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Universidade Federal do Amazonas - Faculdade de Educação

Disciplina: Psicologia da Educação – Prof. Dr. Paulo Ricardo Freire

INTRODUÇÃO: PSICOLOGIA
CIENTÍFICA E SENSO COMUM
ANA MERCÊS BAHIA BOCK
ODAIR FURTADO
MARIA DE LOURDES TRASSI TEIXEIRA

detalhadamente sobre ciência e, assim,


esperamos que você compreenda melhor a
Psicologia e Senso Comum
Psicologia científica.

Quantas vezes, no nosso dia a dia,


ouvimos o termo psicologia? Senso Comum: conhecimento da
Qualquer um entende um pouco dela. realidade.
Poderíamos até mesmo dizer que “de psicólogo
e de louco todo mundo tem um pouco”. O dito Existe um domínio da vida que pode ser
popular não é bem este (“de médico e de louco entendido como vida por excelência: é a vida do
todo mundo tem um pouco”), mas parece servir cotidiano. É no cotidiano que tudo flui, que as
aqui perfeitamente. As pessoas em geral têm a coisas acontecem, que nos sentimos vivos, que
“sua psicologia”. sentimos a realidade.
Usamos o termo psicologia, no nosso Neste instante estou lendo um livro de
cotidiano, com vários sentidos. Por exemplo, Psicologia, logo mais estarei numa sala de aula
quando falamos do poder de persuasão do fazendo uma prova e depois irei ao cinema.
vendedor, dizemos que ele usa de “psicologia” Enquanto isso, tenho sede e tomo um
para vender seu produto; quando nos refrigerante na cantina da escola; sinto um
referimos à jovem estudante que usa seu poder sono irresistível e preciso de muita força de
de sedução para atrair o rapaz, falamos que ela vontade para não dormir em plena aula;
usa de “psicologia”; e quando procuramos lembro-me de que havia prometido chegar
aquele amigo, que está sempre disposto a ouvir cedo para o almoço. Todos esses
nossos problemas, dizemos que ele tem acontecimentos denunciam que estamos
“psicologia” para entender as pessoas. vivos. Já a ciência é uma atividade
Será essa a psicologia dos psicólogos? eminentemente reflexiva. Ela procura
Certamente não. Essa psicologia, usada no compreender, elucidar e alterar esse cotidiano,
cotidiano pelas pessoas em geral, é a partir de seu estudo sistemático.
denominada de psicologia do senso comum. Quando fazemos ciência, baseamo-nos
Mas nem por isso deixa de ser uma psicologia. na realidade cotidiana e pensamos sobre ela.
O que estamos querendo dizer é que as pessoas, Afastamo-nos dela para refletir e conhecer
normalmente, têm um domínio, mesmo que além de suas aparências. O cotidiano e o
pequeno e superficial, do conhecimento conhecimento científico que temos da
acumulado pela Psicologia científica, o que lhes realidade aproximam-se e se afastam:
permite explicar ou compreender seus aproximam-se porque a ciência se refere ao
problemas cotidianos de um ponto de vista real; afastam-se porque a ciência abstrai a
psicológico. realidade para compreendê-la melhor, ou seja,
É a Psicologia científica que pretendemos a ciência afasta-se da realidade,
apresentar a você. Mas, antes de iniciarmos o transformando-a em objeto de investigação —
seu estudo, faremos uma exposição da relação o que permite a construção do conhecimento
ciência/senso comum; depois falaremos mais científico sobre o real.
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Para compreender isso melhor, pense na nós e que, para fazer um aparelho
abstração (no distanciamento e trabalho eletrodoméstico funcionar, precisamos de
mental) que Newton teve de fazer para, eletricidade.
partindo da fruta que caía da árvore (fato do
O senso comum, na produção desse tipo
cotidiano), formular a lei da gravidade (fato
