Você está na página 1de 11

CONSCIENTIZAÇÃO: Em que interessa

este conceito à psicologia1

Awareness: In what does this concept interests psychology?

Emanuel Meireles Vieiraa, Verônica Morais Ximenesb


a
Psicólogo, mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e ex-bolsista de mestrado da Fundação Cearense de
Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP), Fortaleza, CE - Brasil, e-mail: emanuel.meireles@yahoo.com.br
b
Doutora em Psicologia pela Universidade de Barcelona, professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do
Ceara(UFC) e do mestrado em Psicologia da mesma Universidade e coordenadora do Núcleo de Psicologia Comunitária da UFC
(NUCOM), Fortaleza, CE - Brasil, e-mail: vemorais@yahoo.com.br

Resumo
Este trabalho tem por objetivo refletir a respeito da apropriação da psicologia do termo conscientização,
visto que sua utilização é bastante difundida nas mais diversas áreas do conhecimento, que não só a
Psicologia. Para tanto, elabora uma discussão a partir de Paulo Freire, um dos principais propagadores
desse termo, utilizando-o em seus trabalhos na área da educação popular, e de Ignácio Martin-Baró,
que se apropria deste termo a partir de uma concepção política e o propõe como objetivo da Psicologia
na América Latina, mas não explicita o que de exclusivamente psicológico a conscientização possui.
Em seguida, discute-se o conceito de atividade comunitária, proposto por Góis na Psicologia
Comunitária, para a possível compreensão psicológica do processo de conscientização. Tal discussão
traz à tona o conceito de atividade, tal como proposto por Leontiev, no intuito de compreender como
a ação do sujeito no mundo incide sobre a formação de seu psiquismo. Aponta, ao final, a Teoria
Histórico-Cultural da Mente, desenvolvida por Vigotski, Leontiev e Luria, como a que mais elementos
fornece para tal compreensão, uma vez que vincula as formas de significação da realidade ao modo
como o indivíduo convive em sociedade, uma vez que tanto os trabalhos de Paulo Freire, quanto de
Martin-Baró e Vigotski e seus colaboradores tomam o materialismo histórico-dialético como base
filosófica para seu desenvolvimento.

Palavras-chave: Conscientização; Psicologia comunitária; Atividade.

1
Este trabalho é parte da dissertação de mestrado de Vieira, orientada por Ximenes, e contou com o apoio da Fundação Cearense
de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP), da qual Vieira era bolsista.

Psicol. Argum. 2008 jan./mar., 26(52), 23-33


24 Emanuel Meireles Vieira; Verônica Morais Ximenes

Abstract
This study has the objective of reflect about the psychological appropriation of the term awareness,
once its utilization is world-widely on many kinds of knowledge, not only on Psychology. Therefore,
it works out in detail a discussion from Paulo Freire, one of the main multiplyers of this term,
using it on his works on the popular education area, and from Ignácio Martin-Baró, who
appropriates this term from a political conception and propose it as main objective of the
Psychology in Latin America, but he does not explain what there is of exclusively psychologycal
on it. After that, it discusses the concept of communitarian activity, proposed by Gois on the
Comunitarian Psychology, for the possible psychologycal understanding of the awareness process.
This discussion brings to the surface the concept of activity, as proposed by Leontiev, intending
to understand how the action of subject on the world arises on the formation of his psychism. It
points out, in the end, the historical-cultural mind theory, developed by Vigotski, Leontiev e
Luria, as the one that furnishes more elements to that comprehension, once that it entails the
ways of reality meaning to the way how the individual cohabits in society, once that Paulo
Freire and Martin-Baró’s works, as well as Vigotski and his partners’s have the historical
dialectical materialism as philosophic basis to its development.

Keywords: Awarenes; Comunitarian psychology; Activity.

INTRODUÇÃO conscientização, uma vez que possuem uma matriz


materialista histórica-dialética comum e, portanto,
A Psicologia Comunitária, como área da reconhecem a imbricação realidade-formação do
Psicologia Social (Góis, 1994; Lane, 2002), psiquismo. Nossa compreensão, portanto, dá-se à luz
configura-se como possuidora de diversas influências dos processos psíquicos superiores, propostos pela
teóricas e práticas. Entre estas influências, podemos Teoria Histórico-Cultural da Mente, a partir de
encontrar a Educação Libertadora, desenvolvida Leontiev (1978) e Vigotski (2001).
por Paulo Freire, do qual se utiliza o processo por ele
definido como conscientização.
Este termo, advindo da Educação e CONSCIENTIZAÇÃO
expandido a diversos campos do conhecimento, é
gerador de várias controvérsias. No caso da O tema da conscientização é constante
Psicologia, pode ser lançado o seguinte questio- na obra de Paulo Freire. Apesar de não ser de sua
namento: afinal, em que nos interessa, como autoria (FREIRE, 1980), foi em seu trabalho que
psicólogos, falar de um termo que ganhou tal termo ganhou notoriedade. Isso leva, inclusive,
notoriedade no trabalho de um educador como a que se pense nele de diversas formas, transitando
Paulo Freire? Que sentido faz a utilização deste de uma opção ético-política de transformação
termo num trabalho psicológico? Para além de social, a uma moral acerca do que se deve
uma dimensão política da utilização deste conceito,
conscientizar as pessoas.
no que pese sua importância, o que de psíquico há
No que pesem as controvérsias citadas
presente nele e que merece nossa atenção?
Este trabalho, portanto, constitui-se em alhures, Freire (1980, p. 29) define conscien-
torno destas questões. Nesse sentido, para o debate tização da seguinte forma: “[...] tomar posse da
em torno deste termo para a Psicologia, devemos realidade [...], é o olhar mais crítico possível da
fazer uma breve discussão a respeito dele, tanto a realidade, que a ‘des-vela’ para conhecê-la e para
partir de Paulo Freire (1980), como em sua apropriação conhecer os mitos que enganam e que ajudam a
por Martin-Baró (1998). Em seguida, procuraremos manter a realidade da estrutura dominante”. Como
expor de modo mais detalhado o conceito de atividade podemos perceber, esta definição extrapola uma
comunitária e sua possível articulação com a dimensão apenas cognoscitiva (o conhecer melhor

