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A LEGITIMAÇÃO DO DIREITO E DO ESTADO EM MAX WEBER 1

Priscilla Cardoso Rodrigues 2

1. A RACIONALIZAÇÃO WEBERIANA
O grande teórico da Modernidade que primeiramente deitou suas atenções ao
entendimento dos mecanismos de legitimação utilizados pela burguesia para garantir a
manutenção da sua dominação política foi Max Weber, expandindo a idéia de racionalização
para todos os aspectos da sociedade: “[...] o capitalismo é a racionalização da economia; a
secularização é a racionalização das crenças; e a burocracia é a racionalização da
administração.” 3
Weber construiu toda sua metodologia científica a partir da idéia de racionalização de
todas as esferas da existência humana, o que torna evidente o caráter profundamente
ideológico de seu pensamento, uma vez que a racionalidade somente se colocou como o
fundamento da modernidade por ser de especial importância para o desenvolvimento do modo
de produção capitalista e, conseqüentemente, da dominação burguesa-ocidental,
especialmente por conseguir sepultar, de vez, o pensamento metafísico religioso medieval.
Por isso a racionalidade se configura como o fundamento de todo o conhecimento moderno.
O purismo metodológico weberiano e sua racionalidade surgem como os mecanismos,
por excelência, de construção do conhecimento científico, ao longo de toda a Modernidade.
No mesmo sentido, dirige-se o positivismo aplicado às ciências humanas durante o século
XIX, introduzindo os métodos e procedimentos tipicamente praticados nas ciências exatas ou
biológicas para o estudo das relações humanas.
A especialização e a compartimentação do saber são pregadas por Weber como a única
forma possível de construção do conhecimento, o que é utilizado pelo capitalismo para
justificar a exploração da força de trabalho. Ao fragmentar a atividade produtiva, o capitalista
torna o trabalhador dependente do conhecimento técnico global da produção, tornando seu
trabalho alienado, sendo, este, portanto, o método da racionalização aplicado ao processo
produtivo capitalista.
Para Weber, a racionalização,

1
Texto adaptado da seguinte dissertação de Mestrado: RODRIGUES, Priscilla Cardoso. Reflexão sobre a
legitimação do Estado contemporâneo. 2005. Dissertação (Mestrado em Direito). Programa de Pós-Graduação
em Direito da Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista, Franca, 2005.
2
A autora é professora do Instituto de Ciências Jurídicas e do Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena
da Universidade Federal de Roraima.
3
COELHO, Luiz Fernando. Teoria Crítica do Direito. 2 ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991. p. 362.
2

consiste na organização da vida, por divisão e coordenação das diversas atividades,


com base em um estudo preciso das relações entre os homens, com seus
instrumentos e seu meio, com vistas à maior eficácia e rendimento. Trata-se, pois
de um puro desenvolvimento prático operado pelo gênio técnico do homem. [...]
um refinamento engenhoso da conduta da vida e um domínio crescente do mundo
exterior. 4

Dentro da idéia de racionalização, defende um tipo de economia aberta, com livre


concorrência tanto interna quanto externa, como o meio mais igualitário de organização
econômica. Para Weber, sistemas econômicos fechados, como o socialismo, tendem a criação
de privilégios, com a criação de monopólios, o que só prejudica a evolução política da
sociedade.
Referida afirmativa não significa, entretanto, que Weber é cego quanto à possibilidade
de ocorrência de monopólios no capitalismo, o que se verificou na realidade histórica, com a
concentração industrial e o protecionismo estatal. O que Weber alega é que, ainda que ocorra
essa concentração, ela será apenas um mecanismo temporário de superação de suas crises, por
ser a essência do capitalismo democrática, fornecendo iguais oportunidades a todos.
De qualquer maneira, até mesmo em sua forma monopolística, o capitalismo é
conseqüência da crescente racionalização da sociedade ocidental. Entretanto, Weber não
concebe o capitalismo como uma forma única de organização da economia.

