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Machado de Assis - Um Escritor Revolucionário

Três tesouros perdidos (1858)


O Sr. F... desmaiou.
Quando deu acordo de si estava louco... louco varrido!
Hoje, quando alguém o visita, diz ele com um tom lastimoso:
— Perdi três tesouros a um tempo: uma mulher sem igual, um amigo a toda prova, e uma linda carteira
cheia de encantadoras notas... que bem podiam aquecer-me as algibeiras!...
Neste último ponto, o doido tem razão, e parece ser um doido com juízo.

O realismo em Machado de Assis foi desde o início esse retorno, perturbador, sobre o psiquismo,
dos atos antes vividos pela pessoa, um retorno que atinge o Narcisismo. Futuramente denominado
por Freud/Lacan efeito après-coup, ou “Inconsciente”, afinal, foi de modo inconsciente que o Sr.
F... perdeu três tesouros, “o doido tem razão, e parece ser um doido com juízo”, foi preciso
perder para adquirir o juízo da perda.
Em Algumas reflexões sobre o Ego (1951) Jacques Lacan escreveu:
A linguagem possui, por assim dizer, um efeito retrospectivo na determinação do que, em última instância,
será considerado como real. O problema do revolucionário de hoje, que não reconhece seus ideais nos
resultados dos seus atos.

“Será considerado como real” o “efeito retrospectivo” – o real resulta do efeito invertido. Em
geral, provocando surpresa.
Freud aos dezesseis anos de idade escreveu a seu amigo colegial, Emil Fluss:
Te direi a verdade sem dissimulação, mas somente a você, e espero que nenhum olhar alheio veja minha
carta. Mas, mesmo assim, se ocorrer e você não estiver em condições de impedi-lo [impedir outras pessoas
de vir a lê-la], não me escreva nada sobre isso, porque de outro modo se terminaria a verdade e você receberia
unicamente frases polidas, das quais não poderia tirar nada.

Significa dizer: é necessário ocultar os segredos. Ou seja, a castração está em não poder ser claro
e franco. A necessidade de ocultar está no fundamento do Narcisismo criando o dilema humano:
em público não se pode ser como se é em privado, e a revelação do segredo oculto produz um
retorno imprevisto que pode perturbar psicologicamente.
Enquanto Machado, desde o início, detinha essa concepção do Narcisismo, ficando atento para
não ser pego de surpresa, Freud, mesmo que soubesse, ao que parece, esse saber não lhe foi
suficiente para evitar ser surpreendido. Confissão que faz em 1914, quando publica o conceito
fundamental que faltava à psicanálise.
“Essa parte da alocação da libido [Narcísica] ficou inicialmente oculta para a nossa pesquisa, cujo ponto
de partida eram os sintomas neuróticos. Notamos apenas as emanações dessa libido, os investimentos de
objeto que podem ser avançados e novamente recuados” (O Narcisismo, 1914)

A confissão de Freud: o “ponto de partida eram os sintomas neuróticos”. Freud era médico,
seu Narcisismo residia em ser reconhecido como cientista e não como escritor. Daí que “essa
parte da alocação da libido [Narcísica] ficou inicialmente oculta para a nossa pesquisa”. É
comum a pessoa não ver seu próprio Narcisismo no ato de apresentar um trabalho.
A justificativa dada por Freud pelo esquecimento do Narcisismo foi a de ter focado demais no
objeto, não teria percebido que seus escritos teóricos eram também uma forma de se exibir como
escritor. O que confirma a frase de Machado: “a vaidade é um princípio de corrupção” (Dom
Casmurro, 1899), um princípio de corrupção contra a própria pessoa.
Em 1862, aos vinte e três anos de idade, Machado escreve a Quintino, dizendo:

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Tenho o teatro por coisa muito séria, e as minhas forças por coisa muito insuficiente; penso que as
qualidades necessárias ao autor dramático desenvolvem-se e apuram-se com o tempo e o trabalho;
cuido que é melhor tatear para achar; é o que procurei e procuro fazer.
Caminhar destes simples grupos de cenas — à comédia de maior alcance, onde o estudo dos caracteres seja
consciencioso e acurado, onde a observação da sociedade se case ao conhecimento prático das condições
do gênero — eis uma ambição própria de ânimo juvenil, e que eu tenho a imodéstia de confessar.
E, tão certo estou da magnitude da conquista, que me não dissimulo o longo estádio que há percorrer
para alcançá-la. E mais. Tão difícil me parece este gênero literário, que, sob as dificuldades aparentes, se
me afigura que outras haverá menos superáveis e tão sutis, que ainda as não posso ver.
Até onde vai a ilusão dos meus desejos? Confio demasiado na minha perseverança? Eis o que espero
saber de ti.

Machado estabelece seu projeto literário: “O estudo dos caracteres seja consciencioso e acurado”.
O projeto era o estudo dos caracteres psicológicos por meio dos personagens. “Eis uma ambição
própria de ânimo juvenil, e que eu tenho a imodéstia de confessar”.
Machado estava com vinte e três anos, e desde antes já sabia o que iria fazer de sua vida.
Vejamos três cartas de Freud:
Por agora, a novidade de me ter amadurecido, principalmente sob a atual influência de Brentano, a decisão
de obter o meu doutorado de filosofia com base na filosofia e na zoologia; outras tratativas estão em
andamento para promover o meu ingresso na Faculdade de Filosofia, ou no próximo semestre, ou no
próximo ano (a Eduardo Silberstein, 7 de março de 1875)

Tenho de corrigir a minha informação de que pretendia matricular-me também na Faculdade de Filosofia,
lembrando que o meu plano original era o de fazer duas faculdades ao mesmo tempo e realizar em ambas
os meus exames de doutorado dentro de tres a quatro anos. 1sso, porém, é impossível, pelo menos no que
diz respeito ao primeiro caso; quanto ao último, terei de obter informações mais exatas. Seja como for, gozo
da liberdade de participar das aulas de zoologia, que é a minha matéria principal, na Faculdade de Filosofia,
e das aulas de filosofia onde bern entender, o que deverá acontecer também no próximo semestre.
Naturalmente, permanece a perspectiva de uma prova de doutorado em filosofia, e nesse sentido vou solicitar
o conselho de Brentano, o que farei amanhã em companhia de Paneth, que está participando desse plano (a
Eduardo Silberstein, 13 de março de 1875).

Em 1886, quando dei início à minha prática, tinha em mente apenas um período experimental de dois
meses em Viena; caso não desse certo, minha intenção era ir para a América e tentar um tipo de vida
que pudesse em seguida propor à minha noiva então em Hamburgo. O fato é que nenhum de nós tinha nada,
ou melhor, eu tinha uma família grande e arruinada e ela uma pequena herança, cerca de 3.000 florins que
lhe deixara seu tio Jacob, outrora professor de filologia clássica em Bonn. Mas infelizmente tudo correu tão
bem em Viena que decidi ficar, e no outono do mesmo ano nos casamos. Agora, vinte e três anos depois,
eis que enfim vou à América, decerto não para ganhar dinheiro, mas atendendo a um honroso convite!
Teremos muito o que falar dessa viagem e das várias conseqüências dela para nossa causa (a Jung, em 9 de
março de 1909).

Freud não tinha previamente pensado qual rumo tomaria na vida. Aos dezenove anos, poderia ter
ido para a filosofia. Aos trinta anos, tentar a vida na América. Aos cinquenta e três anos, em 1909,
estava bem próximo de publicar o conceito central que move o ser humano: o Narcisismo.
Narcisismo envolve ter sucesso na vida.
Vejamos as respostas de Quintino à carta de Machado:
É moço, e foste dotado pela Providência com um belo talento. Ora, o talento é uma arma divina que
Deus concede aos homens para que estes a empreguem no melhor serviço dos seus semelhantes. A idéia
é uma força. Inoculá-la no seio das massas é inocular-lhe o sangue puro da regeneração moral. O homem
que se civiliza, cristianiza-se. Quem se ilustra, edifica-se. Porque a luz que nos esclarece a razão é a que
nos alumiam a consciência. Quem aspira a ser grande, não pode deixar de aspirar a ser bom. A virtude é
a primeira grandeza deste mundo. O grande homem é o homem de bem. Repito, pois, nessa obra de cultivo
literário há uma obra de edificação moral.