Psicol. Argum. 2008 jan./mar., 26(52), 23-33


Conscientização 25

a realidade), pois traz consigo uma concepção compreensão e transformação mais profunda de
política, qual seja, a da transformação desta. suas questões (Góis, 2005).
Aliás, o sufixo “ação”, que acompanha a A cada uma dessas sociedades corres-
palavra em questão, não é obra do acaso, pois ponde, respectivamente, um determinado tipo de
indica uma exigência não apenas (apesar de não consciência. Freire (1984) expõe três tipos2 de
prescindir dela) de compreensão lógica da consciência, correspondentes a cada um desses
realidade, mas também de ações concretas frente tipos de sociedade: a semi-intransitiva3, a transitiva-
a ela. Tal exigência torna-se ainda mais urgente ingênua e a transitiva crítica. Definamos, cada um
em contextos como o latino-americano, em que desses termos, iniciando-se pela semi-intransitiva
uma grande maioria da população vive realidades (correlacionada com o tipo de sociedade descrita
extremamente desiguais e opressoras, nas quais o anteriormente como fechada), a partir das próprias
direito de pronunciar a sua palavra lhe é palavras de Paulo Freire (1984, p. 60):
constantemente negado, ou permitido na forma
de um imenso favor (Freire, 1984; Freire, 1981; É evidente que o conceito de “intransitividade”
Martin-Baró, 1997). não corresponde a um fechamento do homem
Segundo Góis (2005), Freire via uma dentro dêle mesmo [...]. O homem, qualquer
profunda imbricação entre contexto histórico- que seja seu estado, é um ser aberto. O que
cultural e compreensão de mundo. É com base pretendemos significar com a consciência
nisso que, em “Educação como prática da “intransitiva” é a limitação de sua esfera de
Liberdade”, Freire (1984) expõe as sociedades apreensão. É a sua impermeabilidade a desafios
como podendo ser de três tipos: fechadas, abertas situados fora da órbita vegetativa. Neste sentido,
ou de transição. O primeiro tipo carrega consigo e só neste sentido, é que a intransitividade
a marca da sobreposição de uma elite cada vez representa um quase incompromisso do
mais rica em detrimento de uma grande maioria homem com a existência [...].
cada vez mais pobre e subjugada a interesses
alheios a suas principais demandas (Góis, 2005). Como se pode perceber, na consciência
Já as sociedades em transição se semi-intransitiva, o indivíduo apreende a realidade
caracterizam por um acirramento pouco profundo de um modo quase vegetativo, uma vez que esta é
entre o que é velho e o que representa o novo, de compreendida de maneira cristalizada e terminada.
modo que ambas as idéias são guiadas por um Neste estado, o ser não estaria em relação com o
clima de muita emoção em detrimento da mundo, mas apenas em contato com ele. Não
resolução das questões urgentes que compõem as estaria, como coloca acima Freire (1984),
contradições sociais. Isso implica em importação compromissado com a existência, pois em seu
de modelos descontextualizados e posturas sentido radical, esta palavra (do latim, exsistère –
bastante assistencialistas por parte dos dirigentes deixar-se ver, manifestar-se) denota um lançar-se
(Góis, 2005). para fora, ou seja, o ser seria possibilidades e não
As sociedades abertas, por sua vez, estagnação numa realidade já acabada.
possuem uma relação mais direta entre elite e Os processos do mundo, a partir da
população em geral, o contexto é levado em apreensão semi-intransitiva, teriam a sua
conta na efetivação das ações, há uma maior responsabilidade atribuída a uma instância
autoconfiança de seu povo, bem como fomento superior, pois “o discernimento se dificulta.
de espaços para uma participação pautada no Confundem-se as notas dos objetos e dos desafios
diálogo. O resultado disso é uma população mais do contorno e o homem se faz mágico, pela não-
dialógica e que, de fato, volta-se para uma captação da causalidade autêntica” (Freire, 1984,

2
Em verdade, Freire (1984) se refere a níveis de consciência. Góis (2005), contudo, traz a idéia de que seriam tipos. Concordamos
com essa idéia, por dar uma noção menos linear e mais transitiva do processo.
3
Freire (1984) se refere a uma consciência intransitiva. Contudo, de acordo com sua própria definição e baseados em Góis (2005),
pensamos ser mais apropriada a utilização do termo semi-intransitiva, pois, como Freire expõe acima, nenhuma consciência
pode ser completamente intransitiva, uma vez que toda consciência é consciência de alguma coisa. Portanto, para que possa se
relacionar com o mundo, precisa estar minimamente aberta.

