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VEM PRA RUA: SENTIDOS EM DESLIZAMENTO NA CENA

POLÍTICA BRASILEIRA

Giovanna Benedetto FLORES1


Nádia Régia Maffi NECKEL2
Solange Maria Leda GALLO3

RESUMO:
Essa análise está inscrita no campo teórico da Análise do Discurso que busca compreender o
movimento do político da/na linguagem. Tomando como corpus enunciado de cartazes e
imagens de mídia que circularam na internet a partir dos protestos de 2013, no Brasil, nossas
reflexões partem da seguinte pergunta: Quais as condições de visibilidade e legibilidade que
as manifestações contemporâneas, mediadas pelas redes sociais, nos propõem? De fato, a ida
às ruas e as formas de materialização das reivindicações, por meio de cartazes, vídeos, e até
mesmo máscaras, nos dizem muito a respeito do sujeito político contemporâneo e de sua
capacidade de expandir-se em protestos e de ter sua “voz” rapidamente multiplicada nas redes
sociais. Ou seja, o sujeito político contemporâneo sofre outro atravessamento constitutivo, o
das mídias, em sua potencialização tecnológica própria do século XXI. Nosso objetivo é
compreender o funcionamento do discurso que se materializou nesses cartazes, se é que se
pode pensar, aqui, em uma forma discursiva específica, própria dessas manifestações. A
hipótese que sustentamos é a de que há um deslizamento dos sentidos do político, na
contemporaneidade, já que os fatores históricos, ideológicos e sociais são determinantes de
todo e qualquer discurso.

Palavras-Chave: Manifestações políticas – Sujeito – Redes Sociais

1 Docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem e do Curso de Graduação em Jornalismo


da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul). Jornalista (Unisinos/RS) Mestre em Ciências da Linguagem
(Unisul/SC) e Doutora em Linguística (Unicamp/SP). Integrante dos grupos de pesquisas (CNPq) Discurso,
Cultura e Mídia e em Produção e Divulgação do Conhecimento. gbflores@gmail.com
2 Docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem e do Curso de Graduação em Cinema e

Audiovisual da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul). Mestre em Ciências da Linguagem (Unisul/SC)
e Doutora em Linguística (Unicamp/SP). Integrante dos grupos de pesquisas (CNPq) Discurso, Cultura e Mídia
e em Produção e Divulgação do Conhecimento. nadia.neckel@unisul.br
3 Docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem. Doutora e Linguista (Unicamp) e pelo

Collège International de Philosophie de Paris e Pós-doutorado na Unicamp/SP. Integrante dos grupos de


pesquisas (CNPq) Discurso, Cultura e Mídia e em Produção e Divulgação do Conhecimento.
solange.gallo@unisul.br
O que torna possível o enunciado “Vem para rua”

Ao definirmos um movimento de análise dos acontecimentos políticos que ocorrem no Brasil


desde junho de 2013 – ano das primeiras manifestações em massa nas ruas, fortemente
sustentadas pelas redes sociais – um breve retorno teórico faz-se necessário, a fim de
situarmos melhor nossa posição enquanto analistas de discurso.
A Análise do Discurso (doravante AD) constitui-se em uma disciplina de interpretação,
talhada justamente no entremeio da Linguística, da Psicanálise e do Materialismo Histórico.
É desse lugar de questionamentos e contornos de tais áreas do conhecimento, que Michel
Pêcheux se propõe pensar o discurso, sua estrutura e acontecimento, seu funcionamento. Dito
de outro modo, a AD busca compreender o movimento do político da/na linguagem e nisto
estão implicados sujeito, história e ideologia. Assim, nas palavras de Althusser, “não há
produção possível sem que seja assegurada a reprodução das condições materiais da
produção, a reprodução dos meios de produção.” (ALTHUSSER, [1973] 1978, p.54).
A partir dessa formulação, colocamos nossos primeiros questionamentos a respeito dos
deslocamentos das massas nas ruas do país desde 2013. O que marca tais manifestações,
diferentemente de outras já ocorridas na histórica de nosso país? Quais as condições de
visibilidade e legibilidade que as manifestações contemporâneas, mediadas pelas redes
sociais, nos propõem? Que sujeitos político-sociais são estes diferentes dos jovens de 64 e de
80? Como reverberam os acontecimentos históricos da ditadura militar e das eleições diretas
sob a expressão “democracia” usualmente utilizada em cartazes e gritos de ordem? Dito de
outro modo: quais condições materiais de reprodução tornam possíveis certos enunciados de
protestos desde 2013 até os recentes “panelaços” pós eleições, em 2015?
Esses são apenas alguns questionamentos que fizemos ao nos depararmos com os materiais
que compuseram nosso corpus de análise (cartazes, fotografias das manifestações, vídeos no
youtube, páginas de redes sociais, sites da internet).

