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Ailton Gomes da Silva Júnior

Bruno Veloso de Farias Ribeiro


Iran Ferreira de Melo
José Amaro da Costa
Richard Fernandes de Oliveira

DISSIDÊNCIAS DE GÊNERO
E SEXUALIDADE
1ª Edição
Recife, 2022
CORPO EDITORIAL
Ailton Gomes da Silva Júnior
Bruno Veloso de Farias Ribeiro
Iran Ferreira de Melo
José Amaro da Costa
Richard Fernandes de Oliveira

REVISÃO
Iran Ferreira de Melo

PROJETO EDITORIAL:
Gabriel Santana
Rebeka Vivyan

PRODUÇÃO GRÁFICA:
Carlos Alberto Ferreira
Fábio Antônio Menezes
Jader Matias de Oliveira

COORDENAÇÃO:
Felipe Brito de Lima

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Sistema Integrado de Bibliotecas da UFRPE
Biblioteca Central, Recife-PE, Brasil

Dissidências de gênero e sexualidade


[livro eletrônico] / Richard Fernandes de
Oliveira...[et al.]. -- 1. ed. -- Recife, PE :
Universidade Federal Rural de Pernambuco, 2022.
PDF.

Outros autores: Bruno Veloso de Farias Ribeiro,


Iran Ferreira de Melo, José Amaro da Costa, Richard
Fernandes de Oliveira.
Bibliografia.
ISBN 978-65-86547-81-8

1. Cidadania 2. Diversidade sexual 3. Educação


4. Gênero e sexualidade 5. Identidade de gênero
6. LGBTI+ - Siglas - Direitos I. Oliveira, Richard
Fernandes de. II. Ribeiro, Bruno Veloso de Farias.
III. Melo, Iran Ferreira de. IV. Costa, José Amaro
da. V. Oliveira, Richard Fernandes de.

22-138035 CDD-306.43

1. LGBTI+ : Diversidade sexual : Sociologia educacional 306.43


Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO

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reitor

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UNIDADE ACADÊMICA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA E TECNOLOGIA

Elidiane Suane Dias de Melo Amaro


direção geral e acadêmica

Alexsandro dos Santos Machado


coordenação geral de cursos de graduação

José Temístocles Ferreira Júnior


coordenação da universidade aberta do brasil - uab

Felipe Brito de Lima


coordenação de produção de material didático
SUMÁRIO
8 Apresentação
Raylton Carlos de Lima Tavares

12 Capítulo 1:
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS SOBRE A MULHERIDADE REPRODUZIDAS
PELO DISCURSO PEDAGÓGICO HEGEMÔNICO NO LIVRO DIDÁTICO DE
LÍNGUA PORTUGUESA
Ana Lorena dos Santos Santana

24 Capítulo 2:
QUEERIZANDO O PASSADO: ENTRELAÇAMENTOS ENTRE A ESCRITA DA
HISTÓRIA E A TEORIA QUEER
Anne Raquel da Silva Nascimento

38 Capítulo 3:
PERFORMATIVIDADE LINGUÍSTICA EM NOMES POPULARES
SEXUALIDADES
Bruno Pacheco de Souza

52 Capítulo 4:
UM OUTRO LADO DO ESPELHO: DISTÚRBIOS ALIMENTARES DE
EMAGRECIMENTO NA POPULAÇÃO DE TRANSMASCULINOS
Iara Luzia Henrique Pessoa

66 Capítulo 5:
DANDARA – AÇÕES DE CIDADANIA EM GÊNERO E SEXUALIDADE
Iran Ferreira de Melo

Capítulo 6:

80 QUEER SEM MEDO NA EDUCAÇÃO UNIVERSITÁRIA


José Amaro da Costa
96 Capítulo 7:
A LINGUAGEM NÃO-BINÁRIA EM ALGUMAS BREVES REFLEXÕES
Richard Fernandes

108 Capítulo 8:
CORPOS NA EDUCAÇÃO: AS PESSOAS NÃO-BINÁRIAS NO AMBIENTE
ESCOLAR
Rivaldo Mendes da Silva

120
Capítulo 9:
ENTRE PERNAS, LEITO DE VIÚVAS E PEDRAS JOGADAS: A TRANSGRESSÃO
FEMININA EM ANA DE AMSTERDAM, BÁRBARA E GENI DE CHICO
BUARQUE
Roberta Moura Cavalcanti

132
Capítulo 10:
UMA REFLEXÃO CRÍTICA ACERCA DA QUEERIFICAÇÃO DE CELIE EM THE
COLOR PURPLE
Wesley Sousa Rodrigues
8

APRESENTAÇÃO
Enquanto escrevo esta apresentação, continuamos a viver a maior crise sa-
nitária e social do século, a pandemia da COVID-19. Até agora não sabemos as di-
mensões múltiplas que esse fenômeno causou, mas temos ciência de que muitos
dos terríveis números de mortes e infecções poderiam ter sido menores se me-
didas governamentais antivida não tivessem sido tomadas. Certamente, corpos
precarizados são os que mais têm sofrido duras consequências, como aqueles de
pessoas em situação de pobreza e de violência, bem como de pessoas que foram
obrigadas a estar em convívio com aqueles que lhes causam dor e sofrimento só
por serem quem são etc.

Embora de modos e graus diferentes, tal contexto também afetou diversas


atividades acadêmico-científicas em que nos engajamos. Uma delas foram as reu-
niões de discussão teórica-metodológica-analítica em nosso Núcleo de Estudos
Queer e Decoloniais (NuQueer/UFRPE-CNPq). Em virtude do isolamento social para
a contenção do vírus, nossos encontros tiveram de ser realizados virtualmente,
implicando assim perdas e ganhos. A perda do contato humano foi sem dúvidas a
mais significativa, mas ganhamos por poder reunir pessoas queridas de diversas
partes do Brasil e da América Latina que participam do Núcleo como investigantes
e estudantes.

Em meio a essas reuniões, fomos compelides a apresentar ao público ex-


terno o trabalho que temos realizado. Então, concebemos e realizamos o Fórum
NuQueer de Pesquisa, levado a cabo virtualmente nos dias 25, 26 e 27 de novem-
bro de 2020. Fruto das reflexões possibilitadas nesse ambiente, em contato com
nosses pares e participantes do evento, esta obra se organiza em dez capítulos,
em que se apresentam pesquisas em andamento e ensaios sobre gênero, sexo e
sexualidade em combinações teóricas várias.

O capítulo inicial é de Ana Lorena dos Santos Santana, que nos dá amostra
de seus primeiros pensamentos sobre mulheridade e discurso em materiais didá-
ticos brasileiros. Partindo da posição de que homens e mulheres são, na maioria
das vezes, representades diferentemente em textos que circulam na sociedade,
a autora toma como corpus os textos multimodais veiculados em seis coleções
do Livro Didático de Língua Portuguesa, do Programa Nacional do Livro Didático,
do período de 2020-2023. Seu interesse está em analisar como a mulheridade é
construída por tais recursos semióticos, por meio de uma arquitetura teórica ba-
seada em estudos críticos do discurso, psicologia social e estudos sobre gênero e
sexualidade.
9

Caíque Nascimento, no capítulo Queerizando o passado: entrelaçamentos en-


tre a escrita da história e a teoria queer, se debruça sobre a representação de cor-
pas de travestis em jornais pernambucanos no período de 1970 e 1985. Por meio
da lente da teoria queer, o autor indica como a História foi construída pelo sufo-
camento de vozes e vidas travestis, argumentando, inclusive, que tal apagamento
não se restringiu ao campo hegemônico, mas também no domínio dos estudos
LGBTQIA+. O objetivo a que se propõe é deixar ouvir outras narrativas enunciadas
por travestis, reconhecendo que esse é um ato acadêmico-político urgente, pois
“separar em lados opostos a teoria, a prática e a política, sobretudo em uma aná-
lise histórica, é uma falácia”.

No capítulo seguinte, Bruno Pacheco de Souza dedica-se a investigar o léxi-


co empregado por pessoas homossexuais cisgênegas na rede social Twitter para
representar o ânus e o pênis. O autor discute como os modos de representação
desses dispositivos carregam, há bastante tempo, sentidos negativos. Dedica es-
pecial atenção à reflexão sobre o lugar de abjeção em que o ânus de pessoas
passivas foi colocado, evidenciando a interseção de gênero, classe, raça e sexuali-
dade. Bruno acessa a essas questões por meio da análise discursiva de posts em
ambiente digital, de modo a acentuar o papel da semiose na manutenção de tal
problema social.

No quarto capítulo, Iara Pessoa combina perspectivas psicológicas e de gê-


nero para escrever sobre transtornos alimentares em transmasculinos. Primeiro,
Pessoa aponta a acentuada lacuna de pesquisas nesse tema em solo brasileiro ou
de escritos em português, o que mostra ainda a colonialidade do saber na área. O
ponto nodal do capítulo é que uma das principais causas do transtorno alimentar
de que sofrem as pessoas transmasculinas estudadas no escopo da pesquisa é
a pressão estrutural de gênero. Os padrões do que é um corpo masculino valo-
rizado socialmente também incide sobre os corpos de transmasculinos, levando
esses indivíduos a adotar práticas não saudáveis, como atividades físicas excessi-
vas, dietas restritivas e métodos purgativos. Essa experiência da junção do ideal
de gênero com o transtorno alimentar não se iguala àquela vivida por mulheres
cis, brancas, ricas e jovens, pois a particularidade está exatamente na coerção que
vidas transmasculinas sofrem pelo s(c)istema.

Em seguida, sob o título Dandara – ações de cidadania em gênero e sexua-


lidade, o quinto capítulo é de autoria de Iran Melo. O autor narra os processos
e os êxitos que logrou o projeto de extensão Dandara – Ações de Cidadania em
Gênero e Sexualidade, coordenado por ele em 2018. Tomando epistemologias de
educação, gênero e sexualidade, a iniciativa visou discutir, em diferentes ações,
como seminário, sarau, mostra etc, o papel de setores sociais na manutenção e na
resistência à crescente violência movida pelo ódio à diferença de gênero e sexu-
alidade no Brasil. Portanto, Melo enfatiza a importância de projetos de extensão,
que intentam pôr o arcabouço teórico muitas vezes restrito à academia em mar-
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cha fora desse limite, aproximando teoria e prática.

Assinando o capítulo Queer sem medo na educação universitária, José Costa


toma como objeto de estudo as violências por orientação sexual e identidade de
gênero na educação superior de Recife, especificamente na graduação, e suas
consequências no processo de formação de corpos/as/es dissidentes. Para tan-
to, elege preconceito, opressão, discriminação e intolerância como categorias de
análise, entendendo que corpos abjetos são considerados como não pertencen-
tes à universidade justamente por atravessarem a fronteira histórica em que ela
se firma: elitista, burguesa e monástica. Esperançosamente, Costa propõe que o
caminho seja uma educação voltada para a não violência em todos os domínios da
vida, com potencial para resultar em “formação do professorado, revisão curricu-
lar, inserção da dimensão afetiva e humana nos conteúdos programáticos e uma
atitude de não diretividade na forma de ser e de atuar pedagogicamente”.

Richard Fernandes debruça-se sobre a reflexão linguístico-discursiva ao re-


dor do que se tem nomeado como linguagem disruptiva. O lugar epistemológico
de que parte são os estudos do discurso de Butler e de Fairclough, combinados à
perspectiva queer. O autor reitera a centralidade da linguagem no reconhecimento
das identidades queer e indaga, nessa esteira, como pode a gramática, que é uma
forma de representação e identificação, alcançar vidas que não se limitam à bina-
ridade de gênero social? Propõe o termo “engenharias de linguagem” para desig-
nar as estratégias linguísticas que essas pessoas têm usado para se identificarem
na língua. Fernandes encerra alertando sobre a necessária e urgente realização
de pesquisas em Linguística que focalizem a linguagem disruptiva, apontando a
importância de unir esse campo às teorizações queer.

Também, como José Amaro, numa esteira educacional, Rivaldo Silva, segue
os pressupostos pedagógicos da teoria queer para questionar a presença/ au-
sência de corpos não-binários na educação básica. O autor parte do princípio de
que pessoas não-binárias precisam acessar à educação pois é um direito, mas
que é negado, muitas vezes, pelo desconhecimento e preconceito que permeiam
não somente o ambiente escolar. Ancora-se na perspectiva discursiva de Foucault
para dizer que pessoas não-binárias fogem do dispositivo sexo, uma vez que es-
tão no entrelugar, onde não se encaixam na dualidade homem-mulher. Seu argu-
mento principal é que sem uma educação voltada à diversidade e à diferença, a
escola permanecerá silenciando vidas não-binárias e LGBTQIA+.

A representação de mulheres transgressoras em canções é o tema do penúl-


timo capítulo, de autoria de Roberta Cavalcanti. Com base nos estudos literários,
decoloniais e de gênero, Cavalcanti aponta alguns aspectos de sua pesquisa que
tem como foco as personagens Ana Amsterdã, Bárbara e Geni, em sete músicas
de Chico Buarque. Dedica especial atenção à construção afetivo-sexual dessas
mulheres bissexuais, prostitutas e travesti, levando em conta a conjuntura socio-
política em que os artefatos artísticos foram construídos, a ditadura civil militar no
11

Brasil. Portanto, ao localizar o período histórico de que emergem, a autora desta-


ca a inventividade artística como locus de resistência.

Wesley Rodrigues, no capítulo final, tece algumas considerações de sua pes-


quisa sobre a queerificação da personagem Celie, em The color purple, de Alice
Walker. A perspectiva crítica que adota combina a interseccionalidade, a teoria
queer e a linguística sistêmico-funcional para analisar como a personagem do tex-
to literário se apresenta nas avenidas identitárias de raça, gênero, sexualidade e
classe. O autor mira a construção de si mobilizada por Celie, entendendo que essa
identificação viabiliza a desestabilização da norma binária e essencialista. Segun-
do Rodrigues, a personagem principal pode ajudar-nos a pensar em formas de
queerifizar nossos corpos, como uma estratégia de resistência às violências que
nos atingem diariamente.

Como esta breve apresentação mostra, cada capítulo evoca os marcadores


de gênero, sexo e sexualidade e suas interseções, localizando-os na contempora-
neidade ou no passado, pelas lentes de arquiteturas teóricas múltiplas, a fim de
pôr em relevo as violências que ainda se impõem hoje às vidas abjetas. Mais do
que uma amostra do que se tem feito no NuQueer, esta obra é um convite à ação,
que por sua vez só é efetiva quando parte de reflexão cuidadosa do mundo e dos
processos sociais em que nos envolvemos como agentes. É um convite a pensar e
agir juntes, a esperançar um mundo justo e digno a todos os seres.

Raylton Carlos de Lima Tavares


Brasília, fevereiro de 2022.
CAPÍTULO 1
12

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS SOBRE A MULHERIDADE RE-


PRODUZIDAS PELO DISCURSO PEDAGÓGICO HEGEMÔNI-
CO NO LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA
Ana Lorena dos Santos Santana1
Universidade Estadual do Ceará

NOTAS INTRODUTÓRIAS
Ao percebermos as fissuras humanas ao longo do nosso processo histó-
rico, não podemos deixar de concluir que as mulheres fazem parte do grupo
que permeia as camadas mais profundas dessas cicatrizes. No entanto, vemos
que já é mais do que o momento de deixarmos de olhar por entre as frestas do
preconceito e impedir que o apagamento das mulheres, ao longo da caminhada
humana, ainda reverbere.

Dessa forma, os discursos que envolvem as conquistas de grupos majorita-


riamente minorizados, de diferentes segmentos sociais, tais como as mulheres,
buscando garantir o avanço de hegemonias que os fragiliza na cultura moderna
e os distancia de práticas sociais renovadoras, ficam de fora dos materiais didáti-
cos obrigatórios, contribuindo para um fazer pedagógico inadequado e omisso,
desalinhado quanto às problemáticas sociais pautadas no século XXI, falseando
o cotidiano e romantizando experiências e o processo histórico-cultural desses
grupos como um todo, sem contribuir para a existência de um movimento em
favor da conscientização e respeito pelas diferenças de gênero e sexualidades.

Assim, o presente artigo nasce de um anteprojeto de doutorado em Lin-


guística Aplicada, ainda em construção, desconstrução e reconstrução, interes-
sado em discutir as representações sociais sobre a mulheridade no Livro Di-
dático de Português (doravante LDP). Nosso olhar investigativo volta-se, mais
diretamente, para as seções imagéticas do LDP em que há um discurso pedagó-

1
Doutoranda em Linguística Aplicada pelo Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada (PosLA) da Universida-
de Estadual do Ceará – UECE. Desenvolve pesquisas na área dos Estudos Críticos do Discurso, com foco na Análise de
Discurso Critica, Letramento Crítico, Gramática do Design Visual, Identidade, Decolonialidade e Relações de Gênero..
13

gico hegemônico, no que concerne à projeção de uma identidade feminina por


meio dessas representações.

De acordo com Coracini (1999, p. 33), os materiais didáticos, que são usa-
dos nos espaços escolares, têm como atribuição “preparar o cidadão para a
vida em sociedade”, todavia tratam temas sociais, como os avanços sociais que
envolvem as mulheres, de maneira tímida e, muitas vezes, sob uma perspectiva
biológica, mascarando preconceitos estruturados pelas matrizes do patriarca-
do. Desvincular tais representações das relações sociais no LDP seria apagar
da história todo o percurso trilhado para combater o reducionismo capaz de
manipular ações ético-políticas legítimas, tão pertinentes a um novo conceito
de modernidade.

Nessa perspectiva, uma abordagem discursiva (IRINEU et al, 2020) do es-


tudo das representações sociais sobre a mulheridade, de modo a analisar as
construções de sentido sobre as identidades de gênero e a sexualidade, a par-
tir do discurso pedagógico hegemônico presente nos textos multimodais que
circulam no LDP, do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (2020-
2023) (doravante PNLD), do anos finais do Ensino Fundamental, pode se confi-
gurar como bastante apropriado ao desdobramento de condutas em favor de
uma mudança social, que consiga deslegitimar os argumentos que, ao longo do
tempo, foram contemplados pelos materiais didáticos de Língua Portuguesa de
um ponto de visto acrítico e histórico-disciplinar da linguagem.

Importantes contribuições acerca do Livro Didático são oferecidas por


Coracini (1999), Ferreira (2014) e Costa (2016), por exemplo, que nos lembram
sobre a importância de levar em consideração no material didático contextos
culturais diversos. Já em relação às identidades, autoras como Louro (2014) e
Butler (2003) voltam-se para o processo identitário a fim de investigar como dis-
cursos podem contribuir para o fomento de questões de ideologia, poder e he-
gemonia, assim como Magalhães (2010) e Fairclough (2001, 2003) que avaliam
as considerações acerca das identidades relacionando-as às noções de discurso
trabalhadas no campo da Análise de Discurso Crítica (doravante ADC). Contudo,
estudos envolvendo uma crítica ao pensamento binário, reducionista, situando
as representações de gênero no LDP, criadas pelo discurso hegemônico desse
material didático, parecem estar em estágio ainda embrionário ou incipiente, o
que aponta para a necessidade de pesquisas voltadas para o tema.

Nesse sentido, alguns questionamentos conduzem a presente pesquisa


que, como já foi dito anteriormente, ainda está em fase inicial; a saber: i) Como
ocorrem as representações sociais sobre a mulheridade no discurso pedagó-
gico hegemônico que circula no Livro Didático de Língua Portuguesa, do PNLD
(2020-2023), dos anos finais do Ensino Fundamental? ii) Como o discurso peda-
gógico do LDP compartilha representações sociais sobre gênero e sexualidade,
a partir da reprodução (ou não) de assimetrias de poder?
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Em consonância com essas indagações, é possível formular a suposição


de trabalho que reconhece que as representações sociais sobre a mulheridade
no discurso pedagógico do Livro Didático de Português não coadunam com os
avanços históricos conquistados pelas mulheres, através dos movimentos polí-
tico-sociais ocorridos nas últimas décadas, sendo, portanto, mecanismos para
a promoção e reprodução de construções discursivas de dominação, controle
e assimetrias.

No intuito de responder aos questionamentos antes elencados e verificar


a suposição de pesquisa levantada, o trabalho se delineia a partir dos seguintes
objetivos: i) Investigar as representações sociaissobre a mulheridade na con-
temporaneidade, por meio do discurso pedagógico do material didático de Lín-
gua Portuguesa, do PNLD, no que concerne ao período de 2020 a 2023, dos
anos finais do Ensino Fundamental; ii) Analisar o compartilhamento das repre-
sentações sociais, por meio do discurso pedagógico do LDP, identificando se há
reprodução (ou não) de assimetrias de poder.

Diante do exposto, vemos a seguir como se dará o percurso da pesquisa


em suas etapas estruturais compreendendo o arcabouço teórico, ainda em fase
de adequação e construção, assim como as primeiras notas metodológicas e o
vislumbre de uma análise possível.

A PONTE ENTRE TEORIAS


Alicerçada nos solos da Teoria das Representações Sociais, da Análise de
Discurso Crítica e da sociossemiótica visual, a presente pesquisa alimenta suas
investigações com base em um movimento retórico construído a partir de uma
perspectiva crítica acerca dos conceitos de representação, gênero social e dis-
curso. Essa disposição epistemológica é sistematizada para que haja um deslo-
camento em direção a uma linguagem crítica que nos permita analisar de modo
mais visível e democrático o gênero social e o conceito de mulheridade, conside-
rando os múltiplos discursos que os constroem nas esferas e nos documentos
oficiais. Primeiramente, delineamos o conceito da Teoria das Representações
Sociais, de Moscovici (1978, 2015). Em seguida, mostramos o caminho teórico
de Magalhães (2006, 2010), de Butler (2003) e de Louro (2014) para compreen-
der o que se entende por identidade feminina na contemporaneidade, a partir
do significado representacional da ADC, de Fairclough (2001, 2003). Por fim, te-
cemos considerações acerca do aparecimento do discurso pedagógico hegemô-
nico do LDP, por meio das imagens, com as concepções de Kress e van Leeuwen
(2006), de Stokes (2002) e de Oliveira (2008).
15

O que seriam as Representações Sociais?


Com a intenção de situar uma das abordagens teóricas da presente pes-
quisa, traçamos o panorama do fenômeno das representações sociais voltado
para a compreensão dos fenômenos sociais que nos permitem identificar de
que modo concreto as representações são elaboradas a partir dos saberes po-
pulares e do senso comum.

Na perspectiva de Moscovici (2015), o reconhecimento da existência das


representações sociais significava aceitar uma nova forma de conhecimento da
nossa época, que não se propõe a considerar mais o que antes era visto como
objeto, mas como fenômeno. O autor passa a se filiar a uma corrente de pensa-
mento sociopsicológica para realizar sua teoria, inspirando-se no pensamento
de Durkheim (2007), que tratava do conceito de representações coletivas.

Para Moscovici (2015), as representações coletivas durkheimianas não per-


cebiam que a força da coletividade se encontra no cerne da dinâmica do social,
que se abre ao empenho dos sujeitos sociais que a desafiam e a transformam.
Moscovici sabia que o conceito de Durkheim era estático e tradicional, pensado
para outros tempos em que as sociedades não eram dinâmicas e fluidas (GUA-
RESCHI, 2012).

De acordo com uma psicologia socialmente orientada, deve-se considerar


de igual forma tanto os comportamentos individuais como os fatos sociais, ob-
servando que os comportamentos sofrem influência de tais fatos, mas também
contribuem para a elaboração deles. Para Jodelet (2001, p. 22), caracterizar a
representação social é reconhecer “uma forma de conhecimento, socialmente
elaborada e partilhada, com um objeto prático, e que contribui para a constru-
ção de uma realidade comum a um conjunto social”. É importante saber que as
representações sociais estão na maioria das nossas ações, circulando, entrela-
çando-se, consolidando-se por meio de palavras, gestos, encontros no nosso
cotidiano e permeiam as relações interpessoais que estabelecemos, aquilo que
produzimos ou consumimos e os diálogos que constituímos.

A fim de que possamos compreender melhor como se dá o fenômeno das


representações sociais, precisamos entender que elas são vistas como algo
acessível a um indivíduo ou a um grupo específico em nossa sociedade. Mos-
covici (2015) admite que para compreendermos esse fenômeno é necessário
que pensemos que o intuito de todas as representações seria transformar algo
não familiar em familiar. Para o autor, isso significa dizer que “os universos con-
sensuais são locais onde todos querem sentir-se em casa, a salvo de qualquer
risco ou conflito. Tudo o que é dito ou feito ali, apenas confirma as crenças e as
interpretações adquiridas, corrobora, mais do que contradiz, a tradição” (2015,
p. 54). Constituir algo não familiar em familiar é estabelecer um padrão de re-
ferência, usado como critério de avaliação de algo inusual, que vai muito mais
16

além da compreensão do que é familiar, formado de um hábito ou de algo com


que se foi acostumado, tornando-se “socialmente conhecido e real” (SÁ, 2015,
p. 201).

Vejamos, portanto, que, para a compreensão daquilo que nos propomos


a estudar, entender o fenômeno das representações sociais, identificando-o no
espaço da identidade feminina, é inevitável conhecer como as identidades são
construídas pelos indivíduos em meio à realidade social. Com base nessas in-
formações, observemos como a identidade feminina é construída socialmente.

Relações sociais e identidade de gênero

Como aspecto de prática social, o discurso, com seus elementos verbais e


visuais, configura-se como a dimensão essencial na concepção de valores, cren-
ças, conhecimento, pontos de vista em relação ao mundo. Tanto a prática como
a estrutura social interferem na finalidade do discurso que passa a ser adaptado
e limitado ao entorno socialmente construído, figurando de acordo com o meio
social ou institucional em que é ocasionado. A partir da leitura da obra de Fair-
clough (2003), as combinações dos elementos da ordem do discurso (discursos,
gêneros, estilos) se dão de modo dialético, ou seja, cada um absorve atributos
dos outros, sem se limitarem a um significado apenas. Voltemos nossa atenção
aos discursos, que estão ligados às representações, sendo o aspecto discursivo
dos modos de ser, sem, todavia, menosprezar os discursos representados pelos
materiais didáticos como elementos que constituem interdiscursividades.

Podemos localizar na ordem do discurso, recursos que intensificam re-


presentações identitárias, recursos dentre os quais se realizam as escolhas. Se-
gundo Magalhães (2010, p. 19), “os textos incluem ou excluem representações
identitárias; nomeiam-nas ou classificam-nas, usam nomes ou pronomes, re-
presentam-nas como atores ou afetados, de forma ativa ou passiva, específica
ou genérica, pessoal ou impessoal”. Há relações de poder, no que diz respeito
à interdiscursividade em que se pode verificar um movimento que banaliza po-
sições na prática social que favorece representações identitárias ligadas a uma
hegemonia que não reconhece outras representações.

Levando em consideração as identidades pessoais, quase sempre há ma-


nifestação de direcionamentos distintos para homens e mulheres, com abor-
dagens que os classificam em desacordo com a realidade, visto que aquilo que
se credita como adequado a eles parte da identificação do seu gênero social.
Embora a existência de um “patriarcado universal” (BUTLER, 2003) não tenha
mais a mesma confiabilidade do passado, a mudança de uma representação da
mulher, retratando-a de maneira opressora ou submissa, ainda tem se mostra-
do difícil de ultrapassar. Segundo Butler (2003, p. 21),
a noção binária de masculino/feminino constitui não só a estrutura ex-
clusiva em que essa especificidade pode ser reconhecida, mas de todo
17

modo a “especificidade” do feminino é mais uma vez totalmente des-


contextualizada, analítica e politicamente separada da constituição de
classe, raça, etnia e outros eixos de relações de poder, os quais tanto
constituem a “identidade” como tornam equívoca a noção singular de
identidade.

As diferenças entre as identidades de gênero são prejudicadas por um dis-


curso em que supostas universalidades interferem de fato na sua compreensão,
extrapolando preconceitos e fomentando violências que naturalizam relações
desiguais de poder (SANTANA, 2019). No que concerne à representação das
mulheres, a análise do material didático, inserido intrinsicamente no contexto
social da escola, pode contribuir para o fomento de abordagens críticas dos dis-
cursos sobre as identidades de gênero, a fim de investir em questionamentos
sobre como esses discursos foram formulados.

Com o intuito de associar a construção da identidade de gênero à repre-


sentação legitimada pelo discurso pedagógico hegemônico do material didático
de português, encontrado nas imagens ali presentes, vejamos como esses re-
cursos podem ser mobilizados para a produção de sentidos.

A elaboração das representações de gênero no discurso peda-


gógico no LDP
Ao propor uma análise das construções do discurso pedagógico do LDP,
através das imagens, no que tange às identidade de gênero, é importante des-
tacar o conceito de texto, em que Fairclough (2003, p. 3) nos adianta que “qual-
quer instância real da linguagem em uso é um “texto”2. Dessa forma, o autor
reconhece a linguagem como programas de televisão, porque assim como os
textos, eles “envolvem não apenas linguagem, mas também imagens visuais e
efeitos sonoros” (ibidem, 2003, p. 3)3 .

Com base no autor, admite-se pensar no contingente imagético dos ma-


teriais didáticos como multimodal, sendo modos semióticos importantes para
a compreensão de práticas socioculturais que integram a linguagem verbal e a
linguagem visual. Em um texto multimodal, vemos a possibilidade de mostrar,
a partir de diferentes maneiras, como as diferenças sociais são construídas, po-
dendo carregar um conjunto de discursos distintos daqueles dos textos (KRESS;
VAN LEEUWEN, 2006).

Em Chouliaraki e Fairclough (1999), vislumbramos a defesa de que o dis-


curso é um reflexo permanente das práticas sociais e discursivas, subordina-
do às mudanças sociais e em permanente movimento por vias duplas, já que
assim como ele é modificado pelo social, também é reportado como agente

2
“that any actual instance of language in use is a ‘text’” (tradução nossa).
3
“involve not only language but also visual images and sound effects” (tradução nossa).
18

transformador do meio social e sujeito a inúmeras intervenções semióticas que


se apresentam nos diversos discursos multimodais que o envolvem. Com isso,
entendemos que as representações sociais sobre as mulheres que ocorrem no
discurso pedagógico hegemônico do LDP, por meio das seções imagéticas, re-
produzindo uma identidade feminina, pode legitimar argumentos e/ou contri-
buir para a formação e manipulação de conhecimento e hierarquias dominan-
tes (VIEIRA, 2015).

Promover análises crítico-reflexivas acerca da manipulação das identida-


des de gênero no discurso pedagógico do material didático, sob um ponto de
vista não hegemônico, propõe novas abordagens que tornam ilegítimas pers-
pectivas que hierarquizam ou que afirmam as diferenças como desviantes,
aproximando-se de um debate crítico sobre gênero e sexualidade dissidentes.
Nesse sentido, a compreensão que desenvolvemos acerca das representações
sobre as mulheres baseia-se no entendimento de prática social imersa em uma
rede de outras práticas, que são de fundamental importância para investigar-
mos a representação feminina, que, como afirma Magalhães (2006, p. 82) “são
constituídas discursivamente por meio dessas redes”.

Nesse sentido, configuramos nosso trabalho investigativo a partir de um


percurso teórico-metodológico condizente com a Análise de Discurso Crítica,
envolvendo o conteúdo pedagógico do LDP, e com a dimensão discursiva das
Teorias das Representações Sociais, abrangendo as questões de gênero, de
modo a estabelecer uma interface entre as teorias. Com base nisso, vejamos,
então, o caminho analítico-metodológico pretendido na pesquisa.

NOTAS ANALÍTICO-METODOLÓGICAS EM CONSTRUÇÃO


Tendo em vista que, de acordo com Pereira (2014), a metodologia é mais
que um conjunto de passos e cânones a serem seguidos, mas sim um construc-
to analítico-teórico, conduziremos nossa pesquisa a partir de uma proposta me-
todológica tomando como referência teorias para a observação de fenômenos
particulares.

Quanto a seu método de abordagem, o presente trabalho classifica-se


como qualitativo, visto que o foco da nossa pesquisa está em investigar o cor-
pus, de modo que, ao analisá-lo, possamos identificar e descrever o fenômeno,
interpretando os dados coletados a fim de melhor compreender como o discur-
so pedagógico do LDP analisado propaga, através do recurso visual, represen-
tações sobre gênero e sexualidade.
Trata-se de um estudo de natureza exploratório-descritiva (MARCONI;
LAKATOS, 2003), que tem por objetivo descrever os processos de constituição
do discurso pedagógico do LDP, analisar como estas estruturas constituem ou
validam representações sociais.
19

Delimitação do corpus

Nosso corpus é composto das seções imagéticas retiradas de seis coleções


do Livro Didático de Língua Portuguesa, do PNLD, de 2020-2023, escolhidas para
vigorar nesse período. Os Livros Didáticos do último PNLD foram organizados
de acordo com a seleção feita pelo Ministério da Educação (MEC) em conjunto
com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), em editais do
ano de 2018, e submetidos à avaliação pedagógica.

Dessa forma, nossa análise partirá das obras didáticas abaixo elencadas:
•“Singular e Plural: leitura, produção e estudos de linguagem” (Editora Mo-
derna – código da coleção: 0355P20012);

•“Se liga na língua: leitura, produção de texto e linguagem” (Editora Moder-


na – código da coleção: 0306P20012);

•“Português: conexão e uso” (Editora Saraiva – código da coleção:


0019P20012);

•“Geração Alpha Língua Portuguesa” (Editora SM – código da coleção:


0005P20012);

•“Apoema” (Editora do Brasil – código da coleção: 0366P20012);

•“Tecendo linguagens” (Editora IBEP – código da coleção: 0026P2


0012).

Essa escolha nos permitirá estabelecer comparações no momento da aná-


lise, a fim de identificarmos de que maneira as representações sociais legiti-
mam, como legitimam, ou não legitimam identidades femininas, por meios de
observação das seções imagéticas do LDP, ao longo das coleções selecionadas.

O recorte temporal escolhido se dá pelo fato de essas coleções serem as


últimas escolhas do PNLD e as primeiras a vigorarem no atual governo brasilei-
ro. Veremos se esses materiais se constituirão como um campo de investigação
que possa provocar reflexões acerca das representações sociais sobre gênero
e sexualidade.
20

Procedimentos e categorias de análise

A respeito das categorias de análise, apoiamo-nos em uma abordagem so-


cial do discurso pedagógico do LDP em torno do projeto de análise das repre-
sentações sociais sobre a mulheridade e as representações de gênero, constru-
ídas no material didático. Tais categorias também contemplam o aporte teórico
da ADC, de Fairclough (2001, 2003) a partir do significado representacional, por
meio da observação das relações discursivas sobre gênero e sexualidade mani-
festadas nos materiais analisados.

Estamos comprometidas em discorrer de modo genérico acerca do con-


texto socio-histórico e cultural brasileiro da produção dos materiais didáticos
analisados, sobretudo no que diz respeito às questões de gênero, aos lugares
ocupados pelas mulheres, bem como as representações sociais sobre elas cons-
truídas através do discurso pedagógico do LDP, veiculado por meio de imagens,
observando o processo de ancoragem na incorporação e transformação de ca-
tegorias não familiares em familiares, e exibindo a relação entre as estruturas
discursivas das representações sociais analisadas.

Examinaremos como se dão as condições contextuais de produção das


repre sentações sociais sobre as mulheres e o funcionamento das estruturas
discursivas do LDP, com base em uma análise crítica, a fim de viabilizar a análise
de categorias discursivas que encontraremos no discurso pedagógico do LDP,
visualizadas através das imagens presentes no livro, a saber: as representações
sociais, as questões de gênero, a reprodução de identidades. Em seguida, analisa-
remos elementos presentes nesse discurso que nos permita esclarecer como as
categorias selecionadas funcionam na estruturação de representações sociais e
verificaremos as materialidades voltadas à representação das mulheres nesses
materiais.

A partir dos dados levantados, veremos como se dão os posicionamentos


do LDP em relação às representações de gênero, de modo a criar um ideal femi-
nino, percebendo (ou não) a multiplicidade de sentidos que comporta o tema.
Discutiremos sobre como esses posicionamentos promovem uma conexão en-
tre as formas simbólicas presentes nos LDP estudados e sobre a investigação do
surgimento e funcionamento dessas formas.
21

CONSIDERAÇÕES QUASE FINAIS


Importante destacar que as ideias lançadas no presente trabalho, ainda
necessitam de um amadurecimento significativo. Temos, felizmente, vislum-
brado o nascimento de um percurso profícuo de teorias complexas e enrique-
cedoras, na mesma medida. A interface proposta entre os estudos críticos do
discurso, a psicologia social e os estudos sobre gênero e sexualidade, desvela a
necessidade de um trabalho conjunto que consiga preencher espaços voltados
para um aprendizado multicultural, afastando-se, obstinadamente, de antigos
padrões de comportamento, o que nos permite criar estratégias para que haja
respeito por todas as vozes que existem na nossa sociedade, em especial a do
ser-mulher em sua amplitude, objeto da nossa investigação.

Salientamos que considerar as representações sociais sobre as mulheres,


tomando como ponto de partida o reconhecimento de identidades de gênero,
como forma de ser e de estar no mundo, no âmbito do LDP, implica estimular o
entendimento de que se deve refletir criticamente com base em uma perspec-
tiva curricular que considere a reformulação de tipos socialmente representati-
vos, refletindo acerca da desconstrução de estereótipos.

Nesse sentido, considerar um estudo em que se repense a prática social,


levando em conta a transformação da realidade/crenças/imagens/posiciona-
mentos com o objetivo de confrontar, com consistência e clareza, autoritaris-
mos, que não dão espaço para outras maneiras de ser e de estar no mundo, é
de interesse e necessidade urgentes. Questionar as formas de composição dos
discursos pedagógicos hegemônicos, que se entranham nos materiais didáti-
cos, é condição para modificar modelos de representação que se apresentam
como um processo elaborado, a partir da ocorrência de maneiras específicas de
compreender e comunicar aquilo que sabemos.

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CAPÍTULO 2
24

QUEERIZANDO O PASSADO: ENTRELAÇAMENTOS ENTRE


A ESCRITA DA HISTÓRIA E A TEORIA QUEER
Anne Raquel da Silva Nascimento1
Universidade Federal Rural de Pernambuco

INTRODUÇÃO
O presente capítulo é fruto da pesquisa que venho desenvolvendo atual-
mente, no mestrado em História da Universidade Federal Rural de Pernambu-
co1. A pesquisa, ainda não finalizada, refere-se ao estudo do grupo social das
travestis e à representação das suas corpas em jornais pernambucanos, ora
sendo marginalizadas, ora estampando as páginas de cultura. O recorte tempo-
ral explorado no processo de escrita da dissertação compreende os anos entre
1970 e 1985. A escolha se dá por corresponder aos anos que sucederam a pro-
mulgação do Ato Institucional nº5 (AI-5)2 , aos chamados anos de chumbo3 e ao
período que corresponde ao início da abertura política.

Diante do exposto, me interessa, neste texto, refletir sobre as conexões


entre a escrita da História e os conceitos provenientes da Teoria Queer, por
entender que há uma escassez desses entrelaçamentos na historiografia bra-
sileira. Ao provocarmos esse deslocamento, podemos olhar a História através
das lentes da Teoria Queer e para além de suas margens. Esse movimento nos
permite afirmar que a História, assim como a nossa sociedade, encontra-se em
constante processo de mudança, desconstrução e construção.

Por ter herdado as estruturas binaristas das ciências modernas, a História,


por muitos anos, foi aprisionada num regime epistemológico da normalidade. A
Teoria Queer ainda está longe de estabelecer “um novo paradigma historiográ-

1
Sou transmasculine e utilizo socialmente o nome Caíque Nascimento. Atualmente, mestrande em História Social da Cultura Regional
pela Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRPE; licenciade em História pela Universidade Católica de Pernambuco – Unicap.
Desenvolvo pesquisas a partir das perspectivas de gênero, sexo e sexualidade como categorias de análise, sabendo que essas tam-
bém atravessam a minha pele. E-mail: caiquesnasc@gmail.com.
1
Este trabalho faz parte do projeto “Narrativas queer(izadas): diálogos entre historiografia, saberes subalternos e teoria queer”, sob
a coordenação e orientação do Prof. Dr. Natanael Duarte de Azevedo, financiado com a bolsa de Pós-Graduação pela Fundação de
Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE). A referida pesquisa está circunscrita às atividades da Linha de
Pesquisa “Linguagem, Gênero e Relações de poder: a ascensão das minorias”, do Laboratório de Estudos da Linguagem, Literatura e
História (LANGUE), disponíveis em www.langueufrpe.com.
2
O Ato Institucional nº 5 (AI-5) foi assinado em 13 de dezembro de 1968 pelo Presidente marechal Costa e Silva.
3
Considerado como o período de maior repressão da ditadura cívico-militar no Brasil. Corresponde ao período que vai da institucio-
nalização do AI-5 até o final do governo Médici.
25

fico – e, possivelmente, esta não é a intenção desse movimento político-teórico”


(BRULON, 2018, p. 71), uma vez que ele tenta manter-se fora, mesmo quando
se localiza dentro. Contudo, uma historiografia queer tem como proposta des-
construir e reformular o escopo teórico-metodológico, além de opor-se ao que
é posto como natural ao deslocar para o centro os saberes tidos como subal-
ternos.

Ao queerizarmos a História, como aponta Bruno Brulon (2018, p. 70), re-


qualificamos “os objetos recebidos da tradição cultural e espitêmica de modo a
transformar a nossa própria relação com esses objetos”. Além disso, podemos
lançar luz sobre as corpas que foram – e ainda são – marginalizadas e impedidas
de terem uma vida vivível. Esses entrecruzamentos tornam possível a constru-
ção de epistemologias outras, que foram/estão sendo construídas por meio dos
múltiplos olhares sobre as corpas, os gêneros e as sexualidades dissidentes,
tornando possível os questionamentos e a desestabilização dos conceitos e mé-
todos utilizados na escrita da História.

Ao falarmos sobre a dissidências no Brasil precisamos compreender que,


durante muitos anos, as corpas desviantes eram enquadradas dentro da cate-
goria ‘homossexualidades’. Por isso, estabeleceu-se notórias diferenças hierar-
quizantes entre as travestis, homossexuais entendidos, andróginos, bichas etc.
As travestis eram as mais excluídas, tendo as diferenças acentuadas de acordo
com as estéticas, signos, classes sociais, cor da pele, espaços de sociabilidade
frequentados e profissões. Veremos, ao longo de todo o texto, o emprego do
termo homossexualidades, pelos autores/as citados/as, para se referir às diver-
sas corpas que fazem parte das nossas análises e materiais utilizados.

Como vocês já devem ter percebido até aqui, precisei fazer algumas esco-
lhas no que se refere ao uso da linguagem escrita, justamente por entender que
esta é uma construção social e histórica, que varia de uma cultura para outra
e que pode ser modificada (FRANCO; CERVERA, 2006). Sabendo que esse tipo
de linguagem reflete as desigualdades de gênero e naturaliza a exclusão das
mulheres e das pessoas que não se enquadram dentro do binarismo de gê-
nero, uma das escolhas para este texto, por exemplo, foi a utilização do termo
“corpas”. Além disso, algumas outras escolhas foram feitas para questionar a
construção do masculino como hegemônico na linguagem.

Ademais, este capítulo será dividido em duas partes. A primeira focará em


um levantamento bibliográfico de algumas obras que contribuíram para trazer,
ao centro, as corpas dissidentes que são marginalizadas na historiografia brasi-
leira, não necessariamente seguindo uma ordem cronológica das publicações.
Na segunda parte, abordarei os processos que culminaram na emergência e
cristalização da Teoria Queer e de como a História, aos poucos, tem se aberto a
essa nova discussão.
26

UM BREVE MAPEAMENTO
As dissidências sexuais e de gênero raramente são temas priorizados pela
historiografia, tanto que foi preciso criar epistemologias outras para que essas
corpas se tornassem agentes da História. Nessas criações, o movimento de tra-
zer para o centro aquelas que foram lançadas para a margem da sociedade teve
início na década de 1960, com o surgimento da História das mulheres e com
os ideais e objetivos do movimento feminista. Compreendeu-se, com isso, que
quanto mais marginalizadas, mais as corpas são consideradas como não impor-
tantes e possuem as suas trajetórias e identidades apagadas. A historiadora
Joan Scott contribui para o debate sobre a História das mulheres publicando,
em 1992, o capítulo História das mulheres, compondo o livro A Escrita da História:
novas perspectivas, organizado por Peter Burke.

Nessa publicação, Scott traz considerações acerca da importância que


os estudos sobre as mulheres tiveram ao questionarem a escrita da História
universalizante, feita por homens e em nome dos homens brancos, ricos, eu-
ropeus, heterossexuais e cisgêneros4. Estes, por sua vez, seriam considerados
como aptos a dominar os procedimentos e exercer o ofício do historiador. Nes-
se novo cenário, foi justamente a desestabilização da História que forneceu im-
pulso suficiente para que as historiadoras feministas permanecessem em busca
das mudanças necessárias na escrita da História.

Como consequência disso, nos anos 1980, o conceito de gênero torna-se


uma ferramenta teórica utilizada por feministas estadunidenses. Acerca disso,
Paul B. Preciado (2011, p. 13) afirma que:

Não é por acaso que, nos anos 1980, no debate entre feministas “cons-
trutivistas” e feministas “essencialistas”, a noção de “gênero” torna-se-ia
o instrumento teórico fundamental para conceitualizar a construção
social, a fabricação histórica e cultural da diferença sexual, diante da
reivindicação da “feminilidade” como substrato natural, como forma de
uma verdade ontológica.

Dialogando com isso, em Gênero: uma falácia contemporânea?, João Beraldo


(2020) afirma que as feministas norte americanas propuseram o uso da catego-
ria gênero, a fizeram como medida paliativa para denunciar o caráter social e
biologizante das distinções estabelecidas entre o sexo feminino e masculino. Já
para Joan Scott, em Gênero: uma categoria útil de análise histórica, publicado em
1995, uma das premissas básicas presente na utilização da análise de gênero é
estudar, associadamente, as mulheres e os homens, como também as relações
sociais que envolvem esses sujeitos.

4
Pessoas cis, cisgêneros ou não trans são aquelas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído socialmente, ao nascer.
27

Nesse âmbito, no Brasil, os primeiros estudos de gênero ancoravam a tra-


vestilidade à homossexualidade. Como ainda não havia uma identidade travesti
consolidada durante a ditadura cis-hétero-militar5 – e nem identidades que fi-
cariam conhecidas, mais tarde, como pertencentes ao movimento LGBTIA+6 – o
termo homossexualidades era comumente utilizado para se referir também à
essas corpas. Essa generalização refletiu nos estudos sobre gênero e sexua-
lidade que estavam ocorrendo dentro das universidades. Um exemplo disso
é que, na obra Devassos no Paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à
atualidade, João Silvério Trevisan (2000) apresenta, numa proposta de retomada
histórica, somente em dois capítulos, aspectos relacionados à travestilidade.

Um outro exemplo desse apagemento de travestis por meio de uma gene-


ralização é o livro Ditaduras e homossexualidades: repressão, resistência e a busca
da verdade, organizado por James Green e Renan Quinalha (2015). Essa obra,
como o próprio nome já diz, traz para o centro da discussão múltiplos olhares
que relacionam a ditadura cis-hetero-militar com as homossexualidades. Po-
rém, somente no capítulo Por baixo dos panos: repressão a gays e travestis em
Belo Horizonte (1963-1969), escrito por Luiz Morando (2015), o termo ‘travestis’ é
referenciado. Nos demais capítulos, as travestis estão presentes somente como
mais uma das homossexualidades e não como uma outra identidade.

Em contrapartida, é importante ressaltar, como afirmam Elias Veras e Jo-


ana Maria Pedro (2014), em Os silêncios da Clio: escrita da história e (in)visibili-
dade das homossexualidades no Brasil, ainda que com esses processos de não
reconhecimento de uma identidade travesti, os estudos produzidos por sujeitos
que se colocavam enquanto homossexuais foi de extrema importância para as
transformações políticas e sociais nas décadas de 1970 e 1980. Isso porque, até
a década de 1970, os estudos sobre a homossexualidade eram exclusivamente
produzidos dentro do campo médico e policial. Esse rompimento abriu uma
série de precedentes sociais, epistêmicos, políticos etc. que reverberam até os
dias de hoje.

Acerca desse deslocamento, no livro O que é homossexualidade, os auto-


res Peter Fry e Edward MacRae (1985) observaram que só era possível realizar
críticas ao governo ditatorial através das bases do cotidiano, como em palcos,
shows, festas em casas noturnas, por meio da música, espetáculos teatrais etc.,
sempre utilizando o deboche como ferramenta anticensura. Esses espaços, ain-
da conforme Fry e MacRae e também com Trevisan (2000), eram ocupados por

5
Renan Quinalha discorre sobre a utilização do termo “hétero-militar” por compreender que, em todo regime político, há políticas
sexuais e, na ditadura brasileira (1964-1985), não foi diferente, pois havia uma associação entre o regime autoritário e a regulação das
sexualidades. Os militares não utilizavam apenas os aspectos políticos contidos na Doutrina de Segurança Nacional, “mas também
morais, ao associar a homossexualidade a uma forma de degeneração e de corrupção da juventude” (QUINALHA, 2017, p. 25). Afon-
so-Rocha e Pereira propuseram a reescrita deste termo para ditadura “cis-hétero-militar”, por compreenderem “a produção do corpo
e das sexualidades em torno da cisgeneridade” e para lançar luz sobre a face oculta da “dimensão cisnormativa da ditadura brasileira”
(2019, p. 6). Utilizo o termo cis-hétero-militar, neste texto, justamente por concordar com esta proposta de reescrita.
6
Lésbicas, gays, bissexuais, trans e travestis, intersexuais, assexuais e demais existências.
28

travestis e homossexuais, fato que atesta o poder de confronto que essas exis-
tências carregavam.

Por outro lado, James Green (2019) discorre, em Além do carnaval: a ho-
mossexualidade masculina no Brasil do século XX, acerca das travestis no mer-
cado da prostituição. O autor ressalta que a prostituição vinha aumentando,
desde o início da década de 1970, como “reflexo da crescente comercialização
e mercantilização do sexo na sociedade brasileira” (GREEN, 2019, p. 413) e da
desigualdade social. As corpas travestis, muitas vezes, tinham na prostituição a
sua única fonte de renda por não conseguirem exercer outras atividades finan-
ceiras – estigma que carregam até hoje. Esse contraste nos registros históricos
só demonstram a ambiguidade dessas corpas sendo transformadoras políticas
por vias das artes cênicas, mas também vítimas da sociedade ao terem suas
vidas objetificadas.

Finalizando as produções acadêmicas que tratam do território brasileiro


como um todo, trago para este trabalho a obra lançada recentemente, em 2018,
organizada por James Green, Renan Quinalha, Marcio Caetano e Marisa Fernan-
des: História do Movimento LGBT no Brasil. Diferentemente das outras obras,
esse livro já retira as travestis das margens e as levam para o centro dos estu-
dos sobre a população LGBTIA+. Inclusive, não só colocam as travestis como
sujeitas da História como também trazem capítulos escritos por mulheres trans
e travestis.

Já na região do Nordeste brasileiro, propondo-me a fazer um movimento


de recorte até chegar em Pernambuco, podemos destacar três obras que fo-
cam exclusivamente na travestilidade; as duas primeiras referem-se ao Estado
da Bahia e a terceira ao Estado do Ceará. Neuza Maria de Oliveira (1994) e Don
Kulick (2008), autora e autor, respectivamente, de Damas de paus: o jogo aberto
dos travestis no espelho da mulher e Travesti: prostituição, sexo, gênero e cultura no
Brasil, abordam questões relacionadas com o cotidiano das travestis que tra-
balhavam como prostitutas na cidade de Salvador, bem como os seus trânsitos
pela cidade

Já no livro Travestis: carne, tinta e papel, escrito por Elias Veras (2019), o histo
riador analisa, por meio dos jornais cearenses, como ocorreu a consolidação
da identidade travesti na cidade de Fortaleza; assim como os discursos sobre a
travestilidade que eram construídos nesse tipo de mídia impressa. A obra é de
extrema importância para analisarmos como os estigmas afetavam a vida das
travestis e, a partir dela, pensarmos como reescrever a História sem recair no
discurso hegemônico que marginaliza e criminaliza a corpa travesti.

Em Pernambuco, agora uma exposição mais especifica, estado no qual re-


sido e que compõe o cenário da minha pesquisa de mestrado, podemos desta-
car a dissertação Quando ser gay era uma novidade: aspectos da homossexualida-
29

de masculina na cidade do Recife na década de 1970 (2011). A dissertação escrita


por Sandro Silva, no Programa de Pós-Graduação em História da UFRPE, foi a
única encontrada na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD)
com o recorte temporal e espacial semelhantes aos utilizados em meus traba-
lhos. À título de registro desse levantamento bibliográfico, o tema central da
dissertação é a construção da homossexualidade masculina na cidade do Recife
durante a década de 1970.

A única problemática que destaco desse trabalho de Silva (2011) é conside-


rar a travestilidade como um subgrupo das homossexualidades. Entendemos
que o autor, provavelmente, escolheu abordar a travestilidade como uma ho-
mossexualidade para evitar possíveis anacronismos, uma vez que ainda não
existia uma identidade travesti consolidada na década de 1970, como já men-
cionei. Entretanto, também considero importante o movimento de, cada vez
mais, colocar as corpas travestis como agentes de suas trajetórias, e a travesti-
lidade como uma identidade em construção antes mesmo do período ditatorial
aqui observado.

Todas as obras, de igual modo, contribuíram para a escrita deste traba-


lho, exatamente por trazerem novos olhares para a História já que, por muitos
anos, os estudos sobre as homossexualidades, e mais ainda sobre a travestili-
dade, foram lançados à margem da produção de conhecimento. Sem esses/as
autores/as que provocaram rupturas na História tradicional e criaram outras
epistemologias não seria possível a construção desta pesquisa e nem os frutos
que colheremos dela.

EPISTEMOLOGIA DISSIDENTE
A ruptura dos padrões hegemônicos da História teve seu início com a ori-
gem da História das mulheres e com as políticas feministas, durante a década
de 1960; nesse período, as acadêmicas feministas reivindicavam que as mulhe-
res fossem consideradas como sujeitos da história. A emergência desse novo
campo, portanto, foi possível graças à inserção das mulheres na academia e
ao contato estabelecido com autoras e perspectivas feministas. É importante
salientar que, neste período, as mulheres que estavam inseridas na academia
eram, ainda que fossem cis, brancas e pertencentes às classes mais abastadas
da sociedade. Mesmo assim, escrever sobre a História das mulheres se tornou
um desafio político para os/as acadêmicos/as que se viam enfrentando as au-
toridades dentro das universidades ao tentarem estabelecer novas formas de
escrever a História (SCOTT, 1992).

Com o intuito de relegar o estudo sobre as mulheres, os historiadores mais


tradicionais construíram barreiras hierarquizantes que qualificavam quais se-
30

riam os padrões a serem seguidos pelos seus pares. Desse modo, o julgamento
daquilo que poderia ser aceito ou não, no campo da História, estaria baseado
na avaliação daqueles que detinham o poder. Refletindo sobre isso, Joan Scott
(1992, p. 71) escreve que, para os historiadores tradicionais, “[...] a história é o
conhecimento do passado obtido por meio de uma investigação desinteressada
e imparcial [...] e universalmente para quem quer que tenha dominado os pro-
cedimentos”; nesse caso, homens cis, héteros, brancos e eurocentrados.

Foram esses homens, então, que definiram os padrões a serem seguidos,


a fim de que a história fosse escrita no masculino, enquanto as corpas dissi-
dentes eram lançadas às margens do conhecimento. Joan Scott (1992) também
afirma que as mulheres contestavam justamente essa noção da profissão do/a
historiador/a como campo unitário. Apesar de terem sido apontadas pelos his-
toriadores tradicionais como tendo corrompido a profissão, as historiadoras
nunca deixaram de defender a educação e os julgamentos de qualidade que
não desvalorizassem os seus escritos somente por estarem situados no campo
da História das mulheres.

Essa desestabilização da disciplina forneceu o impulso necessário para


que as historiadoras e acadêmicas feministas permanecessem sentindo o an-
seio pelas mudanças. Compreender a importância da presença de mulheres
na História é “ir contra as definições de história e seus agentes estabelecidos
como ‘verdadeiros’, ou pelo menos, como reflexões acuradas sobre o que acon-
teceu (ou teve importância) no passado” (SCOTT, 1992, p. 77). Em paralelo a essa
emergência da História das mulheres, a categoria ‘mulheres’ também despon-
tava enquanto identidade política: houve um processo de difusão da marcação
da categoria ‘mulheres’ como sendo aquela que era oprimida pelos homens. Ao
mesmo tempo, como efeito colateral danoso, a oposição mulher-homem essen-
cializava uma natureza binarista dividida entre fêmea e macho.

Por mais que essa diferenciação fosse renegada pela história hegemônica,
foi através dela que o estudo sobre as mulheres conseguiu ser legitimada, isso
porque a História, nesse tempo, estava em processo de mudança, fato que tor-
nou a disciplina favorável e aberta às transformações. Esse novo “empreendi-
mento histórico” (SCOTT, 1992, p. 84), apesar de sua proposta, não estava den-
tro do hall das questões consideradas como sendo as mais importantes para
a disciplina; e seu caráter político e subversivo era deslocado para uma zona
separada. Esta transferência nos leva a crer que o lado político era colocado
como suspeito de fazer uso da parcialidade e que, consequentemente, entraria
em descrédito pelos historiadores detentores do poder.

Surge, então, na década de 1980, como reflexo das lutas feministas, da


História das mulheres e do alcance da categoria ‘mulheres’, a categoria ‘gênero’.
Seguindo essas transformações, o feminismo migrou para o campo da História
das mulheres e, em seguida, migrou para a categoria ‘gênero’, classificada como
31

sendo um método de análise histórica. O termo é introduzido nas análises com


uma proposta de neutralidade que conectaria os estudos sobre os gêneros
masculino e feminino, bem como as relações sociais provenientes de ambos.
É importante ressaltar que, apesar de ser fruto da luta feminista e da História
das mulheres, o termo ‘gênero’ não pode ser compreendido como sendo equi-
valente a mulher/mulheres, ou até mesmo, ao sexo, pois essas duas últimas
categorias não almejam enquadramento em termos essencialistas.

Acerca disso, segundo Judith Butler (2015) argumenta que o termo ‘mulher’
é um devir, não se podendo afirmar onde teve o seu início, ou qual será o seu
fim. Entretanto, conforme explica João Beraldo (2020), as feministas americanas
que propuseram o uso da categoria ‘gênero’, o fizeram como medida paliati-
va para denunciar o caráter social e biologizante das distinções estabelecidas
entre o sexo feminino e masculino. É notório que houve, gradualmente, uma
substituição do termo ‘mulheres’ pelo termo ‘gênero’ em publicações de livros
e artigos nos meados de 1980. Isso ocorreu porque a palavra gênero, por ser
mais neutra, não denotava um posicionamento político e, por isso, não era uma
ameaça à História tradicional.

A partir dessas transformações, utilizar o gênero como ferramenta de aná-


lise, nos permite repensar certas práticas do fazer historiográfico e enxergar
as relações existentes entre a categoria e a sociedade. Conforme diz Joan Scott
(1995, p. 73), “[...] o gênero era um termo proposto por aquelas que sustenta-
vam que a pesquisa sobre as mulheres transformaria fundamentalmente os
paradigmas disciplinares”. A autora ainda entende como gênero a junção das
seguintes proposições:

[...] (1) o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais base-


adas nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma
forma primária de dar significado às relações de poder. As mudanças
na organização das relações sociais correspondem sempre a mudanças
nas representações do poder, mas a mudança não é unidirecional.

As historiadoras feministas, nesse contexto e graças a essa compreensão,


acreditavam na possibilidade da inclusão das vivências pessoais e das ativida-
des políticas na História.

Ampliando a discussão, as estruturas reguladoras de poder cristalizam o


gênero para que ele tenha um aspecto de substância e para que seja lido como
natural. Porém, o gênero é um ato, ou uma sequência de atos, que se repe-
tem no interior dessa estrutura; ou seja, o gênero é sempre um fazer e esta-
mos sempre fazendo gênero! (BUTLER, 2015). Esses atos estão constantemente
ocorrendo e não há como escapar das suas repetições, uma vez que ninguém
existe fora das estruturas reguladoras de gênero. Não há como esquivar-se do
poder, nem mesmo as corpas mais dissidentes.
32

Logo, o gênero é o efeito de uma prática regulatória que normatiza os su-


jeitos por meio da heterossexualidade compulsória. Esta consiste numa rela-
ção binária entre o masculino e o feminino, por meio do qual é naturalizada e
consolidada uma diferenciação baseada em práticas do desejo heterossexual.
Dessa binariedade presente nos atos reificados, são criados os papéis sociais
que homens e mulheres devem exercer.

No Brasil e no exterior, durante as décadas de 1970 e 1980 – período em


que o ativismo político adentrou nas universidades, juntamente com os movi-
mentos contraculturais –, os estudos de gênero e sexualidade eram focados
nos/as homossexuais, conforme já mencionei. Isso constribuiu com o pensa-
mento de que a homossexualidade era restrita à uma minoria diferente que
precisava ser apenas assimilada e respeitada pela sociedade. Ainda que seja
indispensável ressaltar a importância dos estudos gays e lésbicos, é também
preciso destacar que as múltiplas formas de vivência eram ignoradas ao passo
em que apenas a hegemonia heterossexual era questionada (MISKOLCI, 2017).

Em 1970, o movimento homossexual era tímido e os encontros entre os


grupos de sociabilidade ainda ocorriam de forma clandestina, como bem apon-
ta Guacira Lopes Louro (2001). A autora enfatiza que esse movimento identitá-
rio foi conquistando o seu espaço em revistas, jornais, no teatro e na arte, ao
passar dos anos. Os membros dos grupos compostos por homossexuais, que
foram exiliados no período ditatorial, ao retornarem ao Brasil na segunda meta-
de de 1975, trouxeram consigo as experiências estrangeiras e os ideais políticos
feministas, sexuais e raciais que circulavam fora do país. A partir dessas articu-
lações, a ideia de comunidade homossexual foi sendo solidificada, no sentido
de sair do campo da libertação para adentrar num discurso de uma minoria que
buscava atingir a igualdade de direitos.

Como discorre Louro (2001, p. 544), “a política de identidade praticada du-


rante os anos 70 assumia um caráter unificador e assimilacionista, buscando
a aceitação e a integração dos/das homossexuais no sistema social”. Um dos
fatores que contribuiu para a consolidação da política de alianças no Brasil, para
além das identidades, foi o surgimento da aids em 1980. Nesse momento, as
alianças constituíam-se pelas afinidades que uniam os/as sujeitos/as atingidos/
as, familiares, amigos/as e profissionais de saúde. Contudo foi somente em
1980 que a temática foi transportada, fortemente, para dentro das universida-
des e grupos de pesquisa.

Os novos movimentos sociais citados anteriormente são de extrema im-


portância para compreendermos como o cenário foi construído para entrada
da Teoria Queer no Brasil e no resto do mundo. Os movimentos que ganharam
força na época da contracultura eram marcados pela reivindicação de direitos
e pela influência exercida dentro das universidades (MISKOLCI, 2017). Sendo
assim, para que possamos queerizar a história precisamos refletir sobre a his-
33

torização da Teoria Queer.

Foi Teresa de Lauretis quem proferiu pela primeira vez a expressão ‘teoria
queer’, em 1990, durante uma palestra ministrada na Universidade da Califór-
nia. A sua utilização serviria para opor-se aos estudos gays e lésbicos e para
desenvolver uma crítica à visão hegemônica que se tinha da cultura Ocidental
(BRULON, 2018). Ainda segundo a autora, “naquele momento, a teoria queer era
um projeto crítico que tinha o objetivo de resistir à homogeinização cultural dos
‘estudos gays e lésbicos’ que estavam pela academia, tomados como um campo
de estudo singular e unificado” (LAURETIS, 2019, p. 398).

Numa perspectiva etimológica do termo, o vocábulo queer, de origem an-


glófona, existe há quatro séculos e possui uma conotação negativa e pejorativa
quando se refere à homens e mulheres homossexuais. Por não ter tradução
direta para o português, podemos aproximá-lo do significado das seguintes
palavras: estranho, esquisito, vulgar, veado, sapatão, frango e correlatos. De
Lauretis (2019) aponta que foi Oscar Wilde quem primeiro teve sua imagem,
enquanto homossexual, relacionada à palavra; esse fato ocorreu após o seu jul-
gamento em 1895. Na ocasião, o escritor inglês foi acusado e condenado a dois
anos de prisão por ser homossexual, por ser queer.

Após ser usada para se referir a Oscar Wilde, a palavra foi associada au-
tomaticamente à homossexualidade, criando um estigma que só foi superado
com o advento dos movimentos de liberação homossexual. A partir desse epi-
sódio, o queer passou a significar o posicionamento dos indivíduos contra o
sistema de normas reguladoras de gênero, independentemente do seu local de
origem. Contribuindo com essa discussão, Richard Miskolci (2017, p. 25) afirma
que:

O novo movimento Queer voltava sua crítica à emergente heteronor-


matividade [...], portanto [o queer] não é uma defesa da homossexuali-
dade, é a recusa dos valores morais violentos que instituem e fazem va-
ler a linha da abjeção, essa fronteira rígida entre os que são socialmente
aceitos e os que são relegados à humilhação e ao desprezo coletivo.

A escrita da História sob a ótica da heteronormatividade lança para à mar-


gem as corpas desviantes e as toma somente como objetos, e não como sujei-
tos da História. A perspectiva queer surge justamente com a proposta de tonar
visíveis as violências provocadas pelo regime normatizador e pela criação das
corpas normais e anormais, na qual inscreve os gêneros incoformes como sujei-
tos anormais (MISKOLCI, 2017; BRULON, 2018). A Teoria Queer busca trazer para
o centro da discussão as experiências daquelas/es que são marginalizadas/os e
tem as suas corpas interpeladas pelos estigmas.
34

Acerca disso, o historiador Bruno Bulon (2018, p. 49) aponta que “[...] a
teoria queer propõe a desconstrução dos regimes de identidade na medida em
que estes criam a marginalização dos sujeitos e seu consequente silenciamen-
to”. Os avanços dos estudos queer trouxeram também críticas aos historiadores
tradicionais que apontam a Teoria Queer como sendo politizada e anacrônica –
vale ressaltar aqui que não podemos mais acreditar em uma História neutra ou
despolitizada. Sendo assim, ao trazermos a união entre a teoria, a prática e a po-
lítica podemos lançar luz sobre as vidas que foram impedidas de serem vivíveis.

Em arremate a esses apontamentos, alinho-me a Butler (2016) ao compre-


ender que as perspectivas teóricas emergem como parte de um processo his-
tórico e de um embate constante acerca de como pensar a respeito de termos
básicos, como gênero, sexo, sexualidade e corpo, todos eles possuindo uma
história. Ainda segundo a autora, entendendo a importância de novas maneiras
de fazer História, a função do feminismo, da teoria e do ativismo trans/travesti
é “fazer com que respirar seja mais fácil” (BUTLER, 2016, p. 24). Por fim, separar
em lados opostos a teoria, a prática e a política, sobretudo em uma análise his-
tórica, é uma falácia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista o que foi dito até aqui, ao queerizarmos a História, pode-
remos contribuir para a reformulação dos saberes que endossam as normali-
zações e silenciam as vozes subalternas. A História, como campo que está em
constante disputa e que é tensionada pela política, lança luz sobre os lugares
sociais das relações de gênero, sexualidade, raça e classe (SCOTT, 1992). O en-
trelaçamento entre a História e a Teoria Queer, nesse cenário, é importante para
que possamos pensar em como tornar a vida daqueles/as que estão à margem
o mais vivível possível e para que possamos desenvolver epistemologias outras.

Não estabelecer entrelaçamentos entre a teoria e a política, principalmen-


te, é afirmar quais discursos serão aceitos e quais não serão; é afirmar quais
teorias serão aceitas e quais não serão. Ainda mais especificamente, é esta-
belecer quais teorias serão aceitas como política e quais não serão. Quando o
feminismo começou a questionar as epistemologias e a ausência das mulheres
dentro da academia e dentro dos estudos sobre a sociedade, também começou
a questionar quais teorias e quais políticas eram aceitáveis dentro da História,
abrindo caminho para a construção de outras epistemologias.

Essa disciplina, por muitos anos, foi utilizada como instrumento de colo-
nização por homens brancos, europeus, heterossexuais e cisgêneros. Desse
modo, em reafirmação, não há como excluir a política, as relações de poder e as
experiências das corpas dissidentes, uma vez que todas elas são vítimas desse
processo e que também devem ser reconhecidas enquanto produtoras de dis-
35

curso, portanto agentes de transformação. O movimento que estamos fazendo,


aqui e agora, nos permitirá alcançar voos cada vez mais altos em direção a uma
escrita da História mais democrática, equânime, justa, que contemple as traje-
tórias de todas as corpas.

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CAPÍTULO 3
38

PERFORMATIVIDADE LINGUÍSTICA EM NOMES POPULA-


RES SEXUALIDADES
Bruno Pacheco de Souza1
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

INTRODUÇÃO
Numa cultura “falocêntrica”, o pênis é sempre visto como um instrumento
de poder e soberania, sendo representado com vocábulos relacionados à for-
ça, a armamento, à exaltação, além de ser significado comumente por objetos
de formatos anatômicos semelhantes ao membro. Em contrapartida, o ânus é
visto socialmente como lugar abjeto e desprezível. Por mais que o ânus possua
função sexual, principalmente na relação homoerótica, a sua referenciação é
geralmente feita através de vocábulos depreciativos, quando não são silencia-
dos e tidos como tabu.

Apesar de, no Brasil, a bunda ser considerada fetiche sexual, o sexo anal
ainda é mal visto pelos defensores da moral e dos bons costumes. Numa so-
ciedade heteronormativa, o ânus do homem cisgênero não deve possuir papel
sexual, e quem usufrui desse órgão para fins prazerosos acaba indo de encon-
tro aos padrões pré-estabelecidos pelo sistema normatizador de gênero e sexo
nessa sociedade. Já na relação heteroerórica, quando o coito anal acontece, há
um silenciamento sobre o assunto. Paira sobre os indivíduos o discurso de ine-
xistência da prática anal entre os casais heterossexuais, em função da contun-
dente abjetificação do ânus.

Num contexto cis-heteronormativo, aquele que penetra possui um trata-


mento superior ao que é penetrado, pois, se supõe que a pessoa ativa sexu-
almente utiliza-se do pênis e não do ânus para o coito. Como afirmam Saéz e
Carrascosa (2016, p. 29), esse ideário “[...] trata-se de um ódio ao passivo e, so-
bretudo ao homem penetrado. [...]”. Num contexto assim, encontram-se agres-
sões verbais, como: “vai tomar no cu”, “arrombado”, “cu frouxo”. No entanto,
não se veem sentenças ofendendo o ativo, tais como: “metedor de cu”, come
cu” etc.

1
Mestrando em Letras: Linguagem e Representações pela Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC. Atualmente é membro e
pesquisador do GUPEMA - Grupo de Pesquisa e Estudos em Mídias Alternativas e Midiativismo.
39

No processo de representação do ânus e do pênis, diferentes vocábulos


tem sido empregados em ciberespaços, como, por exemplo: berinjela, cace-
te, piroca, neca, pica, edi, cuzão, rabo, furico, cuceta, dentre outros. Em de-
terminados espaços, por exemplo, a escola, sendo esta fortemente controlada
pelo sistema conservador, deletam-se o uso dos vocábulos representando o
ânus e o pênis, e aqueles que, mesmo por naturalidade e normalidade os utili-
zam, sofrem punições. Ou seja, o contexto social do aluno não é considerado,
tampouco respeitado. Esta ação funciona como método de interditar o sexo,
pois usar termos como cu, pica etc., no chão da escola, é ressuscitar a sexua-
lidade dos alunos, algo totalmente condenado pela sociedade conversadora e
judaico-cristã. Os vocábulos em representação ao ânus e ao pênis tornam-se,
nesses lugares, uma linguagem erótica e obscena, associados a discursos mali-
ciosos e a palavrões.

Nos estudos linguísticos, ainda há uma desvalorização de pesquisas cujas


temáticas tratam da sexualidade e de vocábulos alusivos ao ânus e o pênis
acontece ainda fortemente. Os teóricos conservadores e normativos privilegiam
estudos linguísticos tradicionais, cobertos de repressões e preconceitos, esque-
cendo de olhar para questões emergentes. Pensar na transgressão e subalter-
nização da linguagem, enquanto prática científica, tem sido algo de resistência
no meio acadêmico. Diante disso, com base na socialização dos vocábulos para
nomear o ânus e o pênis, em uma enunciação virtual, este texto visa descrever
as diferentes representações lexicais destes órgãos no discurso de homens cis-
gêneros gays na rede social twitter, assim como refletir sobre o significado dos
usos linguísticos em análise, para discutir a formação de uma visão normaliza-
dora sobre os corpos e a sexualidade desses sujeitos.

Como objetivo geral, o presente artigo busca compreender a produção


de sentido sobre corpo e prática sexual por meio dos vocábulos engendrados
por homens cisgêneros gays que falam de ânus e o pênis na rede social twitter.

Em consonância com tal discussão que este texto propõe, de acordo com
Foucault (2015), que descreve diversas instituições de poder que funcionam
como controle dos indivíduos por meio de normas, a fim de criar uma socieda-
de biopolítica, de regulação dos corpos. A escola, cuja normatividade habita em
sua constituição, é uma delas. Nas aulas de Ciências/Biologia, ao falar do sexo, o
ânus nunca é mencionado como recurso sexual. Ao descrever o pênis, a vagina
e o ânus, tem-se no discurso escolar que o ânus é unicamente um canal de deje-
tos, não sendo considerado um órgão sexual, ou melhor, dispositivo de prazer.
O mesmo acontece no seio familiar, quando se propõe a falar sobre sexo.
Para a família que dispõe a falar do assunto, descrevem tão somente o pênis e a
vulva como órgãos libidinosos. Jamais ousam a falar do ânus. Na Medicina não
é diferente. Talvez até seja um pouco pior. Neste segmento, o problema iniciou-
-se, tempos atrás, na Psiquiatria ao descrever quais corpos são ou não normais.
40

Todo corpo que fere às normas é estigmatizado e posto de lado pela sociedade.
O ânus jamais é discutido como recurso sexual. O prazer anal é silenciado nos
consultórios de Proctologia. Pensar no prazer anal e na estimulação da próstata
é algo proibido pela heteronorma imposta na sociedade médica.

No mundo gay, sentir prazer em ser penetrado é assumir o papel do pas-


sivo e da mulher, ou seja, é tornar-se objeto de prazer daquele que domina, do
ativo, cujo pênis é exaltado assim como o pênis do homem cis-hetero. Expres-
sões como “tomar no cu”, “vai dar o cu”, “seu arrobando” e “cuzão” demonstram
claramente o ódio pelo ânus como órgão sexual. Mais que isso, para a hetero-
norma, “[...] ser penetrado é [...] um ato odioso, uma humilhação [...] é a perda
da honra [...]” (SAEZ & CASRRASCOSA, 2016, p. 17) e por meio disso, o ânus sofre
com tanta depreciação, até no processo de representação lexical por diferentes
vocábulos utilizados para perfomatizá-lo. Por tais razões elucidadas, numa re-
lação de poder e abjeção, a pergunta direcionadora deste pesquisa é: Como o
ânus e o pênis têm sido representados, por meio de vocábulos, pela população
gay cisgênera, no twitter e como esses discursos fazem emergir a heteronorma-
tividade ao tratar desses órgãos sexuais no ciberespaço?

Para entender bem como dirigir esta pergunta em face dos objetivos men-
cionados, cabe conhecermos com exatidão o espaço onde a pesquisa está acon-
tecendo. O twitter foi criado no ano de 2006, com objetivo de gerar interação
entre os seus usuários sobre assuntos aleatórios do cotidiano. Desde o surgi-
mento, de acordo com o site Maiores e Melhores (2020), a rede social ganhou um
enorme crescimento no Brasil e no mundo ao alcançar a marca de 326 milhões
de usuários. O ciberespaço passou a ser muito utilizado por políticos partidá-
rios, digitais influencer, e por gays com conteúdos eróticos (postagens de vídeos,
imagens e mensagens libidinosas). Em seus documentos de políticas, o twitter
restringe a publicação de imagens, vídeos ou mensagem de conteúdos eróti-
cos, todavia, não há, na prática, nenhuma restrição concernente a conteúdos
eróticos, a não ser que tal material publicado seja denunciado. Portanto, dia-
riamente, materialidades eróticas – legendas, mensagens, fotos e vídeos – são
publicados na rede social. Ao publicar uma imagem ou mensagem, diferentes
vocábulos são escritos para performatizar o ânus e o pênis. A escolha por essa
rede social dar-se por ser um ambiente onde se propaga conteúdos pornográfi-
cos sem haver tolhimentos, na prática, e por ter uma variedade de materialida-
des importantes para esta pesquisa.

Através da referenciação textual, pode-se observar como determinados


vocábulos recebem novos sentidos. Dessa maneira, faz-se necessário o estudo
científico das representações lexicais do ânus e do pênis utilizadas pela popula-
ção gay, no twitter, para compreender como são referenciadas as palavras em
postagens online sobre sexo homoafetivo. Compreender os efeitos da signifi-
cação na representação de vocábulos ao nomear o ânus e o pênis é levantar
discussões críticas acerca dos recursos semióticos sobre o “falocentrismo” e
41

desvalorização de quem pratica o sexo anal, na posição de passivo. Mais que


isso, é entender a hegemonia que causa desprezo ao ânus, colocando-o sempre
em uma categoria inferior, especialmente em aplicativos de redes sociais como
o Twitter, onde encontram-se ativos, passivos, “héteros-curiosos”, versáteis e ou-
tros.

Em um levantamento feito sobre a temática aqui discutida, pouco foi o ma-


terial encontrado em livros, bancos de dados de universidades e em pesquisa
pelo Google acadêmico e plataforma SciELO. Durante as buscas por materiais
similares, nenhuma obra com foco em compreender a perfomatização dos vo-
cábulos em postagens online, para servir de apoio a esse estudo, foi encon-
trada. Acha-se, com número reduzido, levantamento catalográfico dos nomes
populares feito em escolas (Braga 2008); análise lexical e do campo semântico
dos órgãos sexuais masculino e feminino (Souza, 2007); comparação entre os
nomes populares em determinadas regiões (Araripe 1999), e análise da repres-
são escolar para com os órgãos genitais (Braga 2008). Contudo, esta pesquisa
torna-se inédita para os estudos linguísticos em razão de se valer de uma pro-
posta com interesse de compreender os aspectos discursivos na significação
dos vocábulos utilizados para referenciar o ânus e o pênis. Ademais, entender
a significação por meio da representação dos vocábulos, ao nomear o ânus e o
pênis, é perceber na linguística os efeitos de sentido no âmbito da sexualidade,
as relações de poder, além de assuntos como masculinidade tóxica, machismo,
misoginia, homofobia dentre outros. Mais que isso, perceber a função dessas
representações no contexto da enunciação virtual é refletir sobre produção de
sentido a partir do poder e da depreciação através dos vocábulos.

METODOLOGIA
A pesquisa aqui desenvolvida dar-se-á início com levantamento bibliográ-
fico, leituras relacionadas ao tema, fichamento de livros e artigos. Estas ativi-
dades possuem objetivo de aumentar o referencial teórico e trazer luz ao des-
dobramento do resultado final da pesquisa. Por sua vez, o desenvolvimento se
valerá de uma abordagem qualitativa, pois, segundo Bauer (2008, p. 23) esta
“[...] lida com interpretações das realidades sociais, e é considerada pesquisa
soft [...]”, além de “[...] de dar poder ou dar voz às pessoas, em vez de tratá-las
como objetos [...]” (BAUER, 2003, p. 30). O método de procedimento que subsi-
diará esta pesquisa é o método observacional não participante que possibilita
de modo eficaz o elevado grau da precisão do objeto pesquisado.

Opta-se, neste estudo, por realizar uma pesquisa etnográfica discursiva


virtual de caráter não participativo com intuito de colher materialidades en-
contradas na rede social twitter. Todo material garimpado no ciberespaço não
possuirá identificação dos membros da rede social, na intenção de simplificar o
processo de solicitação de uso de imagem.
42

Como metodologia de coleta de dados, tem sido realizada uma observação


não participativa, pois, nesta modalidade “[...] o pesquisador toma contato com
a comunidade, grupo ou realidade estudada, mas sem integrar-se a ela: per-
manece de fora” (MARCONI & LAKATOS, 2003, p.193). Todavia, “[...] isso, porém,
não quer dizer que a observação não seja consciente, dirigida, ordenada para
um fim determinado. O procedimento tem caráter sistemático” (MARCONI &
LAKATOS, 2003, p.193).

Utiliza-se da perspectiva da Análise Crítica do Discurso (ACD) para a análise


de aspectos linguístico-discursivos da representação dos vocábulos na significa-
ção de pênis e ânus, já que diversos fatores cooperam para essa representação,
tais como relações culturais e sociais, identidades, construções patriarcais etc.
“Esses elementos estão dialeticamente relacionados [...]” (FAIRCLOUGH, 2012
[2005], 309) e, portanto, possuem relevância no processo representacional dos
vocábulos.

A ACD é a análise das relações dialéticas entre semioses (inclusive a lín-


gua) e outros elementos das práticas sociais. Essa disciplina preocupa-
-se particularmente com as mudanças radicais na vida social contempo-
rânea, no papel que a semiose tem dentro dos processos de mudança
e nas relações entre semiose e outros elementos sociais dentro da rede
de práticas (FAIRCLOUGH, 2012 [2005], 309).

Salienta-se que no processo de “representações” e “autorrepresentações”,


a semiose busca estabelecer o discurso na sociedade (FAIRCLOUGH, 2012
[2005]). Dito isso, a ACD será fundamental na compreensão da significação em
enunciações no twitter.

Desse modo, a pesquisa busca, por meio da ACD, respostas para as inda-
gações acerca da heteronormatividade presente nas postagens do Twitter. Tam-
bém serão verificadas, nos enunciados, a subversão dos órgãos ânus e pênis
quando estes são representados por vocábulos de diferentes campos semân-
ticos. No processo dialético-relacional, a ACD é utilizada para verificar o signifi-
cado representacional e para investigar o que a pessoa quer construir ao falar
pênis e ânus utilizando de diferentes vocábulos, isto é, qual efeito de sentido é
causado a partir de quem fala.

O caminho metodológico que será seguido para ancorar o enquadre epis-


têmico da ACD à análise do nosso objeto de pesquisa é inspirado no enfoque
metodológico para a pesquisa social sobre discurso, proposto por Norman Fair-
clough (2003). Segundo esse enfoque, num estudo textualmente orientado so-
bre o discurso como representação – interessado em ter acesso a efeitos ideoló-
gicos de textos – é preciso relacionar a microanálise dos elementos linguísticos,
típica das investigações na Linguística, à macroanálise das relações de poder
por meio de redes de práticas e estruturas, isto é, articular a análise de compo-
43

nentes linguísticos à explanação do contexto social em que esses componentes


estão inseridos.

Para isso, Fairclough (2003) elege um percurso de pesquisa que não se


coaduna com o objetivo de entender como se realizam os sistemas linguísticos
(tradicional posição da Linguística), mas que tem o propósito de compreender
como esses sistemas servem ao funcionamento social que engendra práticas de
distribuição desigual de poder e, consequentemente, exploração, injustiça so-
cial e violência. Nesse sentido, esse percurso idealizado por tal autor correspon-
de a uma abordagem de análise que trata essencialmente de problemas sociais
agudos de nosso tempo, isto é, ocupa-se de objetos de estudo que consistem
em obstáculos para uma vida social democrática, justa e equânime. No entanto,
não o faz analisando suas manifestações ao modo da Sociologia, Antropologia,
História e outras ciências das Humanidades, mas a partir da análise de sua ma-
nifestação semiótica (descrição e interpretação de traços linguístico-discursivos
e/ou multimodais).

Tal caminho metodológico busca, em cinco momentos, dar conta de está-


gios ora orientados à análise da conjuntura em que o discurso a ser analisado
está incluído, ora à análise do discurso propriamente dito. Somado a isso, não
se contenta apenas em fornecer dados explorados sobre a realidade investiga-
da e, ao final da análise, possibilita que, na pesquisa, se pense sobre possíveis
maneiras de superar o problema analisado a partir do que constatou com sua
análise, como também que avalie sua trajetória durante a pesquisa, a fim de
refletir sobre a eficácia do que executou. Esse caminho metodológico é suma-
rizado no quadro abaixo, adaptado da proposta original feita por Chouliaraki &
Fairclough (1999) e desenvolvida por Fairclough (2003).

1. Selecionar um problema social


2. Identificar os obstáculos para que esse problema seja resolvido, produzin-
do:
2.1 Observação da rede de práticas sociais em que o problema está inserido
2.2 Observação da prática particular em que o problema está inserido
2.3 Análise da ordem do discurso da rede de práticas em que o problema está
inserido
2.4 Análise linguística da prática particular em que o problema está inserido,
executando:
2.4.1 Descrição de dados linguísticos e (con)textuais
2.4.2 Interpretação dos efeitos de sentido dos dados linguísticos na rede de
práticas em que o problema está inserido
3. Identificar maneiras possíveis para superar os obstáculos causados pelo
problema
4. Refletir criticamente sobre a pesquisa

Para a etapa 1, em nossa pesquisa, consideramos como problema social a


44

ser investigado, conforme o que já foi argumentado na introdução, a represen-


tação dos órgãos pênis e ânus na rede Twitter. Nossa escolha não foi fortuita,
mas sensibilizada pelo lugar biopolítico que o corpo, notadamente na simbolo-
gia desses seus órgãos, possui e o consequente preconceito que essa prática de
poder gera. Após a seleção do problema, a etapa 2, aborda seu diagnóstico de
uma maneira indireta, ao questionar quais são os obstáculos para que ele seja
resolvido. Esse diagnóstico aponta inicialmente para a identificação da rede de
práticas sociais (conjuntura) em que se insere o problema que escolhemos (2.1).
Para desenvolver essa etapa, precisaremos sair um pouco do foco de estudo so-
bre a linguagem em si e usaremos fontes acadêmicas e não-acadêmicas, com o
intuito de entendermos o contexto social em que se encontra nosso problema.
Faremos, portanto, um levantamento dos aspectos históricos, culturais e sociais
da população gays cisgênera, da maneira como esses sujeitos foram tratados
no decorrer da história das civilizações ocidentais e da forma como reagiram à
opressão a que foram submetidos; assim desenvolveremos uma pesquisa so-
bre como se deu a história dos significados de pênis e ânus no Ocidente.

Expomos um pouco a narrativa que repetimos, durante séculos, sobre a


orientação para o amor e o erotismo entre pessoas do mesmo sexo (orientação
afetivo-sexual) e sobre as diversas expressões da identidade de gênero. Com
isso, buscamos apresentá-las como práticas sempre condicionadas por padrões
morais mais ou menos arbitrários e, em geral, suportados por determinações
de caráter religioso, por argumentos médicos ou prescrições policiais, sendo
representadas, diversas vezes, como pecado, doença e crime (MOTT, 2006).

Após esse mapeamento, os passos seguintes consideram a maneira pela


qual o problema relaciona-se com uma prática particular específica da rede de
práticas (2.2), bem como investigam as características de uma ordem de dis-
curso dessa prática particular (2.3). Desse modo, abordamos, respectivamente
para cada uma dessas etapas: a emergência das redes sociais digitais como
uma prática específica na qual podemos analisar o problema e o gênero dis-
cursivo postagem de rede social com limitação de caracteres como a ordem
do discurso que selecionamos desse tipo de rede. Para tanto, caracterizamos
os traços estruturais do discurso digital em tal campo, e especificamente da
postagem, a fim de entender como eles auxiliam no processo de representação
discursiva de dos corpos abjetificados.

Nessas etapas, usamos como passaporte teórico algumas reflexões epis-


temológicas de estudos sobre a web em geral e dos estudos sobre postagens
no Twitter em particular. Além disso, pesquisaremos um pouco a história do
Twitter, com foco no seu desenvolvimento no Brasil, para termos subsídios de
caráter sociopolítico na compreensão da conjuntura histórica dessa rede social
como fonte geradora da construção do seu discurso e consequentemente da
ideologia que esse espaço busca perpetuar por meio das interações que pro-
duz.
45

Consideramos essa descrição da ordem discursiva como uma espécie de


prolegômeno à análise dos componentes textuais que faremos em seguida. Ela
ajuda a associar os componentes de uma descrição da rede, sem desconsiderar
a formação histórica do Twitter. Em função disso, não é possível ainda falar,
nessa etapa, de um exame da representação, como objetivamos, mas podemos
perceber, nesse momento da pesquisa, que alguns dados nos indicam o quanto
fica visível o corpo como elemento de discussão em uma rede como Twitter.

O último estágio desse diagnóstico compreende a análise linguística (2.4)


por meio do exame de categorias analíticas como os traços de composição tex-
tual que englobam os vários itens lexicais presentes em grupos nominais que
são capazes de representar o nosso objeto de pesquisa. Para a execução dessa
etapa, identificaremos tais categorias através da leitura dos textos em análise,
sem impressão prévia (as categorias de análise emergirão de nossa observa-
ção): faremos inicialmente a descrição (2.4.1) e, em seguida, uma interpretação
do que descreveremos (2.4.2). O primeiro momento corresponde à atividade
de caráter classificatório que permite identificar, contabilizar e categorizar itens
linguísticos a partir de uma teoria-base sobre eles. O segundo consiste num
exercício de atribuição de sentido aos resultados constatados na descrição, to-
mando por base os dados da conjuntura do objeto de estudo, verificados na
etapa 2.1, e as características da ordem do discurso mapeada nas etapas 2.2 e
2.3. Nisso consiste a chave metodológica de análise social por meio do discurso
proposta no arcabouço de Norman Fairclough (2003), cuja realização assenta
no diálogo entre o estudo de traços estritamente linguísticos (aqueles revelados
pela descrição), isto é, do texto/discurso, e o exame de constituintes da prática
social (rede de práticas e ordem do discurso) em que esses traços se realizam.
Essa etapa compõe a análise da representação dos atores, núcleo de toda a
pesquisa.

Em nosso estudo, operaremos com a descrição dos dados como parte de


um trabalho associado à contextualização histórica dos momentos em que fo-
ram publicadas as postagens. No processo de descrição linguística em si; iden-
tificamos os itens lexicais; classificaremos os mecanismos de formação desses
itens com base nos campo semântico em que se situam; verificaremos (sob um
cálculo estatístico mínimo) as ocorrências desses mecanismos. Já a atividade de
interpretação, desenvolveremos a análise dos mecanismos nominais evidencia-
dos para representar ânus e pênis, através da qual tecemos comentários sobre
as implicações de sentido que as categorias da prática discursiva de representa-
ção particular possuem sobre a conjuntura social contemporânea.

O estágio 3 é dedicado a uma discussão sobre os resultados das fases an-


tecedentes. Para isso, essa etapa ocorre no final da nossa pesquisa, onde são
estabelecidos diálogos com teorias sobre biopoder e heteronormatividade. Por
fim, o ultimo estágio (4) é um momento no qual a análise se torna reflexiva,
questionando, por exemplo, sua eficácia como apreciação crítica: avaliando se
46

ela contribui ou pode contribuir para a emancipação social e se ela se ajusta a


práticas acadêmicas, que, nos dias atuais, estão fortemente ligadas ao mercado.
Em nosso estudo, esse trecho corresponde ao momento em que discutiremos
a validade social de nossa pesquisa e analisamos o alcance de reflexividade que
ela pode oferecer àqueles que tiverem contato com os resultados que constata-
mos a partir de nossa análise.

OBJETO DE ESTUDO
Preti (1983) discute, em “A linguagem proibida”, ao tomar como base um
dicionário moderno do ano de 1903, as diferentes maneiras de nomear não só
órgãos genitais, mas também práticas de adultério, relações sexuais homo e he-
teroafetivas, dentre outros assuntos. O autor discorre sobre a linguagem obs-
cena na vida cotidiana dos brasileiros cariocas, com foco principal nos diálogos
da relação interacional. Outro ponto considerado importante e levantado pelo
autor é sobre a desmoralização da linguagem sexual, tida, muitas vezes, como
obscena por estudiosos linguistas. Segundo o autor (1983, p. 02):

O estudo da linguagem erótica, como não poderia de ser, situa-se no


campo dos tabus linguísticos morais e abrange áreas sobre as quais,
quase sempre e por motivos óbvios, se tem preferido calar, como, por
exemplo, as dos vocábulos obscenos, as dos “palavrões” e blasfêmias,
a da gíria, a do discurso malicioso. [...] Se apresentam como formas
linguísticas estigmatizadas e de baixo prestígio, condenadas pelos pa-
drões culturais, o que as transformou, com poucas exceções, em tabus
linguísticos (grifos do autor).

A língua, como um fato social (SILVA, 2013), merece atenção em todos os


aspectos, sobretudo quando determinados vocábulos são utilizados para no-
mear o ânus e o pênis nos ciberespaços.

No livro “Linguagem sobre sexo no Brasil” são discutidas a linguagem sexu-


al do chulo ao popular, abordagens de castração, bestialidade, e, por fim, uma
linguagem sexual culta. Araripe, o autor da obra, procura compreender a lingua-
gem a partir do contexto social em que o Brasil foi formado. Em outras palavras,
o autor enveredou os seus estudos pelas classes subalternizadas, pois, para ele
“[...] os conflitos sociais e étnicos, evidentes ou difusos, a desproteção das mino-
rias e, talvez, alguma maldade inerente humana, são a grande fonte geradora
da linguagem sexual do povo. [...]” (ARARIPE, 1999, p. 16). Ainda na sua obra, o
autor traça, por meio da etimologia o conceito de algumas palavras até o novo
significado atribuído, sem tratar do uso em sua contextualização.

Em 2008, Braga realiza uma importante pesquisa de doutorado sobre pala-


vras e palavrões dados aos órgãos genitais e à masturbação. A autora levantou
um belíssimo corpus, em quatro regiões do Brasil, cuja variedade de vocábulos
47

ultrapassa a nossa imaginação, a conter mais de 5.000 verbetes relacionados


ao/a sexo/sexualidade. Os vocábulos foram divididos em categorias alimentí-
cias, animálias, de força, de nomes próprios, diminutivos etc. Sua pesquisa, à
luz da psicologia, visou a discussão da repressão sexual contida no ambiente
escolar por meio de pais, alunos e professores, porque, de acordo com a autora:

A escola, que tem por função social a transmissão da aprendizagem


formal, científica e organizada historicamente, ainda apresenta inúme-
ras dificuldades em trabalhar a temática da sexualidade, em todos os
aspectos, incluindo aí os sinônimos [...] (BRAGA, 2008, p. 136).

Ao tratar-se do ânus como abjeto para a sociedade heteronormativa, Javier


Sáez e Sejo Carrascosa, na obra Pelo cu: políticas anais, traçam discussões sobre
como a heteronorma questiona o ânus e o sexo anal. De acordo com Pelo cu: po-
líticas anais, a prática do sexo anal, ou melhor, a arte de dar o cu é mais do que
um sexo, é, na verdade, um ato político. Por isso “[...] o sexo anal provoca tan-
to desprezo, tanto medo, tanta fascinação, tanta hipocrisia, tanto desejo, tanto
ódio. [...]” (SÁEZ & CARRASCOSA, 2016, p. 22). Contudo, são os marcadores so-
ciais que determinarão quais ânus passarão por mais vigilância e desprezo, pois

depende se o cu penetrado é branco ou negro, se é o de uma mulher ou


de um homem ou é um/uma trans; se neste ato se é ativo ou passivo; se
é um cu penetrado por um dildo, um pênis ou um punho; se o sujeito
penetrado se sente orgulhoso ou envergonhado; se é penetrado com
uma camisinha ou sem ela; se é um cu rico ou pobre; católico ou mulçu-
mano (SÁEZ & CARRASCOSA, 2016, p. 22).

Quando um homem se permite ser penetrado, logo, por meio representa-


ção lexical, ver-se a depreciação do ânus e do sexo anal. Todavia, quando este
se propõe a penetrar, os discursos mudam, os vocábulos mudam. No sexo héte-
ro ou gay “[...] valora-se de forma completamente diferente quem adota o papel
ativo (a pessoa que penetra) e quem assume o papel do chamado passivo (a
pessoa penetrada). “[...]. Trata-se de um ódio ao lugar passivo” (SÁEZ & CARRAS-
COSA, 2016, p. 22, grifo do autor). Ou melhor, significa o desprezo ao ânus e às
suas práticas. Já o pênis sempre é bem visto, independentemente de onde ele é
penetrado, se é no ânus, se é na vagina, se é na boca ou se é em boneco inflável.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
O conceito de heteronormatividade, apresentado por Judith Butler (2019),
trata-se da matriz heterossexual presente na sociedade, onde possui objetivo
de organizar os corpos dentro daquilo que se tem por normal em um processo
de binaridade homem-mulher. Para Butler (2019), a performatividade da hete-
ronorma inicia no nascimento do indivíduo de descrevê-lo, por meio do órgão
genital, se é menino ou menina. A partir de então, o gênero é performatizado na
escolha do nome, através das cores, do modo de agir, de falar, enfim em todos
48

os momentos do indivíduo. Ao se desviar da conduta heteronormativa, tem-se,


então, o corpo abjeto.

As concepções propostas por Butler (2019), em sua obra Corpos que impor-
tam: os limites discursivos do “sexo” serão fundamentais, neste estudo para com-
preender a abjeção ao ânus e às suas práticas sexuais, principalmente porque a
homossexualidade já é uma abjeção à heteronormatividade.

Pela Análise Crítica do Discurso, apoia-se, esta pesquisa, nos escritos do


inglês Norma Fairclough para discutir criticamente a produção discursiva da re-
presentação dos vocábulos no twitter. Para Fairclough (2012 [2005], 311-312),
os objetivos da ACD buscam:

[...] Dar ênfase em um problema social que tenha um aspecto semió-


tico. [...] Identificar obstáculos para que esse problema seja resolvido,
pela análise [...]. Considerar se a ordem social (a rede de práticas) em
algum sentido é um problema ou não; [...] Refletir criticamente sobre a
análise.

Com base nos objetivos da ACD, proposto por Fairclough (2016) e, no pro-
cesso da junção dos elementos relacionais com os dialéticos, a Análise Crítica
do Discurso propõe-se a analisar o texto com o olhar crítico, não pautando-se
tão somente em apontar as produções de sentido, mas também criticar essas
produções, isto é, dizer como deveriam ser, de acordo com parâmetros filosó-
ficos. “[...] A ACD é uma forma de ciência social crítica, projetada para mostrar
problemas enfrentados pelas pessoas em razão das formas particulares de vida
social, fornecendo recursos para que se chegue a uma solução. [...]” (FAIRCLOU-
GH, 2012 [2005], 312)

No Brasil, alguns nomes merecem destaque para os estudos da Análise


Crítica do Discurso, tais como Viviane Resende e Viviane Ramalho. Na visão das
autoras, “A Análise de Discurso Crítica (ADC) é uma abordagem teórico-meto-
dológica para o estudo da linguagem nas sociedades contemporâneas que tem
atraído cada vez mais pesquisadores (as), não só da Linguística Crítica mas tam-
bém das Ciências Sociais. [...]” (REZENDE & RAMALHO, 2006, p. 07) Por a ACD
possuir uma plasticidade, diversas pesquisas sociais têm se valido de suas teo-
rias para compreender os fatos sociais.

Foucault, ao discutir sobre o conceito do biopoder, apresenta como o es-


tado busca controlar os corpos em um processo de permitir a morte daqueles
que fogem às normas. Enquanto nos séculos XVII, XVIII, a monarquia decidia
diretamente na vida ou na morte dos seus súditos, a partir do século XIX, com o
advento do capitalismo governamental, uma nova decisão entra em vigor. Des-
sa vez o estado escolhe quem fazer viver ou quem deixar morrer. Essa “[...] dis-
ciplina que busca controlar o corpo do indivíduo [...]” (BERTOLINI, 2018, p. 96),
49

chamada de biopoder, age na sociedade como forma de docilizar as condutas,


além de adestrar os corpos ao sistema normativo. O poder, antes concentrado
nas guerras, encontra-se agora no controle dos corpos dos indivíduos e na sua
sexualidade, permitindo a morte dos desobedientes que borram a heteronor-
ma. Assim acontece em diversos países no qual a prática homossexual é tida
como crime.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
É preciso superação de práticas violentas por meio da linguagem para as-
sim combatermos questões homolesbotranfôbica que matam diariamente in-
divíduos cujos marcadores da sua subalternidade perpassam os seus corpos.

Numa sociedade onde o governo permite a escolha daqueles que devem


viver ou morrer, a destituição política de violência da heteronormatividade na
linguagem é fundamento. Ser gay, passivo e afemininado, em uma sociedade
patriarcal e heteronormativa, é sobreviver todos os dias em meio ao conserva-
dorismo.

Para não concluir, os conceitos de referenciação precisam ser repensados


e reavaliados, pois, cada um carrega em si uma carga heteropatriarcal ferindo
aqueles que não se adequam ao s(c)istema burguês.

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CAPÍTULO 4
52

UM OUTRO LADO DO ESPELHO: DISTÚRBIOS ALIMENTA-


RES DE EMAGRECIMENTO NA POPULAÇÃO DE TRANS-
MASCULINOS
Iara Luzia Henrique Pessoa
Universidade Católica de Pernambuco

INTRODUÇÃO
Sobre os sujeitos transgêneros masculinos a principal problemática que
observei acerca da questão dos distúrbios alimentares, seja anoréxico ou bu-
límico, é que o tema se mostrou na literatura científica brasileira no momento
da elaboração deste trabalho como inexistente. Logo, busquei em fontes inter-
nacionais produzidas em língua inglesa, mas não restringindo a países somente
com esta língua como oficial, mas escritos em tal língua.

Procurei decolonizar o conhecimento mesmo que a base do trabalho seja


em uma língua estrangeira, escrevi em português e o incluo à literatura nacio-
nal sobre o tema. Visto que, a subnotificação de casos pelos agentes de saúde,
falta de estatísticas e trabalhos podem dar a impressão de que o fenômeno dos
transtornos alimentares se restringe a um grupo específico (mulheres cis, jo-
vens, brancas, de classe média alta, escolarizadas), quando um transtorno não
tem face ou gênero e pode acometer diversos públicos.

Devido a essa estereotipificação do transtorno alimentar, ocorre que sujei-


tos fora dessa expectativa médica são diagnosticados com outros transtornos
e enfermidades, sendo assim, este sujeito não se percebe como acometido por
um transtorno alimentar. Juntamente com a normalização e ideação do corpo
ideal como sendo magro e que deve se fazer de tudo para alcançar a beleza
assim como a adequação e inteligibilidade social.

O que nomeio como sujeitos trans, nesse trabalho, engloba não só trans-
gênero como transexuais, pois ambos tratam de pessoas que, de acordo com
Lanz (2015), transgridem o dispositivo binário de gênero, a conduta normativa
ou preestabelecida para a categoria de gênero que foi classificada ao nascer.
Assim como a categoria transexual ainda para Lanz (2015) é uma categoria que
surgiu atrelada ao poder médico, tida como uma condição patológica presente
53

nos diversos manuais de diagnóstico. Há sujeitos que se identificam com este


termo e o defendem, já que este estaria respaldando a necessidade de inter-
venções estéticas e cirúrgicas como parte do que seria um tratamento de ade-
quação. Esse termo foi retirado da nova versão da classificação internacional de
doenças (CID-11)1 , assim como a necessidade de hormonização e intervenções
cirúrgicas são demandas pessoais e não generalizáveis, então, algumas pessoas
sentem a necessidade de buscá-las, outras não.

Optei mais pelo termo transgênero em detrimento de transexual, em razão


do primeiro ser considerado pelos estudos de gênero, e mais especificamente
por Letícia Lanz (2015) como termo guarda-chuva para outras identidades, in-
clusive, para transexualidade. Logo, um homem trans seria uma pessoa que
ao nascer foi designada “fêmea”2 pelo poder médico e está para a negação ou
afronta ao dispositivo binário de gênero que é estabelecido e legitimado pela
sociedade, podendo ou não buscar intervenções médicas e hormonais, mas se
identificando com o gênero masculino. Porém no caso da mulher trans seria o
contrário, alguém que nasceu e foi designada como “macho”, mas se identifica
com o gênero feminino, colocando-se como mulher trans3 . E em contrapartida,
temos os sujeitos cis ou cisgênero que seriam os sujeitos que tem uma confor-
midade entre o gênero designado ao nascer e o gênero que a pessoa performa.

Fiz um mapeamento, ou estado da arte desta temática, isto é, transtor-


nos alimentares em sujeitos transmasculinos em bases de dados internacio-
nais, para que posteriormente fosse possível fazer uma breve análise desses
achados. Assim sendo, optei pelo recorte tanto da anorexia como da bulimia
em sujeitos transgêneros masculinos, pois ambas têm uma psicopatologia em
comum, e aparecem constantemente associados nos artigos pesquisados. Mas
é importante ressaltar o comportamento alimentar desordenado (disordered
eating), comum em ambos os transtornos e aparece constantemente nos tra-
balhos, podendo ser definido como uma alimentação abaixo do nível calórico
necessário, jejuns, isto é, alimentação intermitente, e uso de métodos químicos
como pílulas de emagrecimento, laxantes e diuréticos.

No caso do gênero percebi que seja pela socialização como “fêmea” (for-
çada/imposta ou não) ou por serem designados “fêmea” ao nascer, os sujeitos
transgênero masculinos assim como outras identidades perpassadas pela femi-

1
Contudo, apesar da identidade trans ter sido retirada da caracterização dos transtornos mentais, ela ainda está na classificação
internacional de doenças (CID-11). Porém é considerada como condição relacionada à saúde sexual, sendo chamada agora de incon-
gruência de gênero, sendo ainda um termo problemático, por não só regular, patologizar e medicalizar o corpo trans. Mas, também,
regulamenta o acesso à saúde, assim como produz a binaridade entre congruente X incongruente, normal X anormal, que pressupõe
o corpo trans como anormal. Todavia, no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), ainda não foi revisto e a
identidade trans ainda é categorizada como disforia de gênero.
2
Coloquei aspas tanto no termo “fêmea” como “macho”, dado que ambos não estão para uma categorização biológica, mas sim
fictícia, tanto quanto a divisão binária dos gêneros entre somente homem e mulher (BUTLER, 2016).
3
Contudo, é importante ressaltar que sujeitos podem se identificar com o gênero masculino, em algum nível e não se colocar como
homem, assim como no caso do gênero feminino, como há em diversas identidades não binárias, assim como não se identificar com
nenhum dos dois, ou os dois de forma equivalente ou não.
54

nilidade4 poderiam tender à utilização de métodos de alimentação desordena-


da para alinhar seu corpo ao ideal de magreza considerado socialmente (WITTI-
COMB et al, 2015). Contudo, este ideal também pode estar associado a noções
gordofóbicas difundidas socialmente, assim como os possíveis diagnósticos
de transtornos alimentares da pesquisa supracitada, assim, não acho possível
generalizar esse ideal para toda a categoria de sujeitos transmasculinos, mas,
mais especificamente destes que utilizamos em nosso recorte. Logo, o critério
de seleção utilizado inclui artigos que fazem uma divisão nos achados dos su-
jeitos, entre transmasculinos e femininos ou transmasculinos e cis masculinos,
ou que abordassem somente a população transmasculina. E que utilizassem do
emagrecimento como ferramenta de adequação ao ideal social de corpo magro,
podendo ser diagnosticados ou não com um transtorno alimentar.

Dividi o trabalho, portanto, em quatro partes, primeiramente tratamos do


estado da arte, isto é, como se encontram os estudos acerca da temática tan-
to na literatura nacional como internacional. Depois sobre a imagem corporal,
primeiro definindo-a, assim como disforia de gênero5 e dismorfia corporal e
entrelaçando com a questão do distúrbio alimentar e transgeneridade. Em se-
guida, tratei da questão de gênero enquanto sustentador da matriz normativa
cis-heterossexual que pressiona o sujeito a se adequar ao seu gênero, e por
último tratei do estigma social que não só diagnostica esse corpo, mas também
o molda.

ESTADO DA ARTE
É importante antes de iniciar a discussão acerca de transtornos alimenta-
res em sujeitos transmasculinos que seja feita uma definição mínima do que
seriam transtornos alimentares, mais especificamente anorexia e bulimia, por
serem o foco deste trabalho. De acordo com o Manual de Diagnóstico Estatís-
tico de Transtornos Mentais (DSM 5) ambos os transtornos alimentares supra-
citados têm alguns sintomas prevalentes em comum, isto é, uma preocupação
excessiva com o peso e imagem corporal. Assim como utilização de dietas exa-
geradamente restritivas e métodos purgativos como laxantes, vômitos induzi-
dos, diuréticos e exercícios excessivos com o objetivo de alcançar o corpo ideal.

Ainda de acordo com o DSM 5, mesmo que de maneira geral seja neces-
sário diagnosticar a pessoa com um único transtorno alimentar, é comum que

4
É importante que eu ressalte que não é toda a transmasculinidade que é perpassada continuamente pela feminilidade, mas sim no
sentindo de que, inicialmente, um bebê que têm uma vagina é significado como mulher, mesmo antes de ter saído do útero, sendo
rodeado de símbolos e signos da feminilidade perpassando esse sujeito. Nesse sentido, então esses sujeitos teriam a feminilidade
os perpassando, muitas vezes, antes de compreender sua própria identidade, não sendo, a feminilidade, aplicada de forma irrestrita
aos sujeitos com identidade transmasculina.
5
Disforia de gênero é um termo difundido e associado ao poder médico, patologização e normatização do corpo trans, porém, é um
termo que explicaria o desconforto que algumas pessoas trans sentem em relação ao seu corpo, e que cada vez mais está caindo
em desuso pela população trans, mesmo que alguns sujeitos da própria comunidade ainda se referenciem dessa forma. Porém, o
utilizamos como forma de nomear este desconforto em relação ao corpo, e não como categoria diagnóstica.
55

haja episódios com características que possam diferir do diagnóstico principal


daquele sujeito. Os transtornos alimentares são constantemente retratados
como sendo uma doença estereotipicamente de mulher, cis, branca, abastada
e heterossexual (DESHANE, 2016), o que leva de acordo com Kamody (2020) à
caracterização inadequada e subnotificação de outros grupos. Logo, os sujeitos
trans se adequariam parcialmente ou totalmente nesses outros grupos, pois
podem se encaixar em algumas dessas características, menos a de gênero, que
são ainda invisibilizados dado a falta de trabalhos em língua portuguesa no mo-
mento dessa pesquisa.

A pesquisa iniciou a partir de uma busca em português utilizando o Google


Acadêmico do termo “Anorexia”, no qual surgiu 976.000 resultados de busca no
dia 4 de maio de 2020. Dentre estes resultados se encontram livros, citações,
frases, artigos, e até possíveis patentes, porém ao se fazer a busca mais es-
pecificamente por “Anorexia AND Transexuais Masculinos” o resultado diminui
para 519, e quando se busca “Anorexia AND Transgêneros Masculinos” diminui
para 408. Ao fazer a curadoria e olhar todos os títulos de ambas, assim como os
resumos, não se encontrou nenhum trabalho que realmente se tratasse de indi-
víduos trans, mas sim de pessoas cisgênero com anorexia ou outras temáticas.

A partir daí optei por acrescentar o termo transtorno alimentar na bus-


ca, mesmo que não anexado aos Descritores de Ciências da Saúde (DeCS), em
4 de outubro de 2020. Para que pudesse alastrar as possibilidades em portu-
guês, portanto, utilizei a equação de busca: “Transtorno Alimentar AND Homem
Trans” surgindo 215 resultados, ao olhar todos estes ainda não foi encontrado
nenhum resultado que trouxesse a questão do transtorno alimentar associado
a indivíduos transgênero, quer fossem transmasculinos ou ao menos transfe-
mininos.

Utilizei termos em língua inglesa tanto no Google acadêmico, como na


PsycNET, PubMed e Scopus. Fiz o uso das mesmas equações anteriormente cita-
das, com o diferencial da língua, e optei por analisar as equações de busca que
faziam surgir mais resultados em cada uma das bases de dados. Foi possível
perceber, a partir da leitura dos resumos e artigos citados neste trabalho, que
havia três tipos principais de trabalhos acerca da temática de sujeitos transmas-
culinos com transtorno alimentar, sendo estudos de caso, revisões bibliográ-
ficas podendo ser sistemáticas ou não sistemáticas, assim como estudos com
grande amostra de sujeitos.

IMAGEM CORPORAL
A imagem corporal de um sujeito é aquela imagem que se tem na mente
do tamanho, contorno e forma do próprio corpo, assim como sentimentos as-
sociados a essas características e em relação a essas partes constituintes dos
56

corpos (SLADE, 1988 apud SATTLER; EICKMEYER; EISENKOLB, 2019). Uma per-
turbação dessa imagem é essencial para o diagnóstico diferencial de transtorno
alimentar (DSM-5, 2013), e apesar de não ser obrigatória, é muito comum em
sujeitos transgênero também (JONES et al, 2015). Relacionando-se com: “one’s
subjective experience with the body, and how it relates to gender identity” (MCGUIRE,
et al., 2016, p. 97), isto é, com a experiência subjetiva do sujeito com seu corpo
e como este se relaciona com a sua identidade de gênero.

No transtorno alimentar há uma perturbação na maneira como o peso e o


formato do corpo é experienciado, e não é reconhecido pelo doente essa falta
de alinhamento entre o que ele vê, como o corpo é, e o que ele deseja (DSM-5,
2013), sendo algo que também pode acontecer no caso de sujeitos transgênero
que têm insatisfação com a imagem corporal (WITTICOMB et al., 2015). Este
não alinhamento ou incongruência6 é um risco para a população transgênero
que o experiência, no sentido de possibilitar o desenvolvimento de transtornos
alimentares (JONES, et al., 2018). Assim, no caso de sujeitos trans com descon-
forto em relação à imagem corporal, quando esta imagem corporal alcança uma
mínima satisfação, ela pode ser perturbada pelas funções biológicas (menstru-
ação, por exemplo) ou a aparência do corpo (quadris, cintura, ombros, mãos),
desalinhadas com as expectativas normativas de gênero desse sujeito (MCGUI-
RE, et al., 2016).

Contudo, essa distorção na imagem corporal pode ser de dois tipos, as-
sociada a um desconforto com o gênero, como no caso de algumas pessoas
transgêneras, ou não, como no caso das pessoas com transtornos alimentares.
Contudo é importante evidenciarmos que a disforia de gênero7 e a dismorfia
corporal são tratadas como um único diagnóstico, em razão de que ambas es-
tão relacionadas à imagem corporal:

Gender dysphoria is misdiagnosed as distorted body image (also known


as body dysmorphia) Dysphoria means “negative feeling” and links the
patient’s concerns with their body, whereas dysmorphia concludes the
patient’s problem is a delusion where they see something that is not
there, such as fat […]. By not acknowledging other reasons why a patient
may feel bodily discomfort, institutions risk a patient’s future health and
effectively erase transgender identity inside their walls8 . (DESHANE,
2016, p. 89)

A disforia de gênero9 que é um diagnóstico comum em sujeitos transgê-

6
Termo associado ao poder médico e diagnóstico como citado anteriormente, marcado pelas questões psiquiátricas e psicológicas.
7
Ao utilizar o termo disforia de gênero estou usando um termo do poder médico para nomear um conjunto de sentimentos de
incompatibilidade entre o corpo desejado e o corpo real, e que aparece no DSM-5, ver nota 5.
8
“Disforia de gênero é erroneamente diagnosticada como imagem corporal distorcida (também conhecida como dismorfia corporal).
Dismorfia significa ‘sentimento negativo’ e está conectado às preocupações do paciente com o seu corpo, enquanto dismorfia conclui
que o problema do paciente é uma alucinação em que ele vê algo que não está lá, como gordura [...]. Ao não reconhecer outras
razões porque o paciente pode sentir desconforto corporal, as instituições arriscam a saúde futura de um paciente e efetivamente
apagam a identidade transgênero dentro de suas paredes” (DESHANE, 2016, p.89, tradução nossa)
9
Ver nota 5.
57

neros é um sentimento negativo conectado às preocupações do paciente com


seu corpo, não uma preocupação com algo visto como algo presente, mas que
não está lá, como a gordura, mas algo que para os sujeitos específicos desse
recorte, não está lá de acordo com a normativa binária de gênero. Como dito
anteriormente, a comunidade transgênero é extremamente diversa e abarca
diversas identidades e pessoas, então algumas pessoas podem sentir-se des-
confortáveis com sua imagem corporal e não buscar mudar seu corpo, ou po-
dem não sentir-se disfóricas. Isto é, uma ilusão de que há gordura em um cor-
po magro é tratado como dismorfia corporal, muito comum em pessoas com
transtornos alimentares; porém, alguém com disforia corporal é um sentimento
negativo associado a partes do corpo que não estão lá, logo o corpo “biológico”
não condiz com o imaginário social de gênero que esse sujeito tem de si mesmo
(DESHANE, 2016).
Contudo, mesmo que algumas pessoas trans

em nome de obter e manter a conformidade com os estereótipos de


gênero, a pessoa transgênera empreende uma jornada frenética em
busca de mudanças corporais através de terapia de reposição hormo-
nal, cirurgias plásticas estéticas e cirurgia de reaparelhamento genital.
Sendo o corpo um espaço totalmente pessoal e intransferível, essas
mudanças são plenamente legítimas, embora o carácter corretivo em
que são realizadas denuncie o sentimento geral de inadequação [...] da
pessoa em relação aos estereótipos do gênero com o qual ela se iden-
tifica (LANZ, 2015, p. 126).

Para outras pessoas as transgressões de gênero fazem parte de sua apre-


sentação corporal e tendem a não reforçar a divisão binária e rígida das pessoas
entre somente homens e mulheres. Porém, alguns dos sujeitos dos trabalhos
selecionados trazem a necessidade dessa adequação corporal, ela não surgiu
como algo que deu fim aos transtornos alimentares (DONALDSON et al., 2018;
WAGNER; STEVENS, 2017, STRANDJORD; ROME, 2015), como hipotetizado por
alguns autores (KAMODY et al, 2020; TURAN; POYRAZ; DURAN, 2015).

Um homem transgênero pode sentir desconforto com relação aos genitais,


por não ter um pênis, ou em seu peito, por eles serem desenvolvidos e não
retos como o que ele esperaria de acordo com uma visão normalizada de um
homem cis magro, assim como em outras partes do corpo (TURAN; POYRAZ;
DURAN, 2015). O imaginário do corpo ideal dos sujeitos alvo desse trabalho é
associado a corpos magros ou até mesmo esqueléticos, portanto é feita uma
junção do ideal do transtorno alimentar e o ideal de gênero que seria buscado
por esses sujeitos em específico.

Como dito anteriormente a categoria do poder médico e diagnóstica no-


meada como disforia é tratada da mesma maneira que a dismorfia corporal
pelos médicos, tendo suas distinções apagadas pela instituição e poder médi-
co. Portanto, a saúde do paciente é arriscada, assim como não é reconhecido
58

em sua identidade, sendo acreditado pelos médicos se tratar de um problema


“igual” para todos os sujeitos com transtornos alimentares, mas há essa diferen-
ça fundamental entre os sujeitos cisgêneros e transgêneros (DESHANE, 2016).

Destaco que tanto a dismorfia quando a disforia têm relação com a ima-
gem corporal desses sujeitos, o que de acordo com o estudo de Jones et al.
(2015), existe a hipótese de que pacientes homens transgênero teriam insatisfa-
ção com relação à imagem corporal não somente em partes sexuais (genitais),
mas no corpo como um todo. Contudo, não é o corpo material que está errado,
mas sim a classificação arbitrária e artificial que é tida pela sociedade em função
de um “sexo genital” (LANZ, 2015). Assim até as chamadas áreas neutras (pés
e mãos, por exemplo), também podem causar desconforto de acordo com Mc-
Guire et al. (2016) e Jones et al. (2015). O que poderia ser, de acordo com Lanz
(2015) por uma possível busca, influenciada pelo poder médico essencialmente
cis e heteronormativo da “recuperação” de uma congruência perdida. Mas que,
na verdade, ninguém sabe o que é ser a identidade que a pessoa diz que é, va-
mos sendo através de repetições compulsórias de atos performativos que são
monitorados e programados pela sociedade (LANZ, 2015; BUTLER 2016)

Essa imagem corporal durante a adolescência, normalmente é acometi-


da, pelo fato de que o sujeito está se ajustando ao corpo novo e sexualmente
maduro, o que leva a um período de adaptação. Porém, para alguns sujeitos
transgênero esse período é visto com expectativas e preocupações de que seu
corpo esteja de acordo com seu gênero. Há então a necessidade ou busca pelo
tratamento de reposição e bloqueadores hormonais, que nem sempre é permi-
tido pelos responsáveis, então essa imagem corporal não corresponde a essa
idealização do sujeito, que pode estar relacionada também com expectativas
sociais do gênero assumido.

Ou seja, o sujeito transgênero poderá sentir como sua imagem estando


incongruente ou em desacordo, o que causa frustração, insatisfação, mas tam-
bém pode ser feito um trabalho de psicoeducação, além de contato com outras
pessoas trans (representatividade) que fazem do seu corpo sempre um vir a ser,
que pode envolver perspectivas de transformação para haver maior concor-
dância com seu gênero ou não. Ademais podendo haver também a dissociação
de gênero, isto é, um sentimento de distanciamento social e psicológico do seu
corpo físico relacionado a partes relevantes do corpo na constituição do gênero,
portanto, sendo diferente de uma simples insatisfação corporal (MCGUIRE, et
al., 2016).
Lado a lado à necessidade de algumas pessoas transgêneras de fazerem
reposição hormonal e procedimentos estéticos também há, em alguns casos,
uma busca por um ideal de corpo heteronormativo, fazendo com que o objetivo
seja um enquadramento binário e sem muitos questionamentos acerca de ser
homem, mulher ou outras possibilidades. E isto está associado a objetivos per-
feccionistas, muito comum em sujeitos com transtornos alimentares, de acordo
59

com McGuire et al. (2016), acarretando expectativas irrealistas da imagem cor-


poral, levando-os a esconder essas partes para que nem eles próprios as vejam,
assim como outras pessoas causando ansiedade e dificuldades em situações
sociais. Logo, esses ideais heteronormativos são impressos nos sujeitos, e mais
especificamente naqueles que foram socializados como “fêmeas”, de acordo
com McGuire et al. (2016) e Diemer et al. (2018).

Para as autoras citadas acima o fato do sujeito ser designado “fêmea” ao


nascer, ou ser socializado enquanto “fêmea” interpola-se à impossibilidade de
se sentir satisfeito com sua imagem corporal10 . Uma vez que a pressão para
que os corpos de “fêmeas” se encaixem na norma é diferente dos corpos dos
“machos”, o que leva de acordo com McGuire et al. (2016) a uma insatisfação de
71% dos sujeitos transmasculinos pesquisados. Podendo se estender não só
aos corpos de “fêmeas”, mas aos corpos atravessados pela feminilidade (mulhe-
res trans, homens gays, bissexuais, não binários femininos) (NAGATA; GANSON;
AUSTIN, 2020).

Alguns sujeitos transgênero, ou mais especificamente aqueles deste recor-


te científico, podem usar do transtorno alimentar para alcançar alguns dos re-
sultados tidos com a hormonização, o que adéqua mais a imagem corporal às
expectativas de gênero, visto que se tem como hipótese de que a reposição hor-
monal e intervenções cirúrgicas são potenciais “aliviadores” do sofrimento de
sujeitos transgênero (KAMODY et al., 2020). Aliviadores no sentido de fazer com
que a insatisfação diminua e a satisfação com o próprio corpo aumente, pois o
sujeito estaria se adequando a essa imagem corporal normativa e binária de-
sejada por alguns (NAGATA et al., 2020). Porém, há casos em que o transtorno
alimentar não alivia ou cessa com o uso de hormônios e procedimentos, como
dito anteriormente, o que pode ser apontado como um transtorno alimentar
dissociado da questão de gênero, ou como um meio de lidar com a insatisfação
corporal buscando controle e perfeição nesse corpo (DONALDSON et al., 2018).

O transtorno alimentar pode culminar também em outras comorbidades


como ansiedade, depressão, ideação e tentativas suicidas, podendo até resul-
tar na morte desse sujeito (DONALDSON et al., 2018; SATTLER; EICKMEYER; EI-
SENKOLB, 2020). Isso nos leva a questionar o papel da sociedade em impor o
seu padrão de gênero até nesses sujeitos que escapam às normas, fazendo com
que alguns busquem aproximar-se cada vez mais do que é imaginado como
corpo ideal de homem/mulher (DIEMER et al., 2018).

O sujeito que tem expectativas altas para si, pelo perfeccionismo, foi desig-
nado “fêmea” ao nascer ou socializado como tal, critica-se, tentando controlar
como o outro o percebe, tem mais risco de voltar-se para métodos de alimenta-
ção desordenada ou purgativos para controlar seu corpo (podendo ou não ter
10
Ver nota de rodapé 3, a feminilidade perpassa esse sujeito, muitas vezes, quando ainda no útero, podendo se estender pelos
primeiros anos de vida até o início da idade adulta para alguns sujeitos transmasculinos.
60

um diagnóstico de transtorno alimentar) e adequá-lo à norma (DONALDSON et


al., 2018). A disforia pode afetar partes corporais que não podem ser modifica-
dos com hormônio ou procedimentos; mas que são irreversíveis quando plena-
mente desenvolvidas, como a largura do ombro, cintura, tamanho das mãos e
pés, o que pode levar a extremo estresse, sentimento de desconexão e ódio a si
mesmo (MCGUIRE, et al., 2016).

A QUESTÃO DE GÊNERO
Este trabalho trata de sujeitos que performam11 ou são acometidos por
distúrbios alimentares, através do que chamamos de alimentação desordena-
da, tal como sujeitos que têm como intuito a busca pela perfeição, de acordo
com o poder médico (DESHANE, 2016). O que poderia ser justificado por um dos
traços de sujeitos diagnosticados com transtornos alimentares ser o perfeccio-
nismo, tal como citado anteriormente, mas também está relacionado ao estere-
ótipo exposto na mídia acerca de como os sujeitos com distúrbios alimentares
devem ser beauty-seekers, ou seja, caçadores da beleza (DESHANE, 2016). Algo
que para Shrestha (2018) pode ser considerado como uma romantização da
doença psiquiátrica, na qual o único sujeito passível de sofrer do mal do trans-
torno alimentar seriam apenas mulheres cis, jovens, brancas, perfeccionistas e
de classe média alta (DESHANE, 2016).

Para os sujeitos transgênero o uso de alimentação desordenada ou per-


formatividade de transtornos alimentares pode estar relacionado com a pos-
sibilidade de diminuir ou minimizar os caracteres sexuais secundários, no caso
dos homens transgênero seriam os seios, quadris e a parada da menstruação
(HIRAIDE, et al., 2017). E não somente como uma questão de estética para o su-
jeito, mas para adquirir inteligibilidade, e ser entendido pelos outros do mesmo
modo que ele se vê. Isto é, esses corpos buscam de alguma maneira se encai-
xar numa imagem, criada culturalmente, do que seria feminino ou masculino,
visto que essas diferenças sexuais seriam fixadas, buscando montar um corpo
sexual perfeito utilizando-se das tecnologias médicas para tal (MÉLLO, 2012).
Mas também funciona como uma tentativa de enquadramento na sociedade,
pois a pressão do estigma social faz com que esses sujeitos busquem se ade-
quar o máximo possível e para isso performam esses transtornos alimentares
para que se adéquem ao que seria supostamente uma estrutura do seu gênero
(WATSON; VEALE; SAEWYC, 2017).

Há, então, como colocado por Méllo (2012) uma dimensão microscópica do
corpo, no qual os mínimos detalhes que não são nem enxergados pelos olhos
11
Quando uso o termo performar estou em conformidade com Butler (2016) e seu uso da palavra performatividade de gênero, po-
rém a estendo para os transtornos alimentares, dado que as produções das noções restritivas da alimentação, exercícios exacerba-
dos, busca por um ideal normativo do corpo magro assim como a normalização das dietas, ou seja, um comportamento socialmente
sancionado de como devemos nos alimentar e constantemente buscar um corpo magro ideal, custe o que custar. Além do que
muitas vezes esses sujeitos abarcados por este trabalho tem um diagnóstico formal de transtorno alimentar, apesar de ter diversas
características diagnósticas ou fazer uso de métodos comuns em pessoas diagnosticadas com transtorno alimentar.
61

humanos são alvo de alterações. Tudo isto para que estes corpos se adéquem
a uma lógica binária (mulher/homem) ancorada nas ciências biológicas de que
se o corpo não se encaixa nessa lógica ele é nomeado como patológico (MÉLLO,
2012) ou abjeto, não digno de ser vivido (BUTLER, 2019). Mesmo que o sujeito
não tenha escolha de como/qual será o gênero performado a sociedade o atra-
vessa e impõe prerrogativas de gênero em que o sujeito se implica podendo
segui-las ou não (BUTLER, 2019). E o que essas pessoas criam a partir da percep-
ção de como olham a si mesmas assim como atravessadas pela cultura pode ser
colocado como imagem corporal, que é uma das principais questões tanto para
o sujeito transgênero quanto para o sujeito com distúrbio alimentar.

O ESTIGMA SOCIAL
O sujeito transgênero poderia buscar esse comportamento alimentar de-
sordenado para que ele possa ter o que chamamos de passabilidade, isto é,
seja percebido culturalmente por outros como o gênero desejado (MCGUIRE et
al., 2016). Além desta necessidade que alguns têm de se adequar é preciso, de
acordo com o poder médico, ser feito um diagnóstico desse corpo, chamando-o
de transgênero, o que a sociedade responde provendo um aval para a necessá-
ria montagem sexuada desse corpo para que se encaixe no que é naturalizado
como sendo a imagem de seu gênero (MÉLLO, 2012). O sujeito transgênero se
torna mais um que repete os atributos daquele gênero, reforçando a matriz
constituinte e sendo parte do reforço da binaridade (BUTLER, 2016). A socieda-
de faz com que alguns desses sujeitos que não se encaixam adoeçam (MÉLLO,
2012), assim como estabelecendo uma preservação da “identidade de gênero
binária, mantendo assim o status quo cisgênero-heteronormativo” (LANZ, 2015,
p. 110)

Esses sujeitos se constituem de diagnósticos (transexualismo - DSM 3,


transtorno de identidade de gênero - DSM 4, disforia de gênero – DSM 5), me-
dicalizações (bloqueadores e hormônios), procedimentos e cirurgias (transge-
nitalização ou neofaloplastia, mastectomia, histerectomia) (PREU; BRITO, 2019),
tornando-se sujeitos higienizados (MÉLLO, 2012). O que associa a busca por
confirmação da sociedade, à necessidade de se ter um corpo normativo, levan-
do esse sujeito a associar sua satisfação corporal a depender de como ele passa
na sociedade. Então, para Testa et al. (2017) quanto maior a passabilidade, isto
é, os outros reconheçam essa pessoa pelo seu gênero, maior será a satisfação
corporal dessa.

Além da busca pela passabilidade e/ou corpo normativo não ser uma rea-
lidade para todos os sujeitos transgênero, tornar-se conforme não diminui ne-
cessariamente os estigmas da sociedade, pois ao transgredir a norma se está
ameaçando a cis-heteronormatividade (LANZ, 2015). Além do mais, o sujeito
não só busca a inteligibilidade provida pela sociedade, como é obrigado a se
62

encaixar nela, mais especificamente em certos ambientes que os separam de


acordo com o gênero. Logo, todos nós agimos performativamente fazendo um
tipo de atuação de gênero para que possamos estar de acordo com o nosso gê-
nero, para que não soframos com violência e ansiedade social (BUTLER, 2016).

É importante ressaltar também que tanto a hormonização quanto os pro-


cedimentos estéticos são essenciais para alguns sujeitos transgênero, mas
não são a única via de tratamento do transtorno alimentar, e que, na verdade,
deveriam ser associadas a questionamentos acerca da imagem corporal, das
idealizações e da busca por uma perfeição inalcançável (DESHANE, 2016). En-
tão, esses sujeitos transgêneros vão sendo tratados pelos médicos que ainda
equivalem os transtornos alimentares em sujeitos cisgênero às mesmas causas
e tratamentos dos transgêneros. A percepção desses agentes de saúde é de-
turpada em detrimento, principalmente que sujeitos transgênero podem bus-
car outros objetivos com esses comportamentos de comer desordenado e/ou
transtornos alimentares, como adequar seu corpo às expectativas de gênero
estabelecidas pela sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
E para finalizar este trabalho gostaria de ressaltar a importância de que
sejam feitas pesquisas brasileiras acerca da temática. Pois o que observei foi a
ausência de estudos sobre esta questão, publicados em língua portuguesa, que
tratem da intersecção entre sujeitos transgêneros e transtornos alimentares, e
mais ainda de focar especificamente em homens transgênero. Também para
que possamos decolonizar o conhecimento, tirando o centro da produção do
norte global, tornando-nos um eixo de produção intelectual relevante no mun-
do.

Na literatura internacional gostaria de ressaltar a necessidade de estudos


longitudinais com sujeitos transgênero binários ou não, uma vez que há uma
escassez também desse tipo de estudo. Porquanto estudos com os diversos gê-
neros são necessários para que possamos conhecer o fenômeno de uma forma
mais ampla, uma vez que engloba também mulheres trans e sujeitos não-biná-
rios. Para que isso ocorra é fundamental que se forneça formações continuadas
e capacitações dos agentes de saúde, provendo conhecimento sobre a transge-
neridade, tal como transtornos alimentares nessa população.

Concluo, também, que esse padrão binário imposto pela sociedade oci-
dental causa uma pressão na população transgênero para que se adéque ao
que é considerado como características centrais do que é ser mulher/homem.
Acho necessário então que busquemos possibilidades de desnaturalização des-
sas categorias universais, que são enaltecidas seja pela hipervalorização das
aparências e da magreza na nossa sociedade. Ou até pela ideia de que é possí-
vel ter uma imagem corporal perfeita, desde que este corpo esteja enquadrado
63

na lógica do padrão dominante, isto é, adequando-se a idealizações criadas pela


nossa cultura e que são impossíveis de alcançar.

A inteligibilidade é associada não só a esse corpo magro, mas branco, femi-


nino, de classe média alta e escolarizado que é tido como única possibilidade de
adoecimento para transtornos alimentares. Porém, não temos ideia da propor-
ção do fenômeno ao não se ter estudos de outras corporeidades que não essas
do estereótipo, ao que poderia apontar para justamente uma subnotificação
ou não reconhecimento desses casos por não se enquadrarem em todas essas
características. Portanto, alguns homens transgênero ao buscarem esse ideal
construído socialmente que coloca qualquer feminilidade em um corpo mas-
culino como sendo indesejável, impensável e impossível, buscam de qualquer
método para livrar-se dela.

Mesmo os corpos, de acordo com a cultura e sociedade, serem divididos


em somente dois tipos (homens e mulheres), e não poderem se misturar em
nenhum aspecto, por isso temos banheiros divididos, sessões de loja, papéis
estritos de como cada um deles devem agir. Eu fui levada a questionar o pró-
prio recorte deste trabalho, pois ao selecionar somente homens transgênero,
dividimos esses sujeitos binariamente e selecionamos artigos que fizessem o
mesmo.

Lembro que esse texto foi construído por uma pessoa cis, aliada e que
constantemente se envolve nos estudos de gênero, sexualidades e queer e que
estou disposta a falar com nossa população LGBTQIA+ e jamais sobre nossa
população, em especial aqui, os homens trans.

Por fim agradeço a leitura crítica de Nai Monteiro, Joss dos Santos e Caí-
que Nascimento que como pessoas transgêneras me auxiliaram minimamente
a perceber algumas lacunas que foram deixadas em meu texto pré publicação.
Incentivo o diálogo, em outras possíveis lacunas, e aprendizagem em minhas
práticas para que seja possível provocar mais pesquisadores a abordarem esta
temática para assim atentarmos cada vez mais para esse dispositivo de gênero/
transtorno alimentar que provoca tanto sofrimento. Convido àqueles que bus-
carem tal interlocução ao debate conjunto acerca do tema, assim como possí-
veis contribuições para esse trabalho e reedições do mesmo.
64

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tística das Perturbações Mentais, 5ª ed. Lisboa: Climepsi Editores, 2013.

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CAPÍTULO 5
66

DANDARA – AÇÕES DE CIDADANIA EM GÊNERO E SEXUA-


LIDADE
Iran Ferreira de Melo1
Universidade Federal Rural de Pernambuco

Este capítulo visa a expor um pouco o que foi o projeto de extensão Dan-
dara – Ações de Cidadania em Gênero e Sexualidade, executado por mim, em
2018, e apoiado pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. Ele teve como
objetivo desenvolver intervenções sociais que reflitissem sobre a recrudescente
violência motivada pelo ódio à diferença de gênero e sexualidade em nosso país
e problematizassem o papel de vários setores sociais na intolerância histórica
aos modelos de gênero e sexualidade não normativos.

Para tanto, tal projeto foi dirigido a diferentes grupos populacionais que,
em doze distintas ações (sarau, bazar solidário, mostra de cinema, seminário,
entre outras) foram convidados a participar, interrogando se o seu cotidiano
reproduz práticas violentas que violam o direito à liberdade de gênero e sexu-
alidade, a fim de propor medidas preventivas e combativas a essas práticas.
Com tais ações, o Dandara está consonante com os emergentes saberes queer
e descoloniais – em especial com os estudos desenvolvidos pela pesquisadora
Guacira Lopes Louro (2015a, 2015b).

Nesse sentido, o projeto aspirou a contribuir para que, na relação teoria-


-prática e da rede universidade-sociedade, fortalecessem-se saídas no combate
às agruras contra pessoas que não se enquadram em padrões disciplinares de
gênero e sexualidade, respeitando o que preconiza a área temática de Direitos
Humanos da Política Nacional de Extensão Universitária e o Programa Nacional
de Direitos Humanos de nosso país. Dandara dos Santos foi uma travesti que
teve sua morte por arma de fogo filmada e difundida na internet. Por isso, esse
projeto recebeu seu nome como forma de homenageá-la e mostrar toda a vul-
nerabilidade e horror do humano. Aqui, buscamos falar um pouco da experiên-
cia dessa extensão, com vistas a promover, por meio dessas narrativas, ações
ainda mais potentes que esta.

1
Doutor em Linguística (USP), professor de Linguística e Língua Portuguesa em Letras e de Teorias do Discurso no Programa de
Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (UFRPE), professor de Análise Crítica do Discurso no Programa de Pós-Graduação em
Letras (UFPE), coordenador do Núcleo de Estudos Queer e Decoloniais – NuQueer –, diretor da Comissão de Diversidade, Inclusão e
Igualdade da Associação Brasileira de Linguística, coordenador do projeto de pesquisa “Deixa a minha língua lamber o que ela quiser:
disrupções queer de gênero no português brasileiro”. E-mail: iranmelo@hotmail.com.
67

O projeto Dandara exerceu uma dupla função:


- aconteceu como reflexão pública para pensarmos em questões do nosso
tempo, notadamente na diferença entre muitas performances de gênero e se-
xualidade e a reação proibitiva e violenta a essa diferença, o que promove, na-
turalmente, uma arena de posições políticas rica para encontrar soluções a isso
(assim, cumpre função cidadã e política);

- mas também ocorreu num horizonte pedagógico, ao passo que as ações fo-
ram formuladas para dialogarem fortemente com novas epistemologias sobre
gênero, sexualidade e educação (LOURO, 2015a, 2015b; MISKOLCI, 2015), pro-
venientes da interface entre movimento social e ciência, isto é, as ações não se
isentaram de apontar e sistematizar conhecimentos já formulados para a popu-
lação-alvo acessá-los (com isso, o projeto cumpre ainda uma função formativa).

Nessa diádica realização, o Dandara contou com a trajetória acadêmica e


pedagógica de seu coordenador, que, há dezesseis anos, vivencia práticas di-
dáticas e de pesquisa na seara dos estudos sobre identidades subalternas por
razões de gênero e sexualidade (MELO, 2010a, 2010b; MELO & ANDRADE, 2015),
buscando sempre chaves educacionais para banir as práticas de exclusão des-
sas identidades, sobretudo no trabalho de formação de profissionais da educa-
ção. Esta experiência potencializa o cumprimento da urgente indissociabilidade
entre ensino, pesquisa e extensão, garantida no Dandara, pela respectiva in-
terseção entre o papel formativo supracitado, a fundamentação científica que
ampara toda abordagem do projeto e o diálogo da experiência acadêmica com
a práxis pedagógica.

Essa relação dialética entre os três pilares da vida acadêmica vivenciada


no Dandara impacta na formação de estudantes que integraram a equipe do
projeto, uma vez que produziu novos paradigmas de compreensão sobre a pro-
dução de conhecimento, apontando que a constitutiva integração entre teoria
e prática compõe o melhor modelo de aprendizado para a vida social contem-
porânea. Além disso, não é possível desconsiderar o papel sine qua non inter-
disciplinar desse projeto, instaurado entre os campos da Educação (currículo,
ensino-aprendizagem, preconizados, por exemplo, pelos estudos de Silva, 2015)
e os muitos estudos sobre gênero e sexualidade (feminismo, perspectivas gays
e lésbicas, teoria queer, a exemplo de Torres, 2010, e Miskolci, 2015).

Tomando como objetivos explícitos, podemos dizer que o objetivo geral


do projeto foi propiciar ações que auxiliassem a reflexão sobre a crescente vio-
lência motivada pelo ódio à diferença de gênero e sexualidade em nosso país,
interrogando a função de diferentes setores sociais na reprodução de mecanis-
mos de controle sobre corpos que vivenciam performances de gênero e sexua-
lidade não normativas e propondo que esses setores combatam tais agruras. E
como objetivos específicos:
- contribuir para a transformação social da comunidade alvo na medida em
68

que promove práticas de empoderamento e conscientização sobre a violência


por motivo de gênero e sexualidade;
- apoiar projetos e ações já implementados para o combate à intolerância às
diferentes expressões de gênero e sexualidade;
- aproximar o diálogo entre os conhecimentos mais recentes sobre gênero e
sexualidade empreendidos nas ciências humanas e nos ativismos queer e des-
coloniais e o trabalho desenvolvido por diferentes coletivos, potencializando,
dessa maneira, a interseção entre o domínio científico e a ação social; a teoria
e a prática;
- a partir da reflexão dos laços profundos entre a emancipação e a normati-
zação social, entre as instituições e os interesses biopolíticos, entre o sistema
educacional e a imposição de modelos de como ser homem ou mulher, mas-
culino ou feminino, heterossexual ou homossexual, propor encaminhamentos
para diferentes sujeitos desenvolverem trabalhos que tratem a diferença huma-
na de forma não normalizadora ou compulsória, um trabalho fincado não em
modelos que o precedem, mas antes um aprendizado ativo e autônomo como
exercício de cidadania.

Para elucidar melhor como se deu o Dandara, a seguir apontarei dados


detalhados da proposta.

QUAL A RAZÃO DE EXISTIR O DANDARA?


A construção das diversas sociedades, em muitos momentos da história,
esteve pautada nas relações de poder que se edificaram de várias formas. Den-
tre os diferentes mecanismos de controle e normatização das populações, os
dispositivos de biopolítica que disciplinam e controlam corpos e desejos sempre
estiveram à frente, causando sofrimento e morte a quem ousa expressar-se de
maneira adversa aos seus preceitos (MISKOLCI, 2015). Com a crescente guinada
política nessa direção que nosso país tem vivido, tanto no âmbito sociopolítico
macro, quanto na formação micropolítica, diversos setores sociais vêm, cada
vez mais, ocupando espaço na ratificação das relações de poder heteronormati-
vo, que desconhece as múltiplas facetas da expressão humana e impõe padrões
binários sobre as pessoas.

É possível visualizar esse movimento fomentador presentemente no sur-


gimento de programas para a erradicação das discussões sobre gênero no âm-
bito escolar, a exemplo dos últimos planos de ensino reformados pelos mu-
nicípios e estados de todo o país, e na operacionalização do silenciamento de
posturas político-ideológicas em instituições públicas, realizado, dentre outras
formas, pelo o tour de force do projeto Escola sem Partido. Esses e outros casos
de trajetos conservadores nas políticas de distintas ordens no Brasil exigem um
novo olhar para diferentes grupos sociais que defendem a ilusão de neutralida-
de quanto à construção ideológica de uma hegemonia identitária e devem ser
questionados e vinculados a interesses contrários à educação emancipadora
69

parametrizada pelas leis brasileiras de diretrizes educacionais de base (BRASIL,


2002).

Em 2019, o Brasil registrou o marco do país com mais da metade de ho-


micídios a pessoas transgêneras (travestis e transexuais) no mundo, de acordo
com os dados apresentados em 2020 pela agência internacional de pesquisa
Trans Respect. Sobre o mesmo ano, o mapa brasileiro da violência infringida
contra pessoas que não se enquadram nas normas de gênero e sexualidade
aponta Pernambuco no quinto lugar entre os estados do Brasil e no segundo
entre os estados nordestinos que mais matam por intolerância de gênero e se-
xualidade, conforme relatório publicado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB, 2020),
organização que, há décadas, produz o registro de homicídios por ódio à dife-
rença de gênero e sexualidade e alimenta os dados das políticas públicas para
o combate à lgbtfobia. Além disso, de acordo com o relatório da Transgender
Europe, entidade que coleta informaçõs sobre a situação da população trans no
mundo, o Brasil é o país com mais episódios noticiados de assassinatos contra
pessoas trans e com o maior grau de baixa expectativa dessas pessoas. Com
dados atualizados em 2020, em território brasileiro, ocorreram cerca de 50%
dos homicídios de pessoas trans na América do Sul.

Esses e outros dados alarmam para a necessidade de ações de base na so-


ciedade brasileira e, sobretudo, para ações iminentes nos aparelhos de Estado,
como as universidades públicas, fontes, muitas vezes, de (re)produção de sabe-
res legitimados socialmente. Em virtude disso, o projeto Dandara se colocou na
urgência para aproximar a Universidade Federal Rural de Pernambuco à rede
de combate a essas violações de direito, intentando a interação transformado-
ra entre universidade e os demais setores da sociedade e buscando contribuir
com a construção de uma escola que respeite as diferenças de todos os tipos,
na perspectiva de questionar as experiências do estigma, da humilhação e da
morte por razão de gênero e sexualidade e a fim de repensar a si própria em
face do convívio humano e das demandas da sociedade civil.

Esses dados empíricos não estiveram isolados de uma fundamentação te-


órica adequada para o projeto se realizar, na próxima seção vamos mostrar um
pouco de tal embasamento.

UM POUCO DA FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA DO PROJETO


Os estudos sobre a subalternidade de identidades não normativas de gê-
nero e sexualidade surgem nos anos 1980, inseridos em um cenário aberto pe-
los movimentos sociais surgidos duas décadas antes, principalmente o movi-
mento pelos direitos civis nos Estados Unidos, o movimento feminista e o então
movimento homossexual. Tais ativismos ganham força e visibilidade na época
da contracultura e costumam ser associados à emergência de novos sujeitos
70

históricos que passam a demandar direitos e a nfluenciar na produção do co-


nhecimento (MISKOLCI, 2015).

A partir da segunda metade da década de 1980, há um processo de re-


avaliação desses movimentos, seus sujeitos e suas demandas. É o momento
em que feministas negras, e do então chamado Terceiro Mundo, começam a
criticar o caráter branco, de classe média e ocidental do feminismo anterior. Em
dinâmica similar e articulada, o movimento homossexual e o feminista passam
a ser questionados por aqueles/as que, ainda que defendendo o cerne de tais
movimentos, não se alinham às identidades branca e burguesa, predominantes
neles. Eis que emergem interseções de cariz descolonial que denunciam ques-
tões de raça/cor e classe no interior do próprio ativismo contracultural daquele
momento (TORRES, 2010, MISKOLCI, 2015).

Tais questões entram, com isso, na pauta de diferentes grupos que, hoje,
buscam afirmar uma mudança social integrada que respeite todas as diferenças
e promovam a socialização de saberes populares e científicos em prol de uma
aliança com diferentes agendas marginalizadas pelo sistema socioeconômico
dominante e pelos modelos culturais excludentes. Esse padrão rizomático é ob-
jeto da problematização na abordagem para as ações do projeto Dandara. Os
desdobramentos heurísticos desse padrão no contexto do projeto se dão pelo
diálogo essencial que creditamos à relação entre as questões supracitadas e as
ideologias que colonizam áreas fundantes da sociedade, como a Educação; a
qual, conforme já evidencia Freire (1996) e Bourdieu & Passeron (2016), carrega
o rastro da ilusão de um ensino-aprendizagem isento e capaz de passar ao largo
de toda a história das lutas pela existência de corpos reconhecíveis sob o signo
da abjeção.

Tradicionalmente, educadorxs são formadxs para acreditar que podem


educar de maneira neutra, como se fosse possível entrar na sala de aula para
lecionar deixando do lado de fora toda a sua história de socialização. Isso ja-
mais poderia acontecer porque trazemos uma bagagem cultural para as nossas
atividades profissionais, mas, sobretudo, porque educar nada tem de neutro;
seus métodos e seus conteúdos têm objetivos interessados, dentre eles um
dos pressupostos fundamentais da vida social contemporânea, mas, ao mesmo
tempo, base arcaica na organização das relações de poder: a ideia de que as
pessoas preenchem um padrão binário de gênero, qual seja, o masculino e o
feminino – por meio da designação de “homem” e “mulher” – e seguem o mo-
delo heterossexual de vivências eróticas. Nesse sentido, a suposta neutralidade
na formação e atuação de educador@s faz dela uma das principais ferramen-
tas para a construção de uma escola heteronormativa, como já aponta Louro
(2015b) para tratar do modelo psicossocial que está no alicerce das sociedades
hodiernas nas quais as práticas pedagógicas escolares se assentam.

Diante disso, a heteronormatividade como modelo cultural no qual somos


71

educad_s constitui a mola-mestra das práticas de enquadramento sobre os cor-


pos, do disciplinamento comportamental e, consequentemente, do estigma e
da exclusão a quem não corresponde a tal modelo, a saber:

- mulheres autônomas, que, por questionar a submissão aos homens e de-


monstrarem alto grau de agência, se aproximam do padrão considerado de
masculinidade e rompem com a normalização imposta a seus corpos;
- pessoas que expressam desejo erótico por outras de mesmo sexo e, com
isso, subvertem as expectativas morais e normatizadoras de suas sociedades;
- homens e mulheres que, não se reconhecendo unicamente no que se pro-
jetou como aquilo que é caracterizado por ser homem ou aquilo que se entende
por ser mulher, performam outro modo de ser, sem se enquadrarem nessas
duas formas de existência e, então, vivenciam outras que ainda padecem de
designação, tamanha é a sua marginalidade nos discursos hegemônicos;
- pessoas que não se identificam com a atribuição de gênero que lhes deram
ao nascer, reivindicando identidades de homens e mulheres diferentes dos pa-
drões lhes imputados, as chamadas pessoas trans;
- entre outros modos de vida humana que sempre estiveram à sombra do
poder dominante da cis-hetero-normatividade.

Tomando esse silencioso e excludente modelo como paradigma da estru-


tura social e, consequentemente, escolar, diferentes pesquisadoras (BUTLER,
2015; LOURO, 2015b) o reconheceram como categoria política e de análise, que
usamos no projeto Dandara. Em contrapartida a essa categoria de análise e
questionamento, o nosso projeto sugeriu a mobilização da categoria “diferença”
como contradiscurso ao modelo dominante, seguindo a esteira teórico-política
apresentada por Miskolci (2015) quando revela que, ao contrário da diversidade
– que está ligada à ideia de tolerância ou de convivência – a diferença instaura
o reconhecimento como transformação social das relações de poder e do lugar
que o Outro ocupa nelas. Diferença, portanto, inclui um macro-modelo, contrá-
rio à heteronormatividade, com o qual operamos no projeto Dandara, para, a
exemplo do que defendem Miskolci (20015) e Louro (2015b), desvelar o oculta-
mento da riqueza humana profundamente empreendido na prática pedagógica
dos programas educacionais do Brasil e na vida diária de brasileiras/os.

No próximo tópico trarei o relato do processo metodológico e a visão sobre


o projeto ficará mais clara.

RELATO DE EXPERIÊNCIAS EM SI
Antes de proceder ao relato propriamente dito, quero mencionar qual foi
o nosso público-alvo. Desse modo, afirmo: possibilitando a aproximação com
as pessoas cujas identidades sexuais e de gênero são consideradas periféri-
cas (aquelas que comumente chamamos de gays, lésbicas, bissexuais, travestis,
72

transexuais, intersexuais, assexuais, entre outras) e com a pretensão de forta-


lecer a interação transformadora entre universidade e demais setores da socie-
dade, o público-alvo do projeto foi formado por este grupo populacional e por
profissionais que atendem essas pessoas direta e indiretamente (profissionais
da educação e da saúde, por exemplo), tendo sido, portanto, de acordo com a
quantidade de ações e a capilaridade das mesmas, um público com o número
estimado de 11.600 pessoas, conforme discrimina o quadro a seguir.

Quadro 1. Público-alvo

A B C D E Total
Público Interno da Universidade/
100 300 80 100 0 580
Instituto
Instituições Governamentais Fede-
50 100 100 50 0 300
rais
Instituições Governamentais Esta-
50 80 80 50 0 260
duais
Instituições Governamentais Muni-
70 40 0 40 0 150
cipais
Organizações de Iniciativa Privada 50 80 50 0 0 180
Movimentos Sociais 0 0 0 0 400 400
Organizações Não-Governamentais
0 0 0 0 80 80
(ONGs/OSCIPs)
Organizações Sindicais 0 0 0 0 600 600
Grupos Comunitários 0 0 0 0 400 400
Outros 0 0 0 0 300 300
Total 320 600 310 240 1.780 3.250

Legenda:
(A) Docente
(B) Discentes de Graduação
(C) Discentes de Pós-Graduação
(D) Técnico Administrativo
(E) Outro

A divulgação do projeto a esse público se deu pelo contato que fiz com a
comunidade ou a instituição a ser beneficiada. Propus à comunidade ou à ins-
tituição que nós da universidade promovêssemos a divulgação entre o público-
-alvo por meio de avisos nas redes sociais digitais (da web) e presenciais. Eu me
coloquei à disposição para fazer a divulgação dessas duas formas.
73

As ações do Dandara ocorreram por meio das seguintes atividades, dos


escritos locais e nas respectivas datas e horários:

- Bazar Trans Solidário – ação de recolhimento de roupas e calçados para


pessoas trans em situação de vulnerabilidade. Praça da Várzea, Av. Afonso Oli-
dense, Várzea, Recife. CEP.: 50741-040. 26 de janeiro – 13h-17h.

- Seminário Educação para a diferença e a cidadania em gênero e sexualida-


de. Auditório da Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal Rural de Per-
nambuco, Rua Manoel de Medeiros, s/n, Dois Irmãos, Recife. CEP.: 52171-900.
22 e 23 de fevereiro – 09h-12h e 14h-17h.

- Fortrans – Fórum para a Visibilidade e Inclusão de Travestis e Transexuais.


Auditório da Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal Rural de Per-
nambuco, Rua Manoel de Medeiros, s/n, Dois Irmãos, Recife. CEP.: 52171-900.
19 e 20 de abril – 09h-12h e 14h-17h.

- Sarau Queer. Espaço Pasárgada. Rua da União, 263, Boa Vista, Recife. CEP.:
50050-010. 18 de maio – 14h-18h.

- Seminário Saúde para a diferença e a cidadania em gênero e sexualidade.


Auditório da Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal Rural de Per-
nambuco, Rua Manoel de Medeiros, s/n, Dois Irmãos, Recife. CEP.: 52171-900.
14 e 15 de junho – 09h-12h e 14h-17h.

- Mostra Gisberta de Cinema em Gênero e Sexualidade. Auditório da Pró-Rei-


toria de Extensão da Universidade Federal Rural de Pernambuco, Rua Manoel de
Medeiros, s/n, Dois Irmãos, Recife. CEP.: 52171-900. 26 e 27 de julho – 14h-19h.

- Seminário Judith Butler. Centro Cultural Correios. Av. Marquês de Olinda,


262, Bairro do Recife, Recife. CEP.: 50030-000. 27 e 28 de setembro – 09h-12h e
14h-17h.

- Mostra Teatro Queer. Teatro Arraial Ariano Suassuna. Rua da Aurora, 457,
Boa Vista, Recife. CEP.: 50050-000. 24-27 de outubro – 19h-21h.

- Mostra fotográfica amor de mulher. Torre Malakoff. Praça do Arsenal, s/n,


Bairro do Recife, Recife. CEP.: 50030-350. 26-29 de novembro – 10h-20h.

- Mostra musical Queer. Teatro Arraial Ariano Suassuna. Rua da Aurora, 457,
Boa Vista, Recife. CEP.: 50050-000. 07 de dezembro – 16h-22h

A metodologia de todo o processo deste projeto de extensão se dividiu nos


três macro-momentos descritos a seguir.
74

a) Etapa anterior às ações

- Apresentação do projeto pelo coordenador ao bolsista (essa atividade acon-


teceu na primeira reunião de planejamento).

- Em paralelo à elaboração dessa primeira reunião de planejamento, o coor-


denador fez o levantamento da bibliografia necessária para as leituras do refe-
rencial teórico adotado no projeto. Contudo, antecipadamente, os títulos lista-
dos no plano de trabalho do estudante bolsista (LOURO, 2015a, 2015b; LOURO,
FELIPE & GOELLNER, 2013; MISKOLCI, 2015; TORRES, 2010) serviram de biblio-
grafia básica.

- Em segunda reunião, foi feita leitura e discussão, entre a coordenação e o


estudante, de algum texto selecionado na bibliografia (esse procedimento acon-
teceu semanalmente, como parte da formação do bolsista e como planejamen-
to epistêmico para as ações).

- Entrei em contato presencialmente com a gestão dos locais que sediaram as


ações, a fim de, dois meses antes da data escolhida para atuar com o projeto,
convidar, por meio de divulgação mediada pela gestão, pessoas de diferentes
grupos para participarem da ação (as datas e os horários que foram sugeridos
são os que estão neste relato).

- Produção do plano a ser empregado em todas as ações. Esse plano com-


preendeu as etapas descritas a seguir, considerando as suas contextualizações
para cada local.

b) A ação extensionista em si

- Com o apoio do bolsista, uma hora antes da ação começar, eu organizava


o espaço em que ia ocorrer (por exemplo, dispondo cadeiras, verificando ilumi-
nação do ambiente, ligando projetor e computador, observando o local onde
acontecia a projeção).

- O primeiro momento da ação extensionista em si era a apresentação do


projeto para o público presente (qual o objetivo do projeto, como surgiu, de
onde vem, quem são seus integrantes e como se realizará). Em seguida, eu ini-
ciava a ação em si (começando o sarau; iniciando a exibição dos filmes na mos-
tra de cinema; apresentando os palestrantes no seminário; etc).

- O segundo momento se dava, em muitas ações previstas (não em todas),


por meio de um debate com o público. Como num debate tradicional, eu lança-
va, para as pessoas presentes, questões sobre a ação e, a partir daí, ocorria o
movimento comum de discussão (perguntas, respostas, réplicas, tréplicas), sob
a inscrição de fala que era feita pelo bolsista. Para este momento, dedicava uma
75

hora.
- Após o debate, eu, à luz do que foi discutido e ouvindo os anseios do públi-
co-alvo, propunha ações semelhantes nas comunidades do público presente,
organizadas pelo próprio, para promover a cidadania pela diferença de gênero
e sexualidade. Esta atividade durava cinquenta minutos.

- Como mecanismo de acompanhamento e avaliação, ao final da ação, o bol-


sista entregava um pequeno questionário para o público anonimamente avaliar
a ação. Nele havia as questões: a) Escreva uma palavra que expresse o que você
achou dessa ação; b) Como avalia a participação do professor coordenador?; c)
Como avalia a participação do estudante bolsista?; d) Que contribuição acredita
que essa ação trouxe para a sua vida?; e) Quer fazer mais algum comentário?
Além disso, o estudante bolsista perguntava se alguém se disponibiliza a gravar
um breve vídeo comentando a ação (ele mesmo se encarregava de fazer a gra-
vação, com a minha câmera filmadora e a partir do comando de gravação “Olá,
como você se chama e o que achou dessa ação?”). Os registros fílmicos eram
apresentados nos relatórios parcial e final.

c) Etapa posterior à ação

- Com a ajuda do estudante bolsista, eu produzi os relatórios parcial e final


para serem entregues na metade e no fim da execução total do projeto. Esses
relatórios seguiram modelo previamente apresentado pela Pró-Reitoria de Ex-
tensão e ajudaram na crítica e autocrítica da jornada do projeto.

- Em agosto e outubro de 2018, ficaram previstas apresentações escritas e


orais, respectivamente, na Semana de Extensão da UFRPE e na Jornada de En-
sino, Pesquisa e Extensão (Jepex), eventos acadêmicos que promoveram um
balanço das competências adquiridas e dos resultados alcançados durante a
jornada do projeto.

Os mecanismos de acompanhamento e avaliação, para um projeto que


privilegie a interseção entre ensino, pesquisa e extensão, como o Dandara, ter
clareza do que planejemos foi essencial para não perdermos de vista os obje-
tivos e seus cumprimentos. Diante disso, ao longo do calendário de um ano
do projeto, apliquei ações de avaliação exterior para o desenvolvimento das
atividades e pratiquei constantemente um trabalho de autoavaliação para agu-
çarmos a autocrítica em relação à caminhada do projeto.

No processo de acompanhamento e avaliação externos, busquei, solicitar


ao público contemplado que avaliasse as sessões das ações por meio do ques-
tionário, que, como descrevi, aplicamos individualmente; mas ainda considerei
a pertinência dos livres comentários que o público pôde fazer nas gravações dos
microvídeos de que solicitamos a participarem, dando suas impressões sobre
as atividades de nosso projeto. Ademais, não desprezei as apreciações que, ao
76

longo das atividades, pudemos ouvir; as quais registramos com muito esmero, a
fim de que uma ação seja melhor e mais produtiva do que a outra, no sentido de
conhecer, ao sabor da prática também, qual a medida da pertinência de nossa
metodologia e quais temas são relevantes para os grupos que nos acolheram.

No que tange ao acompanhamento e avaliação internos ao projeto, propus


utilizar os parâmetros da crítica desenvolvida na avaliação externa pelas pesso-
as que receberam as ações; o feedback de colegas e atores totalmente externos
ao projeto, que o conheceram nas situações de socialização dele em eventos
acadêmicos; assim como a nossa própria atuação de autocrítica ao longo do
caminho, a fim de que todos esses componentes nos apoiassem na construção
de um trabalho que vocalizasse os discursos científicos mais recentes das pes-
quisas sobre gênero e sexualidade e os saberes dos movimentos sociais dessa
seara; dialogassem com propostas pedagógicas inovadoras e interdisciplinares
tanto para a educação básica quanto para a educação acadêmica; e respondes-
sem às necessidades de uma sociedade que quer ser inclusiva e almeja propa-
gar cada vez mais a cidadania.

E QUAL A IMPRESSÃO DO RESULTADO DO PROJETO?


Além de todas as observações já feitas aqui, é mister ratificar que as expec-
tativas sobre o Dandara giraram em torno do êxito que as atividades podem ter:
desde a receptividade do público para o diálogo (afinal, em tempos de tantos
retrocessos na cidadania, na democracia e nos direitos humanos, a temeridade
do contrário é constante) até o desejo das comunidades visitadas em manterem
interlocução com a universidade, a fim de que as trocas pudesseem ser perma-
nentes e os laços de aprendizado mútuo se perpetuem.

Ademais, o projeto aspirou a que as reflexões provocadas por suas ações


continuassem sendo acolhidas pela universidade de origem do projeto, uma vez
que acredito na eficácia e no poder transformador da ação pedagógica em prol
do respeito à diferença humana. Sem sombra de dúvidas, o Dandara permitiu
uma imbricada relação entre ensino, pesquisa e extensão, que se realizou de
maneira consolidada ao passo que forneceu as seguintes possibilidades:

1. emergiu das necessidades na sociedade contemporânea, acerca da pro-


dução de conhecimento e de práticas integradas com diversos setores sociais
sobre soluções cidadãs para prevenir e combater o preconceito, a discrimina-
ção e a intolerância às pessoas por suas identidades e expressões de gênero e
sexualidade. Tal movimento articulou a produção de conhecimento gestada na
academia pelas ciências sociais, atravessada pelo forte diálogo com as comu-
nidades populares e seus saberes tradicionais; com o movimento social e suas
agendas políticas; e com a própria história da educação, conforme defende uma
das principais expoentes teóricas do Dandara, a pesquisadora da relação gêne-
ro/educação Guacira Lopes Louro (2015a, 2015b).
77

2. Evocou os conhecimentos científicos da pesquisa e os aplicou à situação de


mobilização social e formativa. Nesta dimensão, vimos a interferência do uso de
categorias analíticas, políticas e pedagógicas, como registramos na Fundamen-
tação Teórica deste projeto, no interior das nossas ações e no discurso do diá-
logo que o Dandara instituiu na comunidade-alvo. A práxis extensionista esteve
vinculada às questões epistemológicos mais contemporâneas, que são testadas
na própria prática social, no debate público e no exercício da pesquisa-ação. A
partir dessa relação se instaurou, também, a integração pesquisa-extensão, que
encontrou, no discurso das ações do Dandara, um terreno fértil para comungar
com a transversalidade dos temas gênero e sexualidade da política educacional
no Brasil.

3. A indissociabilidade do ensino à aprendizagem, deslocando o lugar da


docência e discência, tornando, como sugere Freire (1996), quem ensina um/a
constante aprendiz e quem aprende um sujeito do ensino, na medida em que
este projeto investe na formação das pessoas, mas, ao mesmo tempo, recebe
delas suas questões, contribuições e anseios. Da mesma forma, o Dandara tam-
bém deu possibilidade para o exercício didático do estudante bolsista, quando,
na condição de também idealizador e executor de um projeto como este, pode,
efetivamente, atuar do ponto de vista pedagógico, pensando estratégias de in-
tervenção social.

REFERÊNCIAS
BOURDIEU, P.; PASSERON, J-C.. A reprodução. Elementos para uma teoria do
sistema de ensino. Petrópolis: Vozes, 2016.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Lei 9.394/96. Rio de Janeiro:


DP&A, 2002.

BUTLER, J. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa.


São Paulo: Paz e Terra, 1996.

GGB. Relatório de homicídios da população LGBT em 2020. Salvador. 2017.

LOURO, G. L. (Org.) O corpo educado. Pedagogias da sexualidade. Belo Hori-


zonte: Autêntica, 2015a.

______. Um corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Ho-
rizonte: Autêntica, 2015b.
78

______.; FELIPE, J.; GOELLNER, S. V. (Orgs.) Corpo, Gênero e Sexualidade. Um


debate contemporâneo na educação. 9 ed. Petrópolis, 2013.

MELO, I. F. de. Análise Crítica do Discurso. Um estudo sobre a representação


de LGBT em jornais de Pernambuco. Recife: EDUFPE, 2010a.

______. Representações sociodiscursivas da homossexualidade. In: COSTA, H. et


al. (Orgs.) Retratos do Brasil homossexual. Fronteiras, subjetividades e dese-
jos. São Paulo: EDUSP; Imprensa Oficial, 2010b. p. 1005-1014.

______.; ANDRADE, M. L. da C. V. de. Sistema de transitividade como mecanismo


como mecanismo de representação de LGBT no discurso da Folha de S. Paulo.
In: LONGHIN, S. R.; KEWITZ, V. (Org.). História do Português Paulista. Série
Estudos. 01ed. Vol. IV. São José do Rio Preto: Universidade Estadual Paulista;
Cultura Acadêmica, 2015. p. 122-144.

MISKOLCI, R. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. 2 ed. Belo Hori-


zonte: Autêntica, 2015. (Cadernos de diversidade)

SILVA, T. T. da Documentos de identidade. Uma introdução às teorias do cur-


rículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

TORRES, M. A. A diversidade sexual na educação e os direitos de cidadania


LGBT na Escola. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. (Cadernos de diversidade)
CAPÍTULO 6
80

QUEER SEM MEDO NA EDUCAÇÃO UNIVERSITÁRIA


José Amaro da Costa1
Universidade Nacional de Rosario (Argentina)

INTRODUÇÃO
Parece que tudo está mudando
E a intenção não é desmantelar
Os conceitos antigos afundando
Para a normalização questionar
Queer sem medo na universidade
Eis aí seu lugar pra diversidade acatar

Movido pelo desafio de elaborar uma tese, encontrei, durante o processo


de investigação, algo que iria definitivamente me levar a um caminho SEM VOL-
TA, até então inimaginável. Isso aconteceu quando meu coorientador2 me apre-
sentou a um pensamento que transforma potencialmente as práticas educati-
vas de natureza não normativas: o pensamento queer. A partir desse processo
de imersão conceitual, tratei aproximar o modelo de educação atualmente pra-
ticado na universidade com a Pedagogia de perspectiva queer.

Como assim, o queer na universidade? Pensar pelo viés da construção de


um novo caminho, tudo bem, mas é impossível incluir algo que subverte, não
delimita, rejeita circunscrição, que tem origem nas ruas, que serve para xinga-
mentos, que pensa o espaço da universidade para todes que estão fora da dita
“normalidade”. “Trata-se dos descartáveis, subalternos, refugiado, da bicha, da
travesti ou seja dos estigmatizados, do refugo humano na obra Vidas desperdi-
çadas (Bauman) e dos de existência “precária” (Butler) em sua obra Vidas Precá-
rias” (LEOPOLDO, 2020, p. 25).

Penso que se fora considerado ousado demais por muito tempo, agora
é mais que urgente aproximar-se desse campo, porque, querendo ou não, ele
está presente e servirá para quebrar as bases de uma educação universitária
tradicional, burguesa, que apenas contempla “alguns”. Bem longe dos labora-
tórios acadêmicos centrados e alinhados a uma estrutura de pensamento e do-
minação.
1
Doutorando em educação na Universidad Nacional de Rosário – Argentina e pesquisador do NuQueer – Núcleo de Estudos Queer e
Decoloniais da UFRPE, joseamar@globo.com.
2
Coorientador Iran Melo – Doutor em Linguística, professor e coordenador do Núcleo de Estudos Queer e Decoloniais da UFRPE.
81

Nessa mirada, olho para trás e logo me dou conta de que, em pouco tem-
po, completarei quarenta anos de vivência universitária, muitas vezes como
aluno, sendo a primeira vez em 1984. Depois, na segunda graduação, seguida
de especialização, mestrado e, atualmente, vivo a experiência mais recente no
doutorado. Fruto dessas experiências enquanto aluno, professor e coordena-
dor de curso, carregava, sem saber, o queer comigo nesses espaços, tal qual
uma criança que, logo cedo, é chamada de “gay”, e não sabe o real significado.
Diante disso, mobilizo-me para subverter essa hegemonia por meio da Pedago-
gia queer, possibilitando, por exemplo, a entrada da linguagem inclusiva de
gêneros, os questionamentos da interseccionalidade e as reflexões do giro
decolonial na universidade.

Quero ressaltar que essa experiência acumulada ocorreu em universida-


des privadas não laicas, privadas laicas e públicas, tanto na cidade do Recife,
como no interior do estado (Caruaru) e também em universidades internacio-
nais, como na Argentina e em Madrid. Esses trajetos foram o suficiente para me
dar conta de que esse espaço aparentemente plural tropeça e desconhece mui-
to as questões queer; e, naturalmente, o desconhecido é temido. Ao longo dos
anos e em todos esses espaços, senti na pele as violências, explícitas ou sutis,
que pairavam sobre o processo da minha formação e, posteriormente, no exer-
cício profissional. Devido a isso, estou agora confrontando uma sexualidade he-
gemônica através da minha tese em desenvolvimento, servindo-me de métodos
auto etnográficos, afirmando-me integrante do grupo LGBTQIA+, alinhando-me
a uma perspectiva pós-identitária, e considerando as sexualidades dissidentes.

Decorrente disso é que se faz importante legitimar meu lugar de fala – con-
ceito difundido, aqui no Brasil, pela filósofa Djamila Ribeiro –, destacando a po-
sição onde me localizo, inspirado em Sainz (2020), com lentes atuais dos lugares
de opressão (O) e de privilégios (P): um homem gay (O), cis (P), de mestiçagem
indígena (O), gordo (O), com renda de classe média alta (P), urbano (P), 55 anos
(O), engajamento político de esquerda não partidária (O) e muito mobilizado
para as questões que dão ênfase à discriminação por idade e para os corpos
queer (O), isto é, ininteligíveis (O) e que [r]existem à heteronormatividade domi-
nante (O), tendo como consequências a geração de violências (O).

Nos últimos anos, tenho me concentrado em leituras, congressos e grupos


de pesquisa que dialogam com o meu objeto de estudo: violências por orienta-
ção sexual e identidade de gênero em universidades do Recife, durante a gra-
duação, com seus impactos e sequelas no processo de formação de corpos/
as/es dissidentes. Teço minha análise, portanto, com foco em uma categoria
quadrática: preconceito, opressão, discriminação e intolerância.

O convite está posto para todes que desejam uma universidade não nor-
mativa, queer! Acompanhemos o texto que se segue...
82

ANTECEDENTES HISTÓRICOS QUEER


Não vou querer fazer apologia
Nem dar cara de ontologia
O máximo que trago aqui de história
Traz alguns passos de lutas e vitórias
Isso vem mesmo de um passado queer
pra vermos assim a universidade fluir

Não tenho pretensões arqueológicas, mas tenho ciência de outros ante-


cedentes históricos, como: as ondas do feminismo, o impulso crítico da con-
tracultura, o surgimento dos movimentos sociais negros e LGBT. Assim sendo,
vou optar por um repertório queer cujo precursor, Guy Hocquenghem, é um
pensador francês que, no início dos anos 70, publicou Le désir homossexuel (O
desejo homossexual). Além dele, também considero alguns artigos da antropó-
loga feminista Gayle Rubin (Pensando sobre sexo, 1984) que trazem a expres-
são “dissidência sexual”.

Também em meados da década de 80 que, nos Estados Unidos, Eve Sed-


gwick3 desenvolveu, em Between Men (1985), uma análise das interdependên-
cias entre a hetero e a homossexualidade, afirmando que “certas formas de
dominação homossocial, em especial a do presente, dependem do repúdio a
laços eróticos entre homens e na projeção deles, em uma figura estigmatizada:
o homossexual”. Sedgwick deu o pontapé inicial para a compreensão de que a
ordem social contemporânea não difere de uma ordem sexual. Por extensão,
sua estrutura está no dualismo hetero/homo, de forma a priorizar a heteros-
sexualidade, por meio de um dispositivo que a naturaliza e, ao mesmo tempo,
torna-a compulsória (MISKOLCI, 2015, p. 31).

No Brasil, Nestor Perlongher dialoga, através do seu livro O negócio do


michê: a prostituição viril em São Paulo, a partir de uma intensa etnografia e de
uma densa análise teórica, com discussões sobre o desejo, as urbanidades, as
sexualidades, as corporalidades e o mercado do sexo nos bares, saunas e ruas
de uma São Paulo noturna e apaixonadamente transgressiva. Cidade essa onde
rapazes comercializavam sexo, amavam, brigavam, negociavam códigos e, por
vezes, desejavam o indesejável. Nesse cenário, é também nos anos 80, com a
epidemia crescente da Aids, que se forjou um pânico sexual, no qual a doença
foi considerada um perigo contra a sobrevivência da sociedade, conforme expli-
ca Miskolci (2015).

A Aids então era vista em condição/ameaça de contágio, abrindo espaço,

3
Eve Kosofsky Sedgwick − pensadora feminista dos Estados Unidos, especializada nas áreas de estudos de gênero, teoria queer e
teoria crítica, influenciada por Michel Foucault e Sigmund Freud.
83

desse modo, para a repatologização da homossexualidade a partir de uma di-


mensão epidemiológica. Nesse contexto de um refluxo conservador, igualmen-
te sustentado por governos conservadores, visava-se “disciplinar os poros e
as paixões” dissidentes (PERLONGER, 1985), pois a Aids era considerada uma
peste e sua vítima culpabilizada, carregando a doença como um castigo divino.
Paradoxalmente, é o início de uma grande virada, na qual se tornou possível
debater sexo em várias camadas da sociedade e minimizar o tabu de questões
reprimidas.

Já na década de 90, período no qual os acontecimentos de 80 começaram


a ser digeridos, que, em uma conferência, o termo Teoria Queer surge atra-
vés de Teresa de Lauretis, pesquisadora italiana radicada nos Estados Unidos.
Inspirades na provocação dessa teórica, como também na teoria feminista,
na psicanálise de Jacques Lacan e, principalmente, nas teorias francesas pós-
-estruturalistas, que pesquisadories estudavam os conceitos de sexualidade e
gênero. Assim sendo, encontraram instrumentos para pensar um novo campo
de estudos que pudesse ser uma alternativa aos referenciais tão identitários e
assimilacionistas presentes na teoria feminista e nos estudos gays e lésbicos
empreendidos nas universidades americanas.

Mais especificamente, diante dessas transformações teóricas e, portanto,


sociais que, em 1993, a Parada do Orgulho Gay de São Francisco, na Califórnia,
adota o queer como tema. De lá pra cá, não se esgotou o assunto, nem o inte-
resse das universidades, ONGS e movimentos sociais para desmistificar e apro-
ximar a sociedade desses sujeites queer. Essa guinada remodelou categorias
demarcadas pelas identidades normalizadoras, sobretudo as que utilizavam a
linguagem para estabilizar uma masculinidade hegemônica.

Finalizando essa apresentação cronológica, demarco a virada do milênio


que, iniciando o século XXI, fortificou a discussão acerca do queer, tanto nos
meios acadêmicos, quanto nos movimentos identitários. No Brasil, mesmo não
sendo uma data tão precisa, é em 2004 que se visualiza a ampliação da luta po-
lítica por espaços de visibilidade na então sigla GLS, com a inclusão das deman-
das de pessoas bissexuais, GLBT (gays, lésbicas, bissexuais e trans), até chegar
na composição atual LGBTQIAP+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgê-
neros, transexuais, queer, intersexuais, assexuais e pansexuais). Algumas siglas
já preveem a inclusão da letra N após a letra P, cuja função é representar as
pessoas não-binárias que não se entender como trans. Há de se considerar que,
mesmo um Q sendo grafado, o queer não se interessa por capturas identitárias.
84

PEDAGOGIAS QUEER NA UNIVERSIDADE


Da diferença presente na academia
Não importa o que está publicado
Vou agora partir da psicologia
Pra dela sairmos melhorados
Que a mudança lá na Pedagogia
Tenha no queer a sua melhor via

Se trago o queer para a Educação Universitária, evidentemente estou mi-


rando uma educação que destoa do projeto moderno e absolutizado pelo co-
lonialismo europeu, que vai muito além da escolarização e que assume uma
dimensão transversal4 . Esse deslocamento entre escolarização e educação se
distancia de questões imediatistas, como preparo profissional e resultados de
avaliação de aprendizagem. É que a escolarização, em grande parte, dedica-se
a aspectos que privilegiam a cognição, o intelecto e o racional em um processo
mecanicista de um indivíduo fragmentado.

O meu interesse, desse modo, são as bases de uma educação para além
da transmissão de conteúdo, a qual considera afetos, modos de imaginar, pen-
sar, sentir, desejar, que têm uma prática sociocultural e que se configura como
uma problemática de vida humana (TEMPORETTI, 2018). Assim sendo, o tema
transversal da violência de gênero e sexualidade, mais as lacunas nos atuais
parâmetros curriculares universitários do Brasil, impulsionam-me a lutar por
avanços na educação, romper fronteiras, atualizar linguagens e tornar as cha-
madas “minorias”, “estranhas”, uma população respeitada e não vulnerável ao
deboche ou às violências nos ambientes educativos.

Os avanços que busco me inclinam para a formação de indivíduos com


desenvolvimento integral, perspectivas da não violência e da Pedagogia Queer5
na educação universitária. Isso é possível, através da exposição de como as te-
orias pós-identitárias6 em geral e a teoria queer têm proposições a “entendê-la
como desestabilizadora de certezas e provocadora de novas percepções” (LOU-
RO, 2004, p. 24). Tudo pode ser queer e tudo pode deixar de sê-lo, sem um devir
muito quadrado nem redondo demais, é tudo uma questão de jeito; um passo
4
Dimensão transversal − expressa conceitos e valores básicos à democracia e à cidadania e obedecem a questões importantes e
urgentes para a sociedade contemporânea. A ética, o meio ambiente, a saúde, o trabalho e o consumo, a orientação sexual e a plurali-
dade cultural não são disciplinas autônomas, mas temas que permeiam todas as áreas do conhecimento e estão sendo intensamente
vividos pela sociedade, pelas comunidades, pelas famílias, por alunes e educadories em seu cotidiano.
5
Pedagogia Queer − Uma pedagogia e um currículo queer falam a todes e não se dirigem apenas àqueles/as/us que se reconhecem
nessa posição-de-sujeito, isto é, como sujeitos queer. Tal pedagogia sugere o questionamento, a desnaturalização e a incerteza como
estratégias férteis e criativas para pensar qualquer dimensão da existência (LOURO,2001).
6
Teorias pós-identitárias – buscam, por meio de uma produção artística, cultural e política, problematizar valores e normas estabe-
lecidas, apresentando e celebrando outras formas de vida e outras maneiras de se expressar, no que diz respeito às “identidades de
gênero”. Somado a isso, visa borrar as fronteiras classificatórias e constituir atravessamentos entre essas normas e identidades fixas,
ou mesmo tentando implodir esses binarismos. Tais ações evidenciam que as normas são fluidas, transitórias, históricas, sociais,
culturais, e, portanto, passíveis de modificação; essas ações podem e têm promovido intensos debates, gerando muitas polêmicas
(SFG, 2013).
85

certo demais atrapalha, mas um passo falso também. Em questão de queer,


todo cuidado é pouco”, sugere Louro (2018).

Ainda prossegue a autora mencionando que “A Moral não é queer. Nem


a Lei. Nem o Direito. O governo nunca é queer. Mas dizer ‘nunca’ não é nada
queer”. Em se tratando do governo, vou logo me permitir concordar com Louro
(2018), já que o contexto político brasileiro atual nem chega perto do queer.
Pode-se dizer que esse governo reflete um conservadorismo7 o qual denomino
hostil; como educador, perturba-me silenciar diante das violências por orienta-
ção sexual e identidade de gênero, principalmente nas universidades, caso da
minha tese. O que me perturba é, também, o que me dá ânimo para produzir
essa peça acadêmica, ainda que possa ser lida e interpretada por muitos, no
atual contexto político, moral e religioso do Brasil, como algo provocativo, sub-
versivo e anticristão.

O entendimento de provocação e subversão às normas, de minha parte,


está em descrever e, ao mesmo tempo, criticar violências com o disciplinamen-
to dos/as/es corpos/as/es e o desconforto com as identidades fluidas na uni-
versidade, onde, muitas vezes, não se pode ser quem verdadeiramente se é.
Tenho como inspiração uma manifestação cunhada pelo poeta grego Píndaro8
: “Querer ser alguém, dando o sentido à vida, é próprio da trajetória da condi-
ção humana”; também me remeto a uma questão originada e introduzida pelo
filósofo Nietzsche (1995) de não sentirmos culpa pelo que somos, rediscutida
em outros autores, como por Foucault (2015) sobre descobrir o que somos,
recusar o que somos e da reinvenção de si; e, mais recentemente, apoio-me
numa atualização feita por Butler (2018) e explorada por Berenice Bento (2006)
quando trata da reinvenção do corpo, numa crítica imanente aos regimes nor-
mativos.

Embriagado por essas pessoas, devo mapear as violências9 com seus im-
pactos10 e sequelas11 vividos e, por vezes, silenciados, durante a formação uni-
versitária da graduação. Para tanto, debruço-me sobre a escala gradual quadrá-
tica que já mencionei: preconceito, opressão, discriminação e intolerância
com estudantes e egressos de universidades do Recife, em virtude de sua orien-
tação sexual e identidade de gênero não convencionais.

7
Conservadorismo – conceito associado a processos e contextos históricos específicos. O termo tornou-se comum nos debates
públicos brasileiro e mundial contemporâneos, sendo constantemente acionados nos noticiários de televisão, na imprensa escrita
e nas redes sociais digitais com uma profusão de sentidos razoavelmente elásticos; por vezes, é identificado de modo excessivo e
impreciso com fascistas, se na política, ou com fundamentalistas, quando na religião. Parafraseando Geertz, quando escreveu que,
no mundo contemporâneo, “há coisas demais a que se quer dar o nome de ‘religiosas’” (2001, p. 151), muitas coisas são chamadas de
conservadoras ou arroladas enquanto tais, em um mesmo grande movimento.
8
Para uma visão panorâmica da literatura grega antiga, também com referência a Píndaro, ver Dalbosco et. al. (2019, p. 27).
9
Violências – está na nossa exposição e na nossa cumplicidade para com ela − vulnerabilidades (BUTLER, 2019, p. 39) será analisado
com base nos testemunhos dos impactados por identidade de gênero e orientação sexual.
10
Impactos – Vivência de choque, golpe emocional produzido, os quais constroem atos de discriminação /exclusão. Pegadas ou sinais
(indícios) que deixam efeitos.
11
Sequelas – Resultados dos impactos. Dificuldades, travas que ficam como consequência dos impactos (em particular relacionados
com os progressos na convivência, educação e formação universitária).
86

Propositadamente, esta produção clama pela superação de um discurso


heteronormativo, de cunho hegemônico masculino, machista e, predominante-
mente, binário na educação. Quero que, daqui para a frente, não mais possa se
legitimar o sintagma/binômio saber-poder, mas que se abra espaço na univer-
sidade para acolher a liberdade de ser, fora dos respaldos das lutas realizadas
pelos movimentos sociais ou de conquistas pelo viés da judicialização. O que
desejo é que a liberdade do indivíduo seja vista como algo natural, respeitada
na universidade e, consequentemente, na sociedade.

ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO NA EDUCAÇÃO UNIVER-


SITÁRIA
Nem preciso falar do mal
Que muitos fazem gratuitamente
por minha orientação sexual
De bixa, queer e dissidente.
E desse agir de forma autoritária
Se fará ruir a educação universitária.

De alguma forma, quem é ou não da área da Educação já se viu, em algum


momento, interpelado/a/e ou tendo que participar do tema “Educação e Sexu-
alidade”. Diante dessa situação, em geral, reagimos muito marcados/as/es pela
nossa trajetória histórica, sociocultural. Essa possível vivência que menciono se
articula em um campo tido como polêmico, porém necessário para não repro-
duzir a ideia de uma pedagogia assexuada. Como muito bem menciona bell
hooks (2017, p. 253-254): “O mundo público do ensino institucional era um local
onde o corpo tinha de ser apagado, tinha de passar despercebido”.

Nessa perspectiva crítica de análise da realidade e abrindo-nos a um pa-


radigma emancipatório do corpo, surgem entendimentos para a liberdade de
escolha e o direito de ser e expressar-se fora de uma normatividade dominan-
te. Se temos todo esse conflito instalado na sociedade e, consequentemente,
presente na universidade, certamente recaímos sobre a dificuldade de aceitar
a diversidade. Esta, manifestando-se pela sexualidade, pelo desejo e compor-
tamento sexual, pelas expressões de gênero, também está refletida em quem
educa e em quem é educado.

Atentando para isso e como forma de esclarecer, vou partir do entendi-


mento trazido por Butler para dizer em outras palavras que:

A noção de “orientação” sexual foi habilmente colocada por bell


hooks (1984) quando ela afirma que isso é uma reificação que si-
naliza falsamente uma abertura para todos os membros do sexo
que é designado como objeto de desejo. Embora ela conteste o
87

uso do termo porque ele põe em questão a autonomia da pes-


soa descrita, eu enfatizaria que as próprias orientações são fi-
xas, se é que jamais o são. Obviamente elas podem mudar ao
longo do tempo, e estas estão abertas a reformulações culturais
que não são de modo algum unívocas. (2018, p. 270).

Ao prosseguirmos nesse entendimento, em busca do fio da meada, trazen-


do algo disruptivo, permitimo-nos apontar a importância do seguinte: na univer-
sidade, ainda que pareça estranho, não é tão tranquila a convivência para quem
transgrida a norma dominante; essa noção desestrutura todo o aprendizado
cuja base é uma visão pouco, ou nada, plural. Com base na minha experiência,
em alguns centros, como os de Ciências Sociais e Humanas, os debates tendem
a ser menos conflitante, embora nunca isentos; em outros centros, mais tradi-
cionais e conservadores, para é comum vermos corpos que subvertem a lógica
binária mais descaradamente atravessados por violências.

Diante desse contexto, visando elucidações em busca de ampliar essa in-


terlocução, encontro uma disposição que nos permite habitar as circunstâncias
vividas na Educação universitária, a partir de Louro, pensando caminhos para
compreender e conviver com a diversidade que me refiro neste texto:

[...] O sujeito pode exercer sua sexualidade de diferentes formas


[...]. Suas identidades sexuais se constituiriam, pois, através das
formas como vivem sua sexualidade, com parceiros/as do mes-
mo sexo, do sexo oposto, de ambos os sexos, ou sem parceiros/
as (1998, p. 26).

Desse modo, orientação sexual é uma expressão usada para designar, a


partir de suas práticas, quem são os sujeitos homossexuais (gays ou lésbicas),
heterossexuais e bissexuais.

Louro ainda lembra que orientação sexual não tem necessariamente uma
relação com as formas de identificação de gênero afirmando que

[...] essas identidades (sexuais e de gênero) estão profundamen-


te inter-relacionadas; nossa linguagem e nossas práticas muito
frequentemente as confundem, tornando difícil pensá-las distin-
tivamente. No entanto, elas não são a mesma coisa. Sujeitos
masculinos ou femininos podem ser heterossexuais, bissexuais
(e, ao mesmo eles também podem ser negros, brancos, ou ín-
dios, ricos ou pobres etc.) (1998, p. 27).

Apesar dessas considerações da autora, o termo é sensível e guarda rela-


ções com as políticas identitárias e de saúde pública do Estado. Assim sendo,
identidade de gênero diz respeito ao gênero com o qual uma pessoa se iden-
88

tifica, podendo corresponder ao gênero que lhe foi atribuído quando de seu
nascimento.

No que se refere à identidade de gênero, parece que a questão se am-


plia mais ainda, principalmente ao se perceber, aqui no Brasil, após a eleição
presidencial, uma onda conservadora e fascista na política tentando eliminar
conquistas obtidas pela população de gênero e sexualidade dissidentes. Um
exemplo disso são situações como inúmeras do presidente Jair Bolsonaro pro-
duzindo e reiterando comentários violentos a essas pessoas que menciono.

PERFORMATIVIDADES EXERCIDAS NA GRADUAÇÃO


A partir do que expus até aqui, abordarei a seguir, de forma bastante sutil,
a performatividade nas dimensões da linguagem e da corporeidade, ambas as
dimensões presentes na vida universitária, independente da contingência de
naturalização para uma identidade original distinta do sexo anatômico.

Aproximando-me do campo da linguagem, identifico em Butler um ques-


tionamento, no mínimo, provocativo. Ela afirma que “é óbvio que nunca está
completamente certo dizer que a linguagem ou o discurso performatiza”, em-
bora admita seu funcionamento como um tipo de discurso de autorização e
punição, no qual a performatividade é um domínio onde o poder atua como
discurso (2019, p. 372). Com base nisso, seria um equívoco não identificar que
os espaços universitários encontram a instância ideal para se instalarem e atu-
arem reiterando as abordagens de legitimação em seus atos. Essa regulação se
manifesta, por exemplo, no controle das aulas pela chamada – e aqui me recor-
do da dificuldade que alguns espaços acadêmicos têm de incluir o nome social
da população trans, um direito assegurado por lei –, e na cerimônia de forma-
tura, onde, durante a colação de grau, a representação da cátedra em novo ato
performativo declara formado o indivíduo.

O enigma da performatividade, pensando nisso, é superar o discurso da


coerência heterossexual, deslocando os significados de gênero para algo não
misógino e desnaturalizado, para uma fluidez que ressignifique as vidas. É im-
portante mencionar que não me refiro à passabilidade dos/as/es corpos/as/es
trans; nem ao esforço de sustentar uma performance dominante para se fir-
mar homem ou mulher, sendo essa capaz de legitimar socialmente esse posto,
como denominados por Butler de atributos performativos. Refiro-me a pensar
em que sentido o gênero é um ato.

Isso me faz lembrar que “[em] outros dramas sociais a ação de gênero re-
quer uma performance repetida. Essa repetição é a um só tempo reencenação e
novas experiências de um conjunto de significados” (BUTLER, 2018, p. 242). Com
isso, criam-se dispositivos reguladores do gênero e da sexualidade, aniquilando
inúmeras possibilidades de vida fora desse mecanismo opressor, cujo poder es-
89

tabelece quais relações são normais entre alunos e alunas da universidade (des-
sa vez incluo propositalmente apenas os gêneros gramaticais binários). Essa
operação discursiva é intransponível, domina a cultura e impede o acolhimento
de manifestações sexuais não legitimadas.

Diante do que foi apresentado, caminho agora para pensar ambiguidades,


incertezas não alicerçadas em predestinação masculina ou feminina. Essa for-
mulação limitante do gênero, se desfaz quando compreendemos que “[...] os
gêneros não podem ser verdadeiros nem falsos, reais nem aparentes, originais
nem derivados. Como portadores críveis desses atributos, contudo, eles tam-
bém podem se tornar completa e radicalmente incríveis” (BUTLER, 2018, p.244).
Fica então evidente a limitação da corrente dominante, ela não consegue padro-
nizar as possibilidades múltiplas de existência – e que assim seja!

ABJEÇÕES E VULNERABILIDADES NA UNIVERSIDADE


De mensageiro da pluralidade
Meu discurso questiona verdade
Das violências estamos saturados
em insistir educar nesse passado
sem lugar para as vidas abjetas
nem universidade de portas abertas

Mesmo que fundamentos teológicos e doutrinadores insistam em ir contra


os direitos humanos e afirmem uma igualdade entre os povos – e aqui estendo
essa compreensão para os/as/es corpos/as/es –, paira uma dificuldade enorme
da minha parte de enxergar essa tentativa reguladora sem uma lente idealitá-
ria que afirma a impossibilidade desse mecanismo. Pelo contrário, tenho mui-
to mais elementos para facilmente identificar uma matriz excludente de vidas,
combatendo processos permanentes de práticas reguladoras e classificatórias.

Denuncio reiteradamente que, na universidade, a ameaça e a perturbação


do discurso normativo vão se reproduzindo sobre o alunado marcado pela ab-
jeção de seus/as/es corpos/as/es queer. Mas, afinal, o que pode caracterizar um
corpo abjeto na universidade? Vamos, então, eleger o esclarecimento de Butler:

Abjeções – (em latim, ab-jicere) significa, literalmente, rejeitar, re-


pudiar, expulsar e, portanto, pressupõe e produz um domínio de
agência ou ação a partir do qual se estabelece a diferença. Aqui
a ideia de rejeição evoca a noção psicanalítica e verwefung, que
implica uma forclusão fundadora do sujeito e que, consequen-
temente, estabelece a fragilidade dessa fundação. Enquanto a
noção psicanalítica de verwerfung, traduzida como “forclusão”,
90

produz a sociabilidade por meio do repúdio de um significante


primário que produz o inconsciente ou, na teoria de Lacan, o
registro do real, a noção de abjeção designa um estado degrada-
do ou excluído dentro dos termos psicanalíticos é precisamente
o que não pode retornar ao campo do social sem provocar a
ameaça da psicose, isto é, a dissolução do próprio sujeito. Quero
propor que certas zonas abjetas dentro de sociabilidade tam-
bém oferecem essa ameaça, constituindo zonas inabitáveis que
o sujeito, em sua fantasia, supõe ser uma ameaça à sua própria
integridade com a perspectiva de uma dissolução psicótica. (“Eu
preferiria morrer a fazer ou ser isso!”). Os corpos abjetos são
corpos cujas vidas não são consideradas vidas e cuja materiali-
dade é entendida como não importante. Entre eles Butler cita:
não-ocidentais, pobres, pacientes psiquiátricos, deficientes físi-
cos, refugiados libaneses e turcos etc. Os corpos abjetos não são
inteligíveis e não têm existência legítima (2019, p. 18).

Talvez as pessoas queer, na universidade, sejam percebidas como nô-


mades de seus/as/es corpos/as/es e tidas como ininteligíveis exatamente por
existirem cruzando fronteiras de uma concepção histórica de universidade. Em
outras palavras, esses/as/us corpos/as/es rompem com o binarismo, com o eli-
tismo, rejeitando o pensamento burguês e monástico. Isso, de forma acalorada,
deixa-me em uma condição discutida por Kristeva (2006) sobre abjeção, na obra
traduzida como Os poderes do horror; o abjeto designa aquilo que foi expelido
do corpo, descartando-o como excremento, tornando-o literalmente “outro”.
Ou seja, [...] a construção do “não eu” como abjeto estabelece as fronteiras do
corpo, que são também os primeiros contornos do sujeito. Em um processo de
dominação esses corpos inquietos proporcionam ainda na atualidade uma nar-
rativa difícil socialmente, marcadas politicamente e indesejada humanamente.

Toda vez que reflito sobre os corpos abjetos, imediatamente surge outra
forte questão a que também, de alguma forma, estou familiarizado; trata-se dos
caminhos da vulnerabilidade. Deste porão de encaixe da vida, melhor aceitar
a desterritorialização feita por Butler (2019, p.49.2019) ao nos convocar para

Prestar atenção a essa vulnerabilidade pode se tornar base de


reivindicações por soluções políticas não militares, assim como a
negação dessa vulnerabilidade por meio de uma fantasia de do-
mínio (uma fantasia institucionalizada de domínio) pode alimen-
tar os instrumentos da guerra. Não podemos, no entanto, afas-
tar essa vulnerabilidade apenas com a força do pensamento.
91

Reinterpretando essa fronteira, localizo as ligações feitas pela autora as


quais, particularmente, leio como uma convocação para a instalação de um en-
gajamento mais amplo, político e ético. A educação universitária está repleta de
diagnósticos e de estudos sociais sobre questões humanas e sociais, mas tem
uma dificuldade enorme de dar um passo mais firme que venha a reduzir as
desigualdades na própria universidade e no seu entorno, com muitos de seus
alunos/as/es enquadrados/as/es na condição vulnerável, iscas aos promotores
de violência. Segundo Butler:

A violência é uma mancha terrível, uma maneira de expor, da


forma mais aterrorizante, a vulnerabilidade primária humana
a outros seres humanos. [...] de certa forma, todos nós vive-
mos com essa vulnerabilidade particular, uma vulnerabilidade
ao outro que faz parte da vida física, uma vulnerabilidade a um
chamado repentino vindo de algum lugar que não podemos
antecipar. Essa vulnerabilidade, no entanto, torna-se altamen-
te exacerbada sob certas condições sociais e políticas, especial-
mente aquelas em que a violência é um modo de vida e os meios
para garantir a autodefesa são limitados (2019, p. 49).

Na prática universitária, isso significa dar continuidade a um processo já


iniciado de forma muito sutil, em algumas instituições: permutar esse modelo
dominante de construir conhecimentos com a queerização nos círculos discur-
sivos e hermenêuticos, de tal modo que apresente para os/as/es corpos/as/es
dissidentes nada de diferente, melhor, nem privilegiado, apenas de respeito e
igualdade de condições, sem subalternizá-los. Isso não redime nem traz de vol-
ta muitos/as/es corpos/as/es expulsos/as/es de suas formações, mas atenua
um novo processo de pertencimento e valorização humana que independe da
orientação sexual e da identidade de gênero.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: UNIVERSIDADE QUEER


Tendo em vista toda a discussão resumidamente apresentada neste ca-
pítulo, deparo-me com o pensamento de que para poder aplicarmos práticas
educativas e pensarmos em uma universidade queer, precisamos dar conta de
vários questionamentos, um deles é: por onde vamos começar?

De uma forma bem particular, a minha sugestão é por um movimento que


se passa na direção de uma cultura da não violência, em todos os aspectos. Daí
o campo de possibilidades se amplia, porque não está dirigido por uma úni-
ca maneira ou fórmula, mas disponibilizada na liberdade de construção de um
pensamento e de uma formação permanente que atente para a valorização de
92

todas as vidas. Penso que, dessa forma, contempla-se formação do professora-


do, revisão curricular, inserção da dimensão afetiva e humana nos conteúdos
programáticos e uma atitude de não diretividade na forma de ser e de atuar
pedagogicamente.

Os avanços na organização de conhecimentos ocorridos desde o final do


século XI, seguida nos séculos XII e XIII, fez emergir um dos eventos mais signi-
ficativos da alta idade média europeia, o surgimento das universidades (1088 –
Bolonha -Itália; 1096, universidade de Oxford – Inglaterra; Universidade de Paris
– França em 1170 e a Universidade de Cambridge – Inglaterra em 1209). Estas
se constituíram desvinculadas da descendência direta da Academia de Platão
e vinculavam-se à forte influência da igreja católica e da corte real. Em outras
palavras, originaram-se como consequência das escolas monásticas e catedrá-
ticas, voltadas para o mundo masculino, compondo uma instituição com bases
no pensamento medieval em que a supremacia masculina imperava, o que ex-
plica a luta atual de pensar uma universidade diferente dessa que foi originada;
uma universidade que seja inclusiva, democrática em acesso e possibilidades
de existência.

A essa altura, já sabemos que o queer é antinormativo e anticategoria, por


isso não se pensa em universidade queer com novo processo de dominação
nem algo similar. O que se vislumbra é uma desconstrução permanente dessa
educação hegemônica perpetuada em parâmetros eurocêntricos, burgueses e
não diversos, cujo viés de transformação pela pedagogia pode ter no queer a
sua melhor via. Proponho, por este breve final, o envolvimento com as peda-
gogias de-generadas, pedagogias antinormativas (FLORES, 2018), pedagogias
transgressoras (HOOKS, BRITIZMAN, 2017), pedagogias dissidentes (ALEGRE-BE-
NITEZ, 2013), pedagogias transfronteirizas, pedagogias subversivas (PIÉ Y PLA-
NELLA, 2015) e pedagogias trans* formadoras (PLATERO, 2018) mencionadas
por Flores (SAINZ, 2020).

REFERÊNCIAS
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transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.

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Trad. Renato Aguiar. 16. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

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dida ou renascimento? São Paulo: Cortez, 2019.

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93

Paulo: Paz e Terra, 2015.

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trad. Marcelo Brandão Cipolla. 2. ed. São Paulo: WMF, Martins Fontes, 2017.

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maz Tadeu da Silva. 3. ed. 2. reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

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PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo. São


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Eletrônicos. Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, 2013. Dis-
ponível em: http://www.fg2013.wwc2017.eventos.dype.com.br/site/anaiscom-
94

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TEMPORETTI, F. Revolver la educación. UNR, 2018.


CAPÍTULO 7
96

A LINGUAGEM NÃO-BINÁRIA EM ALGUMAS BREVES RE-


FLEXÕES
Richard Fernandes1
Universidade Federal Rural de Pernambuco

É ROMPENDO A LINGUAGEM QUE ROMPEMOS A HEGEMONIA!


A linguagem humana é viva, respira, transita pelos territórios explorados
e esconde seus mistérios em locais inexistentes. A linguagem – e tudo o que a
ela possa ser predicado – está enraizada no desenvolvimento das diferentes
sociedades, ao longo dos mais remotos tempos, fincada em solos que alimen-
tam práticas sociais de múltiplas naturezas. Nesse cenário orgânico, as socie-
dades humanas, arranjadas, conseguem nomear as coisas do mundo, atribuir
significados às diversas existências e interagir entre si também por meio dos
mecanismos oferecidos pela estrutura linguística, pelos sistemas das línguas.
São nesses movimentos dinâmicos e complexos que as pessoas se tornam cria-
doras de linguagem, mas por ela também são criadas e, devido a isso, surgem
e transformam expressões à medida que novas existências são conferidas na
realidade (FAIRCLOUGH, 2001).

Numa palestra transmitida via YouTube, Maria Carmen Aires Gomes (2020,
39min27seg) parte dessa ideia afirmando que “o como e o que falamos sobre a
linguagem nomeia quem somos no mundo; isso é uma premissa básica do que
chamamos de performatividade da linguagem”. Esse processo performativo é
de transformação e agentividade, pois nada na linguagem é estático e nenhuma
pessoa que interage por meio da língua é passiva dos efeitos linguísticos. Men-
cionar essa performatividade, portanto, é atribuir a falantes uma capacidade
potencial de produção e modificação da realidade por vias discursivas. Esse mo-
vimento se utiliza da repetição e do reforço para criar um conjunto de práticas
normalizadoras que limitam existências a comportamentos pré-determinados
(BUTLER, 2020; VON HUNTY, 2020).

Essa potencialidade criadora e transformadora não apenas é atributo


dialético dos conjuntos sociais, mas também recai sobre as diferentes individu-
alidades que, por muito tempo negligenciadas e invisibilizadas, encontram, na

1
Um organismo em experimentação, evolução, que flui sua sexualidade e não se identifica pela regularidade do seu sexo performa-
tivo. Entre bares, esquinas e vielas do conhecimento, está cursando mestrado em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal
Rural de Pernambuco.
97

linguagem, maneiras de evocar para si um estado de vida. O sistema linguístico,


então, é posto em xeque: Como dizer o que nunca foi dito? Como revelar o que
sempre foi escondido? O que foi relegado à sombra deve ser posto sob a luz do
que se escreve e de quem escreve? Responder à essas questões é não deixar de
apontar para a existências de pessoas cujas identidades de gênero e expressão
corporal não se encaixam nos modelos binários masculino/feminino, homem/
mulher, macho/fêmea, os quais, por serem modelos tão reiterados, costumam
normatizar e categorizar as vicissitudes humanas, designando padrões de inte-
ligibilidade social (BUTLER, 2020).

Essas pessoas, atualmente, estão acolhidas sob um imenso guarda-chu-


va de identidades sociais, expressões corporais e performances de gênero que
transgridem e transpassam esses códigos binários de inteligibilidade. Lanz
(2017) e Vieira (2017) acendem essa metáfora e discutem sobre a emergência
de tratarmos a violência que atinge esses corpos e que é produto das práticas
de uma sociedade que se erige sobre pilares binários. A partir daí, é possível di-
zermos, seguindo pressupostos identitários, que esse guarda-chuva represen-
ta um grupo de pessoas transgêneras, pois estas transicionam, transpassam
e transgridem os padrões binários e atribuem para si um estatuto de trans-
generidade; elas podem ser chamadas de não-binárias, andróginas, bigêneras,
pangêneras etc.

Surge então o deslocamento proposto neste texto: Por termos a capacida-


de dialética de criar e modelar o mundo ao redor, é possível que, por meio da
linguagem, consigamos romper com as estruturas sociais que normatizam ex-
periências de vida e, consequentemente, advoguemos por transformações da
língua que visibilizem expressões humanas apagadas. Ainda digo, junto a Louro
(2001), que é possível anotar configurações de vida “socialmente indispensá-
veis, já que fornecem o limite e a fronteira, isto é, fornecem o ‘exterior’ para os
corpos que ‘materializam a norma’, os corpos que efetivamente importam” (p.
549). É possível que eu afirme, novamente, que criamos condições de subversão
da hegemonia social quando subvertemos a linguagem e rompemos com os
padrões binários normalizantes.

Observando a contramão disso, dou atenção a questionamentos que têm


tomado as discussões virtuais e que desvelam um incômodo de falar sobre o
surgimento do até então escondido: Como dar forma linguística, aqui no Brasil,
às vidas de pessoas que rompem com a binariedade imposta ao gênero huma-
no se a língua portuguesa normaliza-se sobre categorias gramaticais binárias?
Defender a utilização de mecanismos disruptivos de linguagem não seria aca-
bar como o que conhecemos da língua ou desmantelar a inteligibilidade criada
para a expressão de gênero social? Cutucando e confrontando esses descon-
tentamentos, Vieira (2017, 7min01seg) lança a proposição que vem antes des-
sas outras: Só é possível uma pessoa estar no mundo se ela for compreendida
como homem ou como mulher?
98

Como Melo (2020) escreveu, é de um pensamento razoável considerar


que qualquer mecanismo de tomar para si potentes saberes de transformação
social é obsceno demais para um projeto de mundo. Imaginemos, então, de-
sestruturar epistemes e ontologias que sustentam o atual universo linguístico
brasileiro e revogar nosso relacionamento com padrões sociais e de linguagem?
Isso soa como uma aberração aos ouvidos das pessoas que não enxergam para
além das paredes limitantes das normas da língua e de gênero social.

É nesse território de conflitos, incômodos, transformações e urgentes ne-


cessidades de manipular a linguagem em prol dos corpos precários que apa-
rece a importância de empreender esta breve reflexão. Desponta, portanto, a
Linguística e sua pungente carência de uma interface com a Teoria Queer, a fim
de, com esse diálogo, lançar uma perspectiva profunda sobre um objeto e um
saber acerca das operações discursivas e políticas que tornam determinados
corpos precários, principalmente aquelas operações que exterminam vidas por
ódio à diferença de gênero e sexualidade. Isso deve migrar no sentido de pro-
mover espaços de compartilhamento de conhecimentos que sejam soluções a
isso.

DESCOBRIR A QUEER, QUEERIFICAR A LINGUAGEM...?


Tendo isso em vista, desenvolve-se um pensamento que clareie algumas
compreensões sobre o quão reflexivas são as novas estruturas linguísticas que
rompem com a binarização da língua em relação a corpes precáries1 que elas
tentam identificar, corpes esses que transgridem as normas binárias de gêne-
ros sociais; ou mesmo a existência de pessoas que rompem com a ideia de
gênero – e aqui a tão importante guinada queer deste texto: lançar o olhar so-
bre como essas estruturas podem ajudar a desmantelar a ideia de categorias
identitárias que, infelizmente, criam processos de violência e exclusão (BUTLER,
2020; PRECIADO, 2014).

Mas então, quem seriam essas pessoas? Quem configuraria a queer2 que
esta breve escrita se refere? Como apreender existências que não se deixam
capturar pelo normal e que reivindicam para si um lugar de nova existência e de
resistência? Como falar de pessoas que hackeiam o sistema do gênero humano
e que engendram as formas linguísticas na intenção de atribuírem um nome
para si? Iluminadas por essas indagações e embriagadas de tantas outras, como

1
Neste texto, opta-se pela utilização de alguns recursos disruptivos de linguagem em modelos de língua portuguesa do Brasil. Ou
seja, quando a sintaxe não der conta que apagar marcas binárias de gênero, há de se engendrar a morfologia das palavras. Essa,
além de uma estratégia para evidenciar as possibilidades e potencialidades desse tipo de linguagem, é também um posicionamento
político de registrar a existência das pessoas que se identificam por esses mecanismos linguísticos.
2
Concorda-se a palavra “queer” com o artigo definido “a” em contestação à apreensão dessa palavra e do seu conceito por meio de
um masculino não-marcado ou dito neutro. É muito mais crível, tendo por base as referências que estão sendo elencadas ao longo
do texto, que “queer” prefere essa aparente discordância que emerge da/na linguagem do que a assimilação concordante com as
normas linguísticas gramaticalmente masculinizantes.
99

as de Butler (2020) e de Preciado (2014), as palavras lançadas a seguir se pintam,


a fim de compreender quem seriam essas...
Queer, pessoas instituídas pela sociedade como os ladrilhos sujos e emen-
dados da margem social; estão na valeta onde são depositadas toda a abjeção
social, todas as mazelas e violências que podem ser realizadas. As queer são as
que não são – e nem sempre querem mesmo ser – o que outres querem que
sejam. Não possuem categorias e, por vezes, as rejeitam; sem linhas de conten-
ção, sem sanidade corporal, sem classe social pré-determinada, sem sexo, com
ou sem identidade. Queer é, por assim ser, a própria negação desta afirmação;
o não-ser que lança no asfalto, no calçamento, no chão de barro, ume indiví-
due que vive, resiste e existe para a liberdade de próprie corpe. Uma constante
experimentação dos limites de ser humano, ontologicamente desfazendo-se e
refazendo-se a cada período de um novo segundo.

Queer é a abstração que toma forma em níveis corporais, que se sabe e


se conhece; e mesmo que não se saiba ou se conheça, existe e performa ume
corpe que se faz livre. É, sendo quem se é, a incorporação da mutação natural
dos que são natureza. A constante inconstância – consistente ou não – do que
pode ser, vir a ser. Vestides com roupas que são as possibilidades de se recriar
todos os dias, andam e desfilam sues corpes socialmente excluídes e violenta-
des, ininteligíveis, mas cheies de poder e de coragem para continuar existindo
e resistindo.

A erupção que representa ume corpe queer é o que queima o próprio ver-
bo adjetivado que tenta defini-le, caracterizá-le; esse corpe que flui entre o que
se determina e o que não se entende. Um gradiente de cores complexas e infi-
nitas que vai do susto à inspiração é a cor da pele queer. Pele que carrega seu
discurso; assim sendo, aglutinando-se até na escrita da sua própria (in)determi-
nação: a pele que contorna ume discorpe, corpe que diz, grita, ou muda, mude.
Ainda que tentemos e criemos novas formas de expressão, não há linguagem
que consiga definir o que de fato é a queer, esta sempre pode e consegue ir
mais além.

Ainda que essas palavras continuassem a ser pinceladas, queer não tem
definições além das ditas e praticadas por si mesma. E, por assim dizer, a sua
luta é estabelecida pela violência que sues corpes sofrem; a sua existência é a
distopia que se faz real e viva. O texto que escreve queer, este e tantos outros
que se arriscam, carece de pontuações finais, sendo seu último ponto, agora e
talvez depois, a questão reticenciada... Sujeites atives a si e por si. Quem sabe,
portanto, queer seja a experimentação provocativa da vida...?
100

CONHECENDO ALGUMAS OCORRÊNCIAS...


Pois bem, estou escrevendo sobre os novos mecanismos linguísticos do
português brasileiro que representam um rompimento com as normas binárias
do gênero gramatical e que democratizam os gêneros sociais, no sentido de
possibilitar que as relações de poder mantenedoras desse gênero social sejam
redistribuídas e – quem sabe – desestruturadas. Dito de outra maneira, lanço
a reflexão sobre os novos tipos de linguagem que surgem para queerificar as
relações e as existências mediadas pela língua, alumiando a tentativa de repre-
sentar as pessoas que disformam o gênero social binário.

Atualmente, devido ao aumento do acesso à tecnologia, as redes sociais


têm sido um forte espaço de promoção e formulação dessas engenharias de
linguagem. Nesses espaços, e também em outros, essas estruturas têm sido
chamadas de várias maneiras: linguagem não-binária, linguagem inclusiva, lin-
guagem neutra, neolinguagem etc.

Neste trabalho, opta-se por utilizar a nomeação “linguagem não-binária”,


no intuito de não apenas evidenciar o rompimento com o binário linguístico
que essa linguagem propõe, mas de visibilizar o grupo de pessoas que, inicial-
mente, reivindicou essas mudanças linguísticas. Assim sendo, esta seção apre-
senta alguns desses neomodelos, observando algumas ocorrências; entretanto,
para falar de linguagem não-binária, precisamos primeiro falar de disrupção
de gênero na linguagem. Ou seja, ao longo do tempo, falantes já encontraram
maneiras de romper o gênero por meio a língua, e algumas dessas disrupções já
são utilizadas em espaços formais de fala, ou mesmo são possíveis dentro dos
limites da norma da língua, pois preveem reconhecimento a partir dos elemen-
tos binários já oferecidos pela forma da língua portuguesa.

Nesses limites, existe uma classificação que é a de gênero gramatical. Ela


serve, dentre outras coisas, para designar o gênero das pessoas. Conforme a
gramática, a forma mais conhecida dessa relação é o uso das desinências ‘o’
e ‘a’, respectivamente para homens e mulheres. Todavia algumas formas são
consideradas neutras, porque não preenchem as marcas binárias e geralmente
não correspondem a formas tradicionais assim designadas: no português, essas
classificações são conhecidas como substantivo sobrecomum (criança, pessoa,
gente etc.) (BECHARA, 2009; NEVES, 2011). A partir disso, algumas disrupções
ocorrem no nível formal de construção do gênero binário, conforme o quadro 1:
101

Quadro 1 – Disrupções formais de registro binário.

Tipo de disrup- Período inicial Modelo de ocor- Possível entrave


ção linguística aproximado rência linguístico

Díade disruptiva Muito comum a - Aluno/a (-o/-a); Essas ocorrên-


individual partir dos anos - Todos/as (-os/- cias apresen-
1990, promovi- -as). tam disrupções
do por pesqui- grafofônicas, ou
sadoras como seja, não têm
Maria Izabel pauta sonora
Magalhães, prevista, mas
Carmen Rosa podem ser
Caldas-Coul- lidas: “alunos e
thard e Norman alunas”; “todos
Fairclough. e todas”.
Feminino dis- Inicia com os - Sujeita, pro- Essas ocorrên-
ruptivo não-in- movimentos posto por Ki- cias apresentam
dividual feministas dos lomba (2019); uma disrupção
anos de 1960 e - Quilomba, pro- formal e semân-
é incorporado e posto por Erica tica, ou seja,
revitalizado po- Malunguinho não se prevê
liticamente por (deputada esta- apreensão do
personalidades dual de SP); sentido em con-
sociais dos anos - Mandata, pro- textos que não
2000 em diante. posto por Erica sejam os de sua
Malunguinho; criação; além
- Aparelha, pro- disso, algumas
posto por Erica ocorrências não
Malunguinho; são previstas
- Corpa, propos- pelo sistema
to por discursos gráfico e morfo-
trans e traves- lógico do portu-
tis; guês do Brasil.
- Atriz social,
proposto por
discursos femi-
nistas.
Fonte: Compilação autoral.3

3
Quadro elaborado a partir de contribuições de Fairclough (2001), Melo & Fernandes (2021) e Kilomba (2019), além de registros de
imagens disponíveis nas redes sociais de Érica Malunguinho.
102

Outras disrupções também ocorrem no nível formal de construção do gê-


nero, mas interveem na estrutura da palavra, a fim de romper com o binarismo
de gênero. Esses modelos de linguagem ainda apresentam pouca passabilidade
linguística, uma vez que criam novas formas e novos parâmetros de língua. Nes-
sa criação, as novas engenharias não alteram a estrutura radical de um termo
– morfema que conserva o núcleo semântico da palavra (BECHARA, 2009) –, mas
agem modificando a posição temática ou desinencial das palavras, rompendo
com a grafia e com a sonoridade consideradas normais. O quadro 2 a seguir
apresenta algumas dessas ocorrências:

Quadro 2 – Disrupções formais de registro não-binário.

Tipo de disrup- Período inicial Modelo de ocor- Possível entrave


ção linguística aproximado rência linguístico

Novas engenha- Dos anos 90 em - Todxs Essas ocorrên-


rias morfossintá- diante, sobretudo - Tod@s cias, seguindo a
ticas a partir dos anos - Tod_s norma da língua,
2000, com o avan- - Todes são interpretadas
ço da internet e como notações
de espaços virtu- não-convencio-
ais de interação nais por não pos-
escrita. suírem pauta so-
nora prevista. No
caso de “todes”
ou de palavras
que apresentem a
mesma estratégia
de disrupção, há
uma associação
grafofônica com
palavras como
“integrante”, “es-
tudante” etc.
103

Neopronomes: os O período aproxi- - Ile / dile / nile / Essas ocorrências


chamados siste- mado de dissemi- daquile apresentam uma
mas ile e elu nação está pelos - Ilu / dilu / nilu / disrupção mor-
anos 2000, quan- daquilu fológica, uma vez
do grupos de pes- - Elu / delu / nelu / que, segundo a
soas não-binárias daquelu norma da língua,
começaram a se - Sue / sues não seguem o
organizar coleti- - Tue / tues paradigma pro-
vamente, graças nominal, classe
aos espaços virtu- de palavra pouco
ais de interação. acessível a novas
Nesse mesmo criações linguís-
período, grupos ticas. Além disso,
não-binários de tentam retomar
outros países já as formas prono-
reivindicavam por minais neutras do
novos modelos latim, movimento
representativos e pouco produtivo
inclusivos de lin- linguisticamente,
guagem em suas já que a norma da
respectivas lín- língua não prevê
guas. a existência de
um novo gênero
gramatical que já
é representado
pelo uso de um
masculino gené-
rico e universali-
zante.

Fonte: Compilação autoral.4

Finalizando a exposição das ocorrências, mas sem finalizar nesses casos


apresentados aqui, existem as disrupções linguísticas que não agem sobre a
forma da palavra, mas atuam nos campos semânticos e pragmáticos, com ori-
gens e finalidades discursivas. Esses modelos propõem a utilização do próprio
sistema linguístico do português do Brasil para o rompimento do ideal binário
do gênero, tanto social quanto gramatical. Para isso, modificam os usos nor-
mativos das palavras e as ressemantizam, além de desmantelar os padrões de
referenciação. Devido a esse rompimento com os sentidos e as aplicações, os
modelos não formais podem apresentar facilidade na passabilidade linguística,
mas encontram fortes entraves sociais, sobretudo advindos de grupos reacio-

4
Quadro elaborado a partir de contribuições de Borba (2015), Melo & Fernandes (2021) e Schwindt (2020).
104

nários conservadores e de puritanos da língua. O quadro 3 adiante apresenta


algumas dessas ocorrências:
Quadro 3 – Disrupções não formais de registro não-binário.

Tipo de disrup- Período inicial Modelo de ocor- Possível entrave


ção linguística aproximado rência linguístico
Marcações desi- Não se apurou - Uso do feminino Essas ocorrências
nenciais não con- uma data espe- genérico e univer- apresentam uma
vencionais cífica para esses sal. disrupção semân-
usos, uma vez - Uso de mulher, tica, uma vez que
que possivelmen- ela, senhora, os itens lexicais
te surgiu nas falas moça... para ho- convencionais es-
de grupos LGBT e mens, proposto tão ressemantiza-
feministas antes por grupos gays. dos.
mesmo da orga-
nização de movi-
mentos políticos
organizados e das
ondas de luta so-
cial.

Simulacro discur- Não se apurou Bixa, sapatão, va- Essas ocorrências


sivo uma data espe- dia e queer como apresentam uma
cífica para esses palavras de au- disrupção semân-
usos, uma vez toafirmação, em tica e pragmática,
que possivelmen- oposição a usos pois modifica o
te surgiu nas falas pejorativos. uso das palavras
de grupos LGBT e da vulnerabilida-
feministas antes de à autoafirma-
mesmo da orga- ção.
nização de movi-
mentos políticos
organizados e das
ondas de luta so-
cial.
105

Potência do femi- Sustentadamente - Presidenta Por ser um regis-


nino usada por Dilma, tro previsto nas
enquanto presi- normas da língua,
denta, nos anos não se verificam
2010; é um re- disrupções lin-
gistro aceito pelo guísticas no âm-
VOLP. bito da forma e
semântica, mas
rompe com a
construção de um
discurso masculi-
no predominante
para a posição
ocupada pela até
então presidenta.

Fonte: Compilação autoral.5

Há de mencionar que existem muitos outros registros que se propõe a in-


cluir, por meio da criação ou reelaboração de modelos linguísticos, a existência
de pessoas não-binárias, ou de pessoas não concordantes com o sistema de
gênero social. Neste trabalho mostrou-se um breve e resumido recorte dessas
ocorrências e de suas descrições, com o objetivo de clarear as potencialidades
dessa linguagem e de registrar cientificamente algumas possiblidades reais da
sua existência já verificada e em circulação na fala e na escrita do Brasil. Essa
discussão não nos ajuda apenas a perceber a vivacidade da língua e suas trans-
formações, mas também ajuda a discutir que o gênero não é uma essência pré-
-discursiva e determinada antes da materialidade linguística, mas uma negocia-
ção, um esforço, um processo de reforço e de repetição e que tem na linguagem
uma das vias para sua manifestação (BORBA, 2015; BUTLER, 2020).

ALGUMAS PALAVRAS PARA FUTUROS CAMINHOS...


Falar de linguagem não-binária exige um nível de reflexão que ultrapasse a
visão sobre a forma da língua ou a pura necessidade prática. Isso porque já te-
mos uma linguagem não-binária, afinal não encerramos a realidade numa pala-
vra, temos a propriedade do paradigma, as escolhas que fazemos para as signi-
ficações. Ao dizer: pessoa, homem, gente, ele, José... Escolhemos (nem sempre
conscientemente) que modo iremos dizer. Isso já significa que o sistema de uma
língua não é binário em si, mas quando escolhemos dizer algumas dessas for-
mas, geralmente se instaura oposição: homem x mulher, pessoa x não-pessoa...

5
Quadro elaborado a partir de contribuições de Borba (2015), Melo & Fernandes (2021), Preciado (2014) e de Butler (2020).
106

Nesse aspecto complexo e dinâmico, linguagem não-binária não é, ou ao


menos não deveria ser, um conjunto de regras que elencam como utilizar no-
vas formas linguísticas. Ao contrário, trata-se de um conjunto de possiblidades
de novos usos que, uma hora ou outra, encontrarão acomodação linguística,
conforme a língua se transforma, ao longo do tempo. Em outras palavras, ainda
que seja urgente a elaboração de linguagens que rompam o binarismo, não se
muda uma língua por simples vontade individual ou forçando regras de uso.

Observando isso, é para romper o modelo binário da língua que novos


modos de dizer estão sendo criados: x, @, menine etc. No entanto, entornando
o caldo para os futuros trabalhos, essas novas engenharias de linguagem, ao
fim, estabelecem outra oposição: binário x não-binário. Será mesmo que essa
nova polarização se sustenta no que propõe uma linguagem não-binária? Essa
pergunta há de se complexificar e ser respondida num tempo oportuno. Ao fi-
nal, por agora, pode-se dizer que o debate sobre a linguagem não-binária surge
de uma reivindicação de pessoas transgêneras não-binárias, de corpes queer
e sues discorpes, mas também pode, e deve, interessar ao grande público do
Brasil.

REFERÊNCIAS
BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. rev., ampl. e atual. con-
forme novo Acordo Ortográfico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

BORBA, R. Linguística Queer: uma perspectiva pós-identitária para os estudos


da linguagem. Revista Entrelinhas, Rio Grande de Sul, v. 9, n. 1: 91-107, jan./
jun. 2015. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/entrelinhas/arti-
cle/view/10378/4862. Acesso em: 12 nov. 2020.

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradu-


ção de Renato Aguiar. 19. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.
FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Trad. rev. téc. e pref. de I. Maga-
lhães. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001.

GOMES, M. C. A. [Palestra sobre linguagem inclusiva de gênero]. In: SE-


MINÁRIO linguagem não-binária. Organização e Coordenação: Dr. Iran Fer-
reira de Melo. [S. l.: s. n.], 2020. 1 vídeo (127min15seg). Publicado pelo canal
TV Nephel UPE Petrolina. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?-
v=hy2OiWooM1Y&t=62s. Acesso em 30 maio 2021.

KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradu-


ção: Jess Oliveira. 1. ed. 4. reimpr. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

LANZ, L. O corpo da roupa: a pessoa transgênera entre a transgressão e a con-


107

formidade com as normas de gênero. Uma introdução aos estudos transgêne-


ros. 2. ed. Curitiba: Movimento Transgente, 2017.

LOURO, G. L. Teoria Queer: uma política pós-identitária para a Educação. Revis-


ta de Estudos Feministas, v. 9, n. 2: 541-553, 2001.

MELO, I. F. de; FERNANDES, R. Linguagem não-binária. 12-13 maio 2021. Apre-


sentação de Power Point. Disponível em: acervo pessoal.

MELO, I. F. de. Linguística Queer: que tiro é esse, viado?. In: MELO, I.; AZEVEDO,
N. D. de (org.). Corpos dissidentes, corpos resistentes: do caos à lama. Campi-
na Grande: Realize eventos, 2020. p. 11-24.

NEVES, M. H. de M. Gramática de usos de português. 2. ed. São Paulo: Editora


Unesp, 2011.

PRECIADO, B. Manifesto Contrassexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribei-


ro. São Paulo: n-1 edições, 2014.

SCHWINDT, L. C. Sobre gênero neutro em português brasileiro e os limites do


sistema linguístico. Revista da Abralin. v. 19, n. 01, 2020. Disponível em: ht-
tps://revista.abralin.org/index.php/abralin/article/view/1709/1883. Acesso em:
07 jun. 2021.

VIEIRA, H. O que é ser trans: entrevista com Helena Vieira. [Entrevista concedida
ao Nexo Jornal] José Orenstein. Nexo Jornal, YouTube, 37min30seg, dez., 2017.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cSswUvSnPgQ&t=571s.
Acesso em 27 maio 2021.

VON HUNTY, R. [Fala sobre linguagem neutra]. In: Linguagem neutra @ELLE
Brasil. Produção: Rita Von Hunty. [S.l.: s.n.], 2020. 1 vídeo (15min08seg). Publica-
do pelo canal Tempero Drag. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?-
v=WAzsxxMMlIM&t=155s. Acesso em: 30 maio 2021.
CAPÍTULO 8
108

CORPOS NA EDUCAÇÃO: AS PESSOAS NÃO-BINÁRIAS NO


AMBIENTE ESCOLAR
Rivaldo Mendes da Silva1
Universidade Federal de Pernambuco

INTRODUÇÃO
Na perspectiva de uma educação com mais qualidade, o interesse de refe-
renciar aos estudos de gênero, sexualidade e educação são importantes para o
acesso das pessoas, pois, conforme Louro (2020), por se tratar de uma edu-
cação que desnaturalize os essencialismos identitários de gênero e sexualidade.
É um movimento da área da educação, que tem a perspectiva de construção de
uma política educacional que não normalize os corpos nas perspectivas binárias
e suas normas corporais. Desta forma, a interlocução movimenta os estudos
queer na relação entre as identidades dos sujeitos e o pedagógico, promovendo
um espaço de acesso as diversidades.

Os estudos de gênero são referências para compreender a luta da ocupa-


ção de espaços das diversidades, como as identidades de gênero não-binárias,
uma vez que são alvos da regulação dos corpos. Esta imposição ocorre pela
intervenção da heteronormatividade, responsável por dominar as relações so-
ciais de gênero, isto é, de como o corpo deve performar.

Butler (2019) questiona a matriz heteronormativa que exprime as normas


em estruturar padrões reconhecíveis a divisão da inteligibilidade para marcar
os gêneros. Possibilitar a classificação binária é englobar em dois grupos por
características que são afuniladas as lidas como biológicas e imutáveis, impli-
cando nos corpos em perfomar e reconhecer sua corporeidade encontrando
sentindo para ele, visto já atribuírem o sentindo deste ao seu nascimento que é
justificado pelo sexo macho ou fêmea.

A heteronormatividade chega no ambiente escolar delimitando papéis de


gênero através das práticas sociais, pela perspectiva binária, enquanto as pes-
soas que fogem das normas são reguladas pela lei normativa (MISKOLCI, 2020).
A normalização e o controle dos corpos e seus prazeres distingue-os de forma

1
Mestrando do Programa Pós-Graduação em Educação Contemporânea (PPGEduc) da UFPE; Especialista em Gestão em Saúde Men-
tal pela UCAM; Licenciando em Pedagogia pela UFRPE; Bacharel em Psicologia pela UNIVISA. E-mail:rivaldomendespsi@gmail.com.
109

o binário em homens e mulheres. O campo biológico, por sua vez, identifica e


nomeia tais diferenciação pelo sexo, definido pelos órgãos e suas atribuições,
denominando o pênis aos homens e a vagina às mulheres. Desse modo, papéis
sociais são estabelecidos de como os corpos devem se comportar na sociedade.
As mulheres são ensinadas a serem mães, esposas, cuidar das atividades do lar,
educação doméstica, demonstrar amor pelas pessoas e os homens são ensina-
dos a casar, terem uma esposa, administrar as finanças do lar, ser o chefe da
família e não demonstrar afetos.

Butler (2019) discute como a inteligibilidade do gênero necessita que o gê-


nero, sexo e desejo tenham relações aceitáveis pela norma conformidade do
corpo. A autora problematiza essa orientação inteligível por compreender que
identidade de gênero, sexo e desejo são práticas sociais, logo não se resumem
em uma binariedade e congruências entre eles, mas na diversidade da perfor-
mance do corpo. Nesta perspectiva compreender o corpo não-binário é romper
com as ideias binárias expostas pelo poder da heteronormatividade. Reis (2017)
descrever as pessoas não-binárias como aquelas que não precisam de uma nor-
ma para compreender seu corpo na dualidade, mas que o corpo performa pela
sua orientação identitária que conhece.

Compreender as identidades de gênero não-binária na política escolar é


acolher as diversidades e empoderar a busca e acesso à educação com quali-
dade, pois são pessoas vítimas de violência como mostra os dados da ANTRA
(Associação Nacional de Travestis e Transexuais):

Importante destacar que há notícias de assassinatos trans re-


portados pela mídia que podem apresentar distorções sobre as
identidades das pessoas que foram mortas. Muitas reportagens
não trazem exatamente a autoidentificação das vítimas como
mulheres transexuais ou travestis. Há um processo de marca-
ção compulsória pela forma com que a identidade da vítima
também era constituída e reconhecida socialmente. No caso de
pessoas não-binárias, esse marcador se torna ainda mais de-
safiador, devido à invisibilidade dessa população ou à falta de
conhecimento/ interesse sobre a diversidade de gênero (BENE-
VIDES; NOGUEIRA, 2021, p.54-55).

A violência implica estes corpos a serem punidos e afastado do direito de


estar performando em sociedade e por conseguinte vítimas de uma regulação
e até mesmo após a morte ainda não reconhecidas pela identidade que assu-
me. Por meio de uma revisão na literatura, este estudo foi escrito e tem como
objetivo, questionar quem são os corpos não-binários na educação, se existem
e como se tem registrado tais presenças?

Os corpos das pessoas não - binárias estão acessando a educação é um


110

questionamento que envolve uma preocupação na política educacional, visto


ser um marcador importante por ser um direito civil que garante uma educação
básica para a população, mas que ocorre de formas desiguais pelos recortes re-
ferentes as diversidades e diferenças. Estes aspectos envolvem a compreensão
que são formas de romper as normas de gênero de uma perspectiva heteronor-
mativa que determina os papéis dos gêneros.

EDUCAÇÃO E PESSOAS NÃO-BINÁRIAS


A adolescência é uma fase do desenvolvimento, na qual apresentam-se
modificações sócio interacionistas em sua vida, ocorrendo também mudanças
em seu corpo físico e simbólico e atribuição de valores às atitudes multicul-
turais nas sociedades contemporâneas (MOREIRA; CANDAU, 2008). Nesta fase,
espera-se a assiduidade do ensino fundamental anos finais e ensino médio na
formação básica da educação. As pessoas nesta idade apresentam uma postura
mais crítica com a sociedade, reconhecendo sua identidade de gênero e sexual,
que, por vezes, gera conflitos ao lidar com a moral de uma sociedade heteronor-
mativa. A diversidade cultural é complexa marcada por significados nos espaços
sociais (MOREIRA; CANDAU, 2008). Portanto, a sociedade busca estabelecer um
padrão social de papéis de gênero e comportamentos impostos como atribuí-
dos ao binarismo homem ou mulher.

As pessoas trans acessam a educação por meio de uma avaliação com nor-
mas de gênero envolvendo questionamentos de onde será enquadrado este
corpo. Cruz e Santos (2016) expressam que este corpo rompe com fronteiras
binárias por meio da relação corpo - gênero-sexualidade para compreender o
corpo. Estas pessoas sofrem pressão social para esta afirmação que julgam ser
necessariamente fixa, pois são culpadas de questionar o binarismo.

Ser estudante trans na educação básica é sofrer preconceitos para enqua-


dramento social numa perspectiva binária. Peres (2009) expressa ser um espaço
de rejeição, bullying, violência e exclusão, por estes motivos a evasão escolar é
comum. O corpo trans sofre com a violência psicológica envolvida nos padrões
de questionar a pertencer a estes espaços.

Ser diferente é uma linguagem relatada na educação das pessoas trans,


não por uma perspectiva de subjetividade, mas por fugir da norma cisnormativa
(CRUZ e SANTOS,2016). As perspectivas envolvidas nas atitudes em relação às
questões de gênero e sexualidade implicam a inferiorização. Assim, destina-se
as comparações de corpos não entendendo e principalmente, controlando para
normalizá-los.

Por meio de uma perspectiva da educação inclusiva nas questões de gê-


nero e sexualidade a propõem uma pedagogia que dialogue sobre as discus-
111

sões empoderadas. A pedagogia queer é um movimento da área da educação,


que conceitua as práticas pedagógicas não-normativas vertentes da teoria
queer (LOURO, 2020). Pesquisadoras (es) que defendem a construção de uma
política educacional que não normalize os corpos, dos gêneros, da sexualidade,
da identidade, das práticas sociais aos processos de ensino-aprendizagem e da
criticidade do pensamento. As contribuições na Educação, tem levando a pe-
dagogia queer a ser uma interlocutora na concepção entre as identidades dos
sujeitos e o pedagógico, participando de um movimento nos espaços escolares
que facilitam o processo de ensino e aprendizagem com alteridades as diversas
identidades sexuais, de gênero, étnico-raciais, e culturais que são vivenciadas
na comunidade escolar.

Ker (2020), divulga uma matéria no site Terra que relata a experiência de
uma pessoa não-binária na escola.

Aos 26 anos, Yago Goia, artista transexual e não-binária (identi-


dade que não se limita às categorias “masculino” ou “feminino”),
reconhece que é um ponto fora da curva dentre as pessoas LGB-
TI+, ao ter encontrado um ambiente acolhedor e aberto ao diálo-
go na ETEC Carlos de Campos, no Brás. “Entrei lá já sabendo que
eu era gay, mas muito reprimida. Enquanto a palavra ‘gay’ não
era sequer mencionada na minha casa, eu passei a conversar na
escola e me informar nesse sentido”, relata. Yago lem-
bra que a escola incentivava a expressão artística dos alunos e
que aqueles que se entendiam enquanto LGBTI+ eram incluídos
nas discussões sobre segurança sexual, prevenção a doenças se-
xualmente transmissíveis e métodos contraceptivos. “Tínhamos
três professores LGBTIs, e isso ajudava na fluidez das conversas.
“Esse ambiente acolhedor refletia não só nos alunos LGBTs, mas
se ampliava para uma conscientização de todo mundo”, avalia
Yago. “Provavelmente existiam outros formatos de bullying, mas
todos os casos eram levados para a diretoria e havia conversa”,
aponta. Foi através desse “empoderamento” alcançado na esco-
la que ela conseguiu levar a discussão para casa. “Minha família
conseguiu entender que algo tinha mudado e que eu ser assim
era uma realidade, não algo passageiro (KER,2020).

Yago, expressa como sua experiência na escola foi inclusiva, acolhendo seu
jeito de ser, incentivando sua expressão e possibilitando ocupação daquele es-
paço com uma política de direito e também outras pessoas que estavam a mer-
cê de uma violência escolar como eram resolvidas com a gestão. É destacado
corpos de professores LGBTIs, como facilitadores de um espaço democrático
com educação a diversidade. A experiência escolar fluiu dos muros da escola
e resgatou encontros de socialização com a família. Contudo, Yago, expressa
que não é algo comum ocorrer nos espaços escolares, considerou “um ponto
112

fora da curva dentre as pessoas LGBTI+’’, visto ser a expectativa é encontrar um


espaço, que tem discursos em não saber lidar com as situações e acaba preju-
dicando as vítimas LGBTI+.

As contribuições de Foucault (2019), referenciam a compreender as práti-


cas discursivas como instituidoras por ressaltar as formas de compor a socie-
dade. Portanto, os conceitos de sexualidade e gênero fazem parte do discurso
de pesquisas educacionais, que são produzidas pelas próprias identidades de
gênero e sexuais.

Louro (2019), em suas pesquisas relata a indagação de unir a prática peda-


gógica com a teoria queer, criando espaços de reflexão e criticidade a normas
que ajustam os corpos nos plurais. Assim, a proposta da pedagogia queer é
questionar a ideia da heteronormatividade, descrita como norma para sexuali-
dade, embasada na heterossexualidade como uma norma universal, pautando
o discurso desviante àquele que não a seguem.

Nos estudos de gênero e sexualidade a intervenção de uma norma é um


implicador para compreender as relações de um padrão heterossexual de do-
minação sobre as questões de gênero por envolver a elaboração de conceitos
e direcionamentos de como os corpos devem performar. Assim, heteronorma-
tividade, organiza a sociedade pela dominação de uma lei de comportamentos
e diferenças por padrões tidos como biológicos, separando um grupo do outro,
além de um contexto tido pela tradição colonial (MISKOLCI, 2020).

Problematizar as relações de gênero do território é denunciar a dominação


de uma norma que regula, pela sua complexidade de envolver as relações de
poder, envolvendo aspectos de opressão que beneficiam o grupo dominador.
Além disso, autonomizam convívio em um espaço ideológico subordinado as
classes sociais e a todos os níveis das organizações sociais pelas diversas si-
tuações de dominação e exploração do outro grupo que não corresponde a
heterossexualidade.

A heteronormatividade enquanto um sistema de dominação social dos ho-


mens colonizadores, implica ação não apenas na família como tradicional, mas
em dinâmicas totalizantes nas individualidades e coletividades, além do sistema
trabalhista, midiático e político. Os corpos sociais são heterogêneros compulsi-
vamente para justificar e dá referência aos papéis dos gêneros presentes numa
ordem familiar, reprodutiva e social.

O processo de heteronormatividade sustenta e justifica institui-


ções e sistemas educacionais, jurídico, de saúde e tantos outros.
É à imagem e semelhança dos sujeitos heterossexuais que se
constroem e se mantém esses sistemas e instituições- daí que
são esses os sujeitos efetivamente qualificados para usufruir de
113

seus serviços e para receber benefícios do Estado. Os outros su-


jeitos, aqueles que fogem â norma, podem ser, eventualmente,
reeducados ou reformados (numa ótica de tolerância e compla-
cência); ou talvez sejam relegados a um segundo plano e devem
se contentar com recursos alternativos, inferiores; quando não
são simplesmente excluídos, ignorados ou mesmo punidos. A
heteronormatividade justifica tais arranjos sociais; justifica co-
nhecimentos, práticas, jogos de saber-poder. Portanto, descons-
truir sua lógica, demonstrar a fabricação histórica de tal proces-
so e as manobras constantemente empreendidas para reiterá-lo
pode contribuir para desmontá-lo (LOURO, 2020, p.99).

Os estudos de Foucault sobre sexualidade são implicadores para pesquisa-


dores da teoria queer. A sexualidade, por sua vez, atua como dispositivo da mo-
dernidade, elaborado por práticas discursivas. O normalizar e controlar o corpo
e seus prazeres estabelecem normas tidas como verdades por práticas sociais.
Para Foucault o imposto a ser e a relação com os desejos, provocam relações
que estabelecem a pensar e reivindicar novas formas de subjetivação por não
concordar com o que é imposta pelo binário (2019).

Aqueles que não aceitam esta norma são punidos por estarem em grupos
sociais que não concordam, pela falta de privilégios sociais e reconhecimento
na sociedade como: preconceitos sociais, falta de oportunidades de emprego,
saúde e educação; objetos de violência física, violência psicológica e afastamen-
tos de grupos, entre outras discussões, as pessoas sofrem estigmas sociais.

Compreender gênero assume a complexidade do conceito, por envolver


relações do discurso e ser produto da cultura, imbuídas nas relações do ser ho-
mem, ser mulher e não ser. A identidade de gênero é uma concepção individual
de uma representação identitária que envolve as relações entre o corpo físico
e o simbólico para a performance. O gênero binário é manifestado nos corpos
polarizados no binarismo nas diversas divisões dos saberes, caracterizando os
corpos femininos e corpos masculinos, passando a determinar o ser homem e
ser mulher para os grupos.

As construções destes corpos não se fixam no campo simbólico, mas para


a materialização do corpo. Este processo se relaciona às normas sociais, papéis
estabelecidos e metas a serem alcançadas através de relações de poder, por
práticas regulatórias do corpo. O processo de socialização dos indivíduos, pelas
diferentes formas de ocuparem espaços sociais pelas fronteiras.

[...] os gêneros não-binários que, além de transgredirem à impo-


sição social dada no nascimento, ultrapassam os limites dos po-
los e se fixam ou fluem em diversos pontos da linha que os liga,
ou mesmo se distanciam da mesma. Ou seja, indivíduos que não
114

serão exclusiva e totalmente mulher ou exclusiva e totalmente


homem, mas que irão permear em diferentes formas de neutra-
lidade, ambiguidade, multiplicidade, parcialidade, ageneridade,
outrogeneridade, fluidez em suas identificações (REIS; PINHO;
p.08, 2016).

O movimento das pessoas não-binárias são potências de ressignificações


ao compreendido por binário, por ser implicar em conceitos pré-estabelecidos
numa dinâmica social de uma postura de resistência. Uma corporeidade que
atravessa representações complexas pelos conceitos da heteronormatividade,
o binarismo de gênero, os estereótipos de gênero da sociedade.

As novas possibilidades de identidades de gênero, como os não-binários


tem assumidos espaços na sociedade contemporânea, como também tem au-
mentado os questionamentos sobre a ocupação destes espaços. Narrativas
como aponta o trabalho de Padilha e Palma: “Mas, enfim, demorou um tempo
pra [sic] eu entender que, não necessariamente eu tinha que ser mulher por
não ser homem. [...] Enfim, várias pessoas não binárias com quem eu conversei,
essa era a sensação [sic]. Eu sou uma coisa que não existe” (E2)” (2017,p.5) .

Romper com os discursos de uma população que ainda utiliza a normativa


social do binarismo de gênero não é fácil, por ser produto de uma normativa
que regula os modos de vida e apresenta duas possibilidades: homens ou mu-
lheres. O não-binário, vai além deste discurso, é uma forma de ser no mundo
que não assume dualidades, mas representação de um corpo político que reco-
nhece suas expressões de gêneros as relações às normativas vigentes.

Butler (2019) discute a inteligibilidade do gênero imposta a sociedade na


qual os papéis binários são reconhecidos em conformidade com o corpo. Essa
prática inteligível regula os corpos dividindo em comportamentos masculinos
e femininos que correspondam uma organização que vem do sentido binário
que relacione sexo, gênero e desejo ao verificar os órgãos anatômicos tidos
como masculino o pênis e como feminino a vagina. A autora problematiza essa
orientação questionando como nomear órgãos reprodutores como masculinos
e femininos a partir das expressões da identidade do gênero, visto que são prá-
ticas sociais que correspondem a forma que as pessoas se autodeclaram pela
sua corporeidade.

Compreender o gênero pela desnaturalização de verdades impostas, pos-


sibilita ir além da binariedade, rompendo o poder da perspectiva heterossexual
e expondo a não-binariedade como identidade de gênero que não cruza com
espaços atribuídos para o masculino e o feminino. Para Reis (2017) pessoas
não-binárias descaracterizam os papéis tidos como de homens e de mulheres
para papéis de estar em trânsito em reconhecimento do seu corpo, ou seja,
ressignificações para estar no mundo pela identidade reconhecida e não o es-
115

tabelece ser.
As pessoas não-binárias estão no entre-espaços, não permitindo o enqua-
dramento do binário pelo órgão anatômico reprodutor, nem gerando espa-
ços para as normas que vão ao encontro do inteligível nos papéis sociais, mas
construindo possibilidades de encontros e entendimentos de como seu corpo
performa nos lugares que não corresponde ao desejo da heteronormatividade
compulsória.

A relação entre gênero e sexualidade na educação, favorece que corpos


ocupem espaços e não sejam excluídos deste movimento de descarte a quem
deseja fugir da norma (MISKOLCI, 2020). O chão da escola precisa ser inclusivo
com todas identidades de gênero, mas muitas vezes não tem a equipe prepara-
da para a compreensão e prática de uma política identitária que respeite e en-
tenda as diferenças, visto o entendimento e papéis sociais binários ainda terem
fortes influências neste espaço.

Rodrigues e Barretos (2013) apresentam o corpo como um dispositivo


que vai além da entidade física, envolvido no significado subjetivo que este re-
presenta para si e mostra para as coletividades. Assim, compreender gênero
na escola é entender um corpo de possibilidades que não assume um padrão
fixo definitivamente, mas que permite a reconhecer pelas vivências sociais que
procura uma nomeação para dá sentido ao seu reconhecer, uma corporeidade
não nomeada em papéis de homens e mulheres, mas de pessoas.

A resistência encontrada nos corpos não-binários está no ato de ques-


tionar a relação sexo tido como biológico ao gênero imposto pela justificativa
corpórea, visto as pessoas esperar uma relação inteligível entre sexo e gênero
adequado para a sociedade binária. Por meio desta persistência, em vê o cor-
po como espaço político, a heteronormatividade expressa lugar de opressão as
manifestações de um corpo que não tem controle para regular.

Ao realizar uma pesquisa sobre pessoas não - binárias na escola no site


Google, poucas inferências de matérias que expressem estas performas na po-
lítica educacional. Uma problemática para educação, onde estes estudantes es-
tão? São silenciados numa cultura que oprime os corpos dissidentes e ou não
estão frequentando a escola?

A ausência de dados em matérias, indica uma invisibilidade pelas pesso-


as não-binárias, apontamentos como: existem pessoas deixando de performar
sua não-binariedade ou os casos podem existir, mas não são registrados por
incompreensão da sociedade que tais pessoas existam?

Estes questionamento surgem e também podem ser compreendidos pelo


próprio entendimento da transgeneridade e fluides das gêneros que é estig-
matizado, mas não deve ser utilizado como uma justificativa para silenciar aos
116

corpos que exitem.


Por meios destes questionamentos que são apontados precisa ser inves-
tigados para inclusão social de uma política que garantida por direito de ser ci-
dadã. Por meio desta problemática será utilizada uma entrevista encontrada na
pesquisa do texto de Castro e Reis (2017), que compreende como a corporeida-
de destas pessoas são lidas na escola, envolvendo um diálogo entre um pesqui-
sador e um estudante sobre as pessoas não-binárias, sexualidade e gênero na
educação: O nome Nicholas, utilizado na entrevista com pesquisador é fictício.

Nicholas: Esses temas apareciam, mas não sentia que era algo
relevante. Algo que mudasse o relacionamento com as pessoas.
Aquela escola era maravilhosa pra você se assumir. Ninguém vi-
rava e apontava e “ah, viadinho”, sabe? Todo mundo respeitava e
continuava conversando contigo da mesma forma. Pelo menos
na minha série era assim. Não tinha caso de pessoas trans. Mas
eu imagino que seria mais de boas que em outras escolas. Tinha
muita lésbica, muito gay e muito bi. Era uma escola maravilhosa.
Não era falado, a gente não falava muito sobre, porque parecia
que naquela escola todos eram iguais, sabe?! Era um lugar tran-
quilo. Aula nunca teve. De sexualidade, não. De gênero, também
não. Biologia vira e fala: “pepeca e pipi”. E só isso. Não tinha essa
coisa de identidade de gênero. Não, nunca foi falado.
Pesquisador: E como você acha que seria se tivesse uma pessoa
não-binária na sua escola?
Nicholas: Eu acho que todo mundo ia ficar muito curioso. Que-
rendo saber o que é. Tem gente que ia achar estranho. Tem
gente que ia fazer umas perguntas bestas. Mas, eu acho que ia
trazer muita curiosidade. Pra saber o que é, porque não se sabe.
Pesquisador: E como você acha que a instituição ia lidar?
Nicholas: Ah, ia ignorar. Como sempre ignorou. Lá era de boas
por causa dos alunos, porque a instituição nunca fez nada. (CAS-
TROS & RESIS ,2017, p.119).

O recorte do artigo menciona aponta como à matriz binária de gênero e


sexualidade é presente nos discursos pelo determinismo do biológico como de-
tentor dos corpos machos e fêmeas e o que foge num olhar desviante, uma
perspectiva queer que expresso como aquele que foge da natureza. Pela fala do
Nicholas, as pessoas não-binárias causam curiosidade, estranheza, e não ocu-
pavam aquele espaço escolar e a instituição não iria assumir responsabilidades
para inclusão destas pessoas.

Esta entrevista é importante para responder o questionamento de onde


está os corpos não- binários na educação, são vítimas de um silenciamento,
como aponta poucas informações no site de pesquisa Google, poucas informa-
ções sobre estes corpos na escola por remeter a uma estranheza ao comparar
117

com os corpos binários.

Castro e Reis (2017) expressam que os gêneros marginalizados têm uti-


lizado a política educacional de forma forçada, rompendo com o binarismo.
Esta ocupação de espaço ocorre como ação política de implicar no sistema de
repressão da matriz heteronormativa para refletir a produção e ampliação de
conhecimento sobre os corpos por meio dos estudos de gênero e sexualidade.

Assim, por meio da instituição educacional, a compreensão sobre gênero


e sexualidade na escola é permitir que corpos frequentem este espaço, por en-
tenderem que são bem-vindos e podem ocupá-lo. Uma educação com qualida-
de envolve a participação social da equipe de gestão escolar e professores que
entendam o corpo como trans (formador) de subjetividades, ou seja, um corpo
que pode ser o que reconhece ser e não precisa ser posto como um corpo des-
viante, mas um corpo que não reconhece normas de uma perspectiva que não
aceita sua corporeidade não-binária.

Portanto, levar para a escola o entendimento das famílias sobre estes cor-
pos não-binários é construir pontes para adesão de uma política educacional
que envolva as particularidades e apresentar iniciativas para compreensão des-
tes corpos. Podendo, desse modo criar espaços que não regulam as performati-
vidades, sejam no ambiente escolar, seja no ambiente familiar, pois estes, ainda
são instituições que regulam os corpos para enquadrá-los na norma binária

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os estudos queer na educação, nomeado de pedagogia queer, norteia a
necessidade de um espaço sem práticas regulatórias de expressões de gênero
binária. Assim, é importante notar como o processo de ensino e aprendizagem
pertencem a questões transversais como a discussão de gênero, pois um lugar
que não visibiliza espaço democrático para corpos que não seguem as normas
do binário como sujeitas a orientação.

Levar uma leitura dos estudos da heteronormatividade neste trabalho é


garantir um respaldo histórico de como as lutas das minorias podem influenciar
no acesso destas pessoas a espaços sociais. Contraria-se, dessa maneira, o ob-
jetivo de silenciar grupos sociais para controlar a sociedade, possibilitando que
as subjetividades possam questionar às leis, como a norma e papéis de gênero
estabelecidas pelo padrão sexo de nascimento que não interseccionar com as
subjetividades. Questionar as inteligibilidades que a conduta heteronormativi-
dade apresenta para da congruência das pessoas sobre o binário.

Este artigo aponta como dados de lugares de fala de estudantes não-biná-


118

rias na educação são silenciados e não notificados. Apresentam pouca divulga-


ção, visto serem corpos dissidentes que são vítimas de uma educação pouco in-
clusiva quando relacionada aos estudos de gênero e sexualidade na educação.
A falta de conhecimento ainda é crescente visto ser uma temática que lida como
não pertencer a escola em uma leitura conservadora.

A escola é uma instituição de poder de práticas regulatórias implicadas


onde pessoas são punidas como sujeitas a entrar na norma, para uma educa-
ção inclusiva que envolva a participação de diversos grupos sociais, entre eles as
identidades de gênero não-binárias, que não estabelece sentindo com a norma
binária, são corpos sociais que permitem seguir suas performidades.

Compreender como os estudantes, equipe de gestão, professores e res-


ponsáveis pelos estudantes entendem a ocupação de espaços das pessoas que
apresentam a identidade de gênero não-binária, e quais políticas educacionais
envolvem neste aspecto, é acreditar em uma escola que busca melhor o acesso
de todas pessoas ao ensino público com qualidade e desenvolver políticas pú-
blicas que melhorem e dê mais visibilidades as pessoas.

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CAPÍTULO 9
120

ENTRE PERNAS, LEITO DE VIÚVAS E PEDRAS JOGADAS:


A TRANSGRESSÃO FEMININA EM ANA DE AMSTERDAM,
BÁRBARA E GENI DE CHICO BUARQUE
Roberta Moura Cavalcanti1
Universidade Federal Rural de Pernambuco

INTRODUÇÃO
Antes de apresentar essa pesquisa, preciso falar de mim, a sujeita que es-
creve esse texto. Nasci Roberta Moura Cavalcanti, no dia 28 de fevereiro de
1985, em Recife. Era uma quinta-feira pós quarta-feira de cinzas e dona Glau-
ce, mainha, após brincar toda a folia de momo, foi à maternidade para que eu
chegasse a esse mundo. Nasci com o sol em peixes, o que me faz ser sensível
e trouxa; com o ascendente em virgem, o que me fez enlouquecer ao não es-
crever esse texto de forma não linear; e com a lua em gêmeos, talvez o que me
levou à docência, geminianes e sua necessidade de falar.

Sou filha de Glauce e neta de Creuza, duas cancerianas incríveis que cria-
ram suas crias com a barriga encostada em um fogão. Mainha e vovó cozinha-
vam para viver. E que cozinha. Eu tive um privilégio grande em crescer me ali-
mentando do que essas mulheres produziam. A minha família é fundamentada
em grandes mulheres. Eu não li sobre elas, eu vivi com elas, fui criada por elas,
aprendi, mesmo sem elas saberem que estavam ensinando, a sobreviver sob a
marcação do gênero feminino. Vovó me contou uma vez que sua avó era uma
portuguesa que se casou com um escravo alforriado. A minha tataravó, bran-
ca, casou com um homem negro, ex-escravo, e isso, em pleno século XIX, era
transgressor. A minha família tinha, em uma de suas bases, uma mulher trans-
gressora.

Mainha e vovó, junto com minhas tias Suely e Maria, outras duas mulheres
que contribuíram para eu ser quem sou hoje, me ensinaram que eu precisava
estudar para não depender financeiramente de homem. Que, desde sempre,
precisaria trabalhar mais se eu quisesse “ser alguém”. Esse discurso não chegou
para mim pela boca ou pelos livros da Beauvoir, ele chegou por essas mulheres
1
Mestranda do Programa de Estudos Interdisciplinares da Linguagem pela UFRPE. E-mail: amarela.cavalcanti@gmail.com.
121

que me ensinaram como ser feminista, mesmo sem saber o que isso significava.

E então, em 2017, eu me tornei mãe. Mãe de Josué, um menino. Nem eu


nem Tiago, meu companheiro e pai de Josué, quisemos saber o gênero. Foram
09 meses de tortura porque, nessa sociedade binária e cisheteronormativa, sa-
ber o sexo biológico é definir um gênero e quem a criança seria a partir daquele
momento. Eu nem havia lido Judith Butler ainda, mas eu já entendia que aquele
ato iria ditar a vida da minha cria. Escolhemos os nomes, Maria Teodora e Josué
(mantendo um binarismo), e criamos Doroé, um ser sem gênero, que viveu por
39 semanas no meu ventre. E, em 12 de setembro de 2017, às 23:06, com o sol
em virgem, Doroé virou Josué e eu percebi que teria que criar um homem nessa
sociedade patriarcal, machista, homofóbica, transfóbica e misógina. Foi aí que
eu senti, ainda mais, a necessidade de estudar gênero.

Tentei resumir um pouco a minha trajetória, afinal isso não é uma autobio-
grafia, mas trouxe esses relatos para mostrar que esse caminhar me fez chegar
aqui e ser, nesse momento, quem eu sou: mulher cisgênera, negra de pele cla-
ra, pobre, gorda, pernambucana, nordestina, professora, freiriana, progressista,
antirracista, eleitora da Dilma e do Lula, feminista e mãe, essa categoria que
precisa, urgentemente, ser revista pelo feminismo.

Esses marcadores tiveram um peso crucial na escolha da minha pesquisa


e, sobretudo, do meu objeto, as três mulheres transgressoras escritas por Chico
Buarque durante a década de 70, Ana de Amsterdam, uma prostituta bissexual
que, nessa pesquisa, será analisada através de sua relação lésbica com Bárbara,
outra mulher bissexual que decide, após a morte do seu companheiro, viver
vários amores, dentre eles uma relação homossexual com Ana; e Geni, a traves-
ti prostituta que, mesmo após salvar a cidade de um massacre, tem sobre ela
pedras atiradas.

APRESENTAÇÃO DA PESQUISA
Pensei diversas formas de começar esse texto enquanto apertava as teclas
do computador e sempre finalizava clicando no delete. Não saía. Não aconte-
cia. Eu, que sempre utilizei a escrita como processo terapêutico, não conseguia
escrever e isso indicava um problema. Definitivamente um grande problema.
Como eu conseguiria escrever essa pesquisa se não parava de clicar no delete?

Meus dedos acariciavam as teclas como as de uma pianista sobre seu ins-
trumento de trabalho, mas era inevitável finalizar com o apagar. Eu já havia
entendido que existia um problema, mas não havia identificado ainda qual. E
então, eu li Luiza Bairros, em seu “Novos feminismos revisitados”, afirmando
que o feminismo é uma corrente teórica que permite, através da experiência,
analisar a situação de não apenas uma, mas várias mulheres:
122

Feminismo é o instrumento teórico que permite dar conta da


construção de gênero como fonte de poder e hierarquia que im-
pacta mais negativamente sobre as mulheres. É a lente pela qual
as diferentes experiências das mulheres podem ser analisadas
criticamente com vista à reinvenção de mulheres e de homens
fora dos padrões que estabelecem a inferioridade de um em re-
lação ao outro (BAIRROS, 2019, p.212).

Foi então que eu entendi que precisava escrever tomando como ponto de
partida eu mesma. Sou eu, Roberta Cavalcanti, ou Amarela Cavalcanti, depende
por onde você me conheça, que escolhi essa temática e essas personagens. Não
há como falar desse trabalho sem falar de mim, como bem afirma Suely Aldir
Meseder (2019), a pesquisadora encarnada que, fazendo uso da escrita pela
experiência, defende que é preciso romper com essa metodologia acadêmica
que nos obriga a nos afastarmos do nosso objeto de pesquisa ao afirmar que
“no processo decolonial, asseguro que somos sempre subjetividade corpórea
produzindo conhecimento” (MESEDER, 2019, p.168).

Logo, decidi que, em alguns pontos dessa dissertação, iria fazer uso da
decolonialidade a primeira decisão tomada é que iria escrevê-la na primeira
pessoa do singular! E aqui estou eu, fazendo uso desse pronome pessoal do
caso reto e lembrando de Gloria Anzaldua (2016) que afirma que “uma pessoa
sempre escreve e lê do lugar onde seus pés estão plantados, no chão de onde
se ergue, seu posicionamento particular, ponto de vista” (2016, s/p)2.

Julgo importante informá-los também que, para me referir a pessoas que


se envolvem com pessoas do mesmo sexo, hora farei uso do termo homossexu-
alidade, e seus correlatos, hora utilizarei homoafetividade por entender que as
relações são e podem ser através da sexualidade e/ou também da afetividade.
Portanto, nesse texto, essas palavras serão utilizadas como sinônimas. Serão
também sinônimos o termo prostituta e a expressão trabalhadora sexual, como
forma de desconstruir a visão ainda preconceituosa e pejorativa que existe so-
bre o termo prostituta.

Outro ponto importante é o que tange à categoria mulher. Essa pesquisa


é sobre mulheres transgressoras, mas dentro de uma sociedade cisgênera e
heteronormativa, lésbicas, prostitutas e mulheres trans e travestis não se en-
caixam na categoria mulher, a partir do momento que decidem romper com a
heterossexualidade compulsória, ao não ocuparem o local da esposa e mãe e
ao transgredirem a cisgeneiridade. Mas, nessa pesquisa, o termo mulher será
utilizado de forma ampla e aberta para as inúmeras formas de feminilidade
ou de “mulheridade”3 , como nomeia Linn da Quebrada ao reivindicar as várias
2
Disponível em: https://brota.noblogs.org/files/2016/01/Queerizar-a-escritora_Gloria-Anzaldua.pdf. Acesso em 15 maio 2020.
3
Disponível em: https://istoe.com.br/linn-da-quebrada-diz-que-ja-segurou-xixi-por-transfobia-em-banheiros-publicos/. Acesso em
17 de ago de 2020.
123

formas de performar o feminino. Mulheres que amam e fazem sexo com ou-
tras mulheres, mulheres que são trabalhadoras sexuais, assim como mulheres
com pênis, todas são mulheres e, se ao final dessa pesquisa, outras formas de
performar mulheridade surgirem e reivindicarem esta categoria, o termo aqui
empregado também será sobre elas.

Por último, quero explicar a vocês que o objeto de estudo dessa pesquisa
são mulheres que foram, a princípio, escritas para serem personagens do texto
teatral, mas que também ganharam vida nas canções. Logo, irei recorrer ao
texto teatral para contextualização das personagens e enredo, mas o corpus da
análise dessa pesquisa consiste nas canções “Bárbara”, “Cala a boca, Bárbara”,
“Ana de Amsterdam”, “Tira as mãos de mim”, “Folhetim”, “Tatuagem” e “Não exis-
te pecado ao sul do Equador” do álbum Chico canta Calabar e “Geni e o zepelim”
do álbum Ópera do Malandro.

Após os informes necessários, quero lhes apresentar a minha pesquisa. Eu


trabalho três personagens de Chico Buarque que caracterizo como mulheres
transgressoras, são elas: Ana de Amsterdã, prostituta que chega ao Brasil com
os holandeses; Bárbara, viúva de Calabar que, após a sua morte vive vários ro-
mances, dentre eles uma relação homoafetiva com Ana de Amsterdam; E Geni,
a travesti que salva a cidade da destruição.

Mas por que eu decidi analisar essas mulheres? O que em suas constitui-
ções me permite caracterizá-las como transgressoras? E, em um momento com
tantas mulheres trans e travestis produzindo sua arte a partir de seus corpos
e de suas vivências, por que trabalhar personagens escritas por um homem
branco cisgênero, hétero e rico? Embora o Brasil seja o país que mais mata
pessoas trans e travestis no mundo, de acordo com a Agência Nacional de Tra-
vestis e Transexuais (ANTRA), o cenário para produção artística dessas sujeitas
hoje é mais propício que na década de 70, durante o regime militar, e as três
personagens aqui analisadas ganharam vida durante um dos períodos mais
sombrios da nossa história. Portanto, não é apenas ver descritas mulheres em
textos teatrais ou em canções da chamada Música Popular Brasileira, mas sim
ver representações de mulheres que ainda são marginalizadas nos dias atuais
em obras artísticas com um alcance significativo na população e que passaram
a existir durante um período de repressão e censura. É contribuir para um res-
gate histórico de mulheres como Ana de Amsterdam, Bárbara e Geni, mostrar
que elas sempre existiram, sempre estiveram presentes em nossa sociedade e,
também, em nossa arte.

Chico Buarque é um dos meus autores preferidos e suas canções permea-


ram toda a minha vida, desde a infância até hoje, no auge dos meus 36 anos. Ao
decidir voltar meus olhos para pesquisar personagens escritas por um homem
que tem sobre si vários marcadores de privilégios, enxergando e analisando
personagens que representam sujeitos marginalizados na década de 1970 e
124

ainda nos tempos atuais, é, para mim, um processo de resgate histórico e tam-
bém de decolonização de obras que podem sim compor o cânone da música e
literatura brasileiras, mas que também podem ser analisadas por teorias que
estão à margem, assim como as personagens aqui trabalhadas.

Neste momento, quero abrir um grande parêntese e falar do Chico Buar-


que, esse cantor que faz uso, ainda, do cantar desafinado da Bossa Nova, e um
exímio compositor e letrista. Não sei se vocês sabem, mas o Chico Buarque foi
o primeiro compositor brasileiro a escrever uma canção cujo eu-lírico era femi-
nino. “Com açúcar, com afeto” foi escrita em 1966, como uma encomenda a um
pedido de Nara Leão que estava cansada de alternar os gêneros nas canções
que interpretava (CAVALCANTI, 2010).

Para o Trovadorismo, esse gênero diz respeito à canção de amigo, um tipo


de construção lírica que apresenta, dentre outras características, um eu-lírico
feminino. A partir do momento que o compositor escreve “Com açúcar, com
afeto”, ele abre as portas para que mais canções surjam com esse eu-lírico:

Chico fez algo nunca feito antes na chamada MPB (Música Po-
pular Brasileira), ele conseguiu que as mulheres se vissem na
música. A partir do momento que ele compõe uma música na
qual a personagem feminina tem voz e expressa seu sentimento
perante o sexo oposto e a sociedade, ele permite que as tantas
Bárbaras, Terezinhas, Carolinas e tantas outras se sintam vistas
e importantes, capazes de expressarem seus desejos, angústias,
revoltas, enfim, que possam falar abertamente sobre seus senti-
mentos (CAVALCANTI, 2010, p.32).

O cancioneiro buarqueano, a qual defino como obra poética, tendo em
vista que a canção surge como gênero lírico, onde poesia e música eram indis-
sociáveis, apresenta temáticas dentre as quais o cantar feminino, o cantar de
protesto e o que aborda as minorias marginalizadas, como prostitutas, homos-
sexuais, travestis, crianças em situação de rua, malandros, etc (CAVALCANTI,
2020). Ao caminhar pela obra poética buarqueana, passei a olhar de forma mais
profunda para as personagens, não só para as canções e foi daí que tirei o meu
desejo e objetivo geral dessa pesquisa que é estudar Ana, Bárbara e Geni, mu-
lheres transgressoras e à frente do seu tempo, uma vez que foram escritas em
1973 e 1978, durante um dos períodos mais sombrios de nossa história.

A relação dele com a repressão e a ditadura refletiu diretamente na sua


obra, seja teatral, musical ou literária. Um fato interessante é que em 1974 o
Chico Buarque escreveu uma novela pecuária intitulada “Fazenda-modelo”, nar-
rada por bois e vacas, que satirizava o chamado “milagre econômico” propaga-
do pelo governo militar. Na novela, a sociedade de bois perde sua liberdade em
nome do progresso, devido aos prejuízos que a fazenda gerava, satirizando o
125

lema do governo militar que era “Brasil, ame-o ou deixe-o’, bordão que corrobo-
rava com uma sociedade autoritária que não estava disposta a dialogar, apenas
impor suas regras. Dessa forma, o compositor e escritor traz a alegoria da boia-
da para se referir à sociedade, muito semelhante com o termo “gado”, utilizado
para referenciar os seguidores e apoiadores do atual presidente (ZAPPA, 2011).
E com esse exemplo de como a obra buarqueana é atual, eu fecho o parêntese
sobre o Chico Buarque.

Voltando à pesquisa, é exatamente por essas personagens terem ganhado


vida durante a ditadura militar que analisar o período histórico será o primeiro
objetivo específico que apresentarei, incluindo a relação da ditadura com a po-
pulação LGBT+4 , especialmente com as travestis. O segundo objetivo é estudar
as personagens Ana de Amsterdã, sua construção e localização como prostituta,
e Bárbara, tomando como mote a relação homoafetiva. O terceiro e último ob-
jetivo específico é trabalhar a construção da identidade travesti na personagem
Geni da Ópera do Malandro.

Essa pesquisa está vinculada a um mestrado em Estudos da Linguagem, na


linha de pesquisa de “Análises literárias, culturais e históricas”, e, por se tratar
de uma pesquisa literária que apresenta personagens de peças teatrais e can-
ções como objeto de estudo, adotei como método a pesquisa qualitativa.

Como afirma Yuderkis Espinosa Miñoso (2019), eu seu artigo “Fazendo uma
genealogia da experiência: o método rumo a uma crítica da colonialidade da
razão feminista a partir da experiência histórica na América Latina”, os conheci-
mentos produzidos pelas Ciências Sociais, foram postos em cheque pela decolo-
nialidade por terem sido conduzidos por intelectuais, em sua maioria, de origem
branca, por isso, nessa pesquisa adoto também como processo metodológico a
escolha teórica composta por autoras que, em sua maioria, produzem a partir
de um Sul Global. Dessa forma, faço uso da decolonialidade para a escolha do
referencial a partir da escrita de si, de lésbicas que escrevem sobre lesbiandade
e de travestis que escrevem sobre travestilidade e transgeneridade, produções
de conhecimento que têm como ponto de partida as suas vivências.

Permitam-me abrir um parêntese para falar sobre travestis acadêmicas.


Em 2019, durante o IV Desfazendo Gênero, realizado em Recife, vi a palestra in-
crível sobre “Decolonialidade em estudos sobre Gênero e Sexualidades: por um
pensamento dissidente”, numa mesa composta por Jussara Carneiro, Viviane
Vergueiro e Sara Wagner York. Lembro de como eu chorei, ao ouvir a Sara falan-
do sobre sua experiência de vida, e pensar como aquela mulher é incrível por
passar por tudo que passou e mostrar que não é fácil, mas é possível sobreviver
como travesti nesse mundo.

4
Embora no período da Ditadura o termo adotado não fosse esse, utilizarei LGBT+ para contemplar essa população, independente
do período histórico.
126

Nessa mesma palestra, a Sara falou sobre a importância de trazer, nas fun-
damentações teóricas, autoras e pesquisadoras travestis, lésbicas, gays, trans,
não bináries (aqui me permitam fazer uso da não binariedade linguística) etc.
Ela deixou bem claro que fazer uma pesquisa sobre a identidade travesti, por
exemplo, é muito bom, mas que se você tem a possibilidade de usar autoras que
escrevem com base num conhecimento acadêmico e, sobretudo num conheci-
mento de vivência, efetivamente você não está trabalhando para desconstruir
essas estruturas de opressão. É preciso trazer essas pessoas para a produção
científica, referenciá-las, utilizar o que produzem. Nesse momento, eu entendi
que precisava e queria mulheres trans e travestis na minha base teórica.

Para essa pesquisa, também farei uso de artigos científicos que abordam
os temas aqui trabalhados, com um recorte de 10 anos, são eles: “Avatares da
literatura argentina contemporânea: Geni, a Maria Madalena de Chico Buarque:
aclamações e apedrejamentos na canção e no mundo, ontem e hoje” (PAULA,
2010); “As muitas faces da prostituição: uma abordagem histórica sobre o con-
trole da sexualidade a partir de Foucault” (SILVA, 2018); “A caça aos homosse-
xuais e travestis na Ditadura Militar” (VIEIRA, 2019); E “Os geuis na Ditadura
Civil-Militar brasileira: resistências” (ALMEIDA, 2019).

Agora passo a falar do objeto de estudo dessa pesquisa, as três mulheres


que ficaram imortalizadas tanto na canção, quanto no teatro. Ana de Amster-
dã e Bárbara são personagens da peça “Calabar: o elogio da traição”, escrita
em parceria com Ruy Guerra, na qual os autores buscam questionar a traição,
ao trazer como pano de fundo da peça, a história do pernambucano Calabar,
considerado traidor pela Coroa Portuguesa por ter se aliado aos holandeses na
invasão à Capitania de Pernambuco, em 1630. Chico também foi o responsável
pela trilha sonora da peça que resultou no álbum “Chico Canta Calabar”, de
onde analisarei as canções que apresentam como eu-lírico tanto Bárbara, como
Ana de Amsterdã.

Sobre essas mulheres, Ana e Bárbara, julgo importante esclarecer vocês


sobre sua construção e como serão analisadas aqui nessa pesquisa. Bárbara
era esposa de Calabar e fica viúva. Após a viuvez, passa a se relacionar afetiva
e sexualmente com Ana que ganhava a vida se prostituindo no porto. E é essa
relação homoafetiva entre ambas que será o fio condutor para a análise de Bár-
bara. Sobre Ana de Amsterdã, o ponto focal na construção dessa personagem
se dará a partir de sua posição enquanto prostituta.

A última mulher que analiso foi escrita para outra obra que, assim como
as anteriores, também existiu no palco do teatro e na letra da canção: a Geni da
“Ópera do Malandro”. A travesti buarqueana que implanta a dúvida no imaginá-
rio popular ainda tão apegado a uma cisgeneridade: é mulher ou travesti? Mas
ser travesti não é ser mulher? Nessa pesquisa, defendo a identidade travesti na
127

personagem.

Sendo assim, essa dissertação será composta por três capítulos. O primei-
ro irá tratar do contexto histórico e a relação entre a ditadura e a população
LGBT+, especialmente as travestis, tomando como principal referência a Comis-
são Nacional da Verdade e a obra História do Movimento LGBT no Brasil (2018)
de autoria de Renan Quinalha e James Green.

No período em que as obras foram escritas, o Brasil estava em plena di-


tadura militar, regime de opressão que tirou direitos do povo e, consequente-
mente, das mulheres e das pessoas subalternizadas e marginalizadas, a julgar
pela criação da Delegacia da Vadiagem, destinada a prender homossexuais e
travestis e relacionar essas pessoas com os temidos comunistas:

(...) foi estabelecido formas de “medir” o corpo das travestis, re-


colher suas imagens para “averiguação” a fim de determinar o
quanto perigosas elas poderiam ser. O risco que ofereciam, nas
palavras da Polícia, era de perverter e incentivar a juventude,
além de propagar tais “abomináveis” práticas. Foi estabelecida
uma associação direta entre os desvios sexo-gênero e a ideolo-
gia comunista. De modo que, a prisão de homossexuais e traves-
tis, deveria ser feita de forma prioritária, como uma das formas
de combate à perversão perpetrada por “comunistas” (VIEIRA,
2015, s/p).

O segundo capítulo será destinado à peça Calabar, o elogio da traição e


às personagens Ana de Amsterdam e Bárbara. Ambas foram escritas para se-
rem encenadas e também viraram eu-lírico das canções. Dessa forma, trazer o
enredo do texto teatral e como a obra foi recebida pela crítica e pela censura
da época é o primeiro tópico desse capítulo. Em seguida será o momento de
trabalhar Ana de Amsterdam, a prostituta dos diques e das docas. Para a cons-
trução da prostituição, utilizarei como principal referencial teórico Silvia Federici
e seu Calibã e a bruxa (2017), para entender como a relação da prostituição se
dá a partir da sexualização do corpo feminino, Rebecca Solnit e seu A história
do caminhar (2016), para compreender como a relação do corpo feminino e
do caminhar foi, num determinado período histórico, associado à prostituição.
Também utilizarei as autoras putasfeministas Amara Moira e seu E se eu fosse
puta (2018) e Monique Prada com seu Putafeminista (2018). O terceiro tópico
desse capítulo é destinado a Bárbara. Para trabalhar a lesbiandade, recorrei a
Monique Wittig (1992), um cânone no que se refere à análise de lésbicas e sua
afirmação enfática de que uma lésbica não é uma mulher. Também utilizarei Tâ-
nia Navarro-Swain (2004) que defende a identidade lesbiana como algo volátil,
que caminha com o desejo presente, sem lenço e sem documento.

O terceiro e último capítulo abordará Geni, a travesti prostituta apedrejada


128

que salva a cidade da tirania de um general. Este capítulo será destinado todo
a Geni e contará com 02 tópicos: no primeiro abordarei a Ópera do Malandro,
o enredo da peça e o contexto em que foi escrito, relevante para a análise da
personagem, uma vez que o texto teatral será de suma importância para a in-
terpretação como travesti; no segundo tópico, analisarei a identidade travesti
e como se constitui, relacionando a personagem buarqueana de acordo com
essa identidade. Para a construção dessa identidade, e adotando as escritas tra-
vestis, utilizarei como base teórica Jaqueline de Jesus (2012), Viviane Vergueiro
(2015) e Sara Wagner York, Megg Rayara Oliveira e Bruna Benevides com seu
texto Manifestações textuais (insubmissas) travesti 19 (2020, p. 2) que analisa
a palavra travesti como “um substantivo feminino e nunca um verbo que se
sujeita e infere”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A escrita dessa pesquisa foi, para além de um compromisso acadêmico,
fruto de uma admiração por mulheres que resistem não só as suas marcações
de gênero, mas também a outras marcações que tendem a subjugá-las, margi-
nalizá-las e subalternizá-las. Não são apenas mulheres, são putas, lésbicas, bis-
sexuais, travestis. Mulheres que lutam pelo direito de não serem consideradas
abjetas por conta de sua profissão, ou pelo direito de amarem quem quiserem
amar, ou ainda pelo direito de serem quem quiserem ser, de terem o gênero e
a identidade que decidirem ter.

Finalizo, trazendo o trecho de uma canção que, por incrível que pareça, não
é protagonizada por nenhuma das personagens analisadas. Trata-se da can-
ção Blasfêmea/Mulher, 21 da cantora travesti Linn da Quebrada, que apresenta
como eu-lírico uma travesti e que possui uma intertextualidade com a Geni bu-
arqueana:

Ela é tão singular
Só se contenta com plurais
Ela não quer pau
Ela quer paz
Seu segredo ignorado por todos até pelo espelho
(x2) Seu segredo ignorado por todos até pelo espelho Mulher

(LINN DA QUEBRADA, 2017, s/p)5

Linn traz em blasfêmea uma mulher que, assim como as três personagens
buarqueanas analisadas aqui, não se reduzem a uma única forma do ser mu-
lher.
129

Uma mulher que rompe com esses padrões e que se permite ser várias,
plural, o que a torna singular, assim como Ana, Bárbara e Geni, mulheres plurais
que, de suas pluralidades, se tornam únicas.

Sejam bem-vindas/vindos/vindes!
Axé!

REFERÊNCIAS
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nível em https://brota.noblogs.org/files/2016/01/Queerizar-a-escritora_Gloria-
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130

do rumo a uma crítica da decolonialidade da razão feminista a partir da expe-


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ZAPPA, Regina. Chico Buarque: para seguir minha jornada. Rio de Janeiro:
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CAPÍTULO 10
132

UMA REFLEXÃO CRÍTICA ACERCA DA QUEERIFICAÇÃO DE


CELIE EM THE COLOR PURPLE
Wesley Sousa Rodrigues1
Universidade Federal Rural de Pernambuco

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Sabemos que a sociedade é constituída pelas relações estabelecidas entre
os sujeitos; porém, quando nos referimos a nossa sociedade, percebemos que
ela vem sendo construída a partir de uma visão eurocêntrica, binária, colonial,
cis, heterossexual e patriarcal branca. O fato de “ser” um sujeito dentro dessa
sociedade, está diretamente ligado à ideia de gênero, em outras palavras, de
ser “homem” ou “mulher”. Deste modo, as pessoas que transgridem essa noção
de sociedade, gays, lésbicas, bissexuais e, sobretudo, pessoas transgêneros e
travestis, são consideradas aberrações, sendo impossibilitadas de vislumbrar
uma vida real em sociedade

Para Butler (2004, p. 27), “a questão de quem e o quê é considerado real


e verdadeiro é aparentemente uma questão de conhecimento. Mas é também,
Ao discutir as questões de gênero, Ridgeway e Correll (2004) partem do prin-
cípio de que o gênero é um sistema institucionalizado de práticas sociais, que
moldam os indivíduos em uma categoria polarizada entre homem e mulher,
alimentando a desigualdade nas relações sociais. Sendo assim, podemos dizer
que o indivíduo masculino afeta na forma como o indivíduo feminino vivencia
o mundo.

Partindo desses pressupostos, o objetivo deste artigo é promover uma re-


flexão crítica sobre a “queerificação” ou “queerização” da personagem Celie, em
The color purple (A cor púrpura), com o intuito de queerificarmos nossos corpos
para resistirmos às multiplas violências que sofremos, quando somos jogados
nas avenidas identitárias das opressões. Conforme afirmam Souza, Peres e
Araújo (2015, p. 122), “um olhar queerizado abre precedentes para a crítica das
práticas e conceitos ainda aprisionados pelas lógicas binárias e universalizantes
que reificam violências e desigualdades de gêneros”.

1
Bacharel em Tradução pela (UFPB/Campus I – João Pessoa). Em 2018, pela mesma intuição, fui bolsista no Projeto de extensão Tra-
dução e Empoderamento da Mulher, o qual foi agraciado com o Prêmio Elo Cidadão 2018. Atualmente, sou mestrando em Estudos da
Linguagem pelo Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem (PROGEL–UFRPE/Sede) e licenciando em Letras/inglês pela
Universidade Estácio de Sá (UNESA). E-mail para contato: strange.frwit@gmail.com.
133

The color purple, escrito em 1982, por Alice Walker, apresenta a história de
uma jovem negra e pobre chamada Celie, a qual, abusada pelo padrasto, deu
à luz duas crianças, com as quais foi impossibilitada de ter contato. Posterior-
mente, a personagem é entregue a Mr., que a trata como escrava e com quem
mantém relações sexuais. No decorrer da história, Celie, semianalfabeta, escre-
ve cartas para Deus e para sua irmã mais nova, Nettie, contando experiências
de amizade e de amor que viveu. Ao longo da narrativa, podemos perceber a
emancipação da personagem principal. Inicialmente, ela é representada como
uma pessoa reprimida pelo padrasto e pelo marido, mas tudo muda com a che-
gada de Shug Avery, a partir de quando Celie toma as rédeas da própria vida até
conseguir sua autonomia. Shug, “linda” e “sensual”, é filha de pastor evangélico,
porém percebeu que sua vocação era cantar blues. Inicialmente, ela aparece
como amante de Mr. (posteriormente chamado de Albert), conhece Celie e se
tornam amigas e, ocasionalmente, amantes. Shug faz-se mentora de Celie, a
ajuda a evoluir como mulher e a conquistar sua independência.

O romance foi ganhador do Pulitzer Prize e do National Book Award2 em


1983. Além de ter sido adaptado para o cinema em 1985, sob direção de Steven
Spielberg. A adaptação fílmica foi premiada por 4 vezes em 1986; são os prê-
mios: NAACP3 Image Award de Melhor Filme, Prêmio Globo de Ouro: Melhor Atriz
em Filme Dramático, Directors Guild of America Award e NAACP Image Award de
Melhor Atriz no Cinema. Também recebeu o prêmio Blue Ribbon Award de Melhor
Filme Estrangeiro em 1987. A última adaptação teatral da obra aconteceu em
2019, dirigido por Tadeu Aguiar. Trata-se da primeira adaptação brasileira para
a produção da Broadway inspirada no filme de Steven Spielberg (CUNHA, 2019).
Em julho de 2020, o musical ganhou o 14º prêmio ATPR4 (OLIVEIRA, 2020).

Dessa forma, percebemos a relevância da obra de Alice Walker e o quanto


ela é importante para os dias atuais, pois os temas abordados no romance,
escrito no século XX, são recorrentes na nossa sociedade. Há um equívoco ao
pensar que todas as mulheres heterossexuais ou queer passam pelas mesmas
formas de opressão e subalternidade perante os homens, principalmente, os
brancos. Contudo, o feminismo negro surge com a finalidade de destacar não
só o sexismo, mas os diversos tipos de discriminação e preconceitos, e acima de
tudo, o racismo que as mulheres negras sofrem. Ademais, hoje em dia, fala-se
em feminismos, partindo da ideia de que falar apenas de feminismo negro ou
feminismo, não contemplaria outras pessoas de gênero e sexualidade dissiden-
tes. Parafraseando a filósofa estadunidense Angela Davis: “vamos subir todas
juntas”, contra o racismo, o sexismo e as múltiplas violências que acabando se
cruzando, não de forma acumulativa, mas de forma que se tocam no mesmo
ponto, fazendo com que a pessoa seja atingida várias vezes.

2
Fonte: http://www.nbafictionblog.org/nba-winning-books-blog/1983-1.html
3
“National Association for the Advancement of Colored People” (Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor).
4
Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro.
134

FEMINISMO NEGRO NOS ESTADOS UNIDOS


Dentre os movimentos relativos às minorias, destacamos o feminismo ne-
gro nos Estados Unidos, no século XX, que é salientado pela 3ª onda do femi-
nismo. Esta se inicia na metade do século XX e é impulsionada nos anos 1990,
sendo caracterizada pelo feminismo da “mulher de cor”, em outras palavras, o
feminismo da mulher negra.

Este momento dialoga diretamente com a 2ª onda do feminismo. Na ver-


dade, é a continuidade na busca dos direitos ainda não alcançados. Na onda
anterior, falava-se em igualdade política e cultural feminina, em liberdade e in-
dependência do patriarcado, na contracultura, ou estilo de mobilização e con-
testação social, que tinha enfoque nos Direitos Civis; no Movimento de Liberda-
de de Expressão (FSM); nos protestos contra a Guerra do Vietnã; Revolução de
Gays e Lésbicas, entre outros movimentos (LORBER, 1997).

A 3ª onda do feminismo tem como características principais: a contestação


da heterossexualidade compulsória, que se refere à sexualidade não como uma
escolha ou uma patologia e sim como algo biológico e obrigatório; as celebra-
ções do empoderamento feminino, que diz respeito à autonomia da mulher no
meio; a nova definição para a palavra Queer, que engloba os direitos de todas
as pessoas de gênero e sexualidade dissidentes; os desafios da definição de
feminilidade, baseado nas mulheres de classe média e alta.

Segundo Lorber (1997), o feminismo negro nos Estados Unidos é focado na


feminilidade e cultura que são importantes para a identidade e não podem ser
deixadas de lado; na nova estrutura de poder diferente da vivida por homens e
mulheres brancas; na resposta ao Movimento de Direitos Civis e ao racismo e
também ao Movimento Feminista Convencional; na interseccionalidade de fe-
minismo, banindo desigualdades e opressões sofridas pelas mulheres negras.

Duas das grandes precursoras deste movimento são Angela Davis e Alice
Walker, ativistas feministas e intelectuais que refletem a experiência da autoria
feminina negra. Angela Davis afirma que “devemos subir todas juntas”, isso in-
clui homens e mulheres independente de raça ou cor, queer ou não, o impor-
tante é que todes compartilhemos do apoio coletivo contra as desigualdades
sociais e civis. Alice Walker, por meio da personagem Celie, diz que a mulher
negra é a “mula do mundo”, com isso, entendemos que os traços das antepas-
sadas, escravizadas, ainda permanecem nos dias de hoje, o que dá a ideia de
carregar o peso nas costas por ser mulher e negra (BEIRUTTI, 2012). Ainda, em
The color purple, e em outros de seus escritos, Walker externa questões de espi-
ritualidade de mulheres negras.

Walker (1983) prefere referir-se ao feminismo negro como “mulherismo”,


pois está enraizado na história das mulheres negras a opressão racial e de gêne-
135

ro. A partir desse pensamento, outras reflexões acerca de “mulherismos” surgi-


rão. Esse termo utilizado pela autora remete a uma dicotomia entre as “mulhe-
ristas” (mulheres negras) e as “feministas” (mulheres brancas), o que ao mesmo
tempo causa uma junção, pois umas dependem das outras, assim como, o lilás
é para a lavanda.

O termo feminismo negro também deixa muitas mulheres afro-


-americanas desconfortáveis, porque desafia essas mulheres
negras a confrontarem seus próprios pontos de vista sobre
sexismo e opressão das mulheres (COLLINS, 1996, p. 13).

Doravante Collins (1996), muitas mulheres afro-americanas não se sentem


confortáveis ao utilizarem o termo “feminismo negro”, visto que são forçadas a
retomarem suas histórias refletindo acerca das opressões sofridas.

INTERSECCIONALIDADE
O conceito foi incorporado por Kimberlé Crenshaw, na década de 1980,
quando ela aplicou essas conexões no âmbito da hierarquia social. Porém, vi-
nha sendo discutido por outras intelectuais negras, tais como, Lélia Gonzalez,
Chimamanda Adichie, Conceição Evaristo, Angela Davis, Alice Walker, entre ou-
tras pessadoras. Para Crenshaw, a interseccionalidade pode ser compreendida
como uma metáfora para entender as maneiras pelas quais várias formas de
desigualdade ou opressão se constituem. Essas formas de opressão e de desi-
gualdade criam obstáculos e, muitas vezes, não podem ser entendidas dentro
das maneiras convencionais de pensar sobre o antirracismo ou o feminismo ou
quaisquer outras estruturas de defesa da justiça social (CRENSHAW, 2017).

A teoria interseccional é considerada um dos maiores paradigmas na teo-


rização feminista e antirracista, na atualidade. E, embora seja algo potente para
levantar debate acerca do sujeito interseccionado por eixos de subordinação,
tem-se falado pouco sobre como estudar a teoria interseccional como meto-
dologia (MCCALL, 2005). Entretanto, especialistas em estudos feministas vêm
pensando uma forma de articular a interseccionalidade como uma ferramenta
teórico-metodológica capaz de entender como as opressões simbólico-discursi-
vas e estruturais estão articuladas dentro das estruturas sociais.

Inclusive, Akotirene (2019, p. 44), deixa claro que “a interseccionalidade nos


instrumentaliza a enxergar a matriz colonial moderna5 contra os grupos trata-
dos como oprimidos”. Uma maneira de compreender os eixos de discrimina-
ções estruturais dominantes – cis-heteropatriarcado, racismo e capitalismo – na
sociedade, seria através do desenvolvimento de estudos produzidos no campo
5
“Tal matriz colonial moderna remete a um lugar onde o cisheteropatriarcado continua em espaços de poder, usufruindo de privilé-
gios herdados desde o Brasil Colônia, e, oprimindo nas mais variadas formas os diferentes grupos pertencentes às minorias sociais”
(ARAGÃO JÚNIOR, 2020, p. 13).
136

discursivo das avenidas identitárias. E, assim, pensar de que forma a sobreposi-


ção dessas avenidas produz eixos de subordinação.

Diante disso, Crenshaw (2002) diz que a interseccionalidade pode ser uti-
lizada como um mecanismo que busca capturar as consequências estruturais
e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. A intersec-
cionalidade, como afirma Mbandi (2019), aponta para várias possibilidades de
análise, levando em consideração os entrelaçamentos dos marcadores sociais.
Podendo, então, viabilizar à construção de algumas vertentes, tidas como abor-
dagens sistêmicas, construtivistas, entre outras.

CELIE
A protagonista da ficção, Celie, é uma garota afro-americana de 14 anos,
que vive com os pais e os irmãos. Ela é abusada sexual e moralmente por seu
padrasto, com quem teve uma filha, que ao nascer foi levada para a floresta, e
um filho que possivelmente foi morto por Mr.

A personagem era semianalfabeta e escrevia cartas para Deus e para sua


irmã mais nova, Nettie, relatando acontecimentos do seu cotidiano, como vio-
lências sofridas, questionamentos sobre seu eu interior entre outras coisas.
Nettie seria entregue para Mr. em troca de uma vaca, porém, por ser muito
jovem e sem experiência Albert decidiu ficar com Celie.

A vida de Celie começa a mudar com a chegada de Shug Avery na cidade,


sobretudo, pois a cantora de Blues se hospedou na casa de Celie e Albert. No
desenrolar da história, Celie se apaixona por Shug e elas têm um caso de amor.

Celie era mulher, negra, mãe, escravizada e queer, era jogada de encon-
tro ao fluxo do trânsito colonial5 contra mulheres negras, em uma encruzilhada
onde foi atingida constantemente pelo machismo, pelo racismo e por múltiplas
violências. Essa reflexão surgiu a partir da visão de interseccionalidade de Carla
Akotirene:

A interseccionalidade visa dar instrumentalidade teórico-meto-


dológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e
cisheteropatriarcado – produtores de avenidas identitárias em
que mulheres negras são repetidas vezes atingidas pelo cruza-
mento e sobreposição de gênero, raça e classe modernos apara-
tos coloniais (AKOTIRENE, 2019, p. 19).

Esse pensamento se refere à interseccionalidade que, conforme afirma Ri-


beiro (2018, p. 93 apud CRENSHAW, 1989), “é uma conceituação do problema
que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação en-
137

tre dois ou mais eixos da subordinação”, isto é, trata-se do cruzamento de cate-


gorias como, gênero, classe, raça entre outros fatores, que, ao se encontrarem,
geram novas formas de opressões e privilégios. Celie se emancipa a partir da
descoberta de uma nova forma de amar, após desfrutar os prazeres de relações
sexuais com outra mulher, Shug Avery. Conforme afirma Costa (2016, p. 7), Celie

vivencia como o estágio do espelho que consiste basicamente


do reconhecimento de sua individualidade perante o meio so-
cial, e que tal movimento corrobora para a construção da iden-
tidade de mulher livre das dominações exercidas pelo homem.

A construção de si, de uma mulher negra queer livre para amar quem
ela quiser, para ser quem ela quiser, sem que nenhum homem exerça domi-
nação contra ela, a ponto de violar sua identidade. Esta é Celie, uma mulher
emancipada.

QUEERIFICAÇÃO
O termo queer, no contexto anglófono, pertencia às periferias das subjeti-
vações de gênero e sexualidade. Para Safatle (2015), o sentido original da pala-
vra queer se referia a algo que era excêntrico, estranho, bizarro, e passou a ser
utilizado como forma negativa contra pessoas de gênero e sexualidades dissi-
dentes a partir do século XIX. Um exemplo clássico foi a prisão do escritor inglês
gay Oscar Wilde, cuja palavra queer havia sido utilizada para designá-lo como
anormal, por volta do fim do século XIX. Segundo Figueiredo (2018, p. 43), “nos
anos 1980, porém, a palavra foi reivindicada pelos grupos LGBT num processo
de ressignificação em que se tornou valorativa”.

A partir dessa conceituação, surge a “queerificação” ou “queerização” com


o intuito de rupturas de paradigmas tidas como segregacionistas em uma so-
ciedade de base cis-heteropatriarcal. Para tanto, vejamos a imagem a seguir,
referente ao verbo “queerizar”.
138

Figura 1 – Processo de queerificação5

Fonte: x próprix autor.

A queerificação de Celie, em The color purple, acontece a partir da investiga-


ção dos enunciados transitivos em que há ocorrências dos pronomes “I” e “me”,
produzidos pela personagem, tratando-se de uma construção de si6 . Tendo em
vista que, somos construídos discursivamente como efeito de atos de identida-
de que desempenhamos nas nossas performances (ARAÚJO, 2014).

Queerificar o corpo Celie, é um processo de desessencializar o que é tido


como essencial na nossa sociedade interseccionalmente falando, Celie é uma
mulher negra, queer, mãe, o que refuta a ideia ser uma mulher branca cis e he-
terossexual com privilégios; “desestabilizar” as estruturas da sociedade, pois o
corpo desta personagem, ainda que seja fictícia, gera certo incômodo no meio
onde ela vive, talvez não só por ser queer, mas por ser negra, e por “desnorma-
tizar” o que é apresentado como feminino, pelo fato de que ninguém nunca a
ajudou a subir em carruagens, assim como faziam com Soujorner Truth (2014),
que pergunta: “eu não sou uma mulher?”.

Celie pode ser um exemplo, não só para as mulheres negras e/ou queer,
mas para as pessoas que se veem como ela e não se sentem seguras de ser
quem realmente são. Por isso, é importante a queerificação de nossos corpos,
nossa linguagem, para que em algum momento o indivíduo possa viver em so-
ciedade, sem que ande na rua com medo de ser quem realmente é.

5
Baseado em (ARAÚJO, 2014).
6
Investigação concretizada na dissertação do autor desse artigo.
139

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A produção desse capítulo possibilitou uma reflexão crítica acerca da que-
erificação de Celie. Ademais, também foi possível fazer uma retomada histórica
acerca das contribuições do feminismo negro, do queer, da interseccionalidade
e seus desdobramentos para a queerificação.

Em resumo, “queerificar” ou “queerizar” o corpo de Celie faz com que pen-


semos em estratégias para queerificarmos nossos corpos e, assim, resistirmos
às multiplas violências que sofremos quando somos jogados de forma involun-
tária nas encruzilhadas das opressões onde o racismo, o capitalismo e o patriar-
calismo têm poder. Vejamos isso como uma forma de unificarmos as lutas das
minorias contra as múltiplas violências do sistema opressor da sociedade.

Enfim, devemos “queerificar” para que possamos tensionar os muros dos


preconceitos a ponto de desestabilizar as identidades tidas como essencialistas
e naturalizadas do gênero, sexo e desejo (LOURO, 2004). Vale ressaltar que, a
linguagem também é um meio pelo qual pode-se “queerificar”, pois, partindo da
vertente funcionalista, ou melhor, da Linguística Sistêmico-Funcional, a língua
funciona como um sistema de escolhas com potencial de significados. A lingua-
gem, ou Sistema Semiótico Social, possibilita acessar a representação. A língua
não só representa mas também constrói nossa visão de mundo baseando-se
nos propósitos comunicativos e contextuais.

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POSFÁCIO

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