de conhecimento, percorre um caminho que
científico).
vai do hábito à tradição, a qual, quando
Ocorre que, mesmo o mais especializado estabelecida, passa de geração para geração.
dos cientistas, quando sai de seu laboratório, Assim, aprendemos com nossos pais a
está submetido à dinâmica do cotidiano, que atravessar uma rua, a fazer o liquidificador
cria suas próprias “teorias” a partir das teorias funcionar, a plantar alimentos na época e de
científicas, seja como forma de “simplificá-las” maneira correta, a conquistar a pessoa que
para o uso no dia a dia, ou como sua maneira desejamos e assim por diante.
peculiar de interpretar fatos, a despeito das
E é nessa tentativa de facilitar o dia a dia
considerações feitas pela ciência. Todos nós —
que o senso comum produz suas próprias
estudantes, psicólogos, físicos, artistas,
“teorias”; na realidade, um conhecimento que,
operários, teólogos — vivemos a maior parte do
numa interpretação livre, poderíamos chamar
tempo esse cotidiano e as suas teorias, isto é,
de teorias médicas, físicas, psicológicas etc.
aceitamos as regras do seu jogo.
O fato é que a dona de casa, quando usa a
garrafa térmica para manter o café quente, Senso Comum: uma visão de mundo
sabe por quanto tempo ele permanecerá
razoavelmente quente, sem fazer nenhum Esse conhecimento do senso comum,
cálculo complicado e, muitas vezes, além de sua produção característica, acaba por
desconhecendo completamente as leis da se apropriar, de uma maneira muito singular,
termodinâmica. de conhecimentos produzidos pelos outros
setores da produção do saber humano. O senso
Quando alguém em casa reclama de
comum mistura e recicla esses outros saberes,
dores no fígado, ela faz um chá de boldo, que é
muito mais especializados, e os reduz a um tipo
uma planta medicinal já usada pelos avós de
de teoria simplificada, produzindo uma
nossos avós, sem, no entanto, conhecer o
determinada visão de mundo.
princípio ativo de suas folhas nas doenças
hepáticas e sem nenhum estudo O que estamos querendo mostrar a você é
farmacológico. E nós mesmos, quando que o senso comum integra, de um modo
precisamos atravessar uma avenida precário (mas é esse o seu modo), o
movimentada, com o tráfego de veículos em conhecimento humano. E claro que isto não
alta velocidade, sabemos perfeitamente medir ocorre muito rapidamente. Leva um certo
a distância e a velocidade do automóvel que tempo para que o conhecimento mais
vem em nossa direção. Até hoje não sofisticado e especializado seja absorvido pelo
conhecemos ninguém que usasse máquina de senso comum, e nunca o é totalmente. Quando
calcular ou fita métrica para essa tarefa. Esse utilizamos termos como “rapaz complexado”,
tipo de conhecimento que vamos acumulando “menina histérica”, “ficar neurótico”, estamos
no nosso cotidiano é chamado de senso usando termos definidos pela Psicologia
comum. Sem esse conhecimento intuitivo, científica. Não nos preocupamos em definir as
espontâneo, de tentativas e erros, a nossa vida palavras usadas e nem por isso deixamos de ser
no dia-a-dia seria muito complicada. entendidos pelo outro. Podemos até estar
muito próximos do conceito científico, mas, na
A necessidade de acumularmos esse tipo
maioria das vezes, nem o sabemos. Esses são
de conhecimento espontâneo parece-nos
exemplos da apropriação que o senso comum
óbvia. Imagine termos de descobrir
faz da ciência.
diariamente que as coisas tendem a cair, graças
ao efeito da gravidade; termos de descobrir
diariamente que algo atirado pela janela tende
a cair e não a subir; que um automóvel em
velocidade vai se aproximar rapidamente de