Rua e Revolução: questões teóricas

A fim de pensarmos o político na perspectiva discursiva, faz-se necessário pensarmos nas


proposições dos teóricos basilares da própria AD. Marx, no 18 Brumário, nos diz que: “Os
homens fazem sua própria história, (MARX apud ALTHUSSER, [1973] 1978 p.66), mas
não a fazem a partir de elementos livremente escolhidos por eles, mas em circunstâncias que
eles encontram imediatamente diante de si, dadas e herdadas do passado”. Em determinados
contextos, essa proposição tem sido lida e compreendida somente até a primeira vírgula, pois
o homem racional-ocidental tende a perceber-se como um sujeito centrado, consciente e
intencional, e a contra-posição em relação a isso tem sido, se não ignorada, rechaçada. No
entanto, continuando a leitura pós-vírgula, começamos a posicionar nossa interpretação
naquilo que a AD vai chamar de condições de produção, onde a história é determinante nas
relações. Por outro lado, não podemos compreender a história como única, ou reduzi-la a uma
“verdade” original, uma essência, ou uma causa, que seria o seu sujeito, posto como
identificável, ele também concebido sob a forma da unidade, e capaz de prestar contas do
conjunto dos ‘fenômenos’ da história.
É justamente esse efeito ideológico elementar, que a AD busca analisar: o sentido como uno
e o sujeito como origem do sentido. Compreendemos que Michel Pêcheux toma tal
formulação como efeito, afetado pelas leituras que Althusser faz de Marx, a respeito do
materialismo histórico: “a história não tem, no sentido filosófico do termo, um sujeito, mas
um motor: a luta de classes”. (ALTHUSSER, [1973] 1978, p.71).
O que sustentamos, a partir destas leituras, é que os fatores históricos, ideológicos e sociais
são determinantes de todo e qualquer discurso.
Ainda em Althusser pode-se compreender a diferenciação feita entre “as ideologias”, como
realidades mais ou menos estabilizadas em determinadas condições, e “a ideologia”,
entendida como elemento fundante de toda discursividade.

Apenas do ponto de vista das classes, isto é, da luta de classes, pode-se dar conta das ideologias existentes numa
formação social. Não é apenas a partir daí que se pode dar conta da realização da ideologia dominante nos AIE
e das formas da luta de classes das quais os AIE são a sede e o palco. Mas sobretudo é também a partir daí que
se pode compreender de onde provêm as ideologias que realizam e se confrontam no AIE. Porque se é verdade
que os AIE representam a forma pela qual a ideologia da classe dominante deve necessariamente se realizar, e a
forma com a qual a ideologia da classe dominada deve necessariamente medir-se e confrontar-se, as ideologias
não “nascem” dos AIE mas das classes sociais em luta: de suas condições de existência, de suas práticas, de suas
experiências de luta, etc. (ALTHUSSER, [1973] 1978, p.106-107).