Quintino reconhece a função geral do escritor: “A idéia é uma força. Inoculá-la no seio das
massas é inocular-lhe o sangue puro”. Inocular a ideia como se fosse sangue.
A minha franqueza e a lealdade que devo à estima que me confessas obrigam-me a dizer-te em público o
que já te disse em particular. As tuas duas comédias, modeladas ao gosto dos provérbios franceses, não

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revelam nada mais do que a maravilhosa aptidão do teu espírito, a profusa riqueza do teu estilo. Não
inspiram nada mais do que simpatia e consideração por um talento que se amaneira a todas as formas da
concepção.
Como lhes falta a idéia, falta-lhes a base. São belas, porque são bem escritas. São valiosas, como artefatos
literários, mas até onde a minha vaidosa presunção crítica pode ser tolerada, devo declarar-te que elas são
frias e insensíveis, como todo o sujeito sem alma.
Debaixo deste ponto de vista, e respondendo a uma interrogação direta que me diriges, devo dizer-te que
havia mais perigo em apresentá-las ao público sobre a rampa da cena do que há em oferecê-las à leitura
calma e refletida. O que no teatro podia servir de obstáculo à apreciação da tua obra, favorece-a no gabinete.
As tuas comédias são para serem lidas e não representadas. Como elas são um brinco de espírito podem
distrair o espírito. Como não têm coração não podem pretender sensibilizar a ninguém. Tu mesmo assim
as consideras, e reconhecer isso é dar prova de bom critério consigo mesmo, qualidade rara de
encontrar-se entre os autores.

Quintino percebe as qualidades de um analista: “Frias e insensíveis, como todo o sujeito sem
alma”. Análise fria, sem envolvimento emocional e sem julgamento moral. “Tu mesmo assim as
consideras”, diz que Machado pensa do mesmo modo, “e reconhecer isso é dar prova de bom
critério consigo mesmo”, e Machado reconhece em si mesmo essa qualidade analítica, “qualidade
rara de encontrar-se entre os autores”.
Quando Machado enviou a carta a Quintino, tinha uma intenção, “obrigam-me a dizer-te em
público o que já te disse em particular”, a intenção de que Quintino deixasse escrito o que havia
verbalizado, e então publica a carta em que o amigo o elogia!
Vinte anos depois, em O alienista (1882), Machado dirá:
Esta conclusão tão absoluta não seria por isso mesmo errônea, e não vinha, portanto, destruir o largo e
majestoso edifício da nova doutrina psicológica?
- A questão é científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em
mim mesmo a teoria e a prática.

Afirma ter criado uma “nova doutrina psicológica”, e que “reúno em mim mesmo a teoria e a
prática”, o autor tem nele a teoria e a prática da nova doutrina psicológica que cria.
Passados três anos, em O cônego ou a metafísica do estilo (1885):
Nesse dia - cuido que por volta de 2222 - o paradoxo despirá as asas para vestir a japona de uma verdade
comum. Então esta página merecerá, mais que favor, apoteose. Hão de traduzi-la em todas as línguas.
As academias e institutos farão dela um pequeno livro, para uso dos séculos, papel de bronze, corte
dourado, letras de opala embutidas, e capa de prata fosca. Os governos decretarão que ela seja ensinada
nos ginásios e liceus. As filosofias queimarão todas as doutrinas anteriores, ainda as mais definitivas, e
abraçarão esta psicologia nova, única verdadeira, e tudo estará acabado. Até lá passarei por tonto, como
se vai ver.

