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não é fácil viver nele. Imaginemos, então, o homem da Pré-História lutando com os elementos,
confrontado com as forças desta natureza hostil que deve dominar para viver, para sobreviver...
Tome- mos o exemplo do fogo: um dia, após uma tempestade, o homem pré- histórico descobre
que um raio queimou o mato; que um animal, nele preso, cozinhou e ficou delicioso; e que o fogo
dá, além disso, o calor. Que maravilha é o fogo! Mas o que é o fogo? Como produzi-lo, conservá-
lo, transportá-lo?
Para sobreviver e facilitar sua existência, o ser humano confrontou- se permanentemente
com a necessidade de dispor do saber, inclusive de construí-lo por si só.
Ele o fez de diversas maneiras antes de chegar ao que hoje é julga- do como o mais eficaz: a
pesquisa científica. Os antigos meios de conhecer, entretanto, não desapareceram e ainda
coexistem com o método científico. Neste capítulo, apresentaremos esses modos de aquisição do
saber, mas dando especial atenção ao aparecimento do modo científico, no contexto do advento
da ciência moderna, mais precisamente, das ciências humanas modernas.
OS SABERES ESPONTÂNEOS
O homem pré-histórico elaborava seu saber a partir de sua experiência e de suas observações
pessoais. Quando constatou que o choque de dois sílices, ou da rápida fricção de duas hastes
secas, podia provocar uma faísca.: ou uma pequena chama capaz de queimar folhas secas, havia
construído um novo saber: como acender o fogo. Esse saber podia ser reutilizado para facilitar
sua vida. Pois aqui está o objetivo principal da pesquisa do saber: conhecer o funcionamento das
coisas, para melhor controlá-las, e fazer previsões melhores a partir daí. Inúmeros conhecimentos
são assim adquiridos a partir da experiência pessoal. A criança que se queima ao tocar o fogão
aceso, aprende que é quente. Se o toca uma segunda vez, depois uma terceira, constata que é
sempre quente. Daí infere uma generalização: o fogão é quente, queima! E uma consequência
para seus comportamentos futuros: o fogão, é melhor não o tocar.
A INTUIÇÃO
Um saber desse modo construído é aceito assim que uma primeira com- preensão vem à mente.
Assim, da observação que o Sol nasce todos os dias de um lado da Terra e se põe do outro, o
homem pensou, por muito tempo, que o Sol girava em tomo da Terra. Essa compreensão do
fenômeno pareceu satisfatória durante séculos, sem mais provas do que a simples observação. Em
nossa linguagem de hoje, chamam-se tais explicações espontâneas de "senso comum", às vezes
de "simples bom-senso". Ora, o senso comum é, com frequência, enganador. Acreditar que o Sol
gira em tomo da Terra é uma ilustração patente disso. O bom-senso faz-nos dizer mui- tas outras
desse gênero. Quem, por exemplo, não ouviu a declaração de que os diplomados são
"desempregados instruídos", ao passo que a taxa de desemprego é inversamente proporcional ao
nível de escolaridade; ou que os segurados sociais "são preguiçosos", a despeito da consideração
dás condições reais do emprego; ou que as mulheres são menos capazes de raciocinar
matematicamente que os homens, enquanto que feitas as verificações, não é nada disso. Poder-
se-ia multiplicar os exemplos dessas compreensões rápidas vindas do senso comum, ou seja, dos
saberes originários de observações imediatas e sumárias da realidade.
O senso comum não deixa de produzir saberes que, como os de- mais, servem para a compreensão
de nosso mundo e de nossa sociedade, e para nela viver com o auxílio de explicações simples e
cômodas. Mas deve-se desconfiar dessas explicações, uma vez que podem ser um obstáculo à
construção do saber adequado, pois seu caráter aparente de evidência reduz a vontade de verificá-
lo. E, aliás, provavelmente o que lhes permite, muitas vezes, serem aceitas apesar de suas lacunas.
Desse modo, em nossa sociedade, não se aceitam igualmente os ditados "Diga-me com quem
andas e te direi quem és" e "Os opostos se atraem", ou até "Tal pai, tal filho" e "Pai avarento, filho
pródigo", mesmo se tais dita- dos se contradigam?
A TRADIÇÃO
Resta que, quando tais explicações parecem suficientes, deseja-se divulgá-las, compartilhá-las. É
desse modo que se elabora a tradição, princípio de transmissão de tal saber.
Na família, na comunidade em diversas escalas, a tradição lega saber que parece útil a todos e que
se julga adequado conhecer para conduzir sua vida. Esse saber é mantido por ser presumidamente
verdadeiro hoje em dia, e o é hoje porque o era no passado e deveria assim permanecer, pensa-se,
no futuro. A tradição dita o que se deve conhecer, compreender, e indica, por consequência, como
se comportar. Diz, por exemplo, qual é o melhor momento para semear o campo, para lançar sua
rede; ensina quais são as regras básicas de convivência, como curar tal ou tal doença; pode chegar
a desaconselhar a ingestão de leite com manga, como em algumas regiões do Brasil, ou afirmar
que um dente de alho acaba com a gripe...
Os saberes que a tradição transmite parecem, às vezes, não se base- arem em qualquer dado de
experiência racionalizada. Assim, transmite- se, em uma sociedade como a nossa, a superstição
de que o número 13 traz azar- aponto de, em certos hotéis ou edifícios públicos, não ser contado
o décimo terceiro andar! Mas, em relação a outras crenças do gênero, pode-se suspeitar da
validade da experiência. Assim, acreditar que passar sob uma escada dá azar vem provavelmente
de infelizes experiências reais (pode-se imaginá-las facilmente!). Do mesmo modo, bem antes de
se dispor dos conhecimentos trazidos pela ciência moderna sobre as consequências do incesto e
dos casamentos consanguíneos, a tradição proibia essas práticas na maioria das sociedades: pode-
se supor que a observação de suas consequências teria oportunizado um saber espontâneo.
A AUTORIDADE
0 SABER RACIONAL
Muito cedo, o ser humano sentiu a fragilidade do saber fundamentado na intuição, no senso
comum ou na tradição; rapidamente desenvolveu o desejo de saber mais e de dispor de
conhecimentos metodicamente elaborados e, portanto, mais confiáveis. Mas a trajetória foi longa
entre esses primeiros desejos e a concepção do saber racional que acabou se estabelecendo, no
Ocidente, há apenas um século, com uma forma dita científica. Nesse estágio, um sobrevoo
histórico impõe-se para que nos lembremos dessa trajetória.
Os filósofos desempenharam um papel de primeiro plano nessa trajetória, a tal ponto que, durante
muito tempo, o saber científico, no Ocidente pelo menos, pareceu se confundir com o filosófico.
Uma importante fonte encontra-se na Grécia Antiga. É nela que surge, de modo generaliza- do, a
desconfiança em relação às explicações do universo baseadas nos deuses, na magia ou na
superstição. No lugar disso, acredita-se que a mente é capaz, apenas com seu exercício, de
produzir o saber apropria- do. Os filósofos gregos, dos quais Platão e Aristóteles são talvez os
representantes mais conhecidos, desenvolvem os instrumentos da lógica, especialmente a
distinção entre sujeito e objeto: de um lado, o sujei- to que procura conhecer, e, de outro, o objeto
a ser conhecido, bem como as relações entre ambos. Igualmente, o princípio de causalidade, o
que faz com que na causa provoque uma consequência e que a consequência seja compreendida
pela compreensão da causa. Daí estes esquemas de raciocínio, na forma de silogismo, do qual este
é o exemplo clássico: "Todo o homem é mortal; Sócrates é homem; portanto, Sócrates é mortal".
Nesse tipo de raciocínio, algo sendo posto, algo decorre disso necessariamente. Nosso exemplo
mostra um raciocínio dedutivo, mas os gregos desenvolvem também o raciocínio indutivo, ambos
permanecendo hoje essenciais à construção metódica do saber.
Os filósofos gregos, enfim, interessam-se por este importante instrumento da lógica que são as
ciências matemáticas e começam a servir-se delas para abordar os problemas do real ou interpretá-
lo.
No decorrer dos séculos que seguem à Antiguidade Grega, notamos pouco progresso na
concepção da ciência e dos métodos de constituição do saber. Os romanos negligenciam a teoria
pela prática, sobretudo nos domínios da agricultura, arquitetura e guerra. Mostram-se mais
técnicos do que sábios.
Com a Idade Média, reencontramos a reflexão filosófica, mas, dessa vez, dominada pela religião
e pelo desejo de conciliar os saberes adquiridos dos filósofos - especialmente de Aristóteles, que
se conhece pelas traduções árabes - com os dogmas do cristianismo. A teologia supera a filosofia.
O Renascimento, que marca uma brilhante renovação nas artes e nas letras, não conhece
equivalente no domínio do saber científico. Superstições, magia e bruxaria concorrem para
explicar o real: a alquimia, essa ciência oculta que pretende transfornar em ouro metais sem valor,
prospera. Mas a inclinação da época para rejeitar a tradição se, por um lado, leva à negligência
do saber obtido dos filósofos do passado, portanto conduz igualmente a encarar novos pontos de
vista que irão florescer no século XVII: surge principalmente a preocupação em se proceder à
observação empírica do real antes de interpretá-lo pela mente, depois, eventual- mente, de
submetê-lo à experimentação, recorrendo-se às ciências matemáticas para assistir suas
observações e suas explicações. À conjunção da razão e da experiência, a ciência experimental
começa a se definir. Como escrevia o filósofo inglês Francis Bacon, em 1620: "Nossa maior fonte,
da qual devemos tudo esperar, é a estreita aliança destas duas faculdades: a experimental e a
racional, união que ainda não foi fornada".
O século XVII assiste, portanto, à confirmação dessas tendências, e o pensamento científico
moderno começa a se objetivar. Um saber racional, pensa-se cada vez mais, constrói-se a partir
da observação da realidade (empirismo) e coloca essa explicação à prova (experimentação). O
raciocínio indutivo conjuga-se então com o raciocínio dedutivo, unidos por esta articulação que é
a hipótese: é o raciocínio hipotético-dedutivo. São dos fenômenos, é também auxiliado pela
construção de novos instrumentos de medida (tempo, distância, calor, peso, etc.).
A partir de então, o saber não repousa mais somente na especulação, ou seja, no simples exercício
do pensamento. Baseia-se igualmente na observação, experimentação e mensuração, fundamentos
do método científico em sua forma experimental. Assim, poder-se-ia dizer que o método científico
nasce do encontro da especulação com o empirismo.
Além disso, não se trata mais apenas de encontrar uma explicação, ainda que geral, do fenômeno
estudado, mas definir o princípio que funda- menta essa explicação geral. Tomava-se, por
exemplo, importante, para Newton, além da observação da queda das maçãs - retomando uma
ilustração bem conhecida -, definir o princípio dessa queda, que se denominou lei da gravidade
universal. No lugar das leis "divinas" surgem a noção de leis da natureza e a ideia deque a ciência
tem por objetivo definir suas leis.
A CIÊNCIA TRIUNFANTE
Empirismo
Objetividade
O conhecimento positivo deve respeitar integralmente o objeto do qual trata o estudo; cada um
deve reconhecê-lo tal como é. O sujeito conhecedor (o pesquisador) não deve influenciar esse
objeto de modo algum; deve intervir o menos possível e dotar-se de procedimentos que eliminem
ou reduzam, ao mínimo, os efeitos não controlados dessas intervenções.
Experimentação
Validade
Leis e previsão
Sobre o modelo do saber constituído no domínio físico, supõe-se que se podem igualmente
estabelecer, no domínio do ser humano, as leis que o determinam. Essas leis, estima-se, estão
inscritas na natureza; portanto, os seres humanos estão, inevitavelmente, submetidos. Nesse
sentido, o conhecimento positivo é determinista. O conhecimento dessas leis permitiria prever os
comportamentos sociais e geri-los cientificamente. É pois apoiando-se no modelo da ciência
positiva o positivismo que se desenvolvem as ciências humanas, na segunda metade do século
XIX. Este modelo perdurará, e pode-se encontrá-lo até os nossos dias. Nós voltaremos a falar a
esse respeito no próximo capítulo.
Se, para os positivistas, o método, por excelência, é o das ciências naturais, o método, por
excelência, das ciências naturais é o experimental. Claude Bernard, em uma obra publicada em
1865, expôs longamente suas características. Eis algumas passagens reveladoras dos principais
traços do positivismo.
O observador, como dissemos, constata pura e simplesmente o fenômeno que tem sob os olhos.
[...] Sua mente deve ficar passiva, ou seja, calar-se.
O método experimental relaciona-se apenas com a pesquisa das verdades objetivas, e não com a
pesquisa das verdades subjetivas.
A ideia experimental resulta de um tipo de pressentimento da mente que julga que as coisas devem
acontecer de um certo modo. Pode-se dizer, a esse respeito, que temos na mente a intuição ou o
sentimento das leis da natureza, mas não conhecemos sua forma, que somente com a experiência
podemos aprender.
A mente do homem não pode conceber um efeito sem causa, de tal modo que a observação de um
fenômeno sempre desperta nele uma ideia de causalidade. Todo conhecimento humano limita-se
a remeter os efeitos observados às suas causas.
As ciências matemáticas representam as relações das coisas em condições de uma simplicidade
ideal. Dai resulta que esses princípios ou relações, uma vez determinados, são aceitos pela mente
como verdades absolutas, isto é, independentes da realidade.
Todas as ciências raciocinam igualmente e têm o mesmo objetivo. Todas desejam chegou ao
conheci- mento da lei dos fenômenos de modo a poder prevê-los, alterá-los ou dominá-los.
Deve-se crer na ciência, ou seja, no determinismo, na relação absoluta e necessária entre as coisas,
assim como nos fenômenos próprios aos seres vivos e a todos os outros. [... ]