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RESUMO
Este ensaio teórico tem como objetivo sustentar o argumento de que os estudos sobre cultura
organizacional no Brasil somente tem a ganhar se admitirem a possibilidade de desenvolver-
se a partir de três perspectivas: a necessidade de considerar a existência de uma totalitária
inclinação à unidimensionalização devida ao contexto capitalista global, que não exclui de si
nenhum aspecto, muito menos o cultural; a importância de flexibilizar a exclusividade
unívoca imbricada com o pensamento dos autores clássicos e a compreensão de como as
diferenças entre contextos externos e internos e destes últimos entre si, influenciam as práticas
organizacionais locais.
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1. Introdução
A cultura organizacional adquire relevância nos meios acadêmico e empresarial a partir dos
anos de 1980. Essa primeira etapa de sua evolução caracterizou-se tanto pela rápida
consolidação de análises profundas articuladas com outros campos de conhecimento (como a
antropologia), como pela disseminação de modismos “mágicos” (WOOD JR, 2001;
FREITAS, 2007). Esse período é também marcado pelo encantamento causado pelas práticas
organizacionais japonesas que exportaram, principalmente para os EUA, suas técnicas de alto
desempenho baseadas em um elevado grau de coesão interna e orgulho coletivo. De qualquer
forma, já era perceptível, ao menos de forma subjacente, uma perspectiva instrumental que
visava utilizar a cultura organizacional como forma de reduzir conflitos e legitimar uma
ordem existente (FREITAS, 2007; AKTOUF, 1994).
Dessa forma, provavelmente, poderíamos dizer que o debate acerca da cultura organizacional
brasileira tem se caracterizado pela busca incessante de seu enquadramento em um modelo
capaz de permitir também sua instrumentalização. Seja em organizações privadas ou públicas,
quanto mais a cultura for posta a serviço do logos utilitarista, tanto melhor para a manutenção
dos alicerces da moderna sociedade industrial, travestida, no século XXI, de mundo
globalizado (SENNETT, 1998). De forma concomitante, os estudos sobre cultura
organizacional no Brasil permanecem quase sempre vinculados aos estudiosos clássicos que,
sob uma perspectiva atávica, enfatizam constantemente traços culturais herdados da
colonização portuguesa, ainda que já se tenham passado aproximadamente cinco séculos.
Além disso, a produção intelectual sobre o tema não só desconsidera a influência de outros
fatos históricos na composição da cultura brasileira como normalmente ignora que, em nossas
peculiaridades regionais, raramente gozamos de um alto grau de homogeneidade.
Tendo em vista todos esses fatores, nosso trabalho tem como objetivo sustentar o argumento
de que os estudos sobre cultura organizacional no Brasil somente tem a ganhar se admitirem a
possibilidade de desenvolver-se a partir de três perspectivas: 1) é preciso considerar, com a
devida relevância, a existência de uma totalitária inclinação à unidimensionalização devida ao
contexto capitalista global, que não exclui de si nenhum aspecto, muito menos o cultural; 2)
torna-se fundamental flexibilizar a exclusividade unívoca imbricada com o pensamento dos
autores clássicos e; 3) não menos importante é compreender como as diferenças entre
contextos externos e internos e destes últimos entre si, influenciam as práticas organizacionais
locais.
Com essa finalidade, estruturamos o presente texto em cinco partes, além dessa introdução.
Nas duas próximas seções, buscaremos construir uma perspectiva histórica e epistemológica
das origens e transformações que desembocaram no atual formato do capitalismo tardio. Em
seguida, é proposto um debate específico sobre o contexto cultural brasileiro, contrapondo
pensamentos clássicos e contemporâneos. Na seção seguinte, são discutidos os rumos
tomados pelos avanços dos estudos no campo da cultura organizacional brasileira. Por fim,
serão tecidos alguns comentários finais acerca dos temas examinados.
