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Obra: O suicídio
• Constata a teoria da anomia ao comprovar que as taxas de suicídio estatisticamente se incre-
mentam tanto em períodos de depressão como de prosperidade econômica. Isto se atribui à
transcendência não da efetiva regulação social das interações econômicas dos diversos grupos,
senão de como percebe o indivíduo suas necessidades e o modo pelo qual são satisfeitas. O suicí-
dio anômico não tem sua origem na pobreza, mas em uma situação de crise ou desorganização
coletiva. Quando se limitam adequadamente as expectativas “cada um está então em harmonia
com sua condição e não deseja mais do que legitimamente possa esperar”.
882. Cf. Adler, Freda; Laufer, Willian S; Mueller, Gerhard. Criminology…Op. cit., p. 103 e ss; Siegel, Larry J.
Criminology...Op. cit, p. 207.
883. Cid Moliné, José; Larrauri Pijoan, Elena. Teorías... Op. cit., p. 126.
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a parecer mais uma caricatura que um retrato”884. O propósito de Merton era desco-
brir como algumas estruturas sociais exercem pressão sobre certas pessoas da so-
ciedade para que essas sigam um comportamento não convencional (= ilícito); daí
porque os criminólogos denominam essa perspectiva teórica de “teoria da tensão
ou pressão” (strain theory)885. Na sugestão conceitual de Schmalleger, “a tensão po-
de ser definida como a pressão que os indivíduos sentem para alcançar objetivos
socialmente determinados”886. Essa é a ideia que servirá como ponto de partida. Ad-
virta-se, entretanto, que não tenho o propósito de reconstruir toda a controvérsia
teórica que se instaurou desde a apresentação inicial da teoria. Preocupo-me, nesse
momento, em apresentar os seus pontos centrais. Vejamos, pois, como ele desenvol-
veu a argumentação.
Partindo de uma base sociológica estrutural, analisada a partir da contradição
entre indivíduo e sociedade, e considerando essa como uma força que impulsiona o
indivíduo a determinados comportamentos, Merton cria uma ponte entre desviação
e estruturas sociais. O comportamento, por assim dizer, não tem uma origem
individual, mas sim uma origem cultural derivada do modelo de estrutura
social norte-americano887. A ideia central de anomia, então, é retomada não no
sentido de completa ausência de normas, mas sim no sentido de que, em sociedades
anômicas, existe pressão para que o indivíduo obedeça às normas, mas também para
que ele se desvie delas888. A prevalência de um ou outro comportamento dependerá
do modelo de estrutura cultural que se constrói na sociedade.
Para entender o porquê dessa virada etiológica é preciso situar historica-
mente a formulação mertoniana. Sua teoria reflete o momento de expansão
econômica vivido pelos Estados Unidos, a partir da primeira metade do
século XX. Segundo ele, os Estados Unidos constroem uma defasagem entre uma
estrutura cultural ideologicamente igualitária – o sonho das trajetórias sociais
meteóricas, vale dizer, “qualquer um pode chegar à Casa Branca” – e uma estrutura
social visivelmente desigual. Além disso, trata-se de uma sociedade na qual a inte-
riorização dos fins culturais não tem equilíbrio com a interiorização das normas
institucionalizadas, ou seja, há a procura do sucesso econômico a qualquer custo
(= ainda que para isso seja necessário recorrer a meios ilícitos). Se recorremos a um
exemplo trivial, o modo como esse processo de extrema valorização dos objetivos
pode desembocar em anomia se mostra mais claro: em competições esportivas,
quando o desejo pela vitória despoja os seus limites institucionais e se interpreta
o triunfo como “ganhar o jogo” e não como “ganhar respeitando as regras do jogo”,
isso significa que se premia de forma implícita meios que são ilegítimos, porém ao
884. Merton, Robert K. Teoria Social y estrutura sociales. México: Fondo de Cultura Económica, 1964,
p. 140.
885. Siegel, Larry J. Criminology...Op. cit, p. 207; Schmalleger, Frank. Criminology today…Op. cit., p. 164.
886. Schmalleger, Frank. Criminology today…Op. cit., p. 164 (itálico no original).
887. Cfr. Göppinger, Hans. Kriminologie... Op. cit., p. 152, Rn. 30.
888. Cid Moliné, José; Larrauri Pijoan, Elena. Teorías... Op. cit., p. 125.
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local de trabalho são decisivos para que se aprenda o valor culturalmente aprovado:
os pais servem de polia transmissora dos valores e dos objetivos dos grupos que
formam parte; as escolas são, naturalmente, agências para a transmissão dos valo-
res vigentes e uma grande proporção dos livros por elas adotados expõe de maneira
explícita que a educação leva à inteligência e em consequência ao trabalho e ao êxito
econômico, escreveu Merton897.
Naturalmente que, a essa altura, fica compreensível o porquê de interpretar a
desviação como produto de uma estrutura social defeituosa, ou seja, um modelo
cultural de sociedade responsável pelo estímulo e pressão sobre a conduta indivi-
dual898. Por esse motivo, o funcionalismo mertoniano permite estudar o desvio como
produto normal de determinada estrutura social, daí porque o comportamento cri-
minoso é tão normal quanto o comportamento não criminoso, o que equivale a dizer
que o criminoso não é um doente, apenas (re)age diante da pressão que a estrutura
social exerce sobre ele. Veja-se, como antecipei, que é justamente a ênfase nessa assi-
metria da estrutura social resultante do desajuste entre objetivos e meios que levou
a abordagem de Merton a ser denominada teoria da pressão (ou tensão)899. Vou me
deter mais um pouco nesse ponto.
Dois, portanto, são os elementos fundamentais para a compreensão do pen-
samento de Merton: estrutura cultural e estrutura social900. A estrutura cultu-
ral é o conjunto de valores que regulam o comportamento comum dos membros de
determinada sociedade901. São, portanto, os objetivos culturais de cada sociedade
como, por exemplo, ascensão social e sucesso econômico. A estrutura social, por
sua vez, é o complexo de relações sociais em que os membros de uma sociedade ou
de um grupo se acham diversamente inseridos902, isto é, a estrutura das oportu-
nidades reais, que condiciona de fato a possibilidade dos membros da sociedade
se orientarem para os objetivos culturais e respeitarem as normas institucionaliza-
das903. Aquela é igualmente aspirada por todos os membros da sociedade, enquanto
os meios legítimos para alcançar as metas aspiradas, seja pelo nível de formação
profissional seja pela discriminação racial, são desigualmente distribuídos entre os
indivíduos da sociedade904. Dito de outro modo: enquanto um grupo social dispõe de
toda uma estrutura de oportunidades para alcançar o sucesso econômico, os grupos
situados no nível mais inferior do estrato social, os marginalizados socialmente, se
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veem impedidos, ou mesmo muito limitados, de realizar o objetivo ditado pela pres-
são cultural: o êxito econômico905.
Não terá escapado ao leitor, portanto, que o funcionamento das estruturas
está subordinado a duas chaves-conceituais: a primeira, são os objetivos, os pro-
pósitos sustentados por todos os indivíduos da sociedade; esses objetivos, orga-
nizados hierarquicamente, informam aos membros da sociedade as coisas “pelas
quais vale a pena esforçar-se”. A segunda, define os modos admissíveis para al-
cançar esses objetivos; o grupo social acopla os seus objetivos a regras; daí por-
que, muitos procedimentos que seriam mais eficazes para alcançar os objetivos
– como a força, a fraude ou o poder – estão banidos da zona de conduta permi-
tida906. Anomia em Merton é, portanto, a crise da estrutura cultural que se
verifica especialmente quando existe forte discrepância entre normas e
fins culturais, de um lado, e possibilidades estruturadas socialmente de
atuar em conformidade com aquelas, por outro lado 907. Um exemplo ajuda
a compreender melhor: a riqueza e sucesso econômico podem ser atingidos tan-
to pelo trabalho legítimo, como assalto a bancos. A diferença é, obviamente,
que o primeiro meio é socialmente aceito, enquanto o segundo é recusado pela
maioria da sociedade. Mas, ambos desembocam no fim comum, ou seja, na meta
imposta culturalmente a todos os indivíduos.
Uma leitura apressada poderia conduzir à afirmação de que, segundo Merton,
a existência de uma estrutura social e de uma estrutura cultural são suficientes,
por si só, para produzir uma situação de anomia e gerar o comportamento des-
viante, mas essa conclusão, embora coerente, merece uma ressalva anteriormente
apontada (acima, Cap. V). Nesse ponto, a observação de Mannheim é irretocável,
“[...]a falta de oportunidades só é decisiva se ocorrer numa sociedade dominada
por uma ideologia igualitária e que se revê no evangelho da igualdade de opor-
tunidades para todos [...]908.” É nesse tipo de sociedade que é possível proliferar o
processo de desmoralização social.
