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CAPÍTULO 4

O processo de estratificação social


nas sociedades modernas: As visões
de Durkheim, Weber e Marx

LE A N DR O R A I Z E R

E
ste capítulo está estruturado em três partes, nas quais são abordadas as
principais contribuições de Durkheim, Weber e Marx para a compreensão
do fenômeno da organização e estratificação social. O objetivo é apresen-
tar elementos sintéticos acerca desse complexo e multifacetado processo, para que
o leitor possa dispor de um panorama geral que lhe permita acessar as teorias dos
autores clássicos da Sociologia.

Precisamos compreender que a maneira pela qual se estratifica uma socie-


dade depende da maneira pela qual os homens se reproduzem socialmen-
te. E a maneira pela qual os homens se reproduzem socialmente está dire-
tamente ligada ao modo pelo qual eles organizam a produção econômica
e o poder político. [...] Mas a estrutura social não se organiza apenas no
nível econômico. [...], pois não se pode compreender o processo de estra-
tificação social enquanto não se examina a maneira pela qual se organizam
as estruturas de [...] dominação (política). (IANNI, 1978, p. 11)
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Em todas as sociedades, grupos e indivíduos relacionam-se mediados por uma


hierarquia estruturada em termos de ascendência e subordinação que, geralmen-
te, se traduz como uma distribuição assimétrica de poder, recursos, privilégios e
prestígio social.
As sociedades, ao longo do tempo e do espaço, diferem quanto aos critérios e
formas de alocação desses recursos, bem como quanto aos elementos que permi-
tem que os indivíduos se situem em um ou outro ponto da estratificação social. A
posição que o indivíduo ocupa está, na maioria das vezes, ligada ao grupo a que
ele pertence e, por sua vez, esse pertencimento influencia desde questões básicas,
como o acesso a bens e serviços, como também a possibilidade de acesso ao poder
político e o uso de recursos e símbolos culturalmente legítimos.
A noção de estratificação social é um conceito construído para entender os
processos por meio dos quais as sociedades se estruturam econômica e social-
mente. O estudo desse processo tem sido um recurso importante utilizado por
historiadores e sociólogos para entender as formas como as sociedades organizam,
em cada época e região, as diversas atividades e funções da vida social (trabalho,
cultura, religião, conhecimento, política e arte) (BOTTOMORE, 1973).
Na medida em que essas estruturas de poder político e econômico variam
de sociedade para sociedade, apresenta-se um mosaico de configurações que são
marcados pela presença de um maior ou menor grau de mobilidade e mudança
social (IANNI, 1978).
Nas sociedades nas quais predominam as castas, por exemplo, deve-se con-
siderar o tipo de relação existente entre as castas e as subcastas, tanto como a
maneira pela qual são distribuídos os atributos e os recursos ligados a elementos
étnicos, religiosos, culturais e tipo de ocupação.
Já nas sociedades de tipo estamental deve-se, sobretudo, analisar o modo pelo
qual elementos estruturais como linhagem, tradição, vassalagem e honra agem de
forma a orientar o tipo de ação e pensamento de seus membros (IANNI, 1978).
Por sua vez, a sociedade de classes

[...] se revela muito mais diretamente no nível das relações e estruturas de


apropriação (econômica) e dominação (política). Devido à acentuada se-
cularização da cultura e do comportamento, produzida no âmbito da revo-
lução industrial e urbana que se dá com a formação do capitalismo, as cate-
gorias socioculturais predominantes no pensamento e ação pré-capitalistas
(religião, raça, cor, ocupação, tradição, hereditariedade, linhagem etc). E
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adquire preeminência a propriedade e o mercado (dos meios de produção


e da força de trabalho) como princípios fundamentais de classificação e
mobilidades sociais. (IANNI, 1978, p. 12)

Nas obras de sociólogos como Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx,
fundadores da Sociologia, encontra-se um conjunto rico de conceitos para a com-
preensão das diversas dimensões implicadas no fenômeno da estratificação. Entre
esses conceitos destacam-se: tipos de solidariedade, classes sociais, estamentos,
grupos de interesse, lutas e conflitos. Cabe, pois, analisar mais detalhadamente a
maneira como cada um desses autores interpretava a estratificação social.
Deve-se de antemão destacar que as visões desses autores são, por diversas
vezes, contraditórias e até mesmo antagônicas. A despeito disso, o objetivo deste
texto não é o de discutir qual teoria possuiria maior ou menor validade e relevân-
cia para o entendimento do fenômeno da estratificação nas sociedades contempo-
râneas, mas sobretudo apresentar a forma como cada um desses autores entende
o fenômeno e as suas variáveis determinantes, com o objetivo de construir um
mosaico teórico que permita a análise desse fenômeno por diversos e distintos
ângulos.
Com tal objetivo, o texto apresenta uma síntese das visões de Durkheim, We-
ber e Marx sobre a estratificação social.