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De acordo com Tragtenberg (2006), coube a Max Weber desenvolver os primeiros estudos
que buscaram compreender as especificidades do capitalismo moderno e suas consequências
para os diversos campos da sociedade, como a política, a economia e a cultura. É Max Weber
que introduz com mais contundência a noção de racionalidade como forma de moderação dos
“impulsos irracionais” (WEBER, 2013, p. 26). Conforme Tragtenberg (2006), Weber
identifica que é no sistema burocrático que o uso da racionalidade se configura de forma mais
flagrante.
Contudo, como afirma Tragtenberg (2006), “o que é real é que Weber estudou a burocracia
porque via na sua expansão no sistema social o maior perigo ao homem” (TRAGTENBERG,
2006, p. 171). Para Weber, segundo Tragtenberg (2006) “A burocracia [...] é um tipo de
poder. Burocracia é igual à organização. É um sistema racional em que a divisão do trabalho
se dá racionalmente com vista a fins. A ação racional burocrática é a coerência da relação
entre meios e fins visados” (TRAGTENBERG, 2006, p. 171).
Podemos dizer que Max Weber (2001), além de definir em sua obra o que mais precisamente
seria a racionalidade formal, procurou, também, alicerçar um pensamento que comprovasse
historicamente como esse padrão racional tornou-se hegemônico na sociedade moderna. De
acordo com Weber (2001), o racionalismo econômico somente atingiria o posto de ideologia
predominante, se houvesse a disposição “do homem em adotar certos tipos de conduta
racional prática” (WEBER, 2001, p. 32). Em outras palavras, os rumos do capitalismo são
dirigidos não somente pela satisfação de necessidades materiais mas, principalmente, por uma
“ordem de coisas inalterável” (WEBER, 2001, p. 52) que induz o indivíduo a obedecer uma
série de regras as quais precisa adaptar-se para sobreviver.
Para Weber (2001), o surgimento desse ethos particular distorcido, oposto à compreensão
ética de outros tempos e capaz de explicar a adaptação humana a um sistema controlado por
relações de dominação como se fosse algo inteiramente “natural”, nasce na concepção de
“vocação”, na forma que é preconizada pelo Calvinismo. Ainda que a doutrina calvinista não
recomende intencionalmente, como ressalta Weber (2001), a recriação das condutas éticas
como maneira de dar sustentação ideológica ao “espírito do capitalismo”, esse princípio
“vocacional” influenciou decisivamente a sua afirmação. Características usualmente
associadas ao puritanismo protestante como o ascetismo, o trabalho duro e intenso, a
racionalização do tempo, quando promovem ganhos financeiros, são interpretados como os
sinais mais fortes de “salvação”, conforme ensina a doutrina da “predestinação”. Weber
(2001) afirma que:
Os argumentos de Weber, portanto, indicam que a racionalidade formal não teria se tornado
predominante se não fossem as suas íntimas relações com o ascetismo cristão. Contudo, como
Weber (2001) acrescenta, a busca pela riqueza material não precisou mais estabelecer
vínculos com quaisquer doutrinas espirituais. Ao contrário, de acordo com Karl Polanyi
(2000), havia nascido “um novo credo totalmente materialista que acreditava que todos os
problemas poderiam ser resolvidos por uma quantidade ilimitada de bens materiais”
(POLANYI, 2000, p. 58). Polanyi, em uma frase, identificou com precisão a transferência do
que era privativo da economia para o núcleo da sociedade: “em vez de a economia estar
embutida nas relações sociais, são as relações sociais que estão embutidas no sistema
econômico” (POLANYI, 2000, p. 77).
A direção cada vez mais nítida rumo à completa instrumentalização do indivíduo foi tema
recorrente na obra da primeira geração da Escola de Frankfurt. De acordo com Freitag
(1990), essa agitação intelectual surgiu em 1922, na Turíngia, como decorrência da criação do
Institut fuer Sozialforschung (Instituto de Pesquisa Social), levada a cabo após uma semana de
estudos marxistas, liderada por Felix Weil e conduzida por Korsch, Lukács, Pollock e
Wittfogel (FREITAG, 1990). Seu objetivo era dar suporte acadêmico aos movimentos
operários europeus e suas militâncias partidárias (FREITAG, 1990).