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Áreas do Conhecimento Arte, religião, filosofia, ciência e senso


comum são domínios do conhecimento
Somente esse tipo de conhecimento, humano.
porém, não seria suficiente para as exigências
de desenvolvimento da humanidade. O
homem, desde os tempos primitivos, foi A Psicologia Científica
ocupando cada vez mais espaço neste planeta,
e somente esse conhecimento intuitivo seria Apesar de reconhecermos a existência de
muito pouco para que ele dominasse a uma psicologia do senso comum e, de certo
Natureza em seu próprio proveito. Os gregos, modo, estarmos preocupados em defini-la, é
por volta do século 4 a.C, já dominavam com a outra psicologia que este livro deverá
complicados cálculos matemáticos, que ainda ocupar-se — a Psicologia científica. Foi preciso
hoje são considerados difíceis por qualquer definir o senso comum, para que o leitor
jovem colegial. Os gregos precisavam entender pudesse demarcar o campo de atuação de cada
esses cálculos para resolver seus problemas uma, sem confundi-las.
agrícolas, arquitetônicos, navais etc. Era uma Entretanto a tarefa de definir a Psicologia
questão de sobrevivência. Com o tempo, esse como ciência é bem mais árdua e complicada.
tipo de conhecimento foi-se especializando Comecemos por definir o que entendemos por
cada vez mais, até atingir o nível de sofisticação ciência (que também não é simples), para
que permitiu ao homem atingir a Lua. A este depois explicarmos por que a Psicologia é hoje
tipo de conhecimento, que definiremos com considerada uma de suas áreas.
mais cuidado logo adiante, chamamos de
ciência. O QUE É CIÊNCIA
Mas o senso comum e a ciência não são as
A ciência compõe-se de um conjunto de
únicas formas de conhecimento que o homem
conhecimentos sobre fatos ou aspectos da
possui para descobrir e interpretar a realidade.
realidade (objeto de estudo), expresso por meio
Povos antigos, e entre eles cabe sempre de uma linguagem precisa e rigorosa. Esses
mencionar os gregos, preocuparam-se com a conhecimentos devem ser obtidos de maneira
origem e com o significado da existência programada, sistemática e controlada, para
humana. As especulações em torno desse tema que se permita a verificação de sua validade.
formaram um corpo de conhecimentos Assim, podemos apontar o objeto dos diversos
denominado filosofia. A formulação de um ramos da ciência e saber exatamente como
conjunto de pensamentos sobre a origem do determinado conteúdo foi construído,
homem, seus mistérios, princípios morais, possibilitando a reprodução da experiência.
forma um outro corpo de conhecimento
Dessa forma, o saber pode ser
humano, conhecido como religião. No
transmitido, verificado, utilizado e
Ocidente, um livro muito conhecido traz as
desenvolvido. Essa característica da produção
crenças e tradições de nossos antepassados e é
científica possibilita sua continuidade: um
para muitos um modelo de conduta: a Bíblia.
novo conhecimento é produzido sempre a
Esse livro é o registro do conhecimento
partir de algo anteriormente desenvolvido.
religioso judaico-cristão. Um outro livro
Negam-se, reafirmam-se, descobrem-se novos
semelhante é o livro sagrado dos hindus: Livro
aspectos, e assim a ciência avança. Nesse
dos Vedas. Veda, em sânscrito (antiga língua
sentido, a ciência caracteriza-se como um
clássica da Índia), significa conhecimento.
processo.
Por fim, o homem, já desde a sua pré-
Pense no desenvolvimento do motor
história, deixou marcas de sua sensibilidade
movido a álcool hidratado. Ele nasceu de uma
nas paredes das cavernas, quando desenhou a
necessidade concreta (crise do petróleo) e foi
sua própria figura e a figura da caça, criando
planejado a partir do motor a gasolina, com a
uma expressão do conhecimento que traduz a
alteração de poucos componentes deste. No
emoção e a sensibilidade. Denominamos arte a
entanto, os primeiros automóveis movidos a
esse tipo de conhecimento.
álcool apresentaram muitos problemas, como
o seu mau funcionamento nos dias frios.

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Apesar disso, esse tipo de motor foi-se DIVERSIDADE DE OBJETOS DA PSICOLOGIA