Informa ao leitor da criação de uma “psicologia nova”, e que ele passará por tonto, até vir a ser
descoberto! Em 13 de janeiro de 1889, contrapondo o auto-hipnotismo de Gassner, escreve “gastei
onze dias metido no estudo desta ciência nova”. O texto ironiza o hipnotismo como pretensão de
ciência nova. Nesse mesmo ano Freud traduziu um artigo de Bernheim sobre o hipnotismo.
Machado conhecia desde Os imortais (1859) a ciência hipnótica da palavra.
Em Escrivão Coimbra (1906), aos sessenta e sete anos de idade:
Ia a sair também, quando duas figuras lhe passaram pelo cérebro: a sorte grande, naturalmente, e a escola.
Atrás delas veio uma sugestão, depois um cálculo. Este cálculo, por mais que digam do escrivão que ele
amava o dinheiro (e amava), foi desinteressado; era dar de si muita coisa, contribuir para elevar mais e mais
a escola, que era também obra sua. Prometeu dar cem contos de réis para o ensino, para a escola, Escola
de S. Bernardo, se tirasse a sorte grande. Não fez a promessa nominalmente, mas por estas palavras sem
sobrescrito, e todavia sinceras: “Prometo dar cem contos de réis à Escola de S. Bernardo, se tirar a sorte
grande”. Já na rua, considerou bem que não perdia nada se não tirasse a sorte, e ganharia quatrocentos contos,
se a tirasse. Picou o passo e ainda uma vez penetrou no cartório, onde buscou enterrar-se no trabalho.

“Prometeu dar cem contos de réis para o ensino, para a escola”, o autor deixou muito mais
do que “cem contos”, contos psicológicos, para a Escola. Note o leitor como Machado se trafica
no interior do texto, e escreve: “este modo de traficar a própria pessoa não é nenhuma

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descoberta, nem eu me dou por Arquimedes” (Onda, 1867). Não é nenhuma descoberta nova que
o autor se trafica entre as palavras.
Machado criou uma escrita psicológica na qual se narrava enquanto narrava, ele se conta quando
conta, mas talvez nenhum outro autor tenha utilizado esse recurso tão inteligentemente quanto
Machado. Ele havia compreendido essa função de tráfico na linguagem “as lendas são a poesia
do povo; elas correm de tribo em tribo, de lar em lar, como a história doméstica das idéias e dos
fatos; como o pão bento da instrução familiar” (Os imortais, 1859).
No ano de sua morte, em duas cartas a Mário de Alencar, o autor afirma a função de remédio que
encontrou na literatura.
A segunda e menor parte da sua carta é a seu respeito, incômodos e o resto; nada de escritos ou só
negativamente. O mal-estar de espírito a que se refere não se corrige por vontade, nem há conselho que o
remova, creio; mas, se um enfermo pode mostrar a outro o espelho do seu próprio mal conseguirá alguma
coisa. Também eu tenho desses estados de alma e cá os venço como posso, sem animações de esposa nem
risos de filhos. Veja se exclui todo o presente, passado e futuro, e fixe um só tempo que compreenda os três:
Prometeu. A arte é o remédio e o melhor deles (Carta de 23 de fevereiro de 1908).
Peço-lhe que apresente os meus respeitos à sua Esposa e à sua Mãe, e vivos carinhos aos filhos.
Recomende-me também ao velho Prometeu, a quem dirá que o espero inteiro e humano, ainda que em
outra língua; todas são cabais para o suplício. Em duas palavras, busque o remédio na Arte. Retribuo-lhe
o abraço e assino-me, velho amigo do peito (Carta de 20 de abril de 1908).

“Prometeu. A arte é o remédio e o melhor deles”. Repete dois meses depois: “Busque o remédio
na Arte”. O remédio estava em Similia similibus curantur, tratar o mesmo pelo mesmo.
Escreve em duplo sentido: “Prometeu dar cem contos de réis para o ensino, para a escola”.
Prometeu aparece no lugar do verbo. Que roubou aos deuses para entregar aos homens. Muito mais
do que cem contos, Prometeu Machado deixou uma obra analítica para ser investigada.
“Escritor original... é o que não pode ser imitado. − Essa ideia pode ser-lhe aplicada; uma das suas grandes
glórias é ser único na literatura brasileira; porque o seu estilo corresponde a certo temperamento, a certos
estados de alma, a certas qualidades de espírito, a certos modos de ver, que são somente seus, e de que
ninguém se poderia apropriar artificialmente” (Magalhães de Azeredo, Montevidéu, 7 de novembro de
1895).

O elogio de Magalhães de Azeredo, e de vários outros, vieram antes do ano de fundação da ABL.
Enquanto Freud queria alcançar “a imortalidade do Eu” (O Narcisismo, 1914), como criador de
uma nova ciência, incluindo tardiamente o Narcisismo na psicanálise, Machado o havia percebido
como ponto de partida estruturante do ser humano. Freud dirá que a literatura – a arte das palavras
– era superior à ciência na busca de desvendar os mistérios da alma humana, e Machado tinha
essa compreensão sem ter lido a obra de Freud.
O homem comum vê nos palcos de teatro o desenrolar das tragédias, e, enquanto não lhe
acontece o que vê no palco, não percebe que de algum modo se encontra retratado ali, sendo
comum ouvir-se dizer, depois, pasmado: “aconteceu comigo!”
Seria como atores em um palco, a vida é um palco, o palco de Shakespeare, que Machado
observava a realidade, inserido nela, vendo-se subjetivamente nela, estava continuamente atento
ao fato de que a pessoa está inserida no que diz, e para confirmar, deixa no interior de sua obra
seus Pontos de Admiração.
Freud, possivelmente por um vício adquirido no meio científico, como médico, objetivava o
sintoma, “o ponto de partida eram os sintomas neuróticos”, e foi tardia a descoberta, feita por
Lacan, de que o sintoma se manifesta na superfície da fala.
É por isso mesmo que o inconsciente que a diz, o verdadeiro sobre o verdadeiro, é estruturado como uma
linguagem, e é por isso que eu, quando ensino isso, digo o verdadeiro sobre Freud, que soube deixar, sob o
nome de inconsciente, que a verdade falasse (Lacan, A ciência e a verdade, 1866).

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O inconsciente está na estrutura da linguagem, se manifesta no próprio ato de fala, ao que
Machado demonstrava estar atento nos diálogos que contrói. É impressionante que Machado
tivesse mais ou menos descoberto o que Freud depois descobriu.
A revolução na literatura, introduzida por Machado, vai muito além da anunciada ruptura
promovida por Memórias póstumas, tendo o autor criado uma psicanálise sob forma literária,
“hão de traduzi-la em todas as línguas. As academias e institutos farão dela um pequeno
livro, para uso dos séculos”.
Talvez o “pequeno livro” seja este que o leitor tem em mãos.

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Conceitos orientadores da subjetividade
Em Machado de Assis e em Freud

Machado de Assis, tanto quanto, depois, Sigmund Freud, um e outro, eram homens inseridos na
sociedade, e se guiaram por conceitos presentes na cultura que residem internos na subjetividade
de qualquer pessoa, sem, porém, que ela tenha consciência disso. A psicologia já existe na pessoa
sem que ela saiba, e Machado era esse psicólogo que sabia, ele tinha consciência dos conceitos
psicológicos em si mesmo, e anterior à experiência, e foi com sua genialidade com a palavra,
como seu instrumento de trabalho, que a empregou fazendo literatura e tendo seu Narciso bem-
sucedido na vida.
Freud, pelo seu lado, desde jovem, estava preocupado em saber que profissão escolher para que
o Narciso que tinha em si fosse bem-sucedido na vida, e foi somente a na vivência da experiência
que ele foi derivando os conceitos que deixou como teoria.
Vaidade ou Narcisismo:
Machado de Assis tomou a capacidade humana de se exibir na linguagem como fundamento prévio, tanto
para uso pessoal, quanto para uma analítica do relacionamento humano por meio de personagens. Freud, na
medicina, em primeiro lugar, objetivou o tratamento do sintoma, e somente em 1914, de modo invertido, veio
a compreender que o sintoma decorre do Narcisismo, introduzindo-o então como conceito psicanalítico e
informando que ele lhe tinha passado oculto.

Amor de transferência:
O que em Machado é relação de confiança, de intimidade, tomado por ele a partir do mito da amizade entre
Pílades e Orestes, foi denominado por Freud relação de amor transferencial, com a diferença de que, em
Freud, a relação se dá do analisando para o analista, enquanto em Machado, essa hierarquia pode envolver a
esperteza da dominação visando auferir vantagens.

