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Copynght O Bortempo Editorial,

Margem 2007
Esquerda — ensaios marxistas
nQ IO

Editora
Ivanajinkings
Editor de texto
João Alexandre Peschanski
Assistência
Ana Paula Castellani
Vivian Miwa Matsushita
Editor de imagens
Luiz Renato Martins
Preparação
Leticia Braun
Revisão
Bibiana Leme
Produção
Marcel lha
Capa
Antonio Kehl e Luiz Renato Martins
sobre fotografia de Carmela Gross: s. t., Moscou, 2007
Fotografias
Carmela Gross
fotos da montagem Aurora na II Bienal
de Arte Contemporâneade Moscou, 2007
Projeto gráfico e editoração
Antonio Kehl
Fotolitos
OESP

Impressão e acabamento
Bartira

ISSN 1678-7684

número IO: novembro de 2007

BOITEMPO EDITORIAL
Jinkings Editores Associados Ltda.
Rua Euclides de Andrade, 27 —Perdizes
05030-030 São Paulo- SP
Tel./Fax:
(l l) 3875-7250/ 3872-6869
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Alemão é mais complexo
O
BATISTA
VERA MALAGUTI

a chacina do Morro
Em que climensào ruais atnpla se inscreve do
Alemão,conhecidacorno a Chacina do l'an, ocorrida em junho
te ano? Pritneiramente,está atrelada ao crescirnento exponencial(Ia
truculênciapolicial,ao extermínio etn doses regulares e certasque
em alguns noomentos, "sai do controle". As cifras se apresentam real.
mente de modo brutal: dezenove nnottos em dia de confronto,
nenhutn policial (110110,uni ou dois cotn ferinaentos leves. Cercade
cinco mil crianças ficarannsetn escola durante sessenta dias, os pe.
quenos comerciantes tand)étn fecharatn seus negócios, mais de ses-
senta feridos. Connoalguém pode acolher a idéia de que essa seria
uma operação de "segurança pública"? Segurança para quem?De
onde surgiu essa aclesàosubjetiva à barbárie (essa já nào só naturali-
zaçà(),porque agora acrescidado aplauso), que chega aos palcosda
Zona Sul do Rio?A truculência agora é indicador do sucesso. A esca-
lada do arbítrio policial e do terror oficial do Estado nos morros
cariocas foi sendo legititnada aos poucos pelo
discurso moral do
conservadorisnno brasileiro. Esse tnoralismo
seduziu setores consis-
tentes do que Maria Lúcia Karanachamou
Aparentementeingénuos, os defensores da de esquerda punitiva',
gestào penal da confli-

I Maria Lúcia Karam, 'A esquerda punitiva",em Discursos


ano l, n. l, RIO de Janeiro, InstitutoCarioca de Sediciosos: Crime, Direito
e Sociedade'
Criminologiamelume
Dumará, 1996, p, 79-92'

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social no capitalistno de barbárie acabam expandindo a leta-
do sistctna, corno foi o caso da gestào "sociológica"da polícia
de Janeiro.
no RIO
0 segundoponto para uma análise mais ampla é a construçào
octal da figura do traficante: o herege que deseja se apossarda
de nossas crianças, como Nilo Batista descreveu nossas ma-
inquisitoriais penais ibéricas2. Essa construçào social, que
transfornvaa juventude popular em alvo de um controle social
com bélico, está vinculada a um movimento mais articula-
aquilo que Rosa del Olmo trabalhou como geopolítica e eco-
noniiapolítica das drogas. Para ela, tratar desse tema tào encober-
to, tio niistificado, significa analisar as relações de poder no sistema
mundial,no circuito ilegal das mercadorias. Os Estados Unidos
sido o eixo central da política criminal de drogas no continen-
te, e são retumbantes as marcas de seu fracass0 3. Os objetivos norte-
arnefieanosexplícitos são desmascarados pela realidade nua e crua:
o proibicionismo de mais de quarenta anos assistiu à multiplicação
das áreas de cultivo, ao crescimento exponencial do comércio ata-
cadistae \areiista na ilegalidade, à corrupçãodos agentes do Esta-
do, ao incremento do uso e ao aumento sem precedentesda vio-
lência. Como na falta de sentido da operaçào do Morrodo Alemão,
a pergunta que temos de nos fazer é: afinal de contas, para que
serve essa política criminal de drogas? Como explicar que os maio-
res produtores de drogas ilícitas do mundo, Afeganistãoe Colôm-
bia, tenham conquistado esse título sob ocupação norte-americana?
Surge aqui o terceiro ponto da questão: paralelamente às trans-
formações do processo de acumulação de capital que se intensifica-
ram na década de 1980,com o neoconservadorismode Ronald
Reagan e Margaret Tlvatcher, o governo norte-americano utilizou o
combate às drogas com a idéia de guerra como eixo central de
política para a América Latina. Passou a difundir termos como narco-
guerrilha e narcotemorismo, começando a ensaiar aquilo que George
Bush filho apresentaria mais tarde como o "Eixodo Mal"
Esse deslocamento de técnicas, o paradigma bélico, servirá para
consolidar o que Paulo Arantes definiu:
sistema penal bros&ro (2. ed., Rio de Janeiro, Instituto
NÔo Batista,Motnzes ibénccs do
Canoca de Cnrwnologa/Rev3".2002).
2, Medern, 1999
Cf. del *Geopoltycade Ias drogas', em PeastoA'Es,
do lado de cá, a guerra civilizou-se a tal ponto que já nào é
filas unia operaçào de polícia tnundial, algo como uma extensào
do processo de pacificação na origeni das sociedades bem "policiadas'
hoje; do lado de lá, a guerra barbarizou-se a tal ponto que a
si mesmo? violêncu
tornou-se fitn

É por isso que as operações policiais apostam no modelo de


gio. é tudo Inuito parecido na Palestina, no Alemão e na fronteira
americana com o México. No Brasil contemporâneo, esses processosse
encontram com as marcas históricas da crueldade colonial e escravista
Nos monrntos de grande conflitividade social e de medo por partedas
elites, os discursos do autofitafismo e das rígidas hierarquizações sociais
se afinam para conduzir ao extermínio. São as racionalizaçõeshege-
mónicas e a cultura utilitaristaque vão explicar no liberalismoos mortos
dos moinhos de gastar gente dos ciclos económicos na periferia do capi-
talS. A verdade é que, no liberalismo à brasileira, o pelourinho sempre
esteve lá na praça pública, concreta ou metaforicamente.
Raúl Zaffaroni critica a impossibilidade que o direito e a criminologia
apresentam para servirem de obstáculo à barbárie. Ao contrário,sào
hegemonicamente ideologias racionalizadoras do genocídio. Para ele,
"está empiricamente verificado que nenhum crime de Estado é co-
metido sem ensaiar ou apoiar-se em um discurso justificante"6
A matança no Alemão concentrou muitas mortes oficiais num só
dia, foi isso que a colocou fora cle ordem, apesar da neutralizaçãoda
grande mídia e até da Ordem dos Advogados do Brasil, seção Riode
Janeiro (OAB-RJ).Mas,quando a violência é plástica, a conta-gotas,ela
passa sem maiores horrores: três mortos no Jacarezinho hoje, dois em
Vigário Geral ontem, sete em Realengo anteontem... O discurso da
segurança como mercadoria política produziu uma eleitoralizaçàoda
emergência e um mercado de trocas simbólicas, de novos agentes e
especialistasque vão dar novos sentidos para produzir consensos e
controles sobre as subjetividadesdiante do fato criminar.

4 Paulo Arantes, Extjnçõo(São Paulo, Bottempo,2007), p. 49.


A expressão "moinhosde gastargente"é de Darcy Ribeiro em O povobrasileiro:o formoçóO
o e o sentidodo Brasil (São Paulo,Companhia das Letras, 1995).
6 Eugenio Raúl Zaffaroni, Un replanteoepistemológicoen cnminología(Buenos Ares, 2007, mimeO)•
Máximo Sozzo, Metamorfosls de Ia pnsión? Populismopunitivo,proyecto normalizador y "pnsón-
depósito"en Argentjna(Buenos Ares, 2007, mimeo).

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atualizaçào histórica de nosso exter-
brasileiro,assistimos à
ISO
o
secular: medo tem sido o fio condutor legitimante das perma-
, io Eis aqui o velho discurso na imprensa
estéticasda escravidão.
XIXe que se tornou matriz discursivada políciabrasileira:
bern meditado ta Revolta dos Malêsl nos deve assaz horrorizar para
Isto
tào frouxos e descuidados como até agora tem sido, em
quenão sejamos
rompimento não nos apanhe de improviso. Pare-
tomara este outro igual
que se devem tomar, he estabelecer
ce que as mais obvias e immediatas
primeiramentehuma Policia activa e vigilante, que observe com cuidado
todos os passos que os Africanos derem, que pareçâo encaminhar-se a
conjuraçõescontra a nossa existencia, para que a tempo se previnào,
empregandopara esse fim todos os meios que mais convenientes forem
parase descubrirem tenções tào pavorozns: segundo, termos huma força
armadasufficiente, que pela sua disciplina, gente escolhida de que se
compozer,nos inspire confiança, e aos escravos infunda terror. (...r
Enfim,como constava numa pichação dirigida ao presidente Lula:
"O Alemào é mais complexo". A chacina pontual é subordinada a um
projetomais amplo de extinção. É o que Paulo Arantes chama de
guerra cosmopolita, vista como uma "questão judicial de crime e cas-
tigo,uma questão de polícia"9, um estado de sítioplanetáño. Que não
se iludam os que estão na margem esquerda: a questào criminal
nunca foi tão política como no capitalismo contemporâneo. O papel
dos intelectuais comprometidos com a construçào de novos diques
utópicos10é desconstruir aquilo que Noam Chomsky denominou
manufaturado consentimentoda aniquilaçàoe da barbárie.

Janetro,7 de abnl de 1835. apud Vera MalagutBabsta.O


0 Póo dAssucar, n. 27, RIO de
dos de uma htstóeio(2. ed., Roode Janeiro, Revan,
rnerb ro odode do PJOde Janejro:
1003). p.
PaJo Arantes,Exonçóo,at, p. 40.
A é de ManidoMenegat-

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