Pêcheux parte desta leitura de Althusser para propor uma das noções teóricas fundamentais
para a AD, a noção de formação discursiva (FD), como decorrente de formação(ões)
ideológicas correspondentes.

Chamaremos, então de Formação Discursiva aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de
uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado de luta de classes o que pode e deve ser dito
(articulado sob forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc)
Isso equivale a afirmar que as palavras, expressões, proposições, etc., recebem seu sentido da formação
discursiva na qual são produzidas: retomando os termos que introduzimos acima aplicando-os ao ponto
específico da materialidade do discurso e do sentido, diremos que os indivíduos são ‘interpelados’ em sujeitos
falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas que representam ‘na linguagem’ as formações
ideológicas que lhe são correspondentes. (PÊCHEUX, 1997, p.160-161).

A ideologia, de um modo geral, é a condição de todo o sujeito, mas se materializa de forma


diferente nas práticas de cada sujeito; está dependente das suas condições reais de existência.
As formações ideológicas se materializam no discurso, ou seja, a FD possui uma
materialidade histórica e social, que é produto de práticas sociais do sujeito. É a “posição”
assumida no interior de uma formação discursiva que, de certa forma, demonstra o modo de
assujeitamento do sujeito. Neste ponto citamos novamente Althusser:
Sim, os sujeitos “caminham por si”. Todo o mistério deste efeito está contido nos dois primeiros momentos do
quádruplo que falamos, ou, se o preferimos, na ambigüidade do termo sujeito. Na acepção corrente do termo,
sujeito significa. 1) uma subjetividade livre: um centro de iniciativas, autor responsável por seus atos; 2) um ser
subjugado, submetido a uma autoridade superior, desprovido de liberdade, a não ser a de livremente aceitar a
sua submissão. Esta ultima conotação nos dá o sentido desta ambigüidade, que reflete o efeito que a produz: o
indivíduo é interpelado como sujeito (livre) para livremente submeter-se às ordens do Sujeito, para aceitar,
portanto (livremente) sua submissão. Os sujeitos se constituem pela sua sujeição. Por isso é que “caminham por
si mesmos” (ALTHUSSER, [1973] 1978, p.103-104)

A partir dessas relações, pretendemos pensar nas manifestações brasileiras que começaram
em junho de 2013, como dissemos, e são fortemente balizadas pelo movimento das redes
sociais. Consideramos aqui, ainda, a leitura de Courtine em seu texto “Metamorfose do
Discurso Político, derivas da fala pública” quando nos diz

A transmissão da informação política, atualmente dominada pelas mídias, se apresenta como um fenômeno total
de comunicação, representação extremamente complexa na qual os discursos estão imbricados em práticas não-
verbais, em que o verbo não pode mais ser dissociado do corpo e do gesto, em que a expressão pela linguagem
se conjuga com a expressão do rosto, em que o texto torna-se indecifrável fora de seu contexto, em que não se
pode mais separar linguagem e imagem. (COURTINE, 2006, p.57).

De fato, a ida às ruas e as formas de materialização das reivindicações por meio de cartazes,
vídeos, e até mesmo máscaras, nos dizem desse sujeito político contemporâneo, sua
capacidade de expandir-se em protestos e sua capacidade de ter sua “voz” rapidamente
multiplicada nas redes sociais. Ou seja, o sujeito político contemporâneo sofre outro
atravessamento constitutivo, o das mídias, em sua potencialização tecnológica própria do
século XXI. Temos, então, essa complexidade a considerar, como continua a nos propor
Courtine:

A respeito do discurso político, é, portanto, necessário especificar seu sujeito, que é, na realidade, muito mais
complexo do que a ficção do sujeito falante ao qual as teorias linguísticas se referem. O sujeito político, aquele
que enuncia um discurso, está realmente assujeitado a um todo de muitas condições de produção e recepção de
seu enunciado. Ele é o ponto de condensação entre linguagem e ideologia, o lugar onde os sistemas de
conhecimento político se articulam na competência linguística, diferenciando-se um do outro, mesclando-se um
ao outro, combinando com um outro ou afrontando-o em uma determinada conjuntura política. (COURTINE,
2006, p.64)

É preciso considerar essa divisão permanente, nas atuais condições de produção do político,
textualizado no digital. Trata-se de uma textualidade que é predominantemente imagética, em
que o grafado passa a ser elemento de composição. As imagens de si tornam-se públicas e em
profusão, porém, como temos afirmado em outros trabalhos, não há o efeito de fechamento
do sentido nas discursividades assim textualizadas no digital.