Assim, segundo Horkheimer (2007), o indivíduo não é mais que um escravo dos fundamentos
preconizados pelo Iluminismo: o positivismo, o pragmatismo, a tecnologia, nada mais que
novos formatos de dogmatismo, transferidos dos altares para os laboratórios. A solução,
porém, não consiste no rompimento com sociedade industrial e consequente retorno às antigas
formas de dominação social. Ao contrário, o problema envolvendo a crise da razão só se
resolve com a libertação do pensamento independente (HORKHEIMER, 2007, p. 131).
Esse totalitarismo tecnológico ressaltado por Marcuse (1973) colabora sobremaneira para
suprimir do indivíduo sua autonomia, transformando o homem em um ser incapaz de
distinguir suas próprias necessidades (MARCUSE, 1973, p. 27). A tecnologia, que agrega o
acesso de escravos e senhores a iguais meios de informação, cultura e entretenimento sustenta
o propósito ideológico de manter uma estabilidade social controlada pela ilusória satisfação
de falsos desejos (MARCUSE, 1973, p. 29).
Dessa forma, tudo deve transformar-se para, efetivamente, permanecer sempre igual. Altera-
se o invólucro criando-se uma falsa sensação de mudança, mas a essência permanece a
mesma. A cultura deve continuar sendo compreendida como o principal, entre vários fatores,
cujo objetivo, em última análise, é obedecer as regras de consumo da sociedade
mercadológica. Em dado aspecto, a subversão do conceito de cultura chega a ser cruel. Até
mesmo aquilo que se propõe como diversão, não pode desvincular-se, pelo menor tempo que
for, de seu envolvimento comercial.
De acordo com Richard Sennett (2012), não há como negar que os ambientes de trabalho de
cem anos atrás eram mais desumanos que os encontrados nos dias de hoje. Contudo, embora
tal fato se verifique, provavelmente de forma mais clara, na redução do esforço meramente
físico, do ponto de vista psicológico essa melhora é antes uma ilusão do que algo que se possa
ser constatado efetivamente. O atual contexto das organizações capitalistas que privilegia
aspectos como a competição, o curto prazo e a flexibilidade, segundo Sennett, (2012, p.10)
estabelecem permanente conflito entre vida no trabalho e vida pessoal.
Possivelmente, tais aspectos tendem a afetar, com maior prejuízo, aquilo que pode ser
chamado de caráter pessoal, ou seja, “o valor ético que atribuímos aos nossos próprios desejos
e às nossas relações com os outros” (SENNETT, 2012, p. 10). Ou ainda, de forma mais clara:
Nesse sentido, Sennett (2006) inicia sua obra A Cultura do Novo Capitalismo buscando
esclarecer de que forma os homens se relacionam com os novos formatos contemporâneos das
organizações, comparando-os com modelos anteriores, sobretudo, constituindo uma parceria
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atemporal, também com Max Weber. De forma subjacente, dirá Sennett (2006) que o viés
burocrático presente nas organizações não se desmanchou. Ao contrário, apenas assumiu uma
nova roupagem sustentada pela deterioração do capital social (SENNETT, 2006, p. 77).
O capital social surge como resultado da percepção humana a respeito do papel que cada
pessoa exerce na sociedade (SENNETT, 2006, p. 62). O sentimento de inclusão traz ao
homem uma talvez ingênua, porém eficaz sensação de segurança, o que cria no cerne dos
ambientes comunitários um fortalecimento social normalmente associado à lealdade,
confiança e informação. De acordo com Sennett, nas burocracias weberianas, como por
exemplo as organizações militares, esse tipo de coesão é explicitamente percebida
(SENNETT, 2006, p. 63).