Psicol. Argum. 2008 jan./mar., 26(52), 23-33


26 Emanuel Meireles Vieira; Verônica Morais Ximenes

p. 60). A consciência mágica capta os fatos “[...] [...] profundidade na interpretação dos
emprestando-lhes um poder superior, que a problemas. Pela substituição de explicações
domina de fora e a que tem, por isso mesmo, de mágicas por princípios causais. Por procurar
submeter-se com docilidade. É próprio desta testar os “achados” e se dispor sempre a
consciência o fatalismo, que leva ao cruzamento revisões. Por despir-se ao máximo de
preconceitos na análise dos problemas e, na
dos braços, à impossibilidade de fazer algo diante
sua apreensão, esforçar-se por evitar
do poder dos fatos [...]” (Freire, 1984, p. 105- deformações. Por negar a transferência da
106). A consciência, então, capaz de transitar, responsabilidade. Pela recusa a posições
movimentar-se, ganha um caráter estático, rígido, quietistas. Por segurança na argumentação.
tendo em vista que o mundo não se coloca como Pela prática do diálogo e não da polêmica.
um problema para ela, mas como um dado. Pela receptividade ao novo e pela não-recusa
A transitividade, contudo, segundo ao velho, só porque velho, mas pela aceitação
Freire (1984, p. 60), não se revela de uma maneira de ambos enquanto válidos. Por se inclinar
crítica, pois, “[...] num primeiro estado [é] sempre a argüições.
preponderantemente ingênua” (diretamente
vinculada ao tipo de sociedade denominada Este tipo de consciência, portanto,
ingênua, de acordo com descrição anterior). De analisa com maior profundidade os fatos, mostra-
acordo com Freire (1984, p. 60 e 61), se mais aberta, democrática e, ao mesmo tempo,
mais inquieta, pois as indagações são seu ponto
A transitividade ingênua [...] se caracteriza, de partida. A conscientização, portanto, é um
entre outros aspectos, pela simplicidade na processo que incita a participação popular de
interpretação dos problemas. Pela tendência a modo efetivo, superando a mera cidadania dos
julgar que o tempo melhor foi o tempo direitos, indo em direção a uma cidadania ativa
passado. Pela subestimação do homem (Benevides, 1991), na qual o povo passa a se
comum. Por uma forte inclinação ao pronunciar acerca de que direitos quer ter, e não
gregarismo, característico da massificação. Pela apenas usufruir direitos elaborados de modo alheio
impermeabilidade à investigação, a que
a suas reais necessidades. Mas, afinal, que relações
corresponde um gosto acentuado pelas
explicações fabulosas. Pela fragilidade na podemos estabelecer entre este conceito e o
argumentação. Por forte teor de psiquismo humano? Em que nos interessa esta
emocionalidade. Pela prática não propriamente categoria, desenvolvida por um educador e que,
do diálogo, mas da polêmica [...]. Esta nota apesar de apontar, não nos define qual sua
mágica, típica da intransitividade, perdura, em concepção explícita de psiquismo?
parte, na transitividade [...]. O surgimento da Psicologia Comunitária
no Brasil, inclusive, está ligado à pergunta acima,
A consciência transitiva ingênua, então, pois, segundo Lane (2002), de um começo
forneceria condições para que se pudesse assistencialista, preocupado com a mera presença
implantar qualquer tipo de tirania contra os seres do psicólogo no auxílio a populações “carentes”,
humanos. Não é à toa que os grandes ditadores a Psicologia Social passou a se perguntar acerca
sempre têm como apelo a emoção e, ao mesmo de sua utilidade no que diz respeito à emancipação
tempo, a firme postura de um grande protetor, das populações oprimidas. De acordo Lane (2002)
que não precisa ter algum tipo de preparo e Góis (2003), um dos referenciais teórico-
específico para administrar um lugar, sob a égide metodológicos muito utilizados naquele período
de que “quem ama protege”. Como exemplo de surgimento da Psicologia Comunitária no Brasil
disso, na História da América Latina, podemos era o trabalho em Educação Popular desenvolvido
identificar o período da ditadura militar, dos anos por Paulo Freire.
1960 até meados dos anos 1980, em que se No que pese a importância dos trabalhos
utilizavam slogans ufanistas, como “Brasil, ame- inicias com Psicologia Comunitária a partir de
o, ou deixo-o!”. Freire, não havia uma compreensão clara da relação
Já a consciência transitiva-crítica é entre as condições materiais da vida cotidiana e o
caracterizada, segundo Freire (1984, p. 61-62), desenvolvimento do psiquismo. Em relação à
pelos seguintes aspectos: utilização do termo “conscientização”, podemos