Olhando para as ruas


Como dissemos, em junho de 2013 assistimos a um movimento popular, no Brasil. O primeiro
de outros que viriam a se dar na sequência desse primeiro, a partir de uma motivação
trabalhada nas redes sociais. Movimentos que se repetiram durante a copa do mundo em 2014
e pós-eleições presidenciais em 2015.
Elegemos alguns enunciados para esta análise, que foram constitutivos dos efeitos de sentido
das manifestações de 2013. Não incluímos enunciados produzidos pela mídia televisiva, pois
entendemos que estes seriam enunciados “sobre” as manifestações. Desta forma selecionamos
alguns enunciados produzidos pelos próprios manifestantes, e registrados em seus cartazes.
Nosso objetivo, então, foi compreender o funcionamento do discurso que se materializou
nesses cartazes, se é que se pode pensar, aqui, em uma forma discursiva específica, própria
dessas manifestações. E é exatamente isso que procuraremos compreender.
Vejamos:
Começamos por coletar, aleatoriamente, uma série de enunciados que foram exibidos nas
mãos e nos corpos dos manifestantes. Evidentemente essa coletânea não corresponde à
totalidade desses cartazes, nem sequer a um número majoritário. Na verdade são imagens
coletadas na mídia jornalística, ou nas mídias sociais, de forma aleatória, sem preocupação
em relacionar a imagem fotografada, com o veículo, ou a mídia que a publicou.
Isso porque, nosso interesse era o de olhar para esse conjunto de enunciados a fim de
compreender que tipo de interlocutores estavam na autoria dos mesmos. De que sujeito
político estamos tratando? Que tipo de interlocutores eles convocavam? E, que tipo de
memória estava na sua sustentação, e tornava possível sua interpretação?
Não nos interessava, portanto, pensar na interpretação produzida pela mídia, mas na
interpretação potencial, ou melhor, no conjunto das (im)possibilidades de interpretação dos
dizeres.
Assim, relacionamos alguns dos enunciados dos cartazes, atribuindo a cada um, um
interlocutor (ideal).

Cartazes
Enunciados Interlocutores

Verás que um filho teu não foge à luta. Tu, pátria amada, Brasil.
● ●
+ educação + saúde – corrupção Parlamentares
● ●
Enfia V
● ●
os 20 centavos no SUS ocê, governante local, que aumentou em 20
centavos a tarifa do ônibus.
Levanta do berço esplêndido e vem pra rua Brasileiro/cidadão
● ●
Abaixo a tarifa e põe na conta da FIFA Governante federal
● ●
Ciclovia é pouco Governante
● ●
Dilma, não somos palhaços e não precisamos do Dilma, presidenta.
● ●
circo da FIFA. Em 2014 não haverá copa do mundo no
Brasil.
Milagres acontecem quando vamos à rua! Nós
● ●
Fora Renan Calheiros. Renan Calheiros
● ●
Por transparência no processo de licitação do Genérico
● ●
transporte público. Pela redução da tarifa. Por uma ...
catracas.
Jogaram mentos na geração coca-cola (nós). Genérico
● ●
“Se não há justiça para o povo, que não haja paz Genérico
● ●
para o governo.” Zapata
Fome e sede de justiça

*21-04-1500 +21-06-2013. Aqui jaz uma nação Genérico
● ●
conformista.
Vamos varrer a corrupção. Não venda seu voto. Você.
● ●
Não alimente a corrupção. Você.
● ●
As cinco causas! 1 Saída imediata de Renan
● ●
Calheiros; 2 Presidência do Congresso; 3 Imediata Genérico

investigação de irregularidades na COPA (pela PF e MPF).
4 Corrupção como crime hediondo; 5 Fim do foro
privilegiado.

