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CAPÍTULO XI

Pensamento Social e Representações


Sociais

Jorge Vala e Paula Castro

Introdução Higgins, 2001); ou, mais especificamente,


na teoria das representações sociais (Moscovici,
A forma como as pessoas elaboram teorias, 1961/1976/2000).
crenças e atitudes sobre a realidade social com Do ponto de vista analítico, o que separa a
o objectivo de construírem um mundo signi- primeira corrente das restantes é o peso
ficante tem sido objecto de estudo sistemático relativo atribuído aos processos cognitivos
na Psicologia Social desde os trabalhos iniciais básicos em detrimento dos factores sociais e
de Bruner, a quem devemos a chamada revolu- da interacção social para o entendimento da
ção cognitiva (Bruner, Goodnow e Austin, 1956; construção do conhecimento social. Simpli-
Bruner, 1990). Num livro recente sobre a psi- ficando, podemos dizer que, na perspectiva da
cologia social descrita a partir de motivações cognição social, o que importa conhecer são
os processos cognitivos implicados no proces-
básicas, Fiske (2010) considera a motivação
samento da informação, ou seja, como a arqui-
para reduzir a incerteza sobre o mundo que nos
tectura da mente formata o conhecimento. As
rodeia como uma dessas motivações funda-
restantes perspectivas, porém, conferem uma
mentais, de par com o controlo, o sentimento
atenção maior à análise da interacção entre
de pertença, a auto-estima e a confiança.
processos sociais e processos cognitivos e aos
No campo da Psicologia Social, o estudo
seus impactos no pensamento colectivo e
sobre as formas como as pessoas respondem à individual. Ou seja, estuda-se os mecanismos
necessidade de conhecer tem sido desen- através dos quais “a cultura dá forma à mente”
volvido em diferentes perspectivas. Estas e como a atribuição de sentido orienta o trata-
perspectivas podem ser alojadas na linha de mento da informação, procurando tornar cen-
investigação designada por cognição social tral para a psicologia a noção de significado
(e. g. Fiske e Taylor, 1984/2008); nas teorias (Bruner, 1990; Ross, Lepper e Ward, 2010).
sobre a cognição partilhada ou a realidade Usando uma distinção proposta por Higgins
partilhada (Hardin e Higgins, 1996; Levine e (2000), no primeiro caso estudamos a “cognição
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da psicologia social” e, no segundo, a “psico- 1. De que falamos quando falamos em pensa-


logia social da cognição.” 1 mento social?
Este capítulo adopta esta segunda perspec-
tiva. Partimos da hipótese de que as pessoas Harré (1989) propôs uma tipologia dos fenó-
constroem visões do mundo significantes e que menos psicológicos organizada a partir de dois
o fazem através da interacção social e da eixos. Um eixo que opõe o colectivo vs. o indi-
comunicação quotidiana, as quais ocorrem em vidual; e um outro que opõe o público vs. o
contextos sociais diferenciados. É esta plura- privado. O cruzamento destes dois eixos gera
lidade de contextos que permite a elaboração de quatro espaços onde é possível situar diferentes
crenças e visões do mundo comuns dentro dos fenómenos que envolvem a cognição (Caixa 1).
grupos e diferentes entre os grupos. Esta mesma O pensamento social situa-se no quadrante
hipótese está na base do conceito de repre- definido pelo público e pelo colectivo, opondo-
sentação colectiva de Durkheim (1898) e na se, nomeadamente, ao individual e ao privado
base dos trabalhos pioneiros de Festinger (veja-se ainda Castro, 2003, 2002; Vala, 1993).
(1954), Lewin (1931) e Sherif (1936) sobre a Exemplos clássicos do pensamento social
construção do conhecimento. É nesta mesma em acção são os rumores, tal como estudados
orientação que Zajonc e Adelmann (1987) por Allport e Postman (1965) e a memória
propõem o conceito de “significações grupais”, social, tal como estudada por Bartlett (1932).
Bar-Tal (1990) o conceito de “crenças grupais” Os rumores são formas colectivas de conhe-
e Hardin e Higgins (1996) inauguraram uma cimento, envolvem interacções socais e acon-
linha de pesquisa sobre a “realidade partilhada”. tecem no espaço público. Exemplos do pensa-
Neste capítulo considera-se o conceito de mento social são ainda as crenças colectivas,
representação social (Moscovici, 1961/2000) como a crença num mundo justo (Correia, Vala
como paradigmático desta perspectiva. e Aguiar, 2001; Lerner, 1980). Esta crença
Assim, a primeira parte do capítulo expõe a refere-se ao facto de agirmos – na maioria dos
lógica e os fundamentos do ponto de vista casos sem nos darmos conta – como se cada um
adoptado, visando uma introdução ao que pode- tivesse o que merece e merecesse o que tem. São
remos chamar os princípios básicos do fun- ainda exemplo de conteúdos do pensamento
cionamento do “pensamento social” ou conhe- social as crenças básicas sobre o funcionamento
cimento social. A segunda parte apresenta uma das sociedades democráticas. Concretamente,
abordagem clássica do conceito de represen- Katz e Hass (1988), com base em investigação
tação social e da sua evolução, visando a com- empírica realizada nos USA e replicada noutros
preensão das suas dimensões, orientações teóri- contextos nacionais, propõem que os valores
cas de análise e metodologias de estudo. associados ao individualismo meritocrático

1
De acordo com Higgins (2000), a “psicologia social da cognição” corresponde à pergunta de G. Allport (1968): o que
acontece à vida mental do indivíduo quando este entra em relação real ou simbólica com um outro. A “cognição da
psicologia social” ou a abordagem cognitiva da psicologia social pode ser ilustrada por outra pergunta de Allport: como é
que a vida mental do indivíduo influencia a sua relação com os outros.
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CAIXA 1

Um espaço conceptual para a Psicologia

Embora as perspectivas do behaviorismo e da fenomenologia pareçam muito diferentes, elas


partilham um fundamento ontológico e uma problemática epistemológica comuns: são psicologias
cartesianas. Tentar construir uma teoria geral das representações sociais sobre uma ou outra das
psicologias cartesianas tradicionais é um empreendimento destinado ao fracasso. A fenomenologia não
tem espaço para situar de modo verdadeiramente social o cognitivo, da mesma forma que o
behaviorismo não tem espaço realmente cognitivo para o social.
Em vez de uma oposição bipolar entre mente e corpo – a qual, ao opor subjectivo/objectivo e
interno/externo, está na base do cartesianismo – é possível desenhar um espaço conceptual de duas
dimensões. A primeira dimensão corresponde ao carácter público – constatável por todos – ou privado
– guardado para si – da manifestação de um processo cognitivo ou de um estado afectivo. A segunda
dimensão corresponde à localização do processo cognitivo ou estado afectivo – como pertencendo a um
indivíduo isolado ou como necessitando do grupo para existir.
O cruzamento destas duas dimensões origina quatro quadrantes sobre os quais se podem localizar
diversos fenómenos psicológicos. Tomemos o exemplo da memória. As palavras que se referem à
memória aparecem ao mesmo tempo em relatos de recordações pessoais e em relatos criados por
instituições e que determinam parcialmente a acção futura de seus membros. Podemos localizar o
primeiro caso – o das recordações – no quadrante individual-pessoal e o segundo – da memória
institucional – no quadrante colectivo-social.

MANIFESTAÇÃO

pública

mundo social

LOCALIZAÇÃO
individual colectiva

mundo pessoal

privada

Texto e figura adaptados de Harré (2001)


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(que justificam as desigualdades sociais) e os grupos. Dito de outra forma, os estereótipos são
valores igualitários (que se opõem às desigual- associações entre categorias sociais e traços ou
dades) coexistem e são ambos idealizados como atributos.
fundadores da ordem social democrática. No Por exemplo, um estereótipo muito associado
mesmo sentido, Sidanius e Pratto (1999) defen- aos grupos minoritários é o de que são violen-
dem que as sociedades contemporâneas são tos. De facto, é recorrente a comunicação social,
sustentadas por mitos legitimadores de orienta- a polícia e a comunicação quotidiana informal
ção oposta: os que legitimam a desigualdade associarem os membros de grupos minoritários
entre grupos sociais (como as teorias raciais, o a comportamentos delinquentes. Muitos se
sexismo ou as teorias nacionalistas) e os que se lembrarão que no Verão de 2008 ocorrerem uma
lhe opõem e promovem a igualdade entre gru- série de assaltos violentos na região de Lisboa.
pos, como a ideia de direitos humanos univer- Em consequência, a polícia, para que a popula-
sais (Spini e Doise, 1998; 1995). ção se sentisse mais segura, desencadeou uma
grande operação nos chamados “bairros proble-
A importância dos processos associados ao
máticos” onde habitam imigrantes e pessoas de
pensamento social, para compreendermos a acção
origem africana. Embora nenhuma prisão rela-
social e o próprio funcionamento do sistema
cionada com aqueles assaltos tivesse sido
cognitivo, foi sublinhada por Moscovici quando
efectuada, preservou-se a crença de que é nesses
propôs o conceito de “sociedade pensante”: assim
bairros que residem os delinquentes. Como
como a sociedade pode ser considerada um sis-
explicar esta associação recorrente entre mino-
tema económico e um sistema político, também
rias e comportamentos delinquentes? De onde
pode ser considerada um sistema pensante virão estas crenças colectivas? Da “natureza
(Moscovici, 1988; ver Augustinos, Walker e real” dos seus objectos, isto é, no caso presente,
Donaghue, 2006). Quer dizer, um espaço de inte- “as pessoas de grupos minoritários”? Vamos
racção social onde as pessoas se interrogam e assumir que essas crenças decorrem de proprie-
procuram encontrar respostas para as questões dades dos indivíduos que as partilham, e dos
que, em conjunto com outras, se colocam. Mas contextos em que são enunciadas, e não de
quais são os processo sociais e psicológicos que propriedades dos seus objectos. Esta hipótese
acompanham a produção de pensamento social? abre uma nova pergunta. Que propriedades dos
É esta a questão que abordamos a seguir. indivíduos estão implicadas na produção de
crenças sobre os grupos ou objectos sociais?
Parte dessas propriedades poderão decorrer do
2. Processos cognitivos, contextos sociais funcionamento do sistema cognitivo. Outra parte
e pensamento social poderá decorrer do contexto social em que os
indivíduos pensam.
Tomemos como exemplo a construção social
dos estereótipos (ver Capítulo IX, Estereótipos:
antecedentes e consequências das crenças sobre 2.1. Processos cognitivos e pensamento social
os grupos). Os estereótipos sobre grupos sociais
são crenças largamente partilhadas pelas pessoas A importância dos processos cognitivos,
sobre os respectivos grupos e sobre outros enquanto, tais na manutenção de crenças colec-
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tivas pode ser ilustrada com base num estudo de No ponto seguinte, vamos analisar uma outra
Hamilton e Gifford (1976) sobre correlações teoria que nos ajudará a compreender, não o
ilusórias e estereótipos sobre grupos minoritá- papel dos factores cognitivos nas crenças
rios. As correlações ilusórias referem-se a uma colectivas, mas o papel de factores sociais na
sobre-estimação da co-ocorrência de dois acon- produção dessas mesmas crenças.
tecimentos (ver Capítulo IX, Estereótipos: ante-
cedentes e consequências das crenças sobre os
grupos). No estudo referido os participantes 2.2. Factores socais e pensamento social
eram confrontados com um certo número de
frases em que indivíduos de dois grupos dife- Mostrou-se, numa pesquisa realizada há
rentes (Grupo A e Grupo B) eram descritos alguns anos, que a maioria dos jovens univer-
como tendo realizado comportamentos posi- sitários europeus pensa que os alemães são
tivos e negativos. Além disso, era dito que o competentes, embora não sejam simpáticos, e
Grupo A tinha o dobro dos membros do Grupo que os portugueses são simpáticos, mas pouco
B, sendo deste modo criada a ideia de que o competentes (Cuddy et al., 2009). Este resultado
pode ser explicado no quadro da teoria de Fiske
grupo A era maioritário relativamente ao Grupo
e co-autores (Fiske, Gluck, Cuddy e Xu, 2002)
B. Eram enumerados mais comportamentos
como decorrendo, não de características dos
desejáveis (27) do que indesejáveis (12) para
portugueses ou dos alemães, mas do contexto e
ambos os grupo. Para o Grupo A: 18 comporta-
das relações sociais em que são gerados os traços
mentos desejáveis para 8 indesejáveis; para o
atribuídos aos grupos humanos.
Grupo B: 9 comportamentos desejáveis para 4
De facto, no modelo a que chamaram Teoria
indesejáveis. Ou seja, a proporção de compor-
Estrutural do Conteúdo dos Estereótipos, Fiske e
tamentos desejáveis (69%) e indesejáveis (31%)
colaboradores (2002) argumentam que é pos-
era a mesma em ambos os grupos. Contudo,
sível predizer os traços estereotípicos de um
quando era pedido aos participantes que recor- exogrupo a partir de dois factores: o estatuto
dassem o número de comportamentos desejáveis que lhe é atribuído e a natureza das relações
e indesejáveis, estes lembravam-se correctamente percebidas (cooperação vs. competição) entre o
do número de comportamentos desejáveis, mas endogrupo e o exogrupo (ver Capítulo VIII,
subestimavam o número de comportamentos Estruturas e dinâmicas de grupo). Assim, os estu-
negativos do grupo maioritário e sobrestimavam dos desta equipa de investigação mostram que
o número de comportamentos negativos do as crenças estereotípicas se organizam em torno
grupo minoritário. Ou seja, os participantes de duas dimensões fundamentais (competência
estabeleceram uma correlação ilusória, asso- e simpatia) e que o estatuto atribuído por um
ciando os comportamentos negativos (menos endogrupo a um exogrupo e a natureza da inter-
frequentes) ao grupo minoritário (menos fre- dependência (competitiva ou cooperativa) per-
quente). Um mecanismo cognitivo (a correlação cebida nas relações entre grupos determinam a
ilusória) pode contribuir assim para os estereó- forma como um exogrupo é posicionado nessas
tipos negativos associados aos grupos minoritá- dimensões pelo endogrupo. Um grupo perce-
rios, com consequências pessoais e sociais gra- bido como tendo alto estatuto e como sendo
víssimas. cooperativo é também visto como competente e
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simpático (por exemplo, no estudo referido, os colectivas de pensamento, neste caso – o con-
endogrupos e os seus aliados são definidos teúdo dos estereótipos sobre grupos sociais.
desta forma); um grupo visto como tendo baixo O processo que estamos a descrever torna-se
estatuto e como sendo cooperativo é percebido ainda mais claro se evocarmos a hipótese de
como incompetente e simpático (e. g., as pes- Moscovici (1976) de que na produção de
soas idosas, os deficientes); um grupo de alto pensamento intervêm dois sistemas cognitivos
estatuto e competitivo é percebido como com- (ou um sistema e um meta-sistema): “um sis-
petente e antipático; e, finalmente, um grupo de tema que procede a associações, inclusões, dis-
baixo estatuto e competitivo é percebido como criminações, deduções, ou seja, o sistema opera-
incompetente e antipático. tório; e outro que controla, verifica, selecciona
com a ajuda de regras lógicas ou não; trata-se de
um meta-sistema que trabalha o que o primeiro
2.3. A articulação psicossociológica produziu” (p. 254).

Mostrámos como processos cognitivos


elementares podem estar na base da atribuição 3. Interacção social e pensamento social
de características aos grupos sociais que não
têm necessariamente nada a ver com o seu com- Um novo passo deve ser dado agora. A pers-
portamento efectivo. Numa segunda pers- pectiva desenvolvida neste capítulo não acentua
pectiva, mostrámos como as relações sociais apenas a importância do contexto social e da
percebidas também interferem na produção de articulação entre factores sociais e processos
estereótipos. É esta segunda perspectiva que se cognitivos na produção do conhecimento quoti-
procura desenvolver quando se fala na cons-
diano. Mais do que isso, esta perspectiva aborda
trução do pensamento social, sem que a arti-
a construção de crenças colectivas como um
culação com a perspectiva cognitiva deixe de ser
produto de uma “sociedade pensante” (Mosco-
considerada importante. De facto, o que é pró-
vici, 1988). Quer dizer, entende-se que as cren-
prio da psicologia social do pensamento social,
ças e representações resultam da interacção e da
como aliás de todo o projecto científico desta
comunicação e não são produtos de sujeitos
disciplina, é a articulação entre níveis de análise
isolados.
(Doise, 1980). O que significa esta articulação
quando está em causa a compreensão de formas Esta perspectiva reenvia o estudo do pen-
de pensamento colectivo? Significa compreen- samento social para uma forma mais geral de
der, por exemplo, como factores cognitivos e entendimento da Psicologia Social. Desta pers-
sociais se conjugam para produzir pensamento. pectiva, esta disciplina estuda “o elo social que
Voltando ao estudo de Hamilton e Gifford constitui a relação entre um Ego (indivíduo ou
(1976), o que Schaller e Maass (1989) verifi- grupo) e um Alter (indivíduo ou grupo) com
caram em estudos posteriores foi que o efeito vista a analisar as suas relações com o meio,
das correlações ilusórias sobre os estereótipos social ou não social, real ou simbólico” (Mos-
opera apenas quando não está em causa o valor covici, 1970, p.34-35; ver Figura 1). Assim, o
do grupo daqueles a quem é pedido um dado que se propõe neste quadro de análise é que “a
julgamento. Ou seja, pertenças sociais e factores relação Sujeito – Objecto é moderada pela inter-
cognitivos articulam-se para produzir formas venção de um outro Sujeito, um Alter, e se torna
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para “a relação social como fonte de processos


FIGURA 1
específicos” (p. 34), que devem ser analisados
Modelo da psicologia social triádica com vista ao entendimento do comportamento
(Moscovici, 1970) social e, como interessa aqui, do pensamento
social.
Objecto
Destacamos três desses processos específi-
(físico ou social,
imaginário ou real) cos: a comparação social e o consenso a ela
associado, como factor que dá garantia subjec-
tiva à qualidade do conhecimento; a negociação,
subjacente à construção de normas de referên-
cia, enquanto significados e imperativos sociais
partilhados; a identidade, como fonte geradora
do consenso e da diferenciação.
Uma questão deve ser agora esclarecida – o
que se entende por “objecto” – a propósito do
Ego Alter
qual os indivíduos ou grupos sociais interagem,
comunicam e aos quais atribuem sentido. Estes
uma relação complexa sujeito a sujeito e objectos podem referir-se a objectos quotidia-
sujeitos com objectos” (Moscovici, 1984, p. 34). nos “novos” (ainda não alvo de sentido), novos
Mais do que as propriedades disposicionais ou acontecimentos, novas pessoas, novas experiên-
estruturais dos indivíduos e dos objectos, mais cias, que nos interpelam e são importantes para
do que as propriedades estruturais dos contex- o controlo do meio ambiente; como podem
tos, são as modalidades de comunicação entre também referir-se a objectos já investidos de sen-
sujeitos que determinam a relação entre estes e tido, seja ele científico, ideológico, religioso,
os objectos (ver desenvolvimento adiante, neste mítico, simbólico, tecnológico, etc. Uns e outros
capítulo; para outras leituras da perspectiva podem ser questionados, definidos e redefinidos
“triádica” em psicologia social – ego, alter, no processo de interacção social, embora os graus
objecto – ver Bauer e Gaskell, 2008; Jesuíno, de liberdade dos indivíduos relativamente aos
2009; Marková, 2003). objectos cujo sentido está já cristalizado (por
No entanto, como indica Moscovici (1972), a exemplo, os acontecimentos históricos, os fenó-
perspectiva acima descrita pode assumir várias menos religiosos, etc.), seja muito menor.
modalidades. Pode fixar-se no estudo do
“mecanismo de interacção em geral e analisar,
para uma dada relação, os efeitos sequenciais e 4. Princípios básicos na construção
imediatos observáveis a nível do comporta- do pensamento social
mento” (p. 34). Por exemplo, é nesta linha que
se pode inserir o estudo da facilitação social O pensamento social que produz significa-
realizado por Zajonc (1965) (ver Capítulo VIII, dos, explicações e avaliações partilhados sobre
Estruturas e dinâmicas de grupo). objectos sociais, é “um momento de chegada”.
Esta mesma perspectiva pode, porém, assu- Passamos a descrever os processos que determi-
mir outra modalidade de observação, olhando nam esse “momento de chegada”.
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4.1. Comparação social ção e à criação de novas dimensões de compa-


ração e, em consequência, à inovação social.
Um dos processos básicos implicados na Da mesma forma, a teoria da identidade social de
construção do pensamento social é a compara- Tajfel (Tajfel e Turner, 1979) suscitou a hipó-
ção social. Como propôs Festinger (1954) na tese, que tem recebido grande apoio empírico,
sua Teoria da Comparação Social: “todo o de que a comparação entre grupos, visando
homem tem uma tendência para avaliar as suas garantir a especificidade ou distintividade das
opiniões e aptidões pessoais” e “na ausência de identidades grupais, pode levar à diferenciação
meios objectivos não sociais, uma pessoa avalia intergrupal de crenças (Vala, Garcia-Marques,
as suas opiniões e aptidões comparando-se com Gouveia-Pereira e Lopes, 1998). A procura de
outros” (pp. 117 e 118). A reflexão e a pesquisa semelhança e a procura da diferença são proces-
feitas entretanto permitiram sustentar a ideia de sos que orientam a comparação social e, desta
que a comparação social tem importância no forma, marcam o modo como pensamos colecti-
conhecimento, não só da realidade social, mas vamente e o que colectivamente pensamos.
também física (Hardin e Higgins, 1996).
As pessoas comparam entre si opiniões,
atitudes e crenças para reduzir a incerteza, inte- 4.2. Negociação
grando-se, assim, num universo de semelhantes,
num universo consensual de visões sobre o Com base na ilusão perceptiva de que um
mundo. Este processo pode levar a fenómenos ponto luminoso se move quando observada
de pensamento colectivo como o Pensamento de num espaço escuro (efeito autocinético), Sherif
Grupo (groupthink), ilustrado por Janis (1972),
(1936) realizou um conjunto de experiências clás-
e que mostra como a procura de consenso e
sicas (ver Capítulo VI). Nessas experiências
coesão nos grupos pode levar à construção de
era solicitado aos participantes que estimassem
crenças e decisões colectivas que chegam a
a distância que supostamente um ponto lumi-
ameaçar a própria sobrevivência do grupo (ver
noso havia percorrido. Sherif verificou que:
Capítulos VI, Processos de influência social e
a) quando estas experiências ocorriam em situa-
VIII, Estruturas e dinâmicas de grupo).
ção de grupo e os participantes não tinham pas-
A comparação social gera, assim, relações
sociais baseadas na semelhança de cognições, sado previamente pela mesma situação experi-
mas pode também gerar diferenciação. De facto, mental em situação individual, estes serviam-se
embora a comparação social tenha sido pensada, das estimativas dos outros para construírem o
sobretudo, como um processo interpessoal ou seu próprio quadro de referência perceptivo;
intra-grupal, alguns autores souberam alargá-la b) posteriormente, estes mesmos participantes,
às relações inter-grupais (ver Guimond et al., quando em situação individual, mantinham o
2007; Hogg, 2000). Uma vez olhada no campo quadro de referência que haviam construído
mais vasto das relações intergrupais, a compa- em grupo; c) aqueles participantes que, previa-
ração social pode gerar ou acentuar diferen- mente à situação de grupo, haviam construído
ciação de crenças entre grupos. Por exemplo, um quadro de referência perceptivo individual,
Lemaine (1974) mostrou como a comparação o abandonavam quando, em situação de grupo,
intergrupal pode levar à procura de diferencia- se verificava uma convergência na direcção
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das estimativas dos outros participantes. Esta 4.3. Identidade, consenso e diferenciação
experiência poderá ser associada ao processo de de crenças colectivas
construção de conhecimento, ilustrando como
este depende de factores grupais e, ao mesmo A teoria da identidade social de Tajfel (1972)
tempo, em certas circunstâncias, envolve ajus- e Tajfel e Turner (1979) é recorrentemente invo-
tamentos mútuos, convergências que resultam cada para explicar os fenómenos de discri-
de uma negociação implícita. Aliás, esta orienta- minação e antagonismo entre grupos. Mas esta
ção para a convergência é mais provável quando teoria oferece igualmente bases para o enten-
os membros do grupo experienciam algum sen- dimento da construção do pensamento social,
timento de identificação com o grupo (Abrams, normalmente, a partir da hipótese segundo a
Wetherell, Cochrane, Hoff e Tuner, 1990). qual os grupos procuram uma diferenciação
A negociação é fundamental na construção positiva entre si, o que levará os seus membros
do conhecimento colectivo e é nesta linha que a diferenciarem e investirem de mais valor as
pode ganhar sentido o facto de alguns estudos suas crenças comparativamente às dos exo-
terem mostrado que a simples partilha de grupos (e.g., Jetten, Spears e Manstead, 2001).
informação aumenta a percepção de validade Da mesma forma, a partir da teoria da auto-
subjectiva dessa informação (Hardin e Higgins, categorização (Turner et al., 1987), uma refor-
1996). Da mesma forma, a experiência clássica mulação da teoria da identidade social original,
de Lewin (1943) sobre a mudança de hábitos foram desenvolvidos modelos que ajudam a
alimentares mostra também que a partilha de compreender as bases grupais e intergrupais do
informação e a discussão são fundamentais para pensamento social. É o caso, por exemplo, do
mudar e cristalizar novos comportamentos. conceito de meta-contraste, segundo o qual o
Esta dimensão de negociação associada ao protótipo (de atitudes, sentimentos, comporta-
pensamento social não pode porém deixar mentos) que define um grupo procura maximi-
esquecer a dimensão de poder e coercividade que zar as diferenças entre o endogrupo e outros
está igualmente presente na construção e manu- grupos e, ainda, a minimizar as diferenças den-
tenção do conhecimento colectivo. As normas tro do endogrupo (Turner, 1987). No quadro da
que regem a dinâmica dos grupos (e. g., França e análise da identidade como um dos princípios
Monteiro, 2004; Marques e Paéz, 1994) e as organizadores do pensamento social, importa
várias modalidades de poder (ver French e então discutir duas questões: a) as categorias
Raven, 1959) constituem limites à negociação sociais e os grupos a elas associados como um
social do significado e impõem-se ao conhe- produto do pensamento social; e b) a identifi-
cimento emergente (e. g., Batel e Castro, 2009; cação com os grupos sociais como determinante
Howarth, 2006). As representações colectivas da diferenciação social de crenças2.
no sentido de Durkheim (1898), quer dizer, Tomemos, como ponto de partida, o pro-
representações em larga medida indiscutíveis, cesso de categorização social e a génese psico-
são um tipo de representações que dificulta a lógica dos grupos sociais. É no quadro da
emergência de novas representações sobre os relação entre a categorização e a identidade que
objectos sociais. Tajfel (1972) define a identidade social como o

2
Retomamos aqui uma proposta teórica já enunciada na 4.ª edição desta obra (Vala, 2000).
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reconhecimento da pertença a certos grupos ou social (Festinger, 1954) e de identificação (Tajfel,


categorias sociais, reconhecimento esse que é 1972) que podemos entender como os indiví-
acompanhado de significações emocionais e duos aprendem, integram e avaliam os atributos
avaliativas. Os grupos de identificação são o que tornam uma dada categoria distinta de
resultado não só de auto-categorizações (Turner, outra, ou que dão sentido à identidade social
1985), mas de definições estabelecidas a partir (Tajfel e Turner, 1979). Podemos, então, dizer
do exterior (Deschamps e Clémence, 1990; Tajfel, que quando os indivíduos respondem à pergunta
1972). Neste sentido, Brown (1988/1994) propõe «quem sou eu?» (Zovalloni, 1972), não só se
que, do ponto de vista psicológico, “um grupo definem em termos de pertenças categoriais
existe quando duas ou mais pessoas se auto- como, também, e simultaneamente, se atribuem
-definem como membros de uma categoria, e normas, valores e representações percebidas
quando a existência dessa categoria é reconhecida como distintivas dessas pertenças. Isto é, a res-
por, pelo menos, um outro” (p. 2). Esta definição posta à pergunta «quem sou eu?», encerra a
corresponde bem à posição de Tajfel, para quem resposta a uma outra pergunta: «O que significa
um grupo só existe em relação a outros. ser membro deste grupo?». A crença de que um
Entendidos desta forma, os grupos são o grupo existe, e de que se é membro dele, surge,
resultado de uma acção comunicativa, são assim, associada com crenças acerca das repre-
formações simbólicas (Scott, 1988). Ou seja, as sentações normativas desse grupo e sobre o
identidades e os grupos não são essências ou mundo (Bar-Tal, 1990).
entidades, são construções sociais essenciali- Olhemos agora a outra face desta mesma
zadas e objectivadas no processo de construção moeda. Até aqui considerámos que, quando uma
social do conhecimento sobre os fenómenos pessoa se auto-atribui uma dada pertença
sociais e os grupos humanos (Allport, 1954; categorial, faz decorrer dessa pertença deter-
Corneille e Leyens, 1994; Rotbarth e Taylor, minadas visões do mundo. Da mesma forma,
1992). A própria ideia de continuidade das cate- quando a alguém é atribuída, por outrem, uma
gorias sociais (como, por exemplo, a de nação) é determinada posição categorial, espera-se dessa
o resultado do processo de essencialização e pessoa atributos e crenças concordantes com a
objectivação próprios do senso comum. A dimen- posição em que foi categorizada. Neste caso,
são processual dos grupos e das identidades estaríamos em presença do efeito das profecias
torna-se, ainda, saliente se considerarmos a pes- auto-confirmatórias (self-fulfilling profecies)
quisa sobre a actualização contextual das cate- (Merton, 1957), com dois tipos de conse-
gorias sociais realizada no quadro da teoria da quências, sublinhadas por Levine, Resnik e
auto-categorização (ver Oakes et al., 1994 e o Higgins (1993): por um lado, atribuir a uma
capítulo IX sobre os estereótipos) e, mais pessoa uma dada pertença categorial cria a
claramente, na compreensão da construção das expectativa de que essa pessoa possui, de
categorias sociais através da linguagem e das facto, determinadas crenças; e, por outro lado,
práticas sociais (Reicher e Hopkins, 2001). quando uma pessoa vê ser-lhe atribuída uma
Se o processo de categorização social ajuda a posição social, essa pessoa é levada a ques-
compreender a construção dos grupos sociais e tionar a imagem própria e tende a criar expecta-
a identificação com esses grupos, é através da tivas sobre si concordantes com a identidade
articulação entre os processos de comparação hetero-atribuída.
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579

5. Pensamento social, cognição social 6. As representações sociais


partilhada e representações sociais
A segunda parte do presente capítulo visa
O caminho que temos vindo a percorrer visou expor a origem da perspectiva das represen-
mostrar como a perspectiva clássica da cognição tações sociais e apontar detalhadamente as
social necessita de ser completada por visões da dimensões, orientações teóricas, metodologias
actividade cognitiva que nos levem para lá do mais usadas e temas de estudo desta abordagem
simples processamento de informação (Varela, do pensamento social. Em primeiro lugar,
1990). De facto, a cognição social, na sua apresenta-se a origem do conceito, a sua defini-
expressão dominante, acentua os factores intra- ção e formas de elabo-
individuais implicados no processamento de ração. De seguida, mos-
informação. Contudo, uma modalidade mais tra-se como a teoria
recente da cognição social tem estudado a cogni- foi evoluindo e como
ção socialmente partilhada (Higgins, 1992; Hinsz, diferentes perspecti-
Tindale, e Vollrath, 1997; Levine e Higgins, vas dentro dela vão
2001; Nye e Brower, 1996; Resnick, Levine, e tentando responder a
Teasley, 1991; Thompson e Fine, 1999). Nesta perguntas específicas.
Serge Moscovi
perspectiva, a unidade de análise não é já o
indivíduo como processador de informação, mas
6.1. Origens do conceito de representação social
são as interacções interpessoais ou grupais
envolvidas na produção de conhecimento que
permitem resolver um problema, negociar ou A primeira questão empírica:
tomar uma decisão conjunta. Esta negociação representações sociais da Psicanálise
pode levar à produção de conhecimento local e
transitório, mas pode também produzir formas O conceito de “Representação Social” foi
de entendimento estáveis e consensuais com cunhado por Serge Moscovici na sua dissertação
consequências na interacção social (Conley, de doutoramento, intitulada “La Psychanalyse:
Rabinowitz, Hardin, 2010). Segundo Tindale e son image et son public”, publicada em 1961,
Kameda (2000), esta nova visão da cognição em Paris, e reeditada com o mesmo título em
social foi construída a partir de duas grandes 1976 e em 2000. É neste trabalho que se encontra
correntes de pensamento: o conceito de iden- a origem quer do conceito de Representação
tidade social ou colectiva (Tajfel e Turner, 1979), Social, quer daquela que posteriormente viria a
e o conceito de representação social proposto por ser chamada Teoria das Representações Sociais3.
Moscovici (1961/2000). Passamos a analisar, Conceito e teoria, em conjunto, originaram uma
então, o conceito e a teoria das representações abordagem, ou perspectiva, da Psicologia Social,
socais. baseada nas premissas já identificada na Figura 1.

3
O primeiro texto publicado em que Moscivici fala de “um esboço de uma teoria das representações sociais” data
de 1981.
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580

O trabalho inicial pretendia responder ao Oriundo de um país – a Roménia – onde este


objectivo de entender, na França dos anos 50, o fenómeno de transformação cultural era menos
processo e os resultados da entrada em cena das visível, Moscovici, que passou a viver em Paris
ideias da psicanálise. Como é sabido, as ideias a partir de 1947, optou por abordá-lo na tese de
de S. Freud – durante mais de quarenta anos por doutoramento. Como refere o próprio, as
ele apresentadas regularmente num vasto con- discussões sobre a psicanálise eram, na época,
junto de publicações – interessaram, de início, claramente relevantes na sociedade francesa: em
apenas a conjunto muito restrito de especialistas três anos (1953-1956), 230 jornais e revistas não
(o 1.º Congresso Internacional de Psicanálise, especializados publicaram cerca de 1600 artigos
realizado em 1908, em Salzburg, teve cerca de sobre a psicanálise (Moscovici, 1961/2000).
40 participantes). No entanto, depois das confe- O estudo abordou, então, a forma como as
rências que Freud, em 1910, foi convidado a pro- noções psicanalíticas haviam atingido a socie-
nunciar nos EUA, a popularidade das suas ideias dade, tinham entrado nas conversas quotidianas
começou a aumentar, não só entre os especialistas, e gerado novas práticas e formas de pensar.
como também entre o público em geral. Durante
Analisou ainda como, neste processo, as noções
as décadas de 40 e 50, a influência das ideias
psicanalíticas tinham assumido versões diferen-
psicanalíticas constituiu, em algumas sociedades
tes em grupos diferentes, sofrido alterações
ocidentais, um verdadeiro fenómeno de transfor-
face às ideias originais de Freud e suscitado
mação cultural que ainda não se repetiu, ao mesmo
aceitação em alguns sectores e resistência em
nível, com nenhuma outra teoria psicológica.
outros.
Recordem-se alguns indicadores deste
Moscovici (1961/1976) examinava, assim,
impacto: as ideias freudianas influenciaram um
um fenómeno muito característico das nossas
movimento artístico com expressão nas artes
plásticas e na literatura (o Surrealismo); forma- sociedades, que é o facto de a ciência propor
taram guiões de filmes de Hollywood (como o de constantemente novos objectos de pensamento
Spellbound4, de A. Hitchcock); fizeram com que que desencadeiam um trabalho de reflexão nas
a Liga das Nações em 1932 convidasse Freud sociedades e nos grupos (Moscovici, 1976).
para, em Cartas Abertas, debater com A. Einstein Desta forma, ele procurava entender como é
a relação entre a natureza humana e a guerra. que a inovação de origem científica afecta a
As ideias freudianas levaram ainda milhares de cultura e pode contribuir para a mudança social
indivíduos aos consultórios dos psicanalistas e e cultural (Moscovici e Marková, 2000, p. 227),
renovaram o vocabulário psicológico de incon- alterando o pensamento e o conhecimento
táveis habitantes do planeta, os quais, sem jamais social. Em síntese, portanto, o primeiro estudo
terem pessoalmente lido uma linha de Freud, de Moscovici sobre a representação social da
passaram a usar nas suas conversas de todos os psicanálise focou-se nos processos em função
dias expressões como “trauma de infância”, dos quais diferentes versões da psicanálise
motivações “inconscientes”, desejos “reprimi- haviam sido criadas, e os factores que haviam
dos” ou “complexo de Édipo mal resolvido”. contribuído para a sua diversidade.

4
“A casa encantada”, na tradução portuguesa.
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581

A primeira questão conceptual: dar conta da diversidade de ideias e de modos de


representações colectivas versus sociais vida das sociedades actuais.
Assim, a primeira modificação que o con-
Para abordar o complexo fenómeno da ceito de representação social introduz relati-
apropriação social da psicanálise, Moscovici vamente, ao de representação colectiva, é
constatou, desde o início, que era necessária assumir que os modelos que servem para
uma teoria que, simultaneamente, levasse em explicar a permanência têm, também, que
conta dimensões sociais e psicológicas e expli- explicar a mudança e identificar os processos
casse, tanto o consenso, como a diversidade. que interligam ambas. Esta ideia, hoje muito
Destas duas constatações decorrem duas altera- central para a psicologia cultural (e. g., Bruner,
ções efectuadas por Moscovici à noção de 2002; Castro e Batel, 2008; Kashima, Klein e
representação colectiva (Durkheim, 1898), à Clark, 2007), focaliza a nossa atenção num
qual foi buscar inspiração para a ideia de repre- facto que a noção de representação colectiva
sentação social. não consegue teorizar. Trata-se do facto de a
A noção de representação colectiva, desen- cultura não ser apenas um sistema relativamente
volvida por Durkheim (1898) e muito influente estável de significados, mas também um
na sociologia, pressupunha que as formas sistema dinâmico, permanentemente constituído
características de organização da vida social, em e mantido em funcionamento – e, portanto, em
cada sociedade, originam formas de pensar adaptação – através de micro-processos de
também características – as representações produção de significado, contextualmente pro-
colectivas. Estas representações impõem-se aos duzidos, e que são da ordem da interacção e da
indivíduos, mesmo que estes não tenham cons- comunicação (Giddens, 1979; Jovchelovitch,
ciência disso, e justificam as regularidades 2008; Kashima, Klein e Clark, 2007). Vejamos
duradouras que encontramos nas sociedades e um exemplo: os processos de representação
nas culturas. As representações colectivas, social estão implicados na construção das
assumidas como uma realidade social indepen- relações de género (Amâncio e Oliveira, 2006)
dente dos indivíduos, podiam assim ser inves- que variam com as culturas – algumas delas
tigadas como determinando outros factos do estabelecem uma diferenciação marcada e
mesmo nível social. Contrariamente, Moscovici rígida entre os papéis de pai e de mãe, enquanto
(1976) propôs que a noção de representação em outras eles apresentam maiores semelhan-
colectiva tinha dificuldade em dar conta de uma ças. Estes papéis não poderiam, porém, ser
realidade mais característica do tempo presente mantidos em funcionamento e adaptação sem as
do que de sociedades anteriores: o facto de, nas inúmeras interacções que ocorrem quotidiana-
nossas sociedades, coexistir uma grande plurali- mente nas famílias e nas quais eles são, perma-
dade de ideias, nela convivendo, por exemplo, nentemente, quer contestados, quer reafirma-
diferentes modos de conceber quais as melhores dos, a propósito de decisões tão banais como as
formas de educar os filhos, o que é um bom que estabelecem quem se encarrega de ir buscar
líder, quais os fins mais válidos que podemos os filhos à escola, escolher o local de férias,
prosseguir como sociedade, etc. Em suma, ou fazer o almoço de sábado. Para estas
aquela noção foi considerada insuficiente para interacções quotidianas há macro-“balizas”
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culturais relativamente estáveis – que incluem, que ainda não tiveram tempo para sedimentar,
por exemplo, as representações sociais do que é por serem “novas”. Muitas destas “novas”
ser pai ou mãe, as quais são alvo, quer de representações são continuamente fornecidas à
reforços, quer de negociações e contestações sociedade pela ciência, pelos seus saberes e
contextuais (Castro e Batel, 2008; Monteiro e pelos seus praticantes. O conceito de represen-
Castro, 1996). O resultado destas negociações tação social vai ser, assim, um instrumento para
vai assegurando, nalguns casos, a estabilidade, e analisar como se modifica o senso comum ao
noutros a mudança social, que pode por sua vez ser alimentado pelas inovações científicas, e
ser mais lenta ou mais radical. para examinar como as representações de certos
Uma síntese das ideias acima expostas pode objectos – como a infância, a doença mental ou
ser encontrada na seguinte afirmação: “As a sexualidade – se vão modificando por influên-
pessoas perguntam: em que é que o conceito de cia de determinadas ideias científicas.
representações sociais é diferente entre Moscovici Porém, como foi sendo tornado claro com o
e Durkheim? Espero, assim, que a resposta a tempo, o interesse desta abordagem pelas
esta pergunta esteja agora clara. Ao estudar as representações em construção não se esgota no
representações sociais é necessário estudar, estudo da forma como a ciência transforma o
tanto a cultura como a mente individual” senso comum. Pelo contrário, o projecto das
(Moscovici e Marková, 2000, p. 255), e ainda as representações sociais é examinar como se
“redes de pessoas e das suas interacções” (p. 256). modifica o senso comum ao ser alimentado, não
Se tomarmos em conta estas precisões, vemos só pela ciência, mas também por todos os outros
que estudar as representações sociais nos obriga sistemas sociais; e analisar como tudo isto
a articular, em simultâneo, três níveis de análise: ocorre por meio da comunicação, que põe as
o cultural, o interactivo e o individual (Castro e novas ideias ou propostas em circulação na
Batel, 2008). Moscovici considera que esta sociedade e, ao mesmo tempo, as vai alterando.
articulação tem como precursores clássicos das No presente capítulo consideramos que esta
ciências sociais não só Durkheim, mas também segunda reformulação introduzida pelo conceito
Weber e Simmel, como mostrou no seu livro, de representação social relativamente ao
hoje clássico, A Invenção da Sociedade conceito de representação colectiva – a impor-
(Moscovici, 2011). tância conferida à forma como ideias ou
acontecimentos inovadores afectam e alteram a
cultura e o conhecimento social – é muito
A segunda questão conceptual: relevante. De facto, é esta reformulação que
inovação e representações sociais em mutação possibilita ao conceito de representação social
tornar-se um instrumento de análise da mudança
A segunda transformação que Moscovici social e cultural, bem como da resistência a esta
introduziu face no conceito de representação (Castro e Batel, 2008; Howarth, 2006; Moscovici,
colectiva refere-se ao facto de as representações 1972).
sociais se interessarem pelo estudo das Assim, neste capítulo temos em conta que as
representações em construção (“in the making”) representações sociais e o conhecimento social
(Moscovici, 1984b). Estas são representações se modificam por acção de inovações oriundas
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da esfera científica, como aconteceu com a da medicina ocidental – de forma a compensar


psicanálise (Moscovici, 1976). No entanto, os limites ou falhas de cada um.
assumimos também que as representações se Também como exemplo de como a convi-
modificam: (1) em função de inovações vência entre diferentes sistemas de saber altera
oriundas da esfera tecnológica (e. g., Bauer e representações, atenda-se ao estudo da forma
Gaskell, 2002; Castro e Gomes, 2005; Wagner, como em Patna, na Índia, as representações da
Kronberger e Seifert, 2002); (2) devido a “doença mental”, da loucura e dos seus trata-
novidades surgidas na esfera pública, que são mentos vão fusionando ideias e práticas tradicio-
muitas vezes protagonizadas por movimentos nais com ideias e remédios da psiquiatria ociden-
sociais minoritários, como o movimento ecolo- tal (Wagner et al., 2000), embora a expressão de
gista (e. g., Arruda, 1994; Castro, 2002; Lima, ideias tradicionais seja preferida no contexto
Cabral, Vala e Ramos, 2003), ou certos grupos privado, da casa, e a de ideias da psiquiatria em
de extrema-direita (Orfali, 2006); (3) graças ao contextos mais públicos.
debate, contacto e convivência entre grupos Como exemplo do impacto da inovação
diferentes nas nossas sociedades multi-culturais oriunda de movimentos minoritários, vejam-se
(Jovchelovitch e Gervais, 1999; Wagner et al., os estudos de Orfali (2006) sobre a forma como
2000); (4) pela pressão de transformações os franceses – depois do choque causado pelo
estruturais no ambiente (Flament e Rouquette, aumento de votos na Frente Nacional nos anos
2003); (5) ou ainda estimuladas por inovações 80 – começaram a aceitar a existência deste
legislativas e políticas públicas (e. g., Castro e partido enquanto parte da vida política francesa,
Batel, 2008; Jensen e Wagoner, 2009). ainda que a maioria dos cidadãos não tenha
Para que se torne mais claro como diferentes mudado a sua avaliação relativamente a partidos
formas de inovação alteram as representações de extrema-direita.
sociais, vejamos alguns exemplos. Veja-se, ainda, como as inovações legisla-
Os estudos de Jovchelovitch e Gervais tivas que implicam um maior envolvimento das
(1999; Gervais e Jovchelovitch, 1998) sobre a comunidades na tomada de decisões que as
forma como a comunidade chinesa a residir em afectam são re-apresentadas e postas em prática
Londres vai alterando os seus hábitos e por técnicos e decisores de uma forma que
representações relativamente à alimentação, à minimiza as novidades nelas implicadas (Castro
saúde e à utilidade do Sistema Nacional de e Batel, 2008).
Saúde inglês, ilustram como a convivência entre
grupos diferentes nas nossas sociedades multi-
culturais altera as representações e o conheci- Uma síntese
mento partilhado. Estes estudos sugerem que
“os Chineses (residentes em Londres) conse- – (1) o conceito de representação social
guem integrar diferentes sistemas de conheci- retoma uma noção prévia – a de representação
mento e incorporar novas informações prove- colectiva – para a transformar. É, assim, uma
nientes de tradições diversas” (p. 66). Sugerem, proposta que repete e que diferencia, num
ainda, que a comunidade Chinesa em Londres mesmo movimento, apontando desde logo para
usa ambos os sistemas – o tradicional chinês e o a ideia de que não se pode explicar a perma-
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CAIXA 2

Definições de representações sociais

“Um conjunto de conceitos, proposições e explicações criado na vida quotidiana no decurso da


comunicação inter-individual” (Moscovici, 1981, p. 181).
“Uma modalidade de conhecimento socialmente elaborada e partilhada, com um objectivo prático e
contribuindo para a construção de uma realidade comum a um dado conjunto social” (Jodelet, 1989a, p. 36).
“Mais do que crenças consensuais, as representações sociais são princípios organizadores de
natureza variada, que não correspondem necessariamente a crenças partilhadas, uma vez que podem
resultar em posições diferentes, ou mesmo opostas, de indivíduos em relação a pontos comuns de
referência” (Doise, Clémence e Lorenzi-Cioldi, 1993, p. 4).
“Um conjunto organizado de cognições relativas a um objecto, partilhadas pelos membros de uma
população homogénea em relação ao mesmo objecto” (Flament, 2003, p. 37).

nência sem a mudança e que, entre o novo e o Caixa 2). Em seguida, serão abordados: (1) os
velho, o pensamento social elabora um tecido processos de objectivação e ancoragem, através
contínuo de significados; dos quais se constituem as representações
– (2) o conceito de representação social sociais; (2) e as três formas de comunicação das
indica também que não se pode explicar o representações, que são também formas através
individual sem o social, nem vice-versa, e que das quais são elaboradas: difusão, propagação e
não há corte entre um e outro nível; propaganda.
– (3) esta abordagem interessa-se especifi-
camente pela forma como as fontes de inovação Um conceito e uma teoria
transformam o conhecimento social e as
culturas, e pelos processos que contribuem quer As definições da Caixa 2 apresentam a
para acelerar quer para resistir à mudança; representação social como um conceito que
– (4) esta abordagem confere particular remete para um fenómeno (Moscovici, 1984b),
relevo à comunicação e ao discurso quotidia- ou seja, como algo que está no mundo e que
nos, pois estes constituem os meios através dos procuramos entender e explicar. Indicam ainda
quais as representações se elaboram, difundem que esse fenómeno é o resultado das tentativas
e transformam. humanas de produzir sentido, utilizado para
comunicarmos e coordenarmos as nossas
acções de forma a podermos viver em comuni-
6.2. Representação social: definição dade (Wagner, 1998). No entanto, a expressão
e construção “representação social” refere-se também a uma
teoria (Jovchelovitch, 2008; ver também Castro,
Definição 2002). Enquanto teoria em sentido lato, este
quadro analítico indica quais os requisitos epis-
Vamos então apresentar algumas definições temológicos necessários para abordar e entender
clássicas do que é uma representação social (ver as representações.
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Uma definição aberta Uma outra dimensão a ter em consideração é


que o conceito de representação social é mais
O conceito de representação social foi abrangente e englobante do que os de valor,
frequentemente criticado por ser impreciso crença, esquema ou atitude (Castro, 2006;
(Jahoda, 1988). As respostas de Moscovici a Doise, Clemence e Lorenzi-Cioldi, 1993; Jaspars
estas críticas foram no sentido de considerar e Fraser, 1984; Moscovici, 1976). Neste sentido,
essa imprecisão como positiva e necessária. para entender as representações, temos que avan-
Moscovici (1972, 1976, 1988, 1989) é veemente çar para a análise de como crenças, valores e
defensor da necessidade de manter o conceito atitudes estão agrupados ou inter-associados,
aberto5 e de não buscar uma operacionalização formando constelações organizadas de sentido, a
fechada que geraria, apenas, mais um conjunto que podemos efectivamente chamar represen-
de informações fragmentárias. Assim, para este tações (Doise, Clemence e Lorenzi-Cioldi, 1993).
quadro analítico são bem vindas ligações com
outros conceitos, quer os mais, quer os menos
abrangentes, e conexões com as outras ciências 6.3. A elaboração das representações sociais
sociais. Moscovici (1989) torna claro que, ao
partir do conceito de representação, propõe a O aspecto destacado na segunda definição
Psicologia Social como uma ciência social, tal apresentada na Caixa 2 remete-nos para a com-
como a Antropologia ou a Sociologia, e não ponente dinâmica e processual do conceito de
como uma ciência natural. representação social. Ou seja, para a ideia de
Mais recentemente, Liu (2004) sugere que o que o senso comum se modifica pela emergên-
conceito de representação social seria um tipo cia de novas representações, as quais passam a
de conceito “sensibilizante” (sensitizing) e não circular na sociedade e vão reformulando a
um conceito “definitivo”, uma distinção que o compreensão e a construção partilhada de certos
autor vai buscar a Blumer (1969). Um conceito objectos sociais, como a infância (Ariès, 1960;
sensibilizante “oferece ao utilizador orientação De Rosa, 1997; Monteiro e Castro, 1997), a mater-
e referências para abordar fenómenos empí- nidade (Badinter, 1980), a loucura e doença men-
ricos. Enquanto os conceitos ‘definitivos’ ofere- tal (Jodelet, 1989b, Morant, 1995, 2006), a vio-
cem descrições do que se pode esperar observar, lência (Vala, 1981), ou a alimentação (Lhalou,
os conceitos ‘sensibilizantes’ oferecem indica- 1998).
ções sobre a direcção na qual observar” (Liu, Esta componente processual das representa-
2004, p. 148), o que será mais compatível com ções sociais tem duas vertentes. A primeira
um objecto de estudo como as representações propõe investigar a génese ou origem das repre-
sociais: que são históricas, dinâmicas e em sentações. A segunda vertente implica encon-
mutação constante (ver também, Gergen, 1973). trar formas de articular o estudo das repre-

5
Claro que este não-fechamento não é característica exclusiva deste conceito. Um conceito tão central na antropologia
como o de cultura foi aceitando definições sucessivas e ainda hoje não há total consenso sobre ele. E mesmo sobre um
conceito como o de esquema, de uma corrente – a Cognição Social – mais preocupada com definições operacionais, é
dito: “O conceito geral de esquema é provavelmente o certo, mas ainda tem que ser apropriadamente caracterizado ou
formulado” (Markus e Zajonc,1985, p. 149).
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sentações com a comunicação, em contextos A objectivação


concretos, que podem ser os de uma interacção
face a face, ou o dos debates internos que A objectivação é o processo que permite
acompanham, por exemplo, tomadas de decisão. tornar real um esquema conceptual e dar a uma
A comunicação pode ainda ser mediada, isto é, ideia uma contrapartida material. Para Moscovici
ocorrer através dos meios de comunicação (1976, cfr. p. 107) a objectivação é conseguida na
social, como a imprensa, a televisão, ou a internet sequência de três etapas – a construção selectiva,
(Marková, 2003). Este duplo entendimento da a esquematização e a naturalização. De acordo
comunicação – como tendo uma vertente inter- com Vala (2000), através da objectivação os
pessoal e outra mediada – está desde logo elementos constitutivos das representações
patente na organização do livro de Moscovici adquirem materialidade, “tornando-se expressões
sobre as representações da psicanálise, onde de uma realidade pensada como natural” e, como
estas foram estudadas através de duas vias tem sido proposto, as realidades pensadas como
diferentes. naturais são mais difíceis de alterar, adquirindo
Em primeiro lugar, as representações foram uma estabilidade maior no pensamento social
estudadas através da análise de seis grupos – um (Rothbart e Taylor, 1992).
grupo representativo da população parisiense, Moscovici e Hewstone (1984), numa primeira
outro de “classes médias”, outro de “profis- análise detalhada de como o senso comum ela-
sionais liberais”, outro de “operários”, outro de bora representações sociais a partir de material
estudantes universitários e outro ainda de alunos científico, propõem que a objectivação pode
das escolas técnicas –, abordados por questio- desdobrar-se em vários sub-processos (Wagner
nário e, em alguns casos, com entrevistas. e Hayes, 2005) que podem ser estendidos a outros
Em segundo lugar, este estudo recorreu a domínios que não o da recepção da inovação
uma análise de conteúdo dos artigos sobre a psi- científica.
canálise publicados na imprensa francesa. Nesta Os sub-processos referidos são os seguintes:
segunda parte, foram examinadas a imprensa
genérica (ex: France Soir, Elle), as publicações (a) personificação – este sub-processo refere
católicas (ex: La Croix) e as comunistas (ex: os casos em que figuras públicas ou um grupo
L’Humanité). Da análise destes três tipos de social personificam uma ideia complexa, ou um
publicações, Moscovici conclui que cada um problema multidimensional, substituindo-se a
recorre a uma modalidade de comunicação estes e simplificando-os. Exemplos clássicos são
diferente e que estas concretizam diferentes a teoria da relatividade personificada em Einstein,
representações da psicanálise. a psicanálise personificada em Freud e a teoria da
Abordaremos agora os processos psicológicos evolução em Darwin. Exemplo clássico é ainda a
e as modalidades de comunicação presentes na SIDA personificada inicialmente no grupo dos
construção das representações sociais. homossexuais6. Veja-se ainda os vários tipos de

6
Hoje em dia a SIDA não é já tão simplisticamente personificada neste grupo, mas não há dúvidas que restam ainda
no pensamento social traços desta equivalência: um exemplo é o facto de, nosso país, os homossexuais serem ainda
impedidos de doar sangue.
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587

CAIXA 3

Objectivação

Num estudo sobre a forma como o processo de objectivação do suicídio ocorre na imprensa,
considerou-se como exemplares do suicídio as individualidades que se suicidaram, ou que fizeram
tentativas de suicídio. Nos artigos analisados, identificaram-se 14 personagens, referenciadas em 25
artigos, que foram agrupadas em três categorias: figuras públicas (Maxwell e Diana Spencer), artistas
(Marilyn Monroe, Romy Schneider, Miroslava, Elis Regina, Soares dos Reis) e escritores (Camilo
Castelo Branco, Florbela Espanca, Mário de Sá Carneiro, Hemingway, Jack London, Sylvia Plath e
Césare Pavese). Para conhecer a representação do suicídio que estes tipos de exemplares objectivam,
foi realizada uma análise factorial de correspondências.

O primeiro eixo desta AFC opôs os artistas, qualificados pelos atributos famoso, fascinante e lindo,
às figuras públicas, qualificadas pelos atributos desesperado e pressionado. O segundo eixo opôs as
figuras públicas (desiludido e pressionado) aos escritores (deprimido e apaixonado). Estamos, assim,
perante três tipos de suicídio caracterizados por dinâmicas diferentes: a depressão e a paixão, como uma
expressão de uma dinâmica interna perturbada; a pressão externa que faz do suicida uma vitima; e o
sucesso que, como sugerem outros resultados, é a expressão de alguém que se excede e é vítima deste
excesso.
Texto elaborado por Olga Ordaz, a partir do seu estudo sobre a representação social do suicídio na
imprensa (Ordaz e Vala, 1997).
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suicidas e de motivações para o suicídio, perso- significado antigas são usadas para conferir
nificados em figuras públicas, artistas ou sentido a uma doença nova e não familiar.
escritores emblemáticos (ver Caixa 3); Outro exemplo do estudo da ancoragem pode
ser encontrado numa pesquisa sobre a representa-
(b) a figuração – esta refere-se ao facto de ção da manipulação genética e dos Organismos
imagens e metáforas substituírem conceitos e Geneticamente Modificados (OGM) na imprensa
ideias complexas (ver Caixa 4); portuguesa (Castro e Gomes, 2005). O estudo
partia da ideia de que diferentes notícias e
(c) por fim, há ainda o sub-processo de jornais iriam também usar categorias diferentes
ontologização, que consiste em dotar de exis- para ancorar a novidade que os OGM represen-
tência concreta (ser) ideias, qualidades, ou tavam. Por sua vez, ancoragens diferentes iriam
conceitos que obviamente não a possuem. posicionar os OGM em campos de significado
diferentes, uns mais positivos, outros mais
negativos. Os resultados mostraram que a anco-
A ancoragem ragem dos OGM e da manipulação genética no
domínio da saúde era feita em categorias e
Vejamos agora o que é a ancoragem. Este noções positivas, como progresso e ciência. Já a
processo está implicado na classificação de manipulação genética aplicada à agricultura e
ideias, coisas ou pessoas em categorias. O que é aos alimentos estava ancorada em categorias
social neste processo é a escolha das categorias negativas, como a de ideologia e o contraste
para ancoragem, ou a escolha dos conteúdos, natural/não-natural; e face a ela as posições
que é determinada pelo grupo: “observa-se que eram mais negativas. Vemos assim que as cate-
a direcção inicial, o ângulo a partir do qual um gorias de ancoragem escolhidas são deter-
grupo vai tentar lidar com o que não é familiar minantes. Uma vez que algumas são social-
será determinado pelas imagens, conceitos e mente mais valorizadas do que outras, a sua
linguagens partilhadas pelo grupo” (Moscovici, escolha constitui uma forma de uma comunica-
1981, p. 189; ver também Joffe, 2003). Con- ção aparentemente neutra conseguir veicular
ceitos e imagens são portanto projetados sobre o também avaliações (Castro e Gomes, 2005).
objecto não familiar que pode, a partir de então, A ancoragem e a objectivação são processos
ser reconhecido como parte do tempo, tradição intrinsecamente ligados. Wagner e Hayes (2005,
e memória de um grupo social (Jesuíno, 2008). pg. 216) sugerem que eles têm uma relação
A análise das representações da psicanálise temporal: primeiro, as categorias escolhidas
irá levar Moscovici (1976) a concluir que a para ancorar o que não é familiar seriam aquelas
ancoragem constitui uma rede de significados que o grupo melhor conhece e são mais funcio-
em torno da psicanálise por aproximação a nais para o grupo; posteriormente, estas mesmas
categorias já existentes, e orienta as conexões categorias serviriam como fonte das metáforas
entre esta e o meio social. Analisando as para a objectivação.
representações da SIDA na imprensa, quando a Por fim, há ainda que considerar que a noção
doença começou a aparecer, Marková e Wilkie de “ancoragem” pode ser analisada a partir de
(1987) vão mostrar como categorias de uma outra perspectiva: como é que os grupos e
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589

CAIXA 4
A objectivação através da metaforização
Num estudo experimental pediu-se aos participantes que avaliassem as características de duas
células – o espermatozóide e o óvulo – numa escala bipolar, na qual metade dos itens estava claramente
relacionada com estereótipos de género (pequeno-grande, fraco-forte, submisso-dominante), e a outra
metade (importante-pouco importante, negativo-positivo, feio-bonito) não o estava.
O tipo de orientação dos respondentes em relação aos papéis de género – liberal ou conservadora – foi
também avaliado, por meio de uma escala. Tal como esperado, e como se mostra na Figura, as
avaliações que os respondentes fizeram das características do espermatozóide e do óvulo diferiam de
acordo com a sua orientação ideológica. Os conservadores avaliavam as características do esperma-
tozóide como mais estereotipicamente masculinas (i.e., mais forte, mais activo e mais dominante); e as
do óvulo como mais esterotipicamente femininas (i.e., fraco, mais passivo, mais submisso), compara-
tivamente aos liberais (por exemplo, na Figura, MConservadores = 5.0 e MLiberais = 4.65 para o atributo
“dominante” aplicado ao espermatozóide). Relativamente aos atributos não estereotípicos (e.g.,
estúpido-inteligente) não se verificaram diferenças. Assim se mostra como os papéis geralmente atri-
buídos ao homem e à mulher numa relação sexual são transpostos para as propriedades do
espermatozóide e do óvulo, respectivamente.

Impacto da orientação ideológica e do tipo de célula na avaliação das características das células

Fontes: Texto e figuras adaptados de Wagner e Hayes (2005, p. 214).


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590

categorias sociais constituem princípios de distância em relação a eles, por exemplo,


ancoragem das representações, ou seja, como é através do uso da ironia e da referência a
que o posicionamento dos indivíduos na estru- especialistas (pg. 319,1976). Por estes
tura social orienta o pensamento social e a cons- motivos, o discurso não visa dar uma
trução de significado? Alguns autores (Breakwell, expressão estruturada à representação e
1993; Doise, 1992; Elcheroth, Doise e Reicher, por isso não é sistemático (pg. 326). Tam-
in press; Maia e Poeschl, 2004; Vala, 1993, ver bém não visa a criação de um compor-
também Vala, 2000) têm defendido que a forma tamento unitário, mas tão só falar e fazer
como nos posicionamos face a certas categorias falar de um assunto, e por isso deixa ao
sociais – aceitando-as ou contestando-as – leitor o cuidado de tirar as suas conclusões.
depende de como nos categorizamos e localiza- Por isso, o seu princípio normativo fun-
mos na estrutura social. Este aspecto sugere que damental é a moderação. Os jornais e
o entendimento do pensamento social e da sua revistas caracterizados pelo uso desta
interiorização tem muito a ganhar com uma modalidade pertencem em geral à imprensa
articulação mais aprofundada entre a teoria das generalista, de grande audiência, e assu-
mem-se como orgãos de transmissão de
representações sociais e a teoria da identidade
um saber comum que é necessário partilhar
social.
(exemplos no estudo de Moscovici sobre a
psicanálise: Elle e France Soir).
As modalidades comunicativas
• Propagação – O objectivo desta moda-
e a elaboração de representações
lidade é exercer pressão para a unifor-
A segunda parte do livro de Moscovici sobre a midade, tentando produzir uma norma,
representação social da psicanálise (1976), uma convergência em torno de uma
estudou, como mencionado, esta representação doutrina que seja aceitável. Procura-se
analisando a imprensa escrita. Ou seja, nesta estabelecer uma mediação entre um
segunda parte do livro, a representação é anali- objecto socialmente valorizado e um grupo
sada no quadro dos processos de comunicação definido, pois os seus fins são os de
social e da comunicação em geral. Foi neste organizar ou transformar uma teoria para a
contexto que Moscovici propôs as seguintes tornar compatível com os princípios que
modalidades de comunicação nas quais são fundam a unidade de um grupo. Esta
elaboradas as representações sociais: modalidade de comunicação propõe-se
ainda preparar e controlar os comporta-
• Difusão – O propósito principal desta mentos e antecipar-lhes o significado, sem
modalidade de comunicação é o de propor os impor directamente. A propagação visa
uma abertura na direcção de ideias e com- orientar e preparar mensagens estruturadas
portamentos possíveis, mas jamais impera- e explícitas, suficientemente claras para
tivos, e o de fazer circular a informação que possam ser utilizadas pelos membros
sobre opções disponíveis. Este propósito é do grupo. No estudo de Moscovici, o
alcançado dando aos temas uma diversi- exemplo desta modalidade de comunica-
dade de tratamentos e mantendo uma certa ção é a imprensa católica, onde os artigos
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discutem e justificam a psicanálise, pro- mento do papel que a contradição pode desem-
curando encontrar um denominador comum penhar na comunicação e apresenta diferentes
entre as bases do catolicismo e os da psica- formas de lidar com esta (Castro, 2005). Por
nálise. Uma visão da inovação que se ajuste exemplo, quando estamos perante um assunto
às normas do grupo seria o corolário deste relativamente ao qual existe a <crença A> e tam-
esforço. bém a <crença não-A>, as combinatórias lógicas
disponíveis são quatro, sendo três delas relevan-
• Propaganda – Na propaganda o estilo é tes. É possível argumentar a favor de uma e
concreto. De acordo com Moscovici contra a outra, ressaltando assim aspectos
(1976), este estilo aparece aquando da polémicos (Propaganda); é possível buscar a con-
existência de um conflito susceptível de ciliação e os aspectos mais consensuais, rede-
ameaçar a identidade de um grupo e a finindo as crenças <A> e <não-A> como não
unidade da sua representação do real. Esta sendo realmente contraditórias num nível super-
modalidade de comunicação desempenha, -ordenado (Propagação); e é possível reconhecer a
assim, uma função reguladora – afirmação diversidade, sem favorecer a <crença A> em
e procura do restabelecimento da iden- relação à <crença não-A>, apresentando ambas
tidade – e uma função organizadora do (Difusão) (ver Castro, 2002, 2005).
significado do objecto através de dicoto-
mias simplificadoras. Nestas dicotomias, a
situação é definida de forma a não apre- 6.4. O estudo das representações sociais:
sentar senão duas soluções possíveis – uma contributos para a compreensão do
boa e outra má – e a repetição é utilizada pensamento social sobre os problemas
como factor de homogeneização. A propa- do nosso tempo
ganda surge, então, como a modalidade de
comunicação de um grupo em situação de A partir dos anos 60/70 vários investigadores
conflito, tendo em vista a acção (pg. 442). franceses começaram a desenvolver a perspec-
No estudo de Moscovici mostra-se como a tiva das representações sociais – por exemplo,
imprensa comunista recorre a esta moda- Herzlich (1969), Doise (1972), Codol (1970),
lidade de comunicação para falar da Abric (Abric e Kahan, 1972), Flament (1967).
psicanálise, tratando-a como um corpo Moscovici divulgou-a também, quer em publi-
inimigo, e colocando-a num conjunto de cações de cariz mais reflexivo (por exemplo,
alternativas dicotómicas (França-América, Israel e Tajfel, 1972), quer em outras línguas
Ciência-Mito), que são mutuamente exclusi- (ver Farr e Moscovici 1984b; Forgas, 1981;).
vas e não se podem compatibilizar. A divulgação originou quer a expansão dos
trabalhos, quer algumas críticas (ver as críticas
Este entendimento das modalidades de de Jahoda, 1988; Potter e Litton, 1985; Potter e
comunicação assenta também no reconheci- Wheterell, 19987).

7
Para conhecer as respostas de Moscovici, ver os textos de 1989 e 1998; ver um sumário destes debates em Castro,
2003 e em Volklein e Howarth, 2005).
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CAIXA 5

Contributos para a compreensão do pensamento social:


exemplos de temas e problemas abordados nos últimos 20 anos

Os investigadores das representações sociais têm examinado a variedade das representações sobre
questões prementes do quotidiano, como as formas de pensar e lidar com o corpo (Goetz, Camargo,
Bertoldo e Justo, 2008; Jodelet, 1984), a saúde e a doença em geral (Jovchelovitch e Gervais, 1999),
o envelhecimento (Coudin e Paicheler, 2002; Wachelke e Lins, 2008), a doença mental (Belleli, 1994;
De Rosa, 1987; Morant, 2006; Wagner, Duveen, Thelma e Vermel, 2000;), a droga e a toxicode-
pendência (Echebarria et al., 1992; Valentim, 1998), e a violência para com as crianças (Pascoal e
Poeschl, 2004). Têm também estudado factores que põem a saúde em risco (Breakwell, 2000), como
o stress e o burn-out (Marques-Pinto, 2001), a SIDA (Camargo, 2003; Camargo, Bertoldo e Barbará,
2009; Comby, Devos e Deschamps, 1996; Markova e Wilkie, 1997), ou as doenças emergentes (Joffe
e Haarhoff, 2002).
Os estudos têm também analisado as diferentes formas de pensar a relação entre ciência e senso
comum (Nascimento-Schulze, 2006; Sá, Souto e Moller, 1996), as inovações tecnocientíficas
(Bauer e Gaskell, 1999; 2002; 2008; Farr, 1993; Gaskell et al., 2001; Joffe, 2003; Wagner,
Kronberger e Seifert, 2002), as inovações tecnológicas (Christidou, 2004; Contarello, 2003), e
como são apreendidas noções de origem científica, como a de mudança climática (Smith e Joffe,
2009), ou os OGM (Allain, Nascimento-Schulze e Camargo, 2009; Castro e Gomes, 2005).
Outro conjunto de estudos tem incidido sobre a dinâmica da estabilidade e mudança na esfera
pública, examinando a recepção de novos partidos (Orfali, 2006), o desenvolvimento de movimentos
sociais, como o feminista (Amâncio e Oliveira, 2006), ou o ecológico (Arruda, 1998; Castro, 2002), o
desenvolvimento de comportamentos pro-ambientais (Buijs, 2009; Castro, 2006; Devine-Wright,
2009), e de novas práticas agrícolas (Flament e Rouquette, 2003; Michel-Guillout e Moser, 2004), a
resistência ao racismo e à discriminação (Howarth, 2006; Moscovici e Perez, 1999) e o processo de
globalização (Poeschl e Viaud, 2008). Outros estudos têm procurado entender a recepção e a resistência
a inovações políticas e legislativas (Castro e Batel, 2008; Jensen e Wagoner, 2009; Tuffin e Frewin,
2008), nomeadamente as que procuram regular a sustentabilidade e a protecção da biodiversidade
(Castro e Mouro, 2011; Hovardas e Stamous, 2006; Mouro e Castro, 2010), ou os direitos humanos
(Spini e Doise, 1998; 2005).
Um conjunto de estudos tem também examinado as marcas do encontro entre grupos de diferentes
culturas na memória social (Cabecinhas e Cunha, 2003; Haas e Jodelet, 1999; Licata e Klein, 2010; Liu
e Hilton, 2005; Sá e Castro, 2005).
Além disso, continuaram ser abordados temas como a inteligência (Amaral, 1997; Faria e Fontaine,
1993; Poeschl, 2001; Snellman e Raty, 1995), a morte (Oliveira e Amâncio, 1998), o suícidio (Ordaz e
Vala, 1997), os sistemas económicos (Belleli, Morelli, Petrillo e Serino 1983; Jesuíno, 2003), os
conflitos sociais (Deschamps, Vala, Marinho, Costa-Lopes e Cabecinhas, 2005; Kalampalikis, 2007) e
relações de género (Amâncio, 1995; Duveen, 2001; Oliveira e Amâncio, 2006; Poeschl, Múrias e Costa,
2004) e o poder social (Vala, 1990).
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Visto que ocorreram nos anos 80, altura em Um segundo princípio na pesquisa sobre as
que se tornou irrefutável a heterogeneidade de representações sociais é o de que os estudos
abordagens existente na psicologia social devem incorporar uma importante componente
(Rijsman e Stroebe, 1989), os debates e críticas descritiva, de modo a evitar abordagens expli-
com que esta perspectiva teórica foi recebida cativas prematuras. A importância de reabilitar a
ajudaram a situá-la com maior clareza, estimu- descrição como forma de abordagem científica
lando uma maior clarificação da sua posição decorre, em primeiro lugar, da natureza dos
epistemológica. Assim, no final dos anos 80 objectos de estudo cuja definição é socialmente
podia falar-se nas representações sociais como partilhada, que têm significados reconhecidos
um domínio em expansão, para recorrer à numa cultura de que os investigadores também
expressão de Jodelet (1989), que apresenta nessa fazem parte (ver também Gergen, 1973; Rozin e
época uma bibliografia muito exaustiva dos traba- Royzman, 2001). A importância de reabilitar a
lhos realizados em representações sociais. descrição decorre ainda do estado de
Nos anos 90 e seguintes aprofundou-se o desenvolvimento da psicologia social, que está
debate com outros quadros teóricos (ver Deaux e longe de possuir teorias de síntese, capazes de
Philogene, 2000; Sugiman, Gergen, Wagner e integrar um vasto conjunto de dados experimen-
Yamada, 2008), reviram-se os trabalhos publica- tais por enquanto fragmentados (Moscovici,
dos (ver Jovchelovitch, 2007; Wagner e Hayes, 1989).
2005) e a perspectiva expandiu-se para a América A partir dos anos 90, alguns autores (ver
Latina. Neste contexto, é difícil propor neste Breakwell e Canter, 1993) defenderão que o
capítulo um recenseamento exaustivo dos temas e foco do debate metodológico deve deixar de
problemas tratados com recurso a este quadro. discutir quais as metodologias mais apropriadas
Fazemos, então, somente um apanhado que tem e passar a discutir como integrar informações
por principal objectivo mostrar a abrangência das provenientes de metodologias diferentes. Neste
contribuições da perspectiva, patente na variedade sentido, e no de privilegiar a descrição, os méto-
de temas e problemas tratados nos últimos 20 dos de análise multidimensional passam a ter
anos (depois de 1990) a partir desta perspectiva. mais destaque (ver os trabalhos pioneiros de
Este sumário é mostrado na Caixa 5. DiGiacomo, 1980; Vala, 1981; Doise, Clémence
e Lorenzi-Cioldi, 1993)8.
Uma segunda tendência, mais recente, nos
6.5. Metodologias de estudo das estudos levados a cabo no âmbito das represen-
representações sociais tações sociais consiste no recurso sistemático à
triangulação metodológica (Apostolidis, 2006).
O quadro das representações sociais tem Alguns projectos dos anos 90 e do começo dos
recorrido a metodologias variadas, com base no anos 2000 passaram a adoptar um formato de
princípio de que as metodologias devem ser investigação que combina três métodos: a análise
ajustadas aos objectivos de estudo e não têm de imprensa, a condução de grupos de discussão
obrigatoriamente de ser de um ou de outro tipo. ou entrevistas aprofundadas e os inquéritos a

8
São exemplos de métodos multidimensionais (multidimensional scaling) o Indiscal e a Análise Factorial de
Correspondências.
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amostras representativas, que, por vezes, são 2003; Moscovici, 1972), que se desenrola no
complementados por estudos experimentais. tempo (Bauer e Gaskell, 2008). Ou dito de outra
Este é o formato do abrangente projecto sobre forma, as representações expressam o sujeito, a
as representações de organismos geneticamente relação deste com Outro(s), e referem-se a um
modificados e modificação genética, que tem objecto, historicamente situado. Este posiciona-
estudado e comparado vários países europeus mento tem duas grandes consequências: a con-
(ver Gaskell et al., 2001; Bauer e Gaskell, sequência cultural e a consequência interactiva e
2008); é também o formato de um estudo sobre contextual, abordadas de seguida.
memória social e representações do descobri-
mento e colonização do Brasil (Sá e Castro,
2005); é ainda o formato de um estudo sobre o A consequência cultural
modo como comunidades e peritos portugueses
representam a biodiversidade e as formas de a Uma das consequências desta posição
proteger e de lidar com ela nas áreas protegidas epistemológica é que dela decorre que não há
da Rede Natura 2000 (Castro e Michel-Guillout, razão para supormos que “quando vimos ao
2010; Castro e Mouro, 2011; Mouro e Castro, mundo” “somos como Adão no dia da criação,
2010). abrindo os olhos para os animais e as coisas sem
dispor de uma tradição, sem ter conceitos parti-
lhados com os quais relacionar as nossas
6.6. Pontos de consenso actuais na impressões sensoriais” (Moscovici, 1998, p. 215).
abordagem das representações Ora, os conceitos partilhados que dão sentido ao
mundo, e são resultados emergentes de “rela-
Como foi mencionado, os debates sobre a ções triádicas” que ocorreram no passado e que,
abordagem das representação sociais, que se passando de geração em geração se constituem
têm desenrolado com interlocutores internos e em tradições, constituem as representações
externos, foram clarificando e estabilizando sociais. Desta forma, em primeiro lugar, as
como consensuais algumas premissas da perspec- representações inscrevem-nos na cultura e esta
tiva e do seu posicionamento epistemológico fornece-nos os primeiros filtros com que olhare-
(Castro, 2002; Jodelet, 1989a; Jovchelovitch, mos a realidade.
2008; Marková, 2008; Moscovici, 1972, 1998; É para esta premissa da teoria das repre-
Wagner, 1998; Vala, 1993;). Apresentamos de sentações sociais que a influência de Vygotsky é
seguida esses pontos de consenso. determinante e assumida (Moscovici, 1998).
Vygotsky é um psicólogo russo (1896-1934)
cujas ideias permaneceram desconhecidas da
A origem das representações é social psicologia ocidental até aos anos 80, mas foram
depois recuperadas (Van der Veer e Valsiner,
Como já foi dito, as representações sociais 1994) e têm influenciado a psicologia social e a
são concebidas como formas simbólicas emer- psicologia do desenvolvimento. Para Vygotsky,
gentes da interacção, pois a sua origem é defi- o desenvolvimento humano está dependente da
nida como resultando da relação triádica entre integração numa cultura, pois é sempre mediado,
um Ego, um Alter e um Objecto (Marková, quer pelo signo (como os da linguagem) quer
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pelos artefactos culturais. Vygotsky propõe são estruturas de conhecimento rígidas e imu-
ainda que as funções psicológicas de maior táveis repetidas ipsis verbis pelos indivíduos, de
complexidade são resultantes de um processo de contexto para contexto, de relação para relação.
internalização, no qual processos inicialmente Pelo contrário, elas carregam as marcas do con-
inter-pessoais se tornam intrapessoais: “Todas texto da sua enunciação e, portanto, são igual-
as funções do desenvolvimento cultural da mente fenómenos de comunicação interpessoal
criança aparecem duas vezes: primeiro no nível situada, para além de fenómenos de cultura.
social, mais tarde no nível individual; primeiro Uma forma sintética de formular esta ideia é
entre pessoas (interpsicológica), depois dentro dizer que, porque emerge da relação triádica, a
da criança (intra-psicológica). (...) Todas as representação incorpora sempre três dimensões
funções superiores se originam nas relações (Jovchelovich, 2007): a subjectiva (relativa ao
reais entre indivíduos humanos” (Vygostky, Ego), a objectiva (relativa ao Objecto) e a inter-
1978, p. 57). Esta internalização de actividades subjectiva (relativa à nossa relação com o Alter).
“socialmente enraízadas e desenvolvidas na his- Todos tivemos, já pessoalmente, a experiência
tória” cultural é a marca distintiva do humano de dizer coisas diferentes em contextos
(p. 57). Uma das tendências actuais da influên- relacionais diferentes, ou seja, a interlocutores
cia de Vygostky, e da premissa cultural, sobre a diferentes. Porém, e para além da observação
perspectiva das representações sociais, é a apro- casual da vida quotidiana, é de notar que a
ximação desta perspectiva à psicologia cultural pesquisa tem mostrado essa orientação pragmá-
(ver Valsiner, 2008; Valsiner e van der Veer, 2002; tica da comunicação, que a direcciona para o
Gergen et al., 2008; Jovchelovitch, 2008). contexto e a relação, fazendo-a variar com estes
(Billig, 1995; Castro e Batel, 2008; Jovechelovitch
e Gervais, 1999; Potter, Wagner et al., 2000).
A consequência interactiva e contextual Assim, a concepção de comunicação aqui presente
acentua a vertente pragmática e de orientação para
As relações triangulares Objecto-Ego-Alter o outro daquilo que é dito (Moscovici, 1999).
não ocorreram, porém, somente no passado, As representações que por estes processos se
constituindo as culturas, mas continuam a acumularam na cultura têm inevitavelmente que
produzir-se quotidianamente. Isto significa que ser variadas, heterogéneas, múltiplas e abrir a
as interacções face a face estão também envol- possibilidade da contradição. Esta complexi-
vidas na génese das representações e na sua dade e heterogeneidade são as marcas do senso
transformação no tempo. Por outras palavras, comum (Billig, 1991). É justamente por conter
para além de um Outro generalizado que repre- em si ideias contraditórias que o senso comum
senta a cultura, mantemos também interacções nos permite entender como é que o pensamento
com um Outro efectivamente co-presente. e o raciocínio se desenvolvem através do
Assim, outra das consequências do facto das confronto entre ideias opostas. Logo desde o
representações emergirem da relação triádica é início da formulação da sua teoria, ao procurar
que, para as entender, somos obrigados a ter em entender o pensamento quotidiano e a formação
conta o contexto relacional em que são e transformação do senso comum, Moscovici
expressas, pois elas ajustam-se à relação con- (1976) afirmava: “pensamos de maneira
creta. Por outras palavras, as representações não incessante ‘contra’ ou ‘a favor’, o que quer dizer
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que aceitamos ou rejeitamos o que é dito e, a activadas nesse mesmo contexto (Breakwell,
menos que se queira evitar o diálogo, forjamos 1993; Doise, 1990; Elcheroth et al., in press;
opiniões na e pela controvérsia” (p. 254). Vala, 1993). Por exemplo, Poeschl (2001)
Uma noção desenvolvida mais recentemente evidenciou as estratégias cognitivas activadas
para dar conta destes aspectos é a de themata para manter a positividade da identidade social
(Moscovivi e Vigneaux, 1994). Marková (2000) em situações em que os respondentes eram
define os themata da seguinte forma: “Os themata levados a comparar a inteligência do endogrupo
são categorias opostas que, no decurso da história, com diversos exogrupos (seres humanos versus
foram sendo problematizadas; por qualquer animais ou máquinas; homens versus mulheres).
motivo tornaram-se objecto de atenção e uma Para que estas questões sejam melhor com-
fonte de tensão e de conflito” (Marková, 2000, preendidas, a articulação entre as abordagens
p. 446). Exemplos de themata são as categorias das representações sociais e das identidades
vistas como opostas: natureza/cultura; razão/emo- sociais será fundamental. Ela será também uma
ção; comestível/não comestível; bonito/feio, etc. forma de fazer avançar um projecto de psicolo-
Os themata incorporam a ideia de que gia social e societal – ou seja, uma psicologia
pensamos de forma argumentativa, dilemática, social que seja capaz de abordar todos os níveis
sempre contra uma ideia e a favor de outra que de análise e não apenas os individuais e inter-pes-
se lhe opõe (Billig, 1988, 1991; Moloney e soais, uma ambição que existe desde os anos 70
Walker, 2002; Moscovici, 1976), em função de (Israel e Tajfel, 1972).
pares opostos que geram o desenvolvimento de
argumentos. É neste sentido que o estudo dos
themata pode ajudar a compreender o “velho e As representações constroem e constrangem
irritante enigma do senso comum: porque é que
ele afirma uma coisa bem como o seu contrário” Do que ficou dito nos parágrafos anteriores,
(Moscovici, 2001, p. 32), bem como o facto de podemos então sintetizar que, juntamente com o
que “as representações sociais surgem aos objecto, o contexto relacional co-determina a
pares, cada uma tendo a sua alternativa” (p. 33). representação. No entanto, alguma estabilidade,
que permita distinguir as culturas e os grupos
tem também que ser esperada das representa-
A articulação entre representações sociais ções e da forma como são utilizadas nas
e identidades sociais interacções concretas, ou elas de nada serviriam
como formas de orientar as relações e as
Importante para compreender os factores condutas e criar uma realidade comum a um
que estruturam os contextos e a dinâmica das dado conjunto social. Como compreender esta
representações sociais será a articulação entre aparente contradição?
estas e as identidades sociais. Uma vez que as Para responder à pergunta que acabámos de
identidades têm associadas a si conteúdos ou fazer, temos que levar em conta que a perspec-
representações que distinguem um grupo de tiva das representações sociais considera que
outro grupo, como se disse atrás, então as algumas representações sociais, porque incor-
representações activadas num dado contexto poradas em estruturas sociais, instituições,
relacional dependem das identidades também curricula escolares, leis, etc., (Farr, 1998;
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Moscovici 1998) têm um “papel causal e/ou Esta ideia de que as pessoas são seres activos
constrangedor” (Moscovici, 1998, p. 217). Isto e não simplesmente reactivos, está subjacente à
implica que as representações não só emergem metáfora de “sociedade pensante”, a qual recusa
das interacções, mas também são organizadoras a ideia de que os “indivíduos e os grupos
dessas mesmas interacções (Castro e Batel, 2008), estejam totalmente sob a influência de uma
construindo a realidade social de uma certa ideologia dominante” (Moscovici, 1981, p. 183),
forma e permitindo a génese de certas (novas) e pressupõe que, pelo contrário, estão envol-
representações, mas não de outras (Voelklein e vidos na produção de representações sociais,
Howarth, 2005). socorrendo-se para isso de todos os tipos de
Vamos a um exemplo da vida quotidiana. conhecimento como “ alimento para pensar”
A escola e a universidade enquanto instituições (food for thought) (Moscovici, 1981, p. 183).
são organizadas em função de um sistema de É com estes conhecimentos que os indivíduos
representações sobre o que é o conhecimento. vão improvisando e criando, como “numa da
Este sistema de representações define a apren- orquestra de jazz” (Vala, 1993, p. 907), e sendo
dizagem como algo valioso (por isso, por simultaneamente fonte e alvo de influência.
exemplo, parece legítimo a escolaridade até ao Porém, continuando esta metáfora, não pode-
12.º ano ser obrigatória em Portugal), indica mos esquecer que os instrumentos utilizados
quais os conhecimentos mais válidos, especifica constrangem o tipo de improvisação e a cali-
quem os detém e como devem ser transmitidos, bração de sons que é possível produzir, orien-
que tipo de relações devem existir para tando, assim, a música e as sonoridades obtidas.
assegurar esta transmissão, etc. Estas represen-
tações são detectáveis nos curricula, nas leis que
regem estudantes e professores, ou na forma de As representações sociais não têm todas
dispor as cadeiras nas salas de aulas. as mesmas características
Certas representações do que é o conheci-
mento estão, portanto, incorporadas em ins- O que ficou dito sugere que o conhecimento
trumentos institucionais e são bastante estáveis. social contém tipos diferentes de representações
Não estamos a dizer, nem que são as únicas – umas mais institucionalizadas, outras emer-
existentes, nem que são imutáveis, ou que não gentes – e que portanto, a vida social é orientada
podem ser contestadas, e que não permitem a por tipos diferentes de representações sociais.
negociação, ou adaptações contextuais. Apenas É portanto útil tentar perceber essas diferenças
afirmamos que, gozando de clara estabilidade e as suas consequências para os processos
num certo tempo e num certo espaço, há certas psico-sociais.
representações que foram institucionalizadas e Existe uma proposta de tipologia iden-
constroem a realidade social de uma certa tificando três tipos de representações ou três
forma, definindo margens de liberdade para maneiras de as representações sociais serem
além das quais a contestação se torna difícil, e partilhadas. As representações mais consensuais,
constrangendo as práticas efectivas. Mas dentro ou inquestionadas, e mesmo coercivas, objecti-
destas margens de liberdade, os sujeitos são vadas nas estruturas e instituições de cada
vistos pela abordagem das representações sociais sociedade, designa-as Moscovici (1988a) por
como seres activos e pensantes. hegemónicas. Estas são habitualmente vistas
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como informação, ou “um reflexo da realidade sociais algumas abordagens. Estas, filiadas
externa. (...) Por exemplo, a representação do embora nas mesmas premissas e pontos de
indivíduo “como ser autónomo e livre” está de consenso centrais, foram tentando responder a
tal forma objectivada nas instituições sociais perguntas específicas e desenvolvendo especifi-
que deixou de ser vista como uma percepção ou cidades próprias. Actualmente, pode considerar-se
um valor e passou a ser encarada como um facto que as diferentes abordagens desta perspectiva
incontroverso” (Vala, Garcia-Marques, Gou- incluem: (1) a perspectiva original de Moscovici
veia-Pereira e Lopes, 1998, p. 472). (1976), à qual o trabalho de Jodelet (1989)
As representações sociais emancipadas, por acrescentou a abordagem etnográfica; (2) a teoria
sua vez, são produzidas pela interacção e debate estrutural de Flament (1982; Abric, 1989;
de ideias, e são partilhadas em maior ou menor Flament e Rouquette, 2003; Moliner, 1995); (3) a
grau por diferentes grupos. Elas emergem da coo- análise genética e posicional de Doise e colegas
peração e da negociação e são muito plásticas. (Doise, Clémence e Lorenzi-Cioldi, 1993;
Finalmente, as representações sociais polé- Ribeiro e Poeschl, 2007; Spini e Doise, 1998);
micas são aquelas que resultam do conflito entre (4) um conjunto de abordagens que se con-
visões opostas de grupos opostos (Moscovici, centram de forma mais sistemática na análise da
1988, pp. 221-222). Em Wagner (1995) é possí- comunicação e discurso (Gillespie, 2008;
vel encontrar a demonstração empírica de que as Howarth, 2006; Jovchelovitch, 2007), de que a
representações polémicas contêm meta-informa- abordagem dialógica de Marková (2003; 2008)
ção sobre o grupo a que estão ligadas, o que con- constitui exemplo e impulso.
tribui para a coordenação da interacção social, A abordagem estrutural, ou abordagem do
pois esta meta-informação fornece-nos pistas para núcleo central, desenvolvida inicialmente em
o que podemos esperar dos nossos co-actores nas Aix-en-Provence, por Abric (1984) e Flament
situações quotidianas (Wagner, 1995). (1982) propõe que as representações sociais são
compostas por dois tipos de elementos – ou
sistemas – complementares: os centrais e os
6.7. Uma síntese das abordagens teóricas periféricos (ver Caixa 6). O sistema central, ou
das representações sociais núcleo central, corresponde à parte estável e
consensual da representação. O sistema perifé-
Ao longo do tempo foram-se diferenciando rico, que tem um carácter mais flexível, permite
dentro do quadro de estudo das representações o ajustamento a mudanças contextuais. Este

Willem Doise
Denise Jodelet
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sistema periférico ajusta-se assim a alterações e vista, então, as representações sociais englobam
mudanças, muitas vezes protegendo o sistema um conjunto de crenças, avaliações e atitudes que,
central da mudança. De acordo com este ponto de combinadas, formam uma estrutura hierárquica

CAIXA 6

Núcleo central das representações sociais

Moliner (1995) mostra que, na representação de uma firma ou empresa comercial, as crenças de que
as empresas estão estruturadas de forma hierarquizada e que têm lucros são crenças centrais. Isso
implica que elas não podem ser dispensadas ou negadas sem alterar o carácter da representação. Outras
crenças, como as que se referem à importância da investigação e desenvolvimento, ou à realização
pessoal, são mais periféricas.
Porém, muitos dos estudos da perspectiva estrutural estabelecem ainda que os elementos cognitivos
de uma representação social não diferem apenas de acordo com o seu grau de centralidade, mas também
de acordo com a função que desempenham. Alguns elementos são funcionais, no sentido em que
orientam o comportamento, enquanto outros são normativos, no sentido em que permitem julgamentos
avaliativos (Abric, 1987; Moliner, 1992).
Os resultados apresentados na Figura mostram os dois elementos identificados como pertencendo
ao núcleo central da representação de uma empresa – existência de hierarquia e lucro. Mostram ainda
que a existência de uma hierarquia numa empresa é um elemento normativo – é considerada pela
maioria das pessoas como desejável para uma empresa. Contudo, o lucro é, para a maioria, o elemento
necessário da representação – isto é, o elemento funcional, ou constituinte.

Texto e figuras adaptados de Moliner (1995, p. 37) e Wagner e Hayes (2005)


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ordenada de dependência mútua. O núcleo de organização e homogeneização intragrupal e


central é o ponto de partida da estrutura e tem de diferenciação intergrupal das representações.
uma função organizadora: determinar a natureza Porém, é ainda de assinalar que certas
das relações entre elementos hierarquizados representações podem também funcionar como
(Abric, 1984, p. 180). Com isto, os elementos princípios de ancoragem. Por exemplo, em Spini
ganham sentido e valor e permitem que tiremos e Doise (2005) está indicado como os valores
conclusões. gerais que os indivíduos apoiam se relacionam
Esta abordagem tenta compreender melhor com as suas posições em relação aos Direitos
como mudam as representações, propondo a Humanos. Um exemplo: as pessoas que mais
necessidade de considerar a existência de mais apoiam os valores universalistas são também
de um tipo de representações para se poder dar aquelas que mais acreditam que os seus gover-
conta da ligação entre os conteúdos simbólicos nos não estão a tomar acções concretas sufi-
e a organização da vida social. cientes para proteger os direitos humanos (ver
Por sua vez, a abordagem genética, desen- Spini e Doise, 2005, p. 39).
volvida por Doise e colaboradores (Doise, Clé- Por fim, a abordagem dialógica (Gillespie,
mence e Lorenzi-Cioldi, 1993; Spini e Doise, 2008; Howarth, 2006; Jovchelovitch, 2008; Liu,
2005) procura responder a uma pergunta funda- 2004; Marková, 2003; 2008), mais recente e
mental: como relacionar os grupos e o consenso ainda em desenvolvimento, congrega estudos
nas representações sociais? (ver Castro, 2002; que acentuam a importância de colocar as
Harré, 1984; Moscovici, 1984b). Deveríamos “relações triádicas” das quais emerge a repre-
partir de grupos naturais e ver até que ponto os sentação social no centro da pesquisa empírica.
indivíduos que os constituem têm as mesmas Uma das consequências directas desta posição é
representações? Deveríamos partir das repre- direccionar os estudos para o diálogo e os
sentações e, com base nelas, procurar grupos, formatos discursivos, procurando documentar
ou seja, conjuntos de indivíduos com as mesmas de forma detalhada os seus aspectos dinâmicos
representações? E se dentro de “grupos natu- e as múltiplas formas de expressão do seu
rais” houver representações diferentes? Consi- carácter pragmático. Assim, os estudos com esta
deramos que existem grupos diferentes? Estas e orientação procuram ver como é que o diálogo e
outras questões foram amplamente discutidas e os formatos discursivos respondem simultanea-
levaram Doise e colegas a considerar a impor- mente ao contexto cultural e ao interactivo
tância de se estudar, não apenas os aspectos (Castro e Batel, 2008). Especificamente,
consensuais das representações, mas também os Marková (2008) estudou como é que certos
princípios organizadores das diferenças indivi- assuntos são “tematizados” e outros são “con-
duais e os princípios organizadores de subgru- vencionalizados”. Os assuntos são “tematiza-
pos de respostas (Doise, Clémence e Lorenzi- dos” quando são problematizados em função de
Cioldi, 1993). Estes princípios organizadores noções opostas – os themata já mencionados.
foram definidos como princípios de ancoragem A tematização traz para a atenção pública certas
social, como atrás indicámos. A noção de “anco- categorias opostas, abrindo espaço para a
ragem social”, que difere da noção de ancora- heterogeneidade de argumentos, a polifasia
gem simples que atrás abordámos, refere-se ao cognitiva (Jovchelovitch, 2007), a contestação e
facto de as identidades sociais serem princípios a resistência (Castro e Batel, 2008; Marková,
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2008). Existem certos assuntos, porém, que são O primeiro, responsável pela identificação de
abordados de forma “convencionalizada – são semelhanças e diferenças e pela validação do
mantidos por questionar, apresentados como conhecimento; o segundo, associado à nossa
não problemáticos, e como não requerendo localização, e à dos outros, dentro do mapa de
debate (Marková, 2008; Vala et al., 1998). Este semelhanças e diferenças de conhecimentos e
formato discursivo parece orientado para não significados; e a negociação, que nesse contexto
permitir que certas representações sejam de semelhanças e diferenças, permite o ajus-
identificadas com identidades sociais espe- tamento de formas partilhadas de conhecimento
cíficas (Castro, 2003; Vala et al., 1998). É o que e significados, criando zonas de entendimento
acontece com certas normas sociais actuais, sem necessidade de consenso absoluto. Nesta
como a norma anti-racista, ambientalista ou mesma linha teórica, pensar um objecto social
feminista, que o debate social já não aceita que implica um sistema de relações que envolve o
sejam identificadas com as minorias que as sujeito (individual ou colectivo), um alter
introduziram na esfera pública. Estas normas (individual ou colectivo; real ou imaginário) e o
recebem hoje elevados níveis de apoio (Castro, objecto. O conceito de representação social é
2006) e o que é tematizado são as formas de as paradigmático desta orientação teórica no
conciliar com outros interesses, que têm que ser estudo do pensamento social.
justificadas com argumentos percebidos como Na segunda parte do capítulo, apresentámos
não indo contra a norma. A orientação dialó- a génese do conceito de representação social e
gica, mais do que concretizar uma linha dife- dos princípios teóricos que lhe estão associados.
renciada, será então sobretudo uma orientação Enunciámos as principais características desta
que incentiva uma análise mais detalhada e abordagem teórica interessada em conhecer como
aprofundada de como a linguagem e a comuni- o senso comum absorve as inovações que vários
cação respondem aos contextos. sistemas sociais continuamente geram. Vimos
como algumas destas inovações são incorpora-
das em maior grau nas culturas e sociedades e
Resumo e conclusões outras permanecem objecto de debate e diver-
gência. Daí resulta, como assinalámos, que as
Neste capítulo começámos por mostrar como representações não são todas iguais – pois
o estudo do conhecimento e do significado tem enquanto umas se podem encontrar institucio-
sido uma preocupação central da psicologia nalizadas, estabilizadas e não são questionadas,
social. Referimos depois que este estudo tem outras passam por complexos processos de
sido conduzido a partir de duas grandes negociação e transformação, antes de estabiliza-
perspectivas meta-teóricas: uma que enfatiza os rem, e outras ainda são objecto de polémicas
processos cognitivos implicados no processa- entre grupos. Distinguimos, assim, as represen-
mento da informação social; outra que enfatiza tações sociais hegemónicas, emancipadas e polé-
a interacção entre processos sociais e processos micas. Descrevemos ainda os processos através
cognitivos e os seus impactos no pensamento dos quais a inovação é integrada no tecido
social. Nesta segunda perspectiva, podem ser preexistente de representações – a ancoragem e a
destacados como processos básicos: a com- objectivação. Importante na perspectiva desen-
paração social, a identidade e a negociação. volvida neste capítulo sobre o pensamento
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social, é ainda a tipologia de sistemas comuni- Moscovici, S. (2007). Psychoanalysis: Its image and
cativos que permitem elaborar representações its public. Cambridge: Polity Press.
com características diferentes: a propagação, a Sá, C. (1998). A construção do objeto de pesquisa
difusão e a propaganda. Finalmente, apresen- em representações sociais. Rio de Janeiro:
támos três abordagens teóricas complementares EdUERJ.
ao modelo original proposto por Moscovici
Artigos
sobre as representações sociais: a perspectiva
estrutural; o modelo genético e posicional, e a Castro, P., e Batel, S. (2008). Social representation,
abordagem dialógica. change and resistance: On the difficulties of
generalizing new norms. Culture e Psychology,
14, 477-499.
Sugestões de leitura Jesuíno, J.C. (2008). Linking science to common
sense. Journal for the Theory of Social Behaviour,
Livros 38 (4), 393-409.
Moloney, G., e Walker, I. (2002). Talking about
Deaux, K. e Philogène, G. (2000). (Eds.). Represen- transplants: Social representations and the
tations of the Social. Oxford: Blackwell. dialectical, dilemmatic nature of organ donation
Doise, W., Clémence, A., Lorenzi-Cioldi, F. (1993). and transplantation. British Journal of Social
The Quantitative Analysis of Social Representa- Psychology, 41, 299-320.
tions. Hemel Hempstead, Harvester Wheatsheaf. Ordaz, O., e Vala, J. (1997). Objectivação e ancor-
Jovchelovitch, S. (2008). Contextos do saber: Repre- agem das representações sociais do suicídio na
sentações, comunidade e cultura. Petrópolis: Vozes. imprensa escrita. Análise Social, 32, 847-874.

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