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POLÍTICA BRASILEIRA
RESUMO:
Essa análise está inscrita no campo teórico da Análise do Discurso que busca compreender o
movimento do político da/na linguagem. Tomando como corpus enunciado de cartazes e
imagens de mídia que circularam na internet a partir dos protestos de 2013, no Brasil, nossas
reflexões partem da seguinte pergunta: Quais as condições de visibilidade e legibilidade que
as manifestações contemporâneas, mediadas pelas redes sociais, nos propõem? De fato, a ida
às ruas e as formas de materialização das reivindicações, por meio de cartazes, vídeos, e até
mesmo máscaras, nos dizem muito a respeito do sujeito político contemporâneo e de sua
capacidade de expandir-se em protestos e de ter sua “voz” rapidamente multiplicada nas redes
sociais. Ou seja, o sujeito político contemporâneo sofre outro atravessamento constitutivo, o
das mídias, em sua potencialização tecnológica própria do século XXI. Nosso objetivo é
compreender o funcionamento do discurso que se materializou nesses cartazes, se é que se
pode pensar, aqui, em uma forma discursiva específica, própria dessas manifestações. A
hipótese que sustentamos é a de que há um deslizamento dos sentidos do político, na
contemporaneidade, já que os fatores históricos, ideológicos e sociais são determinantes de
todo e qualquer discurso.
Audiovisual da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul). Mestre em Ciências da Linguagem (Unisul/SC)
e Doutora em Linguística (Unicamp/SP). Integrante dos grupos de pesquisas (CNPq) Discurso, Cultura e Mídia
e em Produção e Divulgação do Conhecimento. nadia.neckel@unisul.br
3 Docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem. Doutora e Linguista (Unicamp) e pelo
Apenas do ponto de vista das classes, isto é, da luta de classes, pode-se dar conta das ideologias existentes numa
formação social. Não é apenas a partir daí que se pode dar conta da realização da ideologia dominante nos AIE
e das formas da luta de classes das quais os AIE são a sede e o palco. Mas sobretudo é também a partir daí que
se pode compreender de onde provêm as ideologias que realizam e se confrontam no AIE. Porque se é verdade
que os AIE representam a forma pela qual a ideologia da classe dominante deve necessariamente se realizar, e a
forma com a qual a ideologia da classe dominada deve necessariamente medir-se e confrontar-se, as ideologias
não “nascem” dos AIE mas das classes sociais em luta: de suas condições de existência, de suas práticas, de suas
experiências de luta, etc. (ALTHUSSER, [1973] 1978, p.106-107).
Pêcheux parte desta leitura de Althusser para propor uma das noções teóricas fundamentais
para a AD, a noção de formação discursiva (FD), como decorrente de formação(ões)
ideológicas correspondentes.
Chamaremos, então de Formação Discursiva aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de
uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado de luta de classes o que pode e deve ser dito
(articulado sob forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc)
Isso equivale a afirmar que as palavras, expressões, proposições, etc., recebem seu sentido da formação
discursiva na qual são produzidas: retomando os termos que introduzimos acima aplicando-os ao ponto
específico da materialidade do discurso e do sentido, diremos que os indivíduos são ‘interpelados’ em sujeitos
falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas que representam ‘na linguagem’ as formações
ideológicas que lhe são correspondentes. (PÊCHEUX, 1997, p.160-161).
A partir dessas relações, pretendemos pensar nas manifestações brasileiras que começaram
em junho de 2013, como dissemos, e são fortemente balizadas pelo movimento das redes
sociais. Consideramos aqui, ainda, a leitura de Courtine em seu texto “Metamorfose do
Discurso Político, derivas da fala pública” quando nos diz
A transmissão da informação política, atualmente dominada pelas mídias, se apresenta como um fenômeno total
de comunicação, representação extremamente complexa na qual os discursos estão imbricados em práticas não-
verbais, em que o verbo não pode mais ser dissociado do corpo e do gesto, em que a expressão pela linguagem
se conjuga com a expressão do rosto, em que o texto torna-se indecifrável fora de seu contexto, em que não se
pode mais separar linguagem e imagem. (COURTINE, 2006, p.57).