Preparem-se políticos inertes e corruptos: O Políticos


● ●
gigante acordou!
Transporte não é mercadoria. Tarifa zero todo dia Genérico
● ●
Educação padrão FIFA Genérico
● ●
Abaixo toda repressão #Reforma Política Genérico
● ●
(sinal de proibido) PEC 37 Genérico
● ●
Você tem fome de quê? Você
● ●
Pra copa tem estádio, onde moro nem saneamento Genérico
● ●
básico.
Chega de hipocrisia política. Genérico
● ●
Que só os beijos te calem a boca. Tu
● ●
Passe-livre já. Genérico
● ●
Não somos criminosos!!! Solidariedade aos que Genérico
● ●
ousam LUTAR!!!
Brasil, vamos acordar, professor vale mais que Brasileiros
● ●
Neymar.
(Nós) Crianças derrubando reis Genérico
● ●
Não se pode prender uma (nossa) ideia. Indeterminado
● ●
Desculpe o transtorno: estamos mudando o país. Vocês
● ●
Vem pra rua Itajaí. PEC 37, mensalão, ficha limpa, Morador da cidade, cidadão (de Itajaí)
● ●
tarifa zero...
Um pedacinho de terra que não vai se calar. Genérico
● ●
A aula hoje é na rua Estudantes
● ●
Saímos da ordem rumo ao progresso Genérico
● ●
Vem pra rua – estádios + escolas Você
● ●
Sai do Cadycrush #vem pra rua Você
● ●
Tabela 1: Conjunto de Enunciados Fonte: FLORES, NECKEL
e GALLO, 2015