DURKHEIM E A ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL:


DA HORDA ÀS SOCIEDADES INDUSTRIAIS

Constitui uma lei da História que a solidariedade mecânica, a qual a prin-


cípio é a única ou quase, perca terreno progressivamente e que a solida-
riedade orgânica, pouco a pouco, se torne preponderante. Mas quando
se modifica a maneira por que os homens são solidários, a estrutura das
sociedades não pode deixar de mudar. (DURKHEIM, 1995, p. 15)

Como se estruturam as sociedades? O que faz os indivíduos terem consenso


sobre a vida social? Como as sociedades se mantêm coesas ao longo do tempo?
Esses e outros questionamentos são elementos centrais da teoria de Durkheim.
No centro de sua teoria encontra-se um importante pressuposto histórico: a
tendência para a diferenciação das sociedades e o surgimento da individualidade
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em meio à consolidação da solidariedade orgânica, marcada pela crescente divisão


do trabalho social.
Partindo da forma de organização da horda para o clã, para o conjunto de
clãs, para as sociedades segmentárias e, finalmente, para sociedades de solidarie-
dade mecânica e orgânica,1 Durkheim apresenta uma visão do desenvolvimento
social marcado por dois fatores principais: aumento do volume (relações sociais,
comunicação e troca entre os indivíduos) e da densidade material (demográfica)
(DURKHEIM, 1995).
Esses dois fatores estão diretamente ligados ao surgimento das sociedades
industriais, marcadas pelo aprofundamento da divisão do trabalho, nas quais a
solidariedade social se apoia não mais na semelhança entre os indivíduos, como
ocorria nas sociedades nas quais predominava a solidariedade mecânica, mas sobre
a diferenciação funcional (RODRIGUES, 2004).
Nessas sociedades cada vez mais diferenciadas nas quais ocorre uma preponde-
rância progressiva da solidariedade orgânica, cada órgão (analogia orgânica) tem um
papel que o diferencia dos demais. Os indivíduos não estão mais agrupados de acordo
com suas relações de parentesco, como ocorria nas sociedades tribais. Assim,

[...] os indivíduos são agrupados não mais segundo suas relações de des-
cendência, mas segundo a natureza particular da atividade social a que
estão consagrados. Seu meio natural e necessário não é mais o nativo, e
sim o profissional. Não é mais consanguinidade, real ou fictícia, que marca
o lugar de cada um, mas a função que ele preenche. (DURKHEIM, 1995,
p. 35)

Deste modo, com a ampliação da divisão do trabalho a sociedade tende a orga-


nizar-se por meio de distintos grupos profissionais, característica essa que confor-
ma predominantemente as sociedades industriais, nas quais os laços sociais se esta-
belecem, sobretudo, na esfera econômica (fundados nas relações de trabalho).
Deve-se destacar que a divisão do trabalho é mais do que um fato econômico;
para Durkheim, ela está diretamente ligada ao desenvolvimento crescente da soli-
dariedade orgânica nas sociedades modernas.

1Solidariedade mecânica: coesão por semelhança (por compartilhar as mesmas crenças e normas);
solidariedade orgânica: por interdependência – o consenso se exprime pela diferenciação, indivíduos
heterogêneos que exercem funções complementares como se fossem órgãos de um corpo harmônico
(DURKHEIM, 1995; RODRIGUES, 2004).
O processo de estratificação social nas sociedades modernas 53