De fato, a ida às ruas e as formas de materialização das reivindicações por meio de cartazes,
vídeos, e até mesmo máscaras, nos dizem desse sujeito político contemporâneo, sua
capacidade de expandir-se em protestos e sua capacidade de ter sua “voz” rapidamente
multiplicada nas redes sociais. Ou seja, o sujeito político contemporâneo sofre outro
atravessamento constitutivo, o das mídias, em sua potencialização tecnológica própria do
século XXI. Temos, então, essa complexidade a considerar, como continua a nos propor
Courtine:
A respeito do discurso político, é, portanto, necessário especificar seu sujeito, que é, na realidade, muito mais
complexo do que a ficção do sujeito falante ao qual as teorias linguísticas se referem. O sujeito político, aquele
que enuncia um discurso, está realmente assujeitado a um todo de muitas condições de produção e recepção de
seu enunciado. Ele é o ponto de condensação entre linguagem e ideologia, o lugar onde os sistemas de
conhecimento político se articulam na competência linguística, diferenciando-se um do outro, mesclando-se um
ao outro, combinando com um outro ou afrontando-o em uma determinada conjuntura política. (COURTINE,
2006, p.64)
É preciso considerar essa divisão permanente, nas atuais condições de produção do político,
textualizado no digital. Trata-se de uma textualidade que é predominantemente imagética, em
que o grafado passa a ser elemento de composição. As imagens de si tornam-se públicas e em
profusão, porém, como temos afirmado em outros trabalhos, não há o efeito de fechamento
do sentido nas discursividades assim textualizadas no digital.
Cartazes
Enunciados Interlocutores
Verás que um filho teu não foge à luta. Tu, pátria amada, Brasil.
● ●
+ educação + saúde – corrupção Parlamentares
● ●
Enfia V
● ●
os 20 centavos no SUS ocê, governante local, que aumentou em 20
centavos a tarifa do ônibus.
Levanta do berço esplêndido e vem pra rua Brasileiro/cidadão
● ●
Abaixo a tarifa e põe na conta da FIFA Governante federal
● ●
Ciclovia é pouco Governante
● ●
Dilma, não somos palhaços e não precisamos do Dilma, presidenta.
● ●
circo da FIFA. Em 2014 não haverá copa do mundo no
Brasil.
Milagres acontecem quando vamos à rua! Nós
● ●
Fora Renan Calheiros. Renan Calheiros
● ●
Por transparência no processo de licitação do Genérico
● ●
transporte público. Pela redução da tarifa. Por uma ...
catracas.
Jogaram mentos na geração coca-cola (nós). Genérico
● ●
“Se não há justiça para o povo, que não haja paz Genérico
● ●
para o governo.” Zapata
Fome e sede de justiça
●
*21-04-1500 +21-06-2013. Aqui jaz uma nação Genérico
● ●
conformista.
Vamos varrer a corrupção. Não venda seu voto. Você.
● ●
Não alimente a corrupção. Você.
● ●
As cinco causas! 1 Saída imediata de Renan
● ●
Calheiros; 2 Presidência do Congresso; 3 Imediata Genérico
●
investigação de irregularidades na COPA (pela PF e MPF).
4 Corrupção como crime hediondo; 5 Fim do foro
privilegiado.
É possível dizer que esses cartazes auto-referentes produzem uma aproximação entre a
memória das manifestações de rua, com a memória das redes sociais. Duas discursividades
que se tocam e se materializam simultaneamente nesse enunciado: VEM PRA RUA. Um
enunciado que traz na sua materialidade as duas formações discursivas que têm se constituído
em divórcio: a que inscreve os dizeres da rua, do risco, do alvo, da violência; e a que inscreve
os dizeres dos espaços privados, dos condomínios, dos apartamentos, dos computadores e das
redes sociais. A primeira está materializada no enunciado RUA; a segunda no enunciado
VEM “Você aí, que me assiste do seu espaço privado”.
VEM PRA RUA constitui-se em um gesto político, que tem como um de seus efeitos de
sentido, a MANIFESTAÇÃO de sua própria possibilidade de se dar, enquanto articulação de
formações discursivas em conflito.
VEM PRA RUA pode, portanto, ser compreendido como um enunciado político, de dimensão
diferente dos demais, por ser polissêmico, por produzir ruptura, por trazer o diferente,
constituindo, nessa medida, um acontecimento discursivo na ordem do político.
Finalmente é possível dizer que o enunciado VEM PRA RUA materializa a contradição
própria do sujeito. Um sujeito sempre dividido, que aqui se apresenta produzindo um gesto
político, mas que, ao assumir essa posição, produz, ao mesmo tempo, um gesto de alienação.
Essa condição contraditória do sujeito contemporâneo está na base do discurso político aqui
analisado.