aprimorando.
A diversidade de objetos da Psicologia é
A ciência tem ainda uma característica
explicada pelo fato de este campo do
fundamental: ela aspira à objetividade. Suas
conhecimento ter-se constituído como área do
conclusões devem ser passíveis de verificação e
conhecimento científico só muito
isentas de emoção, para, assim, tornarem-se
recentemente (final do século 19), a despeito de
válidas para todos.
existir há muito tempo na Filosofia enquanto
Objeto específico, linguagem rigorosa, preocupação humana.
métodos e técnicas específicas, processo
Esse fato é importante, já que a ciência se
cumulativo do conhecimento, objetividade
caracteriza pela exatidão de sua construção
fazem da ciência uma forma de conhecimento
teórica, e, quando uma ciência é muito nova,
que supera em muito o conhecimento
ela não teve tempo ainda de apresentar teorias
espontâneo do senso comum. Esse conjunto de
acabadas e definitivas, que permitam
características é o que permite que
determinar com maior precisão seu objeto de
denominemos científico a um conjunto de
estudo.
conhecimentos.
Um outro motivo que contribui para
OBJETO DE ESTUDO DA PSICOLOGIA dificultar uma clara definição de objeto da
Psicologia é o fato de o cientista — o
Como dissemos anteriormente, um pesquisador — confundir-se com o objeto a ser
conhecimento, para ser considerado científico, pesquisado. No sentido mais amplo, o objeto de
requer um objeto específico de estudo. O objeto estudo da Psicologia é o homem, e neste caso o
da Astronomia são os astros, e o objeto da pesquisador está inserido na categoria a ser
Biologia são os seres vivos. Essa classificação estudada. Assim, a concepção de homem que o
bem geral demonstra que é possível tratar o pesquisador traz consigo “contamina”
objeto dessas ciências com uma certa distância, inevitavelmente a sua pesquisa em Psicologia.
ou seja, é possível isolar o objeto de estudo. No Isso ocorre porque há diferentes concepções de
caso da Astronomia, o cientista-observador homem entre os cientistas (na medida em que
está, por exemplo, num observatório, e o astro estudos filosóficos e teológicos e mesmo
observado, a anos-luz de distância de seu doutrinas políticas acabam definindo o
telescópio. Esse cientista não corre o mínimo homem à sua maneira, e o cientista acaba
risco de confundir-se com o fenômeno que está necessariamente se vinculando a uma destas
estudando. crenças). É o caso da concepção de homem
O mesmo não ocorre com a Psicologia, natural, formulada pelo filósofo francês
que, como a Antropologia, a Economia, a Rousseau, que imagina que o homem era puro
Sociologia e todas as ciências humanas, estuda e foi corrompido pela sociedade, e que cabe
o homem. então ao filósofo reencontrar essa pureza
perdida.
Certamente, esta divisão é ampla demais
e apenas coloca a Psicologia entre as ciências Outros vêem o homem como ser
humanas. Qual é, então, o objeto específico de abstrato, com características definidas e que
estudo da Psicologia? não mudam, a despeito das condições sociais a
que esteja submetido. Nós, autores deste livro,
Se dermos a palavra a um psicólogo vemos esse homem como ser datado,
comportamentalista, ele dirá: “O objeto de determinado pelas condições históricas e
estudo da Psicologia é o comportamento sociais que o cercam.
humano”. Se a palavra for dada a um psicólogo
psicanalista, ele dirá: “O objeto de estudo da Na realidade, este é um “problema”
Psicologia é o inconsciente”. Outros dirão que é enfrentado por todas as ciências humanas,
a consciência humana, e outros, ainda, a muito discutido pelos cientistas de cada área e
personalidade. até agora sem perspectiva de solução.
Conforme a definição de homem adotada,
teremos uma concepção de objeto que combine
com ela.

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Como, neste momento, há uma riqueza Nossa matéria-prima, portanto, é o


