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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE POLÍTICA
DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA
DOUTORADO EM CIÊNCIAS HUMANAS: SOCIOLOGIA E POLÍTICA

NOTAS SOBRE REFLEXIVIDADE E REFLEXÃO TEÓRICA

Trabalho apresentado como avaliação


parcial da disciplina Teorias Políticas
Contemporâneas, ministrada pela
Profa. Vera Alice, no doutorado em
Ciências Humanas da UFMG, no
primeiro semestre de 2003.

OSVALDO ROSA VALENTE

Belo Horizonte/Minas Gerais


Agosto/2003
No início de sua reflexão sobre a origem das desigualdades sociais,
DAHRENDORF (1992) nota que, baseado na distinção prévia que estabelecera entre
provimentos e prerrogativas, “as chances de vida [noção que combina provimentos e
prerrogativas] nunca são igualmente distribuídas”, dado que não se conhece nenhuma
sociedade histórica em que “todos os homens, mulheres e crianças tenham as mesmas
prerrogativas e gozem dos mesmos provimentos” (DAHRENDORF, 1992: 40). Em
outras palavras, não se conhece sociedades que não sejam marcadas pela estratificação
social e em que tal estratificação não leve à desigualdades referentes à valorização da
posição social e seus reflexos sobre a repartição dos bens materiais e simbólicos que
qualquer sociedade produz.
O que o Autor citado está chamando atenção é para um dado básico em ciências
sociais. Como nota CHERKAOUI (1995), a estratificação é universal e onipresente,
podendo assumir formas variadas, mas não há sociedade que não a conheça. E ela
“existe a partir do momento em que há diferenciação, hierarquização, desigualdade ou
conflito entre os elementos constitutivos de um grupo” (CHERKAOUI, 1995:107).
Esse é o dado básico em ciências sociais. Digamos, o ponto em comum em toda e
qualquer análise, qualquer que seja a sua orientação teórica. A questão é como estas
últimas o tratam no seu interior e como pensam os reflexos políticos deste fenômeno.
O tema da estratificação social e seus reflexos políticos e sociais não é de forma
alguma novo naquilo que se convencionou chamar de “pensamento ocidental”. O
próprio Dahrendorf cita Aristóteles, quando este afirma que “semelhantes não
constituem um estado”, para corroborar suas afirmações iniciais (DAHRENDORF,
1992: 40). Mas, pode-se recuar a Platão. Com efeito, em A República, Platão pensa a
pólis (palavra mais provavelmente utilizada por Aristóteles na passagem citada por
Dahrendorf) como algo estruturalmente integrado pela divisão do trabalho e, no plano
normativo, pela remuneração justa a cada um dos seus membros componentes segundo
os seus méritos. “A polis é uma pluralidade”, para citar novamente Aristóteles.
A história da polis grega, ou de Atenas em particular, tem mais algo a ensinar
sobre sociedades estratificadas e política. Assim, a pólis grega viveu o seguinte dilema:
dada a organização democrática vivenciada por Atenas, a questão era como conciliar
estas posições diferentemente valorizadas com participação política igualitária, isto é,
democrática. Ou seja, como uma sociedade hierarquizada deve lidar com a cidadania,
que implica sempre em igualdade no nível político.
Esta questão, por certo, não é exclusiva das polis gregas, ou de Atenas em
particular. Lutas políticas de toda espécie que estão no berço, e aconteceram no próprio
desenrolar da modernidade têm inscritas em si esta questão. Grosso modo, é o que
Dahrendorf chama de conflito social moderno.
Sumarizando, então, o que está indicado acima, a questão é a seguinte. 1) Toda
sociedade se reproduz de forma rotineira, implicando isso em formas organizadas,
estruturadas, de convivência; mas, 2) toda sociedade reproduz-se também de forma
estratificada, com pessoas (que conformam grupos, classes ou estamentos sociais)
ocupando posições sociais diferenciadas. O terceiro ponto surge mais como a questão
que aqui vai ser objeto de apreciação: O que implicam estes pontos básicos da
convivência social para o fazer político? Estratificação implica em formas específicas
de lutas e participação políticas?
A hipótese aqui levantada como resposta a tais questões é a seguinte: não se pode
respondê-las sem se remeter à noção de reflexividade. É sobre esta noção e suas
implicações no fazer político de atores sociais que este trabalho se debruçará.
O autor contemporâneo que mais se deteve sobre a noção de reflexividade e que
fez dela um dos pontos fulcrais de sua teoria sobre o social foi Anthony Giddens. Para
GIDDENS (1991: 43) “há um sentido fundamental no qual a reflexividade é uma
característica definidora de toda ação humana. Todos os seres humanos rotineiramente
‘se mantêm em contato’ com as bases do que fazem como parte integrante do fazer”.
Assim, a ação humana é marcada pela “monitoração do comportamento e seus
contextos” (GIDDENS, 1991: 44). O ator, portanto, não apenas age ou interage, mas
leva em consideração sempre uma reflexão sobre o seu agir (e o do outro, por suposto) e
o contexto no qual interage na sua própria ação. Esse é, de resto, um pressuposto básico
de toda teoria da ação social.
Ainda que tal forma de monitoração do próprio comportamento esteja presente em
culturas tradicionais, este processo de reflexividade da ação humana é acentuado no
contexto da modernidade. Não só isso: assume caráter diferente, na medida em que ela é
introduzida na própria base de reprodução do sistema. Assim, não há prática que não
seja ou não possa ser objeto de revisão à luz do conhecimento. Um apelo puro e simples
à tradição para a justificação de uma ação não é aqui possível, pelo simples fato de que
a própria tradição se torna objeto de reflexão (ou seja, de revisão). E uma tradição assim
justificada, já perdeu o seu poder legitimador uma vez que “recebe sua identidade
apenas da reflexividade do moderno” (GIDDENS, 1991: 45).
A própria noção de conhecimento é revista. O sentido antigo (de que conhecer é
estar certo) não faz mais sentido na medida em que o conhecimento objeto de constante
revisão é marcado pela transitoriedade.
Um bom exemplo disso é a relação da economia (como ciência) e a atividade
econômica moderna. Segundo GIDDENS (1991:.47) os conceitos da ciência econômica
“foram formulados no sentido de analisar mudanças envolvidas na emergência das
instituições modernas”. Ou seja foram fruto da reflexão sobre o novo contexto. Mas,
findaram por ficar também profundamente imbricados na própria vida econômica.
Como observa GIDDENS (1991: 47), “a atividade econômica moderna não seria como
é se não fosso o fato de que todos os membros da população dominaram estes conceitos
e uma variedade indefinida de outros”.
Assim, a quantidade maior de conhecimento produzido sobre a vida social tem um
profundo impacto sobre a própria vida social na qual incide. Mas isso não quer dizer
que isto possa levar ao que os iluministas do séc. XVIII esperavam, isto é, ao
melhoramento da vida social como um todo, como se existisse uma base racional sobre
a qual incidiria uma maior quantidade conhecimento. E GIDDENS (1991) identifica
quatro fatores para que isso não ocorra.
O primeiro é o poder diferencial. A esse respeito lembra que “a apropriação do
conhecimento não ocorre de maneira homogênea, mas é com freqüência diferentemente
disponível para aqueles que estão em posição de poder, que são capazes de colocá-lo a
serviço de interesses seccionais” (GIDDENS, 1991: 50).
O segundo diz respeito ao papel dos valores. Segundo GIDDENS (1991) as
mudanças de valores dependem das inovações na orientação cognitiva criadas por
perspectivas cambiantes sobre o mundo social.
O terceiro é o impacto das conseqüências inesperadas. Assim, “nenhuma
quantidade de conhecimento acumulado sobre a vida social poderia abranger todas as
circunstâncias de sua implementação”. O ponto aqui é que contextos podem tornar
impossível o controle sobre os efeitos de um conhecimento aplicado sobre ele. Uma
ação, portanto, pode chegar a um efeito totalmente inesperado, mesmo que se conheça
bastante sobre o tipo de ação que se quer praticar (GIDDENS, 1991: 50-51).
O quarto fator é a própria reflexividade da vida social moderna. Ela mesma
contribui para que o caráter “instável e mutável” deste mundo (GIDDENS, 1991:51).
Estas idéias aqui sumarizadas levam a algumas reflexões. Em primeiro lugar, ainda
que GIDDENS (1991) se atenha sobre o impacto do conhecimento produzido sobre o
mundo social na reflexividade dos atores sobre o mundo social (o que o leva a pensar
discorrer sobre economia e sociologia como campos de conhecimento), caberia
perguntar se são apenas estes conhecimentos que impactam sobre a ação humana. Ora o
próprio GIDDENS (1991) afirma que a reflexividade é uma característica definidora da
ação humana. Note-se: de toda ação humana, mesmo aquela fundada na tradição.
Assim, pode-se seguramente afirmar que todo ator no processo de interação social não
apenas leva o contexto no qual atua em consideração, ajustando seus atos a tais
contextos, como é capaz de revisar suas práticas à luz do próprio processo interativo.
Ainda que seja coagido ou beneficiado por determinadas posições de poder, sua ação é
marcadamente estratégica (entendendo-se o agir estratégico aqui como as ações
possíveis dado determinado contexto e determinados objetivos).
As implicações desta formulação são variadas. Veja-se, por exemplo, o que
acontece com a própria compreensão do Estado na obra de autor como Emile Durkheim.
Este não pode pensar no estado, e especialmente na democracia, sem se referir à
dimensão da reflexividade. Como nota bem GIDDENS (1998), as reflexões políticas de
Durkheim são bastante desconhecidas e, sobretudo, negligenciadas simplesmente
porque é encarado como o teórico da “ordem”, preocupado, sobretudo, com a dimensão
da coesão social. Enfim, como o teórico que subsumiu o indivíduo ao social.
Não se vai aqui reproduzir toda a reflexão política de Durkheim e nem o seu
enquadramento histórico social. GIDDENS (1998) o faz com apuro. Vai-se aqui tão
somente destacar alguns aspectos para ilustrar o ponto em discussão: como a idéia de
reflexividade pode ser utilizada como noção de análise do comportamento político dos
atores.
Preocupado com o “individualismo moral”, que não se confunde com o
individualismo de extração utilitarista benthamiano clássico e, porque não dizê-lo,
dominante na análise política, e partindo do pressuposto de que o indivíduo é criação da
sociedade, ou mais especificamente, da maior divisão do trabalho social, Durkheim
vincula a aparição do “político” ao mesmo fator histórico-social. Assim, segundo
GIDDENS (1998: 124), “a concepção do ‘político’ [em Durkheim] foi algo que só
surgiu com o desenvolvimento da forma moderna de sociedade, pois pressupunha uma
distinção entre governo e governado que não existia em tipos mais primitivos de
sociedade”.
Além disso, um critério utilizado por Durkheim para caracterizar a sociedade
política “devia antes ser encontrado no grau de complexidade da organização social:
uma sociedade política seria aquela que manifestasse uma divisão de autoridade bem
definida, embora composta de uma pluralidade de grupos afins ou de grupos
secundários maiores. Uma sociedade política não precisava necessariamente possuir um
Estado: ‘Estado’, na terminologia de Durkheim, se referia ao pessoal administrativo ou
ao funcionalismo formalmente encarregado da função de governo” (GIDDENS, 1998:
124).
Note-se, portanto, que Durkheim está atento para a pluralidade de grupos
componentes da sociedade, além da própria existência de indivíduos. Isto é relevante
porque aqui surge algo importante para o esclarecimento do que seria a “função” do
Estado para a consolidação do individualismo moral moderno nas sociedades ocidentais
para o sociólogo francês.
Assim, segundo DURKHEIM (1983: 60), “se, com efeito, os direitos do indivíduo
não são dados ipso facto com o indivíduo, se não estão inscritos na natureza das coisas
com tamanha evidência que baste ao Estado constatar-lhes a presença e promulgá-los,
se, ao contrário, precisam ser conquistada às forças adversas que os negam, e se só o
Estado é capaz desse papel, não se pode ele limitar às funções de árbitro supremo, de
administrador de justiça toda negativa, como o pretendia o individualismo utilitário, ou
kantiano”.
E após afirmar o acima exposto, ou seja, de que o individualismo para existir deve
passar por uma ação mais efetiva do Estado no sentido de sua construção objetiva,
Durkheim identifica quais são as “forças adversas” que negariam os direitos aos
indivíduos: “cumpre-lhe [ao Estado] desdobre energias relacionadas com aquelas às
quais deve fazer contrapeso. Cumpre, até, embeba todos esses grupos secundários,
família, corporação, Igreja, distritos territoriais, etc., tendentes, como vimos, a absorver
a personalidade dos seus membros, e isso a fim de lembrar, a essas sociedades parciais,
que não estão sós, e há um direito acima de seu direito delas. (...) Onde quer que se
encontrem essas forças coletivas particulares, as quais, se estivessem sós e entregues a
si mesmas, arrastariam o indivíduo em dependência exclusiva, cumpre esteja presente a
força do Estado, para neutralizá-las” (DURKHEIM, 1983: 60). O que Durkheim sugere
aqui é que mesmo numa sociedade com maior divisão do trabalho, mais complexa, o
indivíduo ainda correria o risco de ser subsumido pelas forças “locais” básicas como os
grupos secundários citados por ele. Acontece que ele está atento para o fato de que isto
é uma força nefasta para o individualismo, por isso ele propõe, como acertadamente
aponta GIDDENS (1998: 124-25) que a “autodeterminação do indivíduo, caminhava ao
mesmo tempo, de mãos dadas com uma ampliação dos poderes do Estado para sujeitar o
indivíduo à sua autoridade”. E complementa, para evitar mal entendidos: “Na verdade
não era um paradoxo, porque o Estado no tipo moderno de sociedade, era a instituição
encarregada da implementação e do fomento dos direitos individuais” (GIDDENS,
1998: 125).
Já neste nível pode-se perceber a importância da idéia de reflexividade para
Durkheim. Pode-se perceber que o indivíduo durkheimiano só pode atingir a plena
reflexividade em função da própria ação do Estado ou, talvez, a própria existência do
Estado já leve o indivíduo a refletir sobre sua existência local sobre outro ângulo. Não
fosse assim, os membros de grupos esgotariam suas fontes de reflexão no âmbito do
próprio grupo. A atuação do Estado pode levá-lo a um movimento de distanciamento, e
isto é o mais curioso aqui, não só do grupo ao qual pertence, mas do próprio Estado, na
medida em que identificações primárias e secundárias também servem para uma maior
matização acerca da atuação do Estado. Como quer que seja, isto (esta espécie de
deslocamento espaço-temporal, que é fundamental para toda reflexividade) só é possível
a partir da atuação da instituição estatal.
As reflexões de Durkheim sobre a esfera política não se esgotam nesta “função” do
Estado no sentido de ser o fomentador do individualismo nas sociedades modernas. Na
sua concepção de Estado, este tece com a sociedade uma relação mais complexa. E
neste ponto, Durkheim está se referindo especificamente ao Estado numa sociedade
democrática, mas deriva do que foi indicado acima.
Durkheim rejeita, em primeiro lugar, todas as concepções de democracia que a
concebem como a expressão do número de pessoas a exercer o poder ou o número de
participantes do governo. Neste ponto, Durkheim é sintético: “O governo, por definição,
tinha de ser exercido por uma minoria de indivíduos” (GIDDENS, 1998:128). E isto
vale tanto para regimes autocráticos como democráticos. Número de pessoas no
governo não é critério básico para uma classificação adequada das formas de governo.
Assim, “a democracia, portanto, tinha de dizer respeito à relação entre o agente público
diferenciado – o Estado – e as outras estruturas institucionais da sociedade”
(GIDDENS, 1998: 128). Segundo Durkheim, se “as comunicações entre o Estado e as
outras partes da sociedade são numerosas, regulares [e] organizadas”, se “os cidadãos
são informados do que o Estado faz”, se “o Estado está, periodicamente ou, até,
ininterruptamente, informado do que se passa nas profundas da sociedade”, se “os
cidadãos assistem, de longe, a certas deliberações aí ocorrentes, sabem das medidas
tomadas, e seu juízo, e o resultado de sua reflexão, vêm ao conhecimento do Estado por
vias especiais”, “é isso, verdadeiramente, que constitui a democracia” (DURKHEIM,
1983: 78). Portanto, se “governar é, sem dúvida, exercer ação positiva na marcha dos
negócios públicos” (DURKHEIM, 1983: 71), tal ação não é exercida numa democracia
sem um alto grau de reflexividade. É por isso que numa ordem democrática a sociedade
é mais consciente de si mesma. Se por um lado, ao aumentar a abrangência de suas
atribuições, não se restringindo a ser o vigilante da lei e da ordem, o Estado é forçado a
“conhecer” melhor o que se passa no âmbito da sociedade civil, esta também é levada,
pelo mesmo movimento, a conhecer melhor a atuação do Estado, a discuti-la com mais
intensidade. Tudo isso implica, é necessário reforçar, maior reflexividade. E isso explica
o caráter mutável e mais aberto à mudanças da ordem social moderna: “para modificar
uma idéia, um sentimento, cumpre, primeiro, vê-los, chegar a eles o mais claramente
possível, aperceber-se de sua natureza. É por isso que, quanto mais um indivíduo é
consciente de si mesmo, e reflexivo, mais é acessível às mudanças” (DURKHEIM,
1983: 79). Para terminar sumarizando as características da democracia vale citar o
próprio Durkheim novamente: “a verdadeira característica é dupla: 1º) extensão maior
da consciência governamental; 2º) comunicações mais estreitas entre essa consciência e
a massa das consciências individuais” (DURKHEIM, 1983: 81).
Por fim, é necessário lembrar que Durkheim, ao falar de “massa de consciências
individuais”, não se refere exclusivamente a indivíduos. Ele tem clareza no que se refere
à importância na consciência do indivíduo de sua participação em grupos mais restritos
que o Estado. Esses grupos também agem como instâncias mediadoras na relação dos
indivíduos com o Estado. O que importa sublinhar, contudo, é na importância da
reflexividade na análise durkheimiana do vida política moderna, especialmente na
democracia. O que chama atenção é que para Durkheim a reflexividade é universal.
Este último ponto é curioso até para se fazer um contraste entre essa perspectiva e
aquela exposta em OFFE (1983), em particular ao papel e local que reserva à
reflexividade em suas considerações sobre os novos movimentos sociais que sugiram
nas sociedade ocidentais contemporâneas.
Mais uma vez é necessário lembrar que não se vai aqui reproduzir toda a
argumentação de Klaus Offe sobre os movimentos sociais contemporâneos, mas tão
somente abordar aquilo que está em pauta neste trabalho. Contudo, é bom começar
lembrando que o Autor em questão está ocupado em refletir sobre os movimentos
políticos que surgiram, grosso modo, a partir da década de 1960 e que não lembravam
muito os movimentos operários mais clássicos. Na verdade, ele se utiliza de uma
distinção entre o que chama de “velho paradigma” e “novo paradigma” de dos
movimentos sociais. As distinções estão retratadas no quadro abaixo1.

Tipos de Paradigmas
“Velho Paradigma” “Novo Paradigma”
Características
Atores Grupos sócio-econômicos Grupos sócio-econômicos
atuando como classes e não atuando
envolvidos em conflitos de especificamente como
distribuição. classes, mas em nome de
coletividades atribuídas.
Natureza Formas homogêneas de Formas heterogêneas e/ou
ação coletiva determinadas difusas de ação coletiva; os
pela condição de assalariado movimentos sociais, sendo
e/ou proprietário dos meios de natureza “interclasse”,
de produção. constituem-se como atores
coletivos cuja ação não se
baseia numa disposição
homogênea em torno dos
meios de produção.
Conteúdos Crescimento econômico e Pacifismo, feminismo, anti-
distribuição; segurança racismo, ecologia, direitos
militar e social, controle humanos e formas não
social. alienadas de trabalho.
Valores Liberdade e segurança no Autonomia pessoal e
consumo privado e identidade, em oposição ao
progresso material. controle centralizado, etc.
Modos de atuar: Organização formal, Informalidade,
Interno associações representativas espontaneidade, baixo grau
em grande escala. de diferenciação horizontal
e vertical.
Modos de atuar: Intermediação pluralista ou Política de protesto
externo corporativista de interesses; embasada em exigências
competência entre partidos formuladas em termos
políticos; respeito à regra da predominantemente
maioria. negativos ou
confrontacionais.

A abordagem de OFFE (1983) do “novo paradigma” é essencialmente crítica. Tal


crítica possui duas frentes: 1) uma frente teórica, na qual faz a crítica das análises
existentes acerca dos novos movimentos sociais; e 2) uma frente especificamente
voltada para a análise de cada uma das características de tais movimentos indicadas no

1
Utilizou-se aqui a tradução de FARIA (1992) do quadro presente em OFFE (1983).
quadro acima. Vamos vincular o que vai ser analisado aqui à segunda frente de análise
de Klaus Offe.
Neste particular, OFFE (1983) vai proceder a uma crítica minuciosa dos atores,
valores, agenda e modos de atuar dos novos movimentos sociais. Ser crítico, é bom que
se note, não significa negar a pertinência (ou mais radicalmente, a própria existência) de
tais movimentos. Ser crítico também significa aclarar aspectos obscuros ou mal
interpretados de tais características apontadas. Assim, vai-se aqui analisar o que OFFE
(1983) diz a respeito dos atores envolvidos no processo, o que é bastante ilustrativo do
tipo de crítica que Offe faz.
Atento à constituição social dos novos movimentos sociais, OFFE (1983) observa,
citando pesquisas, que seus membros são majoritariamente oriundos de três grandes
segmentos sociais: A “nova classe média” (com ocupações profissionais ligadas ao
ensino e à distribuição da informação; à provisão de serviços de saúde, controle social e
administração), setores da “velha classe média” (especialmente pequenos produtores
rurais) e, por fim, o que chama de setores periféricos ou “sem-renda” (decommodified,
em inglês) (estudantes e donas-de-casa, por exemplo).
Nota, ademais, que uma “acusação” geralmente endereçada a tais movimentos é
que seriam “românticos”, desejosos de “retornar à comunidade” (daí que sejam
geralmente comparados aos populistas russos do final do século XIX), irracionais, em
suma, e, por extensão, sem experiência política.
Segundo OFFE (1983) nada disso se sustenta. Segundo ele, “a nova classe média
que é o elemento mais significativo dos que dão suporte a estes movimentos e a seus
ideais não podem ser considerados ‘desenraizados’, mas estão ao contrário conectados
fortemente com e têm experiências no uso das instituições políticas e econômicas”
(OFFE, 1983: 36). De fato, “aqueles com maior propensão a se engajar em formas não-
convencionais de ação política o fazem em adição ao fato de que também se engajam
em formas ‘ortodoxas’ de comportamento político” (OFFE, 1983: 36). Em suma, os
membros de tais movimentos conhecem e participam tanto de formas convencionais
como não-convencionais de participação política. Não são neófitos, portanto.
Por outro lado, fazem parte de estratos altamente qualificados da sociedade e isso
se reflete em suas demandas. Assim, nada de “volta romântica ao passado rural e
pacífico” está presente em sua “ideologia”. O que se vê é, antes, demandas por “arranjos
que permitiriam uma maior realização de valores especificamente ‘modernos’ (tais
como liberdade individual, princípios humanistas e universalistas [em oposição às]
formas de organização centralizadas, burocratizadas e tecnoligia-intensivas)” (OFFE,
1983: 36). Um ideário bastante refinado, como se vê. Nada há de irracional nisso dado
“os altos graus de realização educacional” de seus membros (OFFE, 1983: 37).
E OFFE (1983) termina observando: “dentro desse enquadramento não-ideológico,
habilidades cognitivas e ferramentas intelectuais são usualmente empregadas para
defender as causas e as demandas feitas pelos novos movimentos sociais, e
conseqüentemente os ativistas principais e líderes informais são geralmente recrutados
entre professores, advogados, jornalistas e outros membros de [tais] profissões” (OFFE,
1983: 38).
OFFE (1983), portanto, não está afirmando que como as questões relativas ao
“velho paradigma” estão solucionadas pela atuação do Estado de Bem-Estar social
haveria mais tempo disponível para que tais atores se dedicassem às novas demandas
típicas dos novos movimentos sociais. Isso seria muito simplório, como simplórias são
as acusações de irracionalismo dirigidas a tais movimentos. O que está aqui em questão
é algo mais intelectualmente refinado. De fato, tais movimentos são o lado reverso do
Estado de Bem-Estar social e de seus ganhos, especialmente no que tange à educação e
o que esta representa em ganhos no conhecimento socialmente produzido. Marxista,
OFFE (1983) está atento às conseqüências dialéticas do fazer social. O que parece claro
é que tais movimentos são portadores de alto nível de reflexividade, suas demandas são
ancoradas em conhecimentos que seus membros possuem por serem agentes bem
qualificados. Por outro lado, reflexividade também criada por seu conhecimento das
vias institucionais costumeiras de atuação política.
Partindo das considerações feitas acima, pode-se fazer algumas considerações
finais acerca da relação entre estratificação social e participação política democrática,
sempre à luz da idéia de reflexividade.
Uma primeira consideração deve abordar necessariamente o uso que se fez aqui da
noção de reflexividade. Não se analisou a presença desta noção em Anthony Giddens,
Emile Durkheim e Klaus Offe por acaso. Deve-se notar que são três autores
pertencentes a três correntes teóricas distintas. O mais clássico deles, Durkheim, é um
dos fundadores do funcionalismo em teoria social; Offe é o que se costuma chamar de
neomarxista; e, por fim, Giddens, um autor de difícil classificação, se se considera
aqueles que gostam de abrir diretórios nos quais devem se encaixar necessariamente os
autores (não deixa de ser curioso que o mesmo ocorra com Max Weber, autor que o
próprio Giddens reconhece como a principal fonte de suas reflexões). Como quer que
seja, o que se quer indicar é que a noção de reflexividade é muito menos ambígua em
sua utilização por diversas correntes teóricas (seu significado permanece o mesmo) que
outras noções que, surgindo em um campo teórico, acabam por migrar para outras
formas de teorização social. Veja-se, por exemplo, o caso da noção de classe social.
Central ao marxismo, que faz dela a base de sua teoria da estratificação social e de
análise política, ela findou por ser incorporada por outras correntes teóricas. Acontece
que nesse processo, ela foi cuidadosamente purgada de seu significado no marxismo.
Apropriação indébita? Ou estaríamos diante de mais um caso em que noções teóricas se
incorporam de tal forma ao universo social que este já não pode pensar-se a si próprio
sem recorrer a elas? Respostas negativa, para a primeira pergunta, e positiva, para a
segunda, seriam, achamos, as mais corretas. Em suma, apenas mais um caso de
reflexividade, o que força a utilização do conceito (ainda que não seja exatamente o
mesmo) por correntes teóricas que não o tinham em seu bojo originariamente. Apenas
para completar o caso das classes sociais: não se pode a partir daí inferir que “todos os
teóricos modernos são, em alguma medida, marxistas” apenas porque a noção de classe
social é utilizada como categoria analítica. Vale, isso sim – e voltando à noção de
reflexividade –, notar que a noção de reflexividade é uma daquelas noções básicas para
quem quer pensar o fazer social, o agente social e sua constituição.
A última consideração é apenas um esboço de resposta às questões que foram
levantadas no início deste trabalho. Assim, parece que em primeiro lugar que, na linha
de argumentação durkheimiana, que atores sociais só podem se transformar em atores
políticos reflexivamente. A simples existência no plano social estratificado não garante
a nenhum ator o status de ator político. A organização propriamente, sim, o garante. É
por isso que estruturas políticas como o Estado-Nação lançaram e continuam a lançar
desafios aos atores sociais que se abrigam no seu interior. Se não por nada, a própria
idéia de legitimidade de uma norma, de uma lei ou de uma decisão estatal traz à tona a
questão de se saber se elas, que dizem respeito a todos, mas foram decididas por poucos,
em especial os organizados, não são algo que deve ser no mínimo discutido. Ora, esse é
o próprio coração de todo problema político. Não existiria política se tal questão não
existisse ou fosse colocada. A questão é que, para ser levantada, ela implica em
reflexão, em questionamento, em suma, em reflexividade.
O que nos leva diretamente para questão sobre a relação entre estratificação social
e lutas políticas. Ora se os atores são reflexivos e se suas interações são
circunstanciadas, os seus objetivos políticos também o serão. Parece uma obviedade,
mas não é. Tal constatação deve levar o analista da ação política dos vários grupos
existentes, se organizados para tal, para bem mais do que sua posição na estrutura
estratificada e hierarquizada numa determinada sociedade. Exige que meça o alcance
dos a prioris analíticos dos quais está partindo.
Um exemplo pode ilustrar bem este caso. Por muito tempo os partidos de esquerda
no Brasil analisaram a realidade brasileira, e da classe operária em particular, nos
quadros muito estreitos do marxismo oficial da União Soviética 2. Acontece que,
claramente, o Brasil não é uma sociedade como aquelas que foram o berço do
capitalismo ocidental, e nem, portanto, a classe operária brasileira teve uma
conformação similar a dos países europeus. Similarmente, a origem, a ideologia e a
forma de atuação dos operários americanos também conheceu uma história diferente da
européia. Portanto, ambos precisariam necessariamente ser analisados conforme essas
singularidades. Curiosamente, contudo, na medida em que a atuação dos mencionados
partidos de esquerda influenciavam na organização do movimento e das demandas
operárias, sua análise acaba por ser um dado relevante no que se refere à organização
política do operariado brasileiro. Mas, note-se, o outro lado é tão ou mais importante
quanto esta atuação dos mencionados partidos e suas análises “marxistas”: o
corporativismo incentivado e “gerenciado” pelo Estado brasileiro. Claramente, há duas
concepções de estratificação influenciando os agentes políticos que se dispõem a
mobilizar a classe operária brasileira. O que se quer indicar aqui é apenas isso: qualquer
análise teórica sobre o operariado deve levar isso em consideração. Isso e mais, é claro,
aquilo que o próprio operariado chega a formular reflexivamente, pois não há
“consciência” que possa vir de fora para dentro. Há, sim, grupos que tentam dominar
grupos, ainda que, supostamente, pretendam falar em seu nome e organizá-los. Qual vai
ser o curso de ação tomado vai depender deste jogo e de suas conseqüências.

2
Ver MANTEGA (1990), especialmente capítulos 3 e 4.
BIBLIOGRAFIA CITADA

CHERKAOUI, Mohamed – “Estratificação” IN: BOUDON, Raymond (dir.), Tratado


de Sociologia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.
DAHRENDOF, Ralf – O Conflito Social Moderno: um ensaio sobre a política da
liberdade, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; São Paulo: Edusp, 1992.
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