Você está na página 1de 8

1

A PSICOLOGIA OU AS PSICOLOGIAS de conhecimento que vamos acumulando no nosso cotidiano é chamado de


BOCK, Ana Mercês. Psicologias: uma introdução ao estudo da Psicologia. senso comum. Sem esse conhecimento intuitivo, espontâneo, de tentativas
São Paulo: Saraiva, 1999. [Capítulo 1 – Resumido e adaptado] e erros, a nossa vida no dia-a-dia seria muito complicada.
A necessidade de acumularmos esse tipo de conhecimento espontâneo
parece-nos óbvia. Imagine termos de descobrir diariamente que as coisas
Áreas do conhecimento: senso comum, filosofia, religião, arte e ciência tendem a cair, graças ao efeito da gravidade; termos de descobrir
diariamente que algo atirado pela janela tende a cair e não a subir; que um
É a Psicologia científica que pretendemos apresentar a você. Mas, antes automóvel em velocidade vai se aproximar rapidamente de nós e que, para
de iniciarmos o seu estudo, faremos uma exposição da relação ciência/senso fazer um aparelho eletrodoméstico funcionar, precisamos de eletricidade.
comum; depois falaremos mais detalhadamente sobre ciência e, assim, O senso comum, na produção desse tipo de conhecimento, percorre um
esperamos que você compreenda melhor a Psicologia científica. caminho que vai do hábito à tradição, a qual, quando estabelecida, passa de
Quantas vezes, no nosso dia-a-dia, ouvimos o termo psicologia? geração para geração. Assim, aprendemos com nossos pais a atravessar uma
Qualquer um entende um pouco dela. Usamos o termo psicologia no nosso rua, a fazer o liquidificador funcionar, a plantar alimentos na época e de
cotidiano com vários sentidos. Por exemplo, quando falamos do poder de maneira correta, a conquistar a pessoa que desejamos e assim por diante. E é
persuasão do vendedor, dizemos que ele usa de “psicologia” para vender seu nessa tentativa de facilitar o dia-a-dia que o senso comum produz suas
produto; quando nos referimos à jovem estudante que usa seu poder de próprias “teorias”.
sedução para atrair o rapaz, falamos que ela usa de “psicologia”; e quando Esse conhecimento do senso comum, além de sua produção
procuramos aquele amigo, que está sempre disposto a ouvir nossos característica, acaba por se apropriar, de uma maneira muito singular, de
problemas, dizemos que ele tem “psicologia” para entender as pessoas. conhecimentos produzidos pelos outros setores da produção do saber
Será essa a psicologia dos psicólogos? Certamente não. Essa psicologia, humano. O senso comum mistura e recicla esses outros saberes, muito mais
usada no cotidiano pelas pessoas em geral, é denominada de Psicologia do especializados, e os reduz a um tipo de teoria simplificada, produzindo uma
senso comum. Mas nem por isso deixa de ser uma psicologia. O que determinada visão de mundo.
estamos querendo dizer é que as pessoas, normalmente, têm um domínio, O senso comum integra, de um modo simplificado, o conhecimento
mesmo que pequeno e superficial, do conhecimento acumulado pela humano. E claro que isto não ocorre muito rapidamente. Leva certo tempo
Psicologia científica, o que lhes permite explicar ou compreender seus para que o conhecimento mais sofisticado e especializado seja absorvido
problemas cotidianos de um ponto de vista psicológico. pelo senso comum, e nunca o é totalmente. Quando utilizamos termos como
O fato é que a dona de casa, quando usa a garrafa térmica para “rapaz complexado”, “menina histérica”, “ficar neurótico”, estamos usando
manter o café quente, sabe por quanto tempo ele permanecerá termos definidos pela Psicologia científica. Não nos preocupamos em definir
razoavelmente quente, sem fazer nenhum cálculo complicado e sem as palavras usadas e nem por isso deixamos de ser entendidos pelo
conhecer as leis da termodinâmica. Quando alguém em casa reclama de outro. Podemos até estar muito próximos do conceito científico, mas, na
dores no fígado, ela faz um chá de boldo, que é uma planta medicinal já maioria das vezes, nem o sabemos. Esses são exemplos da apropriação que
usada pelos avós de nossos avós, sem, no entanto, conhecer o princípio ativo o senso comum faz da ciência.
de suas folhas nas doenças hepáticas e sem nenhum estudo farmacológico. E Mas o senso comum não é a única forma de conhecimento que o
nós mesmos, quando precisamos atravessar uma avenida movimentada, com homem possui para descobrir e interpretar a realidade. Povos antigos, e
o tráfego de veículos em alta velocidade, sabemos perfeitamente medir a entre eles cabe sempre mencionar os gregos, preocuparam-se com a origem
distância e a velocidade do automóvel que vem em nossa direção. Esse tipo e com o significado da existência humana. As especulações em torno desse
2

tema formaram um corpo de conhecimentos denominado filosofia. diversos ramos da ciência e saber exatamente como determinado conteúdo
A formulação de um conjunto de pensamentos sobre a origem do foi construído, possibilitando a reprodução da experiência. Dessa forma, o
homem, seus princípios morais, forma outro corpo de conhecimento saber pode ser transmitido, verificado, utilizado e desenvolvido. Essa
humano, conhecido como religião. No Ocidente, um livro muito conhecido característica da produção científica possibilita sua continuidade: um novo
traz as crenças e tradições de nossos antepassados e é para muitos um conhecimento é produzido sempre a partir de algo anteriormente
modelo de conduta: a Bíblia. Esse livro é o registro do conhecimento desenvolvido. Negam-se, reafirmam-se, descobrem-se novos aspectos, e
religioso judaico-cristão. Outro livro semelhante é o livro sagrado dos assim a ciência avança. Nesse sentido, a ciência caracteriza-se como um
hindus: Livro dos Vedas. Veda, em sânscrito (antiga língua clássica da processo.
Índia), significa conhecimento. A ciência tem ainda uma característica fundamental: ela aspira à
Por fim, o homem, já desde a sua pré-história, deixou marcas de sua objetividade. Suas conclusões devem ser passíveis de verificação e isentas
sensibilidade nas paredes das cavernas, quando desenhou a sua própria de emoção, para, assim, tornarem-se válidas para todos.
figura e a figura da caça, criando uma expressão do conhecimento que Objeto específico, linguagem rigorosa, métodos e técnicas específicas,
traduz a emoção e a sensibilidade. Denominamos arte a esse tipo de processo cumulativo do conhecimento, objetividade fazem da ciência uma
conhecimento. forma de conhecimento que supera em muito o conhecimento espontâneo
Somente esse tipo de conhecimento, porém, não seria suficiente para as do senso comum. Esse conjunto de características é o que permite que
exigências de desenvolvimento da humanidade. O homem, desde os denominemos científico a um conjunto de conhecimentos.
tempos primitivos, foi ocupando cada vez mais espaço neste planeta, e Quando fazemos ciência, baseamo-nos na realidade cotidiana e pensamos
somente esse conhecimento intuitivo seria muito pouco para que ele sobre ela. Afastamo-nos dela para refletir e conhecer além das aparências.
dominasse a Natureza em seu próprio proveito. Os gregos, por volta do O cotidiano e o conhecimento científico que temos da realidade aproximam-
século 4 a.C, já dominavam complicados cálculos matemáticos, que ainda se e se afastam: aproximam-se porque a ciência se refere ao real; afastam-se
hoje são considerados difíceis por qualquer jovem colegial. Os gregos porque a ciência abstrai a realidade para compreendê-la melhor, ou seja, a
precisavam entender esses cálculos para resolver problemas agrícolas, ciência afasta-se da realidade, transformando-a em objeto de investigação
arquitetônicos, navais etc. Era uma questão de sobrevivência. Com o tempo, — o que permite a construção do conhecimento científico sobre o real.
esse tipo de conhecimento foi-se especializando cada vez mais. A este tipo
de conhecimento, que definiremos logo adiante, chamamos de ciência. A Psicologia Científica e sua diversidade de objetos de estudo
Portanto, arte, religião, filosofia, ciência e senso comum são diferentes
domínios do conhecimento humano. Como dissemos anteriormente, um conhecimento, para ser considerado
científico, requer um objeto específico de estudo. O objeto da Astronomia
são os astros, e o objeto da Biologia são os seres vivos. Essa
O que é Ciência classificação bem geral demonstra que é possível tratar o objeto dessas
ciências com certa distância, ou seja, é possível isolar o objeto de estudo.
A ciência compõe-se de um conjunto de conhecimentos sobre fatos ou
Esse cientista não corre o mínimo risco de confundir-se com o fenômeno que
aspectos da realidade (objeto de estudo), expresso por meio de uma
está estudando.
linguagem precisa e rigorosa. Esses conhecimentos devem ser obtidos de
O mesmo não ocorre com a Psicologia, que, como a Antropologia, a
maneira programada, sistemática e controlada, para que se permita a
Economia, a Sociologia e todas as ciências humanas, estuda o homem.
verificação de sua validade. Assim, podemos apontar o objeto dos
Certamente, esta divisão é ampla demais e apenas coloca a Psicologia
3

entre as ciências humanas. Qual é, então, o objeto específico de estudo da os “diversos homens” concebidos pelo conjunto social. Assim, a Psicologia
Psicologia? hoje se caracteriza por uma diversidade de objetos de estudo.
Se dermos a palavra a um psicólogo comportamentalista, ele dirá: “O Por outro lado, essa diversidade de objetos justifica-se porque os
objeto de estudo da Psicologia é o comportamento humano”. Se a palavra for fenômenos psicológicos são tão diversos, que não podem ser acessíveis ao
dada a um psicólogo psicanalista, ele dirá: “O objeto de estudo da Psicologia mesmo nível de observação e, portanto, não podem ser sujeitos aos mesmos
é o inconsciente”. Outros dirão que é a consciência humana, e outros, ainda, padrões de descrição, medida, controle e interpretação. Esta situação leva-
a personalidade. nos a questionar a caracterização da Psicologia como ciência e a postular
que no momento não existe uma psicologia, mas Ciências psicológicas
A diversidade de objetos da Psicologia é explicada pelo fato deste campo embrionárias e em desenvolvimento.
do conhecimento ter-se constituído como científico só muito recentemente
(final do século 19). Quando uma ciência é muito nova, ela não teve tempo A subjetividade como objeto da Psicologia
ainda de apresentar teorias acabadas e definitivas, que permitam determinar
com maior precisão seu objeto de estudo. Considerando toda essa dificuldade na conceituação única do objeto d e
Outro motivo que contribui para dificultar uma clara definição de objeto estudo da Psicologia, pensamos que o objeto de estudo da Psicologia
da Psicologia é o fato de o cientista — o pesquisador — confundir-se com o deveria ser um que reunisse condições de aglutinar uma ampla variedade de
objeto a ser pesquisado. No sentido mais amplo, o objeto de estudo da fenômenos psicológicos. Assim, optamos por apresentar uma definição que
Psicologia é o homem, e neste caso o pesquisador está inserido na categoria sirva como referência, uma vez que você irá se deparar com diversos
a ser estudada. Assim, a concepção de homem que o pesquisador traz enfoques que trazem definições específicas desse objeto (o comportamento,
consigo “contamina” inevitavelmente a sua pesquisa em Psicologia. Isso o inconsciente, a consciência etc.).
ocorre porque há diferentes concepções de homem entre os cientistas (na A identidade da Psicologia é o que a diferencia dos demais ramos das
medida em que estudos filosóficos e teológicos e mesmo doutrinas políticas ciências humanas, e pode ser obtida considerando-se que cada um desses
acabam definindo o homem à sua maneira, e o cientista acaba ramos enfoca o homem de maneira particular. Assim, cada especialidade —
necessariamente se vinculando a uma destas crenças). É o caso da a Economia, a Política, a História etc. — trabalha essa matéria-prima de
concepção de “homem natural”, formulada pelo filósofo francês Rousseau, maneira particular, construindo conhecimentos distintos e específicos a
que imagina que o homem era puro e foi corrompido pela sociedade, e que respeito dela. A Psicologia colabora com o estudo da subjetividade: é essa a
cabe então ao filósofo reencontrar essa pureza perdida. Outros veem o sua forma particular, específica de contribuição para a compreensão da
homem como ser abstrato, com características definidas e que não mudam, totalidade da vida humana.
a despeito das condições sociais a que esteja submetido. Nós, autores deste A subjetividade é a síntese singular e individual que cada um de nós
livro, vemos esse homem como ser datado, determinado pelas condições vai constituindo conforme vamos nos desenvolvendo e vivenciando as
históricas e sociais que o cercam. experiências da vida social e cultural; é uma síntese que nos identifica, de
Na realidade, este é um “problema” enfrentado por todas as ciências um lado, por ser única, e nos iguala, de outro lado, na medida em que os
humanas, muito discutido pelos cientistas de cada área e até agora sem elementos que a constituem são experienciados no campo comum da
perspectiva de solução. Conforme a definição de homem adotada, teremos objetividade social. Esta síntese — a subjetividade — é o mundo de ideias,
uma concepção de objeto que combine com ela. Como, neste momento, há significados e emoções construído internamente pelo sujeito a partir de suas
uma riqueza de valores sociais que permitem várias concepções de homem, relações sociais, de suas vivências e de sua constituição biológica; é,
diríamos simplificadamente que, no caso da Psicologia, esta ciência estuda também, fonte de suas manifestações afetivas e comportamentais.
4

O mundo social e cultural, conforme vai sendo experienciado por nós, pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas, mas que elas
possibilita-nos a construção de um mundo interior. São diversos fatores que vão sempre mudando. Afinam e desafinam”.
se combinam e nos levam a uma vivência muito particular. Nós atribuímos As pessoas não estão sempre iguais. Ainda não foram terminadas. Na
sentido a essas experiências e vamos nos constituindo a cada dia. verdade, as pessoas nunca serão terminadas, pois estarão sempre se
A subjetividade é a maneira de sentir, pensar, fantasiar, sonhar, amar e modificando. Mas por quê? Como? Simplesmente porque a subjetividade —
fazer de cada um. É o que constitui nosso modo de ser: sou filho de este mundo interno construído pelo homem como síntese de suas
japoneses, militante de um grupo ecológico, detesto Matemática, adoro determinações — não cessará de se modificar, pois as experiências sempre
samba e black music, pratico ioga. Meu melhor amigo é filho de trarão novos elementos para renová-la.
descendentes de italianos, primeiro aluno da classe em Matemática, trabalha Talvez você esteja pensando: mas eu acho que sou o que sempre fui —
e estuda, é corintiano fanático, adora comer sushi e navegar pela Internet. eu não me modifico! Por acompanhar de perto suas próprias
Ou seja, cada qual é o que é: sua singularidade. transformações, você pode não percebê- las e ter a impressão de ser como
Entretanto, a síntese que a subjetividade representa não é inata ao sempre foi. Você é o construtor da sua transformação e, por isso, ela pode
indivíduo. Ele a constrói aos poucos, apropriando-se do material do mundo passar despercebida, fazendo-o pensar que não se transformou. Mas você
social e cultural, e faz isso ao mesmo tempo em que atua sobre este cresceu, mudou de corpo, de vontades, de gostos, de amigos, de atividades,
mundo, ou seja, é ativo na sua construção. Criando e transformando o afinou e desafinou, enfim, tudo em sua vida muda e, com ela, suas
mundo (externo), o homem constrói e transforma a si próprio. vivências subjetivas, seu conteúdo psicológico, sua subjetividade. Isso
De um certo modo, podemos dizer que a subjetividade não só é acontece com todos nós.
fabricada, produzida, moldada, mas também é automoldável, ou seja, o É claro que a forma de se abordar a subjetividade, e mesmo a forma de
homem pode promover novas formas de subjetividade, recusando-se ao concebê-la, dependerá da concepção de homem adotada pelas diferentes
assujeitamento e à perda de memória imposta pela fugacidade da escolas psicológicas. No momento, pelo pouco desenvolvimento da
informação; recusando a massificação que exclui e estigmatiza o diferente, a Psicologia, essas escolas acabam formulando um conhecimento
aceitação social condicionada ao consumo, a medicalização do sofrimento. fragmentário de uma única e mesma totalidade — o ser humano: o seu
Nesse sentido, retomamos a utopia que cada homem pode participar na mundo interno e as suas manifestações. A superação do atual impasse levará
construção do seu destino e de sua coletividade. a uma Psicologia que enquadre esse homem como ser concreto e
Por fim, podemos dizer que estudar a subjetividade, nos tempos atuais, é multideterminado. Esse é o papel de uma ciência crítica, da compreensão,
tentar compreender a produção de novos modos de ser, isto é, as da comunicação e do encontro do homem com o mundo em que vive, já
subjetividades emergentes, cuja fabricação é social e histórica. O estudo que o homem que compreende a História (o mundo externo) também
dessas novas subjetividades vai desvendando as relações do cultural, do compreende a si mesmo (sua subjetividade), e o homem que compreende a
político, do econômico e do histórico na produção do mais íntimo e do mais si mesmo pode compreender o engendramento do mundo e criar novas rotas
observável no homem — aquilo que o captura, submete-o ou mobiliza-o e utopias.
para pensar e agir sobre os efeitos das formas de submissão da subjetividade Algumas correntes da Psicologia consideram-na pertencente ao campo
(como dizia o filósofo francês Michel Foucault). das Ciências do Comportamento e, outras, das Ciências Sociais.
O movimento e a transformação são os elementos básicos de toda essa Acreditamos que o campo das Ciências Humanas é mais abrangente e
história. E aproveitamos para citar Guimarães Rosa, que em Grande Sertão: condizente com a nossa proposta, que vincula a Psicologia à História, à
Veredas, consegue expressar, de modo muito adequado e rico, o que aqui Antropologia, à Economia etc.
vale a pena registrar: “O importante e bonito do mundo é isso: que as
5

O ESTUDO DA HISTÓRIA DA PSICOLOGIA - INTRODUÇÃO A Relevância do Passado para Compreender o Presente


Schultz, D. P., & Schultz, S. E. (2009). História da psicologia moderna.
(Cap. 1) Por que os psicólogos têm tanto interesse no desenvolvimento histórico
da sua área? Os estudiosos vêm tentando compreender o pensamento e o
A psicologia é uma das mais antigas disciplinas acadêmicas e, ao mesmo comportamento humano desde os primórdios da história registrada. O
tempo, uma das mais novas. O interesse pela psicologia remonta aos conhecimento da história permite enxergar o passado com mais clareza e
primeiros espíritos questionadores. Sempre tivemos fascínio pelo nosso entender o presente.
próprio comportamento, e especulações acerca da natureza e conduta A psicologia contemporânea abrange muitas áreas que pouco parece
humanas são o tópico de muitas obras filosóficas e teológicas. Já no século ter em comum além de um interesse pela conduta humana e de uma
V a.C., Platão, Aristóteles e outros sábios gregos se viam às voltas com abordagem que tenta, de alguma maneira, ser científica. O eixo de referência
muitos dos mesmos problemas que hoje ocupam os psicólogos: a memória, que vincula essas áreas e abordagens distintas é a história da evolução da
a aprendizagem, a motivação, a percepção, a atividade onírica e o disciplina psicologia. Somente examinando suas origens e estudando seu
comportamento anormal. As mesmas espécies de interrogações feitas desenvolvimento ao longo do tempo podemos ver com clareza, e no
atualmente sobre a natureza humana também o eram séculos atrás. contexto, a diversidade da psicologia moderna.
A moderna abordagem psicológica teve início há pouco mais de cem Não há uma única forma, abordagem ou definição particular da
anos, em 1879. A distinção entre a psicologia moderna e seus antecedentes psicologia moderna com que concordem todos os psicólogos. Em vez disso,
não está nos tipos de perguntas feitas sobre a natureza humana, mas nos vemos uma enorme diferença e até desacordo e fragmentação, tanto em
método científico empregado na busca das respostas a essas perguntas. O termos de especializações científicas como em termos de objeto de estudo.
que distingue a disciplina mais antiga da filosofia da psicologia moderna são Alguns psicólogos concentram-se em processos cognitivos, outros estão
a abordagem e as técnicas usadas, que denotam a emergência desta última voltados para forças inconscientes, e há ainda os que trabalham com o
um campo de estudo próprio, essencialmente científico. comportamento observável ou fatores fisiológicos e bioquímicos. Os
Os filósofos estudavam a natureza humana através da especulação, psicólogos clínicos, por exemplo, tentam compreender o problema dos seus
intuição e generalização baseadas em sua limitada experiência. Sucede pacientes mediante o exame do passado, das forças e eventos que os levou
transformação no momento em que os filósofos começaram a aplicar os a agir ou a pensar de certas maneiras. Compilando histórias de caso, os
instrumentos e métodos que já tinham se mostrado bem-sucedidos nas clínicos reconstroem a evolução da vida dos pacientes, num processo que
ciências físicas e biológicas a questões relativas à natureza humana. permitirá explicações de comportamentos atuais. O mesmo ocorre com a
Somente quando os pesquisadores passaram a se apoiar na observação e na disciplina da psicologia. O conhecimento da sua história vai ajudá-lo a
experimentação controladas para estudar a mente humana que a psicologia integrar as áreas e problemáticas que constituem a psicologia moderna.
começou a se distinguir de suas raízes filosóficas. Assim, poderíamos descrever a história da psicologia como uma
A nova disciplina da psicologia precisava desenvolver maneiras mais história de caso, examinando os eventos e as experiências antecedentes que
precisas e objetivas de tratar o seu objeto de estudo. Boa parte da história da lhe deram a face que ela tem hoje. Houve erros e concepções equivocadas,
psicologia, depois de sua separação da filosofia, é a história do contínuo mas, de modo geral, há uma continuidade que moldou a psicologia
aprimoramento de instrumental, técnicas e métodos de estudo voltados para contemporânea e que nos fornece uma explicação da sua atual riqueza e
alcançar uma precisão e uma objetividade maiores tanto no âmbito das diversidade.
perguntas como no das respostas.
6

Contexto de surgimento da Psicologia como ciência Forças Contextuais na Psicologia

Se temos a intenção de compreender a complexidade que define e A psicologia não se desenvolveu no vácuo, sujeita apenas a influências
circunscreve a psicologia de hoje, o ponto de partida adequado é o século interiores. Ela é parte da cultura mais ampla em que funciona, estando,
XIX, o momento em que a psicologia se tornou uma disciplina independente portanto, exposta a influências externas que moldam a sua natureza e a sua
com métodos de pesquisa e raciocínios teóricos característicos. direção de maneiras significativas. Uma compreensão adequada da história
Somente há pouco mais de cem anos os psicólogos definiram o objeto de da psicologia tem de considerar o contexto em que a disciplina surgiu e se
estudo da psicologia e estabeleceram seus fundamentos, confirmando assim desenvolveu — as forças sociais, econômicas e políticas que caracterizam
sua independência em relação à Filosofia. Os primeiros filósofos se diferentes épocas e lugares, influenciam seu passado e afetam o seu
preocuparam com problemas que ainda são de interesse da Psicologia, mas presente.
os abordaram de modos vastamente distintos dos empregados pelos atuais Nos primeiros anos do século XX, a natureza da psicologia americana e o
psicólogos. A ideia de que os métodos das ciências físicas e biológicas tipo de trabalho que muitos psicólogos faziam sofreram uma drástica
poderiam ser aplicados ao estudo de fenômenos mentais foi herdada do mudança, basicamente como resultado de oportunidades econômicas. O foco
pensamento filosófico e das pesquisas fisiológicas dos séculos XVII a XIX. da psicologia americana passou da pesquisa pura do laboratório universitário
Essa época fervilhante constitui o cenário imediato onde surgiu a psicologia para a aplicação do conhecimento e das técnicas psicológicas a problemas
moderna. do mundo real. Os psicólogos logo perceberam que, se desejassem que um
Em dezembro de 1879, na Alemanha, Wilhelm Wundt implantou o dia seus departamentos acadêmicos, orçamentos e rendas crescessem, teriam
primeiro laboratório de psicologia do mundo. Até então, os psicólogos de demonstrar aos administradores universitários e aos legisladores a
trabalhavam em departamentos de filosofia. O psicólogo britânico William utilidade que a psicologia poderia ter na solução de problemas sociais,
McDougall definiu a psicologia, em 1908, como a “ciência do educacionais e industriais.
comportamento. Dessa forma, por volta do começo do século XX, a Um dos fatores contextuais que influenciaram essas mudanças foi o
psicologia americana conseguia a sua independência em relação à filosofia, crescimento das escolas. Devido ao influxo de imigrantes para os Estados
desenvolvia laboratórios nos quais aplicava os métodos científicos, formava Unidos perto da virada do século, e à sua alta taxa de natalidade, a educação
sua própria associação científica e definia-se formalmente como ciência — a pública tornara-se uma indústria em crescimento. Entre 1890 e 1918, as
ciência do comportamento. matriculas em escolas públicas tiveram um aumento de 700%, sendo
Uma vez estabelecida, a nova disciplina se expandiu com rapidez, em construídas em todo o país novas escolas à proporção de uma por dia.
especial nos Estados Unidos, que assumiu e mantém uma posição de Gastou-se na época mais dinheiro em educação do que nos programas
destaque no mundo psicológico. A psicologia se expandiu não apenas em militar e de bem-estar social juntos. Muitos psicólogos aproveitaram essa
termos de seus clínicos, pesquisadores, acadêmicos e de sua literatura, mas situação e buscaram maneiras de aplicar o seu conhecimento e os seus
também em termos do seu impacto na vida cotidiana. Seja qual for a sua métodos de pesquisa à educação. Esse foi o começo de uma rápida mudança
idade, ocupação ou interesses, a sua vida é influenciada de alguma maneira de ênfase na psicologia americana — do experimentalismo do laboratório
pelo trabalho de psicólogos. acadêmico para a aplicação da psicologia à aprendizagem, ao ensino e a
outras questões práticas de sala de aula.
As guerras foram outra força contextual que ajudou a moldar a
psicologia. As experiências de psicólogos que colaboraram com o esforço de
guerra dos Estados Unidos na Primeira e na Segunda Guerra Mundiais
7

aceleraram o desenvolvimento da psicologia aplicada e estenderam a sua movimento. Em geral, os membros de uma escola trabalham em problemas
influência a setores como a seleção de pessoal, os testes e a engenharia comuns e compartilham uma orientação teórica ou sistemática. O surgimento
psicológica. A Segunda Guerra Mundial também modificou a face e o de escolas de pensamento diferentes, e por vezes simultâneas, e o seu
destino da psicologia na Europa. Muitos psicólogos destacados fugiram subsequente declínio e substituição por outras, caracterizam a história da
da ameaça nazista nos anos 30, e a maioria deles foi para os Estados psicologia.
Unidos. O exílio e a emigração forçados marcaram a fase da mudança do No curso da história da psicologia, desenvolveram-se diferentes escolas
domínio da psicologia do Velho para o Novo Mundo. A guerra influenciou de pensamento, sendo cada qual um protesto efetivo contra o que a precedia.
as posições teóricas de psicólogos individuais. Depois de testemunhar a Toda nova escola usa um modelo mais antigo como base contra a qual
carnificina da Primeira Guerra, Sigmund Freud foi levado a propor a se opor e a partir da qual ganhar impulso. Embora tenha sido apenas
agressão como uma força motivadora tão importante para a vida humana temporário o domínio de ao menos algumas escolas de pensamento, cada
quanto o sexo, o que representou uma enorme mudança em seu sistema da uma desempenhou um papel vital no desenvolvimento da ciência
psicanálise. Erich Fromm atribuiu seu interesse pelo estudo do psicológica. A influência das escolas ainda pode ser vista na psicologia
comportamento irracional e anormal ao fato de ter observado o fanatismo contemporânea, mesmo que suas facções tenham pouca semelhança com os
que tomou conta da Alemanha durante a Primeira Guerra. sistemas precedentes, porque mais uma vez novas doutrinas substituíram as
Um terceiro fator contextual são a discriminação e o preconceito, que por antigas.
muitos anos determinaram quem podia tornar-se psicólogo e onde cada As primeiras escolas de pensamento no campo da psicologia foram
profissional poderia trabalhar. Durante décadas, os afro-americanos foram movimentos de protesto contra a posição sistemática prevalecente. Cada
amplamente excluídos da psicologia e da maioria dos campos que exigiam escola assinalou o que considerava as limitações e falhas do sistema mais
estudos acadêmicos avançados. Até a década de 40, apenas quatro antigo e ofereceu novas definições, conceitos e estratégias de pesquisa para
universidades dos Estados Unidos ofereciam graduação em psicologia para corrigir as fraquezas percebidas.
negros, e poucas admitiam negros como alunos de pós-graduação. Os judeus Não podemos considerar nenhuma escola de pensamento como a versão
também foram vítimas de discriminação, especialmente na primeira metade completa do fato científico. Como observamos, a moderna ciência
da história da psicologia. Um extenso preconceito contra mulheres tem se psicológica não atingiu a sua forma final. O estágio mais maduro ou
manifestado ao longo de quase toda a história da psicologia. Mesmo quando avançado do desenvolvimento de uma ciência é alcançado quando ela já não
conseguiam cargos de destaque, as mulheres recebiam salários menores, e se caracteriza por escolas de pensamento, ou seja, quando a maioria dos
enfrentavam barreiras à promoção e cargos de chefia. membros dessa disciplina chega a um consenso acerca de questões teóricas e
Esses e outros exemplos citados adiante mostram o impacto de forças metodológicas. Durante os mais de cem anos de história da Psicologia, ela
econômicas políticas e sociais sobre o desenvolvimento da psicologia tem buscado, acolhido e rejeitado diferentes definições, mas nenhum sistema
moderna. A história da psicologia é moldada não apenas pelas ideias, teorias ou ponto de vista individual conseguiu unificar as várias posições. O campo
e pesquisas de seus grandes líderes, mas também por influências externas — permanece especializado, e cada grupo adere à sua própria orientação teórica
forças contextuais — sobre as quais teve pouco controle. e metodológica, abordando o estudo da natureza humana a partir de
diferentes técnicas.
As Escolas de Pensamento: Marcos do Desenvolvimento da Psicologia Nos primeiros anos da evolução da psicologia como disciplina científica
distinta, no último quarto do século XIX, a direção da nova psicologia foi
O termo escola de pensamento refere-se a um grupo de psicólogos que profundamente influenciada por Wundt. Ele determinou o objeto de estudo,
se associam ideológica e, às vezes, geograficamente ao líder de um o método de pesquisa, os tópicos a serem estudados e os objetivos da nova
8

ciência. Ele foi, é claro, afetado pelo espírito de sua época e pelo
pensamento então vigente na filosofia e na fisiologia. Mas a situação logo
mudou. Instalou-se a controvérsia entre os cada vez mais numerosos
psicólogos. Alguns psicólogos, refletindo essas novas correntes de
pensamento, passaram a discordar da versão de psicologia de Wundt e
propuseram suas próprias concepções. Na virada do século, coexistiam
várias posições sistemáticas ou escolas de pensamento, que eram,
essencialmente, definições diferentes da natureza da psicologia.
A obra de Wundt teve como fruto a escola de pensamento denominada
estruturalismo, que se desenvolveu a partir dos trabalhos iniciais no campo
da filosofia e da fisiologia. Seguiu-se a isso o funcionalismo, o
comportamentalismo e a psicologia da Gestalt que, ou evoluíram a partir do
estruturalismo, ou se revoltaram contra ele. Num curso de tempo mais ou
menos paralelo, a psicanálise decorreu da reflexão filosófica sobre a
natureza do inconsciente e das tentativas da psiquiatria no sentido de tratar
os doentes mentais. Tanto a psicanálise como o comportamentalismo
geraram algumas subescolas. Na década de 50, desenvolveu-se o
movimento da psicologia humanista como reação ao comportamentalismo
e à psicanálise, incorporando princípios da psicologia da Gestalt. Por volta
de 1960, o movimento da psicologia cognitivista desafiou com sucesso o
comportamentalismo, e a definição da psicologia mudou outra vez, O
principal aspecto dessa modificação foi o retorno ao estudo da consciência e
de processos mentais ou cognitivos.

Você também pode gostar