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Controle social perverso e a policialização das políticas públicas: o caso


da Segurança com Cidadania.

Pedro Rodolfo Bodê de Moraes*


Letícia Figueira Moutinho Kulaitis**

RESUMO

Sabendo-se que a ordem e a organização dela derivada é inerente a qualquer


sociedade, pode-se afirmar que não existe sociedade que não a produza e
reproduza por intermédio de dinâmicas de controle social. A intenção de
manutenção da ordem e da organização social encontra-se presente na
formulação e na operacionalização das políticas públicas, e constituem um
mecanismo de controle social por intermédio da produção da integração e do
bem estar. No entanto, aquém daquele modelo de controle social observamos
em muitos casos, entre os quais algumas políticas públicas implementadas no
Brasil, outro tipo de controle social que nominaremos como perverso por ter
uma forma e conteúdo policialesco e que tem na policialização das políticas
públicas sua forma mais acabada, uma vez que sob a justificativa da inclusão e
proteção social e que assim é percebida por inúmeros atores sociais, acabam,
na prática, por produzir ou intensificar a segregação e criminalização das
populações e indivíduos que são os destinatários das políticas públicas.
Pretende-se, neste paper, analisar um caso exemplar, do fenômeno acima
referido, a saber, o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania –
PRONASCI, buscando identificar e analisar mecanismos e tipo de controle
social que acabam por realizar.

Palavras-chave: Controle social; Criminalização; Políticas Públicas;


PRONASCI; Segregação social e Segurança.

* Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná.


Coordenador do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos - UFPR
** Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do
Paraná. Pesquisadora do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos –
UFPR
2

1 POLÍTICAS PÚBLICAS E CONTROLE SOCIAL

A tematização da noção de controle social se confunde com a


constituição da sociologia enquanto área do conhecimento e disciplina
acadêmica. Sem ter a intenção de apresentar de forma exaustiva a
sociogênese (Elias, 1990 [1939]: 21) deste conceito, algumas palavras se
fazem necessárias para a localização do debate que faremos a seguir.
Observamos que o termo foi utilizado pela primeira vez em pesquisa do
norte-americano E. Ross em seu clássico Social control: a survey of the
foundations of order, publicado pela primeira vez em 19011. Ross defendia que
a estabilidade social seria resultado da existência de uma sociabilidade
fundada na simpatia entre os indivíduos e a justiça social. Além disto, o autor
destacou outro importante elemento, a saber, que a mudança social é
necessária se a ordem existente não mais atender as necessidades sociais
(Ross, 1931[1901], p. 395).
Quase que ao mesmo tempo, na França, Émile Durkheim, ao indagar-se
como as sociedades se mantém coesas - questão que perpassa toda sua obra-
considerou que o controle social é efeito do processo de socialização existente
e problematizou a produção, assim como a manutenção da ordem, ou dito de
outra forma como é mantida a coesão social, por meio da chave explicativa do
tema clássico da integração social.
Sem, como já dissemos, tratar de forma mais completa2 a questão
acima, destacamos que para aqueles autores a produção e manutenção da
ordem social não é um caso de polícia.
Continuando nossa argumentação e tendo por base a reflexão anterior,
partimos das hipóteses que consideram que 1. O controle social é produzido
pelos processos relativos à organização e ordenação social que, por sua, vez
atualizam e reforçam o controle social existente. 2. Idealmente falando, uma
sociedade organizada é aquela na qual os indivíduos se encontram integrados

1
Na verdade o livro reúne uma série de artigos intitulados Social Control publicados entre os
anos de 1896 e 1898 na American Sociological Review. Para maiores informações sobre a
obra e itinerário intelectual e político de Ross ver Hertzler (1951).
2
A articulação entre as noções de controle social e integração social segundo as tradições
norte-americana e francesa pode ser encontrada em Bodê de Moraes e Berlatto, Controle
social (verbete), In Dicionário de Sociologia. Porto Alegre/RS: Global Ed., 2013 (no prelo)
3

e que possui coesão interna (DURKHEIM, 19773 [1893]), vale dizer, permite
que indivíduos pertencentes a diferentes classes sociais (WEBER, 1979;
MARX, 1978 [1844] e 2011) sintam-se instalados no presente (CASTEL, 1998)
na medida em que suas condições de existência permitem que planejem o
4
futuro (SENNETT, 1999) . 3. Isto significa que as sociedades possuem um
conjunto de regramentos e mecanismos que seriam capazes de diminuir as
desigualdades existentes sejam elas de que tipo forem. 4. O que conhecemos
como políticas públicas fazem parte daquele cenário e a sua implementação
deveria produzir um sentimento de segurança generalizado que
convencionamos chamar de Estado de Bem Estar Social.
Como os conceitos acima referidos, as hipóteses com eles construídas,
assim como os seus usos e operacionalização não são consensuais cabe uma
discussão, ainda que breve, do quadro analítico-interpretativo que utilizamos.
Para construção do nosso modelo analítico, partimos do princípio que
considera que modelos e os conceitos que os compõem são abstrações e, por
isto e segundo a sugestão weberiana, são tipos ideais, ou seja, ainda que
construídos com base na observação de realidades históricas e sociais, não se
confundem com aquelas realidades, sendo, outrossim, uma redução da
complexidade do mundo social. São constructos que viabilizam a análise
sociológica. Isto posto, destacamos que nosso modelo considera que existem
dois tipos ideais de controle social, um que por falta de terminologia melhor
denominaremos como normal e outro que tomado em relação com o primeiro
chamaremos de perverso. Se o tipo normal produziria uma organização social,
por intermédio da integração, que teria como efeito a percepção por parte dos
indivíduos, ou dito de outra forma, os indivíduos integrados ou, nos termos
durkheimianos, os indivíduos morais, ou seja, produto e produtores da coesão
social e observaríamos a produção de ciclos virtuosos. O tipo perverso não
conseguiria tal efeito, muito ao contrário produziria um constante estado de
insegurança e medo, instalando um círculo vicioso que realimentaria a
insegurança.

3
Para uma análise detalhada desta questão em Durkheim ver Bodê de Moraes (2006).
4
Não ignoramos que as discussões sobre o sentido e os diferente graus de coesão e
integração são inúmeras e apresentam, no seu conjunto, uma questão deveras complexa.
4

Aqui cabe um importante destaque. Sabemos que muitas das teorias


que invocaram a ordem social, tomaram aquele fenômeno como algo estático
e, o mais grave, tendo por oposição o conflito, como por exemplo, é postulado
por Talcott Parsons. Nosso entendimento é oposto a este, uma vez que
consideramos que a única possibilidade de instauração da ordem é a que toma
o conflito como elemento constitutivo do mundo social e neste sentido nossa
compreensão pretende estar de acordo com a sugestão de G. Simmel (1983).
Dito de outra maneira a ordem seria constituída a partir e pelo conflito, que teria
origem na diferença entre as classes e os indivíduos.
Assim nos alinhamos à tese que a noção de controle social não pode ser
vista ou reduzida

Ao papel de instrumento do conservadorismo e do tradicionalismo


sociais, (...) como se a renovação permanente dos símbolos,
aspirações a valores sempre novos, a criação de ideais, as reformas,
as revoltas, as revoluções, etc., não fossem elementos essenciais do
controle social e especialmente daquelas formas de controle como a
moralidade, a educação, a arte e o conhecimento (Gurvitch, 1965, p.
5
249).

Acompanhamos a proposição de Simmel (1983), para quem o conflito é


uma forma de sociabilidade das mais importantes existentes no interior dos
grupos e classes sociais e expressos em diferentes formas dentre as quais se
destaca a luta pelo acesso ou manutenção do poder. Não podemos, ainda que
ousando e forçando os limites do conceito, deixar de citar as formas de conflito
intrapsíquico que, como explica Freud (1978 [1929]), tendo origem social
constituem nossa psique. Esta proposição está presente ainda na obra de Elias
(1993 [1939]: 205) quando este autor destaca que:
A aprendizagem dos autocontroles, chame-se a eles de ‘razão’,
‘consciência’, ‘ego’ ou de ‘superego’, e a consequente moderação dos
impulsos e emoções mais animalescas, em suma, a civilização do ser
humano jovem, jamais é um processo inteiramente indolor, e sempre
deixa cicatrizes.

Falando de forma muito geral, as formas de controle social normal


tentariam incorporar o conflito como algo normal ao mesmo tempo em que
reconhecem e tentam diminuir as desigualdades sociais e de acesso ao poder.
Por sua vez, nas formas de controle social que denominamos como perverso, o

5
Acreditamos que negativação do termo controle social se deve em muito as questões postas
por Foucault. Para esta discussão ver Alvarez, 2004.
5

conflito aparece como um elemento a ser eliminado, começando pelas diversas


expressões dos conflitos entre classes que se manifestam em mobilização e
demandas políticas e sociais. Neste caso, tais manifestações são tomadas não
como evidências da necessidade de mudanças e transformações sociais, mas
como atos indesejados uma vez que abalariam uma suposta harmonia social.
Vamos deixar sinalizado sem poder aprofundar mais, uma discussão
sobre o caráter do Estado no sentido em que ele oscila aparecendo ora como
um órgão de promoção da justiça social (DURKHEIM, 2002 [1950] e BODÊ DE
MORAES, 2006), ora como um instrumento da dominação de classe (MARX,
1978 [1844] e 2011). Talvez o correto fosse considerar que o Estado incorpora
aquelas duas disposições cuja dimensão varia de acordo com o caso. A
sugestão de Bourdieu (2001 e 2003) para quem o Estado teria duas mãos, uma
esquerda e outra direita, grosso modo, a primeira se preocupando em proteger
a segunda se especializando em reprimir, é muito útil em nossa argumentação.
Como já dissemos uma das formas clássicas de entender o papel da
operacionalização de políticas públicas, seriam aquelas observadas junto às
áreas da saúde, educação, habitação, etc. cujo resultado visa corrigir ou
diminuir os efeitos da desigualdade social. Isto parece ser claro nos casos
citados mesmo que a completa efetivação da política pública, o que é comum,
não ocorra ou o que foi implementado, por exemplo, não acompanhe o
crescimento da população demandante.
Mas gostaríamos de ir além, para tanto vamos partir de uma definição
utilizada de maneira muito ampla entre os analistas e operadores de políticas
públicas, a saber, a ação ou omissão do Estado no que diz respeito à
intervenção visando solução de um problema social (SECCHI, 2010). Nossa
compreensão é outra. Tudo indica que na proposição acima há um
entendimento de que se trata de uma ação para ofertar ou melhorar um serviço
a uma determinada população e/ou região tendo um caráter eminentemente
social e positivo. Nós cremos que devemos considerar que TODAS as ações
do Estado no sentido de implementar e/ou ofertar serviços, como políticas
públicas, assim, por exemplo, a prisão seria uma política pública. Estamos nos
alinhando à reflexão posta por Wacquant (2001, p.7) quando ao estabelece
uma relação direta entre o declínio do Estado Social e a emergência do Estado
Penal.
6

Ainda que a afirmação anterior possa, para alguns, soar estranha, além
não ser o que normalmente o campo dos estudos em políticas públicas
propugna, continuemos a reflexão ainda utilizando o caso exemplar do sistema
penitenciário.
O que parte da ideologia sobre a prisão, particularmente aquela que crê
que o papel da prisão seja punir e ressocializar6, assegura? Que a prisão é
capaz de melhorar as pessoas e isto será tanto mais real quanto maior for o
acesso à escola, ao trabalho, etc. Afirmação feita ignorando todas as
constatações obtidas sobre farto material empírico, que demonstra que o que
ocorre de fato é a socialização no mundo da prisão, ou seja, o indivíduo
aprende a ser preso, e a partir daí a produção de uma identidade estigmatizada
que o acompanhará pelo resto da vida com o nome de egresso (do sistema
penitenciário).
Frequentemente os presos na sua maioria nesta situação pela sua
condição social e/ou falta de defesa, tendo sido encarcerados por haver
cometido pequenos delitos, acabam por dar início efetivamente em uma
carreira criminosa, seja por assumirem a identidade construída na prisão, seja
porque recrutados pelos grupos organizados no interior das prisões. O dito
popular que assevera que a prisão “é a escola do crime” ou aquele que, mais
recentemente, afirma que a prisão “é o escritório do crime”, exemplificam o que
anteriormente dissemos.
Mas há, e este é o nosso ponto, outro tipo de política pública resultante
do aludido controle social perverso que em função de diversos processos de
legitimação ou de invisibilização é mais difícil de ser percebida como negativa
pelo menos em dois de seus efeitos: não solucionar o problema e marcar
negativamente a população destinatária da política. O que estamos nominando
como policialização das políticas públicas pretende refletir sobre o processo em
questão.
De forma muito resumida, mas suficiente para iniciar a reflexão, o que
estamos definindo como a policialização das políticas publicas é o processo por
intermédio do qual os discursos sobre a produção da segurança pública tomam
a centralidade na elaboração de uma política pública se constituindo pela

6
Sobre a crítica à noção de ressocialização consultar Garland (1993) e Bodê de Moraes
(2005).
7

prevalência ou priorização da utilização das polícias na implementação da


política.
É verdade que o termo segurança pública mais confunde que informa.
Neste aspecto aquele termo possui a mesma característica que noção de
violência, palavra que não possui qualquer valor analítico uma vez que parece
tão somente expressar o conjunto dos medos percebido7. Como delineado por
Machado da Silva (2008, p. 34) abordando de forma mais especifica a violência
urbana que seria uma representação coletiva, uma categoria de senso comum
que confere sentido à experiência vivida nas cidades bem como orienta
instrumental e moralmente os cursos de ação.
Sendo assim, talvez fosse mais preciso para tratar da policialização das
políticas públicas, a observação de que isto ocorre quando o sistema de justiça
criminal é acionado pela utilização das polícias na elaboração das políticas ou,
pior ainda, quando as polícias são as proponentes das políticas públicas de
cunho social, cujos exemplos, pelo menos no caso do Paraná, seriam a
Patrulha escolar e o Proerd8, nos quais a polícia se faz presente no cotidiano
escolar.
Como se tomássemos a inversão de importante fórmula jurídica pela
qual a utilização do sistema de justiça criminal deveria constituir-se em ultima
ratio passando esta a figurar como um primeiro recurso. É óbvio que estamos
reinterpretando e ampliando o sentido da formulação acima referida, uma vez
que ela originalmente se refere aos usos do direito penal. De qualquer forma
consideramos o uso que fazemos apropriado porque a utilização inicial da
polícia aciona ou torna muito mais acessível o acionamento de todo o sistema
de justiça criminal.

7
Cabe ressaltar que a noção de violência pode ser utilizada como uma categoria analítica.
Citamos como exemplo no interior da teoria weberiana do poder que utiliza a noção de
violência legitima.
8
De acordo com a Secretaria Estadual da Segurança Pública, a partir do Programa Patrulha
Escolar, “O policiamento nas escolas passa a contar com policiais militares especialmente
capacitados que, conhecendo a realidade da comunidade escolar, buscam medidas que
minimizem a ação de criminosos nas escolas e proximidades.” (PATRULHA escolar. Disponível
em http://www.seguranca.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=26). Acesso em
25 mar 2013). Sobre o PROERD (Programa Educacional de Resistência às Drogas e à
Violência), a SESP/PR informa que , através da Polícia Militar, “o Proerd ensina alunos de
quartas e sextas séries do ensino fundamental a não se envolverem com as drogas e outras
situações de violência. Os pais também são gradativamente integrados às lições do Programa.
As aulas são ministradas por PMs fardados, durante um semestre letivo”. (PROERD.
Disponível em http://www.seguranca.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=28).
8

Histórica e sociologicamente posto nossa interpretação e o modelo


analítico sugerido se desenvolvem no interior de um processo que, para fins
explicativos apresentamos divididos em três partes ou momentos.
Primeiramente observamos aquilo que Coelho (2005 [1987]) intitulou como a
criminalização da marginalidade, a saber, tomar quem esta à margem, ou
seja, excluído do acesso aos serviços públicos ou de maneira mais ampla do
acesso ao bem estar, como criminoso. Se quisermos podemos também utilizar
as referências que falam de uma criminalização da pobreza como, por
exemplo, elaborado por Wacquant (2003)9.
O segundo momento do processo em análise seria a militarização das
polícias. Salientamos que por mais que estejamos, no texto, nos referindo as
polícias, o que mais nos interessa é, por várias razões, o papel da polícia
militar naquela dinâmica. Primeiro porque a existência de uma polícia militar é
uma contradição em termos, como lembra Zaverucha (1994), um oxímaro, uma
vez que o termo polícia, como indicado a partir de seu prefixo polis, deveria ser
uma instituição civil. Militares são feitos para a guerra, mas para todos os fins,
há um enorme consenso de que o que está em jogo é uma guerra contra o
crime.
Em segundo lugar porque a polícia militar constitui-se naquilo que
Zaverucha (1994) chamou de “enclave autoritário” no interior de Estado
democrático. Tendo se configurado e assumido o papel que hora desempenha
durante o último ciclo ditatorial, ainda que tenha feito algumas mudanças,
continua em sua estrutura uma corporação preparada mais para combater as
classes perigosas do que para servir e proteger. Esta instituição que, dispondo
de uma organização interna arcaica, com um alto grau de letalidade em suas
ações – a polícia brasileira é uma das polícias que mais mata no mundo – e
problemas de conduta e corrupção, é a instituição responsável quando não
pela aplicação direta da política pública por um papel central na implementação
dela.

9
Coelho (2005 [1987]) sugere já no título de seu artigo seminal o processo daria continuidade
quando aquele que foi criminalizado e, uma vez tomado como criminoso, é encarcerado e
neste momento ocorreria o que ele chamou de marginalização da criminalidade, completando o
circuito vicioso que na verdade encarcera os indivíduos em suas próprias vidas, agora vista
como carreira criminosa.
9

O que se convencionou chamar de pacificação social parte, na prática,


do pressuposto que a paz é alcançada pela ação policial. É claro que existem
argumentações que tentam justificar a ação policial e a mais importante delas é
aquela que acredita que a ação policial necessária uma vez que se trata de
territórios conflagrados – atenção para a linguagem militar – e tomados pelo
crime. Como repetem sistematicamente: primeiro a ocupação policial e depois
a ocupação social.
O caso do Rio de Janeiro e suas Unidades de Polícia Pacificadora são
exemplares10. Mas a linguagem da pacificação já estava presente na
novilingua11 que o Pronasci inaugurou: território da paz, mulheres da paz, etc 12,
com as mesmas características presentes nas UPPs. Ainda que, por óbvio,
tenha diferenças, estruturalmente o problema social continua como em outros
momentos, a ser visto como um caso polícia.
O terceiro e último momento culmina com a nossa principal
preocupação, a saber, a policialização das políticas públicas. Talvez fosse
melhor dizer uma policialização militarizada das políticas públicas. Que teria
sua base no que dissemos logo que iniciamos a elaboração desta análise, a
saber, a associação entre criminalidade e marginalidade social parece estar
presente na concepção de políticas públicas voltadas a esta população
“marginal” dado que as ações propostas, sejam na área de assistência social
ou de segurança pública, identificam a pobreza como premissa para entrada no
mundo da criminalidade e buscam manter os jovens pobres ocupados e
isolados do seu próprio grupo. Estas políticas acabam por reforçar a dinâmica
de marginalização que pretendem combater e lançam sobre essa população
um estigma de grupo e de território, ou seja, de uma área supostamente
marcada pela violência e habitada por criminosos e ou futuros criminosos.

10
Como não é nossa intenção primeira a análise das UPPs e contexto de criação destas
unidades policiais indicamos o artigo de Machado da Silva (2010) intitulado Afinal, qual é a
das UPPs.
11
Termo utilizado por Konnick (2000) ao analisar a ressignificação das palavras ou a invenção
delas pelo neoliberalismo.
12
O termo pacificação é antigo e aponta para diferentes usos. Destacamos os usos militares
que sempre remetem para uma terminologia advinda da dominação romana, a pax romana.
Esta noção de pacificação foi atualizada pelo militar prussiano Clausewitz (2003) que, diga-se
de passagem, é uma referência teórica nas Escolas Militares modernas e o seu modelo de
fazer guerra inspira muitas campanhas militares contemporâneas (STRACHAN, 2008). Sobre o
processo de militarização em geral, indicamos as seguintes obras Virilio e Lotringer (1984);
Brigagão (1985) e Mathias (2004).
10

2 POLICIALIZAÇÃO DA CIDADANIA

Partimos, nessa seção do paper, para a análise do Programa Nacional


de Segurança Pública com Cidadania - PRONASCI buscando identificar e
analisar os mecanismos e tipo de controle social que nele encontram-se
forjados, considerando que:

Deve-se ultrapassar uma visão por demais instrumentalista e


funcionalista do controle social como uma misteriosa racionalidade
voltada para a manutenção da ordem social e buscar, em
contrapartida, formas mais multidimensionais de pensar o problema,
capazes de dar conta dos complexos mecanismos que não
propriamente controlam mas sobretudo produzem comportamentos
considerados adequados ou inadequados com relação a
determinadas normas e instituições sociais (ALVAREZ, 2004, p.170).

Num primeiro momento, destacamos que a partir de 1997 emergiram


diversas ações na esfera federal voltadas para a juventude. A associação entre
juventude e violência perpassa tais ações que buscam ora o controle ora a
compensação de problemas que atingem a juventude. Estas ações
encontravam-se no âmbito da Educação, da Assistência Social, do Esporte, da
Saúde ainda que de forma descoordenada (SPOSITO ; CARRANO, 2003, p.
21).
Neste momento de definição e estruturação dos rumos da política
nacional, a questão da juventude começou a tomar forma como integrante do
campo da segurança pública.
Em 20 de junho de 2000 foi lançado, pela SENASP, o Plano Nacional de
Segurança Pública (PNSP), estruturado em quinze compromissos ordenados,
por sua vez, em 124 ações estratégicas. Foram definidos, no Plano, os
participantes de cada compromisso e apresentados os resultados esperados
entre 2000 e 2002. As ações estratégicas, previstas no PNSP, foram atribuídas
não só a União, mas também a estados e municípios, por meio da cooperação
com o governo federal e do estímulo ao desenvolvimento de políticas de
segurança por estes entes.
11

Os compromissos que fazem referências à questão da adolescência


e/ou da juventude13 são aqueles voltados para a regulação dos meios de
comunicação com vistas a impedir à exposição de crianças e adolescentes a
violência14 e na inibição da atuação de gangues. A preocupação com a
juventude, diante do crescimento da violência urbana é expressa da seguinte
maneira:

Nesse contexto, os jovens, especialmente aqueles situados na faixa


etária de 14 a 24 anos, se apresentam ao mesmo tempo como as
vítimas mais prováveis da violência, mas também como os violentos
mais prováveis. A sociedade brasileira não foge a essa tendência
moderna. O Brasil está cheio de exemplos recentes que expressam
omissão ou superproteção das famílias, da escola e dos poderes
públicos, que não conseguem construir, principalmente com a
participação dos jovens, uma perspectiva de futuro. (MINISTÉRIO DA
JUSTIÇA, 2000, p.20).

São associadas ao compromisso de Inibição de Gangues e Combate à


desordem social às seguintes ações estratégicas: redução de consumo de
bebida alcóolica, criação de delegacias especializadas no atendimento a
adolescentes, incentivo a aplicação de medidas socioeducativas aos
adolescentes em conflito com a lei, a fiscalização de organizações, grupos e
associações que reúnem jovens para evitar que estes sejam espaços de
incentivo a violência, restauração de espaços públicos de convivência, como
praças e parques, e projetos educativos voltados aos profissionais de
segurança pública e a comunidade (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2000, p.20).
Percebe-se que há, no documento do PNSP, uma visão dualizada da
juventude. Se por um lado, considera-se que os adolescentes e jovens são
estimulados a violência por meio da mídia e das associações em que se
reúnem, por outro, são violentos em si e por si15. A resposta proposta pelo

13
Para efeitos de análise da política nacional de segurança pública, este artigo refere-se à
juventude como aqueles que têm entre 15 e 24 anos. Já em relação ao termo adolescência,
refere-se à fase compreendida entre 12 e 18 anos como preconizado pelo Estatuto da Criança
e do Adolescente, em seu 2º artigo (BRASIL, 1999, p.1).
14
A atividade de classificação indicativa de faixa etária para exibição da programação cultural,
especialmente cinema e televisão é desde então competência do Ministério da Justiça. Cabe
ao Ministério aplicar multas administrativas às empresas que descumprirem as orientações de
classificação apontadas pelo Ministério, bem como destinar os recursos decorrentes dessas
multas para o Fundo Nacional da Criança e do Adolescente, a serem utilizados no
financiamento de programas de cunho educativo a serem veiculados pela emissora violadora
(MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2000, p. 16).
15
Nesse sentido é pertinente observação da Secretaria Nacional de Direitos Humanos de que
“diante de uma situação de violência, a criança em geral é percebida como vítima,
12

Plano é a adoção de medidas educativas que tem por objetivo inibir o


comportamento violento juvenil.
A aproximação da questão da juventude ao campo da segurança se
realiza ao longo dos anos 2000 e é o lançamento, em agosto de 2007, do
PRONASCI que consolida o foco etário da política nacional de segurança
proposta pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), órgão
integrante do Ministério da Justiça (MJ).
O PRONASCI tem suas ações dirigidas para jovens entre 15 e 24 anos,
identificados como aqueles em situação infracional ou no caminho de situação
infracional: adolescentes em conflito com a lei, jovens oriundos do serviço
militar obrigatório, jovens presos, jovens egressos do sistema penitenciário e
jovens em situação de descontrole familiar grave (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA,
2008, p.5). Estes jovens não estariam integrados aos demais programas
sociais do governo federal.
Buscando articular ações de prevenção e repressão da violência e
criminalidade, o PRONASCI estabeleceu um foco territorial para sua atuação,
priorizando inicialmente as onze regiões metropolitanas do país com maiores
índices de criminalidade, apontadas em pesquisa elaborada pelos Ministérios
da Saúde e da Justiça (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2008, p. 6). Nestas áreas
se concentrariam as ações de prevenção a violência estabelecendo assim um
foco social para o Programa. Em complemento ao foco social e etário, a
formação e valorização das forças de seguranças constituem o foco policial do
PRONASCI.
O Programa possui 94 ações caracterizadas como ações estruturais,
que visam modernizar as polícias e o sistema prisional, valorizar os
profissionais do setor, enfrentar a corrupção policial e o crime e como
programas locais que compreendem as chamadas ações de prevenção
destinadas “a retirar o jovem da rota criminal e inseri-lo nos programas
governamentais já existentes, recuperando-os para a cidadania” (MINISTÉRIO
DA JUSTIÇA, 2009a, p.5).

independentemente de sua conduta. Já o adolescente que comete uma infração é percebido


de forma ambígua, em parte autor e em parte vítima dos seus comportamentos. Por fim, o
adulto transgressor, mesmo jovem, é considerado plenamente responsável e tende a ser visto
como um perigo para a sociedade” (SECRETARIA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS,
2012, p. 20).
13

Dentre as ações propostas pelo PRONASCI, destaca-se o projeto


Proteção de Jovens em Território Vulnerável – PROTEJO. O projeto destina-se
a atender jovens de 15 a 24 anos, conforme diretriz do Programa, em situação
de vulnerabilidade social e exposição à violência.
Os jovens, após processo de seleção, participariam de um percurso
sócio-formativo de 800 horas, cuja estrutura é estabelecida pela Coordenação
do PROTEJO e executada por gestores locais. Este percurso envolve
atividades culturais, esportivas e educacionais. Sua orientação geral é para a
formação de jovens responsáveis pela disseminação da cultura de paz em
suas comunidades. A ação prevê que os jovens, integrantes do Projeto,
recebam bolsa de R$ 100,00 por mês durante um ano.
É prevista também sua execução em articulação com ação denominada
Mulheres da Paz, projeto de capacitação de lideranças femininas para
identificação e acompanhamento de jovens em situação de risco infracional ou
criminal, em sua comunidade e encaminhamento dos mesmos para o
PROTEJO ou demais projetos do Programa.
Observa-se, por meio da análise das políticas públicas de segurança
formuladas pelo Governo Federal16, que a SENASP, como responsável pela
definição e implementação da política nacional de segurança pública, tem
oscilado entre apontar o jovem como principal vítima da violência em nosso
país e/ou identificá-lo como protagonista da violência.
No entanto é possível perceber no âmbito das políticas nacionais de
segurança, que mesmo quando o jovem é reduzido à vítima, a atenção que se
volta para ele é constituída pela noção de que, por conta das características
atribuídas a juventude17 e de sua situação de marginalidade social, este
caminharia numa linha tênue entre a prática concreta da criminalidade e a
possibilidade efetiva de realizá-la.

16
Pesquisa em andamento no Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos
(CESPDH), sob orientação do Prof. Dr. Pedro R. Bodê de Moraes, na Universidade Federal do
Paraná, com previsão de conclusão para fevereiro de 2015.
17
Os jovens são identificados, pela sociedade, como indivíduos vivendo um período
intermediário, entre a infância e a vida adulta, marcado por um comportamento rebelde,
impulsivo e irresponsável. Nesse mesmo sentido, diversas ações, sentimentos e pensamentos
são atribuídos a este grupo, como sendo próprios da juventude. Cabe à Sociologia demonstrar
que este grupo social, os jovens, não se constitui de modo homogêneo e que, portanto, é
preciso conhecer as especificidades que identificam a juventude, em suas diferentes épocas e
contextos.
14

Em cartilha, elaborada pelo MJ, sobre o Território de Paz18, em formato


de quadrinhos, observa-se a ambiguidade da percepção do jovem como
criminoso e como vítima da criminalidade. A protagonista da história em
quadrinhos é Dona Juju, uma líder comunitária selecionada para participar do
projeto Mulheres da Paz.

FIGURA 1 – PROTEJO

Fonte: MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2009, p. 8.

18
A expressão Território de Paz refere-se ao lançamento de um conjunto de ações do
PRONASCI num determinado bairro ou região. Foram lançados Territórios de Paz nas
seguintes localidades, entre os anos de 2009 e 2010: Santo Amaro – Recife/PE; Complexo do
Alemão – Rio de Janeiro/RJ; Zap 5 – Rio Branco/AC; Itapoã – Brasília/DF; São Pedro – Vitória
– ES; Benedito Bentes – Maceió/AL; Bom Jesus – Porto Alegre/RS; Tancredo Neves –
Salvador/BA; Guajuviras – Canoas/RS; Guamá e Terra Firme – Belém/PA; Grande Bom Jardim
– Fortaleza/CE; Grande Vargas – Sapucaia do Sul/RS; Parque Primavera – Esteio/RS; Vila
Anair – Cachoeirinha/RS; Cidade de Deus – Rio de Janeiro/RJ; Vila Paim – São Leopoldo/RS;
Santo Afonso – Novo Hamburgo/RS; Umbu – Alvorada/RS; Cohab – Guaíba/RS; Alvarenga –
São Bernardo do Campo/SP e Guatupê – São José dos Pinhais/PR (MINISTÉRIO DA
JUSTIÇA, 2010).
15

Ao abordar uma família cujo filho “se meteu em confusão com a


bandidagem” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2009, p. 8), Dona Juju oferece a
participação no PROTEJO como uma alternativa à trajetória criminosa.
Destaca-se que, sem a participação nas oficinas do projeto, parece inevitável
que o jovem envolva-se em nova confusão: “temos que dar uma chance para
esses garotos que já se meteram em confusão para que eles não repitam a
dose” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2009b, p. 8)
É necessário destacar que o recorte do PRONASCI, para além da faixa
etária, identifica também os moradores das áreas de periferias como alvo das
políticas públicas de segurança pública, ou seja, como vítimas e/ou
responsáveis pela violência.
Como resultado desta identificação, a população, tomada pelo estado de
medo, dirige seu preconceito, raiva e intolerância para aqueles que são
apontados, nos dados oficiais, como responsáveis pela violência, ou seja, para
a população jovem moradora das periferias destes centros urbanos. Torna-se
necessário esclarecer que nem todo jovem pobre está envolvido com a
criminalidade (ABRAMOVAY, 2010, p. 45).
A demarcação de um território violento, ou seja, de determinada área ou
mesmo áreas da cidade que produzem a violência, que por ela se dissemina,
tem efeitos relevantes sobre seus moradores. Estudando a dinâmica de grupos
jovens em Brasília, Abramovay (2010, p. 45) identifica que:

O estigma territorial incita o Estado a adotar políticas específicas,


derrogatórias do direito comum e da norma nacional, que na maior
parte das vezes reforçam a dinâmica de marginalização que
pretendem combater, em detrimento dos habitantes. A carga
simbólica que pesa sobre esses locais, conhecidos e difamados,
distorce e distende as relações sociais cotidianas.

Retoma-se neste ponto, a discussão dos termos que orientam nossa


leitura do Programa pois uma política pública que aponta os jovens moradores
de periferia como responsáveis pela violência e a criminalidade restam por
produzir um efeito contrário ao do anunciado pela própria política, ou seja,
agravando os problemas sociais que pretendiam amenizar ou resolver e
produzindo medo, insegurança e mecanismos que alimentam esse sentimento
16

entre a população. Para os jovens atingidos por ela, resta a identificação como
“classe perigosa”.
A lógica de ocupação policial e militar de um território para que sejam
realizadas em seguida ações sociais e de prevenção à violência, presente no
PRONASCI, é estrutural no programa das Unidades de Polícia Pacificadora –
UPPS, no Rio de Janeiro, política de segurança contemporânea ao
Programa19, como apontado anteriormente. A policialização das atividades
sociais que compõem o Programa torna-se um elemento indispensável em sua
execução.
Contribuindo com a discussão sobre a demarcação de um território nas
políticas de segurança pública, Machado da Silva, em artigo intitulado Afinal,
qual é a das UPPs?, analisa a distribuição das UPPs em diversas localidades
no Rio de Janeiro e indica que:

A simples ideia de que estas áreas precisam ser pacificadas indica


que os moradores, em conjunto, são vistos com extrema
desconfiança, seja pelo restante da população urbana, seja pelas
instituições de manutenção da ordem pública. Guerra e paz são
referências binárias que tipificam amigos/inimigos, presença/ausência
de perigo, sem maiores refinamentos classificatórios. Assim pouco
importa que os moradores dessas áreas estejam longe de ser todos
pobres e miseráveis, e que constituam na realidade, uma população
bastante heterogênea, que abriga apenas uma ínfima minoria de
criminosos (MACHADO DA SILVA, 2010, p. 4).

Sendo assim, Machado da Silva (2010) aponta que a promoção da


cultura de paz, como denominada pelos formuladores de políticas de
segurança pública, em territórios de pobreza encobre o controle das “classes
perigosas”, por meio da violência.
Não se trata de ignorar a existência de “redutos de criminalidade”, como
preconiza o jargão policial, mas de compreender que estes estão inscritos em
comunidades e não o contrário. A noção de guerra contra o crime ou mesmo
da pacificação de comunidades toma o território a ser ocupado como um bloco
homogêneo.

19
A 1ª UPP foi instalada no morro Santa Marta ou Dona Marta, em Botafogo, em novembro de
2008.
17

Em outro contexto, a análise do que Loïc Wacquant (2001) denomina de


política estatal de criminalização das consequências da miséria aponta que,
nos Estados Unidos, os serviços sociais vão sendo transformados em
instrumentos de vigilância e controle das novas “classes perigosas”, em
especial da juventude.
Por fim, a prisão estabelece-se uma espécie de continuum destino da
população negra e jovem proveniente dos guetos20. Constitui-se o que o autor
identifica como ditadura sobre os pobres caracterizada pela deslegitimação das
instituições legais e judiciárias; a escalada da criminalidade violenta, dos
abusos policiais (dirigidos à população jovem, negra e pobre), a criminalização
dos pobres, a utilização de práticas ilegais de repressão, a obstrução
generalizada ao princípio da legalidade e a distribuição desigual e não
equitativa dos direitos de cidadania. O Estado convertido à ideologia do
mercado total diminui suas prerrogativas nas frentes social e econômica e
reforça sua atuação na área de segurança e na justiça criminal. Diante deste
quadro:
A penalidade neoliberal [conjunto das práticas, instituições e
discursos relacionados à pena e, sobretudo, à pena criminal]
apresenta o seguinte paradoxo: pretende remediar com um “mais
Estado” policial e penitenciário o “menos Estado” econômico e social
que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança
objetiva e subjetiva em todos os países, tanto do Primeiro como do
Segundo Mundo (WACQUANT, 2001, p.7).

A associação entre pobreza e violência, não é, portanto exclusiva do


Brasil. Sua presença na formulação de políticas públicas de segurança é a
justificativa para a presença ostensiva da polícia nos “territórios” abrangidos
pelo programa ou ação em questão e a repressão violenta de seus moradores
como condição para a realização de ações e programas sociais. Trata-se da
identificação, por meio da metáfora da guerra contra o crime, de um território
que precisa ser pacificado para que seus moradores alcancem a condição de
cidadãos.
Na cartilha Território de Paz, do MJ, a primeira página ilustrada traz a
imagem de um alto falante que anuncia: “Atenção moradores! A sua
comunidade está se transformando em um Território de Paz e vai contar agora

20
Cabe destacar que no Programa em questão caso não seja possível “resgatar” o jovem, ou
seja, desviá-lo da rota da criminalidade, é prevista a construção de estabelecimentos penais
destinados à separação da pessoa presa por idade 18 e 24 anos e delito cometido.
18

com muitas ações de segurança e projetos sociais”. (MINISTÉRIO DA


JUSTIÇA, 2008, p. 5).

FIGURA 2 – A ENTRADA NA COMUNIDADE

Fonte: MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2009, p. 8.

A imagem retirada da Cartilha nos remete a um território que até a


chegada do Programa encontrava-se conflagrado e que necessita de controle
policial para que programas e projetos de assistência social, esporte, educação
e cultura se tornem acessíveis à população.
19

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em estudo abrangente sobre as políticas públicas voltadas a juventude


no Brasil, técnicos do IPEA avaliam que: “talvez o maior mérito do Pronasci
esteja precisamente em conciliar os conceitos de repressão e prevenção e aliar
políticas de segurança pública com políticas sociais” (AQUINO, 2009, p. 213).
De fato, essa associação é apontada, na divulgação do PROGRAMA feita pelo
Ministério da Justiça21, como uma quebra de paradigma na segurança pública.
O que nos intriga, neste trabalho, é a necessidade de deslocar ações de suas
tradicionais esferas de atuação para a área de segurança, ou seja, a promoção
de uma “policialização” das atividades de assistência social, educação, saúde,
esporte, entre outras.
Parte-se da noção de que nas localidades identificadas como “Território
PRONASCI” ou ainda “Território de Paz” tais ações, afetas a outros ministérios
e órgãos do Governo Federal, podem se concretizar apenas com o
acompanhamento prévio e permanente das forças municipais e ou estaduais
de segurança pois são estas as regiões que concentram, em suas cidades, a
violência, a criminalidade e a descoesão social22
São exemplos dessas ações e suas respectivas áreas de competência,
incorporadas ao PRONASCI: Recuperação e construção de equipamentos e
espaços urbanos – Ministério das Cidades; Implementação do Canal
Comunidade, Monitoramento Cidadão e Geração – Secretaria de Direito
Econômico; Formação de Núcleos de Justiça Comunitária – Ministério Público/
Secretaria de Direitos Humanos; Programas Brasil Alfabetizado, Educação
Profissional de Jovens e Adultos (PROEJA) e Cursos preparatórios para o
ENEM (Ministério da Educação); Programa Saúde da Família23 - Ministério da
Saúde; Programa Economia Solidária – Ministério do Trabalho e Emprego;
Pontos de Cultura e de Leitura e Museus Comunitários – Ministério da Cultura;
Telecentros para inclusão digital – Ministério da Ciência e Tecnologia/Ministério
21
Essa afirmação da mudança de paradigma está presente em diversos materiais publicitários
do Programa (como manuais e cartilhas), citados ao longo deste trabalho e no Portal do
Ministério da Justiça na internet: http://www.portal.mj.gov.br.
22
De acordo com material institucional de promoção do PRONASCI: “Os anos de instabilidade
econômica, alta inflação e perda da capacidade de investimento do Estado levaram a uma
profunda desestruturação do tecido social nas periferias das grandes cidades brasileiras”
(MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2009b, p.1).
23
Denominado atualmente como Estratégia Saúde da Família – ESF.
20

das Comunicações e Programa Esporte e Lazer na Cidade – Ministério do


Esporte.
A iniciativa de associar estes programas e ações a uma política de
segurança pública é justificada, pelo Ministério da Justiça, por conta da
dificuldade de acesso do poder público a áreas com alto índice de
criminalidade. Em oposição a este argumento, MACHADO DA SILVA (2013, p.
7) argumenta que:
Ressalte-se que é absurda, apesar de muito difundida, a ideia de
‘ausência do Estado’ nas áreas de moradia das camadas populares:
não há qualquer questionamento ou ameaça à soberania do Estado
brasileiro em qualquer lugar. Aquela ideia só passa a fazer sentido
quando traduzida para uma afirmação sobre as variações nas
modalidades de presença das instituições estatais nessas áreas
quando comparadas a outras regiões da cidade. Aí estaria a ironia, se
não fosse uma tragédia: é a própria desigualdade na atuação do
Estado que produz a ideia de sua ausência.

Considerando que nem todos os bairros da cidade se tornaram


“territórios de paz”, podemos inferir que a seleção das localidades que
receberão ações PRONASCI corresponde à seleção dos espaços da cidade
em que a concessão da cidadania só é possível por meio de um efetivo
controle policial, ou seja, através da policialização das políticas públicas e de
um controle social que se evidencia como do tipo perverso.
21

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