Psicol. Argum. 2008 jan./mar., 26(52), 23-33


Conscientização 27

afirmar que se tratava de uma concepção muito americana passar incólume a respeito da
mais política do que necessariamente psicológica. imbricação realidade-constituição do psiquismo
(Blanco, 2001).
Lembramos esse fato para ressaltar a
POR UMA CONCEPÇÃO importância de seu trabalho, bem como a falta de
POLÍTICA NA PSICOLOGIA uma explicitação psíquica do funcionamento da
conscientização. Era um período em que se
Um dos grandes defensores da utilização tornava necessário expor a descontextualização
do termo “conscientização” para a Psicologia é da Psicologia, no que pese um não-saber ao certo
Martin-Baró, psicólogo espanhol, mas de intensa o que colocar no lugar de uma tradição psicológica
atividade em El Salvador. Ignácio Martin-Baró considerada descontextualizada.
viu no trabalho de Paulo Freire elementos de Blanco (2001), analisando a
essencial contribuição para a construção de uma epistemologia da Psicologia Social na América
Psicologia da Libertação (Martin-Baró, 1998). Latina a partir da obra de Martin-Baró, situa a
Esse autor define o papel do psicólogo como o de produção deste autor num realismo crítico,
contribuir para a transformação da realidade de marcado por uma primazia da realidade, uma
opressão em que vive a maioria das pessoas da necessidade de se historicizar o psiquismo e a
América Latina. inevitabilidade de comprometer-se. Isso implica
Segundo Martin-Baró (1997, p. 15), “à numa visão de sujeito e de sociedade, na qual o
luz desta visão [da transformação da realidade] sujeito é histórico, com amplas possibilidades de
da psicologia, pode-se afirmar que a conscientização utilizar o aparato histórico-cultural de que dispõe,
constitui-se no horizonte primordial do quefazer bem como de criar outros a partir destes e
psicológico”. O autor define conscientização a modificar sua realidade. Esta, por sua vez, não é
partir de Paulo Freire e afirma se tratar do “[...] estática, e deve contar com a participação
processo de transformação pessoal e social que daqueles que a constituem. Nesse sentido, a
experimentam os oprimidos latino-americanos sociedade vislumbrada pelo realismo crítico de
quando se alfabetizam em dialética com o seu Martin-Baró é sobretudo justa, com oportunidades
mundo” (Martin-Baró, 1997, p. 15-16). para que este sujeito que permeia sua práxis
O trabalho do psicólogo, na perspectiva possa se desenvolver, o que significa mudança
acima, diria respeito a facilitar que as pessoas nas condições materiais deste desenvolvimento.
pronunciem suas palavras e, para tanto, é preciso Martin-Baró (1998) aposta na conscien-
“que as pessoas assumam seu destino, que tomem tização como processo fundamental no trabalho
as rédeas e sua vida, o que lhes exige superar a do Psicólogo que intenta trabalhar a partir de seu
falsa consciência e atingir um saber crítico sobre realismo crítico, tomando de Paulo Freire esta
si mesmas, sobre seu mundo e sobre sua inserção noção. A conscientização, segundo Martin-Baró
nesse mundo” (Martin-Baró, 1997, p. 16). Desta (1998, p. 147), “não consiste numa simples
forma, o horizonte ético sobre o qual se funda a mudança de opinião sobre a realidade, numa
Psicologia na América Latina não poderia ser mudança da subjetividade individual que deixe
outro que não o da libertação. intacta a situação objetiva: a conscientização
Vale lembrar que o período em que supõe uma mudança das pessoas no processo de
Martin-Baró produziu seus trabalhos foi marcado mudar suas relações com o meio-ambiente e,
por uma efervescência das discussões em torno sobretudo com os demais”. É nesse sentido que
do papel das ciências humanas em torno das Blanco (2001) afirma que a proposta de Martin-
desigualdades que constituem a América Latina. Baró é sócio-histórica. O desenvolvimento
Portanto, assim como no Brasil podemos ver em pessoal não prescinde, portanto, de mudanças
Silvia Lane (1995; 2002) alguém que chamou estruturais nas estruturas sociais opressoras em
atenção da necessária mudança de perspectiva que por vezes estão inseridas as maiorias da
da Psicologia no Brasil, podemos afirmar que América Latina.
Martin-Baró (1997; 1998), em sua produção, Apesar de chamar atenção à contex-
afirma peremptoriamente a impossibilidade de a tualização do fazer psicológico na América Latina,
produção dessa ciência em toda a região latino- Martin-Baró (1997; 1998) não explicita o

Psicol. Argum. 2008 jan./mar., 26(52), 23-33


28 Emanuel Meireles Vieira; Verônica Morais Ximenes

significado disso em termos de processos psíquicos. órgãos dos sentidos [...]. O órgão principal da
Apesar das semelhanças e até mesmo de uma certa actividade (sic) do trabalho do homem, a sua
teoria de psiquismo implícita ao realismo crítico mão, só pode atingir a sua perfeição graças ao
de Martin-Baró, cabe aos estudiosos de sua próprio trabalho.
produção realizar essa associação. Blanco (2001)
e Góis (2005), por exemplo, apontam a teoria de Ainda segundo Leontiev (1978, p. 86):
Vigotski e seus colaboradores como uma grande
interlocução para a compreensão deste processo. No trabalho os homens entram forçosamente
em relação, em comunicação uns com os
E é a partir de uma possibilidade desta aposta que
outros. Originariamente, as suas acções (sic), o
seguiremos este trabalho: uma compreensão do trabalho propriamente, e a sua comunicação
processo de conscientização a partir da teoria formam um processo único. Agindo sobre a
histórico-cultural da mente, tomando como natureza, os movimentos de trabalho dos
conceito primordial o conceito de atividade homens agem igualmente sobre os outros
comunitária desenvolvido por Góis (2005). participantes na produção. Isto significa que as
acções (sic) do homem têm nestas condições
uma dupla função: uma função imediatamente
ATIVIDADE COMUNITÁRIA produtiva e uma função de acção (sic) sobre os
outros homens, uma função de comunicação.
O conceito de atividade comunitária
está ancorado na Teoria da Atividade, desenvolvida Assim, podemos perceber que a atividade
por Alexis Leontiev. Esta teoria estabelece um elo traz consigo a marca da cooperação, de modo que
indissolúvel entre mudanças materiais e subjetivas, é impossível pensá-la a partir de um único homem
uma vez que sua tese central é a de que o trabalho isolado. A atividade pode, por exemplo, ser
acarretou na hominização do cérebro. Trabalho decomposta em diversas ações necessárias para
aqui é compreendido de acordo com a definição de que ela ocorra, de modo que se abre a possibilidade
Leontiev (1978, p. 1975), segundo a qual: (eminentemente humana) de se refletir
psiquicamente a relação entre o motivo da ação e
O trabalho humano [...] é uma actividade (sic) o objeto, uma vez que a ação não se encerra nele.
originariamente social, assente na cooperação A atividade humana se orienta, portanto,
entre indivíduos que supõe uma divisão técnica, a partir de um referencial social, de uma série de
embrionária que seja, das funções do trabalho; significados que extrapolam os limites daquilo
assim, o trabalho é uma acção (sic) sobre a que, naturalmente, seria-lhes designado. Leontiev
natureza, ligando entre si os participantes, (1978) nos dá o exemplo de uma caça. Dividida
mediatizando a sua comunicação. esta atividade em algumas ações, teríamos, por
exemplo, a de alguém que executaria a ação de
Dessa forma, podemos perceber no assustar a presa e direcioná-la a um local que
trabalho as dimensões cooperativa e comunicativa forneça melhores condições para que esta seja
que o envolvem, uma vez que a decomposição da capturada por outro grupamento que depende
atividade em determinadas ações pressupõe que diretamente da boa execução da tarefa daquele
elas se liguem pela relação entre o indivíduo e os que espanta a caça. Dessa forma, poderíamos
membros da coletividade. Assim, a atividade é compreender que a atividade em questão é a
permeada por significado social e não apenas por caça, enquanto que o ato de espantar a caça e a
uma mera satisfação instintual. sua captura propriamente dita são algumas das
É nesse sentido que Leontiev (1978, ações que compõem esta atividade.
p. 70) afirma: De um modo isolado, poderíamos pensar
a ação de espantar o alvo da caça como algo
O aparecimento e o desenvolvimento do contraditório ao objetivo do trabalho, uma vez que
trabalho, condição primeira e fundamental da
o que se quer é capturar a presa. Contudo, a ação do
existência do homem, acarretaram a
transformação e a hominização do cérebro, batedor se liga a de outros que com ele capturarão
dos órgãos de actividade (sic) externa e dos a caça. Conforme Leontiev (1978, p. 80):

Psicol. Argum. 2008 jan./mar., 26(52), 23-33


Conscientização 29

Para que um homem se encarregue da sua desenvolvido pela humanidade: a linguagem.


função de batedor, é necessário que as suas Segundo Leontiev (1978, p. 87), “significando
ações estejam numa correlação para que ela no processo de trabalho um objeto, a palavra
“exista para ele”; por outros termos, é preciso distingue-o e generaliza-o para a consciência
que o sentido das suas ações se descubra, que individual, precisamente na sua relação objectiva
ele tenha consciência dele. A consciência da (sic) e social, isto é, como objecto (sic) social”.
significação e uma acção (sic) realiza-se sob a Segundo Góis (2005), devido a essa
forma de reflexo do seu objecto (sic) enquanto vinculação do instrumento a uma significação, a
fim consciente.
atividade cumpre uma função mediatizadora, o
que proporciona o desenvolvimento dos
A possibilidade do discernimento da ação processos psicológicos superiores. Ainda segundo
envolvida numa atividade coletiva se dá por meio
o autor, além da função mediatizadora, a atividade
da capacidade humana de não se fundir com o
carrega consigo uma função orientadora, pois
objeto, mas sim como uma relação em que o objeto
proporciona ao indivíduo possibilidades de
é destacado num objetivo maior. Dessa forma, o
melhor compreensão de sua situação.
conceito de caça, no exemplo anterior, passa a se
Ancorado nas investigações de Leontiev
sobrepor ao que instintivamente apareceria apenas
(1978), Góis (1994) desenvolve o conceito de
como uma presa, pois a consciência a distinguiu e
significou dessa maneira. atividade comunitária. Aliás, é a partir da análise
De fato, o grande salto que a e da vivência da atividade comunitária que se dá
humanidade dá em relação aos outros animais e a intervenção em Psicologia Comunitária. Segundo
que possibilita essa ação planejada do homem Góis (1994, p. 86), “a análise e a vivência da
sobre a natureza é a criação de instrumentos. Os atividade comunitária, isto é, do processo
trabalhos realizados pelos homens possuem essa interativo e coletivo pelo qual o indivíduo vivencia
peculiaridade: sua realização mediante determina- e interioriza a realidade do lugar/comunidade, a
dos meios. Nossa compreensão de instrumento é transforma e aprofunda sua consciência de si e do
ancorada na definição de Leontiev (1978, p. 82), mundo, constitui o método principal da psicologia
segundo a qual “o instrumento é [...] um objeto comunitária”.
com o qual se realiza uma ação de trabalho, ope- O autor define atividade comunitária
rações de trabalho”. como:
A utilização de instrumento está
estreitamente vinculada à consciência do fim da A atividade prática e coletiva realizada por
ação. Dessa forma, ele deixa de ser um mero objeto meio da cooperação e do diálogo em uma
comunidade, sendo orientada por ela mesma
e passa a carregar consigo conceitos que ultrapassam
e pelo significado (sentido coletivo) e sentido
uma condição natural. É nesse sentido que Leontiev (significado pessoal) que a própria atividade e
(1978, p. 82) afirma que “[...] é o instrumento que a vida comunitária têm para os moradores da
é de certa maneira portador da primeira verdadeira comunidade. Ela é uma rede de interações
abstração consciente e racional, da primeira sociais, instrumental e comunicativa, direcionada
generalização consciente e racional”. para a autonomia do morador e da própria
Há, portanto, uma significação que comunidade, na perspectiva do fortalecimento
atravessa o instrumento. De um graveto, à utilização de uma identidade social [...] de comunitário,
de um microcomputador, vivemos o tempo todo do desenvolvimento da consciência social e
utilizando instrumentos para lidar com a realidade, pessoal, e da construção da responsabilidade
transformando-a e desnaturalizando-a. Por se tratar comunitária. (Góis, 2005, p. 89).
de uma relação dialética, o homem também se
transforma e se desnaturaliza. Além disso, a Ter a análise e vivência da atividade
utilização de um instrumento traz consigo uma comunitária como método:
experiência social, pois há um significado
compartilhado em torno dele. significa dar prioridade à transformação
O significado atribuído à ação e ao objetiva da realidade e ao desenvolvimento
instrumento por meio da consciência só se torna da consciência pessoal e social em um só
possível mediante o mais elaborado instrumento processo de desenvolvimento, no qual são

Psicol. Argum. 2008 jan./mar., 26(52), 23-33


30 Emanuel Meireles Vieira; Verônica Morais Ximenes

essenciais a ação-discurso, o diálogo- e interesses comuns, que servem de base à


problematizador, a conscientização, o construção e orientação das ações de seus
conhecimento crítico e a transformação moradores com relação a próprio lugar, ao
solidária da realidade. (Góis, 2005, p. 87). município onde se encontra e ao conjunto da
sociedade.

Assim como na teoria da atividade de Esta perspectiva força a uma redefinição


Leontiev (1978), entre as características do da atuação, por exemplo, dos psicólogos, que, de
conceito de atividade comunitária que nos fornece modo geral, apesar de perceberem a insuficiência
Góis encontra-se a de conter interações dos métodos tradicionais (principalmente clínicos),
instrumentais e comunicativas. As interações não sabem como agir na direção de uma psicologia
instrumentais “[...] são [...] voltadas para a do cotidiano (Barros, 2007). Esta perspectiva
elaboração e uso de instrumentos com finalidades corrobora com a de Vigotski (2001, p. 149),
comunitárias, seja tecnologias simples [...] ou segundo a qual “[...] devemos esperar [...] que, em
tecnologias avançadas” (Góis, 2005, p. 86). Já a linhas gerais, o próprio tipo de desenvolvimento
dimensão comunicativa “[...] compreende o histórico do comportamento venha a estar na
diálogo, a expressão de sentimentos e a dependência direta das leis gerais do
cooperação entre os moradores, no intuito de desenvolvimento histórico da sociedade humana”.
alcançar os objetivos da atividade comunitária e É por se basear em tal perspectiva que
favorecer o desenvolvimento das relações sociais Góis (2003) propõe como duas das condições
na comunidade” (Góis, 2005, p. 86). para a criação de um clima psicossocial de
Como no exemplo do batedor, dado por crescimento pessoal e social – com congruência,
Leontiev, podemos pensar numa reunião e aceitação, empatia e diálogo – a organização
quarteirão, metodologia exposta por Góis (2003), comunitária e a luta reivindicatória e política,
na qual moradores de determinada área da que criam condições para que o indivíduo possa
comunidade dialogavam, num espírito festivo e se colocar de uma maneira mais crítica diante de
problematizador, acerca das questões que dizem sua realidade, pois tal forma de organização da
respeito a seu cotidiano e buscam de modo atividade está imbricada com uma diferente
cooperativo uma resolução para elas. organização do psiquismo. Vale ressaltar que,
Evidentemente, as questões, de modo geral, não por se tratar de um processo não apenas dialético,
possuem solução imediata. Contudo, as pessoas mas também dialógico, isso implica em mudanças
que participam destes encontros podem, assim como não apenas nos moradores, mas também no
o batedor da caça, se perceber como parte de um psicólogo, que sai de sua tradicional distância
processo que depende de sua organização e diálogo. profissional e passa a experimentar outras formas
Como podemos perceber, a comunidade de interação. É nesse sentido que Góis (1994, p.
passa a ser o locus privilegiado de interação e de 89) afirma que:
surgimento do psiquismo. Dessa forma, podemos
afirmar que o cotidiano fornece elementos A relação morador-psicólogo, no interior da
preciosos para a compreensão e a atuação por atividade comunitária, constitui um processo de
parte daqueles que intentam trabalhar com facilitação da vida comunitária, no qual o
desenvolvimento humano de maneira geral. É Psicólogo Comunitário e os moradores atuam
em conjunto, seguindo linhas de encontro,
nesse sentido que, a partir de Góis (2005, p. 61),
reflexão e ação no intuito de melhorar a qualidade
definimos comunidade como: da vida psíquica dos moradores e do próprio
Psicólogo Comunitário, no que diz respeito à
[...] um lugar de moradia, um ‘hogar’ social, de construção de sujeitos sociais e comunitários.
permanência estável e duradoura, de relação
direta (face-a-face) entre seus moradores, de
As implicações de formas de interações
crescimento e de proteção da individualidade
frente à natureza e à sociedade. Apresenta, diferenciadas de interação, tanto em sua dimensão
como o município e a sociedade maior, que comunicativa (dialógico), quanto instrumental
exercem influência sobre ela, um processo (transformação solidária da realidade) foram
social próprio cheio de contradições, conflitos objeto de estudos e atuação tanto de Paulo Freire

Psicol. Argum. 2008 jan./mar., 26(52), 23-33


Conscientização 31

quanto de Martin-Baró, conforme exposto estabelecimento do diálogo, compreendido de


alhures. Mas afinal, como podemos compreender acordo com a definição de Freire (1981, p. 93):
psiquicamente o processo de conscientização?
Qual a relevância deste conceito para um trabalho O diálogo é este encontro de homens,
especificamente de Psicologia? mediatizado pelo mundo, para pronunciá-lo
[...]. Esta é a razão por que não é possível o
ATIVIDADE COMUNITÁRIA E diálogo entre os que querem a pronúncia do
mundo e os que não a querem; entre os que
CONSCIENTIZAÇÃO: ESBOÇO negam aos demais o direito de dizer a palavra
DE UMA POSSÍVEL RELAÇÃO e os que se acham negados deste direito. É
preciso primeiro que, os que assim se encontram
Estabelecer paralelos entre esses negados no direito primordial de dizer a palavra,
conceitos exige, de imediato, um cuidado reconquistem este direito, proibindo que este
importante: o de saber que se tratam de conceitos assalto desumano continue [...]. O diálogo é
produzidos em áreas díspares do conhecimento e uma exigência existencial.
que, portanto, contêm as especificidades de cada
uma dessas áreas. Contudo, essa comparação Isso significa que ao outro é reconhecida
pode ser iniciada a partir do reconhecimento de a importância do direito de dizer a sua palavra, de
uma matriz comum ao pensamento de Vigotski e modo que há uma interação que permite a
seus colaboradores (em especial Leontiev) e aos participação de todos, em que cada um tem a
de Paulo Freire e Martin-Baró: o materialismo possibilidade de escrever, de modo coletivo, a
histórico-dialético. Em ambas as perspectivas, é história de todos.
possível encontrar referências a Marx ou a autores Além de uma óbvia implicação ética – o
de notória inspiração marxista. reconhecimento do outro – o diálogo parece mediar
Isso implica numa necessária imbricação, um processo psíquico no qual a percepção da
em ambas as teorias, entre realidade material e realidade, bem como o modo de agir diante dela
subjetividade, pois adotar o materialismo histórico- sofrem profundos impactos e merecem, sem
dialético como fundamento epistemológico para a dúvida, uma investigação mais acurada. Góis
construção de um pensamento traz consigo (2005, p. 110) reconhece esse processo psíquico
implicações éticas e epistemológicas. No campo como “[...] um mecanismo de interiorização da
ético, significa deixar de lado qualquer concepção realidade físico-social, em sua diversidade e
de neutralidade em que possa ser pensada a mudança, e ao mesmo tempo de expressão do
construção do conhecimento, pois se reconhece indivíduo no mundo”. O autor, portanto, reconhe-
nesta uma exigência de vinculação direta com as ce esse nexo psíquico presente no processo de
questões do tempo e do lugar em que é conscientização ancorado na concepção de
desenvolvida. Já no âmbito epistemológico, psiquismo presente na Teoria Histórico-Cultural
significa que “o pesquisador [...] deve ter presente da Mente.
em seu estudo uma concepção dialética da Para uma melhor compreensão deste
realidade natural e social e do pensamento, a processo, retomemos a concepção de psiquismo
materialidade dos fenômenos e que estes são presente na obra de Leontiev. Para ele, “o reflexo
possíveis de conhecer” (Triviños, 1987, p. 73). psíquico resulta de uma relação, de uma interação
A respeito desta imbricação entre real entre um sujeito material vivo, altamente
realidade social e construção do pensamento, organizado, e a realidade que o cerca” (Leontiev,
Góis (2005, p. 111) afirma que, “na Pedagogia da 1978, p. 93).
Libertação, assim como na Teoria Histórico- Ora, como podemos perceber, adotar o
Cultural da Mente, [...] o ponto de partida para o conceito de consciência exposto acima significa
desenvolvimento do individuo é sua ação reconhecer que o desenvolvimento dela
transformadora do mundo [...]. Para ambos, a (consciência) necessariamente envolve a
consciência se origina no ato de transformar a superação de uma apreensão natural da realidade.
realidade e não na adaptação”. É dada ao homem possibilidade de não apenas se
Uma das condições necessárias para que adaptar à realidade, pois ele pode se distanciar
desenvolva um processo de conscientização é o dela e deve, sobretudo, transformá-la. E o que

Psicol. Argum. 2008 jan./mar., 26(52), 23-33


32 Emanuel Meireles Vieira; Verônica Morais Ximenes

significa a conscientização, senão a superação de escuta, o que é muito pouco. Nossa formação
uma apreensão quase espontânea da realidade? clínica sem dúvida favorece que tanto nós, como
Desta forma, podemos compreender a outros profissionais, esperemos isto, e a imagem
conscientização e a atividade comunitária como que daí advém é a de um grande ouvido.
fazendo parte de um único processo. Afinal, Por outro lado, o compromisso social
conforme expusemos anteriormente a partir de apenas não basta para o desenvolvimento de um
Leontiev (1978), a interação com a realidade, por trabalho com Psicologia Comunitária. Pode,
meio de suas dimensões instrumental e inclusive, ser um ponto de partida, mas deve
comunicativa, produz mudanças na forma de o envolver a compreensão deste trabalho à luz de
indivíduo se relacionar consigo, com o outro e uma teoria psicológica, até mesmo para que se
com o mundo, pois a atividade comunitária possui possa diferenciar o militante do profissional de
uma função orientadora. Esse movimento Psicologia. Para que não seja apenas um psicólogo
(dialético) de mútua transformação ocorre num engajado, mas sim uma Psicologia que apresente
mundo de significados (sentidos compartilhados como ferramenta para esse compromisso social.
de maneira coletiva), daí por que ser uma atividade Vemos na Teoria Histórico-Cultural da Mente
e não uma mera ação sobre a realidade. (Vigotski, Luria e Leontiev) uma teoria de enorme
A conscientização, por sua vez, possui, potencial para que possamos compreender os
assim como a atividade comunitária, dimensões meandros do processo nomeado por Martin-Baró
comunicativas e instrumentais. O aspecto e Paulo Freire de conscientização, em termos de
instrumental da conscientização se dá pelo fato de desenvolvimento dos processos psíquicos
esta não prescindir da problematização em torno de superiores.
palavras, e palavra é vista aqui como “significação Evidentemente, tal afirmação merece
produzida pela ‘práxis’, palavra cuja discursividade uma investigação empírica e mais detalhada
flui da historicidade – palavra viva e dinâmica, não acerca do processo de conscientização, bem como
categoria inerte exâmine. Palavra que diz e das mediações que lhe sustentam. Por ora, as
transforma o mundo” (Fiori, 1979, p. 15). Já o evidências teóricas tendem a nos fazer concordar
aspecto instrumental da conscientização se com Góis (2005, p. 118) quando afirma que
manifesta na elaboração de instrumentos que “analisando as concepções de consciência em
auxiliem na transformação da realidade, comissões Vigotski e Paulo Freire, vemos que entre elas não
há uma oposição, mas uma ampliação e adequação
de mobilização e ação e confecção de instrumentos
às questões do desenvolvimento sócio-econômico
para uma manifestação pública, por exemplo. O
e da educação, especialmente nos países pobres”.
diálogo problematizador, portanto, parece criar uma
ambiência propícia para um desenvolvimento do
ser humano na direção de seu reconhecimento
AGRADECIMENTOS
como ser histórico e, conseqüentemente, inacabado.
Agradecemos à Fundação Cearense de
Apoio ao Desenvolvimento Científico e
CONSIDERAÇÕES FINAIS Tecnológico (FUNCAP) pelo apoio para a
realização desta pesquisa.
A compreensão da conscientização
como parte do desenvolvimento dos processos
psíquicos superiores (nas palavras de Vigotski), REFERÊNCIAS
é fundamental para que se possa compreender a
especificidade desta perspectiva no trabalho do Benevides, M. V. M. (1991). A Cidadania ativa:
psicólogo. Não é raro ouvirmos que o diferencial Referendo, plebiscito e iniciativa popular.
do Psicólogo numa equipe multiprofissional é a São Paulo: Ática.

Psicol. Argum. 2008 jan./mar., 26(52), 23-33


Conscientização 33

Barros, J. P. P. (2007). Considerações sobre a social: O homem em movimento. (pp.10-


práxis do(a) psicólogo(a) nas raízes de 19). São Paulo: Brasiliensep.
cidadania e no centro de referência da
Leontiev, A. N. (1978). O Desenvolvimento do
assistência social (CRAS) de Fortaleza.
Monografia de graduação Universidade Psiquismo. Lisboa: Horizonte Universitário.
Federal do Ceará, Fortaleza. Martin-Baró, I. (1998). Psicología de la
Blanco, A. (2001). Hacia uma Epistemologia liberación. Madrid: Editorial Trotta.
Psicossocial Latinoamericana: El realismo Martin-Baro, I. (1997). O papel do Psicólogo. Estud.
crítico de Ignácio Martin-Baró. In: A. M. F., psicol. (Natal), 2(1). Recuperado em em 09
Caniato, & E. A Tomanik, (Org.). set. 2007, da SciELO (Scientific Electronic
Compromisso social da psicologia. Porto Library Online): http://www.scielo.br/
Alegre: ABRAPSOSUL. scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
Fiori, E.M. (1979). Aprender a dizer a sua 294X1997000100002&lng=pt&nrm=iso.
palavra. In: P, Freire. Pedagogia do Triviños, A. N. S. (1987). Intr odução à
Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra. pesquisa em ciências sociais: A pesquisa
Freire, P. (1980). Conscientização: Teoria e qualitativa em educação. São Paulo: Atlas.
prática da libertação: uma introdução ao Vigotski, L. S. (2001). A constr ução do
pensamento de Paulo Freire. São Paulo: pensamento e da linguagem. São Paulo:
Cortez e Moraes. Martins Fontes.
Freire, P. (1981). Pedagogia do oprimido. Rio
de Janeiro: Paz e Terra.
Recebido: 14/02/2008
Freire, P. (1984). Educação como prática da Received: 02/14/2008
liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Aprovado: 03/03/2008
Góis, C. W. L. (1994). Noções de psicologia
Approved: 03/03/2008
comunitária. Fortaleza: Viver.
Góis, C. W. L. (2003). Psicologia comunitária
no Ceará: Uma caminhada. Fortaleza:
Publicações Instituto Paulo Freire de
Estudos Psicossociais.
Góis, C. W. L. (2005). Psicologia Comunitária:
Atividade e vivência. Fortaleza: Publicações
Instituto Paulo Freire de Estudos
Psicossociais.
Lane, S. T. M. (2002). Histórico e fundamentos
da Psicologia Comunitária no Brasil. In R. H.
F., Campos. Psicologia Comunitária: Da
solidariedade à autonomia. (pp. 17-34).
Petrópolis: Vozes, p. 17-34.
Lane, S. T. M. (1995). A Psicologia Social e uma
nova concepção de homem para a Psicologia.
In: Lane, S. T. M., & W., Codó. Psicologia

Psicol. Argum. 2008 jan./mar., 26(52), 23-33

View publication stats

Você também pode gostar