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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

MURILO RICCIOPPO MAGACHO FILHO

DIREITO E ESTADO EM LÉON DUGUIT:


A solidariedade social como fundamento do Direito e a crítica da soberania

São Paulo
2021
MURILO RICCIOPPO MAGACHO FILHO

DIREITO E ESTADO EM LÉON DUGUIT:


A solidariedade social como fundamento do Direito e a crítica da soberania

Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da


Universidade Presbiteriana Mackenzie – campus Higienópolis,
como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em
Direito Político e Econômico.

Orientador: Prof. Dr. Gianpaolo Poggio Smanio

São Paulo
2021
AGRADECIMENTOS

De todas as parcerias e amizades que me ajudaram e me permitiram a realização da


presente pesquisa, gostaria de destacar, incialmente, a de minha esposa e amiga, Mariana
Kuhlmann, que dividiu comigo, além das preocupações que envolveram esse processo de
estudo, todas as angústias vivenciadas durante esse momento desgastante de isolamento
social.

Não há como não falar, ainda, da parceria da minha filha, Helena, que permitiu, por
sua alegria e bom humor, que minha esposa e eu lidássemos com essa situação de forma mais
leve e mais divertida, apesar de toda a realidade envolvida.

Destaco que, em um momento como este, de negação da importância das ciências, é


de se ressaltar a urgência da valorização de trabalhos que busquem a ciência como um
caminho para a justiça, de modo que agradeço, nesse sentido, de forma especial, a algumas
pessoas que sempre me mostraram o quanto a razão pode oferecer um caminho para uma
vida social mais humana: a Cadu (meu irmão, e “pai intelectual”, como costumo brincar), e
que muito me ajudou do início até o fim da presente pesquisa; a Guilherme, meu outro irmão
e especial amigo, que ultimamente está viajando, mas que sempre parece estar por perto; e,
claro, a minha mãe Maria Cristina e a meu pai Murilo, que sempre me mostraram que um
caminho humanista é sempre possível, desde que esse caminho se abasteça de uma visão que
leve em consideração as realidades sociais. Também agradeço a Lúcia, que considero como
mãe e que permitiu que minha mãe, meu pai, meus irmãos e eu tivéssemos liberdade para
estudar e trabalhar.

Gostaria de agradecer, ainda, e imensamente, ao professor e orientador de muitos


trabalhos como este, Gianpaolo Poggio Smanio, que, com sua visão prática de mundo,
permitiu, além da influência para a consolidação do meu tema de pesquisa, que eu pudesse
me abrir à ciência do Direito sem negar opiniões contrárias apenas por serem aparentemente
opostas à minha. O seu agir democrático foi sempre uma característica admirável, que eu
sempre terei como modelo, assim com a sua carreira, que, com certeza, é exemplo a todo
estudante e profissional de Direito que acredite na política, enquanto possibilidade de
organização social e humana de mundo. Da mesma forma, não há como negar a importância,
ao meu trabalho, da professora e especial amiga Patrícia Bertolin, tanto por sua generosidade
e companheirismo, como pela sua prática de defesa dos direitos sociais, que pretendi
expressar neste trabalho. Foi ela quem me abriu os olhos ao fato de que a defesa dos direitos
de qualquer pessoa ou grupo é uma defesa que transcende a pessoa defendida, ou seja: que a
redução das desigualdades pelos direitos não é uma preocupação alheia a absolutamente
ninguém, e que pode ser necessária mesmo aos que aparentemente acreditam estar em
posição de privilégio.

Ainda, não há como deixar de destacar a contribuição de Patrícia Roguet,


pesquisadora admirável e amiga, que, além de me auxiliar na tradução de alguns textos para
essa pesquisa, percorreu comigo, desde o TCC, o processo de pesquisa do presente tema.
Igualmente, destaco a contribuição das leituras que fiz com um amigo, que considero como
irmão, Rodrigo Marques dos Santos, um grande profissional e defensor dos direitos sociais.

Também agradeço toda a ajuda do professor Eduardo Dias, que convidei à minha
banca, especialmente por toda sua brilhante carreira prática e teórica, destacando o caminho
que este pesquisador percorreu para ser uma referência no tema que trato neste trabalho, e,
ainda, a um novo amigo que fiz na Faculdade de Direito, o professor Silvio Almeida,
intelectual e brilhante pesquisador que tomou a prática social contra o racismo e contra as
desigualdade sociais como parte da sua própria existência. Também agradeço, igualmente,
aos professores Marcus Orione e Pablo Biondi, que sempre denunciaram, de modo claro a
seus alunos, os limites da ideologia jurídica e da pretensa verdade absoluta que o Direito por
vezes parece impor. Muito grato por conhecer e assistir às aulas destes parceiros de academia
e de vida.

Agradeço, enfim, aos meus colegas de profissão, Jaime, Fabio, Lucas, Nathalia, João,
Ana, Daniela e Danielly, e a todo o corpo de profissionais da Faculdade de Direito da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, como Cristiane, Lucas, Denise, que possibilitaram
que o presente processo de pesquisa fosse materializado.
Por conta da existência dessas pessoas, e, ainda, pela minha relação com outras tantas
que, talvez, não consiga lembrar neste momento – sem que isso signifique que não as
considere, igualmente – pude ter a certeza de que, tal como buscava demonstrar o autor a que
me refiro na minha dissertação, não existem vontades, sejam elas individuais ou coletivas,
que possam se sobrepor a outra vontade humana, e que se alguém supõe que essa crença
possa existir é porque dificilmente reconhece uma realidade social diversa da sua. Essa
questão, aliás, me recorda que Fabio, Fernando, Glaucia, Oliveira, Bruno Barp, Nico, Léia,
André (Samurai), e todos os meus amigos que, infelizmente, não pude ter contato físico com
essa pandemia, possuem em comum exatamente essa mesma qualidade de tentar
compreender a realidade da vida de outra pessoa antes de com ela se relacionar. Devo grande
parte da minha pesquisa a eles, sem sombra de dúvidas.

Sem esses professores, amigos, parceiros, familiares, certamente minha dissertação


perderia o elemento chão, o que é exatamente aquilo que leva um pesquisador a tornar prática
e funcional a sua pesquisa.
Brilha a luz duma janela.
Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.
É curioso que toda a vida do indivíduo que ali mora, e que não sei quem é,
Atrai-me só por essa luz vista de longe.
Sem dúvida que a vida dele é real e ele tem cara, gestos, família e profissão.
Mas agora só me importa a luz da janela dele.
Apesar de a luz estar ali por ele a ter acendido,
A luz é a realidade imediata para mim.
Eu nunca passo para além da realidade imediata.
Para além da realidade imediata não há nada.
Se eu, de onde estou, só vejo aquela luz,
Em relação à distância onde estou há só aquela luz.
O homem e a família dele são reais do lado de lá da janela.
Eu estou do lado de cá, a uma grande distância.
A luz apagou-se.
Que me importa que o homem continue a existir?

Alberto Caeiro (Fernando Pessoa), Poemas Inconjuntos


RESUMO

A presente pesquisa pretende chegar a uma compreensão das principais ideias presentes na
obra do jurista francês Léon Duguit, destacando aquelas que levaram este autor a buscar a
superação das concepções individualistas do direito subjetivo (enquanto direito que o sujeito
possuiria de impor a sua própria vontade sobre a vontade de outros indivíduos) e às
concepções que teorizavam a soberania de um Estado personalizado (enquanto poder de
comando derivado da crença em uma vontade de governo distinta das vontades individuais).
Destaca, ainda, a relação do autor com a construção de um conceito de Direito Social dentro
de uma perspectiva realista, que, ao mesmo tempo em que superava a lógica do
individualismo liberal das doutrinas do direito individual, rejeitava qualquer formalismo
jurídico que concebia o Direito a partir da vontade de entidades coletivas metafísicas. No
campo da discussão sobre o Estado, se alguns autores, como Paulo Bonavides, viram na
crítica radical de Duguit à soberania um risco de justificação da redução da força de Estados
em desenvolvimento (em sua relação com outros Estados), demonstramos, nessa pesquisa,
que a teoria de Duguit não eliminou a importância da força do Estado, mas apenas tentou
fornecer uma outra base material e socialmente legítima para justificá-la. Em uma visada
mais atual da teoria do autor, é possível destacar que a retomada dos conceitos duguinianos
serviu para autores contemporâneos como José Fernando de Castro Farias aprofundar as
possibilidades, mesmo atuais, de uma reconstrução do Estado de Bem-Estar Social,
desvinculando-o de um caráter paternalista e autoritário pautado na concepção de soberania,
para dar-lhe um aspecto mais democrático, pois fundado na solidariedade social enquanto
fato que fundamenta as bases de um Estado Social de Direito.

Palavras-chave: Direito Social; Direito Objetivo; Direitos Subjetivo; Estado; soberania; Léon
Duguit; solidariedade social; solidarismo.
ABSTRACT

This research seeks to understand the main ideas present in the work of the French jurist Léon
Duguit, highlighting those that led this author to overcome individualistic conceptions of
subjective rights (as a right that the subject would have to impose his own will on other
individual wills) and to the conceptions that theorized the sovereignty of a personalized State
(as a power of command derived from the belief in a will of government distinct from
individual wills). It also highlights the author's relationship with the construction of a concept
of Social Law within a realistic perspective, which, while overcoming the logic of liberal
individualism in the doctrines of individual law, rejected any legal formalism that conceived
the Law as based on the will of metaphysical collective entities. In the field of discussion
about the State, if some authors, such as Paulo Bonavides, saw in Duguit's radical critique of
sovereignty a risk of justifying the reduction of the strength of developing States (in their
relationship with other States), we demonstrate, in this research, that Duguit's theory did not
eliminate the importance of state strength, but only tried to provide another material and
socially legitimate basis to justify it. In a more current view of the author's theory, it is
possible to highlight that the resumption of Duguinian concepts served for contemporary
authors such as José Fernando de Castro Farias to deepen the possibilities, even the current
ones, of a reconstruction of the Social Welfare State, disconnecting it of a paternalistic and
authoritarian character based on the concept of sovereignty, to give it a more democratic
aspect, since it is founded on social solidarity as a fact that underlies the foundations of a
Social State of Law.

Keywords: Social Law; Objective Law; subjective rights; State; sovereignty; Léon Duguit;
social solidarity; solidarism.
SUMÁRIO

Introdução....................................................................................... 01

I. Direito e Estado em Léon Duguit.................................................. 11

1. A solidariedade social como um fato........................................... 11


1.1. Noção jurídico-obrigacional de solidariedade social: distinção
com a noção subjetiva de caridade e fraternidade........................................ 11
1.2. Fundações da doutrina solidarista francesa: Bourgeois e
Durkheim..................................................................................................... 16
1.3. Léon Duguit e a concepção não contratual de
solidariedade................................................................................................ 21

2. O Direito Social ou Direito fundado na solidariedade.............. 28


2.1. A regra de Direito, o Direito Objetivo e a crítica do Direito
Subjetivo...................................................................................................... 28
2.2. Solidariedade social, igualdade e liberdade.............................. 34
2.3. A propriedade obriga: a noção duguiniana de função social da
propriedade.................................................................................................. 43
2.4. Direito Social como um direito espontâneo e inorganizado...... 47

3. Crítica da soberania e da personalidade do Estado.................... 54


3.1. A crítica da soberania na Teoria Realista do Estado de Léon
Duguit........................................................................................................... 54
3.2. A personalidade soberana como crença: limites do Estado-
nação............................................................................................................. 62
3.3. O problema da oposição à soberania frente ao
subdesenvolvimento brasileiro..................................................................... 65
3.4. O Direito Internacional a partir de Duguit e sua
incompatibilidade com a ideia de soberania................................................. 72
3.5. Estado Democrático de Solidariedade: a proposta anti-
neoliberal de José Fernando de Castro Farias............................................... 74

4. A sociologia jurídica da realidade imediata: apontamentos


críticos ao método positivo de Léon Duguit.............................................. 79

Conclusões......................................................................................... 85

Referências Bibliográficas................................................................ 92

92
Introdução

A globalização promete ampliar os laços econômicos e ultrapassar as barreiras


nacionais. Ao mesmo tempo – processando-se à base da racionalidade neoliberal, fincada na
concorrência acima de qualquer outro princípio ético-social –, vem se mostrando como um
processo que pouca atenção vem dando às lutas pela igualdade social e pelas formas de
solidariedade receptíveis à compreensão e solução de conflitos internos entre classes, entre Estados
e entre grupos sociais.
Uma solução a este problema global vem sendo pensada em termos de
multiculturalismo, que, apesar de expressar a necessidade de reconhecimento das diferenças entre
grupos sociais de culturas e desenvolvimento distintos, nem sempre parece enfrentar o fato de que
estes mesmos grupos abrem-se à globalização sem uma modificação das desigualdades sociais que
se ocultam por trás do reconhecimento de suas diferenças. Como aponta Nancy Fraser, “lutas pelo
reconhecimento ocorrem num mundo de exacerbada desigualdade material – desigualdades de
renda e propriedade; de acesso a trabalho remunerado, educação, saúde e lazer (...)”1. Há, nesse
contexto problemático da globalização, um desprezo generalizado às políticas sociais, o que se
deve não apenas à crise do projeto de bem-estar social tradicional, como, também, à
universalização da racionalidade do neoliberalismo, que se elevou como uma onda no último
quartel do século XX, mas que se estabeleceu como racionalidade de mundo dominante na
atualidade.

1
FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-socialista”. Cadernos de
campo. Tradução Julio Assis Simões. São Paulo, nº 15, 231-239, 1991. p. 231.

1
O neoliberalismo recalca a ideia de solidariedade em favor da generalização da
concorrência (a sua “norma de conduta”2), operando a partir da forma-empresa (seu “modelo de
subjetivação”3), que não apenas reflete relações determinadas, como serve de baliza às relações
institucionais – Estados, sindicatos, Igrejas etc. – e ao próprio agir e pensar do indivíduo. Sendo
não apenas uma ideologia ou uma política econômica, o neoliberalismo é “em primeiro lugar e
fundamentalmente uma racionalidade e, como tal, tende a estruturar e organizar não apenas a ação
dos governantes, mas até a própria conduta dos governados”4, a partir de uma política racionalizada
que tem por base um princípio de tendência universalizável: o princípio da concorrência5. Nas
palavras de Christian Laval e Pierre Dardot, tais constatações sugerem que não são tanto as
premissas neoliberais que devem ser combatidas, ou suas condutas imorais denunciadas, mas é
“todo um quadro normativo que deve ser desmantelado e substituído por outra ‘razão do mundo’.
Esse é o desafio das lutas sociais atuais, que decidirão a continuação – ou até mesmo a radicalização
– dessa lógica neoliberal, ou, ao contrário, seu fim”6.
Alguns juristas brasileiros, destacadamente Fábio Konder Comparato e José Fernando
de Castro Farias, a partir da década de 1990, decidiram por teorizar pelo fim dessa racionalidade
neoliberal, tomando como meio para esse objetivo a retomada ou reconstrução da racionalidade
jurídica de solidariedade social. Se há entre estes autores divergências quanto à aproximação da
noção de solidariedade aos ideais do liberalismo clássico (enquanto Comparato aborda a ideia de
solidariedade como uma complementação socialista dos ideais do liberalismo, em suas palavras,
“autêntico”7, Farias defende que a racionalidade de solidariedade social, especialmente a de Estado
de Solidariedade, construída na virada do século XIX para o século XX, não é um aprofundamento
ou correção do Estado Liberal clássico, mas exerce a sua superação8), ambos, no entanto, assumem

2
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A Nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução
Mariana Echalar. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 17.
3
Ibidem., p. 17.
4
Ibidem., p. 17.
5
“O neoliberalismo pode ser definido como o conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo
modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência” (Ibidem., p. 17).
6
Ibidem., p. 30-31.
7
Para Comparato, “o socialismo representa o coroamento desse início de movimento em favor da dignidade humana,
acrescentando à liberdade e à igualdade iniciais, a solidariedade”. (Desenvolvimento econômico e solidariedade para
viver a democracia. In: HADDAD, Fernando (organizador). Desorganizando o consenso: nove entrevistas com
intelectuais à esquerda. 2. ed. Petrópolis, RJ: Editora Fundação Perseu Abramo e Editora Vozes, 1998. p. 119).
8
Para Farias, “já no fim do século XIX e no início do século XX, o discurso do Estado de Solidariedade implicava
uma profunda reflexão sobre o Estado contemporâneo, e este processo não se reduzia simplesmente a um reajustamento
do Estado Liberal clássico, pois correspondia a uma mudança no plano das práticas sociais, que testemunhavam a

2
a ideia de reconstrução da solidariedade como discurso de superação do discurso liberal refundado
(neoliberal), que, longe de tentar proteger o mercado e o direito humano contra o arbítrio do Estado
(o que, seria em tese, a abordagem do liberalismo clássico), reveste-se da lógica do mercado
competitivo e do próprio arbítrio do Estado soberano como estímulo a essa lógica.
A própria concepção de solidariedade, nesta conjuntura de globalização e
neoliberalismo, enfrentou, nas últimas décadas, uma mudança de sentido: sob a promessa de que
não caberia ao Estado, mas à boa vontade isolada de indivíduos, ser solidário com o próximo,
ressurgiu a concepção moral que sustenta que a solidariedade não deveria ser um assunto do Direito
e da Política, mas ser dependente de atos de voluntarismo e filantropia de indivíduos com senso de
solidariedade. Dentro da lógica concorrencial neoliberal, caberia, então, aos indivíduos, às
empresas e aos governantes não a criação de um sistema jurídico de solidariedade que
condicionasse uma vida digna de todos os indivíduos em sociedade, mas, sim, a realização de ações
voluntárias para o bem do próximo, mas somente na medida em que esta suposta solidariedade
garanta uma boa imagem do indivíduo, empresa ou governo voluntário no jogo do mercado – uma
solidariedade que, em vez de questionar a lógica da concorrência mercantil como princípio de
sociabilidade, a pressupõe. Ressurge a ideia – tão combatida pelo solidarismo francês diante da
assoladora racionalidade do cristianismo caridoso e do individualismo fraternal dos
revolucionários de 1789 – da solidariedade individual e filantrópica, em substituição às formas de
solidariedade de cunho jurídico-obrigacional.
Dentro da tentativa de se pensar outra racionalidade de mundo, faz-se necessária não
apenas uma retomada da noção de solidariedade, mas, também uma revisão crítica da concepção
de solidariedade, especialmente em sua relação com os campos do Direito e da Política, o que nos
leva a resgatar a importância da obra de Léon Duguit (1859-1928), no que concerne à sua
desconstrução das premissas cristãs e caridosas que acompanharam a formação inicial da noção de
solidariedade entre o final do século XVIII e todo o século XIX, abrindo caminho para uma revisão
moderna de tal noção.

aparição de uma nova forma de Estado (...). O discurso do Estado de Solidariedade não representa a continuidade do
Estado Liberal; ele não é uma correção deste, tampouco uma etapa de transição para um Estado Socialista, mas uma
nova racionalidade político-jurídica, que correspondia a uma realidade específica de construção do que F. Ewald chama
de ‘novo imaginário político-jurídico’: o ‘imaginário segurador’”. (FARIAS, José Fernando de Castro. A Teoria do
Estado no fim do século XIX e no início do século XX: os enunciados de Léon Duguit e de Maurice Hauriou. Rio de
Janeiro: Lumen Juirs, 1999. p. 62-63).
3
Decano da Faculdade de Direito de Bourdeaux (França), Léon Duguit foi um dos mais
influentes juristas do início do século XX. Compondo importantes debates com juristas como Hans
Kelsen (1881-1973), Maurice Hauriou (1856-1929), Henry Berthélemy (1857-1943),
Léon Michoud (1855-1916), Carré de Malberg (1861-1935), além de pensadores tão influentes
quanto Émile Durkheim (1858-1917), Duguit apresentou, de maneira sistematizada, uma noção de
solidariedade como um fato social, desvinculando-a da ideia de solidariedade enquanto regra de
conduta ou sentimento moral, como a caridade e filantropia. De acordo com o autor,

Dizia-se que solidariedade era a caridade cristã ou a fraternidade da divisa republicana.


De maneira alguma. Solidariedade é, a um só tempo, mais e menos do que a caridade e a
fraternidade. A caridade e a fraternidade constituem um dever moral. A solidariedade é
um fato. A noção clara desse fato será um fundamento da ação, poderá mesmo fundar uma
regra de conduta; mas a solidariedade não é, em si mesma, uma regra de conduta 9.

Ao menos na sociedade moderna, em que cada pessoa possui desejos diversos, a


solidariedade é consequência de uma relação real, ou seja: decorre de aspirações comuns possíveis
de serem objetivadas em todas as sociedades, visando à diminuição do sofrimento individual. Se
as necessidades variam de acordo com as classes das sociedades e, ainda, de acordo com cada
indivíduo dentro de cada classe, os indivíduos e as classes se comunicam pela redução do
sofrimento comum, sendo um dos mecanismos para a redução desse sofrimento o Direito, mais
precisamente o Direito Social10. Ou seja: do fato social da solidariedade resulta, para Duguit, um
direito.
No aspecto da discussão sobre o Estado, para o autor, este estaria se despersonalizando,
e, neste sentido, submetendo-se, com as transformações da sociedade, a regras objetivas de direito
social. Desde os processos revolucionários do século XVIII e do século XIX, e, principalmente,
com a crise econômica da sociedade industrial, o Estado estaria perdendo aquela base imperial, de
origem romana, em torno da ideia metafísica ou teológica de “soberania”, para, então, adquirir

9
Tradução livre. No original: “On a dit que solidarité c'était la charité chrétienne, ou la fraternité de la devise
républicaine. Non point. Solidarité, c'est à la fois plus et moins que la charité et la fraternité. La charité et la fraternité
constituent un devoir moral. La solidarité est un fait. La notion claire de ce fait sera un ressort d'action, pourra même
fonder une règle de conduite; mais la solidarité n'est pas en elle – même une règle de conduite.” (DUGUIT, Léon.
L’État, le droit objectif et la loi positive. Paris: Ancienne Librairie Thorin et Fils, 1901. p. 23).
10
A palavra direito social será utilizada, aqui, apenas para enfatizar a sua relação com um direito fundado na
solidariedade social em contraponto aos direitos individuais enquanto fundados na autonomia da vontade privada. No
entanto, é preciso ter em mente que, para Duguit, não há direito que não seja social, o que aprofundaremos mais adiante.
4
paulatinamente um fundamento na noção positiva e funcionalista de serviço público, base do
conceito desenvolvida pelo autor de Estado Colaboração. Deixando de ser apenas uma forma de
proteção dos direitos individuais (numa relação vertical entre Estado e sociedade civil), tal Estado
Colaboração insere-se em um sistema de obrigações, em que governantes e governados colaboram
mutuamente para enfrentar os sofrimentos comuns dos indivíduos e os problemas cotidianos da
vida social. O que leva a que o Estado deixe de ser um poder de comando, para se tornar um grupo
que presta serviços como qualquer outro grupo social, muito embora se estabeleça com uma força
material que posiciona os governantes como aqueles que têm a função de servir, por meio de sua
força, os governados.
As relações sociais e jurídicas, na virada do século XIX para o século XX, demandavam
uma racionalidade jurídica diferente daquela racionalidade liberalista, e, ainda, uma racionalidade
que fosse capaz de se contrapor radicalmente às concepções tradicionais do Direito Público. Uma
série de autores tomou para si a tarefa de redefinir, nesse sentido, tal racionalidade: Léon
Bourgeois, por exemplo, lança mão da ideia de “quase-contrato”, muito próxima do “contrato
social” de Rousseau, que, segundo os revolucionários franceses, teria servido de inspiração para a
criação de uma ordem política liberal. O pensamento de Duguit, porém, destaca-se dos demais
solidaristas franceses, nesse momento, exatamente por fornecer uma contraposição clara ao
liberalismo clássico nascido com as revoluções burguesas. Para Duguit, o contratualismo se funda
em noções metafísicas, em conceitos não constatáveis no plano da análise objetiva dos fatos sociais.
Radicalizando a crítica ao contratualismo, Duguit irá se opor a todos os solidaristas que
compreendem a solidariedade como uma forma contratual de sociabilidade. De acordo com ele, os
solidaristas, até então, apenas haviam sofisticado a teoria do contrato social, mas nenhum deles
chegou a concluir pela solidariedade independente do regime do contrato. O regime dos contratos
“domina particularmente nas sociedades em que as vontades aparecem como sensivelmente iguais,
porque elas têm como fundamento indivíduos pouco diferenciados uns dos outros”11; mas, quando
as vontades se desigualam, como ocorre na sociedade moderna, uma das partes da relação antes
tomada como contratual poderá fixar, independentemente da vontade do outro, as condições dessa
relação, sem que o outro possa objetá-las (um exemplo: um contrato de locação de serviços entre
um trabalhador e um capitalista). Duguit não nega que exista entre pessoas desiguais uma relação
jurídica que os conforme, mas nesta relação não se pode afirmar a existência de um contrato. Daí

11
DUGUIT, Léon. Op. Cit., p. 54.
5
a que ele afirme, então, que a solidariedade por dessemelhança – de que Durkheim nomeava
solidariedade orgânica – nada mais seria do que uma relação não contratual que tende à redução
dos sofrimentos comuns.
No momento em que Duguit escrevia, não era, segundo o autor, possível pensar em
formas voluntárias de redução das desigualdades sociais. A diminuição do sofrimento comum
exigia a criação de regras de direito comuns, que se aplicariam igualmente a governantes e
governados, e que não mais dependeriam da existência de um contrato celebrado entre as partes
em uma mesma relação social. A noção de solidariedade, aos poucos, adentrava à ordem jurídica
em substituição à concepção subjetiva e caritativa de fraternidade12.
As sucessivas mortes, revoltas e reiterados e incontroláveis acidentes de trabalho
denunciavam o fato de que as bases da liberdade do contrato, fincadas na igualdade natural e
presumida de todas as pessoas, e perante a lei – ideal que os liberais franceses na Revolução de
1789 construíram rompendo os privilégios de estirpe e de nascimento do Antigo Regime – tendia,
na verdade, especialmente após o período de revoluções industriais do século XIX, a ser irrealizável
na prática, porquanto colocava sob a mesma medida o indivíduo com mínima (ou nenhuma)
condição de ascensão na sociedade e aquele com oportunidade de atingir todas as condições
necessárias para o mérito.
Assim, faltava à ideologia liberal e contratualista que reinava ainda até o final do século
XIX a compreensão de que as condições sociais entre as pessoas podem não ser as mesmas desde
seu nascimento, de que alguns nascem, socialmente, mais condicionados do que outros para atingir
a riqueza e o mérito. Se Herbert Spencer (1820-1903) e outros pensadores de linha sociológico-
evolucionista tentaram sustentar um discurso liberal que se utilizava da diferenciação de forças
entre os indivíduos para estabelecer a lógica de que cada um deve ingressar no mundo da
concorrência sem o uso de políticas sociais de Estado (ou seja, de que o próprio mercado, a relação
de raças e as lutas entre classes, deixadas à própria sorte, equilibraria as relações sociais), o
solidarismo de Duguit absorvia a mesma diferenciação de forças, mas exatamente para demonstrar
a necessidade de um aparato de proteção política e social que reduzisse o sofrimento dos
indivíduos, diminuindo os riscos sociais a que estavam submetidos, por mecanismos jurídicos

12
A respeito da distinção entre fraternidade e o princípio jurídico da solidariedade social, cf. SMANIO, Gianpaolo
Poggio; MAGACHO FILHO, Murilo Riccioppo; ROGUET, Patrícia. Considerações sobre as origens do princípio da
solidariedade social e sua distinção com a fraternidade. RBSD – Revista Brasileira de Sociologia do Direito, v. 4, n. 3,
p. 156-175, 2017.
6
externos a sua vontade individual, e que lhes pudessem oferecer proteção jurídica desde o seu
nascimento até sua morte, servindo-se, para tanto, da força do Estado.
Como uma alternativa ao estado de coisas deixado pelo mundo industrial do século
XIX, a noção de solidariedade, ainda anterior aos escritos de Léon Duguit, passou a adentrar a
lógica da responsabilidade jurídica no sentido de reconhecimento e reação à situação de
desorganização social e de crescimento de desigualdades sociais. É nesse momento que o sentido
de solidariedade passa a prender-se à ideia de obrigações jurídicas solidárias, ou, como conceitua
Comparato, da “responsabilidade de todos pelas carências ou necessidades de qualquer indivíduo
ou grupo social”13, fornecendo as bases para o “reconhecimento dos chamados direitos sociais, que
se realizam pela execução de políticas públicas, destinadas a garantir amparo e proteção social aos
mais fracos e mais pobres; ou seja, àqueles que não dispõem de recursos próprios para viver
dignamente”14.
Mas, ao tratar da ideia de solidariedade como fundamento de regras de direito objetivo,
Duguit avança nessa percepção. O autor não compreende a regra de direito fundada na
solidariedade apenas por seu aspecto coercitivo-obrigacional, mas, também, demonstra que as
regras de conduta social, ou seja, pautadas na solidariedade, somente assumem o estatuto de
jurídicas quando consideradas necessárias pela própria sociedade ou pelo conjunto de vontades
individuais. A legitimidade social das regras que o Estado torna positivas passa a ser uma
importante questão para se pensar a ideia de Direito Social. A teoria de Duguit abre a possibilidade
de o Direito recepcionar regras de conduta sociais independentemente da existência pressuposta de
um Estado soberano. Em contraposição às concepções comuns do Direito Público, para Duguit, “é
próprio do direito não o que é sancionado oficialmente pelo Estado, mas o que é compreendido
como sendo socialmente necessário”15.
Opondo-se, assim, ao pensamento do juspositivismo ou positivismo de Estado, Duguit
compreende que, se o Direito se define pelo que é socialmente necessário, então não é o Estado
enquanto entidade metafísica e soberana, e, sim, os próprios indivíduos em sociedade, que definem
os rumos desta regra, conforme o fim da solidariedade social.

13
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.
77.
14
Ibidem., p. 77.
15
BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Anglaé. História da Filosofia do Direito. Tradução Maurício de Andrade.
Barueri, SP: Manole, 2005. p. 317.
7
De maneira sintética, Duguit propõe uma concepção realista de Direito e de Estado,
que intenciona colocar em xeque as ideias imprecisas e indemonstráveis na realidade – porquanto
metafísicas – de direito individual e de soberania. Opõe-se à escola do Direito individual e ao
positivismo jurídico, que concebiam vontades distintas entre o indivíduo e a coletividade, ou entre
o indivíduo e o Estado, e que acreditavam existir um Direito derivado de possíveis qualidades
naturais e intrínsecas do ser humano, ou derivado do próprio Estado enquanto personalidade
distinta dos indivíduos que o compõem.
Ao contrário desse extremado subjetivismo e desse personalismo de Estado das
doutrinas jurídicas dominantes à época, que compreendiam o Estado e o indivíduo como sujeitos
de direitos, apoiava-se Duguit em uma lógica jurídica de direito objetivo, em que proprietários,
trabalhadores, governantes, governados, enfim, todos os grupos e indivíduos sociais,
responsabilizar-se-iam solidariamente, e objetivamente, por cumprir o dever social correspondente
a seu direito, independentemente de sua suposta natureza, status, ou posição subjetiva.
De modo geral, o que Duguit busca destacar em sua obra, tanto ao tratar do Direito e
da crítica ao direito subjetivo, como ao tratar do Estado e da crítica da soberania, é que nenhuma
vontade humana pode ser superior a outra vontade humana. Toda consciência, para Duguit, é
estritamente individual. Não havendo vontades soberanas ou subjetivamente superiores umas às
outras, o direito de governar ou de permanecer, por exemplo, com sua propriedade, não existiria
enquanto qualidade, substância ou estatuto subjetivo da pessoa, que lhe desse o direito de decidir
conforme sua vontade pessoal. Esses poderes ou direitos existiriam apenas na medida do dever que
lhes caberia em sociedade – das regras de direito objetivo, pautadas no fato da solidariedade social
e no seu pressuposto, que é a redução do sofrimento comum. De tal maneira, sua visão solidarista
recusa tanto o contratualismo de um Rousseau – que, segundo Duguit, idealiza a existência de uma
vontade geral, divorciada das vontades individuais –, quanto a concepção de Durkheim de
consciência coletiva, que remete a uma entidade transcendente e subjetiva16.
Porém, não se pode deixar de destacar o quanto a teoria desse jurista, em que pese sua
boa intenção, sofreu um abalo teórico profundo quando passou a servir de orientação à prática
social da constituição dos Estados modernos ao longo do século XX.

16
FARIAS, José Fernando de Castro. A Teoria do Estado no Fim do século XIX e no início do século XX: os enunciados
de Léon Duguit e de Maurice Hauriou. Rio de Janeiro: Lumen Juirs, 1999. p. 30.
8
É o caso de sua recepção no Brasil. Aqui, a ideia de solidariedade e a crítica radical da
soberania não encontrou o mesmo tratamento que lhe deu Duguit. Houve uma reestruturação da
ideia de solidariedade, de tal modo que não foram poucos os autores – especialmente os que
escreveram contemporaneamente a Duguit, no início do século XX – que acreditavam que, no
Brasil, diante de uma estrutura social que formou uma relação de dependência todavia com laços
precários de solidariedade entre os indivíduos, a solidariedade seria uma necessidade que somente
poderia ser praticada pela força da abstração do Estado-nação e pelas corporações que ele
estimulasse. Não haveria, para autores brasileiros como Oliveira Vianna, por exemplo, a
possibilidade de uma solidariedade espontânea, que constituiria o Estado, mas seria necessária uma
solidariedade constituída pelo Estado.
Ademais, no campo da crítica radical à soberania do povo e da nação, essa visão crítica,
que acompanhava Duguit, foi questionada, em vista das especificidades brasileiras, por muitos
autores, como Paulo Bonavides. Reavivando o que ele chamaria de “nacionalismo de esquerda”,
compreende Bonavides que a soberania, no Brasil, à diferença da maneira como era compreendida
pelo Estado francês, sempre foi uma forma de resistência. Se a crítica de Duguit à soberania
produzia efeitos libertários no caso francês, segundo Bonavides, quando aportada em um país como
o Brasil, ela poderia ser utilizada como argumento para o enfraquecimento das possibilidades de
autodeterminação do povo. Descartando um projeto que envolvesse o exercício real da soberania
do Estado no Brasil, estariam descartadas também as próprias possibilidades de desenvolvimento
social e econômico do país, que dependiam de um poder soberano de Estado para fazer frente à
soberania internacional que mantém a nação brasileira sempre subdesenvolvida.
O Direito Social e o Estado desprovido de soberania, como pensara Duguit, são parte
de um conjunto de ideias surgidas da realidade francesa; surgidas, então, de uma solidariedade
social pautada em processos de revolução social e de reações a esses processos. Todavia, em um
país como o Brasil, em que restaram dominantes os interesses de elites, a própria ideia de
solidariedade e de um Estado sem soberania ameaçaria adquirir outras finalidades.
É isto que torna necessário, a uma abordagem da obra do solidarista francês realizada
em contexto brasileiro, que ela atine com uma reflexão acerca dos limites da teoria de Duguit para
contextos modernos em que as possibilidades de desenvolvimento social e econômico, dentro do
livre jogo das forças de mercado, dependam da força do Estado e de sua soberania jurídica para
sobreviverem e se desenvolverem. Tal seria a advertência de Bonavides: um desenvolvimento
9
nacional altamente dependente, como o brasileiro, do exercício da soberania do Estado, sem este
exercício, talvez não possibilite conter os excessos e o imperialismo das economias
internacionalmente soberanas – efeito imprevisto por Duguit em sua teoria cunhada no contexto de
um país historicamente distinto como a França.
A dialética soberania/solidariedade é, assim, uma questão central em nossa pesquisa.
Se, de algum modo, resgataremos, aqui, o pensamento de Duguit; se o objetivo imediato do
presente estudo é conhecer e refletir sobre a proposta e críticas deste autor em relação ao Direito e
ao Estado; dentro desse objetivo não podemos deixar de verificar como pensar a (re)construção da
racionalidade jurídica de solidariedade social sem deixar de apontar a importância do princípio da
soberania do Estado.
Nesse sentido, há de se ressaltar a necessidade de compreender a fundo o próprio
método de Duguit, que também é formado em conformidade à realidade francesa, o que nos impele
a compreendê-lo criticamente quando o observamos com especificidade a outras realidades. Como
verificaremos em um capítulo à parte no fim deste trabalho, há que se observar os limites do próprio
método de Duguit (que, como todo método, não é imparcial, tampouco totalmente objetivo), e o
quanto, em determinadas situações, ele acabou por fragilizar, quando colocado em prática, a
finalidade das noções que o autor defendia. Diante do método positivo-sociológico de análise do
direito, as noções duguinianas, como a do Estado Colaboração, a função social da propriedade,
acabaram por ocultar, em alguma medida e em determinados contextos, realidades de classe, de
Estados subdesenvolvidos, e outras, que não conseguiremos aprofundar tanto nesta Dissertação.
Finalmente, não podemos deixar de ressaltar que este pensador, como um dos mais
consagrados professores de que o mundo do Direito (e da política) conheceu, deixava clara a
intenção de reformular o ensino jurídico de sua época, reivindicando uma verdadeira defesa de
campo17, um estudo do Direito que não fosse apenas uma leitura exegética dos códigos de leis, mas
que pudesse conceber o Direito em sua função social de redução dos sofrimentos individuais.

17
O que, em certa medida, justifica abordar a obra do jurista francês em um contexto acadêmico brasileiro.
10
I. Direito e Estado em Léon Duguit

1. A solidariedade social como um fato

1.1. Noção jurídico-obrigacional de solidariedade social: distinção com a noção subjetiva de caridade
e fraternidade

Solidariedade é, antes de tudo, um termo polissêmico, mas, em que pesem seus


diversos significados, todos os seus usos encontram-se pautados em um sentido etimológico que
parece unificá-los – em seu aparecimento mais corrente, solidariedade deriva do latim solidum ou
solidus, que, na língua portuguesa, associa-se à palavra sólido18, aquilo “que é total, por inteiro ou
pela totalidade”19.
Essa noção, no plano da sociedade política, envolve a ideia de que a sociedade se
constrói por relações sólidas, nas quais o todo (toda a sociedade humana) não se desvincula das
partes (os indivíduos que a compõem), havendo uma inter-relação entre indivíduos, sociedade e
Estado. Como sugere Comparato, sob o impulso de determinadas correntes socialistas do século
XIX, o conceito de solidariedade aparece como uma “transposição, no plano da sociedade política,
da obligatio in solidum do Direito Privado romano, prendendo-se à ideia de responsabilidade de
todos pelas carências ou necessidades de qualquer indivíduo ou grupo social”20.
Se é possível apontar mais de uma forma ou sentido para a noção de solidariedade, aqui
destacamos duas que, embora possam se relacionar, divergem quanto à sua aplicabilidade e quanto

18
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 2ª ed. 9ª impressão. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1997. p. 605.
19
DE PLÁCIDO E SILVA, Oscar Joseph. Vocabulário Jurídico. 15ª ed. São Paulo: Forense, 1999, p. 650.
20
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.
77.
11
à perspectiva histórica de que derivam: a forma da “caridade” e da “filantropia”, como sinônimo
de “fraternidade”; e a forma jurídico-obrigacional, que se associa a regras de direito objetivo que
orientam as vontades individuais. Quanto à primeira forma, podemos denominá-la solidariedade
subjetiva, pois dependente da vontade do sujeito que a pratica; quanto à segunda, atribuiremos aqui
a denominação solidariedade objetiva ou jurídico-obrigacional, que, em tese, independe da
vontade subjetiva do aplicador, já que é um fato social.
A ideia de solidariedade como sinônimo de fraternidade, no contexto das primeiras
décadas do século XIX, ainda não era pensada precisamente como princípio que integrava, com
clareza, a ordem jurídico-obrigacional. Seguindo a separação liberal entre Direito e Moral, ou entre
Estado e sociedade civil, ela se integrava na esfera da moral individual, e, assim, distanciava-se do
campo da responsabilidade jurídica. Cabia aos indivíduos, dentro do plano de sua individualidade
(separada do plano comunitário do Estado), decidirem atuar, ou não, em nome da redução das
desigualdades e da miséria. O Direito não poderia interferir na ordem da Economia, que possuía
funcionamento autônomo.
O modo de lidar com a questão da pobreza evidenciava o maior exemplo dessas
distinções liberais: o Direito não intervinha na pobreza, pois, para o pensamento jurídico liberal da
época, “o direito não pode obrigar alguém a fazer o bem para outra pessoa”21.
Já no final do século XIX, por impulso dos movimentos sociais, e, em especial, em
decorrência da situação vivida pelo proletariado, o termo solidariedade passa a ser utilizado para
enunciar, no campo teórico, um questionamento profundo em relação aos grandes princípios
liberais que ratificavam a desigualdade de classes então existente. A resolução dos problemas
sociais passa a exigir que a solidariedade adquira um conteúdo jurídico-obrigacional mais potente,
em especial como direcionamento da resolução jurídica do problema corrente dos acidentes de
trabalho. Surge, dessa maneira, uma necessidade de reformulação da ideia de responsabilidade
jurídica, seja das empresas, seja do Estado, invocando a noção da responsabilidade pelos riscos,
que, segundo Jorge Luiz Souto Maior e Marcus Orione Gonçalves Correia, passa a ser aplicada e

21
EWALD, Fraçois. Apud SOUTO MAIOR, Jorge Luiz Souto. Curso de direito do trabalho: teoria geral do direito
do trabalho, volume I: Parte I. São Paulo: LTr, 2011. p. 339.

12
legislada em diversos países europeus: “na Alemanha, em 1871 e 1884; na Áustria, em 1887; na
Dinamarca, em 1891; na Inglaterra, em 1897; na França, em 1898; e, na Espanha, em 1900”22.
Um dos grandes problemas, em matéria de acidente de trabalho, era abordar de quem
seria a culpa pelo acidente sofrido. E, de fato, pelo modelo jurídico liberal, que ainda exigia a
comprovação da culpa para a reparação dos danos aos trabalhadores, os acidentes aumentavam sem
qualquer responsabilização jurídica contra seus riscos.
Surge, assim, por necessidade, um sistema no qual a empresa e os seguros estatais
passam a assumir os riscos de acidentes, o que motivava a tese da responsabilidade profissional,
ou da responsabilidade pelos riscos23, tal como sintetizam Billier e Maryioli, citando Saleilles:

A maior complexidade das situações relacionadas com a industrialização multiplicou os


riscos de acidente, e não era mais possível identificar, entre tantos outros fatores, a culpa
direta de uma pessoa para obrigá-la a reparar o dano causado. Mas também não era
possível deixar sem qualquer proteção as vítimas, principalmente aquelas cuja situação
social e econômica ia piorar por causa do prejuízo sofrido. A questão não é mais, escrevia
R. Saleilles, “de quem é a culpa”, mas “sobre qual patrimônio iria recair em última
instância a perda definitiva”. A vida moderna, escrevia ele, “é uma questão de riscos:
quem deve assumi-los? Forçosamente, por razão e por justiça, é preciso que seja aquele
que, agindo, assumiu a seu encargo as consequências de seu ato e de sua atividade”. A
primeira lei social foi então aquela relativa aos acidentes de trabalho, (...) permitindo ao
operário ser indenizado em todas as circunstâncias, independentemente da culpa do
empregador24.

Embora a preocupação contra os riscos da sociedade já existisse durante a época da


Revolução Francesa, e mesmo que a ideia de seguro estivesse já presente, é somente com a
evolução da indústria que esse problema passa a dar razão a formas coletivas de responsabilidade
pelos riscos que ultrapassassem os limites do contrato e da responsabilidade individual.
Como explica Pierre Rosanvallon, com a evolução industrial, “tornou-se cada vez mais
difícil discernir, no campo da responsabilidade, o que devia ser imputado ao indivíduo e o que
dependia de outros fatores e (...) em muitos casos não era mais possível identificar uma falha
localizada que evidenciasse a responsabilidade direta de um indivíduo, para determinar quem devia

22
SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. O que é Direito Social. In: SOUTO MAIOR,
Jorge Luiz; CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Curso de Direito do Trabalho, vol. 1: Teoria Geral do Direito do
Trabalho. São Paulo: LTr, 2007. p. 18.
23
Essa assunção de riscos encontra-se, no Brasil, atualmente prevista em artigos de lei que trazem a ideia de
responsabilidade objetiva, como o parágrafo único do artigo 927 do atual Código Civil, segundo o qual "haverá
obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade
normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.
24
BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Anglaé. Op. Cit., p. 305-306.

13
reparar um dano” 25, o que exigiu – como explica o autor – uma revisão dos princípios do Código
Civil de 1804 (na França), a fim de adequar o Direito à realidade.
Rosanvallon destaca, ainda, que essa dificuldade de discernir o que deveria ser
imputado ao indivíduo e o que dependia de outros fatores foi impulsionada pela denúncia de
problemas sociais que não mais se referiam ao indivíduo isolado, e, portanto, pelo fato de que não
bastariam para sua solução a filantropia e a caridade, pois se referiam à própria organização social,
o que coincide com a organização do proletariado enquanto setor definido da sociedade – de saída,
a formulação deixa claro que a teoria solidarista não surge de forma totalmente alheia à luta de
classes, portanto, ainda que não nasça internamente às teorias revolucionárias. Agora, o que ocorria
a determinado sujeito, ocorria, na verdade, a toda uma classe social, atingindo inúmeros sujeitos
ao mesmo tempo, ainda que geograficamente distantes entre si.
A solidariedade, nesse momento, vai se tornando a base de uma responsabilidade
fundada em uma racionalidade de Direito que se despede da visão jurídica liberal baseada na
responsabilidade pela falta, ou pelo contrato.
De modo geral, longe de servir como reparação aos danos ocorridos, ou como promessa
de retorno ao “estado natural” das coisas (status quo) – base de todo contrato –, a responsabilidade
pautada na solidariedade social passa a se afirmar para prevenir danos que podem eventualmente
ocorrer, com base em riscos futuros.
Nesse sentido, o que o princípio da solidariedade passa a impor é que a
responsabilidade jurídica da sociedade é a de tomar a seu encargo a proteção do indivíduo desde o
nascimento até a morte. Altera-se a própria noção de solidariedade, que abandona a esfera da
moral, na qual se confundia com as noções de fraternidade e filantropia, para adentrar à esfera da
obrigação jurídica, formando as bases de um modelo de Direito Social, que, segundo Souto Maior
e Correia, estaria em contraposição ao modelo jurídico liberal:

O novo modelo difere-se, fundamentalmente, do antigo em um aspecto: o da solidariedade


social, que deixa o campo da moral para se integrar à ordem jurídica. Passa-se a reconhecer
que do vínculo social advém a responsabilidade de uns para com outros, cabendo ao
Estado a promoção de todos os valores que preservem a vida, na sua inteireza,
independente da condição econômica ou da sorte de cada um (...). A solidariedade é
integrada, assim, ao campo da responsabilidade, e esta não é mais uma responsabilidade
civil e sim social, juridicamente exigível, sem necessidade de integração, a uma dada

25
ROSANVALLON, Pierre. A Nova Questão Social: Repensando o Estado Providência. Tradução Sérgio Bath.
Brasília, Instituto Teotônio Vilela, 1998. p. 34.

14
relação jurídica, dos elementos liberais, tais como a culpa e os limites estritos de um
contrato (analisado do ponto de vista formal)26.

Forma-se um sistema de responsabilização jurídica solidária, cabendo a todos os


indivíduos e ao aparato de Estado encontrar meios para a proteção e segurança social contra os
riscos provenientes da sociedade industrial, pela via de aposentadorias, seguros contra doenças,
desemprego etc. Estava formado o pano de fundo para a expansão do discurso solidarista francês,
de autores que viam na concepção de solidariedade a base das necessárias reformulações jurídicas,
científicas e políticas para o projeto de construção de uma sociedade segura contra os riscos que
ameaçavam a humanidade, e que passaram a ser coletivizados com o progresso da industrialização.
Dentre esses pensadores, destaca-se Léon Bourgeois, um homem político e de
importância internacional, que possibilitou a difusão do solidarismo no final do século XIX como
uma ideologia que deveria, segundo suas intenções, ser seguida por todas as nações e todas as
gerações; Émile Durkheim, que trouxe a questão da solidariedade para uma abordagem positivista
e sociológica, tratando com profundidade e cientificidade o assunto; e, por fim, Léon Duguit, quem
finalmente abordará juridicamente a questão, elencando a solidariedade como um fato não
contratual e como um fundamento da regra de Direito, delimitadora das funções dos indivíduos e
do Estado.
Embora esses três autores possam ser considerados como fundadores de um mesmo
discurso – o discurso solidarista –, há particularidades que os posicionam em polos opostos. E
Duguit será tomado aqui como o elemento crítico central, observando e ponderando as ideias de
Bourgeois e Durkheim, sobretudo em face do fato de que esses dois autores não teriam ainda
concebido uma ideia autônoma de solidariedade, desvinculada da ideia de contrato.

26
SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Op. Cit., p. 22-23.
15
1.2. Fundações da doutrina solidarista francesa: Bourgeois e Durkheim

Presidente do Conselho da Liga das Nações, ocupando o cargo de Primeiro-Ministro


da França entre 1º de novembro de 1895 a 29 de abril de 1896, agraciado, ainda, com o prêmio
Nobel da Paz, Léon Bourgeois desenvolveu a ideia de solidariedade especialmente em sua obra
Solidarité, publicada em 1896, na França27.
Segundo o autor, a solidariedade, conforme mencionado há pouco, seria a razão de ser
objetiva da fraternidade, esta que seria o complemento necessário de toda fórmula social
verdadeiramente humana, mas que corresponderia a um sentimento, e não a uma organização
jurídica: a fraternidade – segundo ele – indica o complemento que o sentimento humano sempre
solicitará, somado a toda convenção social28.
Sua doutrina solidarista possuía os seguintes pilares conceituais: a solidariedade
natural e social, a dívida social e o quase-contrato.
A solidariedade natural e social decorreria da observação de que existe uma
dependência recíproca entre todos os seres vivos, assim como entre os viventes e seu meio. Essa
lei universal remete ao humano como ser social – seu ser depende de inúmeros movimentos do
mundo que o rodeia, e tudo no ser humano é o resultado das trocas realizadas com seus semelhantes.
Cada ser humano é, portanto, unido ao resto do mundo, e, assim, dependente dele29.
Entre a solidariedade natural e a solidariedade social, haveria um grau de evolução.
Tal grau seria conquistado pelo elemento associação, ou mais especificamente, “ação solidária”,
de cunho social, um elemento superior ao elemento “ato vital”, de cunho biológico. Para sair do
ato vital instintivo e chegar à ação solidária, mostrou-se necessário ao ser humano fazer um apelo
à consciência moral, uma vez que a sociedade é “uma união de consciências que se elabora”, que
busca suas regras do bem e do mal, do direito e do dever. A sociedade moderna, segundo o autor,
pretende a realização da ideia de justiça, tornando-se necessário, para tanto, conciliar a vontade
coletiva com as leis naturais.

27
BOURGEOIS, Léon. Solidarité. Paris: Librarie Armand Colin, 1902. Os trechos do texto que utilizaremos desta
obra foram traduzidos para a língua portuguesa de forma livre pela pesquisadora Patrícia Roguet, com revisão deste
mestrando.
28
Ibidem., p. 21.
29
Ibidem., p. 47.
16
Contudo, essa conciliação não seria voluntária. A diferenciação de forças pode gerar o
esmagamento do mais fraco pelo mais forte, sendo necessário, dentro do projeto moral da
solidariedade, que os indivíduos sejam considerados responsáveis pela quitação conjunta de uma
dívida social, tal como como ocorre em qualquer forma de associação.
Segundo Bourgeois, desde que a criança se separa definitivamente de sua mãe após o
aleitamento, e se torna um ser distinto, recebendo do exterior os alimentos necessários à sua
existência, ela é uma devedora, e não poderá sobreviver sem retirar o que necessita da imensa
reserva de utilidades acumuladas pela humanidade, denominada “reservatório humano”. O ser
humano vive em sociedade, e dela retira os frutos para sua vida. Não podendo viver sem a
sociedade, é seu devedor.
A ideia de dívida social implica uma atividade dos indivíduos, a obrigação de praticar
ações para produzir uma sociedade solidária, inclusive para as futuras gerações. Um patrimônio
nos foi transmitido, e é ele que nos permite viver. Nós não devemos, então, somente restituir este
“capital comum” aos nossos sucessores, mas também acrescê-lo. Somos associados, dividindo os
serviços e nos beneficiamos dos trabalhos de nossos semelhantes. Assim como os acionistas de
uma grande sociedade, se nós dividimos os benefícios, devemos dividir, também, os encargos30.
Uma das primeiras obrigações inscritas no fundo da consciência humana é, segundo Bourgeois, a
obrigação de ter que devolver aquilo que se recebeu31. Para ele, a justiça só será realizada na
sociedade na medida em que cada um dos seres humanos reconhecer a dívida que, do fato da
solidariedade, pesa sobre todos e deve ser quitada por cada um32.
Cria-se a necessidade de se pensar, então, em um terceiro pilar, o conceito de quase
contrato. A dívida entre os homens deve ser reconhecida presumidamente. Ela se refere sempre a
um contrato previamente estabelecido.
A sociedade na qual nós nascemos não elaborou o objeto de um contrato, de modo que
o contrato originário é apenas uma hipótese interpretativa. Esse quase contrato, que jamais fora
formulado, consiste em colocar os associados em uma espécie de “posição original” de
equivalência.

30
Ibidem., p. 44.
31
Ibidem., p. 46.
32
Ibidem., p. 213.
17
Bourgeois deixa claro, na relação intrínseca entre indivíduo e sociedade, que nenhuma
disposição legal deve intervir para romper a igualdade de valor social dos contratantes, associados
pelo quase contrato. Está na base da ideia de solidariedade a igualdade contratual presumida. Ou
seja: nenhuma lei pode agravar as desigualdades naturais dos homens, nem aumentar
arbitrariamente o encargo de um para diminuir arbitrariamente aquele dos outros33.
Isso significa que a lei não pode reconhecer privilégios, estabelecer monopólios em
proveito de certos grupos de cidadãos, nem manter um sistema de impostos que pese
demasiadamente sobre uma parte34. Ou seja, o quase contrato exige, para manter a posição original
de equivalência entre seres humanos, que não haja uma socialização integral dos lucros e das perdas
de cada indivíduo; mas exige a socialização parcial suscetível a evitar a adversidade absoluta e a
pobreza. Se existem indivíduos cujas necessidades não podem ser satisfeitas por alguma razão; se
impera na realidade o privilégio de uns, e a carência de outros – inclusive com amparo em lei –, a
sociedade está descumprindo o contrato presumido, e deve haver formas de se realizar o retorno à
posição de “equivalência” entre os indivíduos.
Outro autor de importância fundamental ao pensamento solidarista e à difusão da
concepção objetiva de solidariedade no contexto da sociedade política do fim do século XIX foi
Émile Durkheim (1858-1917), especialmente em sua obra Da divisão do Trabalho Social,
publicada pela primeira vez em 189335.
Para ele, a solidariedade é, em princípio, moral, de modo que é preciso encontrar aquilo
que a exterioriza, ou seja, seus efeitos sociais exteriores, pois o que é moral, em si, não é
mensurável36.
Por ser o Direito a forma definida da vida social, são as regras jurídicas e a natureza
das sanções aquilo que define e pode servir para a classificação dos efeitos sociais exteriores da
solidariedade37.

33
Ibidem., p. 179.
34
Ibidem., p. 179.
35
DURKHEIM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social. Tradução Eduardo Brandão. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2010.
36
“A solidariedade social é um fenômeno totalmente moral, que, por si, não se presta à observação exata, nem,
sobretudo, à medida. Para proceder tanto a essa classificação quanto a essa comparação, é necessário, portanto,
substituir o fato interno que nos escapa por um fato externo que o simbolize e estudar o primeiro através do segundo”
(Ibidem., p. 31).
37
“A vida geral da sociedade não pode se estender num ponto sem que a vida jurídica nele se estenda ao mesmo tempo
e na mesma proporção. Portanto, podemos estar certos de encontrar refletidas no direito todas as variedades essenciais
da solidariedade social” (Ibidem., p. 32).
18
Com isso, a solidariedade social é estudada por Durkheim conforme a natureza das
sanções verificadas genericamente em cada sociedade.
Durkheim classifica, então, a partir dessa percepção, a solidariedade como orgânica e
mecânica. A solidariedade se produz por dois motivos cientificamente comprovados: a
dessemelhança (solidariedade orgânica) e a semelhança (solidariedade mecânica) entre os
indivíduos.
A solidariedade por semelhança, ou mecânica, expressa-se pelo direito repressivo; é
aquela que deriva de uma consciência coletiva mais definida e que possui maior força na
consciência de um grupo social, como, por exemplo, a força absoluta da regra “não matarás”. As
regras advindas da solidariedade que se fundam no direito repressivo já estão arraigadas e definidas
na consciência da coletividade, encobrindo uma possível consciência individual38.
Essa solidariedade seria uma espécie de solidariedade análoga à relação de integração
das moléculas inorgânicas do corpo, que se movimentam de acordo com o movimento do
organismo como um todo, agindo sempre em conjunto (associa-se, assim a uma consciência
coletiva forte e definida)39, como ocorreria – de forma bem sintética – nas sociedades medievais.
Na modernidade, devido ao fato constante da atomização humana, a solidariedade por
dessemelhança passa a se destacar. Trata-se de uma solidariedade decorrente da divisão do
trabalho, em que cada pessoa, pelo fato de não ter todas as qualidades, depende de forma
permanente da qualidade do outro, implicando, assim, uma atração mútua e permanente.
A solidariedade orgânica é aquela que deriva de uma consciência coletiva menos
definida e menos forte, pois aberta à consciência individual, a um movimento (autonomia)
independente do todo40.
Admite-se que o indivíduo deva se emancipar com base em sua individualidade, e,
nesse caso, dá-se importância ao trabalho de cada pessoa, que deve realizar sua função social

38
Essa solidariedade “só pode ser forte na medida em que as ideias e as tendências comuns a todos os membros da
sociedade superem em número e intensidade as que pertencem pessoalmente a cada um deles (...). Essa solidariedade
só pode crescer na razão inversa da personalidade. (...) encontra seu apogeu quando a consciência coletiva recobre
exatamente nossa consciência total e coincide em todos os pontos com ela. Mas, nesse momento, nossa individualidade
é nula” (Ibidem., p. 106).
39
“As moléculas sociais que só seriam coerentes dessa maneira não poderiam, pois, mover-se em conjunto, a não ser
na medida em que não têm movimentos próprios, como fazem as moléculas dos corpos inorgânicos. É por isso que
propomos chamar de mecânica essa espécie de solidariedade mecânica" (Ibidem., p. 107).
40
Aliás, a solidariedade orgânica certamente abre caminho para que se possa pensar a divisão sexual do trabalho, o
que abordaremos mais adiante nesta dissertação.

19
individualmente. Mas, à medida em que se divide socialmente o trabalho de cada indivíduo, uns
passam a depender dos outros, tornando-se necessário, para uma maior coesão social, que os
indivíduos se relacionem coletivamente, a fim de impedir a situação de isolamento41. Neste caso,
é a divisão do trabalho que produz a solidariedade.
Durkheim classifica essa solidariedade como solidariedade orgânica, em analogia às
moléculas orgânicas do corpo, que possuem movimentos próprios, mas que trabalham, ainda que
de forma autônoma, em conjunto com outras moléculas para o funcionamento do organismo42. É o
que ocorreria nas sociedades modernas.
Do pensamento de Bourgeois e Durkheim, e pelo esforço de ambos em tornar a ideia
de solidariedade mais objetiva e cientificamente amparada, fica clara, de um lado, a necessidade,
na época, de se fornecer uma teoria social definida para fundamentar a necessidade de
implementação de um sistema de políticas públicas para evitar a pobreza e a desigualdade social,
que ultrapassasse a mera vontade individual e sentimental de ajudar o próximo (fraternidade).
De outro lado, no entanto, o solidarismo desses autores não implica uma renúncia ao
liberalismo como um todo; ambos procuram encontrar formas de possibilitar que a individualidade
esteja sob proteção constante, como forma de a própria sociedade proteger o indivíduo desde o
nascimento até a morte, e, ainda, para as futuras gerações. Mas é fato que, para esses autores, a
lógica da concepção individualista liberal, fundada, como era, na livre e total concorrência entre as
pessoas, como a única solução para os problemas existentes em sociedade, vai deixando de ser a
base da racionalidade de um raciocínio solidarista.
É isto o que leva a que um estudioso como André-Jean Arnaud afirme que, apesar de
rejeitar algumas premissas do liberalismo clássico, o solidarismo desses autores fundadores da
doutrina tenha se comportado, em certa medida, como um contraponto a determinadas teses
socialistas do final do século XIX e início do século XX43. Disso resulta que as teses solidaristas

41
Essa solidariedade “só é possível se cada um tiver uma esfera de ação própria, por conseguinte, uma personalidade.
É necessário, pois, que a consciência coletiva deixe descoberta uma parte da consciência do indivíduo (...). De um
lado, cada um depende tanto mais estreitamente da sociedade quanto mais dividido for o trabalho nela e, de outro, a
atividade de cada um é tanto mais pessoal quanto mais for especializada" (Ibidem., p. 108).
42
“Essa solidariedade se assemelha à que observamos entre os animais superiores. De fato, cada órgão tem aí sua
fisionomia especial, sua autonomia, contudo a unidade do organismo é tanto maior quanto mais acentuada essa
individualização das partes, Devido a essa analogia, propomos chamar de orgânica a solidariedade devida à divisão do
trabalho”. (Ibidem., p. 108-109).
43
ARNAUD, André-Jean. Uma doutrina tranquilizante do Estado: o solidarismo jurídico. In: ARNAUD, André-Jean.
O Direito traído pela Filosofia. Porto Alegre: SAFE, p. 55-79, 1991. p. 77.
20
não visavam a revolucionar os meios de produção; não se contrapunham ao capitalismo, mas
buscavam regulá-lo.
De certo modo, em sua formação, o solidarismo rejeita o socialismo enquanto negação
de toda e qualquer forma de liberdade de mercado; mas, na mesma medida, rejeita igualmente o
ultra subjetivismo liberal, que proclamava uma liberdade de mercado sem freios. Como explicam
Jean-Cassien Billier e Anglaé Maryioli, a ideologia da solidariedade tenta ultrapassar duas visões
de mundo: por um lado, a visão do individualismo liberal, de ideias “que reclamavam um Estado
fiador unicamente das regras do mercado”44; e, por outro lado, a dos revolucionários, “que
desejavam construir a sociedade contra qualquer lógica de mercado”45.
O caso de Duguit torna a questão mais ambígua: as teorias sociológicas e jurídicas que
fomentam seu raciocínio lidam com a insurgência dos movimentos sociais, recebendo os conflitos
sociais como constituintes da regra de Direito e, ainda, fornecem uma noção de solidariedade que,
ao buscar a redução dos sofrimentos dos indivíduos em comum, não se pauta em uma noção de
solidariedade que pressupõe a necessidade de sacrificar os interesses individuais em nome de
interesses jurídicos coletivos. Duguit busca tornar a solidariedade uma noção mais factível.

1.3. Léon Duguit e a concepção não contratual de solidariedade

Duguit não concordará com todos os conceitos atribuídos à solidariedade pelos


fundadores da doutrina solidarista. Para o autor,

A palavra solidariedade é uma palavra da qual se faz (...) um abuso singular. (...) Ela está
na moda, e ela serve para ocultar, frequentemente, a vida das ideias. No entanto, ela
exprime uma concepção, de fato, real e fecunda, mas que é necessário tornar mais
precisa46.

Em primeiro lugar, o autor desinveste sua conceituação da ideia de solidariedade das


amarras do conceito com as noções de caridade cristã ou de fraternidade. De maneira alguma – dirá

44
BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Anglaé. Op. Cit., p. 307.
45
Ibidem., p. 307.
46
Tradução livre. No original: “Le mot solidarité est un mot dont on fait aujourd'hui un singulier abus. (...) il est à la
mode, et il sert à cacher souvent le vide des idées. Cependant il exprime une conception à la fois réelle et féconde,
mais qu'il importe de préciser.” (DUGUIT, Léon. L’État, le droit objectif et la loi positive. Paris: Ancienne Librairie
Thorin et Fils, 1901. p. 23).
21
Duguit – a solidariedade é sinônimo de caridade e fraternidade. Na verdade, ela é “a um só tempo,
mais e menos do que a caridade e a fraternidade: a caridade e a fraternidade constituem um dever
moral. A solidariedade é um fato. A noção clara desse fato será um fundamento da ação, e poderá
mesmo fundar uma regra de conduta; mas a solidariedade não é, em si mesma, uma regra de
conduta”47.
Se o cristianismo envolve a ideia de solidariedade como uma ação envolvendo o amor
("Amai ao próximo como a ti mesmo") e se a divisa republicana a concebe como um sentimento
fraternal (“haja em irmandade com os outros homens, teus iguais, livres como tu”), a doutrina da
solidariedade, ao contrário, não comanda. Ela constata. Constata que “os homens são solidários
uns aos outros, por assim dizer: têm necessidades comuns que eles só podem satisfazer em comum,
que eles têm aptidões diferentes e necessidades diversas que só se podem satisfazer por uma troca
de serviços mútuos”48. Ela “não é um imperativo para o homem, mas se o homem pretende viver,
como ele só pode viver em sociedade, ele deve conformar seus atos à solidariedade social” 49, de
modo que a solidariedade é, dessa maneira, não uma regra de conduta, um comando moral, mas
um fundamento de uma regra de conduta, como a regra de Direito, por exemplo.
Ademais, ela é um fato que independe da boa vontade do sujeito, e que independente
da manifestação da vontade do sujeito em termos de contrato ou em termos de vontade coletiva,
noção esta que Duguit não vê qualquer sentido:

Nós não vemos sentido na vontade coletiva; há homens que pensam a mesma coisa, que
querem o mesmo sofrimento e mais vida; há homens que querem viver em comum dentro
desse objetivo; mas estes são sempre os indivíduos que pensam e que querem. É sempre
o ser individual que se afirma e que está por toda a parte. O pretenso ser social não existe
50
.

Tais argumentos ficam especialmente claros a partir do momento em que Duguit passa
a indagar o problema do contrato, que, para os solidaristas anteriores, ainda era uma noção fundante

47
Ibidem., p. 23.
48
Ibidem., p. 24.
49
Ibidem., p. 24.
50
Tradução livre. No original: “De volonté collective, nous n'en voyons point; il y a des hommes qui pensent la même
chose, qui veulent la même chose, qui veulent moins souffrir et plus vivre; il y a des hommes qui veulent vivre en
commun dans ce but; mais ce sont toujours les individus qui pensent et qui veulent. C'est toujours Je moi individuel
qui s'affirme et qui est partout; le prétendu moi social n'est nulle part. (Ibidem., p. 37).

22
para a compreensão das relações sociais, o que por certo eles aprendiam com vistas à ideia
iluminista de contrato social.
A solidariedade em Duguit, ao contrário daqueles primeiros solidaristas, é um fato não
contratual, pois, “nós não dizemos: a sociedade existe porque os homens querem viver em comum;
mas os homens sempre viveram em comum, não podem viver a não ser em comum; a partir do
momento em que eles compreendem essa necessidade da vida comum, eles a querem”51. Tampouco
os efeitos do contrato social chegam a corresponder a uma vontade coletiva: “se a hipótese do
contrato social fosse verdadeira, ela não conduziria, como acreditaram Rousseau e todos os homens
da revolução, ao dogma da vontade coletiva”52. Na verdade, mesmo na hipótese do contrato social,
o que se verificaria é somente a existência de várias vontades individuais buscando a mesma coisa,
mas não haveria uma vontade una e indivisível:

A vontade de viver em comum é uma vontade individual; exclusivamente individual.


Imagine milhões de homens querendo a mesma coisa, determinados pelos mesmos
objetivos, você teria milhões de vontades individuais, você não teria uma vontade
coletiva.53

Desse modo, Duguit repudia, para conceituar a solidariedade social, tanto a doutrina
do quase-contrato social de Bourgeois – “que não é mais do que o sistema do contrato social
atenuado ou, antes, mascarado”54 –, como a doutrina de Durkheim, em sua divisão que realiza em
torno da noção de solidariedade mecânica e solidariedade orgânica, pautadas no grau menor ou
maior de consciência coletiva envolvida na relação social.
Duguit concorda com Durkheim quando este autor explica que os homens,
compreendendo que eles possuem mais particularmente as mesmas necessidades que um certo
grupo, concebem-se mais particularmente solidários dos membros desse grupo. De fato,
compreendendo que a vida nesse grupo pode somente lhes assegurar um menor mal, os seres
humanos querem manter essa solidariedade. Compreende, assim como Durkheim, que esta é uma
primeira forma de solidariedade entre os homens, que nasce da comunhão de pensamentos,
necessidades e vontades, forma que Duguit prefere chamar de solidariedade por similitudes. Em

51
Ibidem., p. 38.
52
Ibidem., p. 38.
53
Tradução livre. No original: “le vouloir vivre en com est une volonté individuelle, exclusivement individuelle.
Imaginez des millions d'hommes voulant la même chose, déterminés par le même but, vous aurez des millions de
volontés individuelles, vous n'aurez pas une volonté collective.” (Ibidem. p. 39).
54
Ibidem., p. 39.
23
uma nota de rodapé de seu texto L’État, le droit objectif et la loi positive, Duguit comenta que tal
noção de solidariedade, embora se encontre em Durkheim, não deve seguir o conceito por ele
atribuído de solidariedade mecânica, tanto porque este conceito leva a crer que há uma
possibilidade de existir uma consciência coletiva superior às consciências dos indivíduos –
retornando, assim, ao problema metafísico de Rousseau –, tanto porque se trata de uma expressão
“pouco exata”, implicando a aplicação à sociedade de leis que são advindas da física55.
Ora, a ideia de solidariedade mecânica envolveria pensar em uma massa de indivíduos
que possuem, por si, consciência própria. Se esta solidariedade por similitude une os homens de
um mesmo grupo; se ela une também os membros da humanidade inteira, Duguit entende que não
é possível, porém, dizer que do fato da consciência da solidariedade humana preceda uma única
consciência de solidariedade de grupo. Não há, e nunca houve, como supunha Durkheim,
sociedades homogêneas. Pautando-se no pensamento do filósofo inglês Herbert Spencer,
precisamente no texto Princípios de sociologia, tomo III, Duguit compreende que a única
conclusão inquestionável a respeito das relações humanas e da diferenciação entre as forças sociais
é que “jamais se observou coletividade de homens na qual pudesse haver uma homogeneidade
perfeita e absoluta entre os indivíduos que a compusessem”56; “o que é verdade é que os homens
primitivos tendiam mais a se parecer uns com os outros, do que em relação aos homens
civilizados”57; ou, em, outras palavras, não haveria para Duguit, mesmo nas sociedades mais
antigas, ou cujo desenvolvimento histórico se deu de maneira distinta daquela que formou as
sociedades dos grandes centros europeus, a homogeneidade que supunha Durkheim.
Quanto ao segundo tipo ou forma de solidariedade, Duguit prefere também não atribuir
a ela o conceito durkheineano de solidariedade orgânica, já que tal conceito alude igualmente a
uma tentativa de compreender a sociedade por leis físicas. Prefere utilizar o conceito de
“solidariedade por dessemelhança”. Na sociedade moderna – explica Duguit – “a multiplicidade
crescente de necessidades implica uma diversidade crescente entre os indivíduos”58. Se todos
buscam a diminuição do sofrimento individual, “cada um, para chegar a este objetivo único de todo
o esforço humano, persegue meios diversos e tem, por consequência, necessidades diferentes”59.

55
Ibidem., p. 40 (nota 1).
56
Ibidem., p. 43.
57
Ibidem., p. 43.
58
Ibidem., p. 44.
59
Ibidem., p. 44.
24
Mas, se essas necessidades variam de acordo com as classes da sociedade e, ainda, de acordo com
cada indivíduo dentro de cada classe, a aspiração comum de diminuir o sofrimento comum não
deixa de existir, e, mais do que isso, passa a depender, na medida da maior diversidade de
necessidades e desejos, da troca de serviços mútuos:

Os homens sofrem, têm necessidades diversas, compreendem que eles têm aptidões
diversas, e, se eles compreendem ao mesmo tempo que eles podem assegurar a satisfação
dessas necessidades pela troca de serviços, se eles querem e se eles praticam essa troca de
serviços, é porque eles creem, e somente porque creem, ou, se se preferir, porque eles
esperam, que desta divisão do trabalho resultará uma diminuição de sofrimento 60.

Em Duguit, a solidariedade significa não um reconhecimento do interesse coletivo e


homogêneo, pois, para o autor, “aqueles que pregam essa solidariedade, não pregam eles outra
coisa senão o sacrifício do interesse individual ao interesse coletivo”61. A solidariedade presente
nas sociedades modernas não é, para Duguit, uma solidariedade vinculada a um contrato social ou
a uma vontade coletiva una. Isso porque, quanto mais a solidariedade se torna uma solidariedade
por dessemelhança, mais a figura do contrato desaparece.
Se eu faço um contrato de venda – explica Duguit –, ou seja, “se eu quero dispor a tal
pessoa tal coisa determinada, é porque esta pessoa quer me pagar um preço que eu considero como
equivalente”. Neste caso, “não há somente duas vontades concorrentes. Há duas vontades que são
determinadas reciprocamente uma pela outra”62. Agora, quando os supostos contratantes não
possuem vontades determinadas reciprocamente uma pela outra, como acontece em uma sociedade
capitalista, não há contrato. O exemplo da relação entre o trabalhador e um poderoso capitalista é
elucidativo, para Duguit. Costuma-se falar de um contrato de locação de serviços entre um
poderoso empregador capitalista e o trabalhador, no qual o empregador fixa, de antemão e
espontaneamente, o salário, e o empregado o aceita. Neste caso, explica Duguit, “o empregador
não fixou tal salário porque tal empregado o aceitou, mas por uma causa completamente diversa;
o empregado o aceita e quer trabalhar mediante tal salário porque ele quer viver. De contrato, não
há nada”63.

60
Tradução livre. No original: “Les hommes souffrent, ont des besoins divers, comprennent qu'ils ont des aptitudes
différentes, et, s'ils comprennent en même temps qu'ils peuvent assurer la satisfaction de ces besoins par l'échange des
services, s'ils veulent et s'ils pratiquent cet échange des services, c'est parce qu'ils croient et seulement parce qu'ils
croient, ou si l'on aime mieux parce qu'ils espèrent, que de cette division du travail résultera une diminution de
souffrance.” (Ibidem. p. 50).
61
Ibidem., p. 48.
62
Ibidem., p. 54.
63
Ibidem., p. 55.
25
Desse modo, além de ter se contraposto desde o princípio ao contratualismo de matriz
liberal, Duguit faz uma crítica severa à noção de contrato propalada pela matriz socialista de sua
época, que concebe a luta de classe como a base do Direito. É que, compreendendo a proteção do
trabalho por um contrato de trabalho que protege o trabalhador contra o capitalista que o explora,
não consegue, uma parte dos socialistas, argumentar contra a suposição liberal de que, se estamos
diante de um contrato, as partes são presumidamente livres, de modo que o trabalhador estará
sempre vinculado aos termos propostos pelo capitalista. Para Duguit, somente quando a situação
se resolver em âmbito extracontratual é que o trabalhador poderá desenvolver realmente a sua
liberdade:
Todo um partido tem reclamado por leis acerca da limitação da jornada de trabalho em
nome da luta de classes. Pretende-se que o legislador deva intervir para proteger o
trabalhador contra o capitalista que o explora. E se tem respondido, não sem razão, que
entre o trabalhador e o patrão, entre o capitalista e o trabalhador, media um contrato que
deve ser livre; o legislador não pode intervir no contrato de trabalho, como não pode
intervir nos demais contratos. Tem-se plantado mal o problema. Não é esta uma questão
de liberdade de contratos. A única coisa que se há de saber é se, trabalhando cada dia mais
do que certo tempo, o trabalhador compromete sua saúde, sua vida, sua personalidade
intelectual e moral. Se isto restar demonstrado, o legislador deve intervir para que esta
duração máxima não se prolongue. Não fará, então, mais do que proteger o valor social
que representa a vida humana. [O legislador] deve intervir não somente quando o obreiro
trabalha para outro, como também quando trabalha para si mesmo. O fim especial da lei
não é apenas proteger o trabalhador contra o empresário, mas, também, proteger o
trabalhador contra si mesmo e apesar de si mesmo. É a prova clara de que não se trata de
uma questão de contrato64.

Duguit, assim, embora não descarte definições importantes de solidariedade


formuladas pelos fundadores do solidarismo francês, demonstra que tanto Bourgeois, como
Durkheim, mantêm uma abordagem transcendental e metafísica da noção de solidariedade social,
inconcebível para servir de base a uma ciência objetiva, como a ciência do Direito. O problema de
Durkheim e Bourgeois, para Duguit, é que, ao invés de negarem o transcendentalismo do contrato

64
Tradução livre. Trecho na tradução em espanhol: “Todo um partido ha reclamado leyes sobre la limitación limitación
de la jornada de trabajo em nombre de la lucha de clases. Ha presendido que el legislador debe intervenir para proteger
al trabajador contra el capitalista que le explora. Y se ha respondido, y no sin razón, entre el obrero y el patrono, entre
el capitalista y el trabajador, media um contrato que debe ser libre; el legislador no puede intervenir em el contrato de
trabajo, como no pude intervenir em los demás contratos. Se planteaba así mal el problema. No es esta una cuestón de
libertad de contratos. Lo único que hay que saber es si trabajando cada día más de um certo tempo, el obrero no
compromete su salud, su vida, su personalidade intelectual y moral. Si esto resulta demonstrado, el legislador deve
intervenir para que esta duración máxima no se prolongue. No hace entonce más que proteger el valor social que
representa la vida humana. Deve intervenir, no sólo cuando el obrero trabaja para outro, sino también cuando trabaja
para sí mesmo. El fin essencial de la ley no es tanto proteger al obrero contra el empresário, como proteger al trabajador
contra sí mesmo y a pesar suyo. He aqui la prueba clara de que no se trata de uma cuesión de contrato” (DUGUIT,
Léon. Las transformaciones generales del derecho privado desde el código de Napoleon. Coleção Juristas Prennes.
Chile: Edelval, 2011. p. 51).
26
social rousseauneano, apenas o sofisticam, tanto pela noção de quase-contrato em Bourgeois,
quanto pela noção de consciência coletiva em Durkheim. O que lhes faltaria seria uma noção de
solidariedade enquanto fato social independente da noção metafísica de contrato ou da noção
totalitária de coletividade. A solidariedade, em Duguit, tomará exatamente a ideia do contrato
social como o seu contrário, como aquilo que não é, de fato, solidariedade, ou que não pode ser
considerado uma forma de solidariedade social demonstrável no plano da realidade. O contrato
social não é factível, e todas as noções que seguem esse conceito não podem servir à ciência
objetiva do Direito e do Estado de Duguit; somente a solidariedade como um fato social pode servir
de base a uma regra de Direito, delimitadora da função do Estado e da propriedade.
Além disso, ao contrário de Durkheim, Duguit não toma a divisão social do trabalho
como ponto de partida determinante da solidariedade social. Como vimos, a divisão do trabalho
social é, para Duguit, um meio para diminuir o sofrimento comum, é um meio para lidar com o
fato de que os homens pretendem aspirações comuns, apesar das diferenças. Assim, em Duguit, a
solidariedade é fator de criação das relações sociais, e, portanto, ela não é determinada, mas
determinante das formas aparentes de sociabilidade, incluindo a divisão social do trabalho.
Embora não seja uma regra de conduta social em si mesma, a solidariedade é, no
entanto, a base de todas as regras de conduta sociais, incluindo a regra de Direito. O que é preciso
compreender, dentro do pensamento de Duguit, é o que diferencia essa regra de Direito de outras
regras determinantes da sociedade, tais como a regra de costumes ou a regra econômica.

27
2. O Direito Social ou Direito fundado na solidariedade

2.1. A regra de Direito, o Direito Objetivo e crítica do Direito Subjetivo

Uma das principais críticas de Duguit ao ensino jurídico francês era dirigida ao modo
como uma determinada escola de juristas, mais tarde nomeada escola da exegese, abandonara o
estudo do Direito Civil para passar a estudar o Código de Napoleão, por meio de leituras das leis
positivadas.
Foi principalmente contra essa forma comum de ensinar os estudantes de Direito que
Duguit buscou expandir o seu conhecimento a partir da concepção de regra de Direito.
Ao palestrar a alunos da Universidade Egípcia sobre o papel das Faculdades de Direito,
Duguit relembrou aos estudantes um fato: antes de visitar Buenos Aires, para realizar conferências
à Faculdade de Direito argentina, Duguit encontrou-se com um amigo que o questionou sobre o
motivo pelo qual iria dar aulas em um lugar tão diferente da França. Supôs o amigo que isso
decorreria porque as leis francesas deviam ser iguais às leis argentinas. Duguit explicou que a
suposição de seu amigo não estaria correta: na verdade, o motivo de sua visita não seria decorrente
da existência de leis positivas comuns, mas de regras de direito comuns: “meu pobre amigo, eu
respondi, você ignora ainda que há inúmeras regras de Direito não escritas que são as mesmas para
todos os países civilizados, e que a evolução geral do Direito é idêntica a todos os povos que
alcançaram um mesmo estágio”65.
A partir desse exemplo, explicou o autor aos alunos da Faculdade Egípcia que o papel
do ensino jurídico seria, então, o estudo dessas regras gerais e dessa evolução geral do Direito, e
que “se o papel do professor do Direito se limitar a comentar as leis positivas, isso não levaria um
minuto de esforço”66. Conceber uma regra de Direito, para Duguit, não é, de fato, o mesmo do que
comentar ou ler as regras positivadas e escritas em um determinado Código de lei. A regra de
Direito pode se encontrar presente nas leis escritas de uma nação, mas também pode ultrapassar,

65
DUGUIT, L. Lecciones de Derecho Publico General: Impartidas en la Facultad de Derecho de la Universidad
Egipcia durante los meses de enero, febrero y marzo de 1926. Tradução de Javier García Fernandez. Madri: Marcial
Pons, 2011, p. 41.
66
Ibidem, p. 41.
28
por sua universalidade, a mera organização legal de um determinado grupo, podendo, inclusive,
divergir de determinadas normas escritas.
É preciso notar, contudo, que essa característica de universalidade da regra de Direito,
embora importante em Duguit, define a diferença precisa entre as leis positivas e as regras de
Direito, mas não explica a diferença entre uma regra de direito e uma regra social – nem todas as
regras sociais são regras de Direito; é preciso determinar o momento em que uma regra social se
converte em regra de Direito, e quais critérios viabilizam tal conversão. Regras de costumes não
são certamente regras de Direito, embora sejam sociais, posto que sua violação comporta uma certa
reação; o que interessa é saber o momento em que convertem em regras de Direito.
Segundo Javier García Fernández, a regra de Direito para Duguit tem um elemento que
não necessariamente se encontra nas normas sociais (morais e econômicas): o elemento da
organização. Explica o estudioso do autor que “a norma social e a norma econômica se convertem
em norma jurídica ou em regra de Direito quando na sociedade penetra a ideia de que o não
cumprimento daquelas provoca uma reação social organizada”67.
Porém, ao lermos a explicação de Duguit, verifica-se que o elemento organização, na
verdade, não é decisivo para conceber uma regra de Direito. Segundo o próprio jurista francês,
“para que a norma seja uma regra de Direito não é necessário que a sanção esteja organizada; mas
é necessário que pareça a todos como legítima, e que, ademais, essa legitimidade seja desejável”68.
Aquilo que distingue as regras sociais das regras de Direito é, portanto, a legitimidade
socialmente desejada da norma. Os costumes são o exemplo mais elucidativo de uma regra moral
que pode não se converter em uma regra de Direito, caso não haja essa legitimidade. Um costume
pode ser contrário ao desejo da sociedade e, neste momento, deixa de ser socialmente legítimo,
mantendo-se como mera regra social.
Assim, segundo Duguit, “uma regra de costumes se transforma em regra de Direito
quando, na consciência geral dos indivíduos que compõem uma nação, penetra a ideia de que
resulta legítimo que esta regra seja sancionada socialmente”69.

67
FERNANDEZ, Javier García. Estudio Preliminar. DUGUIT, L. Lecciones de Derecho Publico General: Impartidas
en la Facultad de Derecho de la Universidad Egipcia durante los meses de enero, febrero y marzo de 1926. Tradução
de Javier García Fernandez. Madri: Marcial Pons, 2011. p. 23.
68
DUGUIT, L. Lecciones de Derecho Publico General: Impartidas en la Facultad de Derecho de la Universidad
Egipcia durante los meses de enero, febrero y marzo de 1926. Tradução de Javier García Fernandez. Madri: Marcial
Pons, 2011. p. 51.
69
Ibidem., p. 51.
29
É dessa forma que Duguit concebe uma regra que se distancia de qualquer explicação
do Direito fundada na natureza abstrata do homem, já que o Direito se encontra na relação do
homem com os demais sujeitos sociais. E, ainda mais evidente, essa noção trazida por Duguit toma
distância e rejeita radicalmente a concepção do fundamento da regra de Direito no poder do Estado.
É isto que o leva a apresentar severas críticas ao autor modelar da Doutrina de Direito Individual,
Rudolf von Ihering (1818-1892). Segundo Ihering, a regra de Direito é definida como tal quando
o Estado lhe confere esse caráter; Duguit acusará este autor de confundir a regra de Direito com a
lei positiva. Na verdade, ao vincular o fundamento da regra de Direito à solidariedade social, e,
mais precisamente, na legitimidade socialmente desejada da norma, Duguit explica que a fonte do
Direito não se encontra no Estado, mas na consciência dos indivíduos que compõem um mesmo
grupo social. Segundo ele, a regra de Direito independe do Estado para existir, podendo estar acima
do Estado, tal como explica ao rejeitar, igualmente, a compreensão de Direito do jurista bávaro
Max von Seydel (1846-1901):

Um célebre jurista bávaro, Seydel, escreveu: “há um princípio fora de toda discussão: que
não há Direito acima do Estado, que não há Direito ao lado do Estado, e que só há Direito
através do Estado”. Eu protesto energeticamente e afirmo que existe um Direito sem o
Estado e acima do Estado. Se a regra de Direito fosse uma pura criação do Estado seria
ela todo o poder deste e isso é inadmissível na prática70.

Essa sua crítica é muito semelhante ao problema apontado por Duguit da Teoria da
Autolimitação do Estado. Abordaremos essa discussão em momento posterior desse trabalho, mas
o que Duguit demonstra, em geral, é que essa teoria, ao partir da ideia de que a regra de Direito
tem como pressuposto, para sua existência, a força do Estado, quer tentar criar uma pessoa coletiva
cuja limitação a sua arbitrariedade restaria definida por ela mesma. Ora, mas um Estado que é
limitado por um Direito que o próprio Estado estabelece não tem legitimidade alguma: essa teoria
se baseia em “uma simples piada, porque uma obrigação que se crê a si mesma, à qual se pode
subtrair, e da qual se pode evadir quando e como se desejar, não é, portanto, obrigação”71.

70
Tradução livre. Trecho na tradução em espanhol: “Um célebre jurisconsulto bávaro, Seydel, escribió: ‘Hay un
principio fuera de toda discusión: que no hay Derecho por encima del Estado, que no hay Derecho al lado del Estado,
y que sólo hay Derecho a través del Estado’. Yo protesto energicamente y afirmo que existe um Derecho sin el Estado
y por encima del Estado. Si la regla de Derecho fuera uma pura creación del Estado sería todo el poder de éste y eso
em inadmisible em la prática”. (Ibidem., p. 49).
71
DUGUIT, Léon. Traité de droit constitutionnel. 2ª ed. Tomo I. Paris: Ancienne Librairie Fontemoing, 1921, p. 496.

30
Tal formulação do solidarismo de Duguit, como veremos adiante, como explica Javier
García Fernandez, serviu para “reafirmar a origem social e não estatal do Direito, ou, como via
Gurvitch, para liberar o Direito positivo de toda dependência frente ao Estado”72.
Tal discussão pode ser bem observada na definição que Duguit faz a respeito das regras
de Direito Objetivo. Explica Duguit que o Direito Objetivo pode ser conceituado como um
“conjunto de regras de conduta que se impõem a todos os membros de uma sociedade por uma
sanção coletiva organizada de forma mais ou menos completa”73, e isso se justifica porque não é
possível que uma sociedade viva sem Direito, de modo que essas regras de Direito objetivo são,
também, regras de disciplina social, as quais mantêm os membros da sociedade agregados, uns aos
outros.
Tal concepção obriga a que compreendamos os limites, no polo oposto, daquilo que
Duguit não compreende como direitos objetivos, ou seja, os direitos subjetivos segundo seu
pensamento. De qualquer maneira, a época de Duguit não poderia compreender a noção de “Direito
Subjetivo” tal como hoje se faz; até aquele momento, o Direito Subjetivo está ligado a um poder
de vontade (o termo “Direito Subjetivo” foi, afinal, amplamente redefinido na segunda metade do
século XX). É a este poder de vontade que Duguit dirige seu objeto de crítica quando ele descrê do
Direito Subjetivo tal como sistematizado por doutrinas alemãs e italianas do século XIX e do início
do século XX, ainda antes da Primeira Guerra Mundial.
O primeiro autor que Duguit cita, nesse âmbito, é Bernhard Windscheid (1817-1892),
para quem, segundo Duguit, “o direito subjetivo é um poder de vontade”74; “uma pessoa é titular
de direito subjetivo quando sua vontade é, sobre uma questão determinada, mais forte do que a de
outro ou de outros e se impõe como tal a este”75. Essa mesma concepção também se aplica ao
Estado, que, por sua força, “tem o direito subjetivo de mandar, ou soberania”76. No âmbito da
proteção à propriedade privada, esse direito possibilita a indisponibilidade absoluta dos bens de um

72
FERNANDEZ, Javier García. Estudio Preliminar. DUGUIT, L. Lecciones de Derecho Publico General: Impartidas
en la Facultad de Derecho de la Universidad Egipcia durante los meses de enero, febrero y marzo de 1926. Tradução
de Javier García Fernandez. Madri: Marcial Pons, 2011. p. 21.
73
DUGUIT, Léon. Lecciones de Derecho Publico General: Impartidas en la Facultad de Derecho de la Universidad
Egipcia durante los meses de enero, febrero y marzo de 1926. Tradução de Javier García Fernandez. Madri: Marcial
Pons, 2011. p. 57.
74
Ibidem., p. 53.
75
Ibidem., p. 53.
76
Ibidem., p. 53.

31
proprietário, porque, sendo titular de um direito subjetivo, “sua vontade se impõe por si mesma a
qualquer outra vontade que pretenda turbar a posse da coisa”77.
Evidentemente que essa noção de direito subjetivo pode desenvolver uma sociedade
cujos fins não são a solidariedade social, já que tal noção dependente da boa vontade do sujeito de
direito para agir em prol da sociedade. Além disso, ela não consegue se universalizar, pois envolve
uma situação de privilégio: não consegue alcançar os interesses das pessoas privadas de razão por
conta de sua idade ou de suas enfermidades. Segundo Duguit, além disso, ela não consegue sequer
alcançar os interesses coletivos, “a menos que se prove que as coletividades têm uma vontade
consciente distinta dos indivíduos que as compõem”78.
Para Duguit, haveria um outro conceito de Direito Subjetivo que poderia, em tese,
alcançar a todos os sujeitos: o conceito de Ihering, para quem “o Direito Subjetivo é simplesmente
um interesse protegido pela lei”79. Nesse ponto, o autor consegue se desvincular da ideia de uma
vontade consciente e parece alcançar, com maior generalidade, sujeitos que são privados de razão.
Ou seja: “pessoas privadas de razão podem ser titulares de direitos subjetivos”80, o que também se
aplica às coletividades, que poderão, então, estar protegidas, independentemente da ideia de que
possuam uma vontade coletiva, ou não.
Do pensamento de Ihering, Duguit questionará, no entanto, a extensão de tal conceito
de Direito Subjetivo, pois ele se mostraria extremamente genérico: “há muitos interesses protegidos
pela lei que não são, certamente, direitos subjetivos (...). O próprio Ihering reconhece que não se
encontra, por exemplo, em um comerciante cujos interesses estão protegidos por uma tarifa
aduaneira, uma proteção pelo direito subjetivo”81.
Além disso, quando a lei protege o indivíduo, ela o está fazendo não para que esse
indivíduo tenha um direito subjetivo que permita impor sua vontade sobre a de outro indivíduo,
mas para que ele possa exercer um Direito Objetivo, conforme o fim da solidariedade social. A
concepção de Ihering, ao tentar vincular o Direito Subjetivo a fins sociais, pretende abraçar um
Direito ao mesmo tempo subjetivo e objetivo, e, portanto, passa, como explica Duguit, a ser
“obrigado a inventar a teoria obscura e artificial dos reflexos do Direito Objetivo”82.

77
Ibidem., p. 53.
78
Ibidem., p. 53-54.
79
Ibidem., p. 54.
80
Ibidem., p. 54.
81
Ibidem., p. 54.
82
Ibidem., p. 54.
32
Do ponto de vista prático, podemos dizer, com Duguit, que a doutrina de Ihering
poderia engendrar, tal como a doutrina de Windcheid, um poder arbitrário ao sujeito, como a um
proprietário, por exemplo. A partir do momento em que esse proprietário possui um direito
subjetivo, não há garantia alguma de que vá agir em benefício da função social da propriedade.
Quando Duguit fornece a noção de direito objetivo, esse proprietário não terá saída que não seja a
de usar sua propriedade para o fim da solidariedade social. Ou seja: para Duguit, a propriedade
precisa sim, ser protegida pela lei, mas isso não pode significar que o proprietário tenha um direito
subjetivo. Ele será portador, na verdade, de um direito objetivo que legitimará o seu direito de
propriedade, a partir do momento em que esteja de acordo com a regra de Direito necessária à
integração social.
Para Duguit, toda noção de “direito subjetivo”, seja a de Ihering, seja a de Windcheid,
além de ser uma noção metafísica, sem lastro com a realidade, pois factualmente indemonstrável,
acaba criando uma hierarquia de vontades que pode resultar na superioridade da vontade de uns
sobre outros, de modo que poderíamos dizer, então, que essas noções de direito subjetivo
chancelam uma sociedade deixada ao jogo das forças econômicas, morais, religiosas, o que
significa, enfim, que a noção de direito subjetivo, àquele momento, na verdade, ajudaria – ao
contrário da suposição de Ihering – a desproteger o sujeito, e daí a crítica a esta noção por Duguit.
É nesse sentido, por certo, que José Fenando de Castro Farias, quando, em defesa à
doutrina de Duguit, afirma que o jurista francês não exatamente nega a noção de direito subjetivo.
De acordo com Farias, no fundo, “Duguit não negava a existência do elemento subjetivo na ordem
jurídica e a individualização do direito objetivo no curso de sua aplicação”83, de tal maneira que,
para esse estudioso de Duguit, “poderíamos mesmo dizer que o direito subjetivo não era
incompatível com a sua concepção de ‘direito objetivo’”84.
A primeira parte dessa formulação – Duguit não negava a existência do elemento
subjetivo na ordem jurídica – está absolutamente correta, mas daí não podemos concluir nada além
de que Duguit apenas aceite a noção de sujeito de direito. A questão é que esse sujeito deve agir
em conformidade com a regra de direito objetivo; do contrário não será sujeito de direito. Ou seja:
ao menos do ponto de vista da noção de direito subjetivo desenvolvido por Ihering e Windcheid,
não há em Duguit qualquer espaço para o direito subjetivo, muito embora talvez seja possível,

83
FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito de solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 240.
84
Ibidem., p. 241.
33
como quer Farias, antever, no pensamento do autor, bases suficientes para ancorar a noção de
direito subjetivo tal como hoje a compreendemos – questão que abordaremos mais adiante.

2.2. Solidariedade social, igualdade e liberdade

Embora seja comum vermos uma série de autores que estudaram o pensamento jurídico
na história compreenderem o solidarismo jurídico como mais uma ideologia, como é o caso de
Billier e Maryioli, partimos do princípio neste trabalho – ao lado de autores como José Fernando
de Castro Farias – de que o solidarismo, antes de que um pensamento ou ideologia, é um discurso
que buscou fundar uma outra racionalidade, social, jurídica e política de mundo, capaz não apenas
de compreender, mas também de direcionar, de modo específico, as transformações sociais da
virada do século XIX para o século XX.
A construção teórica de Duguit, vinculando a solidariedade à sua ciência do Direito,
foi fundamental para essa busca por outra racionalidade. Como explica Farias, a obra de Duguit
traduz-se como uma tentativa de construir um novo sistema jurídico, capaz de superar a crise pela
qual passava o direito no fim do século XIX e no início do século XX. Aponta Farias, inclusive,
em contraposição a autores como Pierre Rosanvallon, que o discurso da solidariedade não se reduz
simplesmente a um reajustamento do Estado Liberal clássico, pois fornece, em seu lugar, uma
“nova racionalidade político-jurídica” (...) que F. Ewald chama de ‘novo imaginário político-
jurídico’: o ‘imaginário segurador’”85.
Duguit contribui a este movimento de superação da racionalidade jurídico-política
liberal apresentando uma formulação de Direito que revisou algumas noções jurídicas que os
franceses, de modo geral, alçavam como universais a partir da Revolução Francesa de 1789, em
especial os princípios da igualdade e liberdade.
Tanto para o liberalismo clássico quanto para os juristas do chamado Direito Individual
– como denomina Duguit –, prevalecia uma concepção subjetivista e individualista dos princípios
éticos fundantes do Direito.

85
FARIAS, José Fernando de Castro. A Teoria do Estado no fim do século XIX e no início do século XX: os enunciados
de Léon Duguit e de Maurice Hauriou. Rio de Janeiro: Lumen Juirs, 1999. p. 62-63.
34
A igualdade, por exemplo, para essa corrente de pensamento, formou-se como um ideal
declarado com a pretensão revolucionária de subverter os argumentos teológicos que refletiam e
reproduziam o sistema de privilégios de estamento e nascimento. Ao iniciar a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão com a frase “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos”,
os revolucionários franceses deixaram inscrito que a igualdade pressupõe que os homens deveriam
ser tratados, em abstrato, da mesma forma, como sujeitos presumidamente iguais, e, portanto, livres
para realizar suas próprias perspectivas de vida.
Isso levava a que o critério da estirpe e do bom nascimento para o acesso aos bens e à
riqueza fosse aos poucos sendo substituído pelo critério do mérito86, que lhes parecia mais
igualitário que os anteriores. Nesse sentido, a igualdade, ao passar uma régua entre antigos nobres,
burgueses e o povo, forneceria à burguesia em ascensão uma importante “arma de combate” contra
os privilégios do Antigo Regime, de base teológica.
Levando-se até o fim esse ideal, basicamente todas as relações sociais intersubjetivas
teriam de ser orientadas, de algum modo, pela prática da igualdade. Ela penetrou, de fato, a
sociedade francesa no modo de se vestir, de se falar, de se portar socialmente, e mesmo no modo
como um ser humano deveria ser levado à morte: pela igualdade da guilhotina. A título de
curiosidade, como explica Fabio Comparato,

A introdução da guilhotina na França foi uma medida considerada de relevante alcance no


sentido da igualdade, porque, até a Revolução Francesa, até as revoluções burguesas, as
pessoas nasciam desiguais e eram condenadas a uma morte desigual. Só os nobres tinham
direito a esse privilégio de ter a sua cabeça decepada. Os não nobres, os burgueses, eram
enforcados, e os plebeus eram esquartejados. Então, o Dr. Guillotin resolveu introduzir
essa medida de profilaxia igualitária: todo mundo condenado à morte deve comparecer ao
suplício e tem que sair sem a cabeça87.

Economicamente, o que estava em jogo pela ideia de igualdade era principalmente a


possibilidade de liberdade de comércio, até então limitada por um regime que não permitia
considerar juridicamente todos como iguais (com as mesmas possibilidades) para atingir o mérito.
Essa igualdade liberal, exaltada durante o século XIX, passaria a servir, enfim, a uma
outra forma de privilégio. Se antes a igualdade era uma potente arma de combate da burguesia face

86
Cabe notar, naturalmente, que o sentido de “mérito” modificou-se substancialmente da época em que Duguit escrevia
para a atualidade, quando estamos fronteados a problemas relativos à nova ideia de “meritocracia” que a sociedade
contemporânea produziu. “Mérito”, naquele momento, esboçava-se em oposição a hereditariedade.
87
COMPARATO, Fábio Konder. O Princípio da igualdade e a escola. In: Cadernos de Pesquisa, n.104, p.47-57, jul.
1998. p. 5.
35
aos antigos privilégios da nobreza, agora, revelava-se como um privilégio de natureza econômica,
capaz de colocar nas mãos da burguesia, classe comercial em sua essência, o monopólio sobre as
riquezas da sociedade.
O que os movimentos de trabalhadores e a própria situação social do proletariado
denunciaram na segunda metade do século XIX foi o fato de que o crescimento frenético de uma
indústria sustentada pelo sistema econômico e jurídico que privilegiava o status quo tinha apenas
um resultado: manutenção, produção e reprodução de desigualdades econômicas. E, de fato, o
aumento de denúncias por parte de setores sociais menos privilegiados e os debates acerca da
possibilidade de uma situação social mais justa entre o final do século XIX e o começo do século
XX acabaram por insistir em que a igualdade natural e presumida de todos os homens em sociedade
tendia a ser irrealizável na prática, uma vez que colocava sob a mesma medida o indivíduo com
mínima (ou nenhuma) condição de ascensão na sociedade e o indivíduo com oportunidade de
atingir todas as condições necessárias para o mérito.
Na prática, a ideologia liberal já não se mostrava suficiente para lidar com as exigências
do sistema industrial e financeiro existente, e os liberais ortodoxos não conseguiam assimilar, pela
ideia da mão invisível do mercado, o fato de que a lei da oferta e da procura não estava realmente
na base deste sistema; não conseguia assimilar a realidade mesma da estrutura de empresa diante
das novas formas de apropriação do capitalismo. O surgimento de grupos cartelizados seria uma
comprovação de que a igualdade prometida pela livre concorrência realizava-se tão somente em
uma dimensão discursiva; na prática, funcionava como uma proteção jurídica para que as empresas
pudessem se organizar em monopólios e oligopólios, competindo da forma como quisessem –
inclusive de forma desleal – no mercado aberto. Como apontam Pierre Dardot e Christian Laval,

O reinado de uns poucos autocratas à frente de empresas gigantescas, controlando o setor


das ferrovias, do petróleo, dos bancos, do aço e da química nos Estados Unidos (...)
desacreditava a ideia de uma coordenação harmoniosa de interesses particulares (...). O
que o liberalismo clássico não incorporou adequadamente foi precisamente o fenômeno
da empresa, sua organização, suas formas jurídicas, a concentração de seus recursos, as
novas formas de competição (...). A empresa moderna, integrando múltiplas divisões,
gerida por especialistas em organização, tornara-se uma realidade que a ciência econômica
dominante ainda não conseguia compreender, mas que muitos espíritos menos
preocupados com os dogmas, em particular entre os economistas “institucionalistas”,
começaram a examinar. O surgimento dos grandes grupos cartelizados marginalizava o
capitalismo de pequenas unidades; o desenvolvimento das técnicas de venda debilitava a
fé na soberania do consumidor; e os acordos e as práticas dominadoras e manipuladoras
dos oligopólios e dos monopólios sobre os preços destruíam as representações de uma
concorrência leal, que beneficiava a todos (...). Os políticos faziam sobretudo o papel de

36
marionetes nas mãos dos que detinham o poder do dinheiro. A “mão visível” dos
empresários, dos financistas e dos políticos ligados a eles enfraqueceu formidavelmente a
crença na “mão invisível” do mercado88.

Em sentido semelhante, destaca José Fernando de Castro Farias:

O liberalismo econômico passava a agir contra ele mesmo a partir do momento em que se
servia à concentração de monopólios, negando os próprios mecanismos da livre-
concorrência. A concentração de bens nas mãos de uma classe privilegiada contradizia a
retórica do interesse geral, do progresso e da felicidade89.

O solidarismo de modo geral foi uma tentativa de apresentar uma solução social à crise
liberal que não fosse pensada como uma continuidade ou refundação do pensamento liberal
clássico. Nesse sentido, cabe observar os apontamentos de base que realizava Duguit em relação
tanto às declarações da Revolução Francesa quanto ao Código Napoleônico vigente na França:
partiam, ambos, ao tratarem da igualdade e da liberdade, de uma premissa de saída ficcional e
contraditória, porque sua base se consolidava sobre uma afirmação a priori e hipotética:

O homem natural, isolado, que nasce livre e independente de outros homens, e com
direitos constituídos por essa mesma liberdade e essa mesma independência, constitui uma
abstração desvinculada com a realidade. O ser humano nasce integrado a uma coletividade
(...). Não é razoável afirmar que os homens nascem livres e iguais em direito, mas, sim,
que nascem partícipes de uma coletividade e sujeitos, assim, a todas as obrigações que
subentendem a manutenção e desenvolvimento da vida coletiva90.

Sobre a ideia de igualdade natural, Duguit aponta que, além de hipotética, essa
igualdade é também contraditória na prática, pois “os homens, muito longe de serem iguais, são
essencialmente diferentes entre si, e essas diferenças, por sua vez, acentuam-se conforme o grau
de civilização da sociedade”91.
Na verdade, o que Duguit destaca a respeito dessa forma de igualdade não é
evidentemente uma recusa à ideia de igualdade de direitos; sua recusa recai sobre a premissa da
igualdade absoluta e natural dos homens como um pressuposto realmente existente. Não nega,
todavia, que os homens devem ter um direito igual à proteção da lei positiva. Se a Declaração dos

88
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Op. Cit., p. 58-59.
89
FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito de solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 196.
90
DUGUIT, Léon. Fundamentos do Direito. Tradução Márcio Pugliese. 3. ed. São Paulo: Martin Claret, 2009. p. 25-
26.
91
Ibidem., p. 26.
37
Direitos de 1789 proclamou que “os homens nascem e permanecem livres e iguais em direito’ (art.
1), para Duguit, esta seria uma fórmula correta apenas “se se pretendeu dizer, com isso, que todos
os homens teriam um direito igual à proteção da lei positiva”, mas que seria “falsa se se pretendeu
dizer que, de fato, os homens seriam todos iguais e que eles deveriam ter, por consequência, o
mesmo papel social”92.
Duguit pressupõe, então, que os indivíduos não nascem iguais, mas diferentes entre si,
e é para ele exatamente essa diferença aquilo que proporciona a necessidade de troca de serviços
mútuos, já que também somos dependentes uns dos outros (isto que Duguit apreende das bases da
ideia de solidariedade orgânica em Durkheim).
Especialmente após as transformações ocorridas em decorrência das revoluções
burguesas e industriais, Duguit esclarece que foi exatamente devido às diferenças e desigualdades
que se ampliaram entre os indivíduos que a igualdade se tornou cada vez mais necessária; mas não
porque seriam esses indivíduos presumidamente iguais em direito:

É particularmente no nosso século que a ideia de igualdade ingressou na consciência dos


homens, e, no entanto, em nenhum outro período da história os homens foram tão
diferentes uns dos outros. Não haveria aí qualquer coisa de contraditória? Acreditamos
que não (...). Só se sente a necessidade de se afirmar a igualdade dos homens quando se
possui a consciência das desigualdades que os distinguem. Em sociedades compostas por
elementos sensivelmente homogêneos, não se fala de igualdade dos homens, porque os
homens se concebem como possuindo necessidades iguais; a igualdade das necessidades
é o fator, senão único, ao menos essencial, que os une, e a ideia de igualdade não pode se
separar da ideia, por sua vez mais compreensiva e mais simples, da solidariedade por
similitudes. O conceito de igualdade só se torna autônomo por meio das diferenças
individuais acusando-se e tornando-se conscientes: os homens compreendem melhor,
então, que, malgrado suas diversidades, há entre eles uma comunidade de aspirações e,
sobretudo, igualdade de todos diante do sofrimento e do desejo comum de todos de livrar-
se dele ou de diminuir seus efeitos. A ideia de igualdade se separa, assim, da concepção
de solidariedade por similitudes e se traduz ao exterior93.

92
DUGUIT, Léon. L’État, le droit objectif et la loi positive. Paris: Ancienne Librairie Thorin et Fils, 1901. p. 41.
93
Tradução livre. No original: “Et cependant le progrès de la civilisation concorde assurément avec la naissance et le
développement des idées égalitaires. Ce n'est qu'à une époque de civilisa tion très avancée qu'on a affirmé l'égalité des
hommes et qu'on lui a rattaché certaines conséquences sociales. C'est particulièrement en notre siècle que l'idée
d'égalité est entrée dans la conscience des hommes, et cependant à aucune période de l'histoire les hommes n'ont été
plus différents les uns des autres. N'y a-t-il pas là quelque chose de contradictoire? Nous ne le croyons pas. (...) On n'a
senti le besoin d'affirmer l'égalité des hommes que lorsqu'on a eu conscience des diversités qui les distinguent. Dans
les sociétés, composées d'éléments sensiblement homogènes, on ne parle pas de l'égalité des hommes, parce que les
hommes se conçoivent comme ayant des besoins égaux ; l'égalité des besoins est le facteur sinon unique, du moins
essentiel qui les unit, et l'idée d'égalité ne peut se dégager de l'idée à la fois plus compréhensive et plus simple de la
solidarité par similitudes. Le concept d'égalité ne devient autonome que lorsque les différences individuelles s'accusent
et deviennent conscientes: les hommes comprennent mieux alors que, malgré ces diversités, il y a entre eux
communauté d'aspirations, et surtout égalité de tous devant la souffrance et désir commun de tous d'en écar ter ou d'en

38
Quanto à liberdade, também esta passava para Duguit a ser tratada sob uma outra
lógica, menos individualista e menos subjetivista. Para tanto, era necessário compreendê-la de
forma extracontratual: como uma liberdade que deveria ser protegida independentemente de
qualquer acordo de vontades realizado entre os membros da sociedade, em suas relações
particulares.
Talvez por conta da necessidade de se romper com a arbitrariedade estatal vinculada
aos interesses dos altos estamentos, a ideia de liberdade na Revolução Francesa tinha um sentido
muito específico: lutar pela liberdade era lutar pelo livre arbítrio, contra a não intervenção do
Estado na autonomia da vontade humana, “naturalmente livre”. O século XIX tomou este princípio
como base de sustentação dos códigos civis. Em termos práticos, porém, o Direito Civil estabelecia
um conjunto de normas de defesa do patrimônio: a não intervenção do Estado era idealizada com
o fim de manutenção do direito subjetivo do proprietário de fazer o que quisesse com sua
propriedade. Se o homem é naturalmente livre, ele pode dispor, como quiser, daquilo que lhe é
próprio.
Mas, segundo Duguit, a ideia de liberdade dos civilistas era muito limitada, pois em
nenhum momento oferecia a certeza de que a não intervenção do Estado e da lei tornaria o indivíduo
mais livre, no sentido de estar apto a desenvolver sua vida de maneira a cooperar em sociedade e
ter condições de participar da vida social como realmente um igual. Estava ciente o autor de que a
concepção subjetivista de liberdade produziria uma ficção contratual, que esconderia a realidade
de desigualdade dos contratantes.
Na realidade, seria desnecessária a intervenção estatal se todos os indivíduos fossem,
realmente, livres. Ora, a liberdade não é algo que se pode presumir. A liberdade declarada apenas
sustenta a realidade que é a não liberdade de muitos. Ela precisa ser materializada, e isso depende,
também, do auxílio das regras de direito, uma vez que, numa situação oposta, de total “liberdade”
mercadológica, sem intervenção positiva do Direito e do Estado, corre-se o risco de ser livre apenas
aquele que já possui melhores condições sociais e econômicas, a fim de concorrer e competir em
sociedade, como de fato ocorreu ao servir de base para o monopólio burguês dos bens e recursos
humanos.

diminuer les atteintes. L'idée d'égalité se dégage alors de la conception de la solidarité par simi litudes et se traduit à
l'extérieur. (DUGUIT, Léon. L’État, le droit objectif et la loi positive. Paris: Ancienne Librairie Thorin et Fils, 1901.
p. 45-46).
39
Para Duguit, a liberdade deveria ser protegida para além da mera relação contratual. O
Estado e a sociedade teriam o dever de proporcionar a liberdade do ser humano, no sentido de
ampliar suas aptidões para as funções sociais a serem exercidas, em prol da solidariedade,
independente da composição de um contrato no sentido formal do termo. Isto porque a liberdade,
sem dúvida, é um direito e não uma prerrogativa que acompanha o homem pela sua natureza: “a
liberdade é um direito porque o homem tem o dever de obedecer a sua atividade tão plenamente
quanto possível, uma vez que a sua atividade individual é fator essencial da solidariedade por
divisão do trabalho”94.
A concepção de Direito e solidariedade em Duguit expõe, portanto, a necessidade de
uma razão não individualista de conceber a liberdade, de modo que, somada à revisão da ideia de
igualdade, ressalta o jurista a necessidade de se pensar nesses princípios conforme a sua relação
com a realidade social, com a solidariedade social.
A ideia de solidariedade, aos poucos, consolidando-se como um fundamento dos
modelos de república a partir da virada do século XIX para o século XX, foi, de fato, uma espécie
de liame aos princípios jurídicos fundamentais do Estado Social em formação, ao passo que
atenuava a tensão historicamente estabelecida entre os direitos humanos à igualdade e à liberdade95.
Nas palavras de Comparato,

Enquanto a liberdade e a igualdade põem as pessoas umas diante das outras, a


solidariedade as reúne, todas no seio de uma mesma comunidade. Na perspectiva da
igualdade e da liberdade, cada qual reivindica o que lhe é próprio. No plano da
solidariedade, todos são convocados a defender o que lhes é comum96.

Em contraponto ao liberalismo individualista, que compreende, sob a premissa de


corresponder à noção de autonomia kantiana, que meu direito acaba onde começa o do outro, o
solidarismo aponta pela inderdependência dos direitos, ou seja, pressupõe um direito que seja inter-
relacional. Se infrinjo a lei, afeto o outro, e se o outro infringe a lei, também sou afetado. Não é
porque eu tenha, por exemplo, meu direito de ir e vir, que eu poderia dele fazer o uso que eu bem
entendesse.

94
Ibidem., p. 43.
95
SMANIO, Gianpaolo Poggio. Legitimidade Jurídica das Políticas Públicas e Efetivação da Cidadania. In:
SMANIO, Gianpaolo Poggio; BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins. O Direito e as políticas públicas no Brasil. São
Paulo: Atlas, 2013. p. 05.
96
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006, p. 574.
40
Duguit compreende que o Direito tem como base a solidariedade social como forma de
proteção do indivíduo desde o nascimento até a morte, a partir de políticas que possibilitariam uma
igualdade social, ainda que focadas, para tanto, em indivíduos específicos. Ao fundamentar o
direito social na solidariedade, Duguit pretende demonstrar que este direito é de interesse de todos,
ou seja, de todas as vontades individuais que buscam a redução comum dos sofrimentos. Perdendo
este caráter universal, não se deve falar que se trate de um direito social, mas, sim, de um privilégio,
ou de uma carência97.
Sobre esse ponto, é importante lembrar das lições do professor e jurista brasileiro
Cesarino Júnior, segundo o qual havia uma série de juristas que consideravam que o Direito Social
significava uma forma de privilegiar os pobres e os mais vulneráveis, enquanto que o Direito Civil
e os direitos de empresa privilegiariam os ricos e hipersuficientes, e que, portanto, o Direito Social
seria, ao contrário do Direito Civil, uma forma de oferecer privilégio aos fracos e oprimidos.
Cesarino esclarece, entretanto, que, se há uma separação do direito entre ricos e pobres, essa é uma
experiência que não condiz com a lógica de direito social, porque, pelos seus fundamentos, não se
almeja alcançar somente a proteção de uns, em detrimento de outros. Ainda que as regras de Direito
Social busquem tutelar, em determinados momentos, indivíduos específicos que não possuem força
institucional suficiente, trata-se de uma regra que gera proteção, ao fim e ao cabo, a todos os
indivíduos que se entrelaçam em torno de uma vida em comum menos sofrida e mais segura,
incluindo os próprios indivíduos que não fazem parte daqueles que recebem imediatamente a
proteção jurídica do Direito Social:

Não me parecem procedentes as objeções [que sustentam que] pretendemos fazer do


Direito Social um Direito de classe, um "código dos pobres", em oposição ao Código
Civil, que foi chamado o "código dos ricos". Prevendo essa objeção já havíamos dito:
"Mas, então — dir-se-á — o Direito Social é um direito de classe, um privilégio, e como
tal injusto. Nada menos certo. O fim imediato das leis sociais é a proteção aos fracos,
concordamos. Mas, não é o único. Por intermédio dessa proteção o que o Estado realmente
visa é assegurar a paz social, o interesse geral, o bem comum". E ninguém poderá negar

97
Se pensarmos a partir dessa compreensão nos dias de hoje, poderíamos, por exemplo, afirmar que os direitos das
mulheres, acima de tudo, são direitos sociais. A conquista das mulheres em frequentar e obter meios materiais para
participar dos mesmos cursos de educação de nível superior que os homens, por exemplo, não foram conquistas que
se tornaram um direito próprio das mulheres. Embora possuam como destinatário imediato as pessoas de sexo
feminino, esses direitos não deixam de ser uma forma de redução das desigualdades de gênero da sociedade como um
todo, atingindo, de fato, as relações sociais e estruturais de gênero em sociedade – buscam a redução das desigualdades
sociais. São direitos de todos e para todos, direitos sociais, portanto. A ideia de se pensar em políticas de equidade de
gênero se dirige, evidentemente, portanto, não a buscar privilégios que serão úteis apenas às mulheres, mas a consolidar
um direito que extingue privilégios (dos homens).

41
que, estabelecendo a paz social, pela proteção que dispensa ao pobre, o Direito Social está
do mesmo passo protegendo o rico, pois enquanto garante a subsistência de um, assegura
a tranquilidade de outro.98

Duguit não compreende a ideia jurídica de solidariedade apenas em seu aspecto


coercitivo-obrigacional; mais do que isso, demonstra que as regras de conduta social, ou seja,
aquelas que são pautadas na solidariedade, somente assumem o estatuto de jurídicas quando
consideradas universais, necessárias ou reconhecidas como necessárias à própria sociedade ou ao
conjunto de vontades individuais.
A Revolução Francesa declarou a extinção dos privilégios: idealizou sua extinção, mas
somente presumindo que os privilégios não existiriam mais, sem extingui-los de fato. O que se
verifica em Duguit é que, para ele, a real extinção das relações de privilégio somente é possível se
o direito for socializado, ou seja, ao passo que se reconheça a insuficiência da ideia de direitos de
liberdade e igualdade naturais e próprios aos indivíduos, como seres abstratos.
A ideia de um sujeito que possua um direito por uma condição “natural” é, segundo
Duguit, pura hipótese metafísica, mera ficção (isto mesmo que se apresentava na menção
supracitada do autor ao livro de Daniel Defoe: “todo direito, por definição, implica em uma relação
entre dois sujeitos. O homem não tem e não pode ter direitos, se o imaginarmos isolado e
absolutamente separado de seus semelhantes... Robinson, em sua ilha, não tem direitos”99).
A sociedade depende não de uma vontade irrenunciável do sujeito, soberana ou
superior à vontade de outros indivíduos, mas de regras produzidas pela e para a sociedade – regras
de direito objetivo, que limitam a autonomia da vontade privada, conquanto lhe possam subordinar
a um fim social de redução dos sofrimentos individuais comuns.
Para o autor, o Direito não se sustenta na individualização absoluta do sujeito, ou seja,
não pode se fundamentar na autonomia da vontade de um indivíduo isolado socialmente. A regra
do Direito é sempre social, e, portanto, exige obrigações sociais que independem da boa ou da má
vontade do indivíduo:

98
CESARINO JÚNIOR, Antonio Ferreira. Sobre o conceito do "direito social". In: Revista da Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo, v. 36 n. 1-2, 117-132. Disponível em:
<https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/65966>. Acesso em 18.12.2020. p. 129.
99
Tradução livre. Trecho na tradução em espanhol: “Todo derecho por defininición implica una relación entre dos
sujetos. Si se imagina un hombre aislado y absolutamente separado de sus semejantes, no tiene, no puede tener
derechos. Robinson em su isla no tiene derechos”. (DUGUIT, Léon. Las transformaciones generales del derecho
privado desde el código de Napoleon. Coleção Juristas Prennes. Chile: Edelval, 2011. p. 31).

42
O homem em sociedade tem direitos; mas esses direitos não são prerrogativas pela sua
qualidade de homem; são poderes que lhe pertencem porque, sendo homem social, tem
obrigações a cumprir e precisa ter o poder de cumpri-las. Esses princípios diferem da
concepção do direito individual. Não são os direitos naturais, individuais, imprescritíveis
do homem que fundamentam a regra do direito imposta aos homens em sociedade. Mas,
ao contrário, porque existe uma regra de direito que obriga cada homem a desempenhar
determinado papel social, é que cada homem goza de direitos100.

O que Duguit refuta, assim, é o caráter transcendental e metafísico da ideia de direito


subjetivo traçada pelo individualismo liberal, fundado na autonomia da vontade, como se houvesse
um ser humano anterior e divorciado da sociedade. A regra de direito, segundo Duguit, ao contrário
do fundamento na autonomia da vontade privada, vista como absoluta e imprescritível, atribui ao
detentor de um determinado poder a necessidade de cumprimento de um dever jurídico-social.
É nesse sentido que podemos compreender, enfim, a influência das teses solidaristas
de Duguit para a formação do conceito de direito social, que, de forma ampla (lato sensu), “se
carateriza pelo fato de considerar o homem concreto e socializado e não apenas o indivíduo
despersonalizado e abstrato”101.

2.3. A propriedade obriga: a noção duguiniana de função social da propriedade

Também é por essa oposição às doutrinas do direito individual que podemos ler, por
exemplo, a formulação de Duguit de que o proprietário de terras, para manter seu poder sobre a
propriedade e sobre os trabalhadores, deve agir conforme a função social da propriedade.
O proprietário tem um papel social a cumprir em decorrência de sua situação especial,
e deve justificar esse poder, ou direito, pelo cumprimento de um dever – derivado do fato da
solidariedade social. Seu poder não é um direito natural de desenvolver, plenamente e como queira,
sua atividade; o indivíduo só pode ter seu direito de propriedade se este estiver destinado a atender
ao fim comum de toda a humanidade e – a solidariedade enquanto a redução do sofrimento comum.
Os proprietários, nesse caso, não devem desenvolver suas atividades para dela se apropriarem como

100
DUGUIT, Léon. Fundamentos do Direito. Tradução Márcio Pugliese. 3. ed. São Paulo: Martin Claret, 2009, p. 43.
101
CESARINO JÚNIOR, Antonio Ferreira. Op. Cit., p. 119.

43
quiserem; eles têm um papel social a cumprir: “desempenhar livremente a missão social que lhes
cabe em virtude da sua situação especial”102.
Os direitos, sob o ponto de vista funcional, implicam, nessa compreensão, a ideia de
um poder-dever, ou seja, somente se legitimam dentro de uma lógica jurídica em que os grupos e
indivíduos responsabilizam-se civilmente por cumprir o dever social correspondente a seu direito,
independentemente de sua suposta natureza transcendental ou posição subjetiva.
As doutrinas de direito individual consolidaram a sacralização da propriedade privada,
a partir de uma noção individualista do direito subjetivo, como um direito fundado exclusivamente
na autonomia da vontade privada. Se este direito, durante o processo das revoluções liberais do
século XVIII, pode ter servido para possibilitar o sucesso da burguesia frente à ordem do Antigo
Regime, fazendo parte de um projeto revolucionário que denunciava e demovia as bases teológicas
e o controle da economia pela nobreza e indivíduos com privilégios de nascimento e estirpe, o
direito subjetivo de propriedade passa a assumir um aspecto mais conservador ao longo do século
XIX. Quando a burguesia já não precisava levar à frente um projeto revolucionário, a afirmação da
propriedade como direito natural e absoluto do homem não significava mais a luta política contra
antigos privilégios. Dizer que o homem proprietário pode, com base na lei, não sofrer qualquer
interferência externa, seja do Estado, seja de indivíduos e grupos, significava, agora, apenas uma
forma de garantir o poder do capital nas mãos da burguesia, que vai assim se tornando a nova classe
privilegiada. A situação do proletariado, no século XIX, desnudava a prática desse direito, gerando
enfrentamentos baseados na conclusão de que a propriedade seria um roubo (como diz Proudhon),
ou que a propriedade significava a apropriação a uma só classe dos meios de produção da vida
social de outra(s) classe(s) (como quer Marx). De um modo ou de outro, questionava-se a ideia de
universalidade do direito de propriedade, outrora celebrada pela Revolução Francesa.
Diante dessa situação, a sociologia jurídica, incluindo a de Duguit, tomou um caminho
diverso para reformar o direito de propriedade. Pensou-se em uma concepção de direito que não
diminuísse a importância da propriedade, mas que pudesse ressignificar o direito que o proprietário
possuía de usufruir de seus bens. Desviando das teses marxistas, que pretendiam a tomada dos
meios de produção pelos trabalhadores, e opondo-se aos pensadores do direito natural, que
idealizavam um homem separado da sociedade; e, ainda, obstando-se a um positivismo jurídico
neokantiano, que reivindicava um direito de propriedade positivado como garantia jurídica do

102
DUGUIT, Léon. Fundamentos do Direito. Tradução Márcio Pugliese. 3. ed. São Paulo: Martin Claret, 2009. p. 44
44
indivíduo independente das fatalidades sociais, o solidarismo de Duguit pretendeu dar uma função
ao direito de propriedade, o que era a reivindicação por excelência da chamada sociologia jurídica.
A sociologia jurídica foi responsável pela concepção funcional do Direito, exercendo
profunda mudança de método: abriu o ponto de vista funcional, como substituição ao ponto de
vista positivo. Elaborou uma via de complementariedade entre Sociologia e Direito, exigindo
atenção dos profissionais do direito à realidade social viva – “a lei em ação”103, e exigindo dos
sociólogos maior atenção às categorias jurídicas e à realidade dos tribunais. Se os juspositivistas e
os sociólogos de ponto de vista formal viam na sociologia jurídica a inexistência de um objeto
metodológico preciso, aponta Gurvitch que, pelo ponto de vista funcional, a sociologia jurídica
apresentou exatamente a necessária relação entre direito e sociedade como seu objeto de
pesquisa104.
Nesse sentido, a teoria da função social do direito de Duguit aporta com a formulação
de uma base teórica fundamental à noção de função social da propriedade: a propriedade-função,
em oposição à noção já desgastada de propriedade-direito natural.
Como quer Georges Gurvitch, “em vez de demonstrar que os direitos subjetivos são
impossíveis sem o direito objetivo (...), Duguit nega a existência dos sujeitos jurídicos e de suas
atribuições legais (...). [E] disto deriva a impossibilidade de reconhecer qualquer vínculo jurídico,
e mesmo até de qualquer superestrutura organizada”105. Aliás, seria esta rejeição à existência de
uma superestrutura organizada aquilo que, segundo Gurvitch, possibilitou que os demais juristas
retratassem Duguit como um anarquista, o que, para o próprio Gurvitch, era um epíteto
parcialmente verdadeiro, pois havia em sua teoria um “individualismo anarquista (...) espantoso
em um pensador que se considera a si mesmo sociólogo”, chegando a concluir que Duguit construiu
uma teoria de “negação de todos os direitos (droit subjectif)106”.
Embora seja esta uma conclusão adstrita aos termos utilizados por Duguit – de fato,
recusava-se em seus termos o direito enquanto direito subjetivo –, uma análise mais atual sobre a
questão, como a de José Fernando de Castro Farias, entende que o sentido passado pelo autor, ao
negar o subjetivismo jurídico, não era o de tornar o direito subjetivo incompatível com a teoria do

103
GURVITCH, Georges. Sociologia Jurídica. Tradução de Djacir Menezes. Rio de Janeiro: Livraria Kosmos Editora,
1946. p. 25.
104
Para uma definição mais precisa desse método, conferir a introdução da seguinte obra de Georges Gurvitch (Ibidem).
105
Ibidem., p. 155.
106
Ibidem., p. 154.
45
Direito, mas de aproximar o direito subjetivo ao direito objetivo, de possibilitar um direito subjetivo
atrelado a uma regra de conduta que designa os valores éticos que se exigem dos indivíduos que
vivem em sociedade. A questão não era negar o direito subjetivo, mas torná-lo autêntico, ou seja,
menos arbitrário. Era fundamentá-lo não mais sobre a ideia de autonomia da vontade, mas sobre a
ideia de solidariedade social.
Assim, pelo menos segundo José Fernando de Castro Farias, o direito objetivo, na
perspectiva funcional de Duguit, não repele a existência do direito subjetivo; apenas o dirige a um
fim:

No fundo, o jurista de Bordeaux não negava a existência do elemento subjetivo na ordem


jurídica e a individualização do direito objetivo no curso de sua aplicação. Poderíamos
mesmo dizer que o direito subjetivo não era incompatível com a sua concepção de “direito
objetivo”. A crítica de Duguit ao direito subjetivo decorre especialmente de sua intenção
em negar a concepção da filosofia do direito moderno baseada na autonomia da vontade
como determinação da experiência jurídica (...). Obcecado pelo abuso do ultra
subjetivismo, Duguit quis eliminar os riscos de reaparecimento desse abuso” 107.

No caso do direito de propriedade, este somente se tornaria legítimo na medida em que


capacitasse e obrigasse o indivíduo a alcançar determinado fim social, sendo possível dizer que há
um direito objetivo pautado na solidariedade social que possibilita que o direito subjetivo de
propriedade deixe de ser um poder arbitrário do indivíduo, ou do Estado.
Não existe um poder do indivíduo ou do Estado em fazer o que queira com o seu direito,
de modo que, seja pelo sentido das palavras de Duguit, seja pela relação entre o pensamento de
Duguit e Gurvitch (este que compreendia que os sujeitos jurídicos são imanentes à ordem objetiva
do direito, como pontos de imputação), fundamentar o direito subjetivo na ideia de solidariedade é
exigir exatamente aquilo que foi previsto expressamente na Constituição Alemã de 1919: “a
propriedade obriga”.

107
FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito de solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 241.
46
2.4. Direito Social como um Direito espontâneo e inorganizado

Duguit compreende que as regras jurídicas, sendo variáveis e mutáveis, alteráveis


conforme as novas necessidades sociais, implicam que o Estado esteja submetido ao Direito, e não
mais subordinado à sua própria vontade, enquanto soberano. As regras são, antes, compostas pelos
próprios indivíduos sociais, que dão a base da formulação e legitimação do direito, que os juristas
e os governantes, de modo geral, terão de compreender para enfrentar os conflitos sociais. São,
portanto, os indivíduos sociais, e não um governante com vontade própria e pessoal, que possuem
a capacidade de estabelecer e indicar as necessidades sociais de um dado momento histórico,
formando um direito, inicialmente, independente da formação do Estado.
Formula-se, aqui, uma ideia de Direito que, tendo como fundamento o princípio da
solidariedade, é determinado pela história, ou seja, determina-se pela própria necessidade humana,
que, de acordo com as transformações sociais, aparece como constitutiva. Se o Estado pode
institucionalizar determinadas pretensões coletivas, tal institucionalização apenas possibilita ao
indivíduo, dentro de uma relação com os demais indivíduos, aquilo que, juridicamente, já está
formado, espontaneamente.
Daí porque Georges Gurvitch aponta que, em Duguit, houve uma descoberta da
“função do direito espontâneo e inorganizado”, direito que Duguit “designou como direito objetivo
emanado da solidariedade social e preexistente à expressão de toda vontade”108:

O direito espontâneo e inorganizado é anterior e superior ao Estado, superior não apenas


ao poder estatal, mas à ordem estatal e ao próprio Estado-Instituição. Os limites e o
número de funções do Estado dependem das variações do direito espontâneo e
inorganizado da sociedade global; do mesmo modo, as relações e a hierarquia entre vários
outros grupos são modificadas, transformadas e subvertidas em função desse direito
inorganizado e espontâneo (...). Em tais condições, Duguit certamente não pode aceitar a
definição que vincula direito à compulsão organizada e, mais geralmente, a uma coação
rígida e predeterminada. A noção de direito é estranha à noção de constrangimento e
existiu mesmo quando era impossível a coercitividade, mesmo quando esta era
inconcebível. O que constitui a regulamentação jurídica não é a existência de coerção, mas
a reação social que provoca a violação dessa regulamentação 109.

Nesse sentido, o Direito, para Duguit, se forma a partir da autonomia de indivíduos,


mas não a autonomia desvinculada da realidade social, abstrata, que implicaria a lógica meramente

108
GURVITCH, Georges. Op. Cit., p. 155.
109
Ibidem., p. 155-156.
47
universalista dos direitos, sem consideração à particularidade de cada ser humano em determinado
contexto social. Ao mesmo tempo, Duguit não pretende, ao pensar em fontes autônomas do Direito,
refutar inteiramente a universalidade das regras jurídicas em nome de sua particularidade. Para
alguns autores contemporâneos, isso revela um posicionamento conciliatório por parte do autor,
entre autonomia e condicionamento social.
Esse é o elemento ideológico que José Fernando de Castro Farias tomará como
parâmetro para formular a ideia de autonomia solidária: trata-se de uma formulação que congrega
a concepção ética deontológica kantiana com a concepção ética teleológica aristotélica (aquela
autonomia desvinculada da realidade social com aquela forma de manutenção do mundo como ele
se nos apresenta). A ética deontológica prioriza o “justo” em relação ao bem, e tem, como seu
principal representante, Imannuel Kant. Concentra-se na ideia de um dever que capta a moral como
uma “ação imperativa e independente da realidade na qual está inserido”, uma vez que “o sujeito
moral deve agir de forma incondicionada, ou seja, não influenciado pelas circunstâncias
sociais”110.
A ética kantiana pressupõe não uma compreensão do que somos na sociedade, mas,
sim, de que devemos ser, enquanto pessoas autônomas e independentes da sociedade. Tal é o
pressuposto da liberdade humana: ela é aquilo que separa o ser humano das contingências
sociais. Já a concepção teleológica prioriza a noção de “bem” em relação ao “justo”. Seu principal
representante, Aristóteles, toma a ética como uma noção construtiva no sentido de que o agente
quer efetivamente realizar uma ação porque está suficientemente informado sobre o que é o bem.
O homem é virtuoso na medida em que, conseguindo agir conforme um entendimento prudente da
situação em que se encontra (ou seja, a partir da práxis), concebe o sentido do que é o
bem, previamente influenciado pelas circunstâncias sociais. O homem pode ser livre, mas sua
liberdade está sempre condicionada às circunstâncias sociais e particulares nas quais ele se
insere. A ética aristotélica pressupõe uma compreensão do que somos, e somente a partir dessa
compreensão é que se torna possível ser livre e autônomo.
Enquanto a ética de Aristóteles, ou teleológica, busca situar o ser humano em
uma perspectiva particular, ou seja, de demonstrar que somos seres situados, na ética
kantiana ou deontológica, busca-se ver o ser humano em uma perspectiva universal, como um ser
capaz de transcender os contextos particulares.

110
FARIAS, José Fernando de Castro. Ética, Política e Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 2.
48
Para Farias, não é mais possível pensar em uma separação entre essas duas
perspectivas: é preciso congregar o pensamento ético da “Modernidade” com o da
“Antiguidade”. A liberdade dos modernos, de perspectiva universal, “é inadequada porque conduz
ao individualismo”111, enquanto que a liberdade dos antigos, de perspectiva particular, “tem a
vantagem de integrar o indivíduo na comunidade, mas peca por não dar espaço ao
indivíduo”112. Segundo este raciocínio, resta necessário evitar tanto o idealismo da perspectiva ética
moderna quanto a falta de espírito crítico da ética tradicional, mas não simplesmente rejeitá-las in
totum; parece preciso articulá-las pela lógica de complementaridade:

O particular é importante porque somos seres situados, mas não podemos ser seres
totalmente situados, temos que ser capazes de saber transcender aos contextos
particulares, a fim de podermos assumir uma posição crítica com relação ao mundo
que nos cerca (...). Somos seres condicionados pelo nosso cotidiano, mas, ao
mesmo tempo, devemos ser capazes de transcender esse cotidiano, a fim de
garantirmos a nossa autonomia, independência e espírito crítico 113.

Buscando “a superação do dilema entre a ‘liberdade dos antigos’ e a ‘liberdade dos


modernos’”, Farias propõe, então, a partir de Duguit e do pensamento solidarista francês, um
conceito denominado autonomia solidária. A ética pautada na autonomia solidária leva em conta
a pluralidade dos valores comunitários e individuais, formando um critério de liberdade que admite
o condicionamento humano, mas que abre um espaço para a superação deste condicionamento:
“admitindo-se o condicionamento humano, devemos conceber a autonomia como um espaço para
a superação desse condicionamento”114, de modo que a autonomia pressupõe um agir crítico que
não seja um agir solitário, e, sim, um agir crítico solidário:

Só o agir solidário tem a força necessária para mudar as situações que devem ser
mudadas. A autonomia só encontra o seu verdadeiro sentido moral quando é
voltada para a solidariedade; e é na capacidade de solidariedade com o outro que o
indivíduo realiza plenamente a sua autonomia115.

Farias acrescenta, ainda, que não é possível analisar essa questão sem integrar a noção
de instituição, que deve ser um raciocínio que articule o pensamento de Duguit ao pensamento de
Maurice Hauriou, que leu e criticou nosso autor. Segundo Farias, a possibilidade de se pensar em

111
Ibidem., p. 111.
112
Ibidem., p.111.
113
Ibidem., p. 95.
114
Ibidem., p. 112.
115
Ibidem., p. 112.
49
uma autonomia solidária vincula ambos os autores, já que tem como premissa a solidariedade
enquanto fundamento de uma racionalidade de direito (Duguit), mas que necessita extrapolar o
plano dos princípios em direção ao plano da realidade (Hauriou). Isto porque o pensamento de
Hauriou, quando lê as teses de Duguit, percebe que é preciso que todo projeto que vincule a
solidariedade se institucionalize; um projeto coletivo não conseguiria perdurar sem que fosse
amparado por um poder organizado posto a seu serviço, nem conseguiria ser posto em prática sem
que houvesse uma forma de interiorização sua no grupo ou comunidade.
O processo por meio do qual o projeto coletivo apresenta uma ideia diretora (de
manifestação do projeto), uma organização, e, por fim, uma interiorização e realização, é o
processo que Hauriou denomina instituição social116. É ela que coloca em prática a ideia de
autonomia coletiva. A instituição social tem a capacidade de fazer com que o indivíduo deixe de
lado seus interesses particulares e próprios para compreender que o eu está integrado à comunidade,
que o eu se desenvolve na relação com o outro generalizado; é o momento em que cada indivíduo,
como compreende Farias, “reflete e apreende em sua experiência individual as atitudes e ações
sociais organizadas, representadas e corporificadas pelas instituições sociais”117.
A articulação entre indivíduo e comunidade, portanto, exige um projeto
coletivo institucionalizado, de onde se pode obter um “padrão externo aos interesses particulares
para que haja o julgamento moral, (...) alcançado no momento em que uma pessoa é capaz de
conciliar o seu próprio motivo, bem como o fim atual que está perseguindo, com o bem comum”118.
A ética da coletividade, portanto, pressupõe a noção de autonomia solidária, que se
realiza plenamente quando os indivíduos estão envolvidos no processo institucional. É com estas
palavras que Farias acredita haver uma relação entre o institucionalismo de Hauriou e o
funcionalismo de Duguit, o que, segundo ele, formam a síntese do Direito Social, ou da Ideia de
Direito Social, pelo menos em sua base francesa.
Uma das grandes limitações do projeto de Direito Social que surge por volta dos anos
1930 era que ele restringia a possibilidade de autonomização dos grupos, da instituição criada
socialmente, o que talvez ocorresse porque o Direito Social estava ainda pautado exclusivamente
na ideia de soberania nacional, e fincado sob as bases de uma ideologia de igualdade de

116
Cf. HAURIOU, Maurice. A Teoria da Instituição e da Fundação: Ensaio de Vitalismo Social. Tradução José
Ignácio Coelho Mendes Neto. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2009.
117
FARIAS, José Fernando de Castro. Ética, Política e Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 119.
118
Ibidem., p. 115.
50
oportunidades, na qual a proteção social pautava-se em um mundo no qual todos deveriam ser
igualados para adequar-se às mesmas perspectivas.
Com o avançar do século XX, os movimentos sociais identitários colocaram em xeque
a noção fixa de Direito Social, como parâmetro para políticas aplicáveis a todos sob uma única
perspectiva de mundo. A partir daí, falar de Direito Social também implicará falar em criação de
novos direitos, na possibilidade de desenvolvimento particular de grupos e povos. Como aponta
Nancy Fraser, ao contrário das lutas sociais pela igualdade de condições, a segunda metade do
século XX nos apresentaria a luta pelo reconhecimento, que passa a ampliar a discussão política a
fim de procurar “um mundo em que a assimilação às normas da maioria ou da cultura dominante
não é mais o preço do respeito igualitário”119.
Todavia, ainda antes das chamadas lutas pelo reconhecimento, o Direito em Duguit,
Hauriou e nos solidaristas como um todo já nos fornecia uma ideia de regra jurídica mais pluralista,
que trazia a possibilidade de ser uma regra cuja fonte estaria não exclusivamente no Estado como
um ente soberano, mas também aberta aos governados e às instituições sociais.
De fato, o solidarismo nos apresenta um sentido do Direito que “não pode ser reduzido
unicamente a uma ‘política social do Estado’, em que o Estado, através de uma legislação social,
intervém no domínio econômico para proteger os elementos mais fracos da sociedade”120 – modo
de aplicação que prevaleceu em sistemas corporativistas no mundo, especialmente na década de
1930. “As práticas do direito social são mais profundas e complexas do que isso. Elas implicam
um ‘pluralismo jurídico na vida real do direito, que é uma consequência do pluralismo de fato na
realidade social’”121.
O Direito passa a ser considerado plural porque fundado na “interdependência social”,
que tem como elemento, em primeiro lugar, segundo as palavras de Duguit, “a diversidade das
necessidades e das aptidões humanas”122, decorrente da divisão do trabalho das civilizações
modernas.
Daí porque o autor via com bons olhos uma instituição em especial, que se fortalecia
na virada do século XIX para o século XX – o sindicato. Juntamente com outras novas formas de

119
FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? In: Lua Nova online. 2007, p.101-138, n.70. p. 101-102
120
FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito de solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 270.
121
Ibidem., p. 270.
122
Las transformaciones generales del derecho privado desde el código de Napoleon. Coleção Juristas Prennes. Chile:
Edelval, 2011. p. 38.
51
associações, seriam os sindicatos (e a princípio, nesse momento, Duguit não filia seu raciocínio a
um sindicato em específico, mas aborda os sindicatos num geral, tanto o de trabalhadores quanto
o da categoria patronal), uma possibilidade de construção coletiva de regras de direito não
vinculadas a determinações soberanas do Estado: uma promessa de uma potente forma de
“autonomia solidária”, que seria determinada pelas particularidades de cada indivíduo associado,
de acordo com sua função social e profissão.
Todavia, isso não significa que o Direito imaginado por Duguit deixasse de lado a
importância das políticas universalistas, as políticas que envolvem uma melhoria de todo social.
Ele antevia no particularismo, na autoafirmação dos povos e dos grupos, o risco de que, não
subvertendo a lógica da dependência e da desigualdade econômica, essa autoafirmação acabaria
por se dar dentro de uma relação material de desigualdade, que não permitiria, enfim, uma
igualação de forças sociais no âmbito da política.
Por esse motivo, a concepção jurídica de regras pautadas na solidariedade, em Duguit,
tinha como parâmetro realizar uma conciliação entre o reconhecimento das diferenças e a
superação ou redução das desigualdades de condição social. Ao pressupor que as transformações
sociais traziam a necessidade de um processo constante de integração social no campo jurídico-
político, e, portanto, dependente da deliberação dos indivíduos, Duguit fornecia uma base para
congregar as políticas universalistas (que os socialistas reivindicaram no século XIX) e as políticas
que atendessem a determinados grupos em específico, mesmo dentro de uma determinada classe –
por exemplo, necessidades específicas de grupos profissionais dentro da classe trabalhadora. Nesse
sentido, vemos em Duguit uma relação imbricada entre aquelas solidariedades por dessemelhança
e por similitude de que falava Durkheim, em sua obra Divisão do Trabalho Social; e, dessa maneira,
uma ideia de solidariedade que envolve tanto a proteção à totalidade de indivíduos por suas
semelhanças em sociedade ou grupo social, como a proteção às particularidades, diferenças de
necessidades e aptidões de indivíduos dentro de cada grupo social.
Ainda assim, o crítico Georges Gurvitch aponta para uma certa preponderância, na obra
de Duguit, à ideia de solidariedade orgânica, em detrimento da solidariedade mecânica. Já vimos
que Duguit nega esses conceitos por sua relação com uma física social enquanto ciência exata, mas
não nega a existência da divisão entre a solidariedade por similitudes e por dessemelhanças e, nesse
sentido, apoia-se em Durkheim. Mas, em todo caso, esse apontamento de Gurvitch, a respeito de
uma certa rejeição por Duguit à ideia de solidariedade mecânica de Durkheim, é importante para
52
enfatizar a tentativa de Duguit de se pensar em regras de direito que respeitem todo ato de vontade
dos indivíduos, independentemente da existência de uma entidade soberana superior, ou de uma
ideia de grupo enquanto massa homogênea de indivíduos. Talvez a relação entre a solidariedade e
o direito social em Duguit possa ser historicamente resolvida conjugando-se seu pensamento ao de
Hauriou, em uma síntese que, segundo Gurvitch, daria origem à noção de “direito de comunhão”,
que, como parte constitutiva do solidarismo jurídico, “nasce do próprio grupo que ele rege,
retirando sua força obrigatória do grupo no qual se integra”123. Um direito que, ao contrário do
Direito Social que se pauta na soberania do Estado paternalista ou autoritário, “faz o todo participar,
de maneira imediata, da relação jurídica decorrente, sem transformar esse ‘todo’ em um sujeito
descolado de seus membros”124. É nesse sentido que se pode compreender, em germe, o
pensamento de Duguit como uma formulação de um Direito em completa negação com a ideia de
totalidade. Duguit fará sua crítica ao pensamento político liberal de sua época por uma via
semelhante a esse modelo de direito de comunhão, de que falará Gurvitch. Formulará Duguit uma
concepção realista de Direito, que rejeitará toda e qualquer noção metafísica pautada em uma
vontade ou consciência coletiva, ou vontade e consciência nacional.
Para Duguit, essas noções, em vez de compreenderem os conflitos sociais (essenciais
a qualquer processo democrático) e os integrarem nas regras de direito, procuram anulá-los pela
suposta coesão de uma ordem abstrata que se coloca acima das particularidades dos indivíduos, o
que nos leva, enfim, a abordar a crítica do autor à concepção metafísica de Estado e a concepção
que a substitui, que implicará a construção de uma Teoria Realista do Estado.

123
FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito de solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 273.
124
GURVITCH, Georges apud FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito de solidariedade. Rio de
Janeiro: Renovar, 1998. p. 272.
53
3. Crítica da soberania e da personalidade do Estado

3.1. A crítica da soberania na Teoria Realista do Estado em Léon Duguit

Vimos, nos capítulos anteriores, que Duguit se propõe a pensar como a sociedade deve
obedecer às regras de Direito Social (pautadas na solidariedade), e agora veremos o reflexo disso
em sua concepção de Estado, ou o que ele denomina Estado Colaboração.
Para tanto, é necessário começar pela crítica de Duguit à teoria predominante do Estado
entre os juristas de sua época: a teoria da soberania, corrente entre os pensadores do Direito Público.
A concepção realista de Estado, como o próprio Duguit a denomina, coloca em xeque
as teorias que consideram o Estado como uma pessoa soberana, “portadora de personalidade
distinta dos indivíduos que a constituem (...) e dotada de vontade superior a todas as vontades
individuais e coletivas de determinado território”125. Essas noções, para o autor, deveriam ser
expulsas do mundo jurídico, uma vez que forneciam hipóteses incapazes de serem provadas com
vistas à realidade dos fatos. Elas não expressam, em fórmulas abstratas, realidades concretas.
Para Duguit, o Estado, longe de ser uma ideia abstrata de poder político subjetivo, que
comandasse a sociedade por uma vontade pessoal que estaria acima da vontade dos indivíduos,
constitui-se, na verdade, de fato, pela diferenciação entre forças sociais.
O Estado é tão somente um conjunto (ou grupo) de indivíduos que detém a força maior,
podendo ser esta religiosa, moral, econômica etc., desde que se diferencie por ser uma “força muito
grande que se impõe por meio de atos materiais de constrição ou pelo medo que ela inspira”126.
Nas palavras de Duguit:

Em todos os grupos sociais que se pode qualificar de Estados, tanto nos mais primitivos e
os mais simples, quanto nos mais civilizados e mais complexos, pode-se sempre encontrar
um fato singular: indivíduos mais fortes que outros e que querem e que podem impor sua
vontade sobre outros. Pouco importa se esses grupos estejam ou não fixados em um
território determinado; que eles sejam ou não reconhecidos por outros grupos; que eles
tenham uma estrutura homogênea ou diferenciada. O fato é sempre o mesmo: os mais
fortes impõem sua vontade sobre os mais fracos. Esta força maior apresenta-se sob os

125
DUGUIT, Léon. Fundamentos do Direito. Tradução Márcio Pugliese. 3. ed. São Paulo: Martin Claret, 2009. p. 83.
126
DUGUIT, Léon. Traité de droit constitutionnel. 2e éd. Tomo I. Paris: Ancienne Librairie Fontemoing, 1921. p. 512.

54
aspectos os mais diversos: às vezes, ela é uma força puramente material; outras, uma força
moral e religiosa; outras, uma força intelectual; outras (e isto é bem frequente), uma força
econômica127.

Como exemplo dessa diferenciação de forças, Duguit menciona o caso da Rússia nas
épocas anteriores à Revolução de 1917, em que havia uma diferenciação de forças que destacava
um único indivíduo – o Czar – como detentor da força maior de constrição, que exercia, de fato, a
função de coação material sobre a sociedade.
Na França, na forma da República, segundo Duguit, destacam-se como detentores desta
força diferenciada alguns representantes “do povo” – na realidade, uma minoria eleita por um
determinado corpo eleitoral.
Porém, Duguit afirma que, se de fato existem forças que se diferenciam, estas não são
automaticamente poderes de direito, mas apenas de fato. O Estado necessita de uma delimitação
de sua atuação para que sua força seja considerada legítima – um limite jurídico, que deve decorrer
da explicitação dos objetivos da sociedade. Assim, para que haja um poder de direito do Estado ou
um poder político legítimo, aquele que detém a força governamental necessita cumprir a função
que lhe garantiu esta diferenciação.
O direito de governar e o poder público que foi investido a um ou mais sujeitos não
existe porque é uma qualidade, substância ou status (atribuído) deste ou daquele indivíduo – não
existe, aqui, como um direito subjetivo. Tal direito de governar existe apenas na medida do dever
que lhe cabe em sociedade – o direito objetivo. Se o Czar tem força de constrangimento por
derivação de ordem divina, ou se um grupo de governantes da República francesa detêm esta força
pelo fato da soberania popular, estas forças não se legitimam por tais qualificações; estes simples
fatos não lhes dariam um poder de direito, pois ainda haveria aqui uma força política sem valor.
Para que o poder de governar do Estado se torne um poder de direito, ou seja, para que
os governantes possam se utilizar de sua força de coerção de forma legítima e aceita pelos
governados, têm de esclarecer sua função a cumprir, função que lhes foi designada socialmente,

127
Tradução livre. No original: “Dans tous les groupes sociaux qu’on qualifie d’États, les plus primitifs et les plus
simples, comme les plus civilisés et les plus complexes, on trouve toujours un fait unique, des individus plus forts que
les autres qui veulent et qui peuvent imposer leur volonté aux autres. Peu importe que ces groupes soient ou ne soient
pas fixés sur un territoire déterminé, qu’ils soient ou ne soient pas reconnus par d’autres groupes, qu’ils aient une
structure homogène ou différenciée, le fait est toujours là identique à lui-même: les plus forts imposent leur volonté
aux plus faibles. Cette plus grande force s’est présentée sous les aspects les plus divers: tantôt elle a été une force
purement matérielle, tantôt une force morale et religieuse, tantôt une force intellectuelle, tantôt (et cela bien souvent)
une force économique” (Ibidem., p. 499-500).
55
conforme sua utilidade dentro da divisão social do trabalho, em uma relação que se estabelece
apenas com os serviços públicos que prestam em sociedade.
Em outras palavras, o ato de constrição política não pode se legitimar por sua origem,
mas somente pelo fim que ele persegue.
A ideia de fim em Duguit, como aponta Farias, não pode, entretanto, ser confundida
com a ideia simples de objeto:

A ideia de fim remete à ideia de um processo de decisão e de opção da sociedade como


um todo. A ideia de fim não se confunde com o objeto. Este determina tão-somente o que
se fará ou o que não se fará, enquanto a ideia de fim implica saber por que se fará ou não
se fará128.

Assim, quando Duguit cita a necessidade de um poder político ser legitimado pelos fins
que a sociedade persegue, isso significa que é preciso associar a vontade do governante a uma regra
jurídica socialmente formulada pela própria necessidade social, e não conforme uma origem que
pode ser sempre incerta, o que nos remonta, ainda, a um importante questionamento feito por
Duguit em relação à legitimação do poder pela própria ideia rousseauneana de soberania popular:
segundo Duguit, a vontade derivada do povo (soberania popular) – conceito que juristas franceses
e parte dos revolucionários do século XVIII colocaram como a grande conquista contra a soberania
divina do Antigo Regime – não supera, realmente, o problema que aponta à soberania em si. A
soberania popular seria até mesmo mais perigosa que a divina, pois não consegue se justificar e
demonstrar porque um governante ou um grupo de governantes pode ter uma vontade superior a
dos governados.

Não se pode explicar a origem da soberania, ou seja, demonstrar nem porque existe um
direito de poder público, nem como ele se justifica. As duas explicações, tanto uma quanto
a outra, são igualmente artificiais e quiméricas. Dizer que o poder público é de criação
divina ou dizer que ele é de criação popular são duas afirmações de uma mesma ordem e
de um mesmo valor; quer dizer, de valor igual a zero, porque elas são, uma e outra,
igualmente indemonstradas e indemonstráveis. A bem da verdade, a primeira é mais lógica
que a segunda, porque, ao passo que a vontade dos governantes recebe uma investidura
divina, compreende-se que por isso seja superior à vontade dos governados. Do contrário,
admitindo que exista uma vontade da coletividade personificada, tal vontade é sempre
uma vontade humana, e não se compreende porque esta vontade coletiva seja superior às
vontades individuais, pois a primeira e as segundas são vontades humanas, e não se pode
demonstrar que uma vontade humana seja superior a outra vontade humana. A
argumentação de Jean Jaques Rousseau e de Kant diz que esta vontade coletiva pode se
impor aos indivíduos porque ela é composta da soma das vontades individuais, e porque,

128
FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito de solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 229.
56
dessa maneira, cada indivíduo, obedecendo-a, não obedece a ninguém, a não ser a si
mesmo; esta argumentação, eu diria, é um puro sofisma, porque se assim fosse, não
haveria mais vontade coletiva, mas [somente] uma soma de vontades individuais, e
chegar-se-ia a negar precisamente o poder público ao qual se pretende estabelecer a
existência e legitimidade. É preciso dizer, sobretudo, que todas as pretensas explicações
da soberania pela vontade popular não fazem senão afirmar a supremacia da maioria sobre
a minoria e não comprovam, de maneira alguma, que a maioria tem o direito de comandar
a minoria, [e nem] que mesmo a unanimidade, menos um, tem o direito de comandar seu
oponente129.

Para Duguit, nenhuma dessas justificativas com relação à soberania pode ser suficiente
para demonstrar porque uma vontade pode se sobrepor a outra. Todas as vontades são vontades
individuais; são de igual validade; não existe hierarquia de vontades. “Afirmar que a vontade de
certos indivíduos é de essência superior à vontade doutros é produzir uma afirmação de ordem
metafísica, inaceitável em ciência positiva"130.
Alguns autores, como Carré de Malberg (1861-1935) – que travou inúmeros debates
com Duguit – questionam essa premissa. A questão reside em como a teoria solidarista de Duguit
poderia sustentar a ideia de coação material do Estado sem que houvesse uma autoridade que se
colocasse acima das vontades individuais. Como fazer valer a coação material sem um poder
permanente e soberano? Todo Estado constituir-se-ia pela ideia de autoridade – e negá-la, como
quer Duguit, seria negar a própria ideia de Estado.
Por essa razão, um autor como Malberg concorda com os demais publicistas franceses
que associam a obra de Duguit às ideias anarquistas, como é o caso de Adhémar Esmein (1848-
1913), que dirige à teoria de Duguit o epíteto "quimera anarquista"; ou o de Hauriou, que a
classifica de "anarquismo doutrinal", chamando Duguit, abertamente, de "anarquista de cátedra".
A resposta de Duguit a essas críticas foi a seguinte:

Hauriou me chama de anarquista de cátedra. Eu respondi que a anarquia consiste em negar


a legitimidade de todo ato de constrição política e que não era ser anarquista dizer que o
poder governante não pode se legitimar por sua origem, mas somente pelo fim que ele
persegue; que ele se impõe legitimamente uma vez que, e somente uma vez que, ele se
exerce em conformidade com o direito social. Hauriou replica (Loc. cit. p. 28) que “dá na
mesma” [“que Le tout est de s’entandre”] e continua a qualificar anarquista uma doutrina
“na qual o poder não possui virtude jurídica própria, na qual a vontade dos governantes é
considerada como não possuindo uma natureza distinta daquela dos governados... uma
doutrina na qual não há teoria da legitimidade do poder advinda da origem do mesmo”.
Ele acrescenta que não vai mais insistir. Eu também não vou insistir. Anarquista se se

129
DUGUIT, Léon. Traité de droit constitutionnel. 2e éd. Tomo I. Paris: Ancienne Librairie Fontemoing, 1921, p.
494-495.
130
DUGUIT, Léon. Os Elementos do Estado. Tradução Eduardo Salgueiro. Lisboa (Portugal): Editorial Inquérito,
2000, p. 10.
57
quiser; eu não tenho medo de palavras. Anarquista, a minha doutrina; eu aceito o epíteto
e eu mantenho a doutrina se ela puder contribuir para limpar de uma vez por todas a ciência
jurídica dos conceitos metafísicos que ainda a encobrem. Anarquista, se você quiser, a
minha doutrina, desde que ela possa, melhor do que qualquer outra, limitar juridicamente
o poder do Estado e encontrar verdadeiramente uma regra de direito determinante para o
sentido e para o entendimento dos atos governamentais131.

De fato, como se percebe da resposta de Duguit, o autor não nega, como sugere
Malberg, a existência de um poder capaz de exercer atos de constrição, destacando, no entanto, que
esse poder se legitima quando um conjunto de governantes, embora detenham uma força de coerção
especial, conduzem essa força no limite das regras de conduta socialmente construídas e
socialmente necessárias, externas à vontade da pessoa que governa, ou seja, no limite das regras de
direito objetivo, fundadas na solidariedade social.
Para Duguit, a força legítima do Estado decorre de um direito que lhe é externo. Os
governantes podem exercer o poder político e a força de coerção somente quando, como todos os
indivíduos, cooperam dentro da lógica da divisão social do trabalho, entendido por Duguit em sua
matriz durkheineana. O Estado, voltado a fins, tem a função de ser colaborativo, e não soberano.
Para tanto, não basta que o Estado se autorregule. A regulação vem de fora do Estado,
o que implica a crítica de Duguit à Teoria da Autolimitação132. Essa teoria da autolimitação, em
linhas gerais, compreende que “O Estado se obriga a cumprir o direito que ele mesmo
estabelece133”, e tem como um de seus principais fundadores Georg Jellinek (1851-1911), que
pressupunha, para tais conclusões, que não há direito sem antes haver Estado, uma vez que um
direito que não é criado pelo Estado não é direito. Só o Estado tem o poder de tornar o direito
existente. Como explica Gilberto Bercovici,

O Estado, na concepção de Jellinek, precede o direito. O Estado precisa existir


anteriormente para poder criar o direito, e, portanto, o seu ato de nascimento está fora do
direito. No Estado moderno, todos os demais atos estatais devem ser compreendidos de
acordo com o direito. O que distingue o Estado moderno das demais formas de
organização política são a sua unidade, sua organização conforme uma constituição e
autolimitação do Estado frente ao indivíduo 134.

131
Tradução livre. DUGUIT, Léon. Traité de droit constitutionnel. 2e éd. Tomo I. Paris: Ancienne Librairie
Fontemoing, 1921, p 498-499.
132
Para um aprofundamento desta questão, ler as críticas de Duguit à concepção de Estado em Jellinek, no livro L’Etat,
Le droit objectiv et la loi positive (1901), que o jurista francês escreve, em parte, como resposta ao livro de Jellinek,
System der subjectiven öffentlichen rech (1892).
133
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: Para Uma Crítica do Constitucionalismo. 2. ed. São Paulo:
Quartier Latin, 2013, p. 256.
134
Ibidem., p. 255.
58
Em Duguit, ao contrário, é o Direito que precede o Estado. Se Jellinek aponta que as
regras de direito não se criam senão pelo Estado, é porque ele confia em um Estado autossuficiente,
com governantes sempre dispostos a se autocriticar e se autorregular. que podem, então, obrigar-
se a si mesmos, independentemente de qualquer pressão externa, a cumprir as regras que eles
mesmos estabelecem, o que para Duguit é uma “simples piada”:

Dizer (...) que o Estado é limitado pelo direito porque ele se impõe a si mesmo essa
limitação é, malgrado os termos jocosos que utilizamos, uma simples piada, porque uma
obrigação que se crê a si mesma, à qual se pode subtrair, e da qual se pode evadir quando
e como se desejar, não é, portanto, obrigação135.

Para que a obrigação seja de fato uma obrigação, o direito de governo deve decorrer de
deveres de obediência às regras socialmente criadas, externas à vontade daqueles que compõem o
Estado. A vontade do governante ou de um grupo governante é, sempre, heterônoma. Ou seja, seu
ato não é pessoal ou subjetivo, tampouco pode dar vazão à autonomia da vontade do governante.
O ato governamental deve estar de acordo com a função pública que o governante exerce, e,
portanto, é um ato que só tem valor se estiver de acordo com regras de conduta objetivas, pautadas
na solidariedade social e na formulação das regras pelos indivíduos sociais.
Essas considerações se tornam mais imponentes a partir do momento em que o Estado
deixa de ser mero aparato de justiça, de defesa e de polícia. Novos serviços, especialmente por
derivação da industrialização que se intensificou a partir do século XIX, passam a demandar a
atividade e a proteção estatal em tarefas que antes eram praticados pela economia em sua matriz
doméstica, como esfera separada da política.
Nesse sentido, Duguit aponta que as funções típicas de poder e comando (vinculadas
às três funções do poder imperial – defesa, polícia e justiça) são insuficientes para lidar com a nova
dinâmica social das sociedades industriais. A teoria da soberania, que se fundava conjuntamente à
ascensão do Império Romano, possibilitando ao imperador "concentrar em sua pessoa todos os

135
Tradução livre. No original: “Dire avee Ihering, Jellinek et Carré de Malberg que lÉtat est limite par le droi parce
qu’il s’impose à luis-même cette limitation, e’est, malgré les terme savants dont on sest, une simple plaisanterie, parce
qu’une obligatios qu’on se crée à soi-même et à laquelle on peut se soustraire quando et comme on le veut n’est point
une obligation” (DUGUIT, Léon. Traité de droit constitutionnel. 2ª ed. Tomo I. Paris: Ancienne Librairie Fontemoing,
1921, p. 496).

59
poderes que a República havia dividido entre os diferentes magistrados”136, e que iguala a vontade
do soberano à vontade da lei, não mais pode se sustentar dentro de uma sociedade que se
especializou a ponto de não haver indivíduos com vontades superiores às vontades de outros. Essa
ideia de "soberania", que constituiria, pelo menos até o século XIX, as bases do Direito e do Estado
na Europa, parece ser uma concepção já superada para fundamentar o Estado na sociedade
industrial do fim do século XIX137.
Assim, conforme Duguit, a ideia de serviço público substituiu a ideia de soberania. O
Estado não é mais uma pessoa, tampouco um “poder que comanda”, mas um “grupo que
trabalha”138, que executa e fiscaliza serviços públicos para a consecução da solidariedade social.
Tal grupo é partícipe de uma coletividade, e, portanto, está sujeito, como todos os
indivíduos, a todas as obrigações que subentendem a manutenção e desenvolvimento da vida
coletiva.
Assim, a regra de direito que se impõe para que o Estado colabore tem como fim a
manutenção e o desenvolvimento da vida coletiva. De fato, Duguit é claro no sentido de que as
regras de direito não são criadas para restringir as funções de Estado, mas, principalmente, para
possibilitar que o Estado colabore com o desenvolvimento da solidariedade139.
Para o autor – sintetizando o que aqui foi abordado – a soberania, em sua matriz
tradicional, reproduzida no Estado Moderno, pressupunha a existência de uma vontade do
governante superior ou divorciada da vontade dos governados; ou seja, de um direito subjetivo
reconhecido como próprio ao governante. Já a regra de direito fundada na solidariedade, que
constitui a ideia de Direito Social, fundamenta a necessidade de o Estado (grupo de governantes)
não ser protegido por aquilo que é considerado seu, mas, sim, pelo trabalho social que ao grupo
de governo cabe exercer. Cabe-lhe cumprir deveres provenientes das regras jurídicas fundadas nas
deliberações e necessidades da sociedade, e seu direito corresponde a este dever; não há direito que
tenha relação com a personalidade ou subjetividade do governante. O Direito Social, ou o direito
pautado na regra da solidariedade social, segundo Duguit, despersonaliza o governante, que

136
DUGUIT, Léon. Law in the Modern State. Tradução de Harold J. Laski. Memphis: General Books LLC, 2012. p.
10.
137
Tal processo histórico foi detalhado por Duguit no capítulo I (The Eclipse of Sovereignty) da obra supracitada.
138
DUGUIT, Léon. Traité de droit constitutionnel. 2ª ed. Tomo I. Paris: Ancienne Librairie Fontemoing, 1921, p. VII.
139
Trata-se, aliás, de um caminho que se assemelha àquele que, na situação contemporânea, fundamenta uma
concepção de administração pública que se volta a políticas públicas – semelhante à proposta de Maria Dallari Bucci,
ao sustentar uma administração voltada para o bom exercício, e não para a mera limitação dos poderes públicos.
60
somente pode ter sua força de coerção legitimada quando utilizada para cumprir funções sociais
juridicamente definidas, para além de sua vontade.
É possível verificar, em Duguit, uma relação entre a soberania e a influência desta
construção para as formas de tirania construídas na modernidade. O esforço do autor para excluir
do Direito e da construção do Estado a ideia de soberania representa a sua compreensão de que o
poder de mando de determinados governantes pode acabar se sustentando por artifícios e formas
de apropriação de crenças que impedem a manifestação da vontade e ação dos governados, e que
os orientam a crer na legitimidade de um poder que está acima do ser humano – um ser
napoleonicamente extraordinário, como de repente o chamava o personagem Raskólhnikov, de
Crime e Castigo, escrito por Fiódor Dostoiévski140.
A ideia de soberania corre sempre o risco, segundo Duguit, de ser legitimada por
discursos que, na prática, repelem a solidariedade entre as vontades dos governantes e governados,
isto é: as teorias da soberania, seja qual for sua justificativa, acabam por legitimar, por uma espécie
de superstição coletiva, formas antidemocráticas e tiranas de poder, apenas substituindo a vontade
divina pela vontade de um ser humano ou grupo de seres humanos que absorvem o poder de
comando de Deus para determinar como se dará a vida e a morte de seus súditos.

140
Na referida obra, é citado um artigo que teria sido escrito pelo protagonista da narrativa, Raskólhnikov, em que ele
procura dividir os seres humanos em ordinários e extraordinários. Segundo o personagem, em explicação de seu artigo
durante a narrativa, “os indivíduos extraordinários tinham direito (claro que não um direito oficial) a autorizar a sua
consciência a saltar por cima de certos obstáculos, e unicamente nos casos em que a execução do seu desígnio (às
vezes salvador, talvez, para a humanidade) assim o exigisse. (...) todos... digamos, por exemplo, os legisladores e os
fundadores da humanidade, começando pelos mais antigos e continuando por Licurgo, Sólon, Maomé, Napoleão etc.
etc., todos, desde o primeiro até o último, tinham sido criminosos, mais não fosse senão porque, ao promulgarem leis
novas, aboliam as antigas, tidas por sagradas pela sociedade e pelos antepassados, e certamente que não se teriam
detido perante o sangue, sempre que isso (derramado às vezes com toda a inocência e virtude, em defesa das velhas
leis) pudesse ser-lhes útil” (DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e castigo. São Paulo: Nova Cultural Ltda. 2002. p. 240-
241). O protagonista, considerando-se apto a assumir-se como ser extraordinário, assassina uma senhora usurária
(matando, ainda, a irmã, que viu o crime acontecer), acreditando que seria aquela morte da usurária um ato necessário
para garantir o bem de todos. Ao fim da narrativa, em confissão do crime a uma prostituta cristã, de nome Sonia, o
protagonista Raskolhnikov declara que sua intenção foi tentar desfazer-se de sua condição de mero ser vulgar e
ordinário, para tornar-se um ser extraordinário, como Napoleão. No entanto, durante toda a narrativa ele sente medo,
ressentimento, culpa e se castiga pelo assassinato das irmãs, a ponto de entrar em estado de perda de consciência de si,
provando um limite do ser humano em tentar assumir a posição de soberania de um ser divino ou extraordinário, que
se coloca no direito de ditar as regras sobre a morte e a vida de outros seres humanos. A frase dita pelo personagem,
“não foi a velha que eu matei, eu matei a mim mesmo” resume o estado em que ele se encontrou durante a narrativa
ao infringir o mandamento “não matarás”, ao tentar elevar-se de um ser ordinário a um ser extraordinário.
61
3.2. A personalidade soberana do Estado como crença: limites do Estado-nação

Duguit aponta que a soberania nacional dos Estados parte da crença da personalidade
do Estado-Nação, e que essas duas teses formam a ideia ilusória de um Estado nacional com vida
própria, separada da vida dos indivíduos que os compõem, e que, assim, podem comandá-los sem
resistência, o que para o autor seria uma potente porta de entrada para as formas mais anti-
civilizatórias e tiranas de poder.
De acordo com Duguit, a ideia de uma personalidade distinta da personalidade dos
indivíduos é pura e simplesmente uma hipótese metafísica, indemonstrável sensivelmente; uma
abstração que não pode ser concebida no domínio da observação positiva, necessária à objetividade
que deve guiar o jurista. Não concorda o autor, portanto, com nenhuma teoria que compreenda a
existência do Estado-nação enquanto pessoa coletiva e soberana.
Dentre as teorias criticadas pelo autor, destacam-se, inicialmente, aquelas que buscam
o fundamento dos direitos na vontade de seus titulares.
Essa tradição compreende a existência real de um Estado como pessoa coletiva e
soberana, distinta da personalidade dos indivíduos, e que pode ser associada – conforme as
explicações de Carré de Malberg – à teoria da vontade coletiva do Estado de Rousseau, cujas
premissas acabaram por formar duas escolas de pensamento jurídico e político. A primeira delas,
organizada em torno de juristas alemães do círculo de Otto von Gierke (pensador do Direito
Corporativo alemão) seria a escola orgânica alemã, que vê a coletividade como um organismo,
senão no sentido fisiológico da palavra, ao menos no sentido de ser uma corporação, como um ser
único, com vida real própria e realmente capaz de querer e de atuar – “ser coletivo cuja vontade e
atividade se manifesta por seus órgãos, ao realizarem estes precisamente a unidade de vida e de
vontade da coletividade”141. A outra escola, também vinculada à existência real de uma
personalidade do Estado ou da pessoa coletiva, teve como um de seus principais teóricos Ernst
Zitelman, e é exatamente aquela que, na França, ecoou nas teses de Maurice Hauriou (Revue
générale du droit e Leçon sur le mouvement social) e na teoria da personalidade moral das obras
de Léon Michoud. Tal escola pretendeu demonstrar “a existência real de uma vontade coletiva,

141
CARRÉ DE MALBERG, Raymond. Teoría general del Estado. Tradução de José Lión Depetre, 2. ed. 2.
reimpressão. México: Fundo de Cultura Econômica, 2001. p. 40.

62
estabelecendo que as vontades dos indivíduos agrupados na coletividade, enquanto são dirigidas a
um fim comum, estão submetidas, pelo fato mesmo da comunidade de fim, a uma força unificadora
da qual se penetram”142.
Carré de Malberg aponta que Duguit não soube distinguir as teorias da personalidade
sensível do Estado-Nação dessas escolas das teorias que compreendiam a personalidade jurídica
do Estado-Nação. Assim, quando Duguit rechaça a separação entre vontade coletiva e vontade
individual, para Carré de Malberg, tal crítica seguiria inoperante a sua doutrina, porque a questão
da personalidade do Estado-nação é uma questão apenas jurídica.
Dizer que uma Nação, ao ser estatalmente organizada, possui uma personalidade
distinta dos indivíduos que a compõem, não significa, segundo Carré de Malberg, que ela possa ter
uma vontade própria e real, com capacidade de agir por si mesma, como uma pessoa sensivelmente
existente ou entidade que se colocasse acima dos indivíduos. Na verdade, a Nação só adquire
personalidade no plano do Estado de Direito por ser este uma abstração, não sensível, das relações
sociais. E essa abstração, para Malberg, existe, não é uma ficção. Assim como ocorre com as
pessoas cuja vontade não é expressa conscientemente (o infante, por exemplo), mas que têm uma
proteção jurídica independentemente de sua vontade, a Nação também, por organizar-se pelas
regras jurídicas do Estado – e só por conta dessa organização –, adquire uma personalidade própria.
Duguit dirá, porém, que a tese de Carré de Malberg é apenas uma mera sofisticação das
teorias alemãs da soberania pura da Nação, e que Carré de Malberg continua abordando a soberania
e a personalidade nacionais como abstrações metafísicas, sem comprovação real. E se estão no
mundo da realidade jurídica, estão ali apenas como crenças, sempre obscuras e utilizáveis a bel
prazer dos governantes. Assim, não é que as noções de personalidade e soberania da Nação sejam
uma ficção para Duguit; elas são um fato, mas conquanto se admita que sejam uma crença – a
crença no poder soberano com personalidade distinta dos indivíduos.
Duguit não nega a ideia mesma de Nação, e também não discorda de sua realidade.
Mas, para ele, ela é apenas sinônimo de necessidades, tradições e aspirações de determinado grupo,
ou seja, realidades que de fato unem este grupo, o que não significa afirmar que a unidade nacional
possua uma personalidade, uma alma ou consciência própria, sendo secundária, por exemplo, a
existência de uma língua própria ou uma religião própria. Nas palavras de Duguit: “a comunidade
de autoridade política, de direito, de língua, de religião, limites naturais” são “elementos

142
Ibidem., p. 41.
63
secundários”. Ou, ainda: “O elemento essencial da unidade nacional deve procurar-se na
comunidade de tradições, de necessidades e de aspirações”143.
Ademais, para Duguit, a unidade nacional se forma, ainda, pela solidariedade dos
membros que compõem uma mesma nação, e que exercem a divisão do trabalho, “visto que,
estando mais próximos uns dos outros, trocam, materialmente, com maior frequência e maior
facilidade os serviços que podem prestar-se mutuamente por virtude das suas diferentes
aptidões”144.
Assim, o que justifica de forma elementar a unidade nacional são necessidades próprias
de um mesmo grupo social, e não uma consciência coletiva ou uma personalidade jurídica que se
pode conceber como distinta das consciências individuais. O laço nacional (ou a solidariedade
nacional) somente existe no plano da história e da prática social, e não no plano ideal de uma
personalidade coletiva e jurídica que se separa das vontades dos membros que compõem a nação:

A Nação é uma realidade; jamais nos passou pela cabeça contestá-la. Essa realidade
consiste num laço de solidariedade (...). Mas não seria possível ir mais longe sem sair do
domínio da observação possível e cair na hipótese e na afirmação metafísicas. Assim é
que, sem hesitar, repelimos todas as doutrinas que afirmam a existência duma consciência
e duma vontade da Nação, e que [admitem] consequentemente, [que] a Nação possua uma
personalidade distinta dos indivíduos que a compõem, sendo a vontade dessa pessoa a
soberania nacional, o próprio poder político, o poder de dar ordens aos indivíduos 145.

Assim, Duguit rechaça veementemente a noção de consciência ou alma nacionais:

Do fato de, no mesmo momento, a maioria dos indivíduos de uma Nação pensar a mesma
coisa, não pode concluir-se que o suporte destes pensamentos seja uma substância
específica que seria a consciência nacional – a alma nacional (...). Se a psicologia positiva
rejeitou definitivamente o conceito de alma individual, deixando-o ao domínio das crenças
religiosas, não vemos como a política possa manter o conceito de alma coletiva 146.

143
DUGUIT, Léon. Os Elementos do Estado. Tradução Eduardo Salgueiro. Lisboa (Portugal): Editorial Inquérito,
2000, p. 15.
144
Ibidem., p. 14.
145
Ibidem., p. 16-17.
146
Ibidem., p. 18
64
3.3. O problema da oposição à soberania frente ao subdesenvolvimento brasileiro

A crítica realista de Duguit à soberania contextualizava-se no mundo europeu e francês,


onde este princípio serviu de base à formação e manutenção de grandes impérios econômicos na
virada do século XIX para o século XX.
Todavia, quando abordada ou dirigida à história de países que não tiveram participação
na ascensão das grandes forças econômicas internacionais – lugares marcados pela sombra do
atraso técnico em relação à industrialização e distantes de se conformarem às metas de
desenvolvimento econômico e social estipuladas pela Europa moderna, como o caso do Brasil e da
América Latina de forma geral –, a doutrina de Duguit requer mediações.
Se a obra de Duguit produziu noções jurídicas e políticas que repercutiram por todo o
mundo, foi exatamente o ponto da soberania que constantemente foi mais modificado no momento
da ambientação da teoria do autor a determinadas realidades nacionais que escapavam ao ambiente
europeu, e, por certo, a crítica radical da soberania que ele produziu sofreu uma série de inversões
nesse processo.
Um ideólogo que pode ser citado como um autor certamente influenciado pelo
solidarismo francês (inclusive por Duguit), mas que se valeu das teorias de Duguit sem abdicar-se
da teoria da soberania, foi o autor brasileiro Oliveira Vianna.
Conjugar soberania e solidariedade, para Oliveira Viana, ao abordar o caso brasileiro,
não consistiu em um simples erro de leitura deste autor a respeito do solidarismo francês que o
influenciou. O que nos parece mais claro é que as ideias de Duguit e do solidarismo francês, ao
serem ambientadas em projetos de Nação e diagnósticos de realidade distintos da origem europeia
dessas teorias, exigiu mediações pontuais que cabe serem comentadas, uma vez que colocam em
questão um dos princípios centrais da explanação de Duguit no que concerne à realidade a ser
observada das regras de direito, que seriam universais – como o próprio autor francês dizia a
respeito de sua visita a Buenos Aires, comentada há pouco.
A principal afinidade de Vianna com os solidaristas reside na crítica do individualismo
como herança da Revolução de 1789 e das Repúblicas que se formaram a partir dos princípios
liberais ali estabelecidos. Outra afinidade evidente entre Vianna e o solidarismo francês é a ideia
de substituição da ideia de direitos humanos individuais (como de um homem como ser afastado
da sociedade) para a ideia de uma possibilidade de um sistema de Direito dos Grupos.
65
Nesse ponto, a aproximação dessa linha de pensamento brasileira ao solidarismo talvez
se dirija mais a um outro solidarista francês, Alfred Fouillée (1838-1912), do que a Duguit.
Duguit não conceberia a ideia de uma totalidade, de um grupo, que se coloca como
uma composição distinta dos indivíduos que o integram. Fouillée, ao contrário, fornece este
caminho. Foi este autor considerado um dos fundadores da doutrina solidarista, e tentou demonstrar
que a república francesa, no final do século XIX, estava formando uma imagem extremamente
inoperante e ameaçadora, e que havia, na França, um evidente estado anárquico e inorgânico da
imprensa e da própria sociedade. Diante desse diagnóstico, Fouillée apresentava como solução uma
terceira via, chamada por ele de uma “sociologia reformista”, que teria a função de, opondo-se às
forças conservadoras e revolucionárias, encontrar a “justiça, e pela justiça, a solidariedade”147.
Acreditava Fouillée que seria necessário recuperar, na sociedade, o “belo sentimento de
comunidade espiritual do catolicismo”148, apostando na religião católica e em uma suposta potência
da psicologia coletiva como método para impulsionar a sociedade francesa à unidade nacional e
dar forma à solidariedade humana. Seria necessário ao Estado francês agir estimulando a
solidariedade nas almas dos indivíduos e do povo, e formar, finalmente, a organicidade que faltava
à sociedade.
A ideia de terceira via e do solidarismo católico, e de um método psicológico capaz de
influenciar a alma coletiva para a busca de uma alma nacional e comunal, assim como o diagnóstico
da inorganização das repúblicas fundadas sobre o direito individualista foi retomada
frequentemente por Vianna.
Em relação especificamente à influência do catolicismo, aponta Bresciani que, em
conferência proferida por Vianna em 1939, na Escola de Serviço Social, o autor, ao expor alguns
objetivos políticos do Estado Novo, destacava a necessidade de se dar um “relevo especial à Igreja
católica e sua doutrina social, em particular as encíclicas Rerum Novarum e Quadragesimo Anno”.
Vendo na imagem da harmonia católica e na forma como as ideias católicas moldavam
psicologicamente a mentalidade do operário, Vianna conduziu-se à mensagem religiosa de uma
igualdade substancial entre o trabalhador e o patrão, ou entre os mais pobres e a elite. Não seria
necessário contrapor-se o operário e o proprietário, o pobre ao rico, como faziam os partidos

147
BRESCIANI, Maria Stella Martins. O charme da ciência e a sedução da objetividade: Oliveira Vianna entre
intérpretes do Brasil. 2. ed. rev. São Paulo: Editora UNESP, 2007, p. 374.
148
Ibidem., p. 374.

66
socialistas, mas, sim, criar técnicas para formar uma atmosfera harmoniosa para sua igualdade,
como pelo acesso à casa própria e confortável, somada à instauração da assistência social elevada
à condição de um serviço público149.
Vianna compreendia essas políticas sociais como o “milagre dos nossos tempos,
porque promoviam a ascensão do operário à condição de proprietário; um milagre que aboliu as
distâncias sociais, que fez o homem do trabalho uma pessoa igual ao grande capitão da indústria”150
– explicava o autor aos seus alunos. Um milagre pelo qual o operário poderia usufruir das benesses
do proprietário sem deixar de ser operário.
Todas essas abstrações solidaristas, que foram enunciadas por Fouillée e reavivadas na
doutrina de Oliveira Vianna, não poderiam, entretanto, associar-se ao modo como Duguit lidava
com as ideias de solidariedade, de Direito e de Estado. Buscando tratar a solidariedade como um
fato social e sociológico, e trazendo-a ao campo obrigacional do Direito, enquanto ciência social,
rejeitava Duguit a noção de um método de psicologia ou de um impulso religioso para mover a
alma individual em direção a um sentimento mais solidário. Lembremos que, para Duguit, a
solidariedade não era uma regra moral de conduta em si mesma, mas um fato social, de modo a
rejeitar as ideias cristãs de caridade e filantropia, bem como as técnicas de um Estado soberano
transcendental que estimularia, pela sua soberania, laços morais de solidariedade.
Na verdade, o sentimento de solidariedade, segundo Duguit, apareceria como
decorrência de um processo no qual a sociedade age em comum visando à redução do sofrimento
comum individual.
Se, para Vianna e Fouillée, eram necessárias técnicas específicas para tornar caridosa
a alma do homem, chegando à solidariedade, em Duguit, não havia lugar para um conceito tão
genérico e impossível de se verificar objetivamente como alma.
Mas esta seria a questão: para Vianna, nos países europeus, seria possível uma
formação espontânea da solidariedade entre os homens; mas, em um caso como o brasileiro, essa
possibilidade encontraria barreiras estruturais. A sociedade brasileira formara laços de
solidariedade pouco estáveis, não duráveis, por uma série de razões: em primeiro lugar, pela
ausência de uma relação de dependência entre os proprietários e os trabalhadores, o que decorre da
história colonial do país, para a qual, pelo menos até 1888, o proprietário não precisava de

149
Ibidem., p. 432.
150
Ibidem., p. 432.
67
trabalhadores livres, uma vez que possuía seus escravos; em segundo lugar, pelo isolamento
inerente ao meio geográfico e pela autonomização dos latifúndios, que, independentes entre si, não
geravam sequer uma relação de interdependência entre os próprios senhores. Isto levava a que a
solidariedade, quando muito, existisse apenas na forma de uma solidariedade parental, que não se
externava para além das grandes propriedades e das relações de parentesco e dos agregados
afinados à família do senhor.
A insolidariedade, para Vianna, formada a partir dessas relações históricas e sociais,
estava estruturada de tal modo na psicologia social do brasileiro, que não seria possível superá-la
senão pela presença de um Estado forte e unificador, posicionado acima dos conflitos entre os
caudilhos e os interesses particulares do patriarcado brasileiro.
A presença do Estado se mostrava, então, como uma saída possível para a situação de
privatismo brasileiro. A conclusão de Vianna seria a de que somente um estado forte e de
autoridade seria capaz de agir na sociedade e na economia de modo a superar o insolidarismo
estrutural provocado pelo espírito de clã patriarcal do país, que Vianna tomava como um dado
sociológico.
Aprofundava o autor, assim, a tese do que podemos chamar de um solidarismo de
Estado, evidenciada em um pequeno artigo publicado por ele no jornal A Manhã, em 1943, cujos
principais termos convém destacar abaixo:

O insolidarismo é (...) um dado, cientificamente determinado, de nossa psicologia social,


coletiva – de povo. É uma verdade experimental e indiscutível. Ora, deste dado
sociológico, desta verdade constatada e experimentada, decorre para a nossa política social
esta conclusão: é dever supremo do Estado nacional amparar, estimular e desenvolver
todos aqueles movimentos privados que representem, no nosso povo, expressões de
cooperação, de agregação, de solidariedade social ativa, em suma. Qualquer que eles
sejam e por menores e mais rudimentares e onde quer que se manifestem, salvo os que
constituíram para fins anti-sociais ou anti-nacionais (hordas do cangaço, no sertão, ou, no
Sul, associações estrangeiras com objetivos anti-nacionalizadores, por exemplo) (...). As
nossas classes ou categorias profissionais, nas cidades e nos campos, não puderam
adquirir, senão em alguns raríssimos setores, densidade, espessura, coerência,
organização. Na sua maioria, estão ainda em fase embrionária de formação, ainda
indefinidas nos seus lineamentos, sem contornos precisos e – o que é mais significativo –
sem aquela “consciência de grupo”, a que se referem os sociólogos. Daí a ausência de
associações sindicais em seu seio. Estas expressões associativas, entretanto, estão nelas
contidas em latência, sob formas ainda tórpidas ou potenciais; para a sua aparição e
revelação, o que lhes estava faltando era, certamente, um estímulo externo agindo
sobre essas categorias ou classe, essa corrente de excitação que as condições
específicas da nossa formação social e histórica não lhes puderam fornecer, como
vimos, e que só o Estado – objetivando o pensamento de uma política de preparação
do homem brasileiro para a vida associativa, de grupo – poderia provocar. (...) Na
verdade, durante todo o período de sua formação histórica, o homem brasileiro sempre
68
agiu sob a inspiração do espírito individualista; mesmo quando agremiava em torno de si
um grupo poderoso151.

Para que se pudesse, então, estimular interesses que transcendessem o âmbito


individual ou de clã, é que provavelmente no Brasil tenha se almejado um Estado forte, com
sindicatos e instituições corporativas que, colocados na linha de frente, visariam à Nação acima do
interesse privado e de partidos.
Vianna aponta, nesse artigo, que os partidos nunca conseguiram estimular um
sentimento de solidariedade no país, uma vez que, no Brasil, pertencem, na verdade, àquele tipo de
solidariedade social que Max Stiner chama de associação de egoístas, em que o objetivo da
solidariedade não é um interesse público ou coletivo, mas única e exclusivamente o interesse
pessoal – de indivíduo, de família ou de clã, mas que só no grupo, no “partido”, encontra meio
seguro de realização.
Tomando a primazia da solidariedade pelo Estado como regra, e a formação espontânea
da solidariedade como algo improvável no Brasil, o raciocínio de Vianna acabava, ainda que em
nome da formulação de um solidarismo à brasileira, no entanto, lançando as bases de um argumento
que viria a ser utilizado para justificar o Estado Novo. A sua rejeição aos partidos políticos, e em
seu lugar a criação de uma forma de Estado-Nação soberano em torno de um presidente único, que
se colocaria acima dos conflitos, serviram não apenas para que determinados partidos fossem
aniquilados pelo Estado Militar; uma série de grupos sociais e classes que não condiziam com a
ordem estipulada pelos líderes do governo também foram reprimidos e extintos pela força
militar152.
Em Duguit, e nos solidaristas franceses de modo geral, o estímulo do Estado é apenas
uma das máximas da regra do Direito, mas para Duguit resta inabalável a obrigação de o Estado
não reprimir as formas de solidariedade já existentes.
Vianna, por seu diagnóstico, considera apenas a primeira regra (estímulo estatal), e
partindo da insolidariedade brasileira, constatando que no Brasil as demais formas de solidariedade
existiriam apenas em forma potencial, pouco valor atribui à segunda regra de Direito, que seria a
de não repressão das formas de solidariedade existentes.

151
VIANNA, Oliveira. Individualismo e solidarismo. In: A Manhã, 8 de out. 1943. Disponível no Acervo Digital da
Biblioteca Nacional.
152
Sobre tal tema, cf. CANCELLI, E. O mundo da volência: a política da Era Vargas. Brasília: UnB, 1993.
69
Em todo caso, o que nos importa do diagnóstico de Vianna é que ele identifica (embora
justificando sua impressão por vias de uma explicação relativa a uma ideia de “insolidariedade
espontânea”, que, talvez, merecesse revisão) que a solidariedade social, tal como formulada em sua
base teórica francesa, encontrava no Brasil certa resistência, na prática153. Fato é que o solidarismo
foi aqui ambientado de forma dependente da figura de um projeto de política pública
exclusivamente de Estado, o que se justificaria pela suposta impossibilidade de formação
espontânea de instituições políticas de solidariedade social.
De fato, diante da fraqueza do Estado, não conseguiu a sociedade brasileira, mesmo
após o pensamento estatista dos anos 1930, realizar integralmente uma efetiva reforma na nossa
estrutura agrária e estruturante de nossa formação social e econômica.
Diante desse fator, foram atribuídas profundas críticas ao solidarismo duguiniano,
como aquele realizada por Paulo Bonavides, em seu artigo, de 1964, Nacionalismo, soberania e
subdesenvolvimento na crise política e social do Brasil154.
Segundo este autor, a radical oposição de Duguit à soberania teria como efeito a
redução das possibilidades de autonomia, autodeterminação e desenvolvimento de países que,
como o Brasil, foram, ao longo dos tempos, submissos à soberania dos proprietários de terras e,
para além deles, de países e empresas economicamente imperiais.
Bonavides não discorda de Duguit sobre a soberania ser considerada uma crença, de
modo que compreende que falta, realmente, a essa noção, objetividade científica. Porém, explica
que, no caso brasileiro, a dependência do exercício da soberania, ainda que provido de caráter
sentimental, deve prevalecer em relação ao fato de sua falta de objetividade. Na verdade, como
expõe o autor, “o princípio da soberania (...) tem distintas faces. Ontem, serviu no Ocidente ao
expansionismo germânico, deu pretexto a violações e crimes contra a paz universal, ofendeu o
direito de povos pequenos e desamparados”155.

153
A questão, que todavia não pretendemos tratar integralmente neste trabalho, foi abordada por uma série de autores
referenciais da sociologia e da história das ideias no Brasil. Tais autores – e vale mencionar, nesse debate, a participação
de Sergio Buarque de Holanda, entre outros – debatem a rigidez com que o país seria capaz de absorver a ideia de uma
solidariedade social, mas discordam, entre eles, com relação aos motivos que levam a que tal resistência tenha tomado
lugar na formação histórica, social e política do país.
154
BONAVIDES, Paulo. Nacionalismo, soberania e subdesenvolvimento na crise política do Brasil. In: Revista de
Direito Público e Ciência Política da Faculdade Getúlio Vargas. v. VII, nº 3 – Set/Dez. 1964. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rdpcp/article/view/59571>.
155
Ibidem., p. 80.

70
Hoje, em um sentido menos ocidentalizado e atualizado, a soberania é também
sinônimo de resistência e luta de Estados fragilizados contra o poder imperialista que impede seu
desenvolvimento, de modo que, para Bonavides, Duguit observou, a respeito do princípio da
soberania, tão-somente um ângulo de suas consequências negativas e desastrosas”156. Ocorre que
há Estados, explica Bonavides, que, quando deixam de invocar a soberania, tendem a se fragilizar
internacionalmente, de modo que caberia invocar o conceito clássico de soberania ainda que
desprovido de objetividade e cientificidade:

Nenhum caminho mais se oferece aos Estados ameaçados senão invocar e fazer valer,
tanto quanto possível, o que há de emocional e até irracional no conceito clássico da
soberania, que Duguit cuidara de todo imprestável, vendo nele apenas aquela página triste
e funesta dobrada na moderna vida dos Estados ocidentais. (...) As imprudentes e
excessivas limitações do velho princípio abririam brecha jurídica, que, debilitando no
povo o sentimento da soberania, debilitar-lhe-ia também o poder de resistência às causas
ilícitas do imperialismo, quando estas, dissimuladas no prospecto de organizações
internacionais, se levantam para solapar, da maneira mais inocente e insuspeita, o penoso
esforço que fazem os povos fracos e subdesenvolvidos rumo à independência
econômica157.

Por ser a soberania uma das formas históricas da resistência de Estados frente às
grandes forças econômicas mundiais e imperantes internacionalmente, não é um exercício a ser
rejeitado de modo absoluto, cabendo, entretanto, uma readequação do princípio da soberania em
vista das mudanças contemporâneas.
Toda essa observação não repele, todavia, a importância da crítica de Duguit, e o que
este autor levanta como crítica da soberania aplica-se ainda em países em desenvolvimento. A
desmitificação da soberania nacional operada por Duguit não é algo totalmente alheio às condições
de um país como o Brasil, já que em sua obra o que se denuncia é a soberania como crença que
justifica a opressão e submissão de indivíduos às necessidades de grupos econômicos específicos.
Por outro lado, é preciso demonstrar que a crítica de Duguit ao conceito de soberania
não repele o direito à autodeterminação e ao desenvolvimento social e econômico de países. Trata
ele da criação de um sistema de obrigações mútuas entre indivíduos e grupos diversos, para
cumprimento de regras fundadas na solidariedade, de regras para evitar e diminuir sofrimentos
comuns, de tal modo que os sofrimentos individuais sejam reduzidos.

156
Ibidem., p. 81.
157
Ibidem., p. 82-84
71
3.4. O Direito Internacional a partir de Duguit e sua incompatibilidade com a ideia de soberania

Moacyr Lobo da Costa aponta que Duguit manteve imodificada a sua teoria solidarista
ao tratar do Direito Internacional, mencionando a existência de regras jurídicas internacionais
independentes de uma entidade supranacional capaz de agir coercitivamente sobre os Estados
membros da sociedade internacional158.
De acordo com a regra de Direito fundada na solidariedade social, assim como há um
Direito que precede o Estado, também é possível se falar em um Direito Internacional que precede
a existência de uma entidade supranacional e soberana capaz de colocar em prática a solidariedade
internacional.
O fato de indivíduos formularem regras para as relações de um grupo familiar, de um
grupo social, ou das relações entre esses grupos, para buscar a redução dos sofrimentos comuns, é
o mesmo fato que importa em indivíduos de nações diferentes estabelecerem e obedecerem a regras
jurídicas internacionais. Desse modo, em Duguit, como aponta Lobo da Costa, cada nação e cada
órgão internacional colabora, em um mesmo sistema, com a solidariedade que conduz a uma regra
geral a que todos os membros dos grupos sociais estabeleceram; estas já existem pelas próprias
necessidades que os próprios indivíduos possuem, antes mesmo de qualquer ingerência de
institutos de organização coletiva:

A objeção desaparece se admitirmos que a regra de direito não é uma ordem imposta por
uma vontade superior às vontades inferiores, mas, uma norma concebida como obrigatória
e como devendo ser sancionada, que os indivíduos reconhecem e acatam antes mesmo
dela vir a ser aplicada159.

Duguit, então, compreende que existem regras de Direito Internacional, ainda que não
exista um organismo de coação capaz de aplicar sanções diretamente. O que o autor dispõe,
portanto, é que, no futuro, pode ou não haver esse órgão soberano, mas isso independe de
analisarmos que, no presente, os povos se inclinam ante a supremacia do direito. Se, no âmbito

158
Cf. DA COSTA, Moacyr Lobo. O fundamento do direito internacional na doutrina de Duguit – exposição e crítica.
In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 53, 282-293. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/66297>. Acesso em 18.12.2020.
159
Ibidem, p. 286.
72
nacional, as regras de Direito existiam antes que as vias de direito e os modos de coação fossem
organizados – ou seja, se o Direito existe antes de haver o Estado –, o mesmo se aplica às regras
internacionais, que existem independentemente de um órgão capaz de organizá-las:

Assim como, no direito interno, as normas precederam, de muito, as regras construtivas,


destinadas a assegurar a sua efetividade e observância por meio da coação social, assim,
também, o direito internacional, puramente normativo, no presente, caminha, através de
peníveis esforços, para se tornar um direito construtivo, ou seja, no futuro, um direito
internacional cujas normas sejam garantidas e sancionadas pela coação internacional
organizada160.

Para Duguit, assim como ocorre com a força material do Estado, a força coercitiva para
aplicação das regras internacionais vem em momento posterior a sua necessidade e a sua existência,
o que nos impele a lembrar, mais uma vez, da crítica duguiniana à doutrina do direito individual e
da soberania dos juristas alemães, que se opunham à tese da solidariedade francesa.
A força do Estado ou de qualquer órgão capaz de agir coercitivamente sobre os
governados só pode ser admitida, segundo o autor, caso seja subordinada a uma regra de direito
superior a esse órgão. Duguit compreende, assim, que, tal como as regras de direito internas à nação
são pressupostos para o uso da força do Estado, as regras de direito internacional devem definir,
por si só, as condições para o uso da força de eventual órgão que haja em face dos países membros
da sociedade internacional. Se ainda não havia, na época de Duguit, um órgão com força de coerção
suficiente para tanto, isso não significava a inexistência de um direito internacional. Qualquer
órgão com força material capaz de agir sobre os governados, antes de ser criado, já deveria se
subordinar, para Duguit, às regras de Direito Social.

160
Ibidem, p. 289-290.
73
3.5. Estado Democrático de Solidariedade: a proposta anti-neoliberal de José Fernando de Castro
Farias

As teses de que tratamos, até aqui, para fomentar a discussão das teorias da
solidariedade no Brasil, formaram-se anteriormente àquele processo de redemocratização por que
passou o país após o período de ditadura, e que colocou em xeque a forma de concessão de direitos
sociais pela via única do Estado161, exigindo uma base social-jurídica pautada em um processo
democrático participativo e pluralista. No entanto, a esse momento promissor, ocorreu que, nos
anos 1990, direitos sociais foram solapados pelo ingresso de uma potente ideologia neoliberal, que
via a solução de todos os problemas ditatoriais como reflexo de um Estado autoritário.
Ainda assim, apesar do ingresso da racionalidade neoliberal, foi dentro desse contexto
de impulso democrático e anti-ditatorial, que se passou a reivindicar uma base solidarista para a
possível república brasileira, no sentido de se tentar fazer uma aproximação entre a livre iniciativa
e a função social da empresa e propriedade, sem se deixar de lado o processo de participação dos
cidadãos na esfera política do país.
Muitas foram as tentativas de reafirmar a solidariedade social como princípio norteador
de uma sociedade menos desigual, mais tolerante e menos autoritária. Autores como Fábio Konder
Comparato, que já haviam demonstrado a importância de um processo de participação social em
vista da cidadania solidária no país nos anos 1980, ganharam atenção especial naquele período.
Comparato está entre aqueles juristas que, mesmo sabendo da importância do Estado, reconhecem
haver especificamente no Brasil certa exclusividade de políticas realizadas pela mão única do
Estado, sem uma abertura real às formas de participação social não estatais. Aposta este autor em
uma solidariedade renovada, capaz de permitir uma maior participação dos cidadãos brasileiros na
vida política da sociedade.
Essa proposta foi reincorporada, recentemente, por Gianpaolo Poggio Smanio, que
aponta que a cidadania mudou de forma, devido à importância atribuída, nos últimos anos, à
solidariedade social como um princípio norteador das políticas públicas. Para ele, a solidariedade,

161
Não há consenso acerca do momento exato em que tal processo se deu no final do século XX no Brasil – trata-se,
esta, é sempre preciso lembrar, de uma questão em aberto para a escrita da história política brasileira.

74
além de servir como um vetor para a solução da tensão entre liberdade e igualdade 162, pavimenta
“o caminho de participação dos cidadãos nas instituições do Estado e na ocupação dos espaços das
instituições da sociedade civil”163.
Comparato, antes disso, compreende a necessidade de uma racionalidade de mundo na
qual o neoliberalismo não dite as formas de sociabilidade, e que se baseie, portanto, ao contrário
da lógica da concorrência, na própria noção de solidariedade. Compreende que a solidariedade, é,
ao contrário do princípio da concorrência que anima a razão de ser do neoliberalismo, um princípio
civilizatório por excelência:

É preciso levar em conta que a concorrência entre as pessoas não é um fator de civilização;
ao contrário, o fator de civilização é a busca constante da solidariedade. Fazendo uma
análise do tipo dos filósofos jusnaturalistas do século XVIII, o homem da barbárie é
essencialmente um homem da rivalidade, da concorrência. Ele não tem nenhum
sentimento de ligação com o outro e não procura ajudar, mas sim superar, esmagar. Todo
trabalho civilizatório é de superação da rivalidade. A concorrência só é admitida como
uma espécie de estímulo ao aperfeiçoamento técnico, mas isso não pode ser colocado
como princípio fundamental da sociedade164.

Se a racionalidade solidária ainda tem algum espaço na atualidade, e se ainda pode ser
uma forma de resistência à racionalidade neoliberal, não sabemos; e este é um problema que, pela
compreensão da obra de Duguit, tentamos aprofundar, embora não haja a certeza de que
encontramos uma resposta definitiva.
Nossa hipótese, porém, é a de que a retomada da obra de Duguit, especialmente quanto
a sua concepção de regra de direito e submissão do Estado e de todos os indivíduos ao princípio da
solidariedade, constitua importante elemento para refletir como superar os limites de uma razão de
mundo fundada na concorrência como princípio último de sociabilidade.
Um outro autor brasileiro, José Fernando de Castro Farias, forneceu caminho
semelhante a Comparato e Smanio, e, para tanto, muito se valeu das teses de Duguit, em conciliação
com outros solidaristas, para buscar uma fonte de possibilidades políticas e jurídicas para

162
SMANIO, Gianpaolo Poggio. Legitimidade Jurídica das Políticas Públicas e Efetivação da Cidadania. In: SMANIO,
Gianpaolo Poggio; BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins. O Direito e as políticas públicas no Brasil. São Paulo: Atlas,
2013. p. 5.
163
SMANIO, Gianpaolo Poggio. As dimensões da cidadania. In: Revista da ESMP, ano 2, p. 13-23, janeiro/junho,
2009. p. 18.
164
COMPARATO, Fábio Konder. Desenvolvimento econômico e solidariedade para viver a democracia. In:
HADDAD, Fernando (organizador). Desorganizando o consenso: nove entrevistas com intelectuais à esquerda.
2. ed.. Petrópolis, RJ: Editora Fundação Perseu Abramo e Editora Vozes, 1998. p. 123.

75
incrementar a ideia de solidariedade social como solução aos problemas nacionais, rejeitando, na
mesma medida, o impulso individualista do neoliberalismo. Aprofundou o assunto do solidarismo
jurídico em uma análise tanto do Direito de Solidariedade (que o autor concebe como tendo sua
origem no solidarismo francês)165, como do Estado de Solidariedade – assunto este que lhe rendeu
uma Tese, na França, sob orientação do importante pensador Michel Miaille, sobre Duguit e
Hauriou166.
Em ambas as obras, aponta Farias para a importância da construção de uma
racionalidade jurídica, nascida na virada do século XIX para o século XX – a racionalidade de
solidariedade –, que teria fomentado uma teoria do Direito e do Estado em contradição com o
individualismo jurídico liberal e do positivismo jurídico que prevaleceram como modelos teóricos
no século XIX.
Apontando, entretanto, o problema do desvanecimento do solidarismo no século XX,
Farias defende, especialmente nos anos 1990 e 2000, a necessidade de reconstruir a práxis da
solidariedade social sem abdicar da figura do Estado. Em uma tentativa de rejeição da radicalidade
da ideologia neoliberal, forneceu uma possibilidade de raciocinar o Estado sem manter o elogio
ilusório da figura de um Estado paternalista e autoritário.
Reconstruindo, assim, a ideia de uma terceira via entre o estadismo e o individualismo,
constrói Farias a ideia de um Estado Democrático de Solidariedade, melhor exposta em sua obra
Ética, Política e Direito167.
Inicialmente, é importante destacar que a absorção das ideias de Duguit foi
fundamental para a formulação desse conceito.
Embora Duguit reconheça a necessidade de um Direito atento às forças externas ao
Estado, é importante destacar que não se trata de um direito que pretenda inutilizar o Estado em
sua função de condicionar os sujeitos à igualdade social. Não há no pluralismo jurídico de Duguit
uma rejeição ao papel social do Estado, mas uma proposta para sua legitimação. Quando, por
exemplo, o autor assume a descentralização da política às diferentes instituições e indivíduos

165
Cf.: FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito de solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.
166
Cf.: FARIAS, José Fernando de Castro. A Teoria do Estado no Fim do século XIX e no início do século XX: os
enunciados de Léon Duguit e de Maurice Hauriou. Rio de Janeiro: Lumen Juirs, 1999. Livro escrito a partir da tese de
doutaremento do autor, La Réformulation de L' État et du Droit à la Fin du XIX siècle et au début du XX siècle: Les
Enoncés de Léon Duguit et de Maurice Hauriou, entregue à Unversidade de Montpellier I, para o curso de Ciência
Política.
167
FARIAS, José Fernando de Castro. Ética, Política e Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
76
sociais, a noção de Estado Colaboração demonstra exatamente uma necessidade de abordar as
funções sociais do Estado com amplitude e de forma menos reducionista, prevendo um aumento
de seus serviços. Acredita ser necessária a descentralização naquilo que o Estado, em si, não
consegue atingir por questão de limitações materiais; uma descentralização que não exclui, assim,
os serviços de Estado, mas que apenas delega determinados serviços a instituições com certa
autonomia perante ele, como a escola e o sindicato, que, porém, não deixariam de ser reguladas
pela lei.
Estava em construção, em Duguit, uma concepção de Estado como algo vinculado às
exigências e legitimidade da sociedade, antes do que regido pela vontade dos governantes, o que
forneceu fundamentos para José Fernando de Castro Farias apresentar, recentemente, o conceito
de “Estado Democrático de Solidariedade”. Esse conceito prevê que o Estado não pode deixar de
ser socialmente ativo, mas que se abre, para tanto, à “lógica democrática realizada em todo o espaço
da sociedade civil, capaz de assegurar aos grupos e aos indivíduos as condições para uma efetiva
participação no processo político e social”, participação que também não descarta o processo de
redistribuição equânime de recursos pela força do Estado168.
Aponta Farias que, atualmente, é comum constatar um discurso (neoliberal,
normalmente) que, a fim de justificar a redução ou inaplicabilidade de direitos sociais, acusa o

168
Ibidem., p. 142. Essa a lógica de Estado, aberta à participação, ganhou uma força especial a partir dos movimentos
do final do século XX, o que certamente se pode verificar no movimento feminista. Esse movimento pressionou essa
abertura, mas também é preciso apontar que o aspecto da redistribuição, por seu turno, gerou divergências dentro do
próprio movimento feminista. A inserção de determinados movimentos feministas na racionalidade neoliberal, por
exemplo, fez levantar uma crítica de pensadoras feministas que compreendem que o incentivo incondicional pelo
empreendedorismo das mulheres muitas vezes corre o risco de ser realizado de uma forma que, na prática, não integra
socialmente a mulher no mercado de trabalho, ou que as insere de forma excludente. Isso porque as reivindicações
feministas de inclusão das mulheres no mercado de trabalho remunerado podem ser absorvidas por uma racionalidade,
como a neoliberal, que não pretende a modificação de base material das desigualdades e das discriminações enfrentadas
por elas. O uso corrente da legislação neoliberal do trabalho para essa inserção no mercado, por exemplo, muitas vezes
acaba por formalizá-las em trabalhos intermitentes, teletrabalhos sem a obrigatoriedade de controle de jornada,
trabalhos autônomos (muitos dos quais as mulheres já exerciam), sem uma proteção por um salário direto digno,
benefícios do sistema de Seguridade Social e direitos sociais básicos e mínimos. O temor da feminista Fraser expressa
o problema envolvido nessa questão: "numa virada cruel do destino, temo que o movimento pela libertação feminina
tenha se enredado perigosamente com os esforços neoliberais de construir uma sociedade de livre mercado. Isto
explicaria como pode ser que as ideias feministas, antes parte de uma visão radical de mundo, cada vez mais têm sido
expressas em termos individualistas. Se antes feministas criticavam uma sociedade pró-carreirismo, agora aconselham
as mulheres a se envolver mais nas carreiras. Um movimento que antes priorizava a solidariedade social e agora celebra
empreendedores femininos. Uma perspectiva que antes valorizava o “cuidado” e a interdependência e agora encoraja
o crescimento individual e a meritocracia" (FRASER, Nancy. Três ciladas para o feminismo. Tradução Bruno Cava.
In: Outras Palavras, 2019. Disponível em: <https://outraspalavras.net/outrasmidias/nancy-fraser-tres-ciladas-para-o-
feminismo-e-como-evita-las/>. Acessado em 17.07.2020).

77
Estado de Bem-Estar Social de um suposto esgotamento. Ocorre que o modelo de Estado de
solidariedade, por abrir a fonte de regras de direito à sociedade, não se confunde, apesar das
semelhanças, com o modelo tradicional de Bem-Estar Social que se consolidou no século XX, este
que de fato entrou em profunda crise nas últimas décadas.
Como explica Farias, “o que está esgotado é o Estado de bem-estar tradicional,
caracterizado pela passividade, pela solidariedade anônima, pelo paternalismo e pelo
assistencialismo”169. Quando verificamos uma concepção mais ampla de Estado de bem-estar, mais
aberta às forças dos grupos sociais, neste caso não verificamos um esgotamento do Estado, mas
uma dificuldade de afirmá-lo diante da racionalidade neoliberal e seus modelos de subjetivação
que operam pela forma de empresa atribuída ao Estado.

169
FARIAS, José Fernando de Castro. Ética, Política e Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 143.
78
4. A sociologia jurídica da realidade imediata: apontamentos críticos ao método positivo de
Léon Duguit

Buscando refutar do campo do Direito e da ciência política o espírito metafísico e


teológico que se alastrou entre a maioria dos juristas europeus, a teoria de Duguit exerceu uma
virada radical na literatura do Direito Público. Sua crítica à soberania e à subjetividade e
personalidade jurídicas enfrentou com genialidade as noções tradicionais desse Direito, que se
baseavam em concepções que, sempre aceitas no mundo abstrato do Direito, deixavam a realidade
material da sociedade em segundo plano.
Todavia, é possível dizer que a teoria realista acreditada por esse autor foi falha em
muitos aspectos, sendo questionável até mesmo que a alcunha de realismo à sua escola – como
apontado por diversos autores contemporâneos ao jurista – ignorava a realidade que se encontra
abstraída no plano jurídico, o que, ao menos para Carré de Malberg, teria sido um dos motivos
pelos quais a teoria realista do Estado encontrou pouca aprovação na sua época.
Ao tratar da negação de Duguit à personalidade e soberania estatal, Carré de Malberg
aponta que Duguit e os demais autores da mesma escola realista (como Jezé e Le Fur), acreditavam
que “o poder do Estado consiste simplesmente no poder que têm de fato os governantes de impor
sua vontade sobre os governados, (...) concluindo disso que a pretendida pessoa estatal se confunde
com os governantes”170. Sob o pretexto de estabelecer as realidades materiais, ignoravam esses
juristas as categorias jurídicas que se estabeleciam no campo das ideias, que não deixam de ser
uma importante parte da realidade a ser trabalhada pelo jurista.
Aponta Carré de Malberg que os realistas procuravam opor-se à objeção de que não se
pode confundir a personalidade jurídica com a existência física. Porém, essa teoria esquecia que o
direito se move no campo das ideias, e, por consequência, de abstrações, e que não deixa, por isso,
a relação jurídica de derivar dos fatos sociais. Daí porque a personalidade (jurídica) do Estado, tal
como a personalidade humana, não é uma ficção propriamente dita, apesar de seu caráter abstrato:

Se os conceitos jurídicos se baseiam sobre fatos, há de se reconhecer que seu objeto


não é apenas o de expor estes fatos em si mesmos, mas, também, o de expressar as
relações jurídicas que deles derivam, relações que têm necessariamente um caráter
abstrato. A personalidade humana é uma dessas relações; a personalidade estatal é

170
CARRÉ DE MALBERG, Raymond. Teoría general del Estado. Tradução de José Lión Depetre, 2. ed. 2.
reimpressão. México: Fundo de Cultura Econômica, 2001. p. 35.
79
outra semelhante; as duas encontram seu fundamento nos fatos, mas ambas são
abstrações de mesmo grau. Quanto à consideração sacada por Duguit e por Seydel
de que o Estado não é capaz de querer, ela é igualmente pouco decisiva, pois a
personalidade jurídica se reconhece até mesmo ao homem incapaz de vontade
própria, ao infante, ao louco171.

Duguit irá opor-se a essa crítica, afirmando que não ignora que a soberania e outras
categorias políticas e jurídicas sejam, de um certo ponto, existentes. Dirá que são, entretanto,
crenças, como qualquer outra crença religiosa; e toda crença existe, de fato.
Essa discussão ganhara maior aprofundamento, posteriormente, no âmbito do
pensamento de matriz marxiana, em especial pelo jurista Evgeni Pachukanis, crítico radical de
Duguit.
De acordo com esse jurista russo, a visão do Direito das teorias sociológicas (como a
de Duguit) e das teorias psicológicas, apenas aparentemente aproximam-se da realidade material.
Não realizariam elas um exame social das próprias categorias jurídicas como tais, ou seja, “pura e
simplesmente deixam de ver os problemas que nela se encerram”, operando “com conceitos de
caráter extrajurídico”172. Quando examinavam as próprias definições jurídicas, era “apenas para
declará-las ‘ficções’, ‘fantasmas ideológicos’, ‘projeções’ etc.”173.
Assim, sob o pretexto de submeter o Direito e o Estado à realidade dos fatos sociais
(invertendo a lógica kelnesiana, que procurava submeter os fatos à norma jurídica), a teoria
sociológica analisava-os apenas em sua forma bruta, aparente, deixando de verificar os problemas
estruturais que se encontram no processo da formação das categorias jurídicas.
No caso de Duguit, acreditamos ter sido esta uma falha decorrente não tanto de sua
intenção, mas principalmente derivada do próprio método utilizado pelo autor. Uma das principais
influências metodológicas do jurista francês foi a filosofia positiva de Auguste Comte, para quem
o “domínio da observação” é a “única base possível de conhecimentos verdadeiramente acessíveis,
sabiamente adaptados às nossas necessidades reais”174. De acordo com Comte, a filosofia
tradicional, de espírito metafísico, parte de uma “lógica especulativa”, consistente “em raciocinar,
de maneira mais ou menos sutil, conforme princípios confusos que, não comportando qualquer

171
Ibidem., p. 37-38.
172
PACHUKANIS, Evgeni. A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921 – 1929). Coordenação
Marcus Orione. Tradução Lucas Simone. São Paulo, Sundermann, 2017. p. 73.
173
Ibidem., p. 73.
174
COMTE, Auguste. Discurso sobre o espírito positivo. Tradução de José Arthur Giannotti. Os Pensadores. São
Paulo, Victor Civita, 1973. p. 54.

80
prova suficiente, suscitavam sempre debates sem saída (...)”175. Já a filosofia positiva traz, para
Comte, uma situação diversa, menos confusa e mais passível de comprovação, na qual “a pura
imaginação perde irrevogavelmente sua antiga supremacia mental, e se subordina necessariamente
à observação, de maneira a constituir um estado lógico plenamente normal”176.
Seguindo esse método, ao tomar a realidade social a partir de fins positivos, Duguit
renuncia a qualquer tipo de orientação metafísica, ou seja, à descoberta sobre a natureza e a origem
dos fenômenos sociais, para focar-se no domínio da observação, voltada a fins. Esse problema
metodológico ocasionará, segundo Pachukanis, uma série de efeitos nefastos à sociedade, em
especial na relação entre as classes sociais. Como consequência de seu positivismo, a teoria de
Duguit sobre o Estado Colaboração, por exemplo – dirá Pachukanis –, acabou por formular um
conceito de Estado que serviu para “dissimular a contradição do Estado burguês moderno, ocultar
seu rosto bestial sob uma máscara ideológica apresentável”177.
Confirmando as teses de Marx e Engels, Pachukanis aponta que, “juntamente com a
dominação de classe direta e imediata”, também existe uma dominação “refletida e indireta”, que
se insere “na forma do poder oficial do Estado”178. Tal poder constituiu-se, historicamente, como
uma força especial, que se separou da sociedade; e é por essa separação que o Estado aparece como
entidade impessoal, com personalidade distinta dos indivíduos que o compõem, justificando,
ideologicamente, a ordem social (e capitalista) existente.
Se Duguit concebe o Estado em vista de seus fins, sem retomar o processo histórico de
sua formação, ele deixa de ver o problema da estrutura de dominação social formadora do Estado
no capitalismo, e, assim, tomando o Estado como um fato bruto, mantém a abstração que tanto
pretende criticar, legitimando o mesmo Estado soberano. “O uso consciente das formas ideológicas
– continua Pachukanis – não é o mesmo que o seu surgimento, que geralmente não depende da
vontade das pessoas”179, de modo que é materialmente impossível tornar, apenas por um novo
impulso de vontade individual racionalmente pensado, um Estado capitalista e militar (como o

175
Ibidem., p. 54.
176
Ibidem., p. 54.
177
PACHUKANIS, Evgeni. Um Exame das principais correntes da literatura francesa sobre o direito público. In: A
teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921 – 1929). Coordenação Marcus Orione. Tradução Lucas
Simone. São Paulo, Sundermann, 2017. p. 238.
178
PACHUKANIS, Evgeni. A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921 – 1929). Coordenação
Marcus Orione. Tradução Lucas Simone. São Paulo, Sundermann, 2017. p. 73. p. 170)
179
Ibidem., p. 171.
81
Estado francês) em Estado colaborador. Dar-lhe uma função seria apenas uma forma de legitimá-
lo.
Para compreendermos essa análise, é preciso contextualizar a crítica do eixo de classe
ao solidarismo jurídico.
Na época de Duguit, em que o modo de produção capitalista se torna o modo de
produção da vida social em praticamente todo o mundo, o antagonismo de classe entre capital e
trabalho se torna uma preocupação social cada vez mais constante, pelo menos se comparado com
a época em que seu influenciador, Comte, escrevera.
Trata-se de um período não mais de luta política vinculada estritamente contra o antigo
regime, como foram as revoluções do final do século XVIII com resquícios na primeira parte do
século XIX, e, sim, de questionamento e críticas a respeito do suposto “progresso” da sociedade
burguesa industrial que ganhara especial terreno no final do século XIX. Neste contexto, a crítica
histórico-materialista do Direito, como a de Pachukanis, veio a demonstrar que a teoria de autores
positivistas como Duguit não exporiam a exploração e a dominação de classes, já que não seriam
elas desnudadas em suas estruturas – o método positivo não pretende explicar a origem histórica
dos fatos e ultrapassar a sua realidade aparente; pelo contrário, o método positivista pretende ver
os fatos de acordo com sua função, seu fim, sem realizar uma análise do processo histórico que
levou os fatos a se apresentarem de um determinado modo.
Por conseguinte, utilizando-se deste método, as teorias positivistas, mesmo de base
sociológica, deixavam de lado os problemas sociais que ocorrem por trás do processo histórico-
material de produção e exploração de classes. Existe uma realidade que os fatos sociais
empiricamente observados não revelam. Como explica Michel Miaille, a realidade que aparece,
diante dos nossos olhos, como fato bruto, é uma fase da realidade, pois a realidade, na verdade, é
um processo constante. Nesse sentido, é importante demonstrar a insuficiência de uma teoria que
somente conhece a realidade do Estado de modo unilateral. Unilateral porque, tomando os fatos e
analisando-os de forma bruta, tornam-se limitados à própria imagem do que se vê180; imagem que
não revela as relações concretas que se abstraem ao tomarem forma jurídica e política.

180
MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao direito. Tradução de Ana Prata. 3. ed. Portugal, Editorial Estampa, 2005.
p. 22.

82
Na realidade, nenhum fato se impõe por si mesmo, pois, como explica Michel Miaille,
“é o investigador que, com um conjunto de precauções científicas, reconstrói intelectualmente os
fatos e lhes propõe uma explicação”181. Em linhas gerais, o objeto que o teórico positivista observa
como um “fato da realidade” se modifica por seu próprio método, que altera a matéria observada.
Ao observar a realidade, o teórico positivista escolhe quais fatos se adéquam a
determinado sistema previamente estabelecido, questão que fica bastante clara quando
investigamos o positivismo de um dos principais influenciadores da teoria de Duguit – o também
positivista Émile Durkheim.
Quando Durkheim analisa o fenômeno da divisão do trabalho, ele busca encontrar uma
lei geral a partir da qual todo o sistema desta divisão esteja estruturado. É assim que procede quanto
à divisão sexual do trabalho, que para ele, estrutura-se por uma lei biológica geral, que se aplica
tanto aos organismos como às sociedades. É esta lei que ditará a relação de gênero, que envolve a
solidariedade “por dessemelhança entre homem e mulher”, e que possui, para Durkheim, uma
explicação científica pautada em uma regra biológica geral. Explica o autor:

Faz tempo que a mulher retirou-se da guerra e dos negócios públicos e que sua vida
concentrou-se inteira no interior da família. Desde então, seu papel especializou-se cada
vez mais. Hoje, entre os povos cultos, a mulher leva uma existência totalmente diferente
da do homem (...). Por sinal, essas diferenças funcionais são tornadas materialmente
sensíveis pelas diferenças morfológicas que determinam. Não só a estatura, o peso, as
formas gerais são muito dessemelhantes entre o homem e a mulher, mas, [...] como vimos,
com o progresso da civilização, o cérebro dos dois sexos se diferencia cada vez mais (...).
Esse hiato progressivo dever-se-ia, ao mesmo tempo, ao considerável desenvolvimento
dos crânios masculinos e a um estacionamento ou mesmo uma regressão dos crânios
femininos182.

Note-se que o problema dessa formulação vai muito além da questão da verdade da
observação científica; ele reside em que tal observação venha a calhar para a fundamentação de
algo que já era a própria estrutura da divisão do trabalho: o fato de que as mulheres trabalhavam
em casa e os homens fora. O tamanho do crânio de cada sexo é o fato que o autor considera
absolutamente válido para justificar uma estrutura que, para Durkheim, está dada – não por acaso,
a “descoberta” científica deste “fato” vem a posteriori em relação à constatação concebida a priori
sobre a divisão do trabalho.

181
Ibidem., p. 170.
182
DURKHEIM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social. Tradução Eduardo Brandão. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2010. p. 26.
83
Isso demonstra que, embora Durkheim intente a objetividade científica, ou seja, busque
encontrar critérios objetivos para a análise dos fatos, o seu método escolhe os fatos que melhor se
adéquam ao próprio esquema que utiliza em sua investigação. Consequentemente, esta análise se
dirige “ao primado de métodos disponíveis em vez de à coisa e seu interesse” e, assim, “inibe
considerações que afetam tanto o procedimento científico como seu objeto”183.
Esta constatação sobre o sociologismo de Durkheim remonta à crítica ao método de
Duguit, de que tratamos. Ao buscar encontrar, a partir de um método positivista, a realidade nos
fatos em seu estado bruto, não deixa Duguit de modificar o material observado a partir de suas
precauções científicas que precedem essa observação, tal como o faz Durkheim. Nesse ponto, não
apenas por tomar de Durkheim o conteúdo da solidariedade social, como também pelo fato de
utilizar-se do método comteano que também acompanha Durkheim, Duguit apresenta uma doutrina
que, na prática, adapta-se à ordem jurídica e à nova ordem econômica e social da sociedade
industrial, o que o leva, enfim, a reproduzir o problema da ideologia positivista, de base comteana,
no sentido de ideologia atribuída por Michael Löwy, como um “sistema conceitual e axiológico
que tende à defesa da ordem estabelecida”184.
Por isso, o efeito prático deste método, no contexto de classe social foi a dissimulação
da situação de classe e de suas contradições, de tal sorte que aponta o jurista francês Michel Miaille
ter sido a doutrina solidarista uma verdadeira ideologia de consolidação do próprio sistema que
parecia querer criticar:
É no momento em que a classe desfavorecida pelas relações capitalistas se organiza e
começa a manifestar sua força potencial, (...) e em que a sociedade toma consciência da
divisão profunda que a afeta, que a ideologia dominante cria uma nova “teoria” [a teoria
solidarista] capaz de dissimular esta situação e dar novos argumentos à manutenção do
modo de produção capitalista. Assim, por uma inversão lógica das coisas, os juristas, que
querendo inovar, se fazem sociólogos, dão provas de grande ardor para consolidar o
próprio sistema que parecia deverem criticar 185.

183
ADORNO, Theodor W. Introdução à Controvérsia sobre o Positivismo na Sociologia Alemã. In: ARANTES, Paulo
Eduardo (cons.). Theodor W. Adorno: Textos Escolhidos. São Paulo: Nova Cultura, 1999. p. 117. Destaca-se que
Theodor W. Adorno (1903-1969), ao se referir à sociologia alemã, demonstrou o quão subjetiva pode ser uma
investigação realizada pelo método positivo. Por este método, investiga-se o material a partir de uma estrutura
preestabelecida pelo teórico, à qual o objeto observado deve necessariamente se acomodar. Assim procedendo, mesmo
a sociologia dominante que se autoproclame objetiva pode ser considerada subjetiva, já que “opera (...) com retículas,
esquemas sobrepostos ao material” (Ibidem, p. 117).
184
LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Müchhausen: marxismo e positivismo na sociologia
do conhecimento. 5ª ed. São Paulo, Ed. Busca Vida, 1987. p. 22.
185
MIAILLE, Michel. Op. Cit., p. 282-283.

84
Conclusões

As críticas do solidarismo, de modo geral, atingem o que há de mais transcendental e


metafísico na teoria da solidariedade, como o próprio conceito de solidariedade pautado na ideia
de alma ou consciência coletiva.
Um direito que se funda nessas bases, como parte de um sistema jurídico que
compreende deveres iguais a serem cumpridos por todos os indivíduos em nome de uma
coletividade abstrata, pode sempre correr o risco de chancelar uma relação de dominação, de
Estado, de classe, de grupos etc. Esse é um problema que, hoje, se expressa de forma clara quando
analisamos os chamados “direitos de solidariedade”, classificação usualmente utilizada pelos
constitucionalistas para considerar a existência de um direito de terceira geração, que supera a
geração dos direitos individuais e dos direitos sociais e que se funda, de algum modo, na concepção
francesa de solidariedade, embora tomando-a para definir uma relação internacional e
intergeracional fundada na ideia de humanidade como um todo, colocada acima dos Estados e dos
indivíduos concretos. Deriva dessa abordagem que todos os seres humanos possuem os mesmos
deveres e direitos, já que estão totalizadas sob uma mesma base humanitária.
Por conta desse aspecto totalitário, Biondi aponta que, quando o solidarismo recorre a
essa noção, na verdade, não está transcendendo ao formalismo jurídico do individualismo liberal.
Esse formalismo, que sempre foi o grande objeto de combate dos apoiadores do Direito Social e
que agora se repete como um objetivo aos apoiadores dos chamados direitos de solidariedade, não
foi, para o autor, em nenhum momento eliminado, mas, sim, sofisticado, haja vista que mantém o
edifício jurídico focado no homem individualizado186.

186
“Ora, recorrer à humanidade como um todo não implica uma renúncia ao formalismo individualista do direito, antes
o arremata, dado que a mencionada categoria, significativamente, “não inclui a organização social concreta da
humanidade e nem os seus conflitos inerentes, não inclui os fatores materiais que determinam as relações entre os
homens e nem a forma assumida por essas relações”, é dizer, “não inclui a dimensão estrutural sobre a qual se assenta
a vida social dos homens”. Nos dizeres deste autor marista [Kashiura Junior] “trata-se apenas do conjunto de todos os
indivíduos – indivíduos isolados que, ainda que ‘especificados’, são somados apenas ‘por fora’”. E apesar das tentativas
de sofisticação doutrinária que reclamam não a soma aritmética dos indivíduos, e sim a gravura do gênero humano,
tem-se que todo o edifício jurídico está focado no homem individualizado”. BIONDI, Pablo. Dos direitos sociais aos
direitos de solidariedade: elementos para uma crítica. São Paulo: LTr, 2017.
85
Quando esse Direito toma a forma de um direito humano fundado na humanidade, no
povo, na nação ou mesmo em uma classe homogeneizada, não há como não concordar que em nada
difere do formalismo jurídico focado no homem individualizado.
E de fato, para aqueles solidaristas que concebem a solidariedade enquanto princípio
totalizante, é verdade que há uma desconsideração das múltiplas realidades (de classe, de grupos,
de Estados) no que concerne à formação das bases das regras de Direito.
Se considerarmos aquela concepção de solidariedade social de Bourgeois, fundada na
ideia de um quase-contrato entre sujeitos nacionais, internacionais ou intergeracionais, como mera
derivação de um contrato empresarial ou de herança, de homens associados jurídicos, não há dúvida
desse poder totalizante do princípio. As premissas deste solidarista, de fato, criaram uma
consciência de unificação superficial entre os indivíduos, que ignora causas econômicas profundas
e que anula os conflitos sociais por meio de uma noção contratualista e metafísica de sociedade e
de indivíduo.
Vislumbrando uma passagem da solidariedade da nação para a ideia de humanidade
como um todo, o solidarismo de modo geral, ainda que tenha realizado uma aproximação do direito
com o princípio moral da solidariedade, não deixou de criar um conceito abstrato, e no mesmo
sentido, metafísico, de solidariedade: uma solidariedade jurídica que, baseando-se em regras de
conduta morais e abrindo caminho para o reconhecimento jurídico da coletividade de indivíduos,
apenas os iguala “por fora”, ou seja: não pratica um necessário aprofundamento dos conflitos
econômicos e das diferenças existentes dentro de determinadas classes, Estados ou grupos.
Entretanto, é preciso que fique claro que o autor de que estamos tratando neste
momento, Léon Duguit, exerce um movimento que reprova esse tipo de concepção de
solidariedade. Para ele, “aqueles que pregam essa solidariedade, não pregam eles outra coisa senão
o sacrifício do interesse individual ao interesse coletivo”187. Corrigindo o que havia de mais
transcendental e metafísico no discurso da solidariedade, tornando esse conceito menos vinculado
às suas bases religiosas (caridade, fraternidade) e metafísicas (solidariedade contratual),
compreendia o autor que a solidariedade era um fato social, único fundamento possível da regra de
Direito. E daí derivava o conceito, atribuído por Gurvitch, ao Direito Social de Duguit, como direito
espontâneo e inorganizado, e que, ao mesmo tempo, envolve a participação do todo na relação
jurídica sem transformar esse todo em um sujeito descolado de seus membros.

187
DUGUIT, Léon. L’État, le droit objectif et la loi positive. Paris: Ancienne Librairie Thorin et Fils, 1901. p. 48
86
É somente nesse sentido, aliás, que a concepção de direito objetivo em Duguit pode ter
alguma relação com a existência de um direito subjetivo, mas apenas enquanto direito interacional,
já que o autor rejeita toda a concepção de direito subjetivo que se fundamente na ideia fictícia de
um homem abstratamente considerado e distanciado da sociedade.
A sua associação a Robinson Crusoé é elucidativa a esse respeito. Robinson, que vivia
isolado em uma ilha sem outros indivíduos por perto, não tinha direitos. Portanto, Robinson não
existe para o Direito, e o Direito não existe para Robinson. Todo direito é, nesse sentido, social.
O direito em Duguit não é, ainda, o direito hegemônico, não é o direito oficial, embora
possa se oficializar caso adquira a legitimidade social necessária. Esta legitimidade se encontra nos
processos de conjugação de uma complexa rede de solidariedades, oferecendo atenção especial,
evidentemente, à influência e participação da sociedade na configuração das regras jurídicas. Está
alinhado à concepção mais atual de solidariedade no plano da discussão sobre a cidadania enquanto
forma de legitimar a força do Estado por regras de Direito criadas pela própria participação dos
indivíduos nas instituições políticas da sociedade.
Não se trata de pensar em regras de Direito que oponham os indivíduos às instituições
sociais, ou ao Estado, submetendo os indivíduos ao controle externo dessas instituições. Trata-se
de considerar a individualidade dentro da perspectiva dialética do direito, e a partir daí, as
possibilidades de formação de instituições socialmente legitimadas e desejadas.
Duguit foi, ainda, um dos primeiros autores a fomentar a importância de uma
Sociologia do Direito que rejeitasse por completo o sociologismo, sem aderir ao juspositivismo.
Na verdade, o autor fornece as bases de um método próprio, que não é nem um método de Direito
puro, tampouco de uma Sociologia pura. Fornece as possibilidades de uma metodologia científica
que tem por objetivo atribuir uma função social ao Direito. Ainda que essa Sociologia do Direito
do autor insista em um método que compreenda a realidade imediata, sem a consideração
necessária a realidades não sensíveis, é inegável que o método do autor possibilita que o Direito,
antes de obedecer a regras hegemônicas, ditadas por uma autoridade superior, ou a uma consciência
social coletiva totalizante, obedeça à própria relação de solidariedade social entre indivíduos.
É desse modo que também podemos apontar a importância da obra do autor em relação
à concepção de Estado.
A obra do autor proporciona caminhos para as possibilidades de um Estado
despersonalizado, de repelência às formas políticas de fundamento metafísico ou teológico.
87
Rejeitando toda metafísica presente no conceito de Estado, a sociedade passa, segundo o autor, a
ser capaz de formar uma instância política que de fato abarque os conflitos individuais, e os integre
nas regras de Direito, e, ainda, sem apoiar-se em entidades supraindividuais neste processo.
Muitos autores, apostando na ideia de soberania do Estado a partir de uma justificação
no Povo ou na Nação, supunham que somente assim haveria a possibilidade de se impedir que a
vontade pessoal do governante não se impusesse de forma arbitrária e subjetiva sobre a vontade
dos indivíduos. Mas o problema dessa suposição, segundo Duguit, é que, além do Povo e da Nação
serem normalmente concebidos como noções metafísicas, determinar a origem do Estado impediria
a sua despersonalização, pois invocaria, no lugar de uma tirania pessoal pautada em um direito
divino, uma outra forma, apenas aparentemente mais laica, de submissão dos indivíduos à vontade
particular de determinados governantes.
Para Duguit, se ainda insistirmos na soberania como elemento central do Estado,
insistiremos na legitimação da vontade pessoal de indivíduos com vontade superior às vontades de
outros indivíduos, o que não é justificável em termos de ciência social: não há como justificar que
uma vontade individual possa ser superior a outra.
Para Duguit, fundamentar a soberania na vontade do Povo ou da Nação não muda o
risco constante de que uma vontade pessoalista, por vezes ilegítima, de um ou mais indivíduos,
imponha-se sobre a vontades de outros, impedindo que a manifestação dos governados forme as
regras de direito que os governantes se vejam obrigados a cumprir.
No fim, não haverá, por qualquer fundamento na soberania, qualquer forma de Estado
impessoal. Se, para um autor como Oliveira Vianna, no Brasil, a ideia de um presidente único
possibilitaria, por sua autoridade, uma política mais objetiva e impessoal, o que essa noção
proporcionou, por óbvio, foi um poder vinculado à soberania do presidente, de uma pessoa que,
sob uma aura napoleônica, colocar-se-ia como representante da Nação, tomado, então, o próprio
presidente, como uma entidade que se distingue da vida dos indivíduos em conflito. O Estado não
se despersonaliza, de fato, se esse poder soberano segue sempre pessoalizado, e a política continua
vinculada a uma vontade pessoal.
Se, de uma outra forma, como ocorreu com os regimes totalitários na Europa, essa
soberania se conquistaria a partir da legitimação de partidos únicos, o Estado, igualmente, não se
despersonalizara. A política não se desvinculara do pensamento particular de um partido. Da
mesma forma, uma política que legitimou o poder de uma minoria eleita, como ocorreu à República
88
Francesa, pelo sufrágio universal, em nenhum momento foi suficiente para legitimar o fato de que
a vontade de um grupo de governantes pudesse se sobrepor à vontade de governados. A soberania
é sempre um conceito objetivamente injustificável.
Uma política que queira ser objetiva deve justificar o Estado não a partir de sua origem
(no Povo, na Nação, em Deus), mas pelos fins que este Estado deve atingir conforme as regras de
direito fundadas no fato da solidariedade. Isso implica construir um governo absolutamente sem
vontade própria e subjetiva particular. Não há lugar, na política do Estado pensado a partir de
Duguit, para atos pessoais e subjetivos de governo, e também, não há lugar para uma sociedade
sem Estado.
A força do Estado é imprescindível, o que não significa, porém, que ela advenha ou
deva advir da soberania do governante. Ela está subordinada ao Direito. Um governo apenas pode
usar de sua força material quando seus atos estiverem submetidos a uma responsabilidade jurídica
determinada objetivamente. A única possibilidade de se pensar em políticas objetivas que
promovam, ao máximo, o ideal da impessoalidade de governo, que reduzam ao máximo a
parcialidade dos governantes, é atribuindo fins que subordinem a vontade dos governantes, e esses
fins são determinados por regras de Direito socialmente legitimadas, não bastando apenas atribuir,
por qualquer meio, uma regra de direito ao Estado.
O Estado de Direito que assume, por exemplo, a forma que lhe dá a teoria da
autolimitação, continua sendo ilegítimo. Quando Duguit insiste na afirmação de que o direito
precede o Estado, contrariando os autores alemães que se apoiam nessa teoria, é exatamente para
deixar clara a impossibilidade de o Direito ser imposto por uma vontade que se coloca acima das
vontades individuais. Para Duguit, o Direito não é senão uma construção social, que integra os
conflitos; e se o direito é sempre um Direito Social, ele independente da soberania do Estado.
Ou seja: esse caráter democrático do Direito, necessário a uma sociedade com
indivíduos com necessidades e aspirações diversas, é sempre suprimido se o sistema jurídico
permanece sob a lógica da soberania. Ainda que se trate de uma soberania popular ou enquanto
forma de resistência de um Povo ou Nação (como tentara defender Paulo Bonavides), o conceito
de soberania não deixa de ser um elemento que permite legitimar a vontade pessoal ou
personificada de uns como vontade superior à vontade de outros; e, de modo mais preocupante,
legitima que a vontade de entidades metafísicas, sem qualquer realidade material, sobreponha-se à
vontade de indivíduos concretos.
89
Nesse sentido, quando Duguit afirma que a teoria da soberania do Povo ou da Nação é
uma mera sofisticação da soberania de Deus, também deixa claro que seria soberania de Deus até
mesmo mais legítima que as demais. Embora não seja justificável em termos de ciência social
objetiva, a soberania fundada em Deus, pelo menos, parte de uma crença que, em alguns lugares e
em alguns períodos da história, não deixa de ser socialmente desejada. Já a soberania do Povo ou
Nação, quando concebe a existência de um governo que se coloca acima da vontade dos indivíduos,
essa crença não se justifica nem enquanto crença, já que insistem na possibilidade de determinados
indivíduos se submeterem a outros sem sequer haver uma superstição precedente de base religiosa
que a sustente. A superstição da soberania da Nação ou do Povo sequer é religiosamente sustentada;
é uma superstição cujo fundamento é tão somente metafísico.
Foi a partir dessas críticas que Duguit forneceu ao pensamento jurídico uma verdadeira
ruptura com o método de compreensão das bases filosóficas do Estado contemporâneo,
demonstrando que não é o direito que está a serviço do Estado, mas o contrário. Apontou que o
direito não se basta por determinar regras de responsabilização de sujeitos ou Estados abstratos,
mas deve impor uma atuação objetiva de indivíduos e governantes concretos.
Duguit buscou laicizar a política. O Estado de Direito, em Duguit, desprovido da ideia
metafísica e teológica de soberania, abriu uma imensa possibilidade para repensar formas mais
democráticas do uso da força do Estado, sem cair no problema levantado por Bonavides da redução
da força do Estado em países que dele necessitam como forma de resistência perante outros
Estados.
Nesse ponto, se é de fato importante a defesa da autodeterminação de povos e da
autonomia dos Estados em países que sempre estiveram em posição submissa no plano
internacional, talvez seja necessário rever o fundamento mesmo dessa força de Estado. O conceito
de soberania, quando reafirma a submissão de alguns Estados em relação a outros, os mantêm no
livre jogo do conflito econômico internacional, expulsando, na prática desse jogo, os países que
historicamente não conseguem disputá-lo de igual pra igual. Somente uma regra de direito
internacional pautada no princípio da solidariedade permitiria a autodeterminação dos Estados
internacionalmente fracos; mas, para tanto, deveria renegar a noção imprecisa de soberania. O que
a doutrina de Duguit sugere é o estabelecimento de formas de defesa contra a lógica do domínio e
do império econômico, a partir de uma relação entre os Estados que objetive, pelo Direito, a
necessidade de redução de uma vida menos sofrida aos indivíduos em comum. Daí porque o
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fundamento do Direito Internacional, em Duguit, é a solidariedade social, enquanto fato
socialmente verificado.
Quando Duguit, enfim, rechaça o conceito de soberania no campo do Direito, ele busca,
portanto, dar legitimidade a essa força do Estado, por um processo que se paute em meios menos
autoritários de poder. A força do Estado não deixa de ser fundamental para a redução dos
sofrimentos comuns dos indivíduos em sociedade. Mas essa legitimidade social implica uma força
de Estado vinculada sempre a um Direito que lhe é externo, e, assim, permite o uso dessa força
independentemente da vontade pessoal ou soberana de determinados governantes ou empresas com
o domínio da força econômica de fato.
Nesse sentido, a oposição do autor em relação às teorias da soberania o fez reafirmar a
necessidade de uma relação intrínseca e complementar entre força e Direito. A doutrina de Ihering
e as teorias da soberania pensadas para lidar com o Estado moderno não teriam dado o valor
necessário às regras que controlavam essas forças, de modo que acabaram, na verdade, por levar –
como afirma Duguit – países como a Alemanha, "a cometer os crimes mais monstruosos da
história"188.
Opondo-se a essas teorias, Duguit estava determinado a demonstrar que "se o direito
sem a força se arrisca a ser impotente, a força sem o direito é simplesmente barbaria"189.

188
DUGUIT, Léon. Os Elementos do Estado. Tradução Eduardo Salgueiro. Lisboa (Portugal): Editorial Inquérito,
2000. p. 44.
189
Ibidem., p. 44.
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