É interessante notar que a divisão social do trabalho era concebida por Durkheim
como um fenômeno altamente positivo, e que aumentaria as relações de depen-
dência e cooperação entre os grupos sociais e os indivíduos. Assim, segundo ele,
a divisão do trabalho cria um tipo especifico de solidariedade social, denominada
orgânica. Essa solidariedade se assenta precisamente sobre as diferenças individuais
e gera uma complementaridade funcional entre as diferentes partes da sociedade.
Além disso, segundo Durkheim, a diferenciação social é a condição criadora
da individualidade e da liberdade. No entanto, o crescente individualismo das
sociedades modernas não era visto por Durkheim apenas de modo negativo (ao
contrário da visão de boa parte da tradição francesa); Durkheim entendia que
o fenômeno impunha também um difícil problema: como manter o mínimo de
consciência coletiva, sob pena de a solidariedade orgânica não funcionar e provo-
car a desintegração social.
Devido a isso, a relação indivíduo-coletividade torna-se bastante problemática
nas sociedades industrializadas, de tal sorte que a organização de grupos profis-
sionais que fortaleçam a integração dos indivíduos na coletividade impõe-se como
solução para o fortalecimento da coesão social – sem a qual a sociedade estaria
fadada à desestruturação moral.
Ademais, encontra-se em Durkheim uma tentativa de eliminar o conflito de
classes, entendida como sendo um elemento prejudicial para a coesão social, assim
como a anomia, derivada da desregulamentação das atividades econômicas cada
vez mais especializadas. Assim, tanto o corporativismo como o cooperativismo e a
participação nos lucros seriam uma boa saída para esse problema, além da neces-
sidade de uma reforma da regulação moral e jurídica.
Em síntese, pode-se concluir que a industrialização entendida como fruto da
divisão social do trabalho – um tipo de atividade que assume cada vez mais im-
portância em nossa sociedade – e a posição que os indivíduos ocupam nos distintos
grupos de ocupação e como esses indivíduos se relacionam (de maneira comple-
mentar ou antagônica) acaba por influenciar tanto o grau de solidariedade social
quanto a estratificação da sociedade. Assim, “[...] virá um dia em que toda nossa
organização social e política terá uma base exclusiva ou quase exclusivamente pro-
fissional” (DURKHEIM, 1995, p. 45). Por isso, argumenta Durkheim, a divisão do
trabalho não pode ficar desregulada, pois poderá levar à anomia, e ao consequente
enfraquecimento dos laços sociais de solidariedade.
Por fim, tal perspectiva encara a estratificação social nas sociedades modernas
como fruto de um amplo processo de aprofundamento da divisão e especialização
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do trabalho – processo concebido não apenas em sua dimensão econômica, mas,


sobretudo, social e moral –, no qual a organização das sociedades é explicada pelo
grau de avanço da divisão do trabalho e o consequente nível de solidariedade so-
cial advindo dela.

WEBER E A ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL:


CASTAS, ESTAMENTOS, CLASSES E PARTIDO

O homem não luta pelo poder apenas com o fim de enriquecer economi-
camente. O poder, inclusive o poder econômico, pode ser valorado por si
mesmo. Frequentemente a luta pelo poder é também condicionada pela
honra social que traz consigo. Nem todo poder, entretanto, tem como
consequência a honra social [...]. A ordem econômica é para nós apenas a
forma pela qual os bens e serviços econômicos são distribuídos e utiliza-
dos. A ordem social é, obviamente, condicionada em alto grau pela ordem
econômica, e por sua vez reage a ela. Assim, classes, grupos de status e par-
tidos são fenômenos de distribuição de poder dentro de uma comunidade.
(GERTH & MILLS, 1982, p. 211)

No livro Economia e sociedade Weber apresenta um amplo conjunto de concei-


tos que permite a análise da formação e da organização dos grupos e das sociedades
modernas. Antes de partir propriamente para a análise realizada por esse autor,
cabe destacar alguns elementos de sua teoria que são essenciais para compreender
como seu pensamento se articula.
Para Weber, a ação social deve ser compreendida em termos de uma ação
orientada intersubjetivamente, ou seja, que está orientada tendo em vista a ação de
outros indivíduos. Nesse sentido, Weber desenvolveu uma tipologia da ação so-
cial que abarca os pressupostos explicativos das condutas dos indivíduos. Dois
desses tipos estão relacionados com a ação racional, uma orientada por meios (va-
lores), a outra por objetivos (fins); as outras duas estão ligadas a comportamentos
tradicionais (tradição familiar, institucional) e afetivos (emotivos, sentimentais)
(WEBER, 2004).
Com base na ação social, ou seja, partindo do sentido social que os indivíduos
atribuem a suas ações, Weber desenvolveu uma interpretação bastante particular
sobre a organização dos grupos sociais e das instituições. Tal fenômeno é resultado
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de um conjunto de inúmeras interações de ações sociais, orientadas por sentidos