O panorama fica mais crítico ainda para quem se encontra em desvantagem social, uma vez
que a cultura capitalista do terceiro milênio não admite a existência de um Estado que assuma
um viés protetor. Dissemina-se a ideia de que a proteção estatal nada mais é que um fator
inibidor do desenvolvimento potencial das habilidades humanas, além de constituir uma
sobrecarga desnecessária ao Estado (SENNETT, 2006, p. 16). Dessa forma, resta ao indivíduo
submeter-se às regras de combate e aceitar que a lógica exclusivamente competitiva é a única
solução. Concretiza-se assim o maior temor de Max Weber: a organização contemporânea
decidiu-se pela cultura da guerra (SENNETT, 2006, p. 27).
Ocorre, porém, que as disputas dentro do novo capitalismo estão longe de ocorrer em pé de
igualdade. De forma paradoxal, a cultura que tanto incensa a estratégia como forma ideal não
só de gestão como de autogestão, na realidade é de enorme complacência com as camadas
mais privilegiadas, favorecidas por redes fortes, amplas e seguras (SENNETT, 2006, p. 48).
Erros estratégicos, por mais inconsequentes que sejam, têm seus efeitos anulados pela união
com os parceiros do mesmo estrato social. A eficácia da estratégia para a vida, dessa forma,
só é verdadeiramente essencial para a massa desprovida de apoio e, consequentemente, mais
dependente do amparo oficial (SENNETT, 2006, p. 76).
Outros autores, como David Harvey (2008), também se destacam como analistas eméritos na
caracterização da nova fase capitalista internacional. A globalização, o neoliberalismo e seus
efeitos são por eles sempre associados ao que chamam de revolução tecnológica (HARVEY,
2008, p. 79). De uma forma geral, todos esses autores concluem que a avalanche de inovações
nessa área construiu um novo perfil de profissional, cuja necessidade de capacitação
especializada elimina do novo contexto os elementos mais vulneráveis da sociedade. Significa
dizer que, na nova ordem capitalista, se houver necessidade de decidir entre a criação de
novos empregos e a adoção de novas tecnologias, a escolha recairá, sem maiores
preocupações sociais, sobre a segunda opção.
Ainda segundo Harvey (2008), o neoliberalismo surge como suporte ideológico capacitado a
prover um novo modelo de sociedade cuja finalidade é proteger e recuperar os negócios da
classe capitalista frente às práticas dos Estados nacionais que ainda mantinham o viés
intervencionista. Conforme o autor, para que isso se consolidasse era necessário “uma
estratégia prática que enfatizasse a liberdade de escolha do consumidor, não só quanto a
produtos particulares, mas também quanto a estilos de vida, formas de expressão e uma ampla
gama de práticas culturais” (HARVEY, 2008, p. 52).
Em outras palavras, de uma forma geral, é razoável supor que uma nova cultura
organizacional associada necessariamente à nova ordem capitalista trouxe como resultado a
intensificação de desigualdades, a desarticulação social, a proliferação de traumas
psicológicos e a deterioração do prestigio moral do trabalho. Tudo o que Sennett e Harvey
expuseram, coloca de certa forma, em xeque, o conceito de cultura organizacional unicamente
como resultado de interações construídas socialmente pelo conjunto de atores que integram a
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organização. Por suas palavras, existe um poder difuso, externo, que impõe uma unificação
cultural subjugando todos os demais fatores subjacentes.
De acordo com o que expomos até aqui, não é, provavelmente, saudável compreender a
construção de uma cultura nacional contemporânea, seja em sentido amplo ou em sentido
estrito (como a cultura organizacional), desconsiderando a inserção do país no contexto
capitalista atual. Entretanto, tal entendimento tem sido conduzido no Brasil, na maior parte
das vezes, a partir de pressupostos dos principais autores clássicos, alguns dos quais serão
comentados a seguir.
