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DISSIDÊNCIAS DE GÊNERO
E SEXUALIDADE
1ª Edição
Recife, 2022
CORPO EDITORIAL
Ailton Gomes da Silva Júnior
Bruno Veloso de Farias Ribeiro
Iran Ferreira de Melo
José Amaro da Costa
Richard Fernandes de Oliveira
REVISÃO
Iran Ferreira de Melo
PROJETO EDITORIAL:
Gabriel Santana
Rebeka Vivyan
PRODUÇÃO GRÁFICA:
Carlos Alberto Ferreira
Fábio Antônio Menezes
Jader Matias de Oliveira
COORDENAÇÃO:
Felipe Brito de Lima
22-138035 CDD-306.43
Gabriel Rivas
vice-reitor
12 Capítulo 1:
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS SOBRE A MULHERIDADE REPRODUZIDAS
PELO DISCURSO PEDAGÓGICO HEGEMÔNICO NO LIVRO DIDÁTICO DE
LÍNGUA PORTUGUESA
Ana Lorena dos Santos Santana
24 Capítulo 2:
QUEERIZANDO O PASSADO: ENTRELAÇAMENTOS ENTRE A ESCRITA DA
HISTÓRIA E A TEORIA QUEER
Anne Raquel da Silva Nascimento
38 Capítulo 3:
PERFORMATIVIDADE LINGUÍSTICA EM NOMES POPULARES
SEXUALIDADES
Bruno Pacheco de Souza
52 Capítulo 4:
UM OUTRO LADO DO ESPELHO: DISTÚRBIOS ALIMENTARES DE
EMAGRECIMENTO NA POPULAÇÃO DE TRANSMASCULINOS
Iara Luzia Henrique Pessoa
66 Capítulo 5:
DANDARA – AÇÕES DE CIDADANIA EM GÊNERO E SEXUALIDADE
Iran Ferreira de Melo
Capítulo 6:
108 Capítulo 8:
CORPOS NA EDUCAÇÃO: AS PESSOAS NÃO-BINÁRIAS NO AMBIENTE
ESCOLAR
Rivaldo Mendes da Silva
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Capítulo 9:
ENTRE PERNAS, LEITO DE VIÚVAS E PEDRAS JOGADAS: A TRANSGRESSÃO
FEMININA EM ANA DE AMSTERDAM, BÁRBARA E GENI DE CHICO
BUARQUE
Roberta Moura Cavalcanti
132
Capítulo 10:
UMA REFLEXÃO CRÍTICA ACERCA DA QUEERIFICAÇÃO DE CELIE EM THE
COLOR PURPLE
Wesley Sousa Rodrigues
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APRESENTAÇÃO
Enquanto escrevo esta apresentação, continuamos a viver a maior crise sa-
nitária e social do século, a pandemia da COVID-19. Até agora não sabemos as di-
mensões múltiplas que esse fenômeno causou, mas temos ciência de que muitos
dos terríveis números de mortes e infecções poderiam ter sido menores se me-
didas governamentais antivida não tivessem sido tomadas. Certamente, corpos
precarizados são os que mais têm sofrido duras consequências, como aqueles de
pessoas em situação de pobreza e de violência, bem como de pessoas que foram
obrigadas a estar em convívio com aqueles que lhes causam dor e sofrimento só
por serem quem são etc.
O capítulo inicial é de Ana Lorena dos Santos Santana, que nos dá amostra
de seus primeiros pensamentos sobre mulheridade e discurso em materiais didá-
ticos brasileiros. Partindo da posição de que homens e mulheres são, na maioria
das vezes, representades diferentemente em textos que circulam na sociedade,
a autora toma como corpus os textos multimodais veiculados em seis coleções
do Livro Didático de Língua Portuguesa, do Programa Nacional do Livro Didático,
do período de 2020-2023. Seu interesse está em analisar como a mulheridade é
construída por tais recursos semióticos, por meio de uma arquitetura teórica ba-
seada em estudos críticos do discurso, psicologia social e estudos sobre gênero e
sexualidade.
9
Também, como José Amaro, numa esteira educacional, Rivaldo Silva, segue
os pressupostos pedagógicos da teoria queer para questionar a presença/ au-
sência de corpos não-binários na educação básica. O autor parte do princípio de
que pessoas não-binárias precisam acessar à educação pois é um direito, mas
que é negado, muitas vezes, pelo desconhecimento e preconceito que permeiam
não somente o ambiente escolar. Ancora-se na perspectiva discursiva de Foucault
para dizer que pessoas não-binárias fogem do dispositivo sexo, uma vez que es-
tão no entrelugar, onde não se encaixam na dualidade homem-mulher. Seu argu-
mento principal é que sem uma educação voltada à diversidade e à diferença, a
escola permanecerá silenciando vidas não-binárias e LGBTQIA+.
NOTAS INTRODUTÓRIAS
Ao percebermos as fissuras humanas ao longo do nosso processo histó-
rico, não podemos deixar de concluir que as mulheres fazem parte do grupo
que permeia as camadas mais profundas dessas cicatrizes. No entanto, vemos
que já é mais do que o momento de deixarmos de olhar por entre as frestas do
preconceito e impedir que o apagamento das mulheres, ao longo da caminhada
humana, ainda reverbere.
1
Doutoranda em Linguística Aplicada pelo Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada (PosLA) da Universida-
de Estadual do Ceará – UECE. Desenvolve pesquisas na área dos Estudos Críticos do Discurso, com foco na Análise de
Discurso Critica, Letramento Crítico, Gramática do Design Visual, Identidade, Decolonialidade e Relações de Gênero..
13
De acordo com Coracini (1999, p. 33), os materiais didáticos, que são usa-
dos nos espaços escolares, têm como atribuição “preparar o cidadão para a
vida em sociedade”, todavia tratam temas sociais, como os avanços sociais que
envolvem as mulheres, de maneira tímida e, muitas vezes, sob uma perspectiva
biológica, mascarando preconceitos estruturados pelas matrizes do patriarca-
do. Desvincular tais representações das relações sociais no LDP seria apagar
da história todo o percurso trilhado para combater o reducionismo capaz de
manipular ações ético-políticas legítimas, tão pertinentes a um novo conceito
de modernidade.
2
“that any actual instance of language in use is a ‘text’” (tradução nossa).
3
“involve not only language but also visual images and sound effects” (tradução nossa).
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Delimitação do corpus
Dessa forma, nossa análise partirá das obras didáticas abaixo elencadas:
•“Singular e Plural: leitura, produção e estudos de linguagem” (Editora Mo-
derna – código da coleção: 0355P20012);
REFERÊNCIAS
BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad.
Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design.
London: Routledge, 2006.
INTRODUÇÃO
O presente capítulo é fruto da pesquisa que venho desenvolvendo atual-
mente, no mestrado em História da Universidade Federal Rural de Pernambu-
co1. A pesquisa, ainda não finalizada, refere-se ao estudo do grupo social das
travestis e à representação das suas corpas em jornais pernambucanos, ora
sendo marginalizadas, ora estampando as páginas de cultura. O recorte tempo-
ral explorado no processo de escrita da dissertação compreende os anos entre
1970 e 1985. A escolha se dá por corresponder aos anos que sucederam a pro-
mulgação do Ato Institucional nº5 (AI-5)2 , aos chamados anos de chumbo3 e ao
período que corresponde ao início da abertura política.
1
Sou transmasculine e utilizo socialmente o nome Caíque Nascimento. Atualmente, mestrande em História Social da Cultura Regional
pela Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRPE; licenciade em História pela Universidade Católica de Pernambuco – Unicap.
Desenvolvo pesquisas a partir das perspectivas de gênero, sexo e sexualidade como categorias de análise, sabendo que essas tam-
bém atravessam a minha pele. E-mail: caiquesnasc@gmail.com.
1
Este trabalho faz parte do projeto “Narrativas queer(izadas): diálogos entre historiografia, saberes subalternos e teoria queer”, sob
a coordenação e orientação do Prof. Dr. Natanael Duarte de Azevedo, financiado com a bolsa de Pós-Graduação pela Fundação de
Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE). A referida pesquisa está circunscrita às atividades da Linha de
Pesquisa “Linguagem, Gênero e Relações de poder: a ascensão das minorias”, do Laboratório de Estudos da Linguagem, Literatura e
História (LANGUE), disponíveis em www.langueufrpe.com.
2
O Ato Institucional nº 5 (AI-5) foi assinado em 13 de dezembro de 1968 pelo Presidente marechal Costa e Silva.
3
Considerado como o período de maior repressão da ditadura cívico-militar no Brasil. Corresponde ao período que vai da institucio-
nalização do AI-5 até o final do governo Médici.
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Como vocês já devem ter percebido até aqui, precisei fazer algumas esco-
lhas no que se refere ao uso da linguagem escrita, justamente por entender que
esta é uma construção social e histórica, que varia de uma cultura para outra
e que pode ser modificada (FRANCO; CERVERA, 2006). Sabendo que esse tipo
de linguagem reflete as desigualdades de gênero e naturaliza a exclusão das
mulheres e das pessoas que não se enquadram dentro do binarismo de gê-
nero, uma das escolhas para este texto, por exemplo, foi a utilização do termo
“corpas”. Além disso, algumas outras escolhas foram feitas para questionar a
construção do masculino como hegemônico na linguagem.
UM BREVE MAPEAMENTO
As dissidências sexuais e de gênero raramente são temas priorizados pela
historiografia, tanto que foi preciso criar epistemologias outras para que essas
corpas se tornassem agentes da História. Nessas criações, o movimento de tra-
zer para o centro aquelas que foram lançadas para a margem da sociedade teve
início na década de 1960, com o surgimento da História das mulheres e com
os ideais e objetivos do movimento feminista. Compreendeu-se, com isso, que
quanto mais marginalizadas, mais as corpas são consideradas como não impor-
tantes e possuem as suas trajetórias e identidades apagadas. A historiadora
Joan Scott contribui para o debate sobre a História das mulheres publicando,
em 1992, o capítulo História das mulheres, compondo o livro A Escrita da História:
novas perspectivas, organizado por Peter Burke.
Não é por acaso que, nos anos 1980, no debate entre feministas “cons-
trutivistas” e feministas “essencialistas”, a noção de “gênero” torna-se-ia
o instrumento teórico fundamental para conceitualizar a construção
social, a fabricação histórica e cultural da diferença sexual, diante da
reivindicação da “feminilidade” como substrato natural, como forma de
uma verdade ontológica.
4
Pessoas cis, cisgêneros ou não trans são aquelas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído socialmente, ao nascer.
27
5
Renan Quinalha discorre sobre a utilização do termo “hétero-militar” por compreender que, em todo regime político, há políticas
sexuais e, na ditadura brasileira (1964-1985), não foi diferente, pois havia uma associação entre o regime autoritário e a regulação das
sexualidades. Os militares não utilizavam apenas os aspectos políticos contidos na Doutrina de Segurança Nacional, “mas também
morais, ao associar a homossexualidade a uma forma de degeneração e de corrupção da juventude” (QUINALHA, 2017, p. 25). Afon-
so-Rocha e Pereira propuseram a reescrita deste termo para ditadura “cis-hétero-militar”, por compreenderem “a produção do corpo
e das sexualidades em torno da cisgeneridade” e para lançar luz sobre a face oculta da “dimensão cisnormativa da ditadura brasileira”
(2019, p. 6). Utilizo o termo cis-hétero-militar, neste texto, justamente por concordar com esta proposta de reescrita.
6
Lésbicas, gays, bissexuais, trans e travestis, intersexuais, assexuais e demais existências.
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travestis e homossexuais, fato que atesta o poder de confronto que essas exis-
tências carregavam.
Por outro lado, James Green (2019) discorre, em Além do carnaval: a ho-
mossexualidade masculina no Brasil do século XX, acerca das travestis no mer-
cado da prostituição. O autor ressalta que a prostituição vinha aumentando,
desde o início da década de 1970, como “reflexo da crescente comercialização
e mercantilização do sexo na sociedade brasileira” (GREEN, 2019, p. 413) e da
desigualdade social. As corpas travestis, muitas vezes, tinham na prostituição a
sua única fonte de renda por não conseguirem exercer outras atividades finan-
ceiras – estigma que carregam até hoje. Esse contraste nos registros históricos
só demonstram a ambiguidade dessas corpas sendo transformadoras políticas
por vias das artes cênicas, mas também vítimas da sociedade ao terem suas
vidas objetificadas.
Já no livro Travestis: carne, tinta e papel, escrito por Elias Veras (2019), o histo
riador analisa, por meio dos jornais cearenses, como ocorreu a consolidação
da identidade travesti na cidade de Fortaleza; assim como os discursos sobre a
travestilidade que eram construídos nesse tipo de mídia impressa. A obra é de
extrema importância para analisarmos como os estigmas afetavam a vida das
travestis e, a partir dela, pensarmos como reescrever a História sem recair no
discurso hegemônico que marginaliza e criminaliza a corpa travesti.
EPISTEMOLOGIA DISSIDENTE
A ruptura dos padrões hegemônicos da História teve seu início com a ori-
gem da História das mulheres e com as políticas feministas, durante a década
de 1960; nesse período, as acadêmicas feministas reivindicavam que as mulhe-
res fossem consideradas como sujeitos da história. A emergência desse novo
campo, portanto, foi possível graças à inserção das mulheres na academia e
ao contato estabelecido com autoras e perspectivas feministas. É importante
salientar que, neste período, as mulheres que estavam inseridas na academia
eram, ainda que fossem cis, brancas e pertencentes às classes mais abastadas
da sociedade. Mesmo assim, escrever sobre a História das mulheres se tornou
um desafio político para os/as acadêmicos/as que se viam enfrentando as au-
toridades dentro das universidades ao tentarem estabelecer novas formas de
escrever a História (SCOTT, 1992).
riam os padrões a serem seguidos pelos seus pares. Desse modo, o julgamento
daquilo que poderia ser aceito ou não, no campo da História, estaria baseado
na avaliação daqueles que detinham o poder. Refletindo sobre isso, Joan Scott
(1992, p. 71) escreve que, para os historiadores tradicionais, “[...] a história é o
conhecimento do passado obtido por meio de uma investigação desinteressada
e imparcial [...] e universalmente para quem quer que tenha dominado os pro-
cedimentos”; nesse caso, homens cis, héteros, brancos e eurocentrados.
Por mais que essa diferenciação fosse renegada pela história hegemônica,
foi através dela que o estudo sobre as mulheres conseguiu ser legitimada, isso
porque a História, nesse tempo, estava em processo de mudança, fato que tor-
nou a disciplina favorável e aberta às transformações. Esse novo “empreendi-
mento histórico” (SCOTT, 1992, p. 84), apesar de sua proposta, não estava den-
tro do hall das questões consideradas como sendo as mais importantes para
a disciplina; e seu caráter político e subversivo era deslocado para uma zona
separada. Esta transferência nos leva a crer que o lado político era colocado
como suspeito de fazer uso da parcialidade e que, consequentemente, entraria
em descrédito pelos historiadores detentores do poder.
Acerca disso, segundo Judith Butler (2015) argumenta que o termo ‘mulher’
é um devir, não se podendo afirmar onde teve o seu início, ou qual será o seu
fim. Entretanto, conforme explica João Beraldo (2020), as feministas americanas
que propuseram o uso da categoria ‘gênero’, o fizeram como medida paliati-
va para denunciar o caráter social e biologizante das distinções estabelecidas
entre o sexo feminino e masculino. É notório que houve, gradualmente, uma
substituição do termo ‘mulheres’ pelo termo ‘gênero’ em publicações de livros
e artigos nos meados de 1980. Isso ocorreu porque a palavra gênero, por ser
mais neutra, não denotava um posicionamento político e, por isso, não era uma
ameaça à História tradicional.
Foi Teresa de Lauretis quem proferiu pela primeira vez a expressão ‘teoria
queer’, em 1990, durante uma palestra ministrada na Universidade da Califór-
nia. A sua utilização serviria para opor-se aos estudos gays e lésbicos e para
desenvolver uma crítica à visão hegemônica que se tinha da cultura Ocidental
(BRULON, 2018). Ainda segundo a autora, “naquele momento, a teoria queer era
um projeto crítico que tinha o objetivo de resistir à homogeinização cultural dos
‘estudos gays e lésbicos’ que estavam pela academia, tomados como um campo
de estudo singular e unificado” (LAURETIS, 2019, p. 398).
Após ser usada para se referir a Oscar Wilde, a palavra foi associada au-
tomaticamente à homossexualidade, criando um estigma que só foi superado
com o advento dos movimentos de liberação homossexual. A partir desse epi-
sódio, o queer passou a significar o posicionamento dos indivíduos contra o
sistema de normas reguladoras de gênero, independentemente do seu local de
origem. Contribuindo com essa discussão, Richard Miskolci (2017, p. 25) afirma
que:
Acerca disso, o historiador Bruno Bulon (2018, p. 49) aponta que “[...] a
teoria queer propõe a desconstrução dos regimes de identidade na medida em
que estes criam a marginalização dos sujeitos e seu consequente silenciamen-
to”. Os avanços dos estudos queer trouxeram também críticas aos historiadores
tradicionais que apontam a Teoria Queer como sendo politizada e anacrônica –
vale ressaltar aqui que não podemos mais acreditar em uma História neutra ou
despolitizada. Sendo assim, ao trazermos a união entre a teoria, a prática e a po-
lítica podemos lançar luz sobre as vidas que foram impedidas de serem vivíveis.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista o que foi dito até aqui, ao queerizarmos a História, pode-
remos contribuir para a reformulação dos saberes que endossam as normali-
zações e silenciam as vozes subalternas. A História, como campo que está em
constante disputa e que é tensionada pela política, lança luz sobre os lugares
sociais das relações de gênero, sexualidade, raça e classe (SCOTT, 1992). O en-
trelaçamento entre a História e a Teoria Queer, nesse cenário, é importante para
que possamos pensar em como tornar a vida daqueles/as que estão à margem
o mais vivível possível e para que possamos desenvolver epistemologias outras.
Essa disciplina, por muitos anos, foi utilizada como instrumento de colo-
nização por homens brancos, europeus, heterossexuais e cisgêneros. Desse
modo, em reafirmação, não há como excluir a política, as relações de poder e as
experiências das corpas dissidentes, uma vez que todas elas são vítimas desse
processo e que também devem ser reconhecidas enquanto produtoras de dis-
35
REFERÊNCIAS
AFONSO-ROCHA, Ricardo; PEREIRA, André Luís Mitidieri. Por quem deveríamos
chorar? Deimopolítica e ditadura cis-hétero-militar brasileira. In: Seminário In-
ternacional Desfazendo Gênero, 4., 2019, Recife. Anais... Campina Grande: Re-
alize eventos, 2019. p. 1-12. Disponível em: http://www.editorarealize.com.br/
artigo/visualizar/64202. Acesso em: 30 maio. 2021.
BRULON, Bruno. Normatizar para normalizar: uma análise queer dos regimes
de normalidade na historiografia contemporânea da homossexualidade. In:
NETO, Miguel Rodrigues de Sousa; GOMES, Aguinaldo Rodrigues. História e te-
oria queer. Salvador, BA: Editora Devires, 2018. p. 47-76
BUTLER, Judith. Corpos que ainda importam. In: COLLING, Leandro. Dissidên-
cias sexuais e de gênero. Salvador: EDUFBA, 2016. p. 19-42.
FRANCO, Paki Venegas; CERVERA, Julia Pérez. Manual para o uso não sexista
da linguagem: o que bem se diz...bem se entende. Paraná: [s.n], 2010. Dispo-
nível em: https://bibliotecadigital.mdh.gov.br/jspui/handle/192/745. Acesso em:
7 maio. 2021.
FRY, Peter; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. São Paulo: Abril Cul-
tural: Brasiliense, 1985.
LOURO, Guacira Lopes. Teoria queer: uma política pós-identitária para a edu-
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MORANDO, Luiz. Por baixo dos panos: repressão a gays e travestis em Belo Ho-
rizonte (1963-1969). In: GREEN, James N.; QUINALHA, Renan (org.). Ditadura e
homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade. São Carlos:
EdUFSCar, 2015. p. 53-81.
OLIVEIRA, Neuza Maria de. Damas de paus: o jogo aberto dos travestis no espe-
lho da mulher. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1994.
PRECIADO, Beatriz. Multidões queer: notas para uma política dos “anor-
mais”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 19, n. 1, p. 11-20, 2011.
Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104-
026X2011000100002. Acesso em: 10 maio. 2021.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educa-
ção&Realidade, Porto Alegre, v. 20, n.2, 1995.
SCOTT, Joan. História das mulheres. In: BURKE, Peter (org.). A Escrita a história:
novas perspectivas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992.
SILVA, Sandro José da. Quando ser gay era uma novidade: aspectos da ho-
mossexualidade masculina na cidade do Recife na década de 1970. 2011. 214 f.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidad Federal Rural de Pernambu-
co, Recife, 2011. Disponível em: http://www.tede2.ufrpe.br:8080/tede2/handle/
tede2/4798. Acesso em: 4 nov. 2020.
VERAS, Elias Ferreira. Travestis: carne, tinta e papel. 2. ed. Curitiba: Appris, 2019.
VERAS, Elias Ferreira; PEDRO, Joana Maria. Os silêncios de Clio: escrita da histó-
ria e (in)visibilidade das homossexualidades no Brasil. Revista Tempo e Argu-
mento, Florianópolis, v. 6, n. 13, 2014. p. 90-109.
CAPÍTULO 3
38
INTRODUÇÃO
Numa cultura “falocêntrica”, o pênis é sempre visto como um instrumento
de poder e soberania, sendo representado com vocábulos relacionados à for-
ça, a armamento, à exaltação, além de ser significado comumente por objetos
de formatos anatômicos semelhantes ao membro. Em contrapartida, o ânus é
visto socialmente como lugar abjeto e desprezível. Por mais que o ânus possua
função sexual, principalmente na relação homoerótica, a sua referenciação é
geralmente feita através de vocábulos depreciativos, quando não são silencia-
dos e tidos como tabu.
Apesar de, no Brasil, a bunda ser considerada fetiche sexual, o sexo anal
ainda é mal visto pelos defensores da moral e dos bons costumes. Numa so-
ciedade heteronormativa, o ânus do homem cisgênero não deve possuir papel
sexual, e quem usufrui desse órgão para fins prazerosos acaba indo de encon-
tro aos padrões pré-estabelecidos pelo sistema normatizador de gênero e sexo
nessa sociedade. Já na relação heteroerórica, quando o coito anal acontece, há
um silenciamento sobre o assunto. Paira sobre os indivíduos o discurso de ine-
xistência da prática anal entre os casais heterossexuais, em função da contun-
dente abjetificação do ânus.
1
Mestrando em Letras: Linguagem e Representações pela Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC. Atualmente é membro e
pesquisador do GUPEMA - Grupo de Pesquisa e Estudos em Mídias Alternativas e Midiativismo.
39
Em consonância com tal discussão que este texto propõe, de acordo com
Foucault (2015), que descreve diversas instituições de poder que funcionam
como controle dos indivíduos por meio de normas, a fim de criar uma socieda-
de biopolítica, de regulação dos corpos. A escola, cuja normatividade habita em
sua constituição, é uma delas. Nas aulas de Ciências/Biologia, ao falar do sexo, o
ânus nunca é mencionado como recurso sexual. Ao descrever o pênis, a vagina
e o ânus, tem-se no discurso escolar que o ânus é unicamente um canal de deje-
tos, não sendo considerado um órgão sexual, ou melhor, dispositivo de prazer.
O mesmo acontece no seio familiar, quando se propõe a falar sobre sexo.
Para a família que dispõe a falar do assunto, descrevem tão somente o pênis e a
vulva como órgãos libidinosos. Jamais ousam a falar do ânus. Na Medicina não
é diferente. Talvez até seja um pouco pior. Neste segmento, o problema iniciou-
-se, tempos atrás, na Psiquiatria ao descrever quais corpos são ou não normais.
40
Todo corpo que fere às normas é estigmatizado e posto de lado pela sociedade.
O ânus jamais é discutido como recurso sexual. O prazer anal é silenciado nos
consultórios de Proctologia. Pensar no prazer anal e na estimulação da próstata
é algo proibido pela heteronorma imposta na sociedade médica.
Para entender bem como dirigir esta pergunta em face dos objetivos men-
cionados, cabe conhecermos com exatidão o espaço onde a pesquisa está acon-
tecendo. O twitter foi criado no ano de 2006, com objetivo de gerar interação
entre os seus usuários sobre assuntos aleatórios do cotidiano. Desde o surgi-
mento, de acordo com o site Maiores e Melhores (2020), a rede social ganhou um
enorme crescimento no Brasil e no mundo ao alcançar a marca de 326 milhões
de usuários. O ciberespaço passou a ser muito utilizado por políticos partidá-
rios, digitais influencer, e por gays com conteúdos eróticos (postagens de vídeos,
imagens e mensagens libidinosas). Em seus documentos de políticas, o twitter
restringe a publicação de imagens, vídeos ou mensagem de conteúdos eróti-
cos, todavia, não há, na prática, nenhuma restrição concernente a conteúdos
eróticos, a não ser que tal material publicado seja denunciado. Portanto, dia-
riamente, materialidades eróticas – legendas, mensagens, fotos e vídeos – são
publicados na rede social. Ao publicar uma imagem ou mensagem, diferentes
vocábulos são escritos para performatizar o ânus e o pênis. A escolha por essa
rede social dar-se por ser um ambiente onde se propaga conteúdos pornográfi-
cos sem haver tolhimentos, na prática, e por ter uma variedade de materialida-
des importantes para esta pesquisa.
METODOLOGIA
A pesquisa aqui desenvolvida dar-se-á início com levantamento bibliográ-
fico, leituras relacionadas ao tema, fichamento de livros e artigos. Estas ativi-
dades possuem objetivo de aumentar o referencial teórico e trazer luz ao des-
dobramento do resultado final da pesquisa. Por sua vez, o desenvolvimento se
valerá de uma abordagem qualitativa, pois, segundo Bauer (2008, p. 23) esta
“[...] lida com interpretações das realidades sociais, e é considerada pesquisa
soft [...]”, além de “[...] de dar poder ou dar voz às pessoas, em vez de tratá-las
como objetos [...]” (BAUER, 2003, p. 30). O método de procedimento que subsi-
diará esta pesquisa é o método observacional não participante que possibilita
de modo eficaz o elevado grau da precisão do objeto pesquisado.
Desse modo, a pesquisa busca, por meio da ACD, respostas para as inda-
gações acerca da heteronormatividade presente nas postagens do Twitter. Tam-
bém serão verificadas, nos enunciados, a subversão dos órgãos ânus e pênis
quando estes são representados por vocábulos de diferentes campos semân-
ticos. No processo dialético-relacional, a ACD é utilizada para verificar o signifi-
cado representacional e para investigar o que a pessoa quer construir ao falar
pênis e ânus utilizando de diferentes vocábulos, isto é, qual efeito de sentido é
causado a partir de quem fala.
OBJETO DE ESTUDO
Preti (1983) discute, em “A linguagem proibida”, ao tomar como base um
dicionário moderno do ano de 1903, as diferentes maneiras de nomear não só
órgãos genitais, mas também práticas de adultério, relações sexuais homo e he-
teroafetivas, dentre outros assuntos. O autor discorre sobre a linguagem obs-
cena na vida cotidiana dos brasileiros cariocas, com foco principal nos diálogos
da relação interacional. Outro ponto considerado importante e levantado pelo
autor é sobre a desmoralização da linguagem sexual, tida, muitas vezes, como
obscena por estudiosos linguistas. Segundo o autor (1983, p. 02):
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
O conceito de heteronormatividade, apresentado por Judith Butler (2019),
trata-se da matriz heterossexual presente na sociedade, onde possui objetivo
de organizar os corpos dentro daquilo que se tem por normal em um processo
de binaridade homem-mulher. Para Butler (2019), a performatividade da hete-
ronorma inicia no nascimento do indivíduo de descrevê-lo, por meio do órgão
genital, se é menino ou menina. A partir de então, o gênero é performatizado na
escolha do nome, através das cores, do modo de agir, de falar, enfim em todos
48
As concepções propostas por Butler (2019), em sua obra Corpos que impor-
tam: os limites discursivos do “sexo” serão fundamentais, neste estudo para com-
preender a abjeção ao ânus e às suas práticas sexuais, principalmente porque a
homossexualidade já é uma abjeção à heteronormatividade.
Com base nos objetivos da ACD, proposto por Fairclough (2016) e, no pro-
cesso da junção dos elementos relacionais com os dialéticos, a Análise Crítica
do Discurso propõe-se a analisar o texto com o olhar crítico, não pautando-se
tão somente em apontar as produções de sentido, mas também criticar essas
produções, isto é, dizer como deveriam ser, de acordo com parâmetros filosó-
ficos. “[...] A ACD é uma forma de ciência social crítica, projetada para mostrar
problemas enfrentados pelas pessoas em razão das formas particulares de vida
social, fornecendo recursos para que se chegue a uma solução. [...]” (FAIRCLOU-
GH, 2012 [2005], 312)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É preciso superação de práticas violentas por meio da linguagem para as-
sim combatermos questões homolesbotranfôbica que matam diariamente in-
divíduos cujos marcadores da sua subalternidade perpassam os seus corpos.
REFERÊNCIAS
ARARIPE, Max. Linguagem sobre sexo no Brasil. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999.
BARBOSA, Maria Raquel; MATOS Paula Mena; COSTA, Maria Emília. Um olhar
sobre o corpo: o corpo ontem e hoje. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/
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BAUER, Martin W.; GASKELL, George. (Org.) Pesquisa qualitativa com Texto,
Imagem e Som - um manual prático. 7ªEd. Petrópolis: Vozes, 2008.
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FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.
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SOUZA, Vivian Regina Orsi Galdino de. Vocabulário erótico-obsceno dos ór-
gãos sexuais masculino e feminino em português e italiano. Dissertação
(Mestrado em Estudos Linguísticos). Instituto de Biociências, Letras e Ciências
Exatas, Universidade Estadual Paulista, Campus de São José do Rio Preto, 2007.
51
INTRODUÇÃO
Sobre os sujeitos transgêneros masculinos a principal problemática que
observei acerca da questão dos distúrbios alimentares, seja anoréxico ou bu-
límico, é que o tema se mostrou na literatura científica brasileira no momento
da elaboração deste trabalho como inexistente. Logo, busquei em fontes inter-
nacionais produzidas em língua inglesa, mas não restringindo a países somente
com esta língua como oficial, mas escritos em tal língua.
O que nomeio como sujeitos trans, nesse trabalho, engloba não só trans-
gênero como transexuais, pois ambos tratam de pessoas que, de acordo com
Lanz (2015), transgridem o dispositivo binário de gênero, a conduta normativa
ou preestabelecida para a categoria de gênero que foi classificada ao nascer.
Assim como a categoria transexual ainda para Lanz (2015) é uma categoria que
surgiu atrelada ao poder médico, tida como uma condição patológica presente
53
No caso do gênero percebi que seja pela socialização como “fêmea” (for-
çada/imposta ou não) ou por serem designados “fêmea” ao nascer, os sujeitos
transgênero masculinos assim como outras identidades perpassadas pela femi-
1
Contudo, apesar da identidade trans ter sido retirada da caracterização dos transtornos mentais, ela ainda está na classificação
internacional de doenças (CID-11). Porém é considerada como condição relacionada à saúde sexual, sendo chamada agora de incon-
gruência de gênero, sendo ainda um termo problemático, por não só regular, patologizar e medicalizar o corpo trans. Mas, também,
regulamenta o acesso à saúde, assim como produz a binaridade entre congruente X incongruente, normal X anormal, que pressupõe
o corpo trans como anormal. Todavia, no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), ainda não foi revisto e a
identidade trans ainda é categorizada como disforia de gênero.
2
Coloquei aspas tanto no termo “fêmea” como “macho”, dado que ambos não estão para uma categorização biológica, mas sim
fictícia, tanto quanto a divisão binária dos gêneros entre somente homem e mulher (BUTLER, 2016).
3
Contudo, é importante ressaltar que sujeitos podem se identificar com o gênero masculino, em algum nível e não se colocar como
homem, assim como no caso do gênero feminino, como há em diversas identidades não binárias, assim como não se identificar com
nenhum dos dois, ou os dois de forma equivalente ou não.
54
ESTADO DA ARTE
É importante antes de iniciar a discussão acerca de transtornos alimenta-
res em sujeitos transmasculinos que seja feita uma definição mínima do que
seriam transtornos alimentares, mais especificamente anorexia e bulimia, por
serem o foco deste trabalho. De acordo com o Manual de Diagnóstico Estatís-
tico de Transtornos Mentais (DSM 5) ambos os transtornos alimentares supra-
citados têm alguns sintomas prevalentes em comum, isto é, uma preocupação
excessiva com o peso e imagem corporal. Assim como utilização de dietas exa-
geradamente restritivas e métodos purgativos como laxantes, vômitos induzi-
dos, diuréticos e exercícios excessivos com o objetivo de alcançar o corpo ideal.
Ainda de acordo com o DSM 5, mesmo que de maneira geral seja neces-
sário diagnosticar a pessoa com um único transtorno alimentar, é comum que
4
É importante que eu ressalte que não é toda a transmasculinidade que é perpassada continuamente pela feminilidade, mas sim no
sentindo de que, inicialmente, um bebê que têm uma vagina é significado como mulher, mesmo antes de ter saído do útero, sendo
rodeado de símbolos e signos da feminilidade perpassando esse sujeito. Nesse sentido, então esses sujeitos teriam a feminilidade
os perpassando, muitas vezes, antes de compreender sua própria identidade, não sendo, a feminilidade, aplicada de forma irrestrita
aos sujeitos com identidade transmasculina.
5
Disforia de gênero é um termo difundido e associado ao poder médico, patologização e normatização do corpo trans, porém, é um
termo que explicaria o desconforto que algumas pessoas trans sentem em relação ao seu corpo, e que cada vez mais está caindo
em desuso pela população trans, mesmo que alguns sujeitos da própria comunidade ainda se referenciem dessa forma. Porém, o
utilizamos como forma de nomear este desconforto em relação ao corpo, e não como categoria diagnóstica.
55
IMAGEM CORPORAL
A imagem corporal de um sujeito é aquela imagem que se tem na mente
do tamanho, contorno e forma do próprio corpo, assim como sentimentos as-
sociados a essas características e em relação a essas partes constituintes dos
56
corpos (SLADE, 1988 apud SATTLER; EICKMEYER; EISENKOLB, 2019). Uma per-
turbação dessa imagem é essencial para o diagnóstico diferencial de transtorno
alimentar (DSM-5, 2013), e apesar de não ser obrigatória, é muito comum em
sujeitos transgênero também (JONES et al, 2015). Relacionando-se com: “one’s
subjective experience with the body, and how it relates to gender identity” (MCGUIRE,
et al., 2016, p. 97), isto é, com a experiência subjetiva do sujeito com seu corpo
e como este se relaciona com a sua identidade de gênero.
Contudo, essa distorção na imagem corporal pode ser de dois tipos, as-
sociada a um desconforto com o gênero, como no caso de algumas pessoas
transgêneras, ou não, como no caso das pessoas com transtornos alimentares.
Contudo é importante evidenciarmos que a disforia de gênero7 e a dismorfia
corporal são tratadas como um único diagnóstico, em razão de que ambas es-
tão relacionadas à imagem corporal:
6
Termo associado ao poder médico e diagnóstico como citado anteriormente, marcado pelas questões psiquiátricas e psicológicas.
7
Ao utilizar o termo disforia de gênero estou usando um termo do poder médico para nomear um conjunto de sentimentos de
incompatibilidade entre o corpo desejado e o corpo real, e que aparece no DSM-5, ver nota 5.
8
“Disforia de gênero é erroneamente diagnosticada como imagem corporal distorcida (também conhecida como dismorfia corporal).
Dismorfia significa ‘sentimento negativo’ e está conectado às preocupações do paciente com o seu corpo, enquanto dismorfia conclui
que o problema do paciente é uma alucinação em que ele vê algo que não está lá, como gordura [...]. Ao não reconhecer outras
razões porque o paciente pode sentir desconforto corporal, as instituições arriscam a saúde futura de um paciente e efetivamente
apagam a identidade transgênero dentro de suas paredes” (DESHANE, 2016, p.89, tradução nossa)
9
Ver nota 5.
57
Destaco que tanto a dismorfia quando a disforia têm relação com a ima-
gem corporal desses sujeitos, o que de acordo com o estudo de Jones et al.
(2015), existe a hipótese de que pacientes homens transgênero teriam insatisfa-
ção com relação à imagem corporal não somente em partes sexuais (genitais),
mas no corpo como um todo. Contudo, não é o corpo material que está errado,
mas sim a classificação arbitrária e artificial que é tida pela sociedade em função
de um “sexo genital” (LANZ, 2015). Assim até as chamadas áreas neutras (pés
e mãos, por exemplo), também podem causar desconforto de acordo com Mc-
Guire et al. (2016) e Jones et al. (2015). O que poderia ser, de acordo com Lanz
(2015) por uma possível busca, influenciada pelo poder médico essencialmente
cis e heteronormativo da “recuperação” de uma congruência perdida. Mas que,
na verdade, ninguém sabe o que é ser a identidade que a pessoa diz que é, va-
mos sendo através de repetições compulsórias de atos performativos que são
monitorados e programados pela sociedade (LANZ, 2015; BUTLER 2016)
O sujeito que tem expectativas altas para si, pelo perfeccionismo, foi desig-
nado “fêmea” ao nascer ou socializado como tal, critica-se, tentando controlar
como o outro o percebe, tem mais risco de voltar-se para métodos de alimenta-
ção desordenada ou purgativos para controlar seu corpo (podendo ou não ter
10
Ver nota de rodapé 3, a feminilidade perpassa esse sujeito, muitas vezes, quando ainda no útero, podendo se estender pelos
primeiros anos de vida até o início da idade adulta para alguns sujeitos transmasculinos.
60
A QUESTÃO DE GÊNERO
Este trabalho trata de sujeitos que performam11 ou são acometidos por
distúrbios alimentares, através do que chamamos de alimentação desordena-
da, tal como sujeitos que têm como intuito a busca pela perfeição, de acordo
com o poder médico (DESHANE, 2016). O que poderia ser justificado por um dos
traços de sujeitos diagnosticados com transtornos alimentares ser o perfeccio-
nismo, tal como citado anteriormente, mas também está relacionado ao estere-
ótipo exposto na mídia acerca de como os sujeitos com distúrbios alimentares
devem ser beauty-seekers, ou seja, caçadores da beleza (DESHANE, 2016). Algo
que para Shrestha (2018) pode ser considerado como uma romantização da
doença psiquiátrica, na qual o único sujeito passível de sofrer do mal do trans-
torno alimentar seriam apenas mulheres cis, jovens, brancas, perfeccionistas e
de classe média alta (DESHANE, 2016).
Há, então, como colocado por Méllo (2012) uma dimensão microscópica do
corpo, no qual os mínimos detalhes que não são nem enxergados pelos olhos
11
Quando uso o termo performar estou em conformidade com Butler (2016) e seu uso da palavra performatividade de gênero, po-
rém a estendo para os transtornos alimentares, dado que as produções das noções restritivas da alimentação, exercícios exacerba-
dos, busca por um ideal normativo do corpo magro assim como a normalização das dietas, ou seja, um comportamento socialmente
sancionado de como devemos nos alimentar e constantemente buscar um corpo magro ideal, custe o que custar. Além do que
muitas vezes esses sujeitos abarcados por este trabalho tem um diagnóstico formal de transtorno alimentar, apesar de ter diversas
características diagnósticas ou fazer uso de métodos comuns em pessoas diagnosticadas com transtorno alimentar.
61
humanos são alvo de alterações. Tudo isto para que estes corpos se adéquem
a uma lógica binária (mulher/homem) ancorada nas ciências biológicas de que
se o corpo não se encaixa nessa lógica ele é nomeado como patológico (MÉLLO,
2012) ou abjeto, não digno de ser vivido (BUTLER, 2019). Mesmo que o sujeito
não tenha escolha de como/qual será o gênero performado a sociedade o atra-
vessa e impõe prerrogativas de gênero em que o sujeito se implica podendo
segui-las ou não (BUTLER, 2019). E o que essas pessoas criam a partir da percep-
ção de como olham a si mesmas assim como atravessadas pela cultura pode ser
colocado como imagem corporal, que é uma das principais questões tanto para
o sujeito transgênero quanto para o sujeito com distúrbio alimentar.
O ESTIGMA SOCIAL
O sujeito transgênero poderia buscar esse comportamento alimentar de-
sordenado para que ele possa ter o que chamamos de passabilidade, isto é,
seja percebido culturalmente por outros como o gênero desejado (MCGUIRE et
al., 2016). Além desta necessidade que alguns têm de se adequar é preciso, de
acordo com o poder médico, ser feito um diagnóstico desse corpo, chamando-o
de transgênero, o que a sociedade responde provendo um aval para a necessá-
ria montagem sexuada desse corpo para que se encaixe no que é naturalizado
como sendo a imagem de seu gênero (MÉLLO, 2012). O sujeito transgênero se
torna mais um que repete os atributos daquele gênero, reforçando a matriz
constituinte e sendo parte do reforço da binaridade (BUTLER, 2016). A socieda-
de faz com que alguns desses sujeitos que não se encaixam adoeçam (MÉLLO,
2012), assim como estabelecendo uma preservação da “identidade de gênero
binária, mantendo assim o status quo cisgênero-heteronormativo” (LANZ, 2015,
p. 110)
Além da busca pela passabilidade e/ou corpo normativo não ser uma rea-
lidade para todos os sujeitos transgênero, tornar-se conforme não diminui ne-
cessariamente os estigmas da sociedade, pois ao transgredir a norma se está
ameaçando a cis-heteronormatividade (LANZ, 2015). Além do mais, o sujeito
não só busca a inteligibilidade provida pela sociedade, como é obrigado a se
62
CONSIDERAÇÕES FINAIS
E para finalizar este trabalho gostaria de ressaltar a importância de que
sejam feitas pesquisas brasileiras acerca da temática. Pois o que observei foi a
ausência de estudos sobre esta questão, publicados em língua portuguesa, que
tratem da intersecção entre sujeitos transgêneros e transtornos alimentares, e
mais ainda de focar especificamente em homens transgênero. Também para
que possamos decolonizar o conhecimento, tirando o centro da produção do
norte global, tornando-nos um eixo de produção intelectual relevante no mun-
do.
Concluo, também, que esse padrão binário imposto pela sociedade oci-
dental causa uma pressão na população transgênero para que se adéque ao
que é considerado como características centrais do que é ser mulher/homem.
Acho necessário então que busquemos possibilidades de desnaturalização des-
sas categorias universais, que são enaltecidas seja pela hipervalorização das
aparências e da magreza na nossa sociedade. Ou até pela ideia de que é possí-
vel ter uma imagem corporal perfeita, desde que este corpo esteja enquadrado
63
Lembro que esse texto foi construído por uma pessoa cis, aliada e que
constantemente se envolve nos estudos de gênero, sexualidades e queer e que
estou disposta a falar com nossa população LGBTQIA+ e jamais sobre nossa
população, em especial aqui, os homens trans.
Por fim agradeço a leitura crítica de Nai Monteiro, Joss dos Santos e Caí-
que Nascimento que como pessoas transgêneras me auxiliaram minimamente
a perceber algumas lacunas que foram deixadas em meu texto pré publicação.
Incentivo o diálogo, em outras possíveis lacunas, e aprendizagem em minhas
práticas para que seja possível provocar mais pesquisadores a abordarem esta
temática para assim atentarmos cada vez mais para esse dispositivo de gênero/
transtorno alimentar que provoca tanto sofrimento. Convido àqueles que bus-
carem tal interlocução ao debate conjunto acerca do tema, assim como possí-
veis contribuições para esse trabalho e reedições do mesmo.
64
REFERÊNCIAS
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tística das Perturbações Mentais, 5ª ed. Lisboa: Climepsi Editores, 2013.
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65
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ve factors. International Journal of Eating Disorders, v. 50, n. 5, p. 515 – 522,
2017.
Este capítulo visa a expor um pouco o que foi o projeto de extensão Dan-
dara – Ações de Cidadania em Gênero e Sexualidade, executado por mim, em
2018, e apoiado pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. Ele teve como
objetivo desenvolver intervenções sociais que reflitissem sobre a recrudescente
violência motivada pelo ódio à diferença de gênero e sexualidade em nosso país
e problematizassem o papel de vários setores sociais na intolerância histórica
aos modelos de gênero e sexualidade não normativos.
Para tanto, tal projeto foi dirigido a diferentes grupos populacionais que,
em doze distintas ações (sarau, bazar solidário, mostra de cinema, seminário,
entre outras) foram convidados a participar, interrogando se o seu cotidiano
reproduz práticas violentas que violam o direito à liberdade de gênero e sexu-
alidade, a fim de propor medidas preventivas e combativas a essas práticas.
Com tais ações, o Dandara está consonante com os emergentes saberes queer
e descoloniais – em especial com os estudos desenvolvidos pela pesquisadora
Guacira Lopes Louro (2015a, 2015b).
1
Doutor em Linguística (USP), professor de Linguística e Língua Portuguesa em Letras e de Teorias do Discurso no Programa de
Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (UFRPE), professor de Análise Crítica do Discurso no Programa de Pós-Graduação em
Letras (UFPE), coordenador do Núcleo de Estudos Queer e Decoloniais – NuQueer –, diretor da Comissão de Diversidade, Inclusão e
Igualdade da Associação Brasileira de Linguística, coordenador do projeto de pesquisa “Deixa a minha língua lamber o que ela quiser:
disrupções queer de gênero no português brasileiro”. E-mail: iranmelo@hotmail.com.
67
- mas também ocorreu num horizonte pedagógico, ao passo que as ações fo-
ram formuladas para dialogarem fortemente com novas epistemologias sobre
gênero, sexualidade e educação (LOURO, 2015a, 2015b; MISKOLCI, 2015), pro-
venientes da interface entre movimento social e ciência, isto é, as ações não se
isentaram de apontar e sistematizar conhecimentos já formulados para a popu-
lação-alvo acessá-los (com isso, o projeto cumpre ainda uma função formativa).
Tais questões entram, com isso, na pauta de diferentes grupos que, hoje,
buscam afirmar uma mudança social integrada que respeite todas as diferenças
e promovam a socialização de saberes populares e científicos em prol de uma
aliança com diferentes agendas marginalizadas pelo sistema socioeconômico
dominante e pelos modelos culturais excludentes. Esse padrão rizomático é ob-
jeto da problematização na abordagem para as ações do projeto Dandara. Os
desdobramentos heurísticos desse padrão no contexto do projeto se dão pelo
diálogo essencial que creditamos à relação entre as questões supracitadas e as
ideologias que colonizam áreas fundantes da sociedade, como a Educação; a
qual, conforme já evidencia Freire (1996) e Bourdieu & Passeron (2016), carrega
o rastro da ilusão de um ensino-aprendizagem isento e capaz de passar ao largo
de toda a história das lutas pela existência de corpos reconhecíveis sob o signo
da abjeção.
RELATO DE EXPERIÊNCIAS EM SI
Antes de proceder ao relato propriamente dito, quero mencionar qual foi
o nosso público-alvo. Desse modo, afirmo: possibilitando a aproximação com
as pessoas cujas identidades sexuais e de gênero são consideradas periféri-
cas (aquelas que comumente chamamos de gays, lésbicas, bissexuais, travestis,
72
Quadro 1. Público-alvo
A B C D E Total
Público Interno da Universidade/
100 300 80 100 0 580
Instituto
Instituições Governamentais Fede-
50 100 100 50 0 300
rais
Instituições Governamentais Esta-
50 80 80 50 0 260
duais
Instituições Governamentais Muni-
70 40 0 40 0 150
cipais
Organizações de Iniciativa Privada 50 80 50 0 0 180
Movimentos Sociais 0 0 0 0 400 400
Organizações Não-Governamentais
0 0 0 0 80 80
(ONGs/OSCIPs)
Organizações Sindicais 0 0 0 0 600 600
Grupos Comunitários 0 0 0 0 400 400
Outros 0 0 0 0 300 300
Total 320 600 310 240 1.780 3.250
Legenda:
(A) Docente
(B) Discentes de Graduação
(C) Discentes de Pós-Graduação
(D) Técnico Administrativo
(E) Outro
A divulgação do projeto a esse público se deu pelo contato que fiz com a
comunidade ou a instituição a ser beneficiada. Propus à comunidade ou à ins-
tituição que nós da universidade promovêssemos a divulgação entre o público-
-alvo por meio de avisos nas redes sociais digitais (da web) e presenciais. Eu me
coloquei à disposição para fazer a divulgação dessas duas formas.
73
- Sarau Queer. Espaço Pasárgada. Rua da União, 263, Boa Vista, Recife. CEP.:
50050-010. 18 de maio – 14h-18h.
- Mostra Teatro Queer. Teatro Arraial Ariano Suassuna. Rua da Aurora, 457,
Boa Vista, Recife. CEP.: 50050-000. 24-27 de outubro – 19h-21h.
- Mostra musical Queer. Teatro Arraial Ariano Suassuna. Rua da Aurora, 457,
Boa Vista, Recife. CEP.: 50050-000. 07 de dezembro – 16h-22h
b) A ação extensionista em si
hora.
- Após o debate, eu, à luz do que foi discutido e ouvindo os anseios do públi-
co-alvo, propunha ações semelhantes nas comunidades do público presente,
organizadas pelo próprio, para promover a cidadania pela diferença de gênero
e sexualidade. Esta atividade durava cinquenta minutos.
longo das atividades, pudemos ouvir; as quais registramos com muito esmero, a
fim de que uma ação seja melhor e mais produtiva do que a outra, no sentido de
conhecer, ao sabor da prática também, qual a medida da pertinência de nossa
metodologia e quais temas são relevantes para os grupos que nos acolheram.
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, P.; PASSERON, J-C.. A reprodução. Elementos para uma teoria do
sistema de ensino. Petrópolis: Vozes, 2016.
______. Um corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Ho-
rizonte: Autêntica, 2015b.
78
INTRODUÇÃO
Parece que tudo está mudando
E a intenção não é desmantelar
Os conceitos antigos afundando
Para a normalização questionar
Queer sem medo na universidade
Eis aí seu lugar pra diversidade acatar
Penso que se fora considerado ousado demais por muito tempo, agora
é mais que urgente aproximar-se desse campo, porque, querendo ou não, ele
está presente e servirá para quebrar as bases de uma educação universitária
tradicional, burguesa, que apenas contempla “alguns”. Bem longe dos labora-
tórios acadêmicos centrados e alinhados a uma estrutura de pensamento e do-
minação.
1
Doutorando em educação na Universidad Nacional de Rosário – Argentina e pesquisador do NuQueer – Núcleo de Estudos Queer e
Decoloniais da UFRPE, joseamar@globo.com.
2
Coorientador Iran Melo – Doutor em Linguística, professor e coordenador do Núcleo de Estudos Queer e Decoloniais da UFRPE.
81
Nessa mirada, olho para trás e logo me dou conta de que, em pouco tem-
po, completarei quarenta anos de vivência universitária, muitas vezes como
aluno, sendo a primeira vez em 1984. Depois, na segunda graduação, seguida
de especialização, mestrado e, atualmente, vivo a experiência mais recente no
doutorado. Fruto dessas experiências enquanto aluno, professor e coordena-
dor de curso, carregava, sem saber, o queer comigo nesses espaços, tal qual
uma criança que, logo cedo, é chamada de “gay”, e não sabe o real significado.
Diante disso, mobilizo-me para subverter essa hegemonia por meio da Pedago-
gia queer, possibilitando, por exemplo, a entrada da linguagem inclusiva de
gêneros, os questionamentos da interseccionalidade e as reflexões do giro
decolonial na universidade.
Decorrente disso é que se faz importante legitimar meu lugar de fala – con-
ceito difundido, aqui no Brasil, pela filósofa Djamila Ribeiro –, destacando a po-
sição onde me localizo, inspirado em Sainz (2020), com lentes atuais dos lugares
de opressão (O) e de privilégios (P): um homem gay (O), cis (P), de mestiçagem
indígena (O), gordo (O), com renda de classe média alta (P), urbano (P), 55 anos
(O), engajamento político de esquerda não partidária (O) e muito mobilizado
para as questões que dão ênfase à discriminação por idade e para os corpos
queer (O), isto é, ininteligíveis (O) e que [r]existem à heteronormatividade domi-
nante (O), tendo como consequências a geração de violências (O).
O convite está posto para todes que desejam uma universidade não nor-
mativa, queer! Acompanhemos o texto que se segue...
82
3
Eve Kosofsky Sedgwick − pensadora feminista dos Estados Unidos, especializada nas áreas de estudos de gênero, teoria queer e
teoria crítica, influenciada por Michel Foucault e Sigmund Freud.
83
O meu interesse, desse modo, são as bases de uma educação para além
da transmissão de conteúdo, a qual considera afetos, modos de imaginar, pen-
sar, sentir, desejar, que têm uma prática sociocultural e que se configura como
uma problemática de vida humana (TEMPORETTI, 2018). Assim sendo, o tema
transversal da violência de gênero e sexualidade, mais as lacunas nos atuais
parâmetros curriculares universitários do Brasil, impulsionam-me a lutar por
avanços na educação, romper fronteiras, atualizar linguagens e tornar as cha-
madas “minorias”, “estranhas”, uma população respeitada e não vulnerável ao
deboche ou às violências nos ambientes educativos.
Embriagado por essas pessoas, devo mapear as violências9 com seus im-
pactos10 e sequelas11 vividos e, por vezes, silenciados, durante a formação uni-
versitária da graduação. Para tanto, debruço-me sobre a escala gradual quadrá-
tica que já mencionei: preconceito, opressão, discriminação e intolerância
com estudantes e egressos de universidades do Recife, em virtude de sua orien-
tação sexual e identidade de gênero não convencionais.
7
Conservadorismo – conceito associado a processos e contextos históricos específicos. O termo tornou-se comum nos debates
públicos brasileiro e mundial contemporâneos, sendo constantemente acionados nos noticiários de televisão, na imprensa escrita
e nas redes sociais digitais com uma profusão de sentidos razoavelmente elásticos; por vezes, é identificado de modo excessivo e
impreciso com fascistas, se na política, ou com fundamentalistas, quando na religião. Parafraseando Geertz, quando escreveu que,
no mundo contemporâneo, “há coisas demais a que se quer dar o nome de ‘religiosas’” (2001, p. 151), muitas coisas são chamadas de
conservadoras ou arroladas enquanto tais, em um mesmo grande movimento.
8
Para uma visão panorâmica da literatura grega antiga, também com referência a Píndaro, ver Dalbosco et. al. (2019, p. 27).
9
Violências – está na nossa exposição e na nossa cumplicidade para com ela − vulnerabilidades (BUTLER, 2019, p. 39) será analisado
com base nos testemunhos dos impactados por identidade de gênero e orientação sexual.
10
Impactos – Vivência de choque, golpe emocional produzido, os quais constroem atos de discriminação /exclusão. Pegadas ou sinais
(indícios) que deixam efeitos.
11
Sequelas – Resultados dos impactos. Dificuldades, travas que ficam como consequência dos impactos (em particular relacionados
com os progressos na convivência, educação e formação universitária).
86
Louro ainda lembra que orientação sexual não tem necessariamente uma
relação com as formas de identificação de gênero afirmando que
tifica, podendo corresponder ao gênero que lhe foi atribuído quando de seu
nascimento.
Isso me faz lembrar que “[em] outros dramas sociais a ação de gênero re-
quer uma performance repetida. Essa repetição é a um só tempo reencenação e
novas experiências de um conjunto de significados” (BUTLER, 2018, p. 242). Com
isso, criam-se dispositivos reguladores do gênero e da sexualidade, aniquilando
inúmeras possibilidades de vida fora desse mecanismo opressor, cujo poder es-
89
tabelece quais relações são normais entre alunos e alunas da universidade (des-
sa vez incluo propositalmente apenas os gêneros gramaticais binários). Essa
operação discursiva é intransponível, domina a cultura e impede o acolhimento
de manifestações sexuais não legitimadas.
Toda vez que reflito sobre os corpos abjetos, imediatamente surge outra
forte questão a que também, de alguma forma, estou familiarizado; trata-se dos
caminhos da vulnerabilidade. Deste porão de encaixe da vida, melhor aceitar
a desterritorialização feita por Butler (2019, p.49.2019) ao nos convocar para
REFERÊNCIAS
BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência
transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.
LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho. 3. rev. ampl. Belo Horizonte: Au-
têntica, 2018.
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Tradução, no-
tas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SPIVAK, G. Ch. Acting Bits/Identity Talk. Critical Inquiry, v, 18, n. 4, 1992, p. 770-
803.
Numa palestra transmitida via YouTube, Maria Carmen Aires Gomes (2020,
39min27seg) parte dessa ideia afirmando que “o como e o que falamos sobre a
linguagem nomeia quem somos no mundo; isso é uma premissa básica do que
chamamos de performatividade da linguagem”. Esse processo performativo é
de transformação e agentividade, pois nada na linguagem é estático e nenhuma
pessoa que interage por meio da língua é passiva dos efeitos linguísticos. Men-
cionar essa performatividade, portanto, é atribuir a falantes uma capacidade
potencial de produção e modificação da realidade por vias discursivas. Esse mo-
vimento se utiliza da repetição e do reforço para criar um conjunto de práticas
normalizadoras que limitam existências a comportamentos pré-determinados
(BUTLER, 2020; VON HUNTY, 2020).
1
Um organismo em experimentação, evolução, que flui sua sexualidade e não se identifica pela regularidade do seu sexo performa-
tivo. Entre bares, esquinas e vielas do conhecimento, está cursando mestrado em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal
Rural de Pernambuco.
97
Mas então, quem seriam essas pessoas? Quem configuraria a queer2 que
esta breve escrita se refere? Como apreender existências que não se deixam
capturar pelo normal e que reivindicam para si um lugar de nova existência e de
resistência? Como falar de pessoas que hackeiam o sistema do gênero humano
e que engendram as formas linguísticas na intenção de atribuírem um nome
para si? Iluminadas por essas indagações e embriagadas de tantas outras, como
1
Neste texto, opta-se pela utilização de alguns recursos disruptivos de linguagem em modelos de língua portuguesa do Brasil. Ou
seja, quando a sintaxe não der conta que apagar marcas binárias de gênero, há de se engendrar a morfologia das palavras. Essa,
além de uma estratégia para evidenciar as possibilidades e potencialidades desse tipo de linguagem, é também um posicionamento
político de registrar a existência das pessoas que se identificam por esses mecanismos linguísticos.
2
Concorda-se a palavra “queer” com o artigo definido “a” em contestação à apreensão dessa palavra e do seu conceito por meio de
um masculino não-marcado ou dito neutro. É muito mais crível, tendo por base as referências que estão sendo elencadas ao longo
do texto, que “queer” prefere essa aparente discordância que emerge da/na linguagem do que a assimilação concordante com as
normas linguísticas gramaticalmente masculinizantes.
99
A erupção que representa ume corpe queer é o que queima o próprio ver-
bo adjetivado que tenta defini-le, caracterizá-le; esse corpe que flui entre o que
se determina e o que não se entende. Um gradiente de cores complexas e infi-
nitas que vai do susto à inspiração é a cor da pele queer. Pele que carrega seu
discurso; assim sendo, aglutinando-se até na escrita da sua própria (in)determi-
nação: a pele que contorna ume discorpe, corpe que diz, grita, ou muda, mude.
Ainda que tentemos e criemos novas formas de expressão, não há linguagem
que consiga definir o que de fato é a queer, esta sempre pode e consegue ir
mais além.
Ainda que essas palavras continuassem a ser pinceladas, queer não tem
definições além das ditas e praticadas por si mesma. E, por assim dizer, a sua
luta é estabelecida pela violência que sues corpes sofrem; a sua existência é a
distopia que se faz real e viva. O texto que escreve queer, este e tantos outros
que se arriscam, carece de pontuações finais, sendo seu último ponto, agora e
talvez depois, a questão reticenciada... Sujeites atives a si e por si. Quem sabe,
portanto, queer seja a experimentação provocativa da vida...?
100
3
Quadro elaborado a partir de contribuições de Fairclough (2001), Melo & Fernandes (2021) e Kilomba (2019), além de registros de
imagens disponíveis nas redes sociais de Érica Malunguinho.
102
4
Quadro elaborado a partir de contribuições de Borba (2015), Melo & Fernandes (2021) e Schwindt (2020).
104
5
Quadro elaborado a partir de contribuições de Borba (2015), Melo & Fernandes (2021), Preciado (2014) e de Butler (2020).
106
REFERÊNCIAS
BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. rev., ampl. e atual. con-
forme novo Acordo Ortográfico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
MELO, I. F. de. Linguística Queer: que tiro é esse, viado?. In: MELO, I.; AZEVEDO,
N. D. de (org.). Corpos dissidentes, corpos resistentes: do caos à lama. Campi-
na Grande: Realize eventos, 2020. p. 11-24.
VIEIRA, H. O que é ser trans: entrevista com Helena Vieira. [Entrevista concedida
ao Nexo Jornal] José Orenstein. Nexo Jornal, YouTube, 37min30seg, dez., 2017.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cSswUvSnPgQ&t=571s.
Acesso em 27 maio 2021.
VON HUNTY, R. [Fala sobre linguagem neutra]. In: Linguagem neutra @ELLE
Brasil. Produção: Rita Von Hunty. [S.l.: s.n.], 2020. 1 vídeo (15min08seg). Publica-
do pelo canal Tempero Drag. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?-
v=WAzsxxMMlIM&t=155s. Acesso em: 30 maio 2021.
CAPÍTULO 8
108
INTRODUÇÃO
Na perspectiva de uma educação com mais qualidade, o interesse de refe-
renciar aos estudos de gênero, sexualidade e educação são importantes para o
acesso das pessoas, pois, conforme Louro (2020), por se tratar de uma edu-
cação que desnaturalize os essencialismos identitários de gênero e sexualidade.
É um movimento da área da educação, que tem a perspectiva de construção de
uma política educacional que não normalize os corpos nas perspectivas binárias
e suas normas corporais. Desta forma, a interlocução movimenta os estudos
queer na relação entre as identidades dos sujeitos e o pedagógico, promovendo
um espaço de acesso as diversidades.
1
Mestrando do Programa Pós-Graduação em Educação Contemporânea (PPGEduc) da UFPE; Especialista em Gestão em Saúde Men-
tal pela UCAM; Licenciando em Pedagogia pela UFRPE; Bacharel em Psicologia pela UNIVISA. E-mail:rivaldomendespsi@gmail.com.
109
As pessoas trans acessam a educação por meio de uma avaliação com nor-
mas de gênero envolvendo questionamentos de onde será enquadrado este
corpo. Cruz e Santos (2016) expressam que este corpo rompe com fronteiras
binárias por meio da relação corpo - gênero-sexualidade para compreender o
corpo. Estas pessoas sofrem pressão social para esta afirmação que julgam ser
necessariamente fixa, pois são culpadas de questionar o binarismo.
Ker (2020), divulga uma matéria no site Terra que relata a experiência de
uma pessoa não-binária na escola.
Yago, expressa como sua experiência na escola foi inclusiva, acolhendo seu
jeito de ser, incentivando sua expressão e possibilitando ocupação daquele es-
paço com uma política de direito e também outras pessoas que estavam a mer-
cê de uma violência escolar como eram resolvidas com a gestão. É destacado
corpos de professores LGBTIs, como facilitadores de um espaço democrático
com educação a diversidade. A experiência escolar fluiu dos muros da escola
e resgatou encontros de socialização com a família. Contudo, Yago, expressa
que não é algo comum ocorrer nos espaços escolares, considerou “um ponto
112
Aqueles que não aceitam esta norma são punidos por estarem em grupos
sociais que não concordam, pela falta de privilégios sociais e reconhecimento
na sociedade como: preconceitos sociais, falta de oportunidades de emprego,
saúde e educação; objetos de violência física, violência psicológica e afastamen-
tos de grupos, entre outras discussões, as pessoas sofrem estigmas sociais.
tabelece ser.
As pessoas não-binárias estão no entre-espaços, não permitindo o enqua-
dramento do binário pelo órgão anatômico reprodutor, nem gerando espa-
ços para as normas que vão ao encontro do inteligível nos papéis sociais, mas
construindo possibilidades de encontros e entendimentos de como seu corpo
performa nos lugares que não corresponde ao desejo da heteronormatividade
compulsória.
Nicholas: Esses temas apareciam, mas não sentia que era algo
relevante. Algo que mudasse o relacionamento com as pessoas.
Aquela escola era maravilhosa pra você se assumir. Ninguém vi-
rava e apontava e “ah, viadinho”, sabe? Todo mundo respeitava e
continuava conversando contigo da mesma forma. Pelo menos
na minha série era assim. Não tinha caso de pessoas trans. Mas
eu imagino que seria mais de boas que em outras escolas. Tinha
muita lésbica, muito gay e muito bi. Era uma escola maravilhosa.
Não era falado, a gente não falava muito sobre, porque parecia
que naquela escola todos eram iguais, sabe?! Era um lugar tran-
quilo. Aula nunca teve. De sexualidade, não. De gênero, também
não. Biologia vira e fala: “pepeca e pipi”. E só isso. Não tinha essa
coisa de identidade de gênero. Não, nunca foi falado.
Pesquisador: E como você acha que seria se tivesse uma pessoa
não-binária na sua escola?
Nicholas: Eu acho que todo mundo ia ficar muito curioso. Que-
rendo saber o que é. Tem gente que ia achar estranho. Tem
gente que ia fazer umas perguntas bestas. Mas, eu acho que ia
trazer muita curiosidade. Pra saber o que é, porque não se sabe.
Pesquisador: E como você acha que a instituição ia lidar?
Nicholas: Ah, ia ignorar. Como sempre ignorou. Lá era de boas
por causa dos alunos, porque a instituição nunca fez nada. (CAS-
TROS & RESIS ,2017, p.119).
Portanto, levar para a escola o entendimento das famílias sobre estes cor-
pos não-binários é construir pontes para adesão de uma política educacional
que envolva as particularidades e apresentar iniciativas para compreensão des-
tes corpos. Podendo, desse modo criar espaços que não regulam as performati-
vidades, sejam no ambiente escolar, seja no ambiente familiar, pois estes, ainda
são instituições que regulam os corpos para enquadrá-los na norma binária
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os estudos queer na educação, nomeado de pedagogia queer, norteia a
necessidade de um espaço sem práticas regulatórias de expressões de gênero
binária. Assim, é importante notar como o processo de ensino e aprendizagem
pertencem a questões transversais como a discussão de gênero, pois um lugar
que não visibiliza espaço democrático para corpos que não seguem as normas
do binário como sujeitas a orientação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENEVIDES, Bruna G.; NOGUEIRA, Sayonara Naider Bonfim. Dossiê dos assassi-
natos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2020. São
Paulo: Expressão Popular, ANTRA, IBTE, 2021.
KER, João. Sete em cada 10 alunos LGBTI+ do ensino médio não se assumem
durante a vida escolar. Terra,2020.
Disponíve < https://www.terra.com.br/noticias/educacao/sete-em-cada-10-alu-
nos-lgbti-do-ensino-medio-nao-se-assumem-durante-a-vida-escolar,bf73388af-
78dc9c36a258727777c33d9l0b66bwr.html>
Acessado em 03 de junho de 2020.
REIS, Neilton dos. (Re) invenções dos corpos nas experiências da não-binaridade
de gênero. Letras Escreves. Macapá,v. 7, n. 1, 1º semestre, 2017.
Acessado em 30 de junho de 2020 < https://periodicos.unifap.br/index.php/le-
tras>
INTRODUÇÃO
Antes de apresentar essa pesquisa, preciso falar de mim, a sujeita que es-
creve esse texto. Nasci Roberta Moura Cavalcanti, no dia 28 de fevereiro de
1985, em Recife. Era uma quinta-feira pós quarta-feira de cinzas e dona Glau-
ce, mainha, após brincar toda a folia de momo, foi à maternidade para que eu
chegasse a esse mundo. Nasci com o sol em peixes, o que me faz ser sensível
e trouxa; com o ascendente em virgem, o que me fez enlouquecer ao não es-
crever esse texto de forma não linear; e com a lua em gêmeos, talvez o que me
levou à docência, geminianes e sua necessidade de falar.
Sou filha de Glauce e neta de Creuza, duas cancerianas incríveis que cria-
ram suas crias com a barriga encostada em um fogão. Mainha e vovó cozinha-
vam para viver. E que cozinha. Eu tive um privilégio grande em crescer me ali-
mentando do que essas mulheres produziam. A minha família é fundamentada
em grandes mulheres. Eu não li sobre elas, eu vivi com elas, fui criada por elas,
aprendi, mesmo sem elas saberem que estavam ensinando, a sobreviver sob a
marcação do gênero feminino. Vovó me contou uma vez que sua avó era uma
portuguesa que se casou com um escravo alforriado. A minha tataravó, bran-
ca, casou com um homem negro, ex-escravo, e isso, em pleno século XIX, era
transgressor. A minha família tinha, em uma de suas bases, uma mulher trans-
gressora.
Mainha e vovó, junto com minhas tias Suely e Maria, outras duas mulheres
que contribuíram para eu ser quem sou hoje, me ensinaram que eu precisava
estudar para não depender financeiramente de homem. Que, desde sempre,
precisaria trabalhar mais se eu quisesse “ser alguém”. Esse discurso não chegou
para mim pela boca ou pelos livros da Beauvoir, ele chegou por essas mulheres
1
Mestranda do Programa de Estudos Interdisciplinares da Linguagem pela UFRPE. E-mail: amarela.cavalcanti@gmail.com.
121
que me ensinaram como ser feminista, mesmo sem saber o que isso significava.
Tentei resumir um pouco a minha trajetória, afinal isso não é uma autobio-
grafia, mas trouxe esses relatos para mostrar que esse caminhar me fez chegar
aqui e ser, nesse momento, quem eu sou: mulher cisgênera, negra de pele cla-
ra, pobre, gorda, pernambucana, nordestina, professora, freiriana, progressista,
antirracista, eleitora da Dilma e do Lula, feminista e mãe, essa categoria que
precisa, urgentemente, ser revista pelo feminismo.
APRESENTAÇÃO DA PESQUISA
Pensei diversas formas de começar esse texto enquanto apertava as teclas
do computador e sempre finalizava clicando no delete. Não saía. Não aconte-
cia. Eu, que sempre utilizei a escrita como processo terapêutico, não conseguia
escrever e isso indicava um problema. Definitivamente um grande problema.
Como eu conseguiria escrever essa pesquisa se não parava de clicar no delete?
Meus dedos acariciavam as teclas como as de uma pianista sobre seu ins-
trumento de trabalho, mas era inevitável finalizar com o apagar. Eu já havia
entendido que existia um problema, mas não havia identificado ainda qual. E
então, eu li Luiza Bairros, em seu “Novos feminismos revisitados”, afirmando
que o feminismo é uma corrente teórica que permite, através da experiência,
analisar a situação de não apenas uma, mas várias mulheres:
122
Foi então que eu entendi que precisava escrever tomando como ponto de
partida eu mesma. Sou eu, Roberta Cavalcanti, ou Amarela Cavalcanti, depende
por onde você me conheça, que escolhi essa temática e essas personagens. Não
há como falar desse trabalho sem falar de mim, como bem afirma Suely Aldir
Meseder (2019), a pesquisadora encarnada que, fazendo uso da escrita pela
experiência, defende que é preciso romper com essa metodologia acadêmica
que nos obriga a nos afastarmos do nosso objeto de pesquisa ao afirmar que
“no processo decolonial, asseguro que somos sempre subjetividade corpórea
produzindo conhecimento” (MESEDER, 2019, p.168).
Logo, decidi que, em alguns pontos dessa dissertação, iria fazer uso da
decolonialidade a primeira decisão tomada é que iria escrevê-la na primeira
pessoa do singular! E aqui estou eu, fazendo uso desse pronome pessoal do
caso reto e lembrando de Gloria Anzaldua (2016) que afirma que “uma pessoa
sempre escreve e lê do lugar onde seus pés estão plantados, no chão de onde
se ergue, seu posicionamento particular, ponto de vista” (2016, s/p)2.
formas de performar o feminino. Mulheres que amam e fazem sexo com ou-
tras mulheres, mulheres que são trabalhadoras sexuais, assim como mulheres
com pênis, todas são mulheres e, se ao final dessa pesquisa, outras formas de
performar mulheridade surgirem e reivindicarem esta categoria, o termo aqui
empregado também será sobre elas.
Por último, quero explicar a vocês que o objeto de estudo dessa pesquisa
são mulheres que foram, a princípio, escritas para serem personagens do texto
teatral, mas que também ganharam vida nas canções. Logo, irei recorrer ao
texto teatral para contextualização das personagens e enredo, mas o corpus da
análise dessa pesquisa consiste nas canções “Bárbara”, “Cala a boca, Bárbara”,
“Ana de Amsterdam”, “Tira as mãos de mim”, “Folhetim”, “Tatuagem” e “Não exis-
te pecado ao sul do Equador” do álbum Chico canta Calabar e “Geni e o zepelim”
do álbum Ópera do Malandro.
Mas por que eu decidi analisar essas mulheres? O que em suas constitui-
ções me permite caracterizá-las como transgressoras? E, em um momento com
tantas mulheres trans e travestis produzindo sua arte a partir de seus corpos
e de suas vivências, por que trabalhar personagens escritas por um homem
branco cisgênero, hétero e rico? Embora o Brasil seja o país que mais mata
pessoas trans e travestis no mundo, de acordo com a Agência Nacional de Tra-
vestis e Transexuais (ANTRA), o cenário para produção artística dessas sujeitas
hoje é mais propício que na década de 70, durante o regime militar, e as três
personagens aqui analisadas ganharam vida durante um dos períodos mais
sombrios da nossa história. Portanto, não é apenas ver descritas mulheres em
textos teatrais ou em canções da chamada Música Popular Brasileira, mas sim
ver representações de mulheres que ainda são marginalizadas nos dias atuais
em obras artísticas com um alcance significativo na população e que passaram
a existir durante um período de repressão e censura. É contribuir para um res-
gate histórico de mulheres como Ana de Amsterdam, Bárbara e Geni, mostrar
que elas sempre existiram, sempre estiveram presentes em nossa sociedade e,
também, em nossa arte.
ainda nos tempos atuais, é, para mim, um processo de resgate histórico e tam-
bém de decolonização de obras que podem sim compor o cânone da música e
literatura brasileiras, mas que também podem ser analisadas por teorias que
estão à margem, assim como as personagens aqui trabalhadas.
Chico fez algo nunca feito antes na chamada MPB (Música Po-
pular Brasileira), ele conseguiu que as mulheres se vissem na
música. A partir do momento que ele compõe uma música na
qual a personagem feminina tem voz e expressa seu sentimento
perante o sexo oposto e a sociedade, ele permite que as tantas
Bárbaras, Terezinhas, Carolinas e tantas outras se sintam vistas
e importantes, capazes de expressarem seus desejos, angústias,
revoltas, enfim, que possam falar abertamente sobre seus senti-
mentos (CAVALCANTI, 2010, p.32).
O cancioneiro buarqueano, a qual defino como obra poética, tendo em
vista que a canção surge como gênero lírico, onde poesia e música eram indis-
sociáveis, apresenta temáticas dentre as quais o cantar feminino, o cantar de
protesto e o que aborda as minorias marginalizadas, como prostitutas, homos-
sexuais, travestis, crianças em situação de rua, malandros, etc (CAVALCANTI,
2020). Ao caminhar pela obra poética buarqueana, passei a olhar de forma mais
profunda para as personagens, não só para as canções e foi daí que tirei o meu
desejo e objetivo geral dessa pesquisa que é estudar Ana, Bárbara e Geni, mu-
lheres transgressoras e à frente do seu tempo, uma vez que foram escritas em
1973 e 1978, durante um dos períodos mais sombrios de nossa história.
lema do governo militar que era “Brasil, ame-o ou deixe-o’, bordão que corrobo-
rava com uma sociedade autoritária que não estava disposta a dialogar, apenas
impor suas regras. Dessa forma, o compositor e escritor traz a alegoria da boia-
da para se referir à sociedade, muito semelhante com o termo “gado”, utilizado
para referenciar os seguidores e apoiadores do atual presidente (ZAPPA, 2011).
E com esse exemplo de como a obra buarqueana é atual, eu fecho o parêntese
sobre o Chico Buarque.
Como afirma Yuderkis Espinosa Miñoso (2019), eu seu artigo “Fazendo uma
genealogia da experiência: o método rumo a uma crítica da colonialidade da
razão feminista a partir da experiência histórica na América Latina”, os conheci-
mentos produzidos pelas Ciências Sociais, foram postos em cheque pela decolo-
nialidade por terem sido conduzidos por intelectuais, em sua maioria, de origem
branca, por isso, nessa pesquisa adoto também como processo metodológico a
escolha teórica composta por autoras que, em sua maioria, produzem a partir
de um Sul Global. Dessa forma, faço uso da decolonialidade para a escolha do
referencial a partir da escrita de si, de lésbicas que escrevem sobre lesbiandade
e de travestis que escrevem sobre travestilidade e transgeneridade, produções
de conhecimento que têm como ponto de partida as suas vivências.
4
Embora no período da Ditadura o termo adotado não fosse esse, utilizarei LGBT+ para contemplar essa população, independente
do período histórico.
126
Nessa mesma palestra, a Sara falou sobre a importância de trazer, nas fun-
damentações teóricas, autoras e pesquisadoras travestis, lésbicas, gays, trans,
não bináries (aqui me permitam fazer uso da não binariedade linguística) etc.
Ela deixou bem claro que fazer uma pesquisa sobre a identidade travesti, por
exemplo, é muito bom, mas que se você tem a possibilidade de usar autoras que
escrevem com base num conhecimento acadêmico e, sobretudo num conheci-
mento de vivência, efetivamente você não está trabalhando para desconstruir
essas estruturas de opressão. É preciso trazer essas pessoas para a produção
científica, referenciá-las, utilizar o que produzem. Nesse momento, eu entendi
que precisava e queria mulheres trans e travestis na minha base teórica.
Para essa pesquisa, também farei uso de artigos científicos que abordam
os temas aqui trabalhados, com um recorte de 10 anos, são eles: “Avatares da
literatura argentina contemporânea: Geni, a Maria Madalena de Chico Buarque:
aclamações e apedrejamentos na canção e no mundo, ontem e hoje” (PAULA,
2010); “As muitas faces da prostituição: uma abordagem histórica sobre o con-
trole da sexualidade a partir de Foucault” (SILVA, 2018); “A caça aos homosse-
xuais e travestis na Ditadura Militar” (VIEIRA, 2019); E “Os geuis na Ditadura
Civil-Militar brasileira: resistências” (ALMEIDA, 2019).
A última mulher que analiso foi escrita para outra obra que, assim como
as anteriores, também existiu no palco do teatro e na letra da canção: a Geni da
“Ópera do Malandro”. A travesti buarqueana que implanta a dúvida no imaginá-
rio popular ainda tão apegado a uma cisgeneridade: é mulher ou travesti? Mas
ser travesti não é ser mulher? Nessa pesquisa, defendo a identidade travesti na
127
personagem.
Sendo assim, essa dissertação será composta por três capítulos. O primei-
ro irá tratar do contexto histórico e a relação entre a ditadura e a população
LGBT+, especialmente as travestis, tomando como principal referência a Comis-
são Nacional da Verdade e a obra História do Movimento LGBT no Brasil (2018)
de autoria de Renan Quinalha e James Green.
que salva a cidade da tirania de um general. Este capítulo será destinado todo
a Geni e contará com 02 tópicos: no primeiro abordarei a Ópera do Malandro,
o enredo da peça e o contexto em que foi escrito, relevante para a análise da
personagem, uma vez que o texto teatral será de suma importância para a in-
terpretação como travesti; no segundo tópico, analisarei a identidade travesti
e como se constitui, relacionando a personagem buarqueana de acordo com
essa identidade. Para a construção dessa identidade, e adotando as escritas tra-
vestis, utilizarei como base teórica Jaqueline de Jesus (2012), Viviane Vergueiro
(2015) e Sara Wagner York, Megg Rayara Oliveira e Bruna Benevides com seu
texto Manifestações textuais (insubmissas) travesti 19 (2020, p. 2) que analisa
a palavra travesti como “um substantivo feminino e nunca um verbo que se
sujeita e infere”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A escrita dessa pesquisa foi, para além de um compromisso acadêmico,
fruto de uma admiração por mulheres que resistem não só as suas marcações
de gênero, mas também a outras marcações que tendem a subjugá-las, margi-
nalizá-las e subalternizá-las. Não são apenas mulheres, são putas, lésbicas, bis-
sexuais, travestis. Mulheres que lutam pelo direito de não serem consideradas
abjetas por conta de sua profissão, ou pelo direito de amarem quem quiserem
amar, ou ainda pelo direito de serem quem quiserem ser, de terem o gênero e
a identidade que decidirem ter.
Finalizo, trazendo o trecho de uma canção que, por incrível que pareça, não
é protagonizada por nenhuma das personagens analisadas. Trata-se da can-
ção Blasfêmea/Mulher, 21 da cantora travesti Linn da Quebrada, que apresenta
como eu-lírico uma travesti e que possui uma intertextualidade com a Geni bu-
arqueana:
Ela é tão singular
Só se contenta com plurais
Ela não quer pau
Ela quer paz
Seu segredo ignorado por todos até pelo espelho
(x2) Seu segredo ignorado por todos até pelo espelho Mulher
Linn traz em blasfêmea uma mulher que, assim como as três personagens
buarqueanas analisadas aqui, não se reduzem a uma única forma do ser mu-
lher.
129
Uma mulher que rompe com esses padrões e que se permite ser várias,
plural, o que a torna singular, assim como Ana, Bárbara e Geni, mulheres plurais
que, de suas pluralidades, se tornam únicas.
Sejam bem-vindas/vindos/vindes!
Axé!
REFERÊNCIAS
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nível em https://brota.noblogs.org/files/2016/01/Queerizar-a-escritora_Gloria-
-Anzaldua.pdf. Acesso em 17 de jun de 2020;
PAULA, Luciane de; FIGUEIREDO, Marina Haber de. Geni, A Maria Madalena de
Chico Buarque: aclamações e apedrejamentos na canção e no mundo, on-
tem e hoje. UFSC: Fazendo Gênero 9: Diásporas, Diversidades, Deslocamento,
2010;
QUEBRADA, Linn da. Linn da Quebrada diz que já segurou xixi por transfobia
em banheiros públicos. In: ISTOÉ Cultura. 11 de ago de 2020. Disponível em:
https://istoe.com.br/linn-da-quebrada-diz-que-ja-segurou-xixi-por-transfobia-
-em-banheiros-publicos/. Acesso em 17 de ago de 2020;
ZAPPA, Regina. Chico Buarque: para seguir minha jornada. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2011.
CAPÍTULO 10
132
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Sabemos que a sociedade é constituída pelas relações estabelecidas entre
os sujeitos; porém, quando nos referimos a nossa sociedade, percebemos que
ela vem sendo construída a partir de uma visão eurocêntrica, binária, colonial,
cis, heterossexual e patriarcal branca. O fato de “ser” um sujeito dentro dessa
sociedade, está diretamente ligado à ideia de gênero, em outras palavras, de
ser “homem” ou “mulher”. Deste modo, as pessoas que transgridem essa noção
de sociedade, gays, lésbicas, bissexuais e, sobretudo, pessoas transgêneros e
travestis, são consideradas aberrações, sendo impossibilitadas de vislumbrar
uma vida real em sociedade
1
Bacharel em Tradução pela (UFPB/Campus I – João Pessoa). Em 2018, pela mesma intuição, fui bolsista no Projeto de extensão Tra-
dução e Empoderamento da Mulher, o qual foi agraciado com o Prêmio Elo Cidadão 2018. Atualmente, sou mestrando em Estudos da
Linguagem pelo Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem (PROGEL–UFRPE/Sede) e licenciando em Letras/inglês pela
Universidade Estácio de Sá (UNESA). E-mail para contato: strange.frwit@gmail.com.
133
The color purple, escrito em 1982, por Alice Walker, apresenta a história de
uma jovem negra e pobre chamada Celie, a qual, abusada pelo padrasto, deu
à luz duas crianças, com as quais foi impossibilitada de ter contato. Posterior-
mente, a personagem é entregue a Mr., que a trata como escrava e com quem
mantém relações sexuais. No decorrer da história, Celie, semianalfabeta, escre-
ve cartas para Deus e para sua irmã mais nova, Nettie, contando experiências
de amizade e de amor que viveu. Ao longo da narrativa, podemos perceber a
emancipação da personagem principal. Inicialmente, ela é representada como
uma pessoa reprimida pelo padrasto e pelo marido, mas tudo muda com a che-
gada de Shug Avery, a partir de quando Celie toma as rédeas da própria vida até
conseguir sua autonomia. Shug, “linda” e “sensual”, é filha de pastor evangélico,
porém percebeu que sua vocação era cantar blues. Inicialmente, ela aparece
como amante de Mr. (posteriormente chamado de Albert), conhece Celie e se
tornam amigas e, ocasionalmente, amantes. Shug faz-se mentora de Celie, a
ajuda a evoluir como mulher e a conquistar sua independência.
2
Fonte: http://www.nbafictionblog.org/nba-winning-books-blog/1983-1.html
3
“National Association for the Advancement of Colored People” (Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor).
4
Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro.
134
Duas das grandes precursoras deste movimento são Angela Davis e Alice
Walker, ativistas feministas e intelectuais que refletem a experiência da autoria
feminina negra. Angela Davis afirma que “devemos subir todas juntas”, isso in-
clui homens e mulheres independente de raça ou cor, queer ou não, o impor-
tante é que todes compartilhemos do apoio coletivo contra as desigualdades
sociais e civis. Alice Walker, por meio da personagem Celie, diz que a mulher
negra é a “mula do mundo”, com isso, entendemos que os traços das antepas-
sadas, escravizadas, ainda permanecem nos dias de hoje, o que dá a ideia de
carregar o peso nas costas por ser mulher e negra (BEIRUTTI, 2012). Ainda, em
The color purple, e em outros de seus escritos, Walker externa questões de espi-
ritualidade de mulheres negras.
INTERSECCIONALIDADE
O conceito foi incorporado por Kimberlé Crenshaw, na década de 1980,
quando ela aplicou essas conexões no âmbito da hierarquia social. Porém, vi-
nha sendo discutido por outras intelectuais negras, tais como, Lélia Gonzalez,
Chimamanda Adichie, Conceição Evaristo, Angela Davis, Alice Walker, entre ou-
tras pessadoras. Para Crenshaw, a interseccionalidade pode ser compreendida
como uma metáfora para entender as maneiras pelas quais várias formas de
desigualdade ou opressão se constituem. Essas formas de opressão e de desi-
gualdade criam obstáculos e, muitas vezes, não podem ser entendidas dentro
das maneiras convencionais de pensar sobre o antirracismo ou o feminismo ou
quaisquer outras estruturas de defesa da justiça social (CRENSHAW, 2017).
Diante disso, Crenshaw (2002) diz que a interseccionalidade pode ser uti-
lizada como um mecanismo que busca capturar as consequências estruturais
e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. A intersec-
cionalidade, como afirma Mbandi (2019), aponta para várias possibilidades de
análise, levando em consideração os entrelaçamentos dos marcadores sociais.
Podendo, então, viabilizar à construção de algumas vertentes, tidas como abor-
dagens sistêmicas, construtivistas, entre outras.
CELIE
A protagonista da ficção, Celie, é uma garota afro-americana de 14 anos,
que vive com os pais e os irmãos. Ela é abusada sexual e moralmente por seu
padrasto, com quem teve uma filha, que ao nascer foi levada para a floresta, e
um filho que possivelmente foi morto por Mr.
Celie era mulher, negra, mãe, escravizada e queer, era jogada de encon-
tro ao fluxo do trânsito colonial5 contra mulheres negras, em uma encruzilhada
onde foi atingida constantemente pelo machismo, pelo racismo e por múltiplas
violências. Essa reflexão surgiu a partir da visão de interseccionalidade de Carla
Akotirene:
A construção de si, de uma mulher negra queer livre para amar quem
ela quiser, para ser quem ela quiser, sem que nenhum homem exerça domi-
nação contra ela, a ponto de violar sua identidade. Esta é Celie, uma mulher
emancipada.
QUEERIFICAÇÃO
O termo queer, no contexto anglófono, pertencia às periferias das subjeti-
vações de gênero e sexualidade. Para Safatle (2015), o sentido original da pala-
vra queer se referia a algo que era excêntrico, estranho, bizarro, e passou a ser
utilizado como forma negativa contra pessoas de gênero e sexualidades dissi-
dentes a partir do século XIX. Um exemplo clássico foi a prisão do escritor inglês
gay Oscar Wilde, cuja palavra queer havia sido utilizada para designá-lo como
anormal, por volta do fim do século XIX. Segundo Figueiredo (2018, p. 43), “nos
anos 1980, porém, a palavra foi reivindicada pelos grupos LGBT num processo
de ressignificação em que se tornou valorativa”.
Celie pode ser um exemplo, não só para as mulheres negras e/ou queer,
mas para as pessoas que se veem como ela e não se sentem seguras de ser
quem realmente são. Por isso, é importante a queerificação de nossos corpos,
nossa linguagem, para que em algum momento o indivíduo possa viver em so-
ciedade, sem que ande na rua com medo de ser quem realmente é.
5
Baseado em (ARAÚJO, 2014).
6
Investigação concretizada na dissertação do autor desse artigo.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A produção desse capítulo possibilitou uma reflexão crítica acerca da que-
erificação de Celie. Ademais, também foi possível fazer uma retomada histórica
acerca das contribuições do feminismo negro, do queer, da interseccionalidade
e seus desdobramentos para a queerificação.
REFERÊNCIAS
AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019.
BEIRUTTI, Eliane Borges. Relações femininas em The Color Purple. Revista Gê-
nero, Niterói, v. 2, n. 1, p. 103-108, 19 dez. 2012.
RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2018.
RIDGEWAY, Cecilia L.; CORRELL, Shelley J. Unpacking the Gender System. Gen-
der & Society, [s.l.], v. 18, n. 4, p. 510-531, ago. 2004.
SOUZA, Leonardo Lemos de; PERES, Wiliam Siqueira; ARAÚJO, Derly Borges. Pro-
blematizações de gêneros no campo da enfermagem: diálogos com feminismos
e a teoria queer. Revista Nupem, Campo Mourão, v. 7, n. 13, p. 121-142, dez.
2015.