Em modo de síntese: pode-se dizer que a explicação mertoniana do desvio
reside na incongruência entre a estrutura social e a estrutura cultural909. Uma
sociedade anômica é caracterizada por uma distribuição seletiva das es-
truturas sociais e permite que apenas alguns indivíduos possam alcançar
as metas culturais. O comportamento desviante não é, portanto, uma opção do
indivíduo, senão uma consequência da estrutura social defeituosa; tampouco
uma escolha, mas uma adaptação gerada pela ordem social. É o desajuste entre
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913. Merton, Robert K. Teoria Social...Op., cit., p. 148 e ss; Göppinger, Hans. Kriminologie... Op. cit., p. 153,
Rn. 33.
914. Para referência a outras reações às circunstâncias de frustração, cf. Merton, Robert K. Teoria Social...
Op., cit., p. 149, nota de rodapé n. 12.
915. Merton, Robert K. Teoria Social...Op., cit., p. 149.
916. Merton, Robert K. Teoria Social...Op., cit., p. 150. Criticando o uso do termo inovação cf. Mannheim,
Hermann. Criminologia... Op. cit., p. 771.
917. Merton, Robert K. Teoria Social...Op., cit., p. 156 (itálico no original).
918. Merton, Robert K. Teoria Social...Op., cit., p. 150-156.
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São indivíduos que estão na sociedade, mas não fazem parte da sociedade924.
É possível que grande parte dos indivíduos que se ajustem a esse modelo de adap-
tação sejam indivíduos frustrados e com atitude derrotista. Em um sistema que se
mostra competitivo, esses indivíduos reconhecem que não podem “lutar” e se re-
traem. A evasão seria, então, uma válvula de escape das exigências da sociedade.
Por fim, o modelo da rebelião925 corresponde não à simples negação das metas
culturais e dos meios institucionalizados, mas à sua substituição por novos fins
culturais e novos meios institucionalizados. Neste modelo, os indivíduos cri-
ticam os fins e meios imperantes na sociedade, considerando-os arbitrários, e pro-
põem novos valores e critérios adequados à sua visão de mundo, ou seja, querem
uma nova ordem social. É, pois, um tipo de adaptação coletiva.
Graficamente, a explicação mertoniana para o comportamento desviante é re-
presentada pelos sinais (+) e (-). O primeiro (+) significa interiorização; o sinal (-)
representa rejeição e o duplo sinal (±) rejeição dos valores prevalentes e substituição
por novos valores926:
1) Conformismo + +
2) Inovação + -
3) Ritualismo - +
4) Evasão ou apatia - -
5) Rebelião ± ±
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A partir das tipologias de Merton não fica difícil concluir que o comportamento
desviante não é derivado de fatores biopsicológicos dos indivíduos, senão do perten-
cimento a determinado grupo social. A cultura impõe aos membros dos extratos in-
feriores das classes sociais exigências culturais inconciliáveis: por um lado, eles têm
que se comportar e orientar sua conduta na busca de elevado sucesso econômico; por
outro, não dispõem dos meios institucionalmente legítimos para alcançá-lo. É neces-
sário pôr acento nisso: a descrição dos modos de adaptação não expressa uma
descrição de tipos de personalidade. Ela ilustra, sobretudo, o comportamento do
indivíduo com uma resposta (ou reação) à pressão decorrente da anomia929.
Finalmente, quanto à possível relevância penal dessas adaptações, vale sinte-
tizar930: o conformismo e o ritualismo não apresentam problemas porque nesses
casos há respeito aos meios institucionalizados. Resta-nos, portanto, a inovação, a
evasão e a rebelião. Quanto à inovação, como antecipei, essa expressa o modelo de
adaptação mais apropriado para explicar o comportamento desviante; isso, entre-
tanto, não significa que o desvio sempre será percebido pelas instâncias de controle
927. Cf. Vold, George B; Bernard, Thomas J; Snipes, Jeffrey B. Theoretical... Op. cit., p. 163-164; Schneider,
Hans Joachim. Kriminologie…Op. cit., p. 433.
928. Em: Amelang, Manfred. Sozial abweichendes Verhalten: Entstehung – Verbreitung – Verhinderung.
Berlin; Heidelberg; New York; London; Paris; Tokyo: Springer, 1986, p. 155.
929. Merton, Robert K. Teoria Social...Op., cit., p. 149 e p. 161; Schneider, Hans Joachim. Kriminologie…Op.
cit., p. 433.
930 A sugestão é de Garcia-Pablos de Molina, Antonio. Criminología…Op. cit., p. 727.
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social formal: no caso dos crimes empresariais, por exemplo, “nem sempre será fácil
delimitar um bom negócio de uma fraude colossal”931. Quanto à evasão, essa pode
adquirir relevância penal no caso de a lei penal contemplar os comportamentos ti-
picamente evasivos, a exemplo da drogadição, vadiagem e mendicância. A rebelião,
por fim, poderá concretizar conduta com relevância penal sobretudo quando assu-
me cariz político e implique – em si mesmo – ato delitivo.
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937. Assim denominada por entender que a anomia não tem somente uma dimensão estrutural, senão
igualmente uma dimensão individual. Cf. Meier, Bernd-Dieter. Kriminologie…Op. cit., p. 58, Rn. 64;
Neubacher, Frank. Kriminologie... Op. cit., p. 100-101, Rn. 3; Garcia-Pablos de Molina, Antonio. Crimi-
nología…Op. cit., p. 731; Téllez Aguilera, Abel. Criminología…Op. cit., p. 283.
938. Göppinger, Hans. Kriminologie…Op. cit., p. 155, Rn. 41.
939. Schmalleger, Frank. Criminology today…Op. cit., p. 167.
940. Schmalleger, Frank. Criminology today…Op. cit., p. 167.
941. Por todos, Bock, Michael. Kriminologie...Op. cit., 77, Rn. 196 e ss.
942. Cid Moliné, José; Larrauri Pijoan, Elena. Teorías... Op. cit., p. 144.
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Para além disso, Agnew sustenta existirem outras fontes de frustração como, por
exemplo, a perda de estímulos positivos ou recebimento de estímulos negativos943.
Exemplificadamente, quando o indivíduo não é tratado como gostaria pode surgir
uma série de emoções negativas (a ira, o medo, a depressão, o desgosto) as quais o
pressionam para o cometimento da conduta delitiva944. De modo mais preciso, para
Agnew é possível considerar os seguintes fatores de pressão945-946:
1. Pressão derivada da impossibilidade de alcançar as metas sociais deseja-
das. A frustração que se estabelece aqui deriva do desequilíbrio entre as ex-
pectativas e aquilo que o indivíduo pode efetivamente alcançar. Seria o caso,
por exemplo, daquele indivíduo que investe tempo e dinheiro na sua formação
profissional, mas que, por razões de mercado, vê-se obrigado a trabalhar em
setores destinados a pessoas “menos” qualificadas.
2. Pressão derivada da privação dos estímulos positivos que o indivíduo
já possui ou que espera possuir. Essa hipótese pode ser expressada, por
exemplo, recorrendo-se aos seguintes exemplos: trabalhador que perde o
emprego em razão de uma necessidade de mercado (i) ou, então, que vê pio-
rar as suas condições de trabalho em razão dessa mesma necessidade de
mercado (ii); o jovem que é expulso do colégio e vê-se privado da companhia
dos melhores amigos (iii).
3. Pressão derivada da confrontação do indivíduo com situações negati-
vas ante as quais ele não pode escapar. Nesse sentido, destacam-se as ex-
periências como vitimizantes, a exemplo das vítimas derivadas de abusos
sexuais; da esposa que sofre maus-tratos do marido violento, mas que não
consegue abandoná-lo em razão da sua dependência econômica; experiências
negativas na escola.
Diante dos estados afetivos negativos gerados por essas espécies de frustração,
desperta-se no indivíduo a necessidade de mitigar o impacto desses estados, isto é,
de aliviar a situação de pressão que sob ele se instaura. O delito não é outra coisa se-
não uma das possíveis formas de fazê-lo947. A questão que surge, então, é a seguinte:
por que alguns indivíduos, sujeitos ao mesmo estado afetivo negativo, não praticam
delitos? Bem, para Agnew, isso se deve a diferentes fatores estratégicos utilizados
para superar essas situações de pressão. Assim, por exemplo, o indivíduo pode reagir
943. Cid Moliné, José; Larrauri Pijoan, Elena. Teorías... Op. cit., p. 144.
944. Meier, Bernd-Dieter. Kriminologie…Op. cit., p. 57, Rn. 63; Téllez Aguilera, Abel. Criminología…Op. cit.,
p. 284.
945. Agnew, Robert. A general strain theory of terrorism. In: Theoretical Criminology, vol. 14, 2010, p. 131
e ss.
946. Cf. Adler, Freda; Laufer, Willian S; Mueller, Gerhard. Criminology…Op. cit., p. 111; Bock, Michael. Kri-
minologie…Op. cit., p. 77, Rn. 196; Göppinger, Hans. Kriminologie…Op. cit., p. 155, Rn. 42-43; Meier,
Bernd-Dieter. Kriminologie…Op. cit., p. 57, Rn. 62; Neubacher, Frank. Kriminologie... Op. cit., p. 101,
Rn. 3; Téllez Aguilera, Abel. Criminología…Op. cit., p. 284.
947. Agnew, Robert. Foundation…Op. cit. p. 54 e ss.
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