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Quero
ir pra casa. Onde cê tá?"
Pego-me mais uma vez encarando minha conversa com Beatrice. Havia
recebido a última mensagem quando saí da aula de teoria musical. Corri para a
parada de ônibus assim que a respondi. Ainda levei um tempo na parada, peguei
um transporte lotado e agora me encontro finalmente na frente do salão de arte de
Nova York. Toda essa minha Odisseia levou mais de 40 minutos. O cartaz na
entrada me dá as boas vindas e anuncia que hoje é o dia da exposição. E parece
que Beatrice não foi bem.
Vim para Nova York para estudar música, mas sou um grande admirador das
artes plásticas classicistas. Graças a um projeto, consegui uma bolsa de estudos
aqui nos Estados Unidos. Eu poderia ter optado por estudar em Paris, mas só de
pensar no mictório de Duchamp, sinto vontade de mijar! Poderia ter escolhido, por
outro lado, Florença, na Itália, o berço da arte clássica! Ah, a arte clássica! Contudo,
eu não conseguiria treinar devidamente o meu inglês já tão enferrujado. Devido a
essa miscelânea de parâmetros agridoces, escolhi a Universidade de Artes de
Columbia.
Ainda não descobri qual é a sua idade - vinte e sete, talvez? Mas ela é
claramente alguém bastante jovem. Jovem e de estatura mediana. Um metro e
sessenta e cinco de sol. Mas dessa vez, sua tristeza parece eclipsar o seu brilho
natural. Algo de errado deve ter acontecido durante a mostra do seu quadro.
Quanto a mim, tenho quarenta anos, ou um pouco mais que isso - ou seria
cinquenta? Deus! Faz tempo que parei de contar. Estou na metade do meu curso de
música. Optei porque tenho vocação, mas eu poderia muito bem ter escolhido
pintura ou desenho.
Não tenho muitos amigos. Parece que fiquei tão distraído com as coisas boas
do mundo, que acabei parando no tempo e perdi o tato com as pessoas. É difícil
socializar numa época em que primeiro perguntam em quem você votou para
presidente e deixam para saber o seu nome e o seu conhecimento de mundo
somente se a resposta à primeira pergunta for satisfatória. Além disso, não tenho
habilidade (e nem saco) suficiente para justificar em inglês porque eu sempre votei
nulo.
Adentro o salão com a consciência de que prometi para mim mesmo que
faria o possível para não discutir com os presentes sobre arte. Críticos importantes,
compradores da alta classe e artistas de diversos estilos se reuniram hoje, mas o
ambiente está quase vazio e com um baixo fluxo de pessoas no momento, com
exceção de um lugar.
Decido esperar que todos vão embora, para que eu possa conferir de mais
perto. De repente, sinto o celular vibrar. Olho para a tela, é Beatrice.
Uma voz surge do meu lado. Me viro em direção e percebo que é o próprio
Dimitre esperando por um pouco de bajulação diante do seu nada.
— Considerando o texto e a obra, vejo um falso amor espiritual, que mais parece um
tipo de ódio ao material. Uma mística pobre, presa entre dois modos de prisão.
Respondo.
— Confesso que prefiro a clássica. Mas reconheço que a sua vertente é ideal para
representar sentimentos. Como poderíamos desenhar a raiva, por exemplo?
— Função que falta na arte clássica. — Acrescentou Dimitre. — Diga-me, o que mais
achou do meu conceito?
— Bem, aqui diz que "A ausência de matéria é um ato de amor", mas eu acho que
"ausências" não amam; mas as "presenças", sim. Você está preso à antiga heresia
do maniqueísmo: a matéria é má e o espírito é bom. O que você talvez não
consegue perceber é que até as palavras que você usou para "explicar" sua "obra"
precisam de um som material para que sejam propagandas em um espaço
igualmente material. Além da materialidade das letras no seu texto, né? Se sua
intenção foi admirar a superioridade do espírito sobre a matéria, o mais coerente
seria não ter falado nada. E esse silêncio seria sua melhor e mais coerente e
honesta obra. Mudez monástica para descrever a ausência da forma.
— Como ousas?! Saiba que acabei de vender por trezentos mil dólares! Você que
não entendeu minha arte! Um ignorante!
— Sério?! Poxa vida hahaha! A propósito, esse negócio de “entender a arte” sempre
me soa como tentar entender uma piada que você não achou graça. Esse excesso
de retórica que sustenta a arte contemporânea não torna nossa relação com ela um
tanto artificial, forçada? É claro que explicações podem ajudar a enriquecer nossa
experiência com a arte, mas depender dessa retórica tem impedido uma relação
mais intuitiva - e menos manipulada por interesses ideológicos e mercadológicos.
Acredito que há um lugar para a razão na relação com a arte, mas sob certo
aspecto, a arte não precisa ser entendida, pois o “órgão de percepção” da arte não
é tanto a razão, mas sim a intuição e a contemplação. No entanto, a contemplação é
supra-racional, e não irracional. E não precisa ficar irritado. O meu
descontentamento é: ao invés da teoria tentar explicar as obras de arte, são as
obras de arte que tentam ilustrar teorias. Não à toa, os artistas contemporâneos se
tornaram muito verborrágicos e dependentes da retórica para sustentar seus
trabalhos, como é o caso dessa obra invisível. Não estou propondo uma negação
radical da teoria, mas apenas uma reflexão sobre seu papel na arte. Esse
embasamento teórico precisa se converter em uma arte que não dependa dessa
retórica para se afirmar. Senão os artistas serão relegados ao papel de “ilustradores
de discursos” e toda obra de arte vai precisar de um manual de instruções do lado.
Veja o Davi de Michelangelo, por exemplo, ele dispensa a fabulação de qualquer
tipo de contexto mirabolante, pois a sua composição o faz ser o que é e o sustenta
como arte, sem a dependência de fatores externos e da boa vontade da
subjetividade do público. Por fim, nas aulas, você insiste em criticar o mercado da
arte, o qual já abraçou os mictórios, as latas de tinta sujas e os quadros invisíveis.
Contudo, você se beneficia com a mecânica desse mesmo mercado…