turma de mulatinhos”, que naquela época
sonhava com a evolução das pessoas de cor, tendo resolvido formar um time de
futebol. Tanto como a educação, // tão preciosa para os membros da Irmandade
do Rosário // (como vimos no episódio 2 do Desapada POA) e para a comunidade
do jornal o Exemplo, o futebol também era tido como umas das possibilidades de
ascensão social e reconhecimento de cidadania para os negros.

Seguindo a tradição familiar, Lupicínio jogou nos principais times da Liga,


dividindo o espaço dos campos com outro ilustre morador da Ilhota e famoso
jogador negro, ponta-direita e ídolo do Sport Club Internacional: Osmar Fortes
Barcellos, o Tesourinha – alcunha advinda da relação familiar com os fundadores
do bloco de carnaval Os Tesouras, que, naqueles antãos, desfilava nas ruas da
cidade baixa. O ginásio municipal que hoje carrega o seu nome está situado
justamente no antigo território da Ilhota. Tesourinha quebrou um tabu histórico
no futebol gaúcho: foi o primeiro jogador negro a ingressar no Grêmio Foot-Ball
Porto Alegrense, em 1952.
Lupicínio e Tesourinha nasceram e cresceram na Ilhota, marcada e inundada
pelas águas do Riacho – o Arroio Dilúvio – e marcada ainda pela precariedade,
mas também no lugar dos laços de amizade e do partilhar de uma ascendência
africana comum da maioria de seus habitantes. Na canção “Ilhota” o músico
descreve o lugar, neste trecho declamado por seu filho, o Lupinho,
exclusivamente para o Desapaga POA:

“Ilhota, minha favela moderna. Onde a vida na taberna. É das


melhores que há Ilhota, arrabalde de enchente. E que nem assim
a gente. Pensa em se mudar de lá. Ilhota do casebre de madeira.
Da mulata feiticeira. Do caboclo cantador. Ilhota, a tua
simplicidade. É que dá felicidade. Para o teu pobre morador. Na
tua rua, joga-se em plena esquina. Filho teu não se amofina em
sair pro batedor. Nem mesmo a justa vais visitar seus banhados.
Pra não serem obrigados a intervir em questões de amor.”
(LUPICÍNIO RODRIGUES)

Como o Areal da Baronesa, a Ilhota também ocupava as páginas da imprensa


local, que distante da percepção cantada por Lupicínio, pautava a estigmatização,
o preconceito e a suspeição sobre seus moradores.

Não estranhe tanto o comportamento de certa imprensa elitista de hoje. Olhe


para a imprensa do positivismo castilhista do passado. Por décadas seguiram as
campanhas da imprensa querendo “extirpar”, retirar a Ilhota e o Areal da Baronesa
das vistas da cidade, encontrando eco nos gestores municipais, que aliados à
especulação imobiliária, olhavam a região circundante ao centro como uma
possibilidade de sua extensão, construindo assim novas edificações desvinculadas
da trajetória histórica da região.
O processo de gentrificação da região impulsionou a derrubada da maioria das
casas de avenidas, aliado à retificação e canalização do Riacho, em obras já nos
anos de 1960 e 1970, quando, então, para regozijo das vozes elitizadas e
carregadas de preconceitos contra os mais pobres, os citadinos da Ilhota e Arraial
foram expulsos para bem longe, para a Restinga, configurando uma espécie de
diáspora interna com a reconfiguração de outros territórios negros nas franjas da
cidade.

A geógrafa negra Daniele Vieira Machado, ao cartografar os territórios negros da


cidade de Porto Alegre entre os anos de 1800 e 1970, nos informa que os
territórios de negros da Ilhota e do Areal – ao sul do centro da cidade – se
ligavam pela antiga rua Cabo Rocha (atual rua Prof. Freitas de Castro) à Colônia
Africana, formando um grande arco negro ao redor do centro.

A Colônia Africana estava localizada onde atualmente ficam os bairros Bom Fim,
Rio Branco e Mont’Serrat, nos anos que precederam a abolição da escravidão. Na
época, ainda era um local distante da área central da cidade que não contava com
os recursos infraestruturais. Sua origem está ligada aos Campos da Várzea do
Portão, posteriormente chamado de Campos da Redenção.

