Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
http://www.uem.br/acta
ISSN printed: 1679-7361
ISSN on-line: 1807-8656
Doi: 10.4025/actascihumansoc.v37i1.26243
Programa de Pós-graduação em Hospitalidade, Universidade Anhembi Morumbi, Rua Casa do Ator, 275, 04546-001, São Paulo, São Paulo,
Brasil. *Autor para correspondência. E-mail: sergiomoretti@uol.com.br
RESUMO. Este ensaio é uma reflexão sobre a convergência entre a racionalização e o desencantamento do
mundo baseado no pensamento weberiano sobre a ética protestante e o capitalismo. Vive-se em uma
sociedade cujo pensamento dominante é regido pela causalidade linear, pelo pensamento mecanicista, em
praticamente todos os vetores. Embora saibamos que, há muito, estes conceitos foram colocados em
suspensão, a persistência dessa mentalidade é um fato. O tema da razão é um assunto complexo e a
evolução das ciências humanas poderia ser descrita como um interminável debate sobre ela. A civilização
capitalista que se cria a partir dessa fonte primária de racionalismo é a que observamos hoje, com a
hegemonia dos comportamentos e das ideias racionalizadas, expulsando outras crenças e possibilidades,
negando, com esse discurso monológico, a diversidade do mito, da mística, da metafísica. Esta civilização
racionalista e anti-heroica, sob predomínio de uma burguesia racionalizante, reformulando métodos e fins,
é um alto preço a pagar pelo progresso.
Palavras-chave: racionalidade, desencantamento do mundo, racionalização, espírito do capitalismo, pensamento
weberiano.
De fato, entre esses dois polos principais, instrumental, possui uma prioridade em relação às
desenrola-se a aventura humana e, ao estudioso, demais, devido à sua característica intrínseca de
resta compreender os motivos da ação e como se racionalidade. Trata-se de um tipo de conduta que
harmonizam nas partes e no todo social. Nesse pede uma reflexão e ponderação entre meios e fins,
sentido, Weber entende o fenômeno social como não no sentido do valor (o que também pode
um macroprocesso, só compreensível e explicável se ocorrer), mas no sentido da finalidade objetivada.
levados em consideração os acontecimentos e dados Assim como a ação tradicional, trata-se de um tipo
singulares; nesse caso, as ações sociais. ideal bastante forte (WEBER, 1968).
Weber (1968) propõe o conceito de que a Weber postula que os quatro tipos de ações
Sociologia é a ciência que busca um entendimento sociais se mesclam, não só quando motivações são
interpretativo de ação social, no qual os sujeitos se hierarquizadas, como também quando se combinam
balizam nos comportamentos de outros (outrem) para atingir determinados fins. A caridade pode ser,
para orientar os próprios desenvolvimentos. Por na origem, uma ação por valor, e a decisão sobre
outrem devemos entender uma pessoa isolada, ou quem será o beneficiado, uma ação instrumental,
um grupo de pessoas, inclusive a multidão com a como na filantropia (WEBER, 1968). Esta questão é
ação social podendo ser orientada pelo passado, de crucial importância para argumento deste ensaio,
presente ou futuro. Contudo, não é qualquer relação pois se trata de compreender como irão conviver,
que importa, pois um simples contato não é não só racionalidades, como éticas diferentes. Sua
suficiente para estabelecê-la, mas, sim, aquele pelo intenção não era contrapor racionalidades, e sim
qual algum tipo de entendimento pode prosperar. demonstrar que, no Ocidente, havia um modelo
A pressuposição fundamental de uma atividade distinto de aplicação do conceito e que o sistema
social é, pois, a relatividade significativa ao capitalista e as formas adotadas para sua
comportamento de outrem (FREUND, 1970). operacionalização se pautavam por características
Weber distingue quatro tipos de ação social, específicas. O que lhe causou espanto foi que, na
classificados segundo as racionalidades que as sociedade capitalista, a racionalidade instrumental se
caracterizam e constituindo tipos ideais para os tornou hegemônica sobre as outras e, para esta
pesquisadores: 1) por finalidade, ou seja, relativa aos direção, apontou sua crítica.
fins (instrumental); determinada pelas expectativas Para Brubaker (1996), a crítica de Weber pode
das ações dos outros e do mundo exterior; 2) por ser entendida por meio de vários processos, ligados
valores, sejam éticos, estéticos, religiosos; pelo fato de que todos favorecem a racionalidade
determinada pelo valor em si independente do êxito instrumental (calculabilidade da ação) em
a ser alcançado; 3) por afetividade; discriminada por detrimento das substantivas (fins e valores).
afetos, emoções e sentimentos; e 4) por tradição; Segundo o autor, esse modelo se desenrola em seis
distinguida pelos usos e costumes, ou seja, as processos fundamentais: 1) o desencantamento e a
tradições enraizadas nas pessoas. intelectualização do mundo, resultando em um
A novidade introduzida por Weber (1968) é, mecanicismo causal sujeito ao controle racional; 2) o
justamente, a de tratar as ações sociais segundo um surgimento de um ethos de realização secular baseado
tipo de racionalidade que lhe permitiu evitar o na ética da vocação puritana; 3) a crescente
conflito com outras racionalidades, desviantes ou importância da tecnização do conhecimento aplicado
desclassificatórias. Trata-se, de fato, de um método à economia, administração, educação etc.; 4) a
de classificação e de entendimento - um tipo ideal - objetivação e despersonalização do direito, da
e, por esta razão, esta parte de sua sociologia é economia e da política, sujeitos à calculabilidade e
conhecida como compreensiva (verstehen). regularidade; 5) o progressivo crescimento dos
Cada racionalidade possui uma peculiaridade. meios racionais de controle sobre homem e
A tradicional consiste em uma conduta sem espaço natureza; e 6) deslocamento da ação tradicional
de reflexão e será mais forte quanto maior for o grau fundamentada em valores racionais para a ação
de institucionalização a que se refere. Faz-se porque instrumental.
tem que ser feito, há pouca discussão, e pode ser de Segundo essa interpretação, a racionalização
origem religiosa ou não. A racionalidade afetiva se retiraria do mundo significados importantes, como
aproxima um pouco da tradicional por seu caráter liberdade, caridade, solidariedade, aprisionados por
não compreensível, já que age de maneira afetiva o poderosas burocracias e pela iron cage da economia
indivíduo que quer tanto a vingança quanto o amor. capitalista. Para ele, a racionalização é eudemonista,
A ação racional por valor inspira-se na convicção, pois pretende que todos os atos humanos sejam
seja de que ordem for: religiosa ou política. destinados a justificar a felicidade, portanto
Finalmente, a ação racional, por finalidade ou moralmente justificáveis se orientados para esse
Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maringá, v. 37, n. 1, p. 21-30, Jan.-June, 2015
Racionalidade e desencantamento do mundo 23
objetivo (FREUND, 1970). Este é um dos sentidos (protestantismo, por exemplo). Na verdade, ambas
por que, para Weber, a racionalização e a são igualmente possíveis, mas se tiverem a pretensão
intelectualização crescentes desencantam o mundo, na de ser, não a etapa preliminar, mas a conclusão da
medida em que o despojam do encanto do pesquisa, igualmente pouco servem à verdade
imponderável e subjugam-no ao império da histórica. O que Weber (2004) procura fazer é
previsibilidade. Conforme observam Gomes e destacar a racionalização como característica do
Moretti (2007) a atual sociedade de consumo, capitalismo ocidental, diferenciando-o de formas de
fortemente centrada no mercado e no uso intensivo acumulação de capital encontradas em épocas
de tecnologia, não obteve sucesso em apaziguar as históricas precedentes.
angústias, tanto no nível individual quanto no Sua tese se baseia, em essência, no argumento de
coletivo. A perda do encanto se dá no momento que a Reforma não pretendia, de fato, contribuir
mesmo em que os aspectos mais lúdicos são para formar o espírito capitalista, na forma de um
subsumidos a uma instrumentalização insensível. ethos mundano e materialista. O que existiu, de fato,
Na gênese do capitalismo, é possível talvez se foi uma ‘afinidade eletiva’ entre o puritanismo e o
encontrar uma resposta. capitalismo, que se processou a partir de premissas
contidas na religiosidade protestante: do luteranismo
O ‘Espírito’ do capitalismo veio a salvação por Jesus, e também pelo trabalho; o
calvinismo contribuiu com a ascese e a crença na
Deve-se reconhecer a enorme influência de
predestinação como forma de medir a escolha divina
Weber (2004) na construção de um ethos capitalista e
para a salvação; das outras seitas protestantes, como
empresarial. Se, na ‘Ética’, sua análise se dirige aos
pietista, metodista, batista (e suas derivações, como
fundamentos em ‘Economia e Sociedade’, o
os quacres), originaram-se a oposição e a renúncia
conceito de autoridade e burocracia vai alimentar os
aos prazeres e às práticas mundanas (RABOT,
teóricos da Administração com uma ferramenta
2002).
poderosa de controle e operacionalização da empresa
De fato, o movimento protestante não pretendia
capitalista nos moldes em que se formou e evoluiu
contribuir para o espírito capitalista, mas a ‘afinidade
(PIERUCCI, 2003; GOMES; MORETTI, 2007).
eletiva’ entre eles se ajustou, principalmente, por
Deve-se frisar: Weber não disse que o
meio da ascese e da crença na predestinação. A
protestantismo era a causa do capitalismo, mas somente ascese é aplicada no sentido religioso da
que era a causa da formação de um ‘espírito’ que predominância do espírito sobre os sentidos
forneceu alimento para a racionalização da atitude materiais, à defesa da privação de algo. É uma ética
capitalista em relação ao trabalho, ao dinheiro, às de virtuosos para os quais a mortificação do corpo
empresas (FREUND, 1970). O autor não refuta as era sustentada pela abstinência como caminho para
causas econômicas, mas nega que sejam as únicas se chegar a Deus e, portanto, à salvação.
operantes. A imputação causal no texto está dirigida a A predestinação é uma crença de que Deus já havia
indicar ser a ética protestante uma das causas (SAINT- predestinado as pessoas a se salvarem ou não.
PIERRE, 1999)1. A angústia que tal situação provoca é gigantesca, pois
Weber (2004) via esta influência no sentido de como é possível conhecer os desígnios divinos?
inspirar um tipo ideal, ou seja, segundo sua Como se pode saber quem será salvo?
proposta, uma abordagem idealizada, desenvolvida Os calvinistas encontraram a solução para o
para criar um referencial para análise, que não deve dilema na prosperidade da vida em sociedade, como
ser procurado em qualquer realidade fora do uma indicação, uma prova de que Deus havia
contexto estipulado para sua existência. É, de fato, elegido os mais virtuosos e prósperos para a salvação;
uma utopia, um meio metodológico para estabelecer no entanto, o caminho trilhado era ascético, no
significados culturais e formulações empíricas sobre sentido de que os prazeres que poderiam ser
usufruídos pela prosperidade financeira não
os fenômenos. Mas não se trata de um conjunto de
entravam nesse modo de vida. Trata-se, portanto, de
caprichos do pesquisador, a construção deve
justificar a acumulação não só como prática de uma
satisfazer certas exigências formais, consistência
excelência pessoal, mas como forma de salvação,
lógica e não contradição interna (FREUND, 1970;
prova da escolha de Deus para a salvação da alma.
SAINT-PIERRE, 1999). Assim, a secularização da ideia de salvação da alma
Não se tratava de simplesmente substituir uma pela Reforma, ou seja, na instalação crescente de um
relação causal (materialista, por exemplo) por outra ethos vitorioso que valorizava a predominância de
uma vida monástica, suscitava maior dedicação ao
1
Existem inúmeras controvérsias sobre a ‘Ética’ que não contribuem para essa
discussão.
trabalho; o acúmulo pecuniário como consequência
Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maringá, v. 37, n. 1, p. 13-20, Jan.-June, 2015
24 Moretti e Pozo
da rejeição da ostentação e do luxo é um dos ganhou vida própria. O protestantismo criou uma
elementos característicos da gênese de um ethos ética do trabalho que opera independentemente da
capitalista (RABOT, 2002). sua matriz genética; assim, não só do capital vive o
A racionalidade do capitalismo se expressa, entre capitalismo, mas também de uma ideologia do
outras coisas, pela racionalização da contabilidade e trabalho que dá a todos - capitalistas e trabalhadores
do planejamento; no mesmo sentido que empregou - as condições de superação das restrições
Schumpeter (1961), repousa sobre um valor central escolásticas de que a riqueza deve servir somente
irracional, que é o da acumulação como um fim em para que se viva uma boa vida. Agora, todos podem
si mesmo. Para Weber (2004), a acumulação em si ser prósperos e, com um pouco de sorte, quem sabe,
mesma é tão irracional quanto qualquer outra meta. ricos, também. Deve-se reconhecer que é um
Ao final da parte 2 de sua obra, na qual analisa o incentivo e tanto.
‘espírito’ de seu ponto de vista ‘racional’, e antes de Independentemente das polêmicas recentes que
entrar na parte 3, na qual se dedica a analisar o se poderia fomentar a propósito da comemoração do
conceito de vocação em Lutero como o objeto da centenário da tese de Weber (2004), não se pode
pesquisa, já procura justificar as aspas no racional. O deixar de indicar que o desenvolvimento de um ethos
que interessa aqui é exatamente a origem desse capitalista baseado na ascese e na predestinação
elemento irracional que habita nesse e em todo o puritanas encontra uma força catalizadora na
conceito de ‘vocação’. calculabilidade racional-contábil de Schumpeter
Para Weber (2004), o conceito de vocação, ou (1961). Embora não querendo imputar nenhuma
chamamento, desenvolvido por Lutero (beruf no ideia de linearidade, há, nessas duas forças, uma
alemão, calling no inglês), já possui uma conotação sinergia indiscutível na preparação de uma sociedade
religiosa, a de uma missão dada por Deus. Os capitalista.
católicos ignoravam esse sentido realçado pelos
protestantes. A evolução desse conceito, com o Calculabilidade e destruição criadora
passar do tempo, tornou o trabalho e a acumulação
É importante examinar mais a fundo os conceitos
as únicas vias de agradar a Deus, como já
de calculabilidade e destruição criadora
comentado.
mencionados acima. Para isso, teremos que visitar o
Contudo, se, em sua origem, a ascese protestante
pensamento de Schumpeter (1961). Sua tese de que
intramundana tinha como objetivo a salvação da
o capitalismo é um método de transformação
alma, baseado na repressão do consumo de luxo, o
econômica cujo impulso fundamental procede da
resultado que se obteve foi bastante diferente. Não é
inovação, ‘uma tempestade eterna de destruição
de se estranhar que, após séculos de acumulação, os
criadora’, inspirou teóricos e gerentes sobre as
proprietários desse imenso patrimônio começassem
empresas e suas relações com a sociedade,
a pensar de forma diferente. A tendência à
principalmente os mercados. Sua perspectiva de
acumulação de capital, fundamental na vida
entendimento do capitalismo, por intermédio do
burguesa racional, conforme descrita pelo autor, de
macroprocesso de permanente reinvenção de seus
fato, preparou a cama para o homo economicus
modos de operação, mostra o caráter criativo,
moderno. Assim, a auri sacra fames (a cobiça pelo
camaleônico e, igualmente, sísifico do sistema.
ganho), não sendo desconhecida de outras eras,
Até então, a inovação era vista pelos economistas
tampouco de outros sistemas, era transformada em
clássicos como sendo majoritariamente exógena ao
um fenômeno de massa, mediada pelo sentimento
sistema capitalista, ou seja, a percepção indicava que
religioso, dando a ela uma sustentação moral,
transformando-se no próprio fim em si. a tendência geral era, de certo modo, adaptativa aos
A racionalização da vida, por meio da ascese, uma macromovimentos não controláveis pela área
vida ética metodicamente organizada, como conduta econômica. Schumpeter (1961) ousou dizer que a
salvacionista, eliminando a magia como meio para o inovação designava a própria característica do
mesmo fim é, para Weber (2004), um sistema, conciliando as duas tendências, a adaptativa
desencantamento do mundo, tema tão caro ao autor. e a inovadora, criando uma nova interpretação.
Quando o ápice do entusiasmo religioso passou, era Doravante, pode-se perceber que o capitalismo se
fatal que a boa consciência fosse colocada no rol dos baseia, em grande parte, no risco que um
meios para uma vida burguesa confortável. O que empreendedor tem quando aposta em um novo tipo
essa época vivaz legou à sua sucedânea utilitária foi de negócio ou mercado.
uma consciência farisaicamente boa, o aproveitar o Embora, atualmente, este seja um conceito de
melhor dos mundos. Não há mais necessidade de domínio geral, era grande inovação para sua época.
motivações religiosas, a criatura superou o criador e Para ele, o problema das empresas é dar demasiada
Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maringá, v. 37, n. 1, p. 21-30, Jan.-June, 2015
Racionalidade e desencantamento do mundo 25
métodos científicos para sua consecução; no entanto, que transformaria a face do capitalismo, cujo tema
o que é racional de um ponto de vista econômico foi abordado por Boltanski e Chiapello (2002) com
pode não ser de outro, o social, por exemplo. Uma uma extensa análise sobre as diferenças entre
das grandes questões de nosso tempo é justamente diversas fases do espírito capitalista, culminando no
esta: conciliar as duas agendas, e passa pela crucial ‘novo espírito do capitalismo’, atual. Os autores
questão de saber se a economia tem fins em si contemplam um tema que encontra ressonância na
mesma, ou está a serviço da sociedade e, portanto, questão de que novos tempos estão demandando
tem seus limites determinados pelas necessidades outros modelos de gestão do sistema como um todo.
humanas. Este, ao que parece, esgotou parcialmente essa fase e
A racionalidade organizacional também tem sido outro nível está se arquitetando para dar conta dos
objeto de estudo desde as primeiras escolas e já desafios que ora se apresentam. Na mesma direção,
demonstrou seus limites de forma contundente. Ventura (2003) assevera que um novo espírito do
Hoje predominam as abordagens transversais, capitalismo pode estar na necessidade de resposta às
conciliando pessoas, estratégias, processos e crescentes críticas da sociedade à rapacidade do
estruturas de uma forma mais harmônica. Se não sistema.
coloca de lado a racionalização no sentido de que Um desconhecido espírito do capitalismo estaria
existe sempre um best way determinístico, pelo surgindo na convergência da série de fatores
menos, escancara seus limites (CHANLAT, 2000; mencionados anteriormente, porém impregnado de
MOTTA; VASCONCELOS, 2004). certo fatalismo, na aceitação de sua inevitabilidade.
O desenvolvimento das ciências no século XX Tal pensamento é denunciado como resultado de
pôs em cheque a racionalidade estreita determinada constrições geradas pelo próprio sistema, com efeitos
pelos motivos já discutidos e, também, a primazia da desastrosos, sem que se possa vislumbrar uma saída
disjunção cartesiana. É preciso pensar para além da satisfatória dentro do modelo atual. Sua tese é de
razão tradicional, clássica e dos métodos disjuntivos. que o capitalismo deve encontrar problemas
Tem-se que buscar a conjunção e a ligação na ideológicos, caso não proporcione razões de
separação e vice-versa. Religar saberes, indivíduos e esperança fortes para o apoio dos envolvidos no
instituições. Esta questão é, particularmente, cara às sistema e em sua periferia.
organizações de negócios. Elas encarnam o protótipo O modelo explicativo de Boltanski e Chiapello
ideal da racionalidade funcional, suas formas de (2002) permite entender a função do espírito do
organizar-se constituem sua maior expressão: a capitalismo como articulador entre o capitalismo em
burocracia. si como sistema de acumulação e a crítica que recebe
da sociedade por seus desvios aparentes. Assim,
O novo espírito do capitalismo como na ideia básica de Schumpeter (1961), o
capitalismo vai adaptando sua necessidade básica, ou
É preciso considerar duas questões sobre os
seja, a acumulação do capital com as demandas da
momentos de desenvolvimento do capitalismo na
sociedade, por meio de uma espécie de destruição
‘Ética’ de Weber (2004). Em primeiro lugar, na
criadora de paradigmas que se esgotam por sua
localização histórica, a partir do século XVI, em um temporalidade e a adoção de outros mais adequados
processo simultâneo com a Reforma Protestante, e o aos novos tempos.
momento da redação do texto, o período entre 1904- Em primeiro lugar, a obra de Boltanski e
1920. Sobre o primeiro já se falou. Sobre o segundo, Chiapello (2002) é baseada em uma ampla amostra
devemos situá-lo dentro de uma perspectiva de publicações de negócios, que faz sentido na
evolucionista do sistema capitalista. Zuboff e medida em que os ‘quadros administrativos’, ou seja,
Maxmin (2002) classificaram-no como a passagem os executivos são os porta-vozes e os maiores
de um capitalismo dominado pelo empreendedor- reprodutores do espírito do capitalismo. Eles
proprietário para outro, no qual estes últimos analisam textos técnicos das décadas a partir de dois
passavam o bastão da administração dos negócios conjuntos de obras (corpus), relativas à década de
para uma classe de executivos profissionais que viria 1960 e à década de 1990, cada uma com sessenta
a dominar a fase seguinte, que dura até hoje. textos, o que permitiu identificar quais foram as
Micklethwait e Wooldridge (2003) intitulam esse palavras-chave mais utilizadas, foco gerencial, ou
período como o da ascensão dos gerentes processos administrativos, analisados pelos autores
profissionais no início do século XX, o que implicou da amostra.
a separação entre propriedade e controle. Com o Verificaram existir uma grande homogeneidade
tempo, essa mudança, aparentemente sutil, nos discursos e no número limitado de temas, em
culminaria por provocar uma admirável revolução cada uma das décadas. As diferenças eram mais
Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maringá, v. 37, n. 1, p. 13-20, Jan.-June, 2015
28 Moretti e Pozo
exemplos podem ser mencionados. Na década de tolerando-a como inexorável ao sistema. Não há
1960, o apelo era pela excitação do progresso e nada de errado com ele, e sim com as pessoas que
desenvolvimento, a segurança na carreira, eficiência, não conseguem estudar, arranjar bons empregos e
racionalidade e meritocracia. Na década de 1990, a não logram se tornarem bons cidadãos-
realização pessoal, liberalização, empregabilidade, consumidores (homo consumans). As características de
ética nos negócios, flexibilização e relacionamentos um homem do povo, um cidadão-trabalhador,
em rede (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2002). praticamente desapareceram dos discursos e são
A comparação entre os dois períodos mostra que tomadas como antiquadas e ligadas a um obsoleto
o capitalismo mudou profundamente seu espírito. esquerdismo.
Pode-se observar que o modelo mais recente
abandonou a crítica do egoísmo e da desigualdade Considerações finais
em detrimento da autenticidade e liberdade. Isso
Este ensaio foi uma reflexão sobre a convergência
também se observa na análise de Zuboff e Maxmin
entre a racionalização e o desencantamento do
(2002), com foco na sociedade dos indivíduos e no
mundo baseado no pensamento weberiano sobre a
novo capitalismo distributivo.
ética protestante e o capitalismo. A busca de um
O terceiro espírito é próximo à descrição de
olhar menos utilitarista e economicista, mais
Castells (2003) da ‘sociedade em rede’, integrado por
humano e lúdico, deve ser um imperativo social
sistemas informatizados em parcerias e alianças
tanto quanto individual. Não podemos trilhar este
estratégicas, que formam redes de negócios,
caminho a não ser com os outros.
denominados pelos autores como ‘cidade por
Entretanto, estamos ainda muito longe de tal
projetos’, já examinada.
concepção. Houve um desmanche dos tradicionais
Boltanski e Chiapello (2002), como Arrighi
fundamentos que mantinham certo equilíbrio na
(1996) e Wallerstein (2001), veem a situação
sociedade ocidental. A sociedade e a economia se
hegemônica do capitalismo gerencial do tipo
separaram definitivamente, e esta deixou de servir
acumulativo financeiro como posicionada entre dois
plenamente àquela. O racionalismo científico do
polos principais. De um lado, a exaltação a um
Renascimento, o ceticismo da Ilustração, o
passado idealizado cujo retorno parece impossível,
darwinismo e a tecnologia, nenhum deles logrou
mas que não deixa de ter evidências nostálgicas no
deter o desencantamento do mundo.
neoliberalismo que liderou essa reação, na era
Retirar a primazia de seus aspectos mais lúdicos,
Reagan-Tatcher, nas décadas de 1980-1990 e cujos
introduzir um racionalismo insensível, essa feroz
efeitos pudemos bem apreciar no caso brasileiro,
perseguição dos fatos, trouxe mais benefícios
durante os governos do presidente Fernando
materiais que humanitários. A racionalidade
Henrique.
instrumental, superando a racionalidade substantiva,
De outro, o entusiasmo com o tipo de progresso
não foi mais eficaz em trazer a felicidade e a bonança
atual pode justificar a perpetuação de um modo de generalizada, que se poderia esperar de tanto esforço.
produção capitalista informacional, nos moldes que Nesta situação, encontra-se a humanidade em
colocou Castells (2003). Este último caso implica busca de significados para o enorme fosso aberto
uma necessidade evidente de maior precaução com a
pela disparidade entre métodos e objetivos, como
questão ética. Uma sociedade que se movimenta na
bem percebeu Guattari (2000), com sua proposta de
velocidade da luz, à qual se soma uma visão
operar os novos tempos por meio de ecologias
instrumentalizada de pessoas e natureza, vistas como
mediadas segundo seus diferentes planos de atuação
mercadorias, precisa cuidar desse aspecto.
e privilegiando tanto a poiesis quanto a práxis.
No mundo descrito por Boltanski e Chiapello Conforme observam Gomes e Moretti (2007), o
(2002), a interpretação macrossociológica esbarra no princípio da destruição criadora (SCHUMPETER,
esvaziamento da questão de classe, enterrada no 1961), se livre de restrições, pode se desenvolver no
segundo espírito do capitalismo pela classe média limite de um darwinismo econômico de proporções
em ascensão. A tentativa é incluir os excluídos titânicas. Polanyi (2000) já tinha se posicionado
dentro de seus padrões. Eles preferem uma diante desta questão, denominando o domínio da
interpretação microssociológica, pela qual o incluído sociedade pelas forças de mercado como o ‘moinho
será aquele que estiver conectado à metáfora da rede, satânico’, triturando tudo e todos em sua busca
reforçando, em parte, a tese do modo de produção incessante de lucro. Um empreendedor puramente
informacional de Castells (2003). shumpeteriano imbuído de uma predestinação
O ponto correto achado pelos autores é de que a salvacionista em direção à acumulação de capital,
sociedade se tornou acrítica em relação à miséria, funcionando em um mercado livre, seria desastroso
Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maringá, v. 37, n. 1, p. 13-20, Jan.-June, 2015
30 Moretti e Pozo
Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maringá, v. 37, n. 1, p. 21-30, Jan.-June, 2015