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responde-a-resenha-de-o-enigma-vazio.html

Segunda, 19 de Abril de 2021

Diretor-presidente: Omar Peres

Affonso Romano de Sant'Anna responde à resenha de 'O enigma vazio'

 Publicado 15, Dec, 2008,14:12

JB Online

RIO - O poeta e jornalista Affonso Romano de Sant'Anna responde à resenha publicada na


última edição do Caderno Idéias & Livros, de autoria da artista plástica Mônica Mansur, sobre
seu livro O enigma vazio:

Leia a resenha da artista plástica Monica Mansur

Leia a entrevista com Affonso Romano de Sant'Anna

"Porque estou fazendo a crítica do que chamo 'irresponsabilidade estética' e a 'estética da


irresponsabilidade' e porque acredito nas boas intenções dos meus interlocutores, venho
debatendo com as pessoas, que desde Desconstruir Duchamp ( Vieira e Lent, 2003) se
manifestaram sobre as análises que tenho feito sobre a arte oficial do nosso tempo. É o caso
agora do texto da artista Mônica Mansur publicado no JB, caderno Idéias(13.12.08) ao lado da
entrevista que dei àquele jornal.

Fui me informar melhor sobre a artista e apreciei diversos trabalhos seus nos quais
"refotografa", por exemplo, radiografias médicas dando-lhes um sentido artístico. Assim
trabalha com imagens de cérebro, de estômagos e intestinos, como aliás, outros artistas têm
feito. Percebo que é um trabalho sério e competente. E colocando-me, em princípio, do seu
lado, enquanto criadora, diria que o que estou fazendo analiticamente é, de algum modo,
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parecido com o que ela faz. Estou mexendo com as vísceras da arte oficial de nosso tempo. E
há que ter estômago. E olhos, para ver, desver e rever.

Vou pinçar, entre tantos e sugestivos tópicos que Mônica aborda, às vezes de maneira não
muito clara, os que me parecem mais relevantes.

1.Ela abre o artigo com uma definição discutível e precária do que seja 'contemporâneo'.
Primeiro, esclareçamos que o termo foi criado pelos leiloeiros da Christie's a fim de
estabelecer um escaninho para certas obras e autores surgidos entre 1960 e 1980. O termo,
portanto, tem origem comercial, nenhum rigor teórico. Depois, diz ela- 'por 'contemporâneo'
compreende-se ser, não estar, pois não é possível fugir da contemporaneidade se estamos
vivos'. Vários equívocos numa só frase. Se para ser contemporâneo basta estar vivo, então
todos os vivos foram ou são contemporâneos, logo não há peculiaridade alguma em ser
contemporâneo. Por outro lado, a arte na qual centrei minha análise sendo de origem
duchampiana, não tem qualquer compromisso ontológico, com o 'ser' e sim com o 'estar', com
a circunstância. É 'situacionista' por excelência, repousa sobre o 'deslocamento' ou metonímia.

Naquela mesma frase outra falácia. Não basta os indivíduos estarem vivos para serem
'contemporâneos' uns dos outros. Um índio no Xingu não é contemporâneo de um filósofo da
USP. Eles têm apenas simultaneidade cronológica. Eu, por exemplo, estou no século 21, além
da 'modernidade' e da 'pós-modernidade' e a maioria dos meus críticos continuam em 1917,
com um pensamento datado.

Outra coisa, Mônica. Você que defende o 'ser' no lugar do 'estar', mais adiante se contradiz
afirmando: 'e não somos, estamos contemporâneos'.

2.Suas observações sobre Duchamp, me desculpe, são incorretas e repetem a vulgata sobre
ele. As três melhores biografias sobre ele, feitas por gente que o admira, como Jean Clair,
Judith Houssez e Calvin Tonkins desmentem as afirmações que você faz. Não estou inventando
nada. Estou dando dados concretos. Por isto digo: os duchampianos incorporando-se à
manada de seus seguidores, são obviamente anti-duchampianos e eu acabo correndo risco de
estar sendo mais duchampiano que eles, pois a melhor homenagem que podemos prestar aos
contestadores de ontem é contestá-los hoje; não pelo prazer solitário da contestação, mas
para promover a revisão crítica do saber.

Insisto: Duchamp é um signo complexo, não pode ser interpretado linearmente como tem sido
feito até agora.

3. Você diz que a idéia duchampiana de que 'tudo é arte' ou a noção de 'não-parâmetro' é uma
'fábula', uma espécie de 'lenda urbana'. Não sei de onde tirou isto. Reveja as páginas 235, 218
e 59 de meu livro. Possivelmente você é menos duchampiana do que pensa e se assim for,
melhor para você. Tem muita gente que receia descobrir alguma falha no pensamento dele (e
as falhas existem), porque seria o mesmo que descobrir que a Virgem Maria não era virgem
nem vai haver juízo final. Sobre a virgindade de Maria não posso adiantar nada, mas lhe
garanto que não vai haver juízo final e que Duchamp não era um pensador e sim um
humorista, às vezes, cínico.
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Fora isto, sua afirmação bate de frente com os manuais de história da arte e até com um dos
maiores conhecedores de Duchamp. Jean Clair, que fez, em 1977, a primeira grande
retrospectiva dele no Beaubourg diz, dando vários dados,que Duchamp foi quem abriu a 'caixa
de pandora' que desorienta ainda os menos estudiosos e informados.