Castração:
A castração em Machado se refere ao temor da travessia do Rubicon, ato de Júlio César, que ele mostra no
conto Uma viagem à roda de mim mesmo (1885) como tendo origem na infância, quando o menino Plácido
se arrisca num ato proibido, numa demonstração de que conquistou a noção de Narcisismo e consciência
moral. Essa conquista infantil, em Freud, aparecerá no renomado artigo O Narcisismo: uma introdução
(1914). Para os dois pensadores, essa conquista acontece em torno dos cinco anos de idade.

Recalque:
O recalque em Machado se manifesta pelo personagem que se contorce, demonstrando nervosismo, em suas
mais variadas formas de expressão corporal, pela dificuldade de se exprimir em palavras, como na imperícia
de mestre Romão, que não conseguia dizer o que queria. Em Freud, isso seria conseguido nas confidências
ao analista: aquilo que não se consegue em público, se diz em privado, fora das vistas.

A cura pela palavra:


Machado toma a expressão homeopática, Similia similibus curantur, pela ideia tratar o mesmo pelo mesmo,
como referência, o que, em Freud, será denominado talking cure: o sintoma, doença da palavra, seria tratado
pela palavra. O tratamento seria conseguir dizer o sintoma, aliviando-se das tormentas que sobrecarregam
por dentro.

O Caiporismo – o realismo psicológico:


Machado tomou para sua literatura o vocábulo Caiporismo lido em Joaquim Serra, que diz respeito à
superstição, ao inesperado, ao choque perturbador, ao espanto, ao evento casuístico, manifestação divina, a
deusa da Fortuna, a sorte repentina, que causa impacto, e pode modificar a subjetividade; para o filósofo
Alain Badiou, é a Filosofia do Acontecimento; para Jacques Lacan, na psicanálise, é a ideia de corte, de que
se vale o analista, objetivando tirar o paciente das lamúrias infinitas. A ideia original provém da maiêutica
socrática, quando conduzia o interlocutor ao choque da contradição lógica. O Caiporismo é o que pode
modificar o realismo psíquico.

A Petalogia – o Chiste:

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A Petalogia foi experiência vivida por Machado quando foi introduzido desde muito jovem por Paula Brito
na Sociedade Petalógica, que ele passou a utilizar como conceito: refere-se ao riso, à buffoneria, à galhofa,
que é uma forma de se aliviar contra a seriedade da vida. Essa mesma ideia Freud introduziu por meio de seu
livro O chiste e suas relações com o inconsciente (1905), no qual trata o chiste como um alívio para os
sintomas, nas plateias, que depois mudou em O humor (1927), para o riso cínico do autor, como o riso de
Joyce.

O Oculto - o Inconsciente:
O Inconsciente, em Machado, é apresentado no primeiro conto Três tesouros perdidos (1858), de apenas três
páginas, quando o Sr. F... vai descobrir, a posteriori, ter sido surpreendido por seus enganos. Freud teria
mudado o que pensava ser o Inconsciente quando da ruptura do relacionamento com Jung. O Inconsciente
seria o engano de Freud. A surpresa posterior diante do que passou despercebido antes. No artigo de 1914
Freud dirá que a noção abstrata do Eu é uma conquista inversa à experiência: a experiência de inversão é
sempre surpreendente.

A lanterna de Diógenes:
Tanto Machado, em O sermão do diabo (1892), quanto Freud, em Mal-Estar na cultura (1930), citando
Hobbes, são partidários da ideia o homem é o lobo do homem, ideia que Machado havia tomado de Diógenes,
o cínico, procura-se um homem digno de ser chamado por esse nome. O critério de orientação na existência
seria a desconfiança, ou a dúvida, como escreveu Kierkegaard, depois de Descartes em É preciso duvidar de
tudo (1856). Que o ser humano não é confiável é um tema bíblico.