Selecionamos, desse conjunto, alguns dos enunciados que chamaremos de “auto-


referentes:
Estamos considerando autorreferentes os enunciados de sujeitos que tomam como interlocutor
um igual, ou semelhante a si, às vezes dirigindo-se a um “NÓS”, às vezes falando por um
“nós”, produzindo um efeito de nosso, de implicação direta.
Temos como objetivo compreender o funcionamento discursivo desses enunciados que giram
em torno do sentido de “VEM PRA RUA”. Vem (você que está aí) pra (cá) rua!
Quem é esse sujeito que convoca um interlocutor? Quem é o sujeito demandado? Quais os
possíveis sentidos dessa demanda? Estamos salientando a característica específica desses
enunciados, de possibilitarem a reflexão sobre a própria realidade da manifestação, mais do
que de protestar sobre um serviço público de má qualidade, ou sobre uma conduta corrupta,
sobre o aumento das passagens de ônibus, etc. como vimos na maioria dos cartazes. Esses,
que formulam protestos de indignação, são da ordem da paráfrase, ou seja, estão alinhados a
uma memória de arquivo que tem um repertório de enunciados que são substituíveis entre si,
uns mais irônicos que outros, mais inesperados, mas que, de qualquer forma, não produzem
ruptura no sentido dominante do que seja uma manifestação social e política.
Os enunciados dos cartazes auto-referentes convivem com esses mas, diferentes desses,
voltam-se para seus próprios autores, ou para seus semelhantes, e seu protesto parece coincidir
com o próprio gesto de manifestar-se. Ou seja, o verbo “vir” na forma do imperativo: “VEM”,
dirige-se diretamente a outro manifestante em potencial, convocando-o a tomar uma posição
enquanto sujeito autor na manifestação. Reverberando o enunciado marxista apenas antes da
vírgula “os homens fazem história”. E, esse desejo de fazer história, move as massas.
Além disso, o enunciado determina para onde se deve “vir”, ou seja, “vem pra RUA”. Não é
dito, por exemplo, VEM PRA CÁ, que seria substituível, nesse caso, mas que não produziria
o mesmo efeito de sentido. Em vez disso, se determina o espaço como sendo a RUA. Assim,
RUA não é somente o espaço da enunciação, mas é um espaço específico, determinado
socialmente e historicamente. A RUA é lugar de exposição, de risco, de atenção, de alvo. A
rua é então espaço de revolução, espaço de história, espaço de repetibilidade histórica.
Dizemos isso, considerando que assistimos todos os dias à criminalidade e à violência das
ruas, que a mídia em geral prioriza nos seus espaços jornalísticos. “Vem pra RUA” pode
significar, hoje: “venha correr o risco”, “venha constituir-se em alvo”. Porém, nesse caso,
também parece haver uma aposta em uma interlocução pacífica, mesmo sendo na rua e, nesse
sentido, parece haver uma aposta em uma mudança, que seria uma ocupação pacífica da RUA.
O importante é compreender que VEM PRA RUA é um enunciado que se coloca e produz
sentido em relação a uma realidade que acontece fora da RUA, em casa, nos espaços privados,
protegidos, do outro lado do vídeo, da TV, do computador, onde encontram-se sujeitos que
assistem, sujeitos leitores, não protagonistas, não autores.
VEM PRA RUA, parece ser um convite a inverter a posição, a tornar-se autor na cena da
notícia, na cena do vídeo da TV, mas principalmente, na cena do vídeo do computador, nas
imagens que circulam nas redes sociais. Desta vez, fazendo coincidir o espaço privado com o
espaço público.
Conforme apontam Romão e Galli:
O poder de “entrar” virtualmente no que está longe (ou perto), mas sempre em outro lugar, indica um modo de
inscrição da tecnologia digital: mirar para além do alcance dos olhos humanos e entrar em lugares outros,
ampliando o zoom e proporcionando ao sujeito-navegador modos de aproximação em relação a cordilheiras,
depressões, rios, montanhas etc. O outro-lugar estaria, assim, como objeto a ser alcançado e apreciado, mas eis
que irrompe aí, como objeto a ser olhado, o próprio corpo do sujeito-navegador, sua(s) espinha(s). O efeito
derrisório está justamente nesse encontro inesperado de quem se vê refletido na tela e se reconhece como objeto
de (seu próprio) olhar em se navegando. Da posição de sujeito-navegador à condição de peça em exposição,
jogo de espelhos e de janelas oportunizado e potencializado pela rede eletrônica. (ROMÃO e GALLI, 2013)

É possível dizer que esses cartazes auto-referentes produzem uma aproximação entre a
memória das manifestações de rua, com a memória das redes sociais. Duas discursividades
que se tocam e se materializam simultaneamente nesse enunciado: VEM PRA RUA. Um
enunciado que traz na sua materialidade as duas formações discursivas que têm se constituído
em divórcio: a que inscreve os dizeres da rua, do risco, do alvo, da violência; e a que inscreve
os dizeres dos espaços privados, dos condomínios, dos apartamentos, dos computadores e das
redes sociais. A primeira está materializada no enunciado RUA; a segunda no enunciado
VEM “Você aí, que me assiste do seu espaço privado”.
VEM PRA RUA constitui-se em um gesto político, que tem como um de seus efeitos de
sentido, a MANIFESTAÇÃO de sua própria possibilidade de se dar, enquanto articulação de
formações discursivas em conflito.
VEM PRA RUA pode, portanto, ser compreendido como um enunciado político, de dimensão
diferente dos demais, por ser polissêmico, por produzir ruptura, por trazer o diferente,
constituindo, nessa medida, um acontecimento discursivo na ordem do político.
Finalmente é possível dizer que o enunciado VEM PRA RUA materializa a contradição
própria do sujeito. Um sujeito sempre dividido, que aqui se apresenta produzindo um gesto
político, mas que, ao assumir essa posição, produz, ao mesmo tempo, um gesto de alienação.
Essa condição contraditória do sujeito contemporâneo está na base do discurso político aqui
analisado.