Sobre a nominação Colônia Africana, o historiador Eduardo Kersting, ressalta que


o termo colônia, vinha carregado de ironia, e derivava de uma época de instalação
de uma ordem burguesa, de uma nova estruturação no mercado de trabalho –
que implicava na exclusão das classes perigosas, daí a criação de uma série de
denominações que predominavam na sociedade e que possibilitaram relegar à
marginalidade o setor negro da população.
Formada nos anos que seguiram o pós-abolição e para onde migraram parte do
contingente populacional negro, a Colônia era alvo de campanha dos periódicos
da época, tal como os demais territórios, vista como a côrte do crime e antro de
bandidos, e conhecida por suas mães de santo que tinham ali suas casas de
religião, sendo palco de perseguições policiais.

Sobre seus estudos a respeito da cartografia negra da cidade, o Desapaga POA


conversou com a geógrafa Daniele Vieira Machado:

Localizado numa esquina da avenida Esperança, atual Miguel


Tostes, o Salão do Rui era um local de encontro e sociabilidade
das famílias negras da Colônia Africana. Tinha uma escadaria
imponente com corrimão de madeira lustrada e por ali desciam
as rainhas das festas e as cantoras. Horacina Corrêa era a mais
querida. Tão elegante e afinada. Palco de bailes temáticos,
carnavais e eventos que marcaram época, foi lá que, poucos dias
antes da primavera de 1932, aconteceu o grande baile Noite da
Colônia, animado pela jazz band Espia Só, composta somente
por músicos negros. Elogiado pelo brilhantismo, o evento fora
organizado pela sociedade Orgulho da Colônia, que no nome
expressava o seu caráter afirmativo. Além da diversão, do
encontro, esses eram momentos de afirmação coletiva,
utilizados também para rechaçar esteriótipos negativos sobre a
região e seus moradores. Rebatizada de Bairro Rio Branco em
1913, a nomenclatura ‘Colônia Africana’ demorou a desaparecer.
Nos anos 1940, ela vai circular nas páginas da Revista do Globo,
com o Salão do Rui noticiado como a sociedade de pretos da
Rua Esperança.“ (DANIELE MACHADO VIEIRA)
O escritor negro Jaime Moreira nascido e criado na região no seu livro intitulada
“Colônia Africana” relata as tradições religiosas de matriz afro e os espaços onde
aconteciam suas práticas,

A Rua Cabral, com início na Rua Ramiro Barcelos, ia até a Igreja


Nossa Senhora da Piedade. […]. No centro da rua iniciava uma
pedreira de lindas pedras azuis. Ao lado da pedreira tinha uma
estrada estreita, junto à divisa da instituição que ia ao topo do
morro.

Este era relato de meu avô Abel, feito em uma madrugada


quando chegava de seu serviço. Lembro-me de tudo! Era uma
noite com uma tempestade cheia de relâmpagos e trovões! Ele
me disse: Meu neto olha lá fora. Clareava a noite, até as sete
pedras de Xangô, do Morro da Piedade. Quem conhecia bem as
sete pedras de Xangô era Mãe Chininha, mãe de Santo que
residia nas imediações. Ela que com seus filhos de santo ali fazia
suas oferendas […]. Naquele tempo, os negros se reuniam para
piqueniques junto às sete pedras de Xangô para agradecer pelo
atendimento de seus pedidos. Em certas noites do ano, da casa
do meu avô, avistavam-se as velas acesas no topo do morro. Era
uma vista linda! Quando ia amanhecendo, muitos
frequentadores dos bailes do Salão do Rui ou Salão Modelo
dirigiam-se ao Morro da Piedade para seus pedidos de amor .
Ao referir o Salão do Rui, Moreira rememora as intensas festividades e vivências
culturais ligadas aos grupos de jazz que ali tocavam e dos cantores que faziam
suas apresentações como Horacina Corrêa, nascida na Colônia Africana em 1913,
foi cantora e solista do bloco de carnaval os Turunas.O Carnaval, da “Colônia”,
como nos demais territórios referidos ao longo deste episódio foi igualmente
intenso, expresso nos seus vários blocos e tribos carnavalescas.

