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A TEORIA DO AGIR COMUNICATIVO E A LEGITIMAÇÃO DO DIREITO E DO

ESTADO EM JÜRGEN HABERMAS 1

Priscilla Cardoso Rodrigues 2

1. PARA UMA TEORIA DA LEGITIMAÇÃO EM HABERMAS


Habermas defende que somente por meio de um processo verdadeiramente
democrático de criação do direito é possível alcançar a legitimidade pós-metafísica do poder.
Do ponto de vista do trabalho ou da ação instrumental, é até possível a regulamentação
por meio da imposição de regras técnicas, desenvolvidas pela ciência e pela tecnologia, que
incorporam a tais regras pressupostos empíricos de pretensões de verdade.
Entretanto, do ponto de vista comportamental, definido por estruturas normativas
através das quais as necessidades são interpretadas e as ações são liberadas ou tornadas
obrigatórias, há sempre necessidade de justificação que, por sua vez, implica uma pretensão
de validade que só é possível por meio de uma atividade comunicativa entre os diversos atores
sociais.
Isso porque no atual estágio sociocultural de desenvolvimento humano os
comportamentos são reorganizados através de uma ação intersubjetiva produzida
linguisticamente com o objetivo de garantir generalidade a processos que são íntimos, como
as sensações, as necessidades e os sentidos e garantir-lhes significado comunitário, que é
constitutivo da vida social e, ao mesmo tempo, garantir a legitimidade das normas válidas.
Ou seja, dentro do sistema social, é a comunicação lingüística o que mantém a
legitimação das normas comportamentais - servindo como um instrumento de generalização
de opiniões – as quais são responsáveis por garantir o caráter comunitário de tal sistema,
sendo, portanto, os próprios atores sociais responsáveis por garantir validade a essas normas.
Essa atividade discursiva, por sua vez, provocando a constante alteração das estruturas
normativas, estabelece uma espécie de padrão que permite uma reconstrução racional da vida
social.

1
Texto adaptado da seguinte dissertação de Mestrado: RODRIGUES, Priscilla Cardoso. Reflexão sobre a
legitimação do Estado contemporâneo. 2005. Dissertação (Mestrado em Direito). Programa de Pós-Graduação
em Direito da Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista, Franca, 2005.
2
A autora é professora do Curso de Direito e do Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena da
Universidade Federal de Roraima.
2

2. SOBRE A ESFERA PÚBLICA


Para entender a teoria do agir comunicativo de Habermas e sua compreensão como
fundamento de legitimação do Direito, é fundamental compreender a noção de esfera pública.
Esta por sua vez, é concebida por Habermas como um fenômeno historicamente
determinado, característico da sociedade burguesa, e só pode ser compreendida nesse
contexto.
Não seria possível, como na perspectiva weberiana, generalizá-la como um tipo-ideal
e aplicá-la a outros contextos históricos.
É justamente para demonstrar essa historicidade que Habermas escreve a obra
“Mudança estrutural da esfera pública” em que elabora um verdadeiro histórico da esfera
pública, analisando-a desde seus primórdios, seu surgimento, até chegar nas reestruturações
sofridas ao longo da Modernidade.
Por exemplo, durante o período medieval do Absolutismo monárquico, a vontade
política do Estado era a vontade do soberano, sendo completamente irrelevantes as convicções
e opiniões dos súditos, que estavam completamente excluídos da esfera da política.
Habermas situa a origem da esfera pública ainda no interior da sociedade feudal, como
uma “esfera pública literária”, que chega até a apresentar feições de uma “esfera pública
plebéia”, característica esta que, apesar de um curto período de existência, permanecerá vivo
nos movimentos trabalhistas dos séculos XVIII e XIX.
Entretanto, Habermas deixa claro que, mesmo nesse período, suas intenções também
eram as de uma esfera pública burguesa, demonstrando ser esta sua verdadeira essência,
mantida em todas as suas variantes até os dias atuais.
A esfera pública, entretanto, não se confunde com a noção de público (em oposição a
privado). Esta sempre existiu, mesmo na Idade Antiga e na Idade Média. O que acontece na
Modernidade, após o surgimento da esfera pública é que esta se torna um espaço público de
discussão e comunicação política.
Na Idade Antiga, era nítida a oposição entre a esfera pública e privada dos cidadãos.
Na polis, esfera pública dos cidadãos livres, apenas se tornava visível o que eles desejavam,
apenas suas virtudes, nunca suas mazelas; essas ficavam reservadas para o oikos, a esfera
privada dos indivíduos, local onde se reproduz sua vida, o trabalho dos escravos, o serviço das
mulheres, transcorrem o nascimento e a morte. O que acontece na casa do cidadão fica restrito
ao seu conhecimento.
Já no período feudal, não há uma nítida diferenciação entre o público e o privado.
Como as posições sociais eram estreitamente delimitadas, não era possível imaginar a
3

possibilidade de uma pessoa privada participar de um espaço público, só as autoridades, as


pessoas públicas é que delas participavam.
Ele representava os comportamentos da nobreza, da Igreja e da realeza, dos quais
depende diretamente a representatividade pública.
A esfera pública enquanto espaço de comunicação social só tem sentido com o
desenvolvimento do capitalismo, com seu sistema de trocas, não só de mercadorias, mas
também de informações.
Mesmo os primeiros estágios do capitalismo, ainda conservadores por não
conseguirem romper com os principais elementos feudais, pois se alimentavam da produção
agrícola feudal e da relação de dominação estamental, já indicavam a tendência à
comunicação, especialmente após a intensificação do comércio a longa distância. As cidades
se tornaram os centros de troca por excelência, tanto de mercadorias como de informações. É
deste período o surgimento do correio e da imprensa, institucionalizando a troca de
informações e, com isso, viabilizando o desenvolvimento contínuo do capitalismo.
Entretanto, neste primeiro momento, as informações ainda permanecem restritas às
categorias profissionais, continuando ausente o elemento decisivo à consideração do público:
a publicidade. O intercâmbio de mercadorias e de informações só atingirá seu caráter
revolucionário na fase do mercantilismo, com o surgimento do Estado moderno e a expansão
do mercado a novos territórios conquistados.
Somente com o surgimento do Estado Absolutista foi possível delimitar, de maneira
nítida, a separação entre público e privado no interior da estrutura feudal, sendo público tudo
o que diz respeito ao Estado, em contraposição ao privado, que se restringe a sociedade:
“privado significava o que era excluído, privado do aparelho estatal. Por outro lado, ‘público’
era o Estado, absoluto, objetivado na pessoa do soberano. [...] Público é então sinônimo de
Estatal e tem como contrapeso a Sociedade Civil burguesa.” 3
Ao mesmo tempo em que se separam o público e o privado, o Estado e a sociedade,
esta mesma sociedade adquire uma nova roupagem, com a ascensão da burguesia para além
dos limites das cidades e das corporações de ofício, deixando os burgueses de ser modestos
artesãos e comerciantes e se transformando em ricos negociantes, portadores de grande poder
econômico e inestimável cultura. É a nova categoria dos “homens cultos”, detentora de novos
valores e conhecimentos incompatíveis com o tradicional pensamento aristocrático medieval:

3
ENCARNAÇÃO, João Bosco da. Filosofia do Direito em Habermas: a hermenêutica. 3 ed. Lorena, SP:
Stiliano, 1999. p. 16.
4

Esta camada ‘burguesa’ é o autêntico sustentáculo do público, que, desde o início, é


um público que lê. Ela não pode mais, como à sua época o foram os grandes
comerciantes citadinos e os burocratas inseridos na cultura aristocrática das cortes da
Renascença italiana, ser incorporada como um todo na cultura aristocrática do
barroco tardio. 4

Neste momento, essa “nova” burguesia sente a necessidade de criar um espaço só para
si. Surge a esfera pública literária, um espaço tipicamente burguês, caracterizado pela
discussão de idéias e pela consolidação de novos valores, que logo são erigidos a valores
universais, de toda a sociedade – ainda que fossem valores predominantemente burgueses –,
com força suficiente para fazer frente ao próprio Estado Absolutista.
Com o fortalecimento desses valores, a burguesia consegue ampliar esse espaço de
discussão a todo o povo, por meio da propaganda de suas idéias que, no início, se realizava
pela distribuição de panfletos e leitura dos mesmos, em voz alta, nos lugares públicos.
Nesse período, não importava a hierarquia social, mesmo o povo, em sua maioria
composto por pessoas sem acesso à educação ou à cultura, era importante para a expansão do
espaço de discussão burguês.
É claro que o povo era importante naquele momento. Mas somente para o fim de
propagar e fortalecer as idéias e posições políticas burguesas, o que não significa que os
burgueses abriam a possibilidade do povo também participar das suas discussões.
Nessa primeira etapa, a esfera pública literária é apenas uma tentativa de estabelecer
novos valores sociais e culturais burgueses, não representando, ainda, uma total ruptura com a
sociedade de côrte, mas, ao contrário, uma certa continuidade, já que as côrtes serviam como
instrumento de exibição do poder social e econômico tanto da nobreza quanto da burguesia
insurgente:

Um novo quadro emerge e uma nova compreensão se alcança e várias côrtes


ocidentais distintas, com suas maneiras relativamente uniformes, são consideradas
como vasos comunicantes na sociedade européia em geral. O que começa a
constituir-se aos poucos, nos fins da Idade Média, não é apenas uma sociedade de
côrte aqui e outra ali. É uma aristocracia de corte que abraça toda a Europa
Ocidental, com seu centro em Paris, dependências em todas as demais côrtes e
afloramentos em todos os outros círculos que alegavam pertencer à ‘Sociedade’,
notadamente o estrato superior da burguesia e até, em certa medida, em camadas da
classe média. 5

O espaço físico em que se desenvolviam as discussões inerentes à esfera pública


literária era a cidade, em seus cafés, salões e comunidades comensais nos quais se

4
HABERMAS, Jurgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da
sociedade burguesa. tradução de Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. p. 37.
5
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Tradução de Ruy Jungmann.
revisão, apresentação e notas de Renato Janine Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. v. 2. p. 17-18.
5

encontravam membros da aristocracia e das camadas altas e médias da burguesia, com uma
forte preponderância dos burgueses com formação acadêmica. Esses ambientes eram restritos
somente às elites, onde a burguesia mantinha contato apenas com a sociedade de côrte, sem a
possibilidade de participação das camadas populares da sociedade.
Apesar de já encarnar a noção de público, a sociabilidade da esfera pública literária
ainda se mantinha restrita a uma elite social, não obstante pressupor certa igualdade:

Não que se deva crer que, com os cafés, os salões e as associações tal concepção de ‘público’
tenha sido efetivamente concretizada; mas, com eles, ela foi institucionalizada enquanto
idéia e, com isso, colocada como reivindicação objetiva e, nessa medida, ainda que não tenha
se tornado realidade, foi, no entanto, eficaz. 6

A ampliação efetiva do público só ocorreria quando o conteúdo da esfera pública -


informações, filosofia, literatura, cultura - passasse a ser tomado como mercadoria, pois
quando produzido para o mercado, tornar-se-ia acessível a todos, ou melhor, a todos os que
tivessem condições econômicas e culturais de adquirir tais mercadorias:

[...] todas as pessoas privadas que, como leitores, ouvintes e espectadores,


pressupondo posses e formação acadêmica, podiam através do mercado, apropriar-se
dos objetos em discussão. As questões tornam-se ‘gerais’ não só no sentido de sua
relevância, mas também de sua acessibilidade: todos devem poder participar.
[...]
O ‘grande’ público, que se constitui difusamente fora das instituições de público,
tem, apesar de tudo, em relação à massa da população rural e do ‘povo’ citadino,
sempre ainda um volume bastante limitado. 7 (grifo do autor)

Nesse sentido, ainda que numa primeira etapa da esfera pública burguesa não
estivesse claro seu caráter ideológico-instrumental, subordinado à lógica produtiva e
existencial capitalista, logo também a noção de esfera pública se torna ideologia a favor da
evolução capitalista.
O capitalismo impõe sua lógica mercadológica a todos os aspectos da existência
humana, em especial à esfera pública burguesa, tornando seu conteúdo mera ideologia:

Se as leis do mercado, que dominam a esfera do intercâmbio de mercadorias e do


trabalho social, também penetram na esfera reservada às pessoas privadas enquanto
público, o raciocínio tende a se converter em consumo e o contexto da comunicação
pública se dissolve nos atos estereotipados da recepção isolada. 8

Assim, mesmo sem maiores pretensões políticas, a esfera pública literária logo se
transforma numa esfera de crítica ao poder do Estado, “refuncionalizando” 9 sua base de

6
HABERMAS, 1984, p. 52.
7
Idem, p. 53.
8
Idem, p. 190-191.
9
Esse termo é utilizado por Habermas para demonstrar a transformação dos institutos da esfera pública literária,
como se pode observar no seguinte trecho: “O processo ao longo do qual o público constituído pelos indivíduos
6

discussão e fazendo surgir uma esfera pública política, não como meio institucionalizado de
poder político, mas como espaço de discussão política.
A esfera pública passa, então, a ser o espaço no qual a sociedade civil delibera
publicamente sobre suas necessidades políticas e econômicas, com o intuito de estabelecer
uma nova regulamentação das relações sociais autônoma à regulação estatal, já que as
condições impostas pelo Estado Absolutista se demonstravam extremamente prejudiciais ao
desenvolvimento capitalista.
A origem da politicidade da esfera pública se deu, portanto, por necessidades
econômicas, pela contradição entre a regulamentação estatal e os anseios burgueses, no
sentido de possibilitar uma autorregulamentação de seus negócios e favorecer sua
emancipação política.
Definida por Habermas,

A esfera pública burguesa pode ser entendida inicialmente como a esfera das pessoas
privadas reunidas em um público; elas reivindicam esta esfera pública
regulamentada pela autoridade, mas diretamente contra a própria autoridade, a fim
de discutir com ela as leis gerais da troca na esfera fundamentalmente privada, mas
publicamente relevante, as leis do intercâmbio de mercadorias e do trabalho social.
O meio dessa discussão política não tem, de modo peculiar e histórico, um modelo
anterior: a racionalização pública. 10

É a racionalização da sociedade, a partir da esfera pública, o que permite à burguesia


se organizar e realizar as revoluções burguesas que marcaram os séculos XVII e XVIII.
Para consolidar o novo paradigma, fundamental se fez a criação de uma nova forma de
Estado que garantisse a dominação política e econômica pela burguesia: o Estado
Democrático de Direito.
Essa forma de organização estrutural do Estado tem como pressuposto fundamental o
direito na sua forma legislada. Habermas afirma ser a legalidade a principal preocupação
burguesa no período revolucionário. A grande questão era a necessidade de leis, contra o
governo arbitrário do monarca absolutista, que fossem abstratas e permanentes, sem qualquer
preocupação com sua universalidade ou segurança jurídica.
Contra a arbitrariedade absolutista do príncipe, cuja dominação baseava-se somente na
vontade, surge a racionalidade do governo burguês, o qual necessitava da racionalização do
direito como forma de garantir a evolução dos direitos privados burgueses:

conscientizados se apropria da esfera pública controlada pela autoridade e a transforma numa esfera em que a
crítica se exerce contra o poder do Estado realiza-se como refuncionalização (umfunktionierung) da esfera
pública literária, que já era dotada de um público possuidor de suas próprias instituições e plataformas de
discussão.” (Cf. HABERMAS, 1984, p. 68).
10
HABERMAS, 1984, p. 42.
7

‘A esfera pública burguesa desenvolvida baseia-se na identidade fictícia das


pessoas privadas reunidas num público em seus duplos papéis de proprietários e
de meros seres humanos’. Isso explica porque o Direito, como Habermas citará,
sendo a prática de uma Filosofia, ou melhor, de uma ideologia, se transformou,
preponderantemente na figura do contrato, no amálgama da sociedade burguesa. 11
(grifos do autor)

Para garantir a racionalização das leis burguesas era fundamental garantir sua
publicidade, o que não ocorria no período absolutista. Ao estabelecer a publicidade como
fundamento da elaboração legislativa, a burguesia erige a esfera pública à única fonte legítima
da legalidade:

O Estado de Direito enquanto burguês, estabelece a esfera pública atuando


politicamente como órgão do Estado para assegurar institucionalmente o vínculo
entre lei e opinião pública. A idéia burguesa de Estado de Direito vincula o Estado
a um sistema normativo, à medida do possível sem lacunas e legitimado pela
opinião pública, para eliminar o Estado como instrumento de dominação (idéia
tipicamente burguesa). A publicidade garante que o poder emana do povo, pois o
parlamento e o processo judicial podem ser criticados. Mas o critério, no entanto,
para admissão na esfera pública, é a cultura, pois a esfera pública, ainda quando
atua politicamente, continua literária. Cultura, no caso, significa inclusive, ser
proprietário, pois só o culto é quem é proprietário. Só haveria ‘ideologia’ a partir
dessa época e a sua origem seria a identificação dos ‘proprietários’ com os
‘homens simplesmente’.
A contradição está nisso: a base social da esfera pública do Estado de Direito
Burguês, aposta a toda dominação, é, em si mesma, dominadora. 12 (grifos do
autor)

Nesse primeiro momento, o Estado de Direito era dominado pela ideologia liberal, o
que restringia a esfera pública burguesa ao domínio dos burgueses, proprietários, únicos
detentores da racionalidade moderna e da capacidade de fazer política. Quanto mais o Estado
se burocratizava, mais a esfera pública se elitizava, tornando-se cada vez mais restrita aos
burgueses, detentores do poder.
Por esse motivo, a burguesia elege a democracia como mecanismo de legitimação do
Estado, tornando a esfera pública política elemento de criação e legitimação da política, na
medida em que permite a intermediação entre a sociedade civil e o poder público estatal.

3. MUDANÇAS ESTRUTURAIS DA ESFERA PÚBLICA


A esfera pública, enquanto espaço de discussão e formação da vontade política
burguesa, tal qual utilizada pelo Estado, ao longo do período liberal, como mecanismos
legitimador, foi o modelo de esfera pública política mais ou menos constante ao longo dos
tempos. É claro que houve modificações, especialmente no final do período liberal, durante o

11
ENCARNAÇÃO, op. cit., p. 18.
12
Idem, p. 19.
8

século XIX, quando a própria burguesia enfraquece sua função política por se sentir ameaçada
por sua própria invenção.
Enquanto a burguesia manteve o capitalismo na sua forma liberal, a esfera pública
manteve-se atuante como espaço social de discussão política, fundando-se na igualdade e na
legalidade como mecanismos legitimadores de sua dominação política. A esfera pública
mantinha-se firme em seus princípios, garantindo a publicidade das leis e a participação
política por meio da opinião pública:

Como uma decorrência da esfera pública e de suas funções descritas


constitucionalmente, resultou, para o procedimento dos órgãos do Estado, a
própria esfera pública, como princípio organizatório; neste sentido é que se fala de
‘publicidade’. A publicidade dos debates parlamentares garante à esfera pública a
sua influência, assegura a conexão entre deputados e eleitores como partes de um
único público. Mais ou menos à mesma época, a publicidade também se impõe
aos processos judiciais. Mesmo a Justiça independente necessita do controle da
opinião pública [...]. 13

A esfera pública nasceu e se desenvolveu sobre a idéia de publicidade e do acesso a


todos, embora mantivesse a participação na esfera pública restrira à burguesia, ao estabelecer
como condições de admissibilidade em seus debates a formação cultural e a propriedade:

Entrementes, o público tinha conquistado a sua configuração específica: é o público


leitor burguês do século XVIII. Esta esfera pública continua literária também
quando assume funções políticas; formação cultural é um de seus critérios de
admissão – a propriedade é o outro critério. 14

A própria burguesia, portanto, no momento de institucionalização da esfera pública,


com a criação do Estado de Direito, determinou suas condições de participação. Não que
tivesse impedido o acesso a todos, mas a partir de determinadas promessas, conseguiu impor,
ainda que implicitamente, referidas condições 15.
As promessas eram de que cada um, através de esforço próprio ou sorte, teria
condições de alcançar as condições necessárias à participação na esfera pública (propriedade e
formação cultural), deixando, assim, em aberto, o acesso a todos, desde que se esforçassem

13
HABERMAS, 1984, p. 104.
14
Idem, p. 105.
15
Segundo Habermas, tais condições são determinadas pelos próprios princípios da Economia Clássica, quais
sejam: “[...] o primeiro pressuposto é econômico: a garantia da livre concorrência. O segundo deriva deste, o de
que todas as mercadorias são trocadas por sei ‘valor’; este, por sua vez, deve ser medido de acordo com o
quantum de trabalho necessário á sua produção. Nisso, são consideradas mercadorias igualmente os bens
produzidos e a força de trabalho produtora. [...] O terceiro pressuposto é teórico [...]: havendo completa
mobilidade de produtores, produtos e capital, em decorrência oferta e procura sempre se compensarão entre si.
Com isso as capacidades sempre serão utilizadas ao máximo, as reservas de força de trabalho esgotadas e o
sistema, em princípio, sempre será mantido livre de crises, ficando em equilíbrio num alto nível, correspondente
cada vez ao grau de desenvolvimento das forças produtivas.” (Cf. HABERMAS, 1984, p. 106-107).
9

para alcançar o status de “cidadão”. Com isso, a burguesia conseguia garantir a aceitação pela
sociedade de sua vontade política, como sendo fruto da vontade de todos:

Se cada um, como podia parecer, tinha a possibilidade de se tornar um ‘cidadão


burguês’, então só burgueses deveriam também poder ter acesso à esfera pública
politicamente atuante, sem que, por isso, estes perdessem o seu princípio. Pelo
contrário, só proprietários estavam em condições de constituir um público que
pudesse, legislativamente, defender os fundamentos da ordem de propriedade
existente; só eles tinham, toda vez, interesses privados que automaticamente
convergissem nos interesses comuns da defesa de uma sociedade civil como
esfera privada. [...] entre o homem privado como homme e citoyen não existe
nenhuma ruptura, pois enquanto homme é, ao mesmo tempo, proprietário
privado e, enquanto citoyen, deve tomar providências, como pessoa privada, em
favor da estabilidade da ordem da propriedade. O interesse de classe é a base da
opinião pública. 16 (grifos do autor)

Com a intensificação do desenvolvimento capitalista, tornou-se evidente que tais


promessas não eras verdadeiras, o que, somando-se à influência positiva das concepções
socialistas do século XIX, permitiu a conscientização da classe trabalhadora sobre as
verdadeiras intenções da burguesia.
Antes mesmo de Marx, Hegel já havia identificado as intenções da esfera pública
burguesa, enxergando a exploração do proletariado pela burguesia e seus interesses
particulares e antagônicos aos interesses proletários.
Para Hegel, a o ideal burguês de igualdade social consistiu em mera estratégia para
envolver o povo em seus anseios revolucionários alcançar a derrubada do Estado Absolutista,
pois ao se estabelecer como classe dominante, continuou mantendo a mesma desigualdade
absolutista, apenas com uma outra roupagem. Nas palavras de Hegel, a sociedade burguesa,
“não só não supera dialeticamente [...] a desigualdade [...] posta por natureza, mas [...] eleva-a
a uma desigualdade das aptidões, da fortuna e até mesmo da formação intelectual e moral.” 17
Para Hegel somente seria possível racionalizar o pensamento político através da esfera
pública dentro de uma, “‘ordem completamente justa’; nela justiça e felicidade coincidem.
[...] o raciocínio político do público, a opinião pública está, contudo, desqualificada; o Estado
assume para si, enquanto realidade da idéia ética, tal responsabilidade, através de sua mera
existência [...].” 18
Hegel rejeita a esfera pública burguesa, mas aceita a inevitabilidade da dominação
política:

Hegel desativa a concepção de esfera pública burguesa porque a sociedade,


anárquica e antagônica, não representa a esfera, emancipada de dominação e

16
HABERMAS, 1984, p. 108.
17
HEGEL apud HABERMAS, 1984, p. 143.
18
HABERMAS, 1984, p. 146.
10

neutralizada quanto ao poder, do intercâmbio de pessoas privadas autônomas,


capaz de converter autoridade política em autoridade racional. Mesmo a sociedade
civil não pode prescindir da dominação; sim, proporcionalmente à sua tendência
natural à desorganização, ela exatamente precisa de integração através do poder
político. 19

Marx vai mais fundo em sua análise sobre a esfera pública burguesa, pois além de
identificar suas intenções manipulativas, identifica também a sistemática despolitização social
realizada por ela: “Marx denuncia a opinião pública como falsa consciência: ela esconde de si
mesma o seu verdadeiro caráter de máscara do interesse de classe burguês.” 20
Marx critica a idéia burguesa de igualdade de oportunidades a todos, possibilitando a
ascensão dos não-proprietários em proprietários, já que a própria economia capitalista se
funda na exploração de sua força de trabalho. Por isso, nunca existiria a possibilidade do
proletário, por sorte ou esforço próprio, se inserir na esfera pública burguesa.
A árdua realidade da desigualdade social capitalista, na qual as condições de
miserabilidade da classe trabalhadora se opõem à luxuosa vida burguesa, por si só já contraria
os anseios universalistas da burguesia em relação à esfera pública.
Não é possível conceber um Estado universal, representante dos interesses de toda a
sociedade, se esta sociedade é completamente antagônica. Ao contrário, nessas condições, o
capitalismo só poderia continuar se desenvolvendo se a burguesia continuasse mantendo sua
intensa dominação política.
É nesse sentido que Marx concebe o Estado como o instrumento de dominação de
classe, o qual, em sua forma racional e democrática, se coloca, perfeitamente, como o
instrumento da dominação burguesa sobre a classe trabalhadora.
Por isso, ao utilizar a esfera pública como elemento de legitimação do Estado e do
direito, o que a burguesia faz é apenas garantir a sua dominação política:

Enquanto, na reprodução da vida social, relações de poder não tiverem sido


efetivamente neutralizadas e a própria sociedade civil ainda basear-se em poder,
nenhum estado de direito pode ser construído sobre a sua base, substituindo
autoridade política por autoridade racional. Assim, então, também a dissolução de
relações feudais de dominação no seio do público pensante não é a pretensa
dissolução de dominação política de modo geral, mas a sua perpetuação em outra
forma – e o Estado de direito burguês, inclusive a esfera pública como o princípio
central de sua organização, é mera ideologia. 21

Entretanto, para impedir que a divulgação das verdadeiras intenções burguesas


acabasse gerando uma revolta popular, com a vitória para a classe proletária, a burguesia

19
HABERMAS, 1984, p. 147.
20
Idem, p. 149.
21
Idem, p. 151.
11

resolveu aumentar o sufrágio eleitoral como demonstração da universalidade da esfera pública


política burguesa:

O regime da livre-concorrência já não pode mais atender com suficiente


credibilidade à sua promessa de que com a pretensa igualdade de chances sem
obter propriedade privada ele também permita o livre-acesso à esfera pública
política. Ao invés disso, o seu princípio reclama a admissão imediata das classes
e dos trabalhadores manuais, das massas sem propriedades e não-educadas –
exatamente através da ampliação da igualdade de direitos políticos. Reforma da
justiça eleitoral é o tema do século XIX: a ampliação do público e não mais,
como no século XVIII, o princípio da publicidade enquanto tal. 22

Ocorre que,

à medida que camadas não-burguesas penetram na esfera pública política e se


apossam de suas instituições, à medida que participam da imprensa, dos partidos e
do Parlamento, a arma da publicidade, forjada pela burguesia, volta-se contra a
própria burguesia. 23

O que a burguesia não conseguiu prever, portanto, foi a organização social da classe
trabalhadora tomando também o espaço de discussão da esfera pública, inchando-a com redes
de comunicação diversas, como as associações de trabalhadores, sindicatos, partidos etc.
Em pouco tempo, os trabalhadores, enquanto maioria na sociedade, conseguem ganhar
predominância na esfera pública, com força, inclusive, de discussão política em nível
parlamentar, retirando o caráter exclusivamente burguês da esfera pública política, e
tornando-a um espaço de cunho social.
Entretanto, apesar da predominância proletária, a esfera pública política, o direito, o
Estado, enfim todos os mecanismos criados em favor da dominação política burguesa
continuaram mantendo a mesma estrutura e, conseqüentemente, a mesma finalidade. Uma
transformação social em favor do proletariado só seria possível com uma total transformação
dessas estruturas sociais, ou seja, somente através de uma revolução socialista.
Demonstração dessa hipótese é a própria realidade histórica. Para tentar despolitizar a
esfera pública tomada pelo proletariado, a burguesia, em nome do Estado, passa a negociar
com os trabalhadores seus direitos políticos e sociais, numa espécie de compensação dos
anseios proletários pela não participação no parlamento.

A esfera pública passa a ser sobrecarregada com tarefas de compensação de


interesses, que escapam às formas tradicionais de acordos e compromissos
parlamentares; aí é que se pode ainda perceber a sua origem na esfera do mercado:
- o acordo precisa ser literalmente ‘negociado’ através de pressões e
contrapressões, levando ao resultado apoiado imediatamente no equilíbrio precário
de uma constelação de forças entre aparelho de Estado e grupos de interesses. As

22
HABERMAS, 1984, p. 159.
Idem, p.152.
12

decisões políticas acabaram caindo nas novas formas de ‘barganha’, que se


desenvolveram ao lado das antigas formas de exercício do poder [...]. 24

Aos poucos, a esfera pública vai rompendo com seus princípios fundamentais. A idéia
de possibilidade de participação nas discussões políticas de todo aquele que conseguisse a ela
galgar por sorte ou merecimento próprio, passa a ser negada, pois permitiria a inserção
também da classe proletária na esfera pública.
Outro fundamento repugnado foi o da publicidade, através do qual as decisões
políticas deveriam ser submetidas ao controle do público, reunido na esfera pública. A partir
do momento em que a esfera pública se expande e esse público passa a ser ocupado por
trabalhadores sem cultura e sem propriedade, esvazia-se também a idéia de publicidade.
Na realidade, com as novas condições, ocorre verdadeira mudança estrutural da esfera
pública, gerando a conseqüente transformação do Estado, enquanto instituição política
burguesa por excelência, o qual, apesar de continuar mantendo sua estrutura de Estado
Democrático de Direito, adota nova roupagem para conseguir realizar suas funções.
Para conseguir fragmentar a esfera pública, mediante a despolitização de suas
discussões, o Estado teve passou a assumir os diversos anseios sociais como funções
institucionais do Estado Democrático de Direito – o que, é claro, não se deu sem ônus à classe
trabalhadora - retirando, com isso, a sua deliberação do âmbito da esfera pública, num
verdadeiro esvaziamento da função política da mesma.
A primeira mudança nas funções estatais ocorreu em relação à função legislativa,
principal atingida pela inserção dos trabalhadores na esfera pública. Quando o proletariado
alcança o Parlamento, passa a também ter o poder de legislar, o que coloca em risco a
manutenção da burguesia no poder.
Com isso, a burguesia retira a importância do Parlamento, esvaziando a função
legislativa, e a transfere para o Executivo, que adota uma postura paternalista e
intervencionista, quebrando a harmonia da “divisão de poderes” do Estado Democrático do
primeiro momento, criada justamente para impedir a centralização do poder, como ocorria no
Absolutismo Monárquico.
O Estado assume as despesas sociais com saúde, educação, auxílios contra o
desemprego, acidentes ou velhice, despesas que, anteriormente, eram suportadas pela família,
a qual, a partir do fortalecimento do Estado, perde até a sua finalidade social.

24
HABERMAS, 1984, p. 232.
13

Com isso, além de despolitizar a esfera pública e as instituições políticas do Estado, a


burguesia também fragmenta a esfera privada dos indivíduos, ao esfacelar a família e os
demais meios de sociabilidade privados:

Sem uma esfera privada protetora e sustentadora, o indivíduo cai na torrente da


esfera pública, que, no entanto, passa a ser desnaturada exatamente através desse
processo. Desaparecendo o momento da distância, constitutivo da esfera pública, se
os membros dela ficam ombro a ombro, então o público se transforma em
massa...[...]. 25

Para manter essa fragmentação, os indivíduos passam a ser considerados massa, com
forte caráter mercadológico. A cultura se transforma em bem de consumo. A educação erudita
mantém-se como privilégio dos mais abastados, mas os bens culturais e de lazer, de um modo
geral, popularizam-se e massificam-se cada vez mais.
O público passa a ter amplo acesso aos bens culturais, facilitado pelo próprio mercado,
tanto econômica quanto psicologicamente, barateando-os e simplificando seu conteúdo.
Com a mercantilização da cultura e da política e a imposição de uma nova
racionalidade, a sociedade, que havia tomado as rédeas da esfera pública, se desmobiliza e a
nova esfera pública burguesa passa a se identificar pelo consumo, sua principal característica:

No lugar do ‘público pensador de cultura’, aparece o ‘público consumidor de


cultura’, tornando-se a discussão um bem de consumo e surgindo as técnicas de
jornalismo de massa, cujo escopo é distrair e não raciocinar: cativam e impedem a
emancipação. O público é chamado a aclamar mais do que a participar do
processo político. O jornalismo crítico é suprimido pelo manipulativo, ao mesmo
tempo em que a divisão de Poderes Públicos tende a se dissolver. A propaganda
assume a função da esfera pública [...] notícia e anúncio perdem a distinção, numa
‘engenharia de consenso’. Consenso, agora é a boa vontade provocada pela
publicidade, reassumindo a esfera pública burguesa os traços feudais quando
cidadãos são os consumidores do Poder Público e se fabrica uma ‘esfera pública’
que não há mais.
[...]
Diante do ‘marketing político’, percebe-se a falsidade das discussões, que visam
apenas reforçar opiniões. Ao invés de esclarecimento, os partidos querem
convencer, voltando a antiga função da ideologia, na forma de venda da política,
apoliticamente. 26

Como consumidores, os cidadãos colocam-se na posição de reivindicar melhores


atendimentos por parte dos serviços estatais e não mais um lugar na política. As
reivindicações sociais restringem-se a cobrar serviços profissionais do Estado, sem qualquer
conotação política. A esfera pública política esvazia-se totalmente enquanto elemento de
discussão política e de crítica ao poder estatal.

25
BAHRDT apud HABERMAS, 1984, p. 188.
26
ENCARNAÇÃO, op. cit., p. 23.
14

Ao perceber o sucesso de sua estratégia política de fragmentação da opinião pública e


de esvaziamento da esfera pública, a burguesia passa a utilizar as necessidades de consumo
para o fim de manipular a vontade política coletiva.
Num primeiro momento essa estratégia manipulativa chega a parecer contraditória, já
que implica em concretizar as necessidades sociais para garantir o consenso social em relação
ao Estado.
Entretanto, em nenhuma hipótese essa contradição significou a possibilidade de
criação de uma opinião não-pública capaz de influenciar as decisões governamentais, uma vez
que tal opinião não se constrói pela vontade e consciência popular, mas pela própria noção de
Estado de bem-estar social:

Esta espécie de formação da vontade submeter-se-ia antes ao absolutismo


esclarecido de um regime autoritário estruturado como Estado-social do que a um
Estado social-democrático de Direito: tudo para o povo, não pelo povo [...]. A
rigor, através desse procedimento não se garantiria sequer o ‘bem-estar’. Pois a
uma opinião não-pública indiretamente determinada faltaria, além do marco da
autonomia, o da racionalidade enquanto tal. Por melhor que sejam intermediados
os motivos às camadas mais amplas, satisfaze-los não oferece ainda nenhuma
garantia de que correspondam aos interesses objetivos delas. 27 (grifos do autor)

Até mesmo a forma de realização da democracia assume feição mercadológica. A


mídia se coloca como o meio de realização da política e as eleições passam a encenar o
exercício da democracia através da propaganda publicitária:

Os partidos e as suas organizações auxiliares vêem-se, por isso, obrigados a


influenciar as decisões eleitorais de modo publicitário, de um modo bem análogo à
pressão dos comerciais sobre as decisões de compra: surge o negócio do
marketing político. Os agitadores partidários e os propagandistas ao velho estilo
dão lugar a especialistas em publicidade, neutros em matéria de política partidária
e que são contratados para vender política apoliticamente. 28

Com a mudança estrutural da esfera pública, portanto, a burguesia mantém sua


dominação política através da idéia manipulativa e apolítica de participação política e
econômica de toda a sociedade. A democracia, a opinião pública, o direito, a cultura, enfim a
própria noção de esfera pública, se transforma em mecanismo ideológico para mascarar a
dominação burguesa e manter a alienação e a despolitização social.
É o que Habermas chama de um “consenso fabricado” 29, através do qual toda e
qualquer decisão política se autolegitima por meio da aceitação acrítica e do conformismo
produzido pela alienação.

27
HABERMAS, 1984, p. 255.
28
Idem, p. 252.
29
Idem, p. 228-229.
15

Com o esvaziamento da função política da esfera pública, o Estado de Bem-Estar


Social consegue manter a legitimidade da dominação burguesa, sem precisar alterar a
estrutura democrática, mantendo a idéia de soberania popular como seu mecanismo de
legitimação, sem se preocupar com a reação crítica das classes sociais excluídas.
A partir dessa nova lógica apolítica da esfera pública, Habermas passa a refletir sobre
um método prático-teórico de participação dos sujeitos sociais na realização do consenso: é a
teoria do agir comunicativo, que “situa o sujeito como consciência atual, preparando-o para
a ação dentro do interesse do grupo. E isso só se consegue pelo consenso alcançado mediante
os discursos práticos [...].” 30
João Bosco da Encarnação, um verdadeiro estudioso de Habermas, demonstra que,
desde a “Mudança estrutural da esfera pública”, referido autor vem tentando fortalecer sua
teoria da práxis comunicativa, como uma maneira de romper com a apoliticidade e a
desestruturação da esfera pública:

[...] desde a ‘Mudança estrutural da esfera pública’ que Habermas se preocupa


com a despolitização da opinião pública, quando lança a possibilidade de um
conceito de opinião pública que seja historicamente repleto de sentido, suficiente
em termos normativos para as exigências da constituição social-democrata,
teoricamente claro e empiricamente aplicável, o qual só pode ser ganho a partir da
dimensão do seu desenvolvimento.
[...]
Dessa forma, procura situar seu pensamento na era do ‘pós-moderno’, declarando
que o paradigma da filosofia da consciência encontra-se esgotado, devendo
dissolver-se os sintomas desse esgotamento na transição para o paradigma da
compreensão. 31

Como é possível observar, toda a teoria habermasiana – a noção de esfera pública e de


opinião pública, a idéia do agir comunicativo, a democracia deliberativa etc. – se dirige ao
resgate do projeto histórico-filosófico da modernidade, colocando a racionalidade como
elemento central de sua teoria. Como já dizia Hegel, ao conceber a esfera pública como uma
espécie de racionalização da dominação: “O que agora deve ter vigência, não vige mais
através da força e pouco através de usos e costumes, mas sim através da compreensão e de
razões.” 32

4. MECANISMOS DE LEGITIMAÇÃO EM HABERMAS


Como base institucional da esfera pública, encontra-se, portanto, a própria sociedade
civil, através das associações e organizações civis, funcionando como redes de comunicação

30
ENCARNAÇÃO, op. cit., p. 26-27.
31
HABERMAS, 1984, p. 116.
32
HEGEL apud HABERMAS, 1984, p. 142.
16

espontâneas, levando ao conhecimento dos canais institucionalizados de poder os anseios


mais ou menos organizados que nutrem a esfera pública.
A esfera pública funciona, portanto, como o espaço de vinculação dessas redes de
comunicação espontâneas com os canais institucionalizados de poder, relação esta que, na
concepção de Habermas, permite o surgimento da democracia deliberativa.
Para Habermas, a democracia se realiza como um procedimento que pressupõe, ao
mesmo tempo, instituições estáveis, juridicamente reguladas, e deliberação pública, não
podendo se realizar com a mera deliberação entre os atores sociais,

diante da complexidade das modernas ordens sociais, não basta supor o


acatamento de um princípio garantidor das condições simétricas de participação
em decisões racionalmente motivadas [...]. Imprescindível é institucionalizá-lo
juridicamente, pois somente o sistema jurídico dispõe de meios para assegurar o
cumprimento das normas aprovadas pelo teste de justificação discursiva operado
por sujeitos de direito que esperam certos comportamentos uns dos outros. E, ao
assumir figura jurídica, o princípio do discurso transforma-se em princípio da
democracia. 33

Instituições estáveis não significam, entretanto, instituições imutáveis. Por isso, a


esfera pública serve não somente como espaço para as deliberações públicas, mas também
como mecanismo de construção e reconstrução das instituições democráticas, que nada mais
são que conseqüências da democracia deliberativa e não apenas condição para a sua
existência, desde que, naturalmente, tudo se realize conforme o procedimento democrático,
pois somente por seu intermédio as decisões se legitimam.
Este é o processo de legitimação do Estado Democrático de Direito, um processo que
funda sua legitimidade na legalidade, mas desde que se permita a participação dos atores
sociais na elaboração das normas legais, o que se realiza por meio do procedimento
democrático. Ou seja, “o processo legislativo de criação das normas por si só não basta como
critério de legitimidade do ordenamento jurídico: a legitimidade surge da legalidade somente
na medida em que os destinatários das normas vêem-se como seus atores.” 34
A democracia, para Habermas, funda-se nos processos de comunicação entre os
cidadãos de um Estado, sustentados por um consenso social motivado pelo uso da razão. O
consenso que garante a permanência do Estado Burguês de Direito se orienta, portanto, pelo
agir comunicativo.

33
BENETTI, Liliane. O fundamento da legitimidade do direito na teoria de Jürgen Habermas. São Paulo:
USP, 2002. Dissertação (Mestrado em Filosofia do Direito), Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo,
2002. p. 87.
34
Idem, ibidem.
17

É nesse sentido que Habermas afirma não existir Estado de Direito sem democracia,
especialmente a democracia deliberativa, enquanto procedimento efetivo de participação
política, a qual, ao mesmo tempo, é criada e legitimada por processos discursivos de formação
da opinião pública e, conseqüentemente, de uma vontade política coletiva.
Entretanto, Habermas se ilude com a plausibilidade prática desse tipo de democracia,
uma vez que um procedimento como este pressupõe uma sociedade civil livre e igualitária, na
qual seja possível a igualdade tanto de participação quanto de acesso às informações
necessárias ao debate político.
Seria pré-condição de uma democracia deliberativa, fundada no agir comunicativo,
assegurar a toda sociedade, sem qualquer diferenciação social, condições mínimas de
comunicação que assegurassem efetivamente a formação de uma vontade coletiva fundada no
acordo consensual. Tal proposta seria, portanto, utópica em sociedades menos desenvolvidas,
como a sociedade brasileira 35, ou pensando em termos mais amplos, até mesmo em qualquer
sociedade de classes.
Ou então o que Habermas deseja é justamente manter a legitimidade da dominação
burguesa, já que a esta se restringe a possibilidade de participação no procedimento
democrático, tanto o acesso à atividade deliberativa quanto a participação política nas
instituições democráticas, o que se coaduna com sua afirmativa de impossibilidade de
existência do Estado de Direito sem a democracia com os objetivos práticos da democracia
deliberativa.
Partindo da concepção do Estado de Direito como a instituição criada pela burguesia
para possibilitar o exercício de seus anseios políticos e econômicos e manter a legitimidade de
sua dominação política, observa-se a veracidade de sua afirmativa, eis que a democracia, em
nossa sociedade, tem como objetivo justamente restringir todo o procedimento de participação
política à própria burguesia, o que faz com que qualquer decisão política burguesa se legitime
automaticamente.
Através da elaboração da teoria do agir comunicativo, o que Habermas pretende,
portanto, é tão-somente reafirmar a democracia burguesa, garantindo a essência da esfera
pública, enquanto arena de formação da vontade burguesa e não de uma vontade realmente
pública e emancipada. É um espaço de debate da burguesia através do qual é possível manter
o processo democrático e a legitimidade política restritos a ela. É, portanto, fenômeno
essencialmente moderno, totalmente racionalizado e arraigado de valores burgueses.

35
Importante salientar que toda a teoria habermasiana concentra sua análise na sociedade européia, restringindo,
portanto, sua abordagem histórica aos modelos europeus de esfera pública vigentes a partir do século XVIII.
18

Para Habermas, ainda hoje a esfera pública é o espaço social no qual se realiza a ação
comunicativa, onde os atores sociais podem erigir suas diversas experiências pessoais a
verdadeiros fatos políticos, comunicando-se como entes racionais e erigindo seus valores a
normas, mantendo, assim, seu caráter emancipador ainda nos dias de hoje.
Ao mesmo tempo, Habermas critica a teoria marxista como uma utopia distante da
realidade:

O movimento estudantil de 1968 e suas reações demonstraram que não há mais o


antagonismo de classes, estabelecendo-se uma nova zona de conflitos que é o da
opinião pública administrada pelos meios de comunicação, ocultando-se as
diferenças entre questões técnicas e práticas, diz Habermas. 36

A partir dessa crítica, Habermas pretende reconstruir o materialismo histórico com a


sua teoria do agir comunicativo, a partir da alegação de que,

realizar o materialismo histórico é adaptá-lo, como teoria crítica da sociedade, a


uma nova realidade que nos oferece o capitalismo tardio. As condições da vida
social hoje não são as mesmas dos tempos de Marx e por isso, para tornar possível
a sua crítica, é preciso que se renovem os termos em que foi proposta. A essência
do pensamento de Marx é mantida, na medida em que ele se revela um iluminista,
preocupado com a emancipação do homem e que se dá através da práxis, que é
também a preocupação ainda iluminista de Habermas. Tanto assim que o conceito
de verdade política estabelecido por Marx, na tradição do direito natural moderno,
segundo a qual a verdade é feita pelo homem, permanece possível diante de uma
teoria da comunicação. 37

Entretanto, o que ele faz é criar uma teoria legitimadora da apatia social vivida
atualmente, na medida em que, com sua teoria sobre o agir comunicativo, substitui a práxis
transformadora pela argumentação pura e simples, rompendo de vez com a vertente
emancipatória da primeira geração da Escola de Frankfurt.
Assim, não obstante Habermas ainda ser considerado o mais importante filósofo da
segunda geração da Escola de Frankfurt, muito pouco sobrou da “Teoria Crítica da
Sociedade” e sua ruptura com o pensamento iluminista enquanto racionalidade típica da
modernidade.
Os primeiros frankfurtianos, como Adorno e Horkheimer não acreditavam na
possibilidade de superação dialética da razão instrumental; perderam a confiança na razão
iluminista, restando-lhes apenas uma “Dialética Negativa”, na tentativa de explicar as razões
dessa impossibilidade de libertação do homem pela razão. Adorno e Horkheimer,

não acreditavam, em oposição ao marxismo ortodoxo, que o capitalismo gerasse


contradições internas, isto é, que produzisse sua superação dialética. Isso porque,

36
ENCARNAÇÃO, op. cit., p. 120.
37
Idem, p. 119.
19

em virtude da intervenção estatal na Economia, as tensões entre relação de


produção e força produtiva amenizaram-se a ponto de coexistirem em perversa
simbiose: o desenvolvimento das forças produtivas engendrou um sistema
planejado e monopolista, ensimesmado e sem fissuras. Sem a superação dialética,
restava à teoria crítica apenas fornecer explicações para esse ‘travamento’ de
sociedades contidas em si mesmas. Com isso, os autores deixaram de perceber o
viés emancipatório da razão ao confiná-la nos limites da racionalidade com respeito
a fins. [...] Só lhes restou, nos termos de Adorno, a Dialética Negativa, uma vez que
a crítica possível se fez em nome de uma proporcionalidade inexistente, de algo que
poderia ter sido e não foi, e não pode mais ser. 38

No lado oposto à “dialética negativa” frankurtiana, encontra-se Habermas defendendo


justamente o potencial emancipatório da razão iluminista. Não que Habermas negue por
completo o diagnóstico de seus companheiros frankfurtianos, mas tenta encontrar alternativas,
na própria racionalidade, à reificação do homem moderno:

[...] o projeto da modernidade, formulado no século XVIII pelos filósofos do


Iluminismo, consiste em desenvolver impertubavelmente, em suas respectivas
especificidades, as ciências objetivantes, os fundamentos universalistas da moral e
do direito, e a arte autônoma, mas, ao mesmo tempo, consiste também em liberar
os potenciais cognitivos assim acumulados de suas elevadas formas exotéricas,
aproveitando-os para a prática, ou seja, para uma configuração racional das
relações de vida. Iluministas do quilate de Condorcet ainda alimentavam exaltadas
esperanças de que as artes e as ciências não fomentariam apenas o controle das
forças naturais, mas também a interpretação de si mesmas e do mundo, o
progresso moral, a justiça das instituições sociais e mesmo a felicidade dos
homens. Pouca coisa restou desse otimismo no século XX. Mas o problema
permaneceu e, como outrora, os espíritos se dividem a saber se conservam as
intenções do Iluminismo, por mais abaladas que estejam, ou dão por perdido o
projeto da modernidade. 39

Ou seja, num contexto de crítica à metafísica, em pleno século XX, Habermas resolve
construir uma nova percepção, ainda mais ampliada, da racionalidade iluminista, sustentando
que, para se chegar a um consenso comunicativo, além do equilíbrio entre os diversos
interesses particulares, devem-se também respeitar as regras procedimentais relativas ao
discurso, ou seja, princípios universais que são ligados à própria lógica do discurso prático. 40

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENETTI, Liliane. O fundamento da legitimidade do direito na teoria de Jürgen


Habermas. São Paulo: USP, 2002. Dissertação (Mestrado em Filosofia do Direito),
Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2002.

38
BENETTI, op. cit., p. 7.
39
HABERMAS, Jürgen. Modernidade: um projeto inacabado. In. ARANTES, Otília e Paulo. Um ponto cego no
projeto moderno de Jürgen Habermas. São Paulo: Brasiliense, 1992. p. 110-111.
40
CADERMATORI, Sérgio. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 1999. p. 121, nota 269.
20

CADERMATORI, Sérgio. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantista.


Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. tradução de Ruy
Jungmann. revisão, apresentação e notas de Renato Janine Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1993. v. 2.
ENCARNAÇÃO, João Bosco da. Filosofia do Direito em Habermas: a hermenêutica. 3 ed.
Lorena, São Paulo: Stiliano, 1999.
HABERMAS, Jurgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. tradução de Vamireh
Chacon. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1980.
__________________. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma
categoria da sociedade burguesa. tradução de Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984.
__________________. Modernidade: um projeto inacabado. In. ARANTES, Otília. Um
ponto cego no projeto moderno de Jürgen Habermas. São Paulo: Brasiliense, 1992.

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