Segundo Sérgio Buarque de Holanda (1995), na gênese da cultura brasileira estão impressos
dois caracteres principais: o personalismo e a cordialidade. O personalismo é visto como a
herança ibérica mais determinante no sentido de impedir que aqui se concretizassem acordos
passíveis de privilegiar a coletividade. Conforme Holanda (1995), tanto espanhóis como
portugueses admiravam o perfil individualista e independente como modelo, em última
análise, até mesmo de heroísmo. Para os ibéricos:
Já a “cordialidade” brasileira, segundo Holanda (1995) não deve ser confundida com traços de
civilidade comuns à polidez e reverência de outros povos. O “homem cordial” brasileiro, ao
contrário, apresenta como particularidades a:
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Para Raymundo Faoro (1984), o mais importante é provar que o Estado brasileiro sempre foi
patrimonialista. Para Faoro, o poder político no Brasil sempre foi exercido segundo práticas
de favorecimento, tal e qual como foram herdadas de Portugal, e nisso concorda com Holanda
(1995). Essencial para a compreensão de seu pensamento está a ideia de estamento, associada
ao patrimonialismo:
Segundo Faoro (1984), portanto, o estamento define-se por uma posição comodista
perpetuada por meio de favores e pela posse inapropriada do patrimônio público, avessa ao
trabalho penoso e explorador por natureza. De outra maneira, ao dedicar-se exclusivamente a
obter vantagens para si, a elite patrimonialista estamentista e seus representantes contribuem
decisivamente para o atraso do desenvolvimento econômico brasileiro desde a mais remota
história (FAORO, 1984).
Roberto DaMatta (1997) volta sua análise para o cotidiano brasileiro na busca de estabelecer
uma reflexão sobre o dilema da sociedade brasileira. Para caracterizá-la, elege dois tipos
principais: os malandros e os heróis.
Não se trata de discutir uma história de três raças, seis regiões ou duas
classes sociais que se digladiam pelo poder, mas de entrar nas razões sociais
do dilema que coloca uma sociedade às voltas consigo mesma. Porque [...]
temos no Brasil carnavais e hierarquias, igualdades e aristocracias, com a
cordialidade do encontro cheio de sorrisos cedendo lugar, no momento
seguinte, à terrível violência dos antipáticos “sabe com quem está falando?”
(DAMATTA, 1997, p. 16).
Para DaMatta (1997), é sobretudo no “sabe com quem está falando?” que se põe a mostra uma
das mais flagrantes peculiaridades do comportamento brasileiro. É através dessa expressão
que se ressalta a cultura do “cada um no seu lugar”, da aversão ao conflito e do respeito à
hierarquia (DAMATTA, 1997. p. 184). Em outras palavras, é o traço contundente do
formalismo brasileiro.
Para esses autores, portanto, traduz-se, de uma maneira genérica, a cultura brasileira como
sendo fundada por traços personalistas, cordiais, ao mesmo tempo formalistas e sectários,
avessa a conflitos, reverente com a hierarquia e assentada em uma concepção patrimonialista
de Estado. Em linhas gerais, todas essas características compõem uma herança do passado
ibérico, donde se conjectura serem todos estes atributos inautênticos.
Nesse sentido, no limiar do século XXI, surge a surpreendente crítica de Jessé Souza (2000)
propondo uma diferente interpretação do dilema brasileiro (SOUZA, 2000). De acordo com
Souza (2000), Holanda, Faoro e DaMatta elaboram, a partir dos mesmos pressupostos, o que
ele nomeia de “sociologia da inautenticidade” (SOUZA, 2000, p. 205). Segundo o autor, é
comum a todos a adoção de uma perspectiva culturalista atávica (SOUZA, 2000, p. 205), ou,
em outros termos, os traços culturais identificados permanecem, em essência, imutáveis, ainda
que tenham se passados vários séculos desde o seu surgimento.