Como querer negar o fascínio de Duchamp sobre o século 20? Eu não sou fascinado por ele,
senão fascinado pelo fascínio que ele exerceu, e tento explicar. Jean Clair não o comparou
(erradamente) a Leonardo Da Vinci? A Enciclopédia de estética de Oxford não
diz( equivocadamente) que ele destruiu Kant e é tão importante quanto Copérnico? Como
dizer que ele é mera 'fábula' quando ainda outro dia elegeram dentro desta fábula aquele
'Urinol' como a obra icônica do século 20?

Pois o que estou fazendo é analisar a 'fábula', o 'mito' Duchamp, restituindo Duchamp a
Duchamp a despeito de Duchamp que apagava espertamente as pistas e dos duchampianos
que caíram em suas armadilhas.

4. Sobre a questão da 'insatisfação' diante dos 'paradigmas' tenho razões concretas para estar
mais ao lado de Thomas Khun que era cientista, epistemólogo e historiador da ciência, do que
do seu lado Mônica. Khun, eu e outros estamos lidando não apenas com a arte, mas com
epistemologia. E no meu caso, uma operação transdisciplinar, de óbvia originalidade, a partir
de um terreno que conheço bem- a linguagem. A arte conceitual invadiu irresponsavelmente
minha área e não posso deixar isto impune. De resto, segundo seu raciocínio (que peca diante
da lógica), se os paradigmas não mudam quando há insatisfação então eles mudam quando há
satisfação? Quer dizer que as revoluções foram feita por pessoas que estava satisfeitíssimas
com a situação?

5.Detalhe: aquela frase do Da Vinci, 'arte é coisa mental', é das mais mal compreendidas na
história da arte. Trato disto no livro.

6. Ao discordar do que chamo de 'estética da subtração' que acabou dando no 'branco sobre o
branco' do Malevitch ou na atual 'bienal do vazio' você faz uma referência ao 'ornamento',
esse efeito que o autoritário e equivocado Adolfo Loos e outros queriam banir da arquitetura e
da cultura, numa posição não apenas fascista, mas totalmente equivocada antropológica,
sociológica, psicanalítica e esteticamente. Por isto, fiz questão de colocar no 'suplemento' do
livro aquele ensaio em que valorizo a obra de dois brasileiros que trataram deste tema -
Marcos Moraes de Sá (Ornamento e modernismo) e Gilberto Paim(A beleza sob suspeita).

6. Muito otimista e generosa você achar que o artista é necessariamente um 'pensador'.


Pensamento teórico é uma especialidade. A maioria não pensa, é pensada pela linguagem
dominante. Essa pretensão está patente em entrevistas e textos de certos artistas
'contemporâneos'. Dou-lhe um exemplo: o famoso texto de Joseph Kosut - Art after
philosophy - só engana os amadores. Iso vale também para John Cage e Composition as
process. E o texto de Duchamp O ato criativo chega a ser lamentável. O que dizer então dos
repetidores espalhados por aí?

7.Você diz, Mônica: 'não existe má arte, existe 'arte' -arte ruim não é arte'. Cuidado, isto pode
parecer autoritarismo ou reducionismo, como você alerta. É igual à curadoria da fracassada
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bienal de São Paulo dizendo para os pichadores: 'minha transgressão é melhor que a sua'.
Lamento informar que assim como há pessoas deslumbrantes, outras bonitas, outras quase
bonitas, outras feias, algumas horríveis; assim como há frutas doces, azedas, amargas; há arte
medíocre, arte boa, arte genial e muita 'arte' que chamo de 'placebo' e 'in-significancia'. E que
Duchamp de novo errou ao perguntar. 'Pode alguém fazer obras que não sejam obras de arte?'
Pode.

Haveria muitas outras coisas a assinalar, mas apenas destaco mais um mal-entendido. Você
queria que eu publicasse os desenhos que o pintor americano me proibiu de publicar? A
editora não quis correr este risco porque ele ia processá-la, como processou a pobre artista
cambojana que deu um beijo num de seus quadros no ano passado. Por isto, deixei um vazio
nas páginas 155,156. Se isto confirma minhas teorias sobre o 'vazio', a culpa não é minha. Mas
para todos os leitores que se interessam eu envio pelo correio a reprodução dessas 'in-
significâncias' pois é bom que o leitor veja, para constatar até onde vão as alucinações de
alguns críticos tomados da 'sindrome da marmota', ou seja, quando se excitam diante do
branco e do vazio. Como digo, pessoas notáveis cometem notáveis equívocos. Posso estar
cometendo alguns, mas não esses que você, Mônica, apontou.

Vou aproveitar e lhe mandar por email as obras censuradas pelo próprio Cy Twombly. E saiba
que também quase não pude publicar reproduçôes de Duchamp, porque seus representantes
queriam saber se eu ia falar 'bem' ou 'mal' dele. Imagine, logo ele que dessacralizou tudo e
todos. Como se vê, fizeram uma religião em torno dele. Ele percebeu isto ainda em vida, e
gostou, e aplaudiu, e está à direita de Deus padre, se é que não virou ele mesmo o próprio
deus (para alguns)."

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