compartilhados, que criam relações sociais mais amplas e acabam por criar condi-
ções de legitimidade que consolidam tais organizações.
Para Weber, as instituições sociais, o Estado, a burocracia, as instituições religio-
sas, as instituições jurídicas e as instituições econômicas existem na medida em que
um grupo de indivíduos orienta sua ação, ou seja, lhes confere legitimidade, tendo por
base os tipos de ação social. Tal legitimidade pode estar apoiada tanto sobre aspectos
racionais legais, como é o caso das instituições jurídicas, como sobre sentidos carismá-
ticos ou tradicionais, dependendo do tipo da instituição (WEBER, 2004).
Tendo tratado da concepção peculiar de ação social e de instituições presentes
na obra de Weber, pode-se partir para a análise da estratificação social desenvolvi-
da por ele, cabendo, sobretudo, destacar os estudos sobre as sociedades de castas
e sobre o conceito de partido e de grupo de interesse.
Nessa direção, a compreensão do conceito de status é fundamental:

O status [...] é uma qualidade de honra social (ou a sua falta) e é essencial-
mente condicionado e expresso através de um estilo de vida específico. A
honra social pode aderir diretamente a uma situação de classe, e, na maior
parte das vezes, sem dúvida, também é determinada pela situação média
de classe dos membros do grupo de status. [...] Um grupo de status pode
ser fechado (status por descendência) ou aberto. [...] Uma casta é sem
dúvida um grupo de status fechado. (WEBER, 1958, p. 147)

Assim, as diferentes sociedades apresentam graus variados de abertura e fe-


chamento no que diz respeito às normas e regras, como também à posição social
e mobilidade dos indivíduos.
A sociedade de castas, por exemplo, caracteriza-se como um tipo extremo de
status fechado, no qual uma sociedade estamental (organizada em estratos sociais,
comumente nobreza, clero e servos), alcançou um elevado grau de estratificação
social com base na hereditariedade, etnia e tradição. Em geral, tais sociedades são
organizadas em quatro grupos principais: o primeiro se incumbe do ordenamento
do mundo espiritual, moral e intelectual; o segundo, do poder político e militar; o
terceiro, da organização da atividade econômica; e o quarto, dos trabalhos auxilia-
res e braçais (WEBER, 1958).
Nesse tipo de sociedade, as castas ocupam um lugar fundamental na organi-
zação social, já que o pertencimento a um ou outro desses grupos irá determinar
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não só o tipo de ocupação, mas o tipo de relações e ações que serão permitidas ou
vedadas, assim como acesso ao poder e status.
Também se encontra na obra de Weber o conceito de grupos de interesse. Esse
conceito ganha relevância, já que o pertencimento a um grupo social está ligado a
certo tipo de conduta e interesse, com sentido específico com relação a sua esfera
de atuação, desenvolvida pelos indivíduos.
Assim, pode-se identificar um grupo de interesse político como um partido,
quando seus membros agem com base em certos meios e valores comuns com-
partilhados para alcançar os fins desejados. Em outras palavras, para Weber não
há uma predeterminação da ação através de uma posição ocupada por um grupo
social na esfera produtiva. Acima de tudo, deve haver uma conduta específica e
um sentido atribuído subjetivamente à ação e compartilhado pelo indivíduo e pelo
grupo no qual está insere (GERTH & MILLS, 1982).
Destarte, o partilhamento de uma mesma situação de classe, ou seja, quando
um grupo de indivíduos detém probabilidades semelhantes de acesso a bens e
oportunidades no mercado não garante necessariamente a ação coesa de um grupo
seja pela ação comunal (na qual predominam interesses afetivos ou tradicionais
ligados ao pertencimento a uma comunidade), seja pela ação societária (que im-
plica a unidade de interesses e objetivos racionais).
Assim, na perspectiva weberiana, ao contrário da durkheimiana e da marxista,
apenas teremos a configuração efetiva de uma ação social na medida em que ocor-
re o compartilhamento de sentido, que passa a orientar de modo intersubjetivo
a ação de um grupo, classe ou estamento. Em outras palavras, apenas o pertenci-
mento ao mesmo grupo laboral ou a uma mesma classe social não assegura as con-
dições para a ação ou mobilização dos grupos sociais (GERTH & MILLS, 1982).
Nessa direção, pode-se concluir que a visão de Weber sobre o fenômeno da
estratificação social abarca um conjunto de elementos que não possuem, neces-
sariamente, uma ligação causal ou determinística entre si ou em relação a fenô-
menos sociais mais amplos, como a economia ou a religião. A visão de Weber
sobre a organização das sociedades enfatiza a existência de um amplo conjunto de
dimensões – valores; status, códigos de honra e conduta, éthos de grupo, interes-
ses, etnia – que conformam sociedades e grupos sociais marcados pela luta pela
legitimidade e pelo estabelecimento de sentidos compartilhados específicos, que
norteiam a ação social dos indivíduos.
Tal visão leva Weber a estabelecer uma diferenciação entre esferas específicas,
cada qual com lógicas e dinâmicas singulares de funcionamento:
O processo de estratificação social nas sociedades modernas 57

