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Podemos ensinar arte?

| Gustave Courbet
Tradução Daniel Jablonski

[Gustave Courbet, Peut-on enseigner l’art? Éd. L’échoppe, Paris, 1986]

Nota do editor:

No fim de 1861, à pedido de um certo número de jovens pintores, Gustave Courbet abriu um
ateliê na Rua Notre-Dame-des-Champs em Paris. [Jules-Antoine] Castagnary, amigo do
pintor, o descreveu assim:

“Ao abrir a porta, meus companheiros e amigos viram um espetáculo singular.


De pé sobre [um monte de] feno espalhado [répandu], o olho dilatado, deitando seu focinho
preto no chão e balançando seu rabo impaciente, um boi avermelhado [roux], marcado de
branco, estava amarrado pelos chifres a um anel de ferro fortemente soldado na parede. Era
o modelo.
O nobre animal, inquieto por ser o centro de todos esses olhares, agitava suas pernas
sólidas e não se mantinha em posição. Vinha ele dos pastos da Normandia, das planícies do
Poitou ou dos prados de Saintonge? Não sei, mais ele tinha uma forma esguia, e sua veste
[robe] manchada divertia o olhar.
Havia tantos cavaletes quanto artistas. Cada um trabalhava em silêncio. O mestre,
com sua barba negra, ia e vinha, distribuindo suas indicações, a cada vez pegando sua paleta
para demonstrar de forma mais clara”.

Alguns dias após a abertura do ateliê, saia no Courrier du Dimanche uma carta de Courbet
[provavelmente em colaboração com o próprio Castagnary] aos seus “alunos”.

É este documento que leremos nas páginas a seguir, acrescido, em anexo, da intervenção de
Courbet no Congresso de Anvers em agosto de 1861.

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***

Paris, 25 de dezembro de 1861

Senhores e caros colegas [confrères],

Vocês tiveram a generosidade de abrir um ateliê de pintura onde pudessem seguir


livremente sua educação de artistas, e tiveram a generosidade de oferecer-me colocá-lo sob
minha direção.
Antes de qualquer resposta, é preciso que eu me explique [il faut que je m’explique
avec vous] em relação a essa palavra direção. Eu não posso me apresentar a vocês [je ne
puis m’exposer à ce qu’il soit question] de modo que seja questão entre nós de professor e
alunos.
Tenho de lhes explicar o que tive recentemente a ocasião de dizer no Congresso de
Anvers: eu não tenho, eu não posso ter alunos.
Eu, que acredito que todo artista deva ser seu próprio mestre, não posso pretender
[songer] tornar-me professor.
Não posso ensinar minha arte, nem a arte de qualquer escola, posto que nego o
ensino da arte, ou que reivindico, em outros termos, que a arte é inteiramente individual, e
não é para cada artista mais que o talento resultante de sua própria inspiração e de seus
próprios estudos da tradição.
Acrescento que a arte ou o talento, ao meu ver, não seria para um artista mais que o
meio de aplicar suas faculdades pessoais às ideias e às coisas da época na qual ele vive.
A arte na pintura, em especial, não poderia consistir mais do que na representação
dos objetos visíveis e tangíveis para o artista.
Nenhuma época poderia ser reproduzida a não ser por seus próprios artistas, quero
dizer, pelos artistas que nela viveram. Tomo os artista de um século como radicalmente
incompetentes para reproduzir as coisas de um século precedente ou futuro, dito de outra
forma, para pintar o passado ou o porvir.
É neste sentido que nego a arte histórica aplicada ao passado. A arte histórica é, por
essência, contemporânea. Cada época deve ter seus artistas, que a expressam e a reproduzem
para o futuro. Uma época que não soube se expressar por meio de seus próprios artistas, não
tem o direito de ser expressa por artistas ulteriores. Isto seria a falsificação da história.

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A história de uma época termina com essa mesma época e com aqueles seus
representantes que a expressaram. Não é dado aos novos tempos acrescentar alguma coisa à
expressão dos tempos antigos, de aumentar ou embelezar o passado. O que se passou se
passou [ce qui a été a été]. O espírito humano tem o dever de trabalhar sempre de novo,
sempre no presente, partindo dos resultado adquiridos. Não se pode nunca recomeçar nada,
mas caminhar sempre de síntese em síntese, de conclusão em conclusão.
Os verdadeiros artistas são aqueles que assumem [prennent] a época justamente no
ponto até onde foi levada pelos tempos anteriores. Retroceder [rétrograder] é não fazer
nada, é agir em perda própria [pure perte], é não ter nem entendido nem tirado proveito do
ensinamento do passado. Assim se explica que a s escolas arcaicas de todos os tipos de
reduzam sempre às mais inúteis compilações.
Eu tomo por certo [je tiens aussi] que a pintura é uma arte essencialmente concreta e
não pode consistir senão na representação de coisas reais e existentes. É uma língua
inteiramente física, que se compõe, por palavras, de todos os objetos visíveis; um objeto
abstrato, não visível, não existente, não é do domínio da pintura.
A imaginação na arte consiste em saber encontrar a expressão mais completa de uma
coisa existente, mas nunca em supor ou criar essa mesma coisa.
O belo está na natureza, e se encontra na realidade sob as mais diversas formas.
Assim que o encontramos, ele passa a pertencer à arte, ou melhor, ao artista que sabe
enxerga-lo. Assim que o belo é real e visível, ele tem em si mesmo sua expressão artística.
Mas o artifício não tem o direito de amplificar essa expressão. Ele não pode toca-lo senão
sob o risco de desnaturá-lo, e por consequência, de enfraquecê-lo. O belo dado pela natureza
é superior a todas as convenções do artista.
O belo, assim como a verdade, é algo relativo ao tempo em que se vive e ao
indivíduo apto à concebê-lo. A expressão do belo decorre [est en raison directe] da potência
da percepção adquirida pelo artista.
Eis aí o fundamento [le fonds] de minhas ideias em arte. Com semelhantes ideias,
conceber o projeto de abrir uma escola para aí ensinar princípios convencionais, seria entrar
nos dados incompletos e banais que dirigiram até aqui a arte moderna em todos os lugares.
Não pode haver escolas, há apenas pintores. Escolas não servem senão à pesquisar os
procedimentos analíticos da arte. Nenhuma escola poderia conduzir isoladamente à síntese.
A pintura não pode, sem recair na abstração, deixar dominar um lado parcial da arte, seja o

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desenho, seja a cor, seja a composição, seja qualquer outro dos meios tão múltiplos dos
quais apenas o conjunto constitui essa arte.
Não posso, portanto, ter a pretensão de abrir uma escola, de formar alunos, de
ensinar tal ou tal tradição parcial da arte. Não posso senão explicar a artistas, que seriam
meus colaboradores e não meus alunos, o método pelo qual, ao meu ver, alguém torna-se
pintor, pelo qual eu mesmo tentei me tornar um desde o início, deixando a cada um a total
direção de sua individualidade, a plena liberdade de sua expressão própria na aplicação
desse método. Para essa finalidade, a formação de um ateliê comum, lembrando as
colaborações tão fecundas dos ateliês do Renascimento, pode certamente ser útil e contribuir
a abrir [ouvir] a fase da pintura moderna, e eu me prestarei avidamente a tudo que desejarem
de mim para obtê-lo.

A todos vocês de coração,

Gustave Courbet.

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Relatório da intervenção de Courbet no Congresso [Artístico] de Anvers, publicado


em Le Précurseur d’Anvers do 22 de agosto de 1861.

Nós dissemos ontem que o Sr. Courbet tomou a fala na 3a seção, ele expôs
sumariamente, nestes termos, suas ideias sobre sua arte:

“O realismo não é bem conhecido por nenhum de seus adversários; ele não é tão
antigo quanto se diz e não tem nada em comum com a querela dos reais com os nominais. O
fundamento do realismo é a negação do ideal, à qual fui levado há quinze anos por meus
estudos, e que nenhum artista havia, até então, ousado afirmar categoricamente.

Não são suficientes um nome e uma bandeira para se fazer conhecer uma ideia. É
preciso saber o que contém o nome e a bandeira.

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O Enterro em Ornans foi em realidade o enterro do romantismo e não deixou dessa
escola de pintura senão o que era uma constatação do espírito humano, o que por
conseguinte tinha direito de existir, isto é, os quadros de Delacroix e de Rousseau.
A arte romântica, assim como a escola clássica, era arte pela arte. Hoje em dia,
segundo a última expressão da filosofia, somos obrigados a raciocinar mesmo em arte, e a
nunca deixar a lógica ser vencida pelo sentimento. A razão deve ser em tudo [en tout] a
dominante do homem. Minha expressão na arte é a mais atual [la dernière] porque é a única
até o momento a ter combinado todos esses elementos.
Ao concluir a negação do ideal e de tudo o que se segue, chego diretamente à
emancipação da razão, à emancipação do indivíduo e, finalmente, à democracia.
O realismo é, por essência, a arte democrática. Assim, pelo realismo que espera tudo
do indivíduo e de seu esforço, chegamos a reconhecer que o povo deve ter instrução posto
que deve tirar tudo de si próprio; ao passo que com o ideal, isto é, com a revelação e, como
consequência, com a autoridade e a aristocracia, o povo recebia tudo de cima, contava com
[tenait] tudo de um outro que não de si próprio e estava fatalmente votado à ignorância e à
resignação.
Lamento que meu amigo [Pierre-Joseph] Proudhon, com o qual me dou tão bem,
ainda que tendo chegado à conclusões semelhantes por vias diferentes, não esteja aqui para
lhes sustentar minha tese com a autoridade de seu talento e de sua alta razão. Não sou um
orador; expresso minhas ideias com meu pincel; mas aqui a filosofia e a arte se encontram e
é uma prova a mais da bondade de meu coração.
Não falei senão sobre as instâncias de meus amigos, e porque havia dignidade e
dever em não esconder sua bandeira na presença de três oradores que me atacaram
pessoalmente. Não respondo senão por mim mesmo; não tenho escola; por fidelidade a meu
sistema individualista me recuso a formar alunos. Não sei se expressei minha opinião de
forma suficientemente clara, mas a expressei sinceramente com o conhecimento do que me
precedeu, de uma tradição que estudei por vinte e três anos com uma aplicação obstinada e
não tenho medo de dizer que espero do futuro a plena ratificação de minhas ideias.”

O Sr. Courbet fez essa pequena confissão de fé com uma energia e um tom de
convicção que lhe valeram as simpatias de todos os artistas presentes no Congresso, mais
além de todas as nuanças de oposição.

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