A complexidade das causas do capitalismo, bem como a dos elementos que não
cessaram de intervir no curso de seu desenvolvimento histórico, indicam
suficientemente que não há um capitalismo único que se deixaria reduzir a uma
fórmula ou a um slogan. [...] Por esta razão e para dar uma unidade pelo menos
formal a este vasto desenvolvimento econômico, tão diverso segundo os países e
as épocas, Weber prefere em geral falar do espírito do capitalismo. 5

É parte de sua teoria da racionalização também a concepção de que homem ocidental é


o único detentor da capacidade de raciocinar sobre suas conquistas e transmiti-las ao resto da
humanidade; nenhuma outra civilização ao longo da existência humana conseguiu alcançar
tão alto grau de racionalidade.
É nesse sentido que Weber define a racionalização como a

obra contingente de um certo tipo de homens que podem eventualmente transmiti-la


para o resto da Humanidade. Mais exatamente, ela caracteriza o sentido que esses
homens deram a suas atividades, não o fim inelutável do desenvolvimento do
mundo, anunciado pelas filosofias ‘emanatistas’ da História. 6

4
FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber. tradução de Luís Cláudio de Castro e Costa. revisão de Paulo
Guimarães de Couto. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 19.
5
Idem, p. 129.
6
Idem, p. 20.
3

Weber não desconsidera, entretanto, a existência de atos racionais em outras


civilizações, como são exemplos os pensamentos de Confúcio e Buda, entre outros
personagens da civilização não-ocidental, em que se observa alto grau de racionalização.
Entretanto, alega, tal racionalização permaneceu estática, restrita aos limites daqueles
personagens históricos, diferentemente do que ocorreu com a civilização ocidental, na qual a
racionalidade se tornou o próprio mecanismo de desenvolvimento social, em todas as suas
esferas:

[...] a racionalização da cultura ocidental apresenta certo número de traços


absolutamente característicos, peculiares apenas a ela, embora hoje se propaguem
ao mundo inteiro. [...] O Estado racional com suas instituições especializadas, sua
Constituição escrita regulamentando a atividade política é desconhecido em outras
partes. [...] só no Ocidente se encontra um pensamento jurídico racionalizado,
herdeiro do direito romano ou ainda um edifício como o direito canônico. Também
não existe equivalente da burocracia européia formada de especialistas, de juristas
e de técnicos. 7

A economia, a arte, a religião, a política, todas as esferas da vida social se mostram


extremamente racionalizadas, sendo este o elemento característico da sociedade ocidental, ou
seja, a racionalidade não se limita a determinado setor, como a economia ou a política, mas
invade todos os aspectos da existência humana. “Em suma, o mundo se torna cada vez mais a
obra artificial do homem, que o governa quase como se comanda uma máquina.” 8
Nada mais contrário à racionalização que os valores humanos. Por isso a rejeição de
Weber à possibilidade de valoração do conhecimento científico, já que eles são sempre
irracionais, impassíveis de harmonização.
Para o autor, o antagonismo de valores nunca conseguirá ser superado. Não existe
ética capaz de eleger o melhor valor, pois a própria essência do valor é uma essência
contraditória: “No mundo se confrontam valores múltiplos e fins últimos que, por sua própria
pluralidade, sustentam a irracionalidade. Digam o que quiserem, o verdadeiro, o bom e o belo
não se deixam reduzir um ao outro ou se conciliar.” 9
Por esse motivo, toda a teoria sociológica weberiana fundou-se sobre bases empíricas,
nas quais apenas a análise pura dos dados históricos, a partir de uma neutralidade axiológica,
poderia produzir conceitos sociológicos seguros, sob o risco de a valoração alterar o próprio
objeto de análise.
Entretanto, não há como conceber a idéia de que o cientista, o qual, enquanto ser
humano que se caracteriza justamente por sua capacidade de valorar, possa despir-se de seus

7
FREUND, op. cit., p. 106.
8
Idem, p. 107.
9
idem, p. 25.
4

valores e elaborar uma análise pura, avalorativa. A própria defesa desse purismo
metodológico, por si só, implica tomada de posição e eleição de determinados valores em
detrimento de outros.
Dentro de sua racionalização metodológica, com a finalidade de garantir o purismo do
conhecimento científico, Weber introduz o conceito de tipos ideais para analisar os diversos
conceitos sociológicos.
Para o autor, a utilização de tipos ideais impede a confusão metodológica gerada pelo
uso indiscriminado dos conceitos históricos, pois, como o conteúdo de um conceito varia em
cada época, a confusão de conceitos pode levar à imprecisão teórica do fato social. A
existência de tipos ideais, como categorias científicas para o estudo das ciências humanas
permite alcançar o rigor metodológico e conceitual almejado por Weber:

O historiador e o sociólogo acreditam descrever cientificamente a realidade e, no


entanto, sua linguagem é formada de termos não trabalhados pela reflexão,
desprovidos de toda univocidade [...]. É para dar aos conceitos utilizados pelo
método histórico de um rigor suficiente, que Weber criou a noção de tipo ideal. 10

A função dos tipos ideais, portanto, é a de orientar a pesquisa, a partir do estudo da


realidade dos fenômenos em sua singularidade, o que não quer dizer que esses tipos serão
encontrados em sua pureza na realidade histórica. A própria denominação “ideal” dá a idéia
de que o conceito por ele abordado é apenas uma utopia a direcionar a compreensão do
fenômeno histórico.

2. A DEFINIÇÃO DE ESTADO EM WEBER


Weber reconhece a importância do Estado para a consolidação da economia
capitalista, mas o concebe como uma instituição eminentemente política, fruto da
racionalidade da civilização ocidental moderna, sendo portanto, uma instituição
historicamente determinada, o que não quer dizer, entretanto, que não existia política em
outros momentos históricos; o que não existia era a política reduzida ao Estado, como ocorre
na modernidade.
Para Weber, o que diferencia o Estado de outras organizações políticas existentes na
História é o monopólio legítimo da política, conseqüência do monopólio do uso legítimo da
força:

Esse é o seu caráter específico ao qual se acrescentam outros traços: de um lado,


comporta uma racionalização do direito com as conseqüências que são a

10
FREUND, op. cit., p. 48.
5

especialização do poder legislativo e judiciário, bem como a instituição de uma


polícia encarregada de proteger a segurança dos indivíduos e de assegurar a ordem
pública; de outro lado, apóia-se em uma administração racional, baseada em
regulamentos explícitos, que lhe permitem intervir nos domínios mais diversos,
desde a educação até à saúde, a economia e mesmo a cultura; enfim, dispõe de
uma força militar por assim dizer permanente. 11

Na realidade, o que diferencia o Estado das outras sociedades políticas é a


racionalização da dominação.
Não é que inexistam relações de dominação, de mando e obediência, em outras
sociedades; ela faz parte da organização do homem em sociedade. Em qualquer organização
social, é necessária uma autoridade capaz de exercer a dominação, podendo ela ser uma
pessoa ou um pequeno grupo, nunca toda a sociedade sobre ela mesma ou a maioria sobre a
minoria social.
As razões pelas quais os demais membros da sociedade obedecem a essa minoria
podem até variar, mas a existência da dominação está sempre presente nas organizações
sociais. Nos Estados, essa legitimação se realiza mediante o procedimento democrático como
forma de revezamento das minorias no poder, garantindo sua legitimidade constante e a
perpetuação da autoridade no poder.
A racionalização da dominação nos Estados fez surgir a burocracia como mecanismo
auxiliar da dominação legal-racional, sendo, por esse motivo, colocada no centro da teoria
democrática weberiana. Para Weber, a administração do Estado, bem como suas principais
decisões políticas e econômicas, não podia ficar a mercê da vontade do povo, o que inevitável
a organização burocrática para a racionalização dos processos decisórios do Estado.
Por isso, tornou-se característica do Estado, enquanto organização política do modo de
produção capitalista, a existência de um quadro administrativo, formado por funcionários
especializados para realizar funções racionais de administração estatal.
Na esteira de Weber, Carl Schmitt define a burocracia como:

El conjunto de los funcionarios y a la fuerza armada del Estado, que solo pueden
ser considerados como un aparato técnico en manos del gobierno, no constituyen de
por sí, propiamente hablando, ni una fuente de legalidad ni una base para la
legitimidad. 12

Retomando a concepção weberiana de burocracia, Schmitt defende a necessidade da


burocracia se manter como um aparato avalorativo, neutro e racionalista, sem uma posição
política definida, o que a permite amoldar-se a qualquer tipo de Estado.