Considerações finais

A partir da manifestação de 2014, na esteira da copa do mundo, adotou-se as cores da torcida


brasileira, o verde amarelo, como cores oficiais das manifestações. Esse deslizamento do
sentido do verde-amarelo (torcida da seleção brasileira) para o verde-amarelo das
manifestações, nos remete ao contexto francês de 1981, quando Mitterrand foi eleito e a
população manifestou-se por meio de um refrão antes só entoado em estádios de futebol: era
a memória popular da vitória (do time) que de forma inédita se mobilizou na vida política,
como nos diz Pêcheux:

A materialidade discursiva desse enunciado coletivo é absolutamente particular: ela não tem nem o conteúdo
nem a forma nem a estrutura enunciativa de uma palavra de ordem de uma manifestação ou de um comício
político. “On a gagné” [“Ganhamos”], cantado com um ritmo e uma melodia determinados (on-a-gagné/dó-dó-
sol-dó) constitui a retomada direta, no espaço do acontecimento político, do grito coletivo dos torcedores de uma
partida esportiva cuja equipe acaba de ganhar. Este grito marca o momento em que a participação passiva do
espectador-torcedor se converte em atividade coletiva gestual e vocal, materializando a festa da vitória da equipe,
tanto mais intensamente quanto ela era mais improvável. (PÊCHEUX,[1988] 2012, p.21)

No Brasil, não se tratou de uma comemoração de vitória de um partido, ou de um candidato,


mas de um tipo de vitória muito particular: o fato de uma aparição coletiva para um protesto.
As imagens de congraçamento, as imagens de si, as poses publicadas pelos meios de
comunicação, podem ser consideradas marcas de uma “vitória”: a materialização de um
desejo coletivo.

Figura 1 – Manifestação predominantemente Figura 2 – Manifestantes utilizando a máscara


pacífica (Florianópolis, Brasil, 2013).
Fonte: WYATT, Daisy. The Independent (2013).
Fonte: Verbo por escrito (2013)

Figura 3: Imagens protestos pós-eleições Figura 4: Imagens protestos pós-eleições


Fonte: G14 Fonte: G15

4 http://g1.globo.com/politica/fotos/2015/08/fotos-manifestacoes-deste-domingo-16.html. Acessado em agosto


de 2015.
5 idem
Figura 5: Imagens protestos pós-eleições Figura 6: Imagens protestos pós-eleições
Fonte: G16 Fonte: G17

Figura 7: Imagens dos protestos pós-eleições Figura 8: Imagens dos protestos pós-eleições
Fonte: Carta Capital8 Fonte: G19

Podemos dizer que, de uma forma semelhante ao enunciado “vem pra rua”, neste caso, estar
na rua e vestir o verde-amarelo também é a consolidação da vitória da atividade (política?)
coletiva, de uma população não identificada com essa prática. Trata-se, mais uma vez, de uma
auto-referência que poderíamos parafrasear: estamos na rua, fomos capazes de vir pra rua,
fomos capazes de nos mobilizar, somos vitoriosos. Mais importante do que o conteúdo das
reivindicações, parece ser o fato de poder se ver como manifestante. E isso é comemorado em
verde amarelo.

Se a análise do discurso político começou a transformar o tipo de seus instrumentos, isso é também porque seu
próprio objeto atualmente passa pela experiência de uma profunda transformação. Se os modos de comunicação
política realmente passaram por uma considerável agitação, isso não se fez sem provocar mudanças nas práticas
dessas análises. O discurso político realmente sofre de um certo descrédito que leva à rejeição de certas formas
do discurso público. (COURTINE, 2006, p.83)

6 idem
7 idem
8 http://www.cartacapital.com.br/os-protestos-de-12-de-abril-pelo-brasil Acessado em agosto de 2015.

