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| Gustave Courbet
Tradução Daniel Jablonski
Nota do editor:
No fim de 1861, à pedido de um certo número de jovens pintores, Gustave Courbet abriu um
ateliê na Rua Notre-Dame-des-Champs em Paris. [Jules-Antoine] Castagnary, amigo do
pintor, o descreveu assim:
Alguns dias após a abertura do ateliê, saia no Courrier du Dimanche uma carta de Courbet
[provavelmente em colaboração com o próprio Castagnary] aos seus “alunos”.
É este documento que leremos nas páginas a seguir, acrescido, em anexo, da intervenção de
Courbet no Congresso de Anvers em agosto de 1861.
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A história de uma época termina com essa mesma época e com aqueles seus
representantes que a expressaram. Não é dado aos novos tempos acrescentar alguma coisa à
expressão dos tempos antigos, de aumentar ou embelezar o passado. O que se passou se
passou [ce qui a été a été]. O espírito humano tem o dever de trabalhar sempre de novo,
sempre no presente, partindo dos resultado adquiridos. Não se pode nunca recomeçar nada,
mas caminhar sempre de síntese em síntese, de conclusão em conclusão.
Os verdadeiros artistas são aqueles que assumem [prennent] a época justamente no
ponto até onde foi levada pelos tempos anteriores. Retroceder [rétrograder] é não fazer
nada, é agir em perda própria [pure perte], é não ter nem entendido nem tirado proveito do
ensinamento do passado. Assim se explica que a s escolas arcaicas de todos os tipos de
reduzam sempre às mais inúteis compilações.
Eu tomo por certo [je tiens aussi] que a pintura é uma arte essencialmente concreta e
não pode consistir senão na representação de coisas reais e existentes. É uma língua
inteiramente física, que se compõe, por palavras, de todos os objetos visíveis; um objeto
abstrato, não visível, não existente, não é do domínio da pintura.
A imaginação na arte consiste em saber encontrar a expressão mais completa de uma
coisa existente, mas nunca em supor ou criar essa mesma coisa.
O belo está na natureza, e se encontra na realidade sob as mais diversas formas.
Assim que o encontramos, ele passa a pertencer à arte, ou melhor, ao artista que sabe
enxerga-lo. Assim que o belo é real e visível, ele tem em si mesmo sua expressão artística.
Mas o artifício não tem o direito de amplificar essa expressão. Ele não pode toca-lo senão
sob o risco de desnaturá-lo, e por consequência, de enfraquecê-lo. O belo dado pela natureza
é superior a todas as convenções do artista.
O belo, assim como a verdade, é algo relativo ao tempo em que se vive e ao
indivíduo apto à concebê-lo. A expressão do belo decorre [est en raison directe] da potência
da percepção adquirida pelo artista.
Eis aí o fundamento [le fonds] de minhas ideias em arte. Com semelhantes ideias,
conceber o projeto de abrir uma escola para aí ensinar princípios convencionais, seria entrar
nos dados incompletos e banais que dirigiram até aqui a arte moderna em todos os lugares.
Não pode haver escolas, há apenas pintores. Escolas não servem senão à pesquisar os
procedimentos analíticos da arte. Nenhuma escola poderia conduzir isoladamente à síntese.
A pintura não pode, sem recair na abstração, deixar dominar um lado parcial da arte, seja o
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desenho, seja a cor, seja a composição, seja qualquer outro dos meios tão múltiplos dos
quais apenas o conjunto constitui essa arte.
Não posso, portanto, ter a pretensão de abrir uma escola, de formar alunos, de
ensinar tal ou tal tradição parcial da arte. Não posso senão explicar a artistas, que seriam
meus colaboradores e não meus alunos, o método pelo qual, ao meu ver, alguém torna-se
pintor, pelo qual eu mesmo tentei me tornar um desde o início, deixando a cada um a total
direção de sua individualidade, a plena liberdade de sua expressão própria na aplicação
desse método. Para essa finalidade, a formação de um ateliê comum, lembrando as
colaborações tão fecundas dos ateliês do Renascimento, pode certamente ser útil e contribuir
a abrir [ouvir] a fase da pintura moderna, e eu me prestarei avidamente a tudo que desejarem
de mim para obtê-lo.
Gustave Courbet.
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Nós dissemos ontem que o Sr. Courbet tomou a fala na 3a seção, ele expôs
sumariamente, nestes termos, suas ideias sobre sua arte:
“O realismo não é bem conhecido por nenhum de seus adversários; ele não é tão
antigo quanto se diz e não tem nada em comum com a querela dos reais com os nominais. O
fundamento do realismo é a negação do ideal, à qual fui levado há quinze anos por meus
estudos, e que nenhum artista havia, até então, ousado afirmar categoricamente.
Não são suficientes um nome e uma bandeira para se fazer conhecer uma ideia. É
preciso saber o que contém o nome e a bandeira.
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O Enterro em Ornans foi em realidade o enterro do romantismo e não deixou dessa
escola de pintura senão o que era uma constatação do espírito humano, o que por
conseguinte tinha direito de existir, isto é, os quadros de Delacroix e de Rousseau.
A arte romântica, assim como a escola clássica, era arte pela arte. Hoje em dia,
segundo a última expressão da filosofia, somos obrigados a raciocinar mesmo em arte, e a
nunca deixar a lógica ser vencida pelo sentimento. A razão deve ser em tudo [en tout] a
dominante do homem. Minha expressão na arte é a mais atual [la dernière] porque é a única
até o momento a ter combinado todos esses elementos.
Ao concluir a negação do ideal e de tudo o que se segue, chego diretamente à
emancipação da razão, à emancipação do indivíduo e, finalmente, à democracia.
O realismo é, por essência, a arte democrática. Assim, pelo realismo que espera tudo
do indivíduo e de seu esforço, chegamos a reconhecer que o povo deve ter instrução posto
que deve tirar tudo de si próprio; ao passo que com o ideal, isto é, com a revelação e, como
consequência, com a autoridade e a aristocracia, o povo recebia tudo de cima, contava com
[tenait] tudo de um outro que não de si próprio e estava fatalmente votado à ignorância e à
resignação.
Lamento que meu amigo [Pierre-Joseph] Proudhon, com o qual me dou tão bem,
ainda que tendo chegado à conclusões semelhantes por vias diferentes, não esteja aqui para
lhes sustentar minha tese com a autoridade de seu talento e de sua alta razão. Não sou um
orador; expresso minhas ideias com meu pincel; mas aqui a filosofia e a arte se encontram e
é uma prova a mais da bondade de meu coração.
Não falei senão sobre as instâncias de meus amigos, e porque havia dignidade e
dever em não esconder sua bandeira na presença de três oradores que me atacaram
pessoalmente. Não respondo senão por mim mesmo; não tenho escola; por fidelidade a meu
sistema individualista me recuso a formar alunos. Não sei se expressei minha opinião de
forma suficientemente clara, mas a expressei sinceramente com o conhecimento do que me
precedeu, de uma tradição que estudei por vinte e três anos com uma aplicação obstinada e
não tenho medo de dizer que espero do futuro a plena ratificação de minhas ideias.”
O Sr. Courbet fez essa pequena confissão de fé com uma energia e um tom de
convicção que lhe valeram as simpatias de todos os artistas presentes no Congresso, mais
além de todas as nuanças de oposição.