O lugar autêntico das “classes” é no contexto da ordem econômica, ao


passo que os estamentos se colocam na ordem social, isto é, dentro da
esfera de distribuição de “honras”. De dentro dessas esferas, as classes e os
estamentos influenciam-se mutuamente à ordem jurídica, e são por sua
vez influenciados por ela. Mas os “partidos” vivem sob o signo do “poder”.
(WEBER, 1982, p. 227)

Podemos concluir que Weber concebe o fenômeno da estratificação social


como processo multidimensional no qual condições materiais, prestígio e poder
convertem-se em status econômico, social e político – elementos fundadores da
organização e legitimidade social.

MARX E A ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL: MODO DE PRODUÇÃO,


CONFLITO DE CLASSES E RELAÇÕES DE CLASSES

A história de todas as sociedades que existiram até os nossos dias é a his-


tória da luta de classes. Homens livres e escravos, patrícios e plebeus, se-
nhores e servos, mestres e oficiais, numa palavra: opressores e oprimidos,
em oposição constante, travaram uma guerra ininterrupta, ora aberta, ora
dissimulada, uma guerra que acaba sempre pela transformação revolucio-
nária de toda a sociedade, ou pela destruição das duas classes beligerantes.
(MARX; ENGELS, 1997, p. 5)

Para Marx, a estratificação social de uma sociedade está ligada, predominante-


mente, à existência de relações de classes, em geral assimétricas e contraditórias,
entre classes que desempenham funções distintas na organização da produção so-
cial. Por sua vez, a existência dessas classes está ligada à maneira como a divisão
do trabalho está organizada. Assim, a posição ocupada por um grupo ou indivíduo
na organização da infraestrutura social, ou seja, no modo de produção vigente em
cada época, é determinante para explicar o acesso a bens e serviços, status e poder
político que um indivíduo ou grupo pode dispor (IANNI, 1978; VELHO, 1966;
ARON, 2000).
Partindo de uma análise histórica do desenvolvimento dos modos de produ-
ção, Marx enfatiza o modo como as relações de produção e as relações sociais
interagem em cada tipo de ordenamento social, produzindo a mudança social.
58 SOCIOLOGIA E ADMINISTRAÇÃO