Nos primeiros anos do século XX, a Colônia Africana foi submetida a uma série de
transformações urbanísticas que elevaram as taxas das habitações coletivas, que
ocupavam parte de seus limites territoriais. A chegada dos imigrantes alemães e
de origem judaica coincidiu com a saída paulatina dos negros, que foram subindo
para as áreas mais afastadas e se espraiando em direção as regiões dos atuais
bairros Petrópolis e Bom Jesus.
“Adiante da Colônia Africana estava a bacia do Mont Serrat,
outro território negro. Conhecido como lugar de batuqueiro
forte, tinha rua que chegava a ter sete casas de batuque. É o que
conta uma antiga moradora em entrevista a Irene Santos,
organizadora dos clássicos Negro em Preto e Branco e Colonos e
Quilombolas. Livros que guardam valioso patrimônio oral e
imagético da Porto Alegre negra. Em 1990, aos 81 anos, mãe
Laudelina do Bará, com seu terreiro na rua Freire Alemão,
compunha a terceira geração de uma família de santo da área.
Uma bica dágua ainda guarda a lembrança do tempo das
lavadeiras, ofício das mulheres da região. A primeira rua deste
antigo território negro imortalizou no traçado urbano um
intelectual negro: Artur Rocha, dramaturgo riograndino. No pós-
abolição, Artur Rocha tinha suas peças encenadas nos salões da
Sociedade Floresta Aurora. Eram as comemorações de liberdade
festejadas no 28 de setembro, data da Lei do Ventre Livre, e no
13 de maio, Dia da Abolição da escravidão. Estas datas também
eram os limites do Areal da Baronesa. Na década de 1870, o
limite sul era a Rua dos Pretos Forros, que depois passa a se
chamar Rua 28 de Setembro, mantendo, simbolicamente, o
sentido de liberdade. A Rua 13 de Maio é a atual Avenida Getúlio
Vargas.” (DANIELE MACHADO VIEIRA)

PARTE 3
O MERCADO PÚBLICO COMO TERRITÓRIO NEGRO
Regina Parente e José Manoel Ávila
Começamos esta identificação do Mercado como um monumento para a
população negra e um território negro de Porto Alegre, entrevistando Pedro
Vargas, um dos integrantes da equipe do Desapaga POA, e também um dos
articuladores do projeto do Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre:
“…Entre 1992 e 1997, o Mercado passou por um processo de
restauração de grandes proporções, o que fez visível um
movimento contínuo e de longa duração feito por sacerdotes e
vivenciadores das religiões de matriz afro-brasileiras.
Babalorixás e yalorixás vinham seguramente há mais de 100 anos
reverenciar e apresentar os novos religiosos ao orixá Bará,
entendido como assentado no centro do Mercado Público, ali no
cruzeiro, ou seja, no cruzamento das quatro entradas da
edificação. O ritual do passeio de apresentação dos novos
religiosos que integram as reverências da tradição Bará do
Mercado, com pequenas variações, mostra que a presença negra
no centro da Capital é, pode-se dizer, ancestral. Entra-se pela
porta do Largo Glênio Peres, faz-se as saudações no cruzeiro, ao
centro do Mercado; sai-se pela porta da Avenida Júlio de
Castilhos em direção ao Guaíba para saudar às águas de Oxum;
por vezes retorna-se ao Mercado pela porta da Avenida Borges
de Medeiros e cruza-se o prédio, saindo-se pelo portão da Praça
Parobé em direção à Igreja do Rosário dos Pretos, o que é uma
forma de reviver os passos dos negros nos séculos XVIII e XIX. Já
para outro grupo social negro, dos militantes do Movimento
Negro, o Mercado é um território negro por outras razões.
Primeiro é considerado um monumento negro por ter sido
construído com mão de obra escravizada. Esta apreensão do
prédio como único monumento negro da cidade é uma forma de
protesto por não haverem monumentos para lembrar a
trajetória negra na Capital. O Mercado é entendido também
como um enclave negro por ser próximo ao cais, onde existia
um grande número de estivadores que na maoiria eram negros,
ter bares frequentados por negros e ainda por ser considerado
um lugar democrático e símbolo de lutas do período da ditadura
militar, de 1964 a 1985. Era no Mercado que ficavam núcleos da
resistência cultural como o da Livraria Coletânea. E foi ainda na
parte alta do Mercado onde se instalou a primeira sede do MNU
= Movimento Negro Unificado. É de lá, deste prédio do Mercado,
que saem todas as manifestações políticas e sociais em prol das
causas negras.” (PEDRO VARGAS)

O antigo cronista Achylles Porto Alegre coloca o Mercado como uma das
singularidades da cidade. Ele comenta que as primeiras tentativas de constituição
do Mercado Público foram na antiga Praça da Alfândega, e por ser formada por
várias tendas ao seu redor, ao ar livre, recebeu o nome primitivo de “Praça da
Quitanda”

“Pouco depois de 1841-1842, erguia-se então (…) o nosso


primeiro mercado público – construído por uma associação. As
mercadorias eram levadas em pesadas carretas de bois, que
traziam os mais diversos gêneros para o mercado.” – registrou o
cronista.