de valores sociais que permitem várias homem em todas as suas expressões, as visíveis
concepções de homem, diríamos simplificada- (nosso comportamento) e as invisíveis (nossos
mente que, no caso da Psicologia, esta ciência sentimentos), as singulares (porque somos o
estuda os “diversos homens” concebidos pelo que somos) e as genéricas (porque somos todos
conjunto social. Assim, a Psicologia hoje se assim) — é o homem-corpo, homem-
caracteriza por uma diversidade de objetos de pensamento, homem-afeto, homem-ação e
estudo. tudo isso está sintetizado no termo
subjetividade.
Por outro lado, essa diversidade de
objetos justifica-se porque os fenômenos A subjetividade é a síntese singular e
psicológicos são tão diversos, que não podem individual que cada um de nós vai constituindo
ser acessíveis ao mesmo nível de observação e, conforme vamos nos desenvolvendo e
portanto, não podem ser sujeitos aos mesmos vivenciando as experiências da vida social e
padrões de descrição, medida, controle e cultural; é uma síntese que nos identifica, de
interpretação. O objeto da Psicologia deveria um lado, por ser única, e nos iguala, de outro
ser aquele que reunisse condições de aglutinar lado, na medida em que os elementos que a
uma ampla variedade de fenômenos constituem são experienciados no campo
psicológicos. Ao estabelecer o padrão de comum da objetividade social. Esta síntese — a
descrição, medida, controle e interpretação, o subjetividade — é o mundo de ideias,
psicólogo está também estabelecendo um significados e emoções construído
determinado critério de seleção dos fenômenos internamente pelo sujeito a partir de suas
psicológicos e assim definindo um objeto. relações sociais, de suas vivências e de sua
constituição biológica; é, também, fonte de
Esta situação leva-nos a questionar a
suas manifestações afetivas e
caracterização da Psicologia como ciência e a
comportamentais.
postular que no momento não existe uma
psicologia, mas Ciências psicológicas O mundo social e cultural, conforme vai
embrionárias e em desenvolvimento. sendo experienciado por nós, possibilita-nos a
construção de um mundo interior. São diversos
A SUBJETIVIDADE COMO OBJETO DA fatores que se combinam e nos levam a uma
PSICOLOGIA vivência muito particular.

Considerando toda essa dificuldade na Nós atribuímos sentido a essas


conceituação única do objeto de estudo da experiências e vamos nos constituindo a cada
Psicologia, optamos por apresentar uma dia. A subjetividade é a maneira de sentir,
definição que lhe sirva como referência para os pensar, fantasiar, sonhar, amar e fazer de cada
próximos capítulos, uma vez que você irá se um. É o que constitui o nosso modo de ser: sou
deparar com diversos enfoques que trazem filho de japoneses e militante de um grupo
definições específicas desse objeto, (o ecológico, detesto Matemática, adoro samba e
comportamento, o inconsciente, a consciência black music, pratico ioga, tenho vontade mas
etc.). não consigo ter uma namorada. Meu melhor
amigo é filho de descendentes de italianos,
A identidade da Psicologia é o que a primeiro aluno da classe em Matemática,
diferencia dos demais ramos das ciências trabalha e estuda, é corinthiano fanático, adora
humanas, e pode ser obtida considerando-se comer sushi e navegar pela Internet. Ou seja,
que cada um desses ramos enfoca o homem de cada qual é o que é: sua singularidade.
maneira particular. Assim, cada especialidade
— a Economia, a Política, a História etc. — Entretanto, a síntese que a subjetividade
trabalha essa matéria-prima de maneira representa não é inata ao indivíduo. Ele a
particular, construindo conhecimentos constrói aos poucos, apropriando-se do
distintos e específicos a respeito dela. A material do mundo social e cultural, e faz isso
Psicologia colabora com o estudo da ao mesmo tempo em que atua sobre este
subjetividade: é essa a sua forma particular, mundo, ou seja, é ativo na sua construção.
específica de contribuição para a compreensão Criando e transformando o mundo (externo), o
da totalidade da vida humana. homem constrói e transforma a si próprio.

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Um mundo objetivo, em movimento, mundo interno construído pelo homem como


porque seres humanos o movimentam síntese de suas determinações — não cessará de
permanentemente com suas intervenções; um se modificar, pois as experiências sempre
mundo subjetivo em movimento porque os trarão novos elementos para renová-la.
indivíduos estão permanentemente se
Talvez você esteja pensando: mas eu acho
apropriando de novas matérias-primas para
que sou o que sempre fui — eu não me
constituírem suas subjetividades.
modifico! Por acompanhar de perto suas
De um certo modo, podemos dizer que a próprias transformações (não poderia ser
subjetividade não só é fabricada, produzida, diferente!), você pode não percebê-las e ter a
moldada, mas também é automoldável, ou seja, impressão de ser como sempