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ARTIGOS

O trabalho com sonhos na terapia cognitiva

The work with dreams in cognitive therapy

Helene Shinohara

Mestre e especialista em psicologia clínica, professora e supervisora do departamento


de psicologia da PUC-Rio

Endereço para correspondência

RESUMO

Desde o início do desenvolvimento da terapia cognitiva como abordagem psicoterápica,


muitas inclusões teóricas e técnicas têm sido feitas aos parâmetros propostos
inicialmente. Explorar temas deixados em aberto, como o trabalho com os sonhos, tem
sido um desafio importante para os terapeutas. Pesquisas sugerem que o conteúdo de
alguns sonhos pode ter relação com a personalidade do sonhador, contém temas e
expectativas de desfechos semelhantes com os pensamentos dele quando acordado, e
que as mesmas preocupações conscientes são expressas na experiência do sonho.
Pode-se então considerar alguns sonhos como rico material terapêutico, onde padrões
cognitivos e afetivos são expressados e esquemas podem estar exercendo sua máxima
influência. Uma vez que o processo de lembrança e discussão do sonho ocorre em
estado de vigília, o “modo” usado pelo cliente para lembrar detalhes e interpretar as
memórias do sonho conterá as mesmas distorções características de suas
interpretações da realidade. O objetivo do artigo é apresentar, de forma sucinta,
algumas elaborações teóricas sobre o modelo cognitivo dos sonhos, assim como
propostas de intervenção cognitiva com posterior descrição de um caso clínico, onde o
sonho do paciente foi utilizado como principal indício de mudança de crença.

Palavras-chave: Sonhos, Terapia cognitiva, Intervenção terapêutica.

REVISTA BRASILEIRA DE TERAPIAS COGNITIVAS, 2006, VOLUME 2, Nº 2 102


ABSTRACT

Several new theoretical aspects and techniques have been added to cognitive therapy
since its beginning as a therapeutic approach. The need to expand the limits came
from the clinical work, especially with challenging clients. The work with dreams in
psychotherapy is one of these issues. Research suggests that some dreams may have
relation to the dreamer’s personality, contain the same themes and expectations of the
awaken life, and express similar worries. Therefore some dreams could be considered
important therapeutic material, where cognitive and emotional patterns are expressed
and when schemas are fully activated. As the access to the dream memories and its
discussion occur in the awaken state, the mode to remember details and the
organization of the material will be influenced by the same characteristic distortions
one uses to interpret reality. The objective of this article is to present some
considerations about the cognitive model of dreams, including the description of an
intervention that used a dream as a sign of change in the client’s core belief.

Keywords: Dreams, Cognitive therapy, Therapeutic intervention.

Introdução

Vários assuntos são pouco explorados na literatura sobre terapia cognitiva, por
diferentes razões. Apesar de fronteiras terem sido ampliadas e problemas antes
considerados de difícil prognóstico já poderem ser analisados e tratados, outros temas
relativos a aspectos clínicos relevantes acabaram por ficar fora do âmbito dos estudos
da mais promissora abordagem psicoterapêutica. Até bem pouco tempo atrás, os
principais livros sobre terapia cognitiva para profissionais, recomendados pelo site do
Beck Institute, enfatizavam teoria e técnica, e quase nada tinha sido publicado sobre
relação terapêutica, resistência, transferência e contra-transferência, inconsciente e
sonhos. É importante que artigos existentes sobre estes assuntos sejam
compartilhados e novos sejam escritos, por mais que pareça difícil ou pretensioso.

Perguntas sobre estes assuntos são freqüentemente feitas por alunos nas salas de
aula. Em conversas entre colegas (terapeutas experientes), discutem-se dificuldades e
peculiaridades dos casos que não respondem aos procedimentos básicos da terapia
cognitiva. Os clientes também nos colocam em situações para as quais nem sempre
estamos preparados tecnicamente. Portanto, são estes os desafios que nos forçam,
cada vez mais, a buscar novos horizontes.

Especificamente a respeito dos sonhos, pouquíssima literatura foi produzida. Em


revisão bibliográfica realizada por Rosner (1994, citado por Rosner, 2004), não foi
encontrado material significativo ou manuais produzidos pelos principais autores
cognitivistas, mas sim, alguns poucos textos escritos por construtivistas. Este artigo
pretende divulgar o escasso material sobre o assunto, tomando como base um livro
editado por Rosner, Lyddon e Freeman em 2004. Complementariamente, será
apresentado o trabalho com um sonho trazido por um cliente para a terapia.

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Parece estranho que Beck tenha escrito a teoria cognitiva dos sonhos em 1971 e quase
ninguém tenha ouvido falar disto. Na época, Beck estava fazendo uma série de estudos
sobre os aspectos cognitivos dos sonhos, enquanto ainda ligado, de certo modo, à
psicanálise. Ele apresentou este trabalho em um artigo publicado em revista daquela
abordagem, mas não houve boa recepção às suas idéias e nem à sua tentativa de
encontrar pontos em comum. Talvez, este momento tenha sido um marco para o
desenvolvimento da terapia cognitiva como abordagem independente.

Por outro lado, a comunidade de terapeutas comportamentais recebeu seus outros


trabalhos de pesquisa entusiasticamente. Em primeiro lugar, por causa dos aspectos
empíricos de sua teoria, da metodologia experimental utilizada e da sua decisão de
trazer a ciência para mais perto da psicoterapia. Uma das análises relacionadas a esta
receptividade aponta para a priorização de determinados temas mais confortáveis para
ambos os grupos e a eliminação, temporária, daqueles que pudessem ser confundidos
com a psicanálise (Rosner, 2004).

Na medida em que a terapia cognitiva foi-se ampliando enquanto abordagem, os


assuntos inerentes ao processo terapêutico, e que não são exclusivos de uma
abordagem psicodinâmica, foram sendo estudados e incorporados dentro de uma
perspectiva cognitivista. O trabalho com sonhos é um destes exemplos.

Os sonhos

Sonhar é uma experiência humana que, desde sempre, intriga, confunde e encanta
tanto o homem comum quanto o cientista. A sabedoria popular encontra relações
causais entre um determinado tipo de sonho e certo acontecimento; ou credita-lhe
poderes de revelação sobre o futuro ou sobre enigmas; ou ainda de cura. Há
explicações que enfatizam a necessidade de reencontros com entes queridos que se
foram, ou até que os exploram como oportunidade para experiências extracorporais
importantes, para insights e para soluções de problemas do dia-a-dia. Há, portanto,
uma série de crenças a respeito dos sonhos, seus poderes e significados.

Para a psicologia, qual seu valor? Terá o sonho relação com a personalidade daquele
que o sonha? Terá alguma colaboração a dar? Estas perguntas têm sido respondidas
de forma diferente em cada uma das abordagens. Freud (1976), destaca a
interpretação do sonho como técnica importante para acesso e entendimento do
Inconsciente. Para Jung (1996), os sonhos têm função compensatória, ao apresentar
ao ego pontos de vista que são complementares às atitudes dominantes quando
acordados, além de revelar o inconsciente coletivo. A Gestalt entende os sonhos como
produto pessoal do sonhador, e todos os elementos introduzidos nele como projeções
dos aspectos da sua personalidade (Perls, 1977). Para os behavioristas radicais, os
sonhos são comportamentos discriminativos que trazem informação relevante sobre a
história passada e as contingências de reforçamento atuais (Skinner, 1976). Concorda-
se, então, que é uma atividade do ser humano que pode ser valorizada em
psicoterapia.

Estudos recentes sobre neurofisiologia estabelecem 3 estados de existência do ser


humano: a vigília, o sono, e a parte do sono onde ocorre o sonho. Experiências
diferentes são vivenciadas em cada uma destas fases. As pessoas sonham em torno de
1/12 de suas vidas, o que corresponde a 50.000 horas. Nenhuma atividade que

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consome este tempo do indivíduo pode ser desconsiderada, assim como deve ter
função importante para a sobrevivência da espécie (Doweiko, 2002).

É no estágio do sono chamado de REM, que está associado a movimentos rápidos dos
olhos, que ocorrem os sonhos. Neste momento, observa-se uma alta atividade
cerebral; níveis de acetilcolina altos e de serotonina e noradrenalina baixos; sonhos
vívidos, bizarros e com imagens complexas. As imagens são claras e nítidas, apesar de
ausência de crítica, quando se aceita, por exemplo, como natural, estar sonhando com
uma pessoa que se transforma em outra no meio da conversa; quando se está em um
local e, de repente, em outro; ou quando coisas impossíveis ocorrem naturalmente
naquele contexto.

A experiência do sonho é resultado de um processo extremamente complexo de


ativação e supressão neuronais no córtex cerebral. A neurobiologia moderna entende
que os sonhos podem ser somente uma forma de “barulho” criada por esta atividade
cerebral em certos estágios do sono (Hobson, 1999, citado por Doweiko, 2002).

De qualquer forma, os sonhos fazem parte da experiência humana e têm sido foco
central nas psicoterapias psicodinâmicas. Por isso, discute-se a utilidade de uma teoria
dos sonhos que não esteja estabelecida em princípios psicanalíticos. Terapeutas
cognitivo-comportamentais podem construir uma compreensão dos sonhos baseada
em teorias contemporâneas e encontrar utilidade na análise de alguns sonhos, de
alguns clientes, em algum momento do trabalho clínico.

O modelo cognitivo dos sonhos

O terapeuta com formação em terapia cognitivo-comportamental não é preparado ou


treinado para o trabalho com sonhos e pode perder uma oportunidade valiosa de
entrar em contato com a riqueza de imagens oferecida pelos sonhos.

O modelo cognitivo vê o sonhador como ser idiossincrático e o sonho como uma


dramatização de suas crenças sobre si, sobre o mundo e sobre o futuro, sujeitas às
mesmas distorções de quando acordado. Beck (1971) afirma que o conteúdo de alguns
sonhos tem relação com a personalidade do sonhador, que este contém temas e
expectativas de desfechos semelhantes com os pensamentos dele enquanto acordado,
e que as mesmas preocupações conscientes são expressas na experiência do sonho.

Deve ser entendido como temático em vez de simbólico. A compreensão do conteúdo e


dos temas dos sonhos oferece oportunidade para o cliente entender suas cognições e
questionar os pensamentos ansiogênicos ou depressores, podendo ter, como
resultado, uma mudança afetiva. Os fatores cognitivos dominantes exercem influência
máxima sobre os sonhos, já que outros processos ativados durante a vigília não estão
presentes.

A recordação e interpretação do sonho ocorre no estado normal de vigília, e estas


memórias relatadas estão sujeitas às mesmas distorções aparentes nas outras
dimensões de sua vida. Os pensamentos, sentimentos e comportamentos que
aparecem nos sonhos estão intimamente relacionados. O conteúdo e tema do sonho
podem ser identificados, questionados e reestruturados (Freeman & White, 2004).

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Um Registro de Pensamentos Disfuncionais (RPD) preenchido pelo cliente entre as
sessões relata o que ele pensou, sentiu e fez em determinadas situações, clinicamente
relevantes. O sonho também é uma história que pode ser relatada, ou registrada, e
discutida com objetivos e forma semelhantes. Muitas vezes, crenças significativas
podem ser identificadas a partir dos registros de lembranças dos sonhos. É, portanto,
inquestionável seu valor terapêutico.

Em revisão de pesquisas realizada por Beck (1971), conclui-se que os temas dos
sonhos estão correlacionados com categorias diagnósticas. Por exemplo, depressivos
relatam sonhos de derrota e coerção; paranóides, de perseguição ou abuso; ansiosos,
de perigo; e maníacos, com temas expansivos e de grandeza. É sugerido que o
trabalho com sonhos pode também servir ao propósito de confirmação ou refutação de
hipóteses diagnósticas.

A narrativa imposta pelo sonhador ao seu sonho quando o conta pode servir como uma
tentativa de interpretar e estabelecer alguma ordem à experiência sensorial caótica
vivenciada durante o sono. Este “barulho” refletido da atividade cerebral durante o
sono, quando lembrado em partes ao acordar, será arranjado numa seqüência
coerente para ser relatado.

Esta narrativa será construída de um jeito personalizado, isto é, alguma forma de


estrutura será dada aos fragmentos de lembrança do sonho. Este sonho contado
também conterá as mesmas distorções características da interpretação da realidade
feitas pelo sonhador. Já que o processo de lembrança e discussão do sonho ocorre em
estado de vigília, o “modo” usado pelo cliente para lembrar detalhes e interpretar as
memórias do sonho será peculiar e característico (Gonçalves & Barbosa, 2004).

O trabalho terapêutico

Muitas vezes, os sonhos são trazidos espontaneamente pelo cliente e podem ser parte
da agenda daquela sessão como qualquer outro assunto. Terapeutas cognitivo-
comportamentais têm dificuldade e se sentem pouco à vontade nestes momentos, já
que não estão familiarizados com esta perspectiva por não encontrarem referências
claras na bibliografia regular. A história do sonho nada mais é do que uma
oportunidade extra para identificação, questionamento e reformulação de crenças.

O trabalho terapêutico com os sonhos do cliente pode ser escolhido como estratégia
em momentos em que a terapia parece estar estagnada, por exemplo, ou quando
emoções fortes são vivenciadas neles. Para tanto, deve fazer parte da agenda da
sessão como qualquer outro assunto, como sugerido por Freeman e White (2004).

Registros de sonhos, fragmentos ou imagens devem ser pedidos de forma análoga aos
registros de pensamentos disfuncionais. Quando ocorreu o sonho, qual era a cena, o
que pensou, o que sentiu e o que fez. Os personagens envolvidos também serão
explorados, pois podem trazer diferentes perspectivas sobre o tema.

Técnicas de reestruturação cognitiva, compreensão e questionamento das crenças,


criação de finais alternativos ou solução de problemas, e auto-instruções podem
resultar na mudança de humor e no desenvolvimento de habilidades de controlar e

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interferir em sonhos aflitivos ou repetitivos. O conteúdo e as imagens dos sonhos são
sujeitos à mesma reestruturação cognitiva que os pensamentos automáticos.

Colocando de maneira mais geral, o trabalho terapêutico compreende acesso,


experienciação, modificação e ação sobre os sonhos (Gonçalves & Barbosa, 2004).
Através de uma série de perguntas, como as relacionadas abaixo, o cliente será guiado
na recordação e exploração deste material. Por exemplo:

1. O que acontece no sonho? Qual o cenário?

2. O que você e os outros personagens estão pensando, sentindo, fazendo? Você


percebe estas relações?

3. Qual o título desta história? Qual a relação deste título com a história?

4. Como esta história pode ser vista por outras perspectivas?

5. Que conexões tem com a sua vida acordada?

6. Qual a “moral” do sonho?

7. Como poderia construir sonhos diferentes sobre este tema?

8. Que outros finais poderiam acontecer?

Caso clínico

Este é um exemplo de um sonho relatado por um cliente após alguns meses de


terapia.

Trata-se de um rapaz de 20 anos, com diagnóstico de ansiedade generalizada com


alguns ataques de pânico. Sua história clínica começa por volta dos 11 anos de idade
quando passa a ter episódios de ansiedade alta e comportamentos evitativos,
principalmente ao ir para a escola e se separar da mãe. Tem um pai exigente,
batalhador, independente desde cedo e que, profissionalmente, se fez sozinho. A mãe
é muito responsável, ansiosa e controladora. O quadro de ansiedade dele volta a
aparecer acentuadamente neste momento em que se encontra mais vulnerável devido
a demandas e estresses do início da vida adulta.

Suas crenças mais negativas sobre si mesmo e sobre o mundo são novamente
ativadas. As crenças nucleares identificadas são: “eu sou inseguro e incapaz de lidar
com a vida” e “o mundo só reconhece os vencedores”. Os principais temas das suas
preocupações se concentravam nos estudos, no estágio, nos relacionamentos, nas
doenças e no futuro. Apresentava medo acentuado de fracassar e decepcionar
principalmente o pai, um modelo de sucesso a ser seguido. As preocupações tinham
como principal objetivo evitar que isto acontecesse.

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Além da preocupação, desenvolveu outras estratégias que lhe pareceram eficientes
para não correr riscos, como estudar todas as matérias de Direito diariamente; adiar
começar estágio; interagir pouco socialmente; seguir uma rotina “segura”. No entanto,
estas mesmas estratégias impediam que ele desconfirmasse suas crenças mais
negativas.

Após alguns meses de terapia, nenhum novo ataque de ansiedade tinha sido relatado,
e o cliente demonstrava habilidade em identificar disparadores das preocupações e
trabalhar com seus pensamentos disfuncionais. Conseguiu começar um estágio em sua
área, estabelecer algumas novas amizades e sair pelo menos em alguns dos fins de
semana.

Em uma das sessões subseqüentes, o cliente chegou relatando um sonho que


considerava significativo, tanto por ser bastante freqüente e aflitivo, como por ter sido
um pouco diferente naquela noite. Ele sonha que está andando na rua e, de repente, é
preso, levado para uma delegacia e colocado em uma cela onde fica sozinho e
aterrorizado. A cena principal, por ele relatada, é dele chorando desesperado e se
sentindo completamente desamparado. Começa a ficar cada vez mais desesperado
quando o tempo passa, achando que o pior vai acontecer. Geralmente acorda nesta
hora, apesar de dizer que desta vez o sonho continuou.

Trabalhou-se vários aspectos da história contada, sendo os seguintes alguns dos


pontos principais desta discussão. A primeira parte do sonho foi explorada para
acessar detalhes da cena e identificar seus pensamentos:

T: “O que está passando na sua cabeça, quando você está naquele canto da prisão?”

C: “Está passando que estou sozinho, impotente, sem ninguém para me ajudar, que
eu vou ficar ali para sempre e, principalmente, que ninguém vai entender plenamente
o que estou sentindo. É um sentimento terrível e é só meu, eu estou existencialmente
sozinho na minha vida, eu não sei como lidar comigo mesmo e com a situação, preciso
que alguém me ajude e não tenho a quem recorrer, estou despreparado para enfrentar
o mundo.”

T: “Este fluxo de pensamentos reproduzem claramente as mesmas crenças que você


tem a seu respeito e sobre a vida, como em outras situações do seu dia a dia em
vigília, não é?”

C: “É, e quando penso assim, sei que sinto muito medo, como no sonho.”

Após alguma discussão sobre isto, continuamos a explorar a segunda parte do sonho:

T: “O que teve de diferente nesse sonho?”

C: “Em um dado momento, um advogado bem jovem apareceu e perguntou o que


tinha acontecido. Contei para ele que não sabia porque estava ali, que não tinha
motivo. Ele ficou parado na grade olhando para mim, sorrindo e com uma cara que me
tranqüilizou, e aí eu acordei.”

Resolvemos explorar os aspectos relacionados a este novo personagem.

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T: “O que este advogado estaria querendo dizer?”

C: “Acho que algo do tipo: Não se preocupe, tudo tem jeito, você pode contar comigo.”

T: “Porque será que ele aparece neste sonho e não nos anteriores?”

C: “Talvez para me dar alguma esperança.”

T: “Mas você disse que ele era jovem, pouco experiente...”

C: “É, mas ele já devia saber o suficiente de leis, da profissão ou da vida.”

T: “E você conseguiu acreditar nele?”

C: “Consegui e fiquei mais calmo, confiante.”

T: “Você vê alguma relação entre você e o advogado?”

C: “Me parece que tem alguma mudança no sonho e que essa mudança tem a ver com
o que a gente vem discutindo nas sessões.”

T: “Como assim?”

C: “Eu sempre tenho pensamentos negativos a respeito da minha capacidade para me


virar sozinho ou para dar conta da vida, mas eu venho percebendo que posso mais do
que acredito e que sei mais do que imagino.”

T: “Por que será que apareceu no sonho um jovem advogado e não outra pessoa
qualquer, seus pais, por exemplo?”

C: “Talvez porque eu já esteja quase me formando e possa me ver como aquele


advogado, mais fortalecido, mais adulto, mais capaz de resolver as coisas por mim.”

Foi interessante discutir, a partir deste ponto, as mudanças em suas crenças, ao longo
da terapia. Ele concluiu a sessão refletindo sobre como estava aos poucos se sentindo
menos menino, menos despreparado. Para o terapeuta e para o cliente, este sonho foi
importante no sentido de permitir perceber que antigas crenças estavam sendo
reformuladas e novas crenças estavam, sim, sendo formadas.

Portanto, para alguns clientes, o trabalho com sonhos pode ajudar a identificar
crenças, pode explicitar melhor o funcionamento cognitivo, ou pode evidenciar
mudanças. Assim sendo, o terapeuta cognitivo deve enriquecer seu arsenal de
possibilidades terapêuticas, ao incluir os sonhos como mais um meio para o
entendimento da perspectiva particular de seu cliente sobre si, sobre o mundo e sobre
seu futuro. Beck (2007) afirma que alterar o “tratamento-padrão” é necessário para
abranger a multiplicidade de dificuldades apresentadas pelos clientes.

Como qualquer procedimento, é essencial que o terapeuta esteja seguro de seu


conhecimento teórico e técnico sobre o assunto e que realize o trabalho em clima
colaborativo e afetivamente significativo.

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Conclusão

Apesar de, até recentemente, assuntos como transferência, contra-transferência,


resistência, inconsciente e sonhos terem sido pouco enfatizados na literatura
especializada, e falados com um certo cuidado nos meios acadêmicos, mudanças são
evidentes entre terapeutas e pesquisadores. O caso apresentado ilustra como a
decisão de fazer uso dos sonhos pôde complementar os procedimentos cognitivos
anteriores. Observamos que a descrição e a compreensão destes fenômenos dentro de
uma perspectiva cognitivista têm propiciado referencial teórico e condições para
ampliar o raio de interesses e intervenções terapêuticas. E isto é essencial para
expansão das fronteiras da terapia cognitiva.

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Skinner, B. F. (1976). About behaviorism. New York: Vintage Books.

Endereço para correspondência


Rua Jardim Botânico, 674 - sala 108.
Rio de Janeiro. Tel. 21-25405238.
E-mail: helene.shinohara@gmail.com.

Recebido em: 07/10/2006


Aceito em: 06/12/2006

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