As obras de implantação foram iniciadas depois que se promoveu o deslocamento


das quitandeiras do Largo da Quitanda para a Praça do Paraíso (o que seria hoje
um local entre a Praça XV e o Largo Glênio Peres). Essa movimentação, que não
será rara durante toda a história da população negra de Porto Alegre – o
empurra-empurra dos negros e mais pobres – aconteceu para que os tabuleiros
das quitandeiras dessem espaço para a construção do novo prédio da Alfândega.
Os administradores municipais, depois do cerco dos Farroupilhas a “mui leal e
valerosa” Porto Alegre, aproveitaram os tempos de “paz” (paz entre aspas) para
dotar a cidade de novos e melhores equipamentos urbanos. É nesse contexto que
o primeiro Mercado Público e a Doca, então conhecida como Doca das Frutas,
serão construídos na desembocadura da Rua de Bragança.

Essas construções demandaram imensos movimentos de terras, pedras e aterros.


E a mão de obra que movimentou tudo isso foi a mão de obra negra.

Sobre o deslocamento das quitandeiras e os constantes desalojamentos de negros


em Porto Alegre, há diversas referências nos cronistas antigos da cidade e
também o trabalho de arqueologia histórica de Marcelo dos Santos Lazarotti, que
nos apresenta a seguinte situação, quando da construção do Mercado, em
meados dos século XIX:
“O deslocamento compulsório das quitandeiras e do comércio
de gêneros alimentícios para a Praça do Mercado não foi
tranquilo, originando de imediato, e mesmo antes da
inauguração do mesmo, reações contrárias. Como foi o caso dos
proprietários dos açougues da cidade, os quais foram os
primeiros a expressar seu descontentamento, ao questionarem
a imposição para que o comércio de carne verde fosse feito
apenas nas dependências do mercado público. (…)
Provavelmente, nem todos os comerciantes tinham condições
de adquirir um “quarto” no prédio do mercado ou um local na
praça para estabelecer seu negócio. Muitos destes comerciantes
nem ao menos tinham um local fixo para comercializar seus
produtos, vivendo de um comércio ambulante, expondo seus
produtos em tabuleiros ou mesmo sobre simples esteiras que
instalavam nos largos e praias da cidade. Este pequeno
comércio, do qual muitos ex-escravos alforriados participavam e
viviam, foi o maior prejudicado com a proibição da venda de
gêneros fora da Praça do Mercado.” (LAZAROTTI)

Em sua dissertação de mestrado com o título Arqueologia da margem: Porto


Alegre: a formação de uma cidade portuária (do século XVIII a meados do século
XIX), Lazarotti também demonstra que a transferência das quitandeiras da
Alfândega para a Praça do Mercado também não foi tranquila, considerando-se
que já havia ocorrido uma primeira mudança de endereço para elas na década de
1820.
O segundo prédio do Mercado Público, cuja construção iniciou-se em 1864 para
ser concluída em 1869, teve como finalidade principal a concentração da
atividade comercial num único ponto. Este prédio localizava-se na área contígua
ao antigo, ao primeiro Mercado, também na Praça do Paraíso. Trabalhadores
escravizados dedicaram-se à construção e dessa ação decorre a demarção de um
dos territórios negros mais marcantemente ligado à religiosiodade de matriz
africana.

Numa referência aos mercados em África, que são locais que transcendem as
práticas comerciais, constituindo-se como espaços de sociabilidade e de
referência política local, os trabalhadores escravizados teriam feito, ainda
durante a construção do segundo andar do Mercado – em Porto Alegre – um
“assentamento” ao orixá responsável pela fartura, pelas trocas e pela conexão
entre o mundo dos homens e o mundo dos orixás.

Este orixá é Exú, ou na tradição do Batuque, que prevaleceu no sul do Brasil, o


Bará.

O Bará fora então introduzido por meio do enterramento de pedras sagradas e


objetos representativos do orixá no ponto central da edificação, local que forma
uma encruzilhada, um cruzeiro, um cruzamento de caminhos – o que não poderia
ser mais oportuno, pois que Bará é o senhor dos caminhos, responsável pelo
início de todas as ações e empreendimentos.

Essa é uma história que permanece especialmente por conta das tradições
religiosas que celebram o local, tranformando o Mercado, para além de uma
referência comercial, num espaço de manutenção das práticas religiosas, das
tradições culturais, da identidade das mulheres e homens negros, então
escravizados, que viveram a ajudaram a construir a Porto Alegre que conhecemos
hoje.
Mais recentemente, na virada do século XIX para o século XX, somou-se à
tradição do assentamento ao Bará a história de que tal feito teria sido obra de
Custódio Joaquim de Almeida: o Príncipe Custódio, nome adotado por Osuanlele
Okizi Erupê, que era tido como um príncipe vindo do Benin na segunda metade
do século XIX, depois da ocupação pelos britânicos daquela região no continente
africano.

Instalado em Porto Alegre, o Príncipe Custódio se transformou numa referência


religiosa para a comunidade negra da cidade. Sua influência é tal que é
reconhecido mesmo pela elite política da Primeira República riograndense. Sua
figura se confunde com a tradição religiosa do Batuque no Rio Grande do Sul, e
sua história ainda está envolta por muitos mistérios.

Recentemente, os historiadores Jovani de Souza Scherer e Rodrigo de Azevedo


Weimer publicaram o livro No Refluxo dos Retornados, no qual apresentam novas
evidências sobre a vida e as ações do Príncipe Custódio.

Para a “Tradição do Bará do Mercado”, como já é conhecida a importância


religiosa do Mercado Público para os praticantes das religiões de matriz africana
da cidade e do estado, importa que essas duas vertentes da sua origem se
confundem e evidenciam também o Mercado Público como um ponto de
referência capital para a população negra da cidade, desde a sua construção até
os dias atuais.

FECHAMENTO
Este foi o oitavo episódio do DESAPAGA POA.
Esta primeira série terá 10 episódios que ficam disponíveis nos principais
agregadores de podcast, sendo transmitidos todos os sábados, pela rádio FM
Cultura (107.7), apoiadora do projeto.

A pesquisa, os textos e a elaboração dos roteiros da série sobre a PRESENÇA


NEGRA na história de Porto Alegre são de Pedro Vargas, Jane Mattos, Manoel José
Ávila, Regina Parente e Orson Soares.

A equipe de locução conta com Clara Falcão, Leila Mattos, Lucas Samuel e Carlos
Raimundo Pereira.

Os áudios e a trilha sonora tem a direção e criação de Bebeto Alves, com


participação do professor de canto e dança guarani Arlindo Kuarai.

A comunicação é do Marketing da Ju. A edição é minha e eu sou o Vitor Ortiz.

O DESAPAGA POA tem o apoio também do Programa EcoViamão, do Instituto


Federal do RS, Campus Viamão.

Toda a produção do projeto é realizada via on line, com trabalho em home office e
reuniões pela web, diante da necessidade de cuidados neste contexto de
pandemia.

Em breve estaremos aqui outra vez para mais um episódio do canal DESAPAGA
POA.

BIBLIOGRAFIA
Trechos de interpretação de Horacina Correa utilizados no
áudio do podcast:
Música: Alto da Bronze/ Esta, sim, é que é/1938
https://www.youtube.com/watch?v=jZrSlkNRMZs
(https://www.youtube.com/watch?v=jZrSlkNRMZs)
Música: De Babado/1954, de Noel Rosa e João Mina, interpretação de Horacina
https://www.youtube.com/watch?
Correa & Orquestra Léo Peracchi
v=hfvV3ooBJoM (https://www.youtube.com/watch?v=hfvV3ooBJoM)
ABRUNHOSA, Josiane.Bambas da Orgia: Um Estudo sobre o Carnaval de Rua de
Porto Alegre, Seus Carnavalescos e os Territórios Negros. Dissertação
(Mestradoem Antropologia). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de
Pós-graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1993.
FRANCO, Sérgio da Costa.Porto Alegre: Guia Histórico de Porto Alegre. Porto
Alegre: Editora Universidade, UFGRS, 1988.
GERMANO, Iris Graciela. Rio Grande do Sul, Brasil e Etiópia: os negros e o
carnaval de Porto Alegre nas décadas de 1930 e 40. 275 f. Dissertação (Mestrado
em História) – Programa de Pós-graduação em História, Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
1999
MATTOS, Jane Rocha de. Que arraial que nada, aquilo lá é um areal: O Areal da
Baronesa: imaginário e história (1879-1921). 158 f. Dissertação (Mestrado em
História do Brasil) – Programa de Pós-graduação em História, Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre, 2000.
KERSTING, Eduardo e de Oliveira. Negros e a modernidade urbana em Porto
Alegre: a Colônia Africana (1890 – 1920). 221 f. Dissertação (Mestrado em
História) – Programa de Pós-graduação em História, Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
1998.
OLIVEIRA, Márcia Ramos de. Lupicínio Rodrigues: A cidade, a música, os
amigos.Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-graduação em
História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre,1995.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. (Coord.). Memória Porto Alegre, Espaços e
Vivências.Porto Alegre: Ed. da UFRGS, Prefeitura Municipal de Porto Alegre,
1991.
PORTO ALEGRE, Achylles.História Popular de Porto Alegre. Porto Alegre,
EU/Porto Alegre,1984.
ROSA, Marcus Vinicius de Freitas.Além da Invisibilidade: História Social do
racismo em Porto Alegre durante o pós- abolição. Porto Alegre: EST Edições,
2019.
SCHERER, Jovani de Souza e WEIMER, Rodrigo de Azevedo. No Refluxo dos
Retornados. Editado pelo Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul –
APERS, 2021.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. 1820-1821.São Paulo:
EDUSP, 1974.
SANTOS, José Antonio dos.Liga da Canela Preta: A História do Negro no
Futebol. Porto Alegre: Editora Diadorim, 2018.
SILVA, Jayme Moreira da. Colônia Africana. Porto Alegre: do autor, 2005.
VIEIRA, Daniele Machado. Territórios Negros em Porto Alegre/RS: Geografia
Histórica da presença negra no espaço urbano. Dissertação (Mestrado em
Geografia) – Programa de PósGraduação em Geografia, Instituto de Geociências,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017.

RELACIONADAS

Desapaga POA (https://www.matinaljornalismo.com.br/categoria/matinal/desapagapoa/)

(https://
www.m
atinaljor
nalismo
.com.br
/matinal
/desap Desapaga POA
agapoa (https://www.matinaljornalismo.com.br/categoria/matinal/desapagapoa/)
A Questão Negra em Porto Alegre: o Fio da História
Questão eg a e o to eg e: o o da stó a
/a- (https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/desapagapoa/a-
questa
o-
questao-negra-em-porto-alegre-o-fio-da-historia/)
negra- 22 setembro 2021 às 16h59
em-
porto-
alegre-
o-fio-
da-
historia
/)
Desapaga POA (https://www.matinaljornalismo.com.br/categoria/matinal/desapagapoa/)
Desapaga POA (https://www.matinaljornalismo.com.br/categoria/matinal/desapagapoa/)
Músicas utilizadas na trilha sonora do episódio 10
(https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/desapagapoa/musicas-
utilizadas-na-trilha-sonora-do-episodio-10/)
01 julho 2021 às 15h54
Desapaga POA (https://www.matinaljornalismo.com.br/categoria/matinal/desapagapoa/)
(https://
www.m
atinaljor
nalismo Desapaga POA
.com.br (https://www.matinaljornalismo.com.br/categoria/matinal/desapagapoa/)
/matinal
/desap A história do Carnaval de Porto Alegre
agapoa (https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/desapagapoa/a-
/a- historia-do-carnaval-de-porto-alegre/)
historia 01 julho 2021 às 15h18
-do-
carnava
l-de-
porto-
alegre/)
Desapaga POA (https://www.matinaljornalismo.com.br/categoria/matinal/desapagapoa/)
(
h
t
t
p
s
:
/
/
w
w
w
.
m
a
t
i
n
a
l
j
o
r
n
a
l
i
s
m
o
.
c
o
m
.
b
r
/
m
a
t
i
n
a
l
/
d
e
s
a
p
a
g
a
p
o
a Desapaga POA (https://www.matinaljornalismo.com.br/categoria/matinal/desapagapoa/)
/
m Museu Julio de Castilhos expõe arte ancestral Mbyá-Guarani
u (https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/desapagapoa/museu-
s julio-de-castilhos-expoe-arte-ancestral-mbya-guarani/)
e 24 junho 2021 às 15h38
u
-
j
u
l
i
o
-
d
e
-
c
a
s
t
i
l
h
o
s
-
e
x
p
o
e
-
a
r
t
e
-
a
n
c
e
s
t
r
a
l
-
m
b
y
a
-
g
u
a
r
a
n
i
/
)

Você também pode gostar