Prometeu no Cáucaso:
Prometeu protagoniza o mito do homem que roubou o Logos, a inteligência, aos deuses, a palavra inteligente
é o fogo que o homem roubou aos deuses e entregou ao homem. Envolve o poder da metáfora, a linguagem
figurada, a capacidade de dissimular. Esse gesto de Prometeu equivaleria ao mito da caverna, do homem que
realiza uma descoberta e depois é castigado pelos demais humanos, por tê-los tirado da ignorância da
consciência ingênua. Machado e Freud foram combatidos por terem trazido à luz as manobras ocultas da
subjetividade.

O Espelho:
A palavra é o espelho do pensamento, o espelho da alma. Em Machado, Espelho é um fundamento. Jacques
Lacan, nesse ponto, esclareceu Freud, o Inconsciente não se encontra nas profundezas da alma, ao contrário,
está na superfície da fala, nas margens do dito, nas palavras ambíguas, nas metáforas incompreensíveis: o
Inconsciente passa entre as palavras.

O Imortal
Ser imortal seria alcançar a imortalidade na linguagem. É um conceito que Machado expressa no texto Os
imortais (1859), aos vinte anos de idade. Imortais sãos os escritores que deixaram livros para a posteridade.
É óbvio que se ninguém tivesse escrito, não haveria livro nenhum. Daí, a necessidade de escrever a
experiência para transmiti-la. O céu é uma obra da literatura. Lendo as cartas do jovem Freud, compreende-
se sua intuição de que a filosofia é um imaginário na linguagem, a qual rejeitava, por ser inútil do ponto de
vista da vida particular que vivia. Terminou, pelo caminho inverso, criando uma metafisica da experiência,
que batizou com o nome Metapsicologia. Em 1915 informa ter um livro impresso um livro de Metapsicologia
com doze ensaios. Mas abandonou1.

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O paralelo acima é uma compreensão alcançada depois de uma primeira varredura da obra de
Machado. Os especialistas poderão dar continuidade, melhorando, e delineando mais claramente,
as fronteiras entre os conceitos.
Tudo o que existe no mundo, desde o início dos tempos, foi obra do ser humano, depende do seu
Narcisismo, do amor por si mesmo, mover-se a construir objetos, imagens de si, na realidade.

1 O livro A Cruel Filosofia do Narcisismo (2021) traz esclarecimento sobre essa postura de Freud no capítulo O que
aconteceu com a Metapsicologia?, uma pergunta de Salomé feita a Freud. Pelo que consta, Freud teria abandonado a
Metapsicologia após ter lido o artigo de Max Nachmansohn, A libido de Freud e o Eros de Platão (1915), publicado
junto com os três principais artigos de Freud sobre a Metapsicologia. Assim que leu esse artigo, comparando a
psicanálise com a filosofia, Freud teria tomado um choque, e desistido de publicar seu livro, que desapareceu. Não
queria que a psicanálise fosse vista como mais uma filosofia, que combatia!

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Do ponto de vista da sobrevivência psicológica, uma pessoa que viesse com o pensamento
psicológico que veio Machado de Assis, dispensaria qualquer visita ao psicanalista, pois já detinha
a psicologia em si, estaria desde o princípio orientada a compreender a Vaidade como
fundamento do agir humano, e que a subjetividade se escamoteia em todas as falas.
O ensinamento deixado é a difícil compreensão da divisão existente na fronteira da linguagem,
na separação entre linguagem natural, objetiva, e linguagem figurada, metafórica, insinuativa,
sempre apta a pegar qualquer pessoa desprevenida. Esse jogo de palavras será insistentemente
explorado por Machado em sua obra literária.
O que difere entre o legado de Freud e o legado de Machado?
Em Freud, uma psicologia sob a forma conceitual que nomeou psicanálise, que deu origem a
curso superior em faculdade de psicologia, algo que não existia, e que forma psicólogo para a
escuta dos dramas privados. Freud foi fundamental para a criação da profissão de psicólogo.
Machado não deixou esse instrumental para a criação de curso de psicologia, deixou, porém, uma
psicologia sob a forma literária, onde mostra, mais que conceitua, as tramas do envolvimento
psíquico.

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