Considerações finais
A materialidade discursiva desse enunciado coletivo é absolutamente particular: ela não tem nem o conteúdo
nem a forma nem a estrutura enunciativa de uma palavra de ordem de uma manifestação ou de um comício
político. “On a gagné” [“Ganhamos”], cantado com um ritmo e uma melodia determinados (on-a-gagné/dó-dó-
sol-dó) constitui a retomada direta, no espaço do acontecimento político, do grito coletivo dos torcedores de uma
partida esportiva cuja equipe acaba de ganhar. Este grito marca o momento em que a participação passiva do
espectador-torcedor se converte em atividade coletiva gestual e vocal, materializando a festa da vitória da equipe,
tanto mais intensamente quanto ela era mais improvável. (PÊCHEUX,[1988] 2012, p.21)
Figura 7: Imagens dos protestos pós-eleições Figura 8: Imagens dos protestos pós-eleições
Fonte: Carta Capital8 Fonte: G19
Podemos dizer que, de uma forma semelhante ao enunciado “vem pra rua”, neste caso, estar
na rua e vestir o verde-amarelo também é a consolidação da vitória da atividade (política?)
coletiva, de uma população não identificada com essa prática. Trata-se, mais uma vez, de uma
auto-referência que poderíamos parafrasear: estamos na rua, fomos capazes de vir pra rua,
fomos capazes de nos mobilizar, somos vitoriosos. Mais importante do que o conteúdo das
reivindicações, parece ser o fato de poder se ver como manifestante. E isso é comemorado em
verde amarelo.
Se a análise do discurso político começou a transformar o tipo de seus instrumentos, isso é também porque seu
próprio objeto atualmente passa pela experiência de uma profunda transformação. Se os modos de comunicação
política realmente passaram por uma considerável agitação, isso não se fez sem provocar mudanças nas práticas
dessas análises. O discurso político realmente sofre de um certo descrédito que leva à rejeição de certas formas
do discurso público. (COURTINE, 2006, p.83)
6 idem
7 idem
8 http://www.cartacapital.com.br/os-protestos-de-12-de-abril-pelo-brasil Acessado em agosto de 2015.
Talvez, o mais importante, aqui, é compreender que esses elementos de memória sustentam
sentidos de uma população que se inaugura em manifestações, que não se identificava com
essa prática até esse momento, que sempre esteve do outro lado do vídeo, do lado que assiste.
Por isso o grito: VEM PRA RUA, ecoa em todas as demais manifestações brasileiras, desde
2013. É preciso convocar continuamente essa população para essa prática inédita em suas
vidas. Uma prática antes própria daqueles que sempre estiveram na rua.
Segundo o pensador italiano Giorgio Agamben, que muito tem contribuído para
compreendermos a condição política da contemporaneidade, as relações entre os processos
democráticos e a instituição dos estados totalitários são balizadas por tênues linhas:
A contiguidade entre democracia de massa e Estados totalitários não tem, contudo (...), a forma de uma improvisa
reviravolta: antes de emergir impetuosamente à luz do nosso século [século XX], o rio da biopolítica, que arrasta
consigo a vida do homo sacer, como de modo subterrâneo, mas contínuo. É como se, a partir de um certo ponto,
todo evento político decisivo tivesse sempre dupla face: os espaços, as liberdades e os direitos que os indivíduos
adquirem no seu conflito com os poderes centrais simultaneamente preparam, a cada vez, uma tácita porém
crescente inscrição de suas vidas na ordem estatal, oferecendo assim um nova e mais temível instância ao poder
soberano do qual desejariam liberar-se. (AGAMBEN, 2010, p.118).
Referências Bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I .Tradução Henrique
Burigo. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
ALTHUSSER, Louis. Posições I, Rio de Janeiro: Edições Graal, [1973] 1978.
CASTRO, Edgardo. Introdução a Giorgio Agamben: uma arqueologia da potência.
Tradução Beatriz de Almeida Magalhães. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
COURTINE, Jean Jacques. Metamorfoses do discurso político: derivas da fala pública. São
Carlos: Ed. Claraluz, 2006.
PÊCHEUX, Michel. Discurso: Estrutura ou acontecimento. Trad. Eni Puccinelli Orlandi São
Paulo: Editora Pontes, [1997] 2012.
___. & DAVALLON, Jean. ACHARD, Pierre. DURRAND Jacques. ORLANDI Eni. Papel
de Memória. Trad. José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999.
___. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Puccinelli Orlandi.
Campinas: Editora Unicamp, [1988] 1997.
ROMÃO, Lucília Maria Sousa; GALLI, Fernanda Correa Silveira. Efeitos de sentido em
cartuns: sujeito e consumo da/na rede eletrônica. RUA [online]. 2013, no. 19. Volume 2 -
ISSN 1413-2109. Consultada no Portal Labeurb – Revista do Laboratório de Estudos Urbanos
do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade http://www.labeurb.unicamp.br/rua.
Disponível em: 10/08/2015