9http://g1.globo.com/politica/fotos/2015/08/fotos-manifestacoes-deste-domingo-16.html Acessado em agosto


de 2015.
Assim, as memórias que tornam interpretáveis as manifestações em verde-amarelo são várias,
a começar pela memória das manifestações de anos atrás, no Brasil e no mundo,
protagonizadas por jovens em luta pela liberdade de expressão e pela população em luta por
melhores condições de vida. A essa memória se sobrepõe a memória das manifestações de
2013, que significou a vinda para a rua, a tomada das ruas por uma população que permanecia
em seus espaços privados, nas redes sociais, em mundos virtuais, protegidos do risco das ruas.
Também se junta aí a memória dos estádios de futebol e do grito coletivo desejante de uma
vitória a ser comemorada coletivamente e patrioticamente. Outra memória que podemos
mobilizar para essa interpretação é a memória do carnaval, em que os blocos saem às ruas
para tocar, cantar e fazer festa. Esses são alguns elementos pré-construídos que podemos
mobilizar na interpretação das atuais manifestações brasileiras.
Esse é um dos vários efeitos sobre os enunciados políticos, geralmente descritos como condição pós-moderna,
caracterizada pelo aparecimento do individualismo e a desafeição pelos sistemas ideológicos. (...) A intenção é
menos explicar ou convencer, mais seduzir ou conquistar. (COURTINE, 2006, p.84).

Talvez, o mais importante, aqui, é compreender que esses elementos de memória sustentam
sentidos de uma população que se inaugura em manifestações, que não se identificava com
essa prática até esse momento, que sempre esteve do outro lado do vídeo, do lado que assiste.
Por isso o grito: VEM PRA RUA, ecoa em todas as demais manifestações brasileiras, desde
2013. É preciso convocar continuamente essa população para essa prática inédita em suas
vidas. Uma prática antes própria daqueles que sempre estiveram na rua.

Segundo o pensador italiano Giorgio Agamben, que muito tem contribuído para
compreendermos a condição política da contemporaneidade, as relações entre os processos
democráticos e a instituição dos estados totalitários são balizadas por tênues linhas:
A contiguidade entre democracia de massa e Estados totalitários não tem, contudo (...), a forma de uma improvisa
reviravolta: antes de emergir impetuosamente à luz do nosso século [século XX], o rio da biopolítica, que arrasta
consigo a vida do homo sacer, como de modo subterrâneo, mas contínuo. É como se, a partir de um certo ponto,
todo evento político decisivo tivesse sempre dupla face: os espaços, as liberdades e os direitos que os indivíduos
adquirem no seu conflito com os poderes centrais simultaneamente preparam, a cada vez, uma tácita porém
crescente inscrição de suas vidas na ordem estatal, oferecendo assim um nova e mais temível instância ao poder
soberano do qual desejariam liberar-se. (AGAMBEN, 2010, p.118).

É preciso, ainda, segundo o autor, aprender a “reconhecer as metamorfoses e os


travestimentos” dos espaços da política contemporânea. Diferente de outros tempos (e de
outras manifestações) em que a rua era arena; as lentes, delação; os militares, adversários e a
cor da luta, o vermelho. Um dos efeitos do contemporâneo é, como vimos aqui nesta análise,
a transformação da rua em palco; das lentes, em espetáculo; dos militares em coadjuvantes
nas imagens de si e, finalmente, das cores em verde-amarelo.

Referências Bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I .Tradução Henrique
Burigo. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
ALTHUSSER, Louis. Posições I, Rio de Janeiro: Edições Graal, [1973] 1978.
CASTRO, Edgardo. Introdução a Giorgio Agamben: uma arqueologia da potência.
Tradução Beatriz de Almeida Magalhães. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
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Disponível em: 10/08/2015

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