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Para Souza (2000), “as instituições e estratificação social que se produziram no Brasil jamais
foram, nem mesmo nos seus inícios, uma simples continuação de Portugal” (SOUZA, 2000,
p. 206). É interessante notar na perspectiva sociológica sociomórfica do autor, um
posicionamento epistemológico idêntico ao adotado pelos teóricos críticos da Escola de
Frankfurt, já mencionados neste trabalho. De acordo com Souza (2000):
Para sustentar sua análise, Souza (2000) apoia-se em outro autor clássico, Gilberto Freyre.
Ainda que, de acordo com o senso comum, as ideias de Freyre baseiem-se também em
heranças ibéricas, assinala Souza (2000) que uma atenta leitura de sua obra aponta para
conclusões fundamentalmente antagônicas (SOUZA, 2000, p. 209). As grandes contribuições
de Freyre, segundo Souza (2000, p. 210), para uma melhor compreensão das origens da
cultura brasileira encontra-se nos seus primeiros textos, sobretudo em Sobrados e mocambos,
considerado como sua (de Freyre) melhor obra.
Dessa forma, do ambiente rural patriarcal “formado pelo senhor e sua família nuclear, mas
também os elementos ‘intermediários’, constituídos pelo enorme número de bastardos e
dependentes, além da base de escravos domésticos e, na última escala da hierarquia, os
escravos da lavoura” (SOUZA, 2000, p. 218, 219), tratados em Casa Grande e Senzala, para
a “ascendência da cultura citadina no Brasil” (SOUZA, 2000, p. 235) relatada em Sobrados e
mocambos, houve uma miríade de mudanças econômicas e transformações sociais que de
forma alguma mantém vínculos significativos com as heranças culturais portuguesas.
Para dar substância a seus argumentos, Souza retoma o processo de modernização brasileiro
da primeira metade do século XIX, caracterizado pela introdução de maquinário inglês na
manufatura. Os efeitos das técnicas superiores, exigidas pelas máquinas desarticulam as
relações da sociedade como um todo, até então geridas por forte personalismo baseado nas
posições antagônicas entre senhores e escravos. As consequências dessa ruptura fazem-se
sentir tanto pelo senhor, cuja autoridade, antes indiscutível, é desvalorizada dentro de seus
domínios, até então exclusivos, como pelo escravo que, abandonado à sua própria sorte,
conforma-se em ver os novos postos de trabalhos serem ocupados primeiro por mulatos e
depois por imigrantes europeus (SOUZA, 2000, p. 265).
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Conforme Chu (2010) o MCGB surge, portanto, como consequência do diálogo entre os
traços da cultura local e os modelos estrangeiros. O uso do termo “diálogo” justifica-se pela
não predominância de um sistema sobre outro. Ou seja, conforme esclarece a autora, a junção
dos dois padrões de práticas “formam um todo ao mesmo tempo coerente e fragmentado”
(CHU, 2010, p. 71). Nesse sentido, parece ser razoável inferir que acontece uma
ressignificação cultural a partir da coexistência simultânea de elementos distintos. A esse
processo, Chu (2010) chama de hibridização, e o define como:
Com tais pressupostos Alcadipani e Crubellate percorrem os artigos produzidos entre 1990 e
2000, onde encontram variedade de focos e de metodologias. Chama-lhes a atenção a
reiterada influência de Hofstede além da constante recorrência aos traços explicitados
historicamente pelos autores consagrados, muitos deles aqui já comentados, como Sergio
Buarque de Holanda, Caio Prado Junior, Gilberto Freyre, Raymundo Faoro, Darcy Ribeiro e
Roberto DaMatta.
Os traços culturais tendem a ser considerados de forma abrangente e genérica, sendo raros os
autores que reconhecem a heterogeneidade, a ponto de não se deixar levar para a
generalização unívoca da cultura brasileira. Importante também destacar o uso frequente de
pressupostos e juízos de valor quando, por exemplo, padrões estrangeiros são colocados como
ideais contrapostos ao suposto inferior desempenho econômico do Brasil, considerado como
uma cultura “fraca” (ALCADIPANI E CRUBELLATE, 2003, p. 73).
