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O DEUS MERCADO

Francisco Marshal

Os antigos inventaram muitas divindades, mas nenhuma tão bizarra como o totem dos liberais,
o deus Mercado, venerado como mito, a crença de uma religião corporativa, com ambição de
hegemonia. Imaginem cultuar o poder mágico de um sistema de trocas, e dar a este deus a
autoridade máxima, como fonte da realidade e critério do mundo! Mas se há um deus
Mercado, quais sua origem e seu papel em um sistema de crenças, e qual religião é favorecida
por essa mitologia? Como, ademais, evidenciar o vazio inato deste santo de pau oco?

A fonte mítica do deus Mercado está em Adam Smith (1723- 1790), que armou o ninho do
liberalismo e ali formulou a tese mágica da mão invisível, um mito que se alastrou como
ideologia desde sua origem. O patrono da ideologia liberal usou desta imagem para tentar
explicar como o capital permaneceria dentro da nação quando se abrissem as fronteiras. Livre
comércio (free trade) foi bandeira da primeira era do liberalismo, ao final do século XVIII e
primeira metade do XIX; este lema era a máscara formal da pirataria sem limites então pra-
ticada pela Inglaterra. Smith, na obra Teoria dos Sentimentos Morais (1765) e em A Riqueza
das Nações (1776), presumiu que há um comportamento contraditório que faria com que os
burgueses garantissem o interesse nacional e guardassem sua riqueza em solo pátrio, mesmo
com a tentação de emigrar. O liberalismo tornou-se desde a origem a ideologia do capital e
também de seu primeiro guardião, o imperialismo britânico; esta guarda, todavia, era
realizada pelo Estado-nação, que aliás também garante a propriedade privada. Eis as questões
contraditórias tratadas por Adam Smith com pensamento mágico. Posteriormente, o mito da
mão invisível tramou outra quimera do liberalismo: a ilusória tese de que cada indivíduo,
buscando apenas seus próprios interesses, colaboraria para o bem comum.

Caberia ao filósofo nascido em Trier, em 1818, demonstrar que o capital visa acima de tudo ao
próprio engrandecimento, e que o faz diante da exploração da natureza e do trabalho. Marx
foi o novo paradigma das teorias de economia política e o antídoto humanista para aquela
mitologia interesseira. O desenvolvimento do próprio liberalismo jogou por terra a fantasia
teológica de Smith, especialmente no estágio neoliberal, desde os anos 1990, quando se
assistiu à absoluta transnacionalização do capital. Ademais, o mito da mão invisível, teologia
primordial do liberalismo, transmitiu-se como base de um sistema de crenças incapaz de
explicar racionalmente as realidades que pretende dominar. É o caso, similar, do mito de que
os liberais tratam de economia com a austeridade necessária. Mentira. Tratam só dos
interesses do capital, operados por meio de cavalos, mitos e monstros, e usurpam a palavra
economia como o fazem com a palavra liberdade. Pura ideologia, impura teoria. Um dia
filósofos depuseram o mito, como agora o voto popular o faz. E algo maior que deus Mercado
ora supera essa farsa egoísta, indiferente à miséria, ao trabalho e à natureza: a sociedade
humanizada e a soberania política. Com verdadeira economia e muita liberdade.

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