No feudalismo, por exemplo, predominava uma organização social estamental


que contava com duas classes principais: senhores feudais (detentores das terras)
e os servos e vassalos (trabalhadores vinculados pelo mecanismo de corveia, à ter-
ra e ao seu senhor).
Já nas sociedades nas quais predomina o modo de produção capitalista ocorre,
segundo Marx, um agravamento do conflito entre as classes sociais, expressão da
contradição entre capital e trabalho, entre os trabalhadores (proletários) e os capi-
talistas (burgueses). Esse conflito surge do adensamento das contradições entre a
massa de trabalhadores, que acaba ficando com uma pequena parte do excedente
da produção, e os capitalistas, que ficam com a maior parte deste excedente.
A gênese histórica das classes sociais no capitalismo reside, segundo a perspec-
tiva de Marx e em clara oposição à visão econômica clássica que atribuía a existên-
cia de ricos e pobres ao montante de esforço e trabalho investido individualmente,
num longo processo de acumulação primitiva de capital e expropriação das terras
comunais, até o processo que culmina na venda da força de trabalho e na transfor-
mação das relações humanas de produção em relações reificadas (MARX, 1998).
Assim, na obra de Marx encontra-se uma preocupação em explicar a reali-
dade social por meio dos conflitos estabelecidos entre as classes dominantes e as
dominadas. Em cada sociedade, segundo esse pensador, é possível identificar, de
um lado, um grupo que domina os meios de produção e detém o poder político-
-econômico e; de outro, um grupo de dominados que possuem pouco ou nenhum
bem material, a não ser seu próprio corpo e mente. Os dominantes são aqueles
que ocupam posições elevadas na estratificação social gerada a partir da divisão
social do trabalho. Essa posição social não só lhes garante acesso privilegiado à
riqueza socialmente produzida (gerada, pela produção da mais-valia, pela clas-
se trabalhadora), como também acesso ao poder político do Estado e imposição
de políticas que sejam mais favoráveis aos interesses de sua classe. Nas palavras de
Marx e Engels

[...] todas as sociedades anteriores assentavam no antagonismo entre clas-


ses opressoras e classes oprimidas. Mas para oprimir uma classe é preciso
poder garantir-lhe condições de existência que lhe permitam, pelo menos,
viver na servidão. O servo, em pleno regime de servidão, conseguiu tornar-
-se membro da comuna, do mesmo modo que o pequeno-burguês conse-
guiu elevar-se à categoria de burguês sob o jugo do absolutismo feudal. O
operário moderno, pelo contrário, longe de se elevar com o progresso da
O processo de estratificação social nas sociedades modernas 59

indústria, desce sempre mais e mais, abaixo mesmo das condições de vida
da sua própria classe. O trabalhador cai na miséria, e o pauperismo cresce
ainda mais rapidamente do que a produção e a riqueza (1997, p. 15).

Em sua análise da estratificação social, Marx privilegia o conceito de classes


sociais e considera a luta travada entre elas o “motor da história”, ou seja, o prin-
cípio gerador das mudanças e transformações sociais ocorridas ao longo do desen-
volvimento da humanidade (passagem do comunismo natural para o feudalismo,
mercantilismo, capitalismo e inevitável desenvolvimento do comunismo social).
A luta de classes ocorreria entre os detentores dos meios de produção (burgueses,
empresários capitalistas), de um lado e, de outro, aqueles que apenas possuem sua
própria força de trabalho como meio de subsistência (os proletários ou trabalha-
dores). Esse conflito, na concepção de Marx, seria o fundamento de toda mudança
social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao finalizar-se essa exposição sobre o modo como os autores clássicos da So-


ciologia interpretavam o fenômeno da estratificação social, cabe elencar três blo-
cos de considerações.
Um primeiro trata das semelhanças entre as visões desses autores. Como foi
apresentado, de forma geral todos eles entendem que a passagem das sociedades
antigas para as modernas envolveu um amplo processo de transformação no modo
como essas sociedades se estratificavam e se organizavam socialmente. Em geral,
os três apontam para a redução da força da religião, dos laços de parentesco e da
tradição como fundadora dessa divisão do trabalho; ao mesmo tempo em que
apontam a predominância crescente da divisão do trabalho e da racionalização na
estruturação das sociedades industrializadas.
Tais sociedades, como apontado por esses autores, passavam pelo surgimen-
to e desenvolvimento de novas forças sociais (grupos de empresários, grupos de
trabalhadores, grupos sociais, instituições) interessadas em defender sua visão e
concepção de mundo frente às aceleradas transformações fomentadas pelo desen-
volvimento da ciência, da tecnologia e da indústria.
Já o segundo bloco de considerações trata das diferenças entre suas visões.
Nessa direção, deve-se destacar tanto a posição dos autores analisados em relação
60 SOCIOLOGIA E ADMINISTRAÇÃO