Muzzio (2010) parte dos estudos internacionais comparativos que trabalham com a
perspectiva da adaptação cultural face às distinções entre regiões e nações para compreender
como características locais interferem nas ações organizacionais em países, como o Brasil,
cuja realidade cultural é diversa e onde atuam organizações globais.
Ao inverso da visão etnocêntrica que dita, submete e abate a visão da cultura à força de uma
lógica argumentativa superior, a proposta desta linha de estudos prioriza os modos
particulares de ser e compreender a vida, os valores, atitudes, comportamentos, as
simbologias próprias, os fluxos culturais compreendidos numa dialética espaço-temporal
resultante dos movimentos e das transformações das experiências sociais. Nesta direção
Muzzio (2010) apresenta como argumento fundamental o fato de que os estudos
organizacionais sobre cultura no Brasil precisam perceber, necessariamente, de que forma as
diferenças regionais brasileiras impactam nas práticas organizacionais do país.
6. Comentários Finais
Procuramos, ao longo desse ensaio teórico, reconstruir gradualmente e, evidentemente, de
forma abreviada, a trajetória histórica que culminou na atual roupagem capitalista, que aqui
chamamos reiteradas vezes de capitalismo contemporâneo. A intenção era, em um primeiro
momento, mostrar ao leitor a magnitude de sua abrangência sobre todos os fatores inerentes à
existência humana, incluindo-se aí, principalmente, a cultura. Para isso, alicerçamos as nossas
bases conceituais em aspectos da sociologia das religiões desenvolvidos por Max Weber, no
arcabouço conceitual acerca da racionalidade instrumental elaborado pelos pensadores da
primeira geração da Escola de Frankfurt e nas ideias de dois dos mais importantes analistas
contemporâneos sobre o tema, Richard Sennett e David Harvey.
Em primeiro lugar, está razoavelmente claro que na essência dos mais recentes estudos acerca
da cultura organizacional concentra-se um caráter ambíguo: se por um lado os avanços
reconhecem a necessidade de partir de outros pressupostos teóricos e metodológicos, que
considerem o hibridismo e a fragmentação como lógica suposta para o exame da realidade
cultural, por outro fica evidente que os mesmos avanços não se libertaram por completo da
imutabilidade característica das premissas atávicas vinculadas às raízes culturais clássicas.
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Em segundo lugar, não tem sido relevado, com a devida ênfase, o entendimento de que a
sociedade contemporânea permanece centrada na lógica de mercado, e, dessa forma, continua
sendo dirigida por critérios exclusivamente instrumentais. Assim, não há como excluir, desse
contexto, os aspectos culturais. Ao contrário, o que se verifica é que tais aspectos constituem,
na realidade, uma das armas mais poderosas para a manutenção desse modus operandi
unidimensionalizado.
Nesse sentido, para um melhor direcionamento dos estudos nacionais sobre cultura
organizacional, a fim de torná-los capazes de compreender os efeitos integradores e
desintegradores do contexto heterogêneo interno, entendemos ser recomendável a
intensificação do uso de métodos qualitativos possivelmente mais próximos do modelo
etnográfico. Além disso, embora não se deva descartar por completo o trabalho dos autores
clássicos, há de se lançar sobre eles um olhar crítico capaz de conectá-los historicamente a
outros acontecimentos igualmente relevantes para a caracterização da cultura nacional. Por
fim, é preciso compreender que todos os demais aspectos estarão sempre entremeados por
uma lógica mercadológica até então predominante que, de forma alguma poderá ser
negligenciada. Ao contrário, os fatores associados à instrumentalização precisam ser
constantemente destacados, pelo menos enquanto as bases da sociedade estiverem assentadas
em princípios quase que exclusivamente utilitaristas.
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