11
FREUND, op. cit., p. 159.
12
SCHMITT, Carl. Legalidad y legitimidad. tradução de Jose Diaz Garcia. Madrid: Aguilar, 1971. p. 18.
6

Com efeito, na realidade histórica, verifica-se a existência da burocracia no Estado


Liberal e, ainda mais fortalecida, no Estado de Bem-Estar, com funções não somente
administrativas, mas também de legitimação do Estado, como observa Schmitt:

Aquí es de interés señalar que cuando la legalidad normativista de un Estado


legislativo parlamentario se transforma en un funcionalismo vacío que se limita a
registrar las resoluciones de la mayoría, cualesquiera que estas sean, puede
acoplarse al funcionalismo impersonal de la aspiración burocrática a la
reglamentación. En esta alianza – extraña en su idea, pero fácil de comprobar,
según toda experiencia práctica – entre la legalidad y el funcionalismo técnico, la
burocracia prevalece a la larga como el aliado hegemónico ya acaba por convertir
a la ley del Estado legislativo parlamentario en la disposición del Estado
administrativo burocrático. 13

Habermas situa a origem da burocracia já na primeira formação estatal que é o Estado


Absolutista, período no qual já se observa sua principal característica: conhecimento técnico
especializado por parte de seus integrantes, especialmente o jurídico: “o seu cerne é
constituído por funcionários da administração feudal, especialmente por juristas (ao menos no
continente europeu, onde a técnica do Direito Romano herdado é manipulada como
instrumento de racionalização do intercâmbio social).” 14
Pela mesma necessidade de racionalização da dominação, Weber coloca o direito
também no centro da discussão política, como o fundamento de legitimação por excelência do
Estado Moderno.
Após realizar um esboço histórico do processo de progressiva racionalização do
direito conclui que,

as qualidades formais do direito desenvolvem-se nesse processo a partir da


combinação de um formalismo magicamente condicionado a uma
irracionalidade determinada pela origem em revelações, no procedimento
jurídico primitivo, passando eventualmente, por uma racionalidade material ou
não-formal, ligada a um fim e patrimonial e teocraticamente condicionada, rumo
a uma racionalidade e sistemática jurídica crescentemente especializada e,
portanto, lógica e, por essa via – sob aspectos puramente externos -, ao
progresso da sublimação lógica e do rigor dedutivo do direito e da técnica
racional do procedimento jurídico. 15

Esse direito racionalizado é, portanto, a mais avançada espécie de direito encontrada


em toda a humanidade, sendo encontrado somente nas sociedades modernas do Ocidente.

13
SCHMITT, op. cit., p. 22.
14
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da
sociedade burguesa. tradução de Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. p. 37.
15
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos de uma sociologia compreensiva. tradução de Regis
Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. revisão técnica de Gabriel Cohn. 3 ed. Brasília: Universidade de Brasília,
2000. v. 2. p. 143.
7

Para Weber, somente condições históricas encontradas na civilização ocidental


permitiriam ao direito passar por todo esse processo de racionalização até chegar no seu mais
alto estágio evolutivo, na Modernidade.
Weber entende que foram também necessidades econômicas, em especial exigências
do próprio desenvolvimento capitalista da economia, fatores importantes para a racionalização
do direito, mas não as concebe como o fator decisivo. Outros fatores como os distúrbios
ocasionados por guerras, a necessidade de consolidar a dominação sobre determinado
território, etc., que são fatores políticos, também se demonstraram determinantes para o
surgimento do direito racional-formal.
Num primeiro momento da racionalização do direito, no início do Estado moderno,
não obstante a necessidade do formalismo, herança do direito romano, o direito teve que se
adequar aos interesses do monarca absolutista. Entretanto, numa segunda fase, quando a
burguesia toma para si, efetivamente, a estrutura estatal, com todos os seus acessórios de
dominação, em especial, o direito, ocorre “um retorno do formalismo cuja finalidade foi desta
feita conciliar a lógica jurídica com as exigências materiais de origem extrajurídica, isto é, as
liberdades individuais e os imperativos coletivos.” 16
As principais características do direito moderno são o formalismo, a técnica e a
especialização, qualidades que Weber defende como fundamentais para a manutenção e
desenvolvimento da estrutura sócio-política existente sob a égide do capitalismo.
É evidente que o formalismo do direito sofre pressões diversas: da economia (que
exige sua quebra sempre que for necessário para garantir a segurança das relações
comerciais), das classes menos favorecidas (que exigem uma justiça material voltada para a
compensação das desigualdades sociais), dos leigos (que exigem um direito mais
compreensível a todos, menos técnico) e até mesmo da judicatura (que pressionam por
pretensões de poder), mas para Weber, a especialização técnica, inclusive com o conseqüente
desconhecimento crescente pelos leigos, é inevitável e irreversível nas atuais condições em
que vive a civilização ocidental.
Nesse sentido, ao analisar o comportamento da maior parte da sociedade perante a lei,
Weber conclui que,

a massa se orienta inconscientemente, por hábito, segundo as prescrições legais,


sem ter nenhum conhecimento de sua vigência ou de seu texto, por vezes
ignorando mesmo a sua existência. [...] O progresso na racionalização do direito

16
FREUND, op. cit., p. 191.
8

não se faz acompanhar necessariamente de uma submissão crescente dos


comportamentos à sua validade normativa. 17

Por isso a necessidade de existência de um aparato de coerção para garantia da


obediência ao direito estatal.
De qualquer maneira, para Weber, a dominação deve sempre ser justificada para
conseguir garantir a sua legitimidade, realizada pelo convencimento da necessidade de
aceitação da dominação em troca de um favorecimento maior. Nos sistemas sociais
caracterizados pela racionalização do poder este se justifica pela legalidade.

3. MECANISMOS DE LEGITIMAÇÃO EM WEBER


A análise tipológica de Weber define a legitimação da dominação política a partir de
três fundamentos principais, que definem três tipos puros de dominação: dominação
carismática, dominação tradicional e dominação legal. Entretanto, antes de sua análise,
importante se faz compreender os conceitos de dominação e legitimação em Weber.
Para Weber, a concepção de dominação se refere à probabilidade de alguém,

encontrar obediência a uma ordem de determinado conteúdo, entre determinadas


pessoas indicáveis; disciplina é a probabilidade de encontrar obediência pronta,
automática e esquemática a uma ordem, entre si, a pluralidade indicável de pessoas,
em virtude de atividades treinadas 18

Dominação difere-se de poder, na medida em que este é mais genérico que aquela,
sendo “toda probabilidade de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra
resistências, seja qual for o fundamento dessa probabilidade” 19. Ou seja, qualquer tipo de
diferenciação de capacidade que coloque alguém em situação de mando sobre a outra é
considerada poder.
Somente quando essa capacidade é representada por uma ordem é que se transforma
em dominação:

A situação de dominação está ligada à presença efetiva de alguém mandando


eficazmente em outros, mas não necessariamente à existência de um quadro
administrativo nem à de uma associação; porém certamente – pelo menos em todos
os casos normais – à existência de um dos dois. Temos uma associação de
dominação na medida em que seus membros, como tais, estejam submetidos a
relações de dominação, em virtude da ordem vigente. 20

17
FREUND, op. cit., p. 179.
18
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos de uma sociologia compreensiva. tradução de Regis
Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. revisão técnica de Gabriel Cohn. 3 ed. Brasília: Universidade de Brasília,
2000. v. 1, p. 33.
19
Idem, ibidem.
20
Idem, ibidem.
9

Em termos individuais, aceitação da dominação pode ter como motivos, “desde o


hábito inconsciente até considerações puramente racionais, referentes a fins. Certo mínimo de
vontade de obedecer, isto é, de interesse (externo ou interno) na obediência, faz parte de toda
relação autêntica de dominação.” 21
Já em termos sociais, a dominação exige, inexoravelmente, a existência de um quadro
administrativo que dirija a ação social no sentido da execução de ordens estabelecidas de
maneira legítima.
Sobre a necessidade da legitimação da dominação, alega Weber:

Conforme ensina a experiência, nenhuma dominação contenta-se voluntariamente


com motivos puramente materiais ou afetivos ou racionais referentes a valores,
como possibilidades de sua persistência. Todas procuram despertar e cultivar a
crença em sua ‘legitimidade’. Dependendo da natureza da legitimidade pretendida
diferem o tipo de obediência e do quadro administrativo destinado a garanti-la, bem
como o caráter do exercício da dominação. E também, com isso, seus efeitos. Por
isso, é conveniente distinguir as classes de dominação segundo suas pretensões
típicas à legitimidade. 22

Assim, para que uma ordem ou uma dominação sejam consideradas legítimas é
necessário “que a própria pretensão de legitimidade, por sua natureza, seja ‘válida’ em grau
relevante, ser reconhecida e praticamente tratada como tal.” 23
Obediência, para Weber significa que,

a ação de quem obedece ocorre substancialmente como se este tivesse feito do


conteúdo da ordem e em nome dela a máxima de sua conduta e isso unicamente em
virtude da relação formal de obediência, sem tomar em consideração a opinião
própria sobre o valor ou desvalor da ordem como tal. 24

Legitimidade, em Weber, é, assim, definida a partir de sua validade, ou seja, “a


‘vigência’ de uma ordem significa, portanto, algo mais do que a mera regularidade,
condicionada pelo costume ou pela situação de interesses, do decorrer de uma ação social.” 25
Aquele que se submete a uma ordem legítima, não o faz por uma questão de hábito ou
interesse, que permita com que ele a obedeça ou não, conforme sua conveniência.
Esta ordem apresenta-se como um, “mandamento, cuja violação não seria apenas
prejudicial, mas – normalmente – também é abominada de maneira racional referente a
valores, por seu ‘sentimento de dever’ (ainda que com graus muito variados de eficácia).” 26

21
Idem, 139.
22
Idem, ibidem.
23
Idem, p. 140.
24
Idem, ibidem.
25
Idem, p. 19.
26
Idem, ibidem.
10

Analisados os aspectos acima, é possível compreender a elaboração tipológica de


Weber em três tipos puros de dominação legítima, como se passa a expor 27:
a) dominação carismática: baseada na veneração extracotidiana da santidade, do poder
heróico ou do caráter exemplar de uma pessoa e das ordens por ela reveladas ou criadas;
b) dominação tradicional: baseada na crença cotidiana na santidade das tradições
vigentes desde sempre e na legitimidade daqueles que, em virtude dessas tradições,
representam a autoridade;
c) dominação racional: baseada na crença na legitimidade das ordens estatuídas e do
direito de mando daqueles que, em virtude dessas ordens, estão nomeados para exercer a
dominação.
Nesse sentido, seja pela crença na legalidade, na tradição ou no carisma, os tipos puros
de dominação geram naqueles a que elas se submetem, o convencimento na aceitação da
dominação, como alega Weber:

No caso da dominação baseada em estatutos, obedece-se à ordem impessoal,


objetiva e legalmente instituída e aos superiores por ela determinados, em virtude
da legalidade formal de suas disposições e dentro do âmbito de vigência destas. No
caso da dominação tradicional, obedece-se à pessoa do senhor nomeada pela
tradição e vinculada a esta (dentro do âmbito de vigência dela), em virtude de
devoção aos hábitos costumeiros. No caso da dominação carismática, obedece-se ao
líder carismaticamente qualificado como tal, em virtude de confiança pessoal em
revelação, heroísmo ou exemplaridade dentro do âmbito da crença nesse seu
carisma. 28

Apesar de serem tipos ideais, que dificilmente ocorreram na história de maneira pura,
eles garantem uma ampla compreensão do fenômeno da legitimação do poder político.
Dentro do Estado moderno, o tipo de dominação legítima é o legal, resultado de um
processo de racionalização do consenso que o permite impor condutas, de maneira coercitiva
e coativa, a todos os membros da sociedade, apresentando-se como “um cosmos de regras
abstratas, normalmente estatuídas com determinadas intenções” 29.
Nesse sentido, todas as funções estatais devem a ele se submeter: seja a função judicial
que deverá se limitar a aplicar as leis aos casos concretos; seja a função administrativa que,
também deverá atuar “dentro dos limites das normas jurídicas e segundo princípios indicáveis
de forma geral, os quais encontram aprovação ou pelo menos não são desaprovados nas

27
WEBER, v. 1, p. 141.
28
Idem, ibidem.
29
Idem, p. 142.
11

ordens da associação” 30; a função executiva, ou seja, a própria autoridade governamental do


Estado, a qual também só poderá atuar dentro dos limites estabelecidos em lei.
Toda a sociedade passa a se submeter às ordens impessoais da lei, não mais às ordens
pessoais de um governante ou de grupo dominante. A obediência ao poder político significa,
portanto, a obediência às normas jurídicas positivadas, uma vez que “só estão obrigados à
obediência dentro da competência objetiva, racionalmente limitada, que lhe foi atribuída por
essas ordens” 31.
As categorias fundamentais da dominação racional seriam 32:

1. um exercício contínuo, vinculado a determinadas regras, de funções oficiais,


dentro de
2. determinada competência, o que significa:
a) um âmbito objetivamente limitado, em virtude da distribuição dos serviços, de
serviços obrigatórios,
b) com atribuição dos poderes de mando eventualmente requeridos e
c) limitação fixa dos meios coercivos eventualmente admissíveis e das condições de
sua aplicação.

Nessa perspectiva o mecanismo, dentro da estrutura estatal, que melhor serve à


dominação racional, é a burocracia, com seus funcionários e saberes técnicos, fazendo com
que a crença na estrutura estatal se traduza como uma crença na eficiência e nos saberes
especializados de seu quadro administrativo:

Normalmente, portanto, só estão qualificados à participação no quadro


administrativo de uma associação os que podem comprovar uma especialização
profissional, e só estes podem ser aceitos como funcionários. Os ‘funcionários’
constituem tipicamente o quadro administrativo de associações racionais, sejam
estas políticas, hierocráticas, econômicas (especialmente, capitalistas) ou outras.
Aplica-se (em caso de racionalidade) o princípio da separação absoluta entre o
quadro administrativo e os meios de administração e produção. Os funcionários,
empregados e trabalhadores do quadro administrativo não estão de posse dos meios
materiais de administração e produção, mas os recebem em espécie ou em dinheiro
e têm responsabilidade contábil. 33

Na realidade, Weber acredita que a aceitação da dominação legal pode ocorrer por
motivos muito diversos, sendo o principal a sua coatividade, na medida em que a
obrigatoriedade exige uma obediência muito mais eficaz que a facultatividade. Por isso,
apesar de existirem diversas ordens sociais, a única que é efetivamente obedecida é a ordem
legal, eis que é a única estabelecida de maneira coativa.
Ao tratar das diversas circunstâncias que podem gerar a obediência, alega Weber:

30
WEBER, v. 1, p. 143.
31
Idem, ibidem.
32
Idem, ibidem.
33
Idem, ibidem.
12

Mas as circunstâncias de que, ao lado dos outros motivos, para pelo menos uma
parte dos agentes essa ordem aparece como algo modelar e obrigatório e, por isso,
como devendo ter vigência, aumenta naturalmente, e muitas vezes em grau
considerável, a probabilidade de que por ela se orientem as ações. Uma ordem
observada somente por motivos racionais com referência a um fim é, em geral,
muito mais mutável do que a orientação por essa ordem unicamente em virtude do
costume, em conseqüência do hábito de determinado comportamento, sendo esta a
forma mais freqüente da atitude interna. Mas esta, por sua vez, é ainda mais
mutável do que uma ordem que aparece com o prestígio de ser modelar ou
obrigatória, ou, conforme dizemos, ‘legítima’. 34

A forma racional de legitimação, portanto, funda a garantia da obediência na “crença


em sua vigência absoluta, sendo ela a expressão de valores supremos e obrigatórios (morais,
estéticos ou outros quaisquer)” 35.
A partir dessa perspectiva uma ordem racional pode ser concebida tanto como
convenção quanto como direito. De um lado, será denominada convenção, “quando sua
vigência está garantida externamente pela probabilidade de que, dentro de determinado
círculo de pessoas, um comportamento discordante tropeçará com a reprovação
(relativamente) geral e praticamente sensível”; de outro lado, será denominada direito,
“quando está garantida externamente pela probabilidade de coação (física ou psíquica)
exercida por determinado quadro de pessoas cuja função específica consiste em forçar a
observação dessa ordem ou castigar sua violação.” 36
O que diferenciaria uma convenção de um direito é a voluntariedade, ou seja,
enquanto na convenção a submissão ao comportamento predeterminado é voluntária, no
direito, ao contrário, é imposta por um quadro de funcionários com poder de garantir a
obediência, ainda que coativamente.
Entretanto, ao refletir sobre a possível coatividade da convenção, alega que os
mecanismos de “boicote social” utilizados para forçar sua obediência são, em algumas vezes,
piores que a própria coação jurídica. Ao impor determinadas formas de comportamento
social, como formas de se vestir, de se relacionar ou de agir, uma ordem convencional não
deixa escolhas ao indivíduo sobre sua adoção, podendo se radicalizar ainda mais por meio da
“aplicação do boicote formal, anunciado e organizado. Este, em nossa terminologia, já seria
um meio de coação jurídica.” 37
Com isso, Weber reafirma que o decisivo na distinção entre convenção e direito, e que
também é decisivo na própria conceituação do direito, é a existência de um “quadro

34
WEBER, v. 1, p. 19.
35
Idem, p. 21.
36
Idem, ibidem.
37
Idem, ibidem.
13

coativo” 38, composto de pessoas especialmente ocupadas em garantir o cumprimento do


Direito, que são os juízes, procuradores, funcionários administrativos, executores, etc.,. E é
isso o que dá garantia ao Direito;

não se pode qualificar, na realidade, de ‘direito’ uma ordem garantida externamente


apenas pela expectativa de reprovação e represálias, isto é, convencionalmente e
pela situação de interesses, sem que exista um quadro de pessoas particularmente
encarregadas de impor seu cumprimento. [...] Os meios coativos são, portanto,
irrelevantes. 39

É nesse sentido que, na estrutura de dominação realizada no Estado moderno, a forma


de legitimidade é a legal, realizada a partir da submissão de todos pela “submissão a estatutos
estabelecidos pelo procedimento habitual e formalmente correto.” 40
Nesse aspecto, não importa se a ordem se configura como convenção ou direito, o que
importa é que a disposição social de a ela se submeter não provenha de medo ou motivos
racionalmente ponderados, ligados a um fim, mas sim da crença na autoridade, em algum
sentido legítima, de quem impõe essa ordem.
Para ilustrar essa concepção, alega Weber:

Nestas condições, a oposição entre ordens pactuadas e ordens impostas é apenas


relativa, pois, quando a vigência de uma ordem pactuada não reside num acordo
unânime – o que, nos tempos passados, freqüentemente foi considerado
indispensável para alcançar a verdadeira legitimidade – mas na submissão efetiva,
dentro de determinado círculo de pessoas, dos discordante à vontade da maioria –
caso muito freqüente -, temos, na realidade, a imposição desta vontade à minoria. O
caso contrário, em que minorias violentas ou, pelo menos, mais enérgicas e
inescrupulosas impõem ordens que afinal são consideradas legítimas também pelos
que no começo a elas se opuseram, é extremamente freqüente. Quando o meio legal
para a criação ou modificação de ordens é a ‘votação’, observamos freqüentemente
que a vontade minoritária alcança a maioria formal e que a maioria a ela se
submete, quer dizer; que o caráter majoritário é apenas aparência. 41

Por todo exposto, verifica-se que a concepção weberiana de legitimação legal-racional


justificou o Estado Democrático de Direito, na maior parte da existência. Entretanto, com o
aumento da complexidade social e a transformação dos mecanismos de legitimação do
Estado, outras teorias surgiram na tentativa de explicar os novos fenômenos de legitimação.

38
WEBER, v. 1, p. 21.
39
Idem, ibidem.
40
Idem, p. 23.
41
Idem, ibidem.
14

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COELHO, Luiz Fernando. Teoria Crítica do Direito. 2 ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio
Fabris, 1991.
FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber. tradução de Luís Cláudio de Castro e Costa.
revisão de Paulo Guimarães de Couto. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma
categoria da sociedade burguesa. tradução de Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984.
SCHMITT, Carl. Legalidad y legitimidad. tradução de Jose Diaz Garcia. Madrid: Aguilar,
1971.
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos de uma sociologia compreensiva.
tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. revisão técnica de Gabriel Cohn. 3 ed.
Brasília: Universidade de Brasília, 2000. v. 1 e 2.

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