à definição de qual seria o elemento fundador e determinante da estratificação so-


cial nas sociedades modernas; como a interpretação acerca da divisão do trabalho
e do desenvolvimento do capitalismo e suas consequências sobre as sociedades
industriais.
Tais diferenças podem ser explicadas tanto pelas singulares concepções de
cada autor sobre o homem e a sociedade, como também pelo modo como cada
um entende a problemática da mudança e da reprodução social. Durkheim, por
exemplo, considera que o processo de aprofundamento da divisão do trabalho tem
um efeito moral positivo, diretamente ligado à capacidade da sociedade de gerar um
novo tipo de coesão (pela diferença), ao mesmo tempo em que desenvolve a pos-
sibilidade de crescente individualização.
Tal perspectiva, como demonstrado, opõe-se diametralmente às visões tanto
de Weber, que identifica no processo de desenvolvimento do capitalismo e de
racionalização do mundo uma tendência ao desencantamento e racionalização
técnica extrema; quanto à de Marx, que encara o capitalismo como um modo
de produção intrinsecamente injusto, perverso e pauperizante, na medida em
que amplia, ao mesmo tempo em que concentra e centraliza, a acumulação de
capital.
Ademais, para Durkheim os problemas advindos dessa nova ordem social eram
concebidos como anomias, passíveis de serem solucionadas por meio da regula-
ção das relações de trabalho e da proposição de um novo ordenamento moral e
jurídico. Além disso, as crises econômicas, em sua concepção (diferentemente da
concepção de Marx), seriam fenômenos anômicos, e não normais. Seriam, assim,
passíveis de correção.
Já em Marx e Weber encontra-se uma visão pessimista quanto à vida nessas
sociedades, entendida por eles como marcada pelo fenômeno da luta entre grupos
de interesse e classes sociais – pela pauperização da classe trabalhadora para Marx
e pela crescente racionalização e burocratização para Weber.
Por fim, esse terceiro bloco de considerações objetiva incentivar o leitor a bus-
car saber mais sobre esse assunto, e ir além das visões dos autores expostas neste
texto. Tal argumento justifica-se na medida em que o leitor deve debruçar-se não
sobre o passado, mas sobre a estratificação e organização contemporânea de nossas
sociedades.
Nesse sentido, o seu desafio é o de responder as seguintes questões e as pro-
blemáticas daí derivadas: Quais seriam os elementos fundamentais da atual es-
tratificação social? A existência de classes? De grupos de interesse? Castas? Éthos
O processo de estratificação social nas sociedades modernas 61

de grupos? Que elementos estruturam nossas sociedades na contemporaneidade:


valores culturais, posição de classe, pertencimento a grupos étnicos? Essas e outras
perguntas são alguns dos desafios e possíveis questionamentos que podem ser fei-
tos após a leitura dos clássicos.
Na busca dessas respostas, muitas são as incertezas e questionamentos, mas,
de fato, tem-se acesso a pelo menos uma certeza, qual seja, a de que esses autores
foram capazes de explicar muitos dos fenômenos vividos em sua época, e que
cabe a nós, partindo do caminho trilhado por eles, buscar entender – com base
em perspectivas clássicas e contemporâneas – as transformações pelas quais nossas
sociedades vêm passando.
CAPÍTULO 5

Poder nas organizações: Da dominação


de poucos à ação de todos

M A R C E L O MI L A N O F A L C ÃO VIEIRA
D A N I E L DA S I L V A L A C E R DA

1. PODER NAS ORGANIZAÇÕES

O interesse que o estudo do Poder desperta nos estudos de organizações é


tão grande quanto a controvérsia que existe em suas várias abordagens possíveis.
Muitos autores sequer admitem a sua existência como algo inerente às organi-
zações, interpretando-o como ações informais, ilegítimas ao desenho teórico da
organização. Na verdade, o poder é uma das categorias centrais para a análise das
organizações (CARVALHO e VIEIRA, 2007), e as questões que geralmente o
acompanham (funcional ou disfuncional, consciente ou desinteressado, repressivo
ou produtivo etc.) são apenas formas diferentes de o conceber que partem de
perspectivas teóricas distintas.
O poder pode ser definido de duas formas aparentemente simples, mas que
guardam grandes diferenças de fundo, com implicações diretas para a compre-
ensão e ação no mundo. Pode-se defini-lo como a capacidade que tem um agente
de influenciar o comportamento de outro. Essa definição tem sido a mais utilizada
para a análise das organizações formais. Ela conduz inevitavelmente à interpre-
tação da dinâmica social e das (e nas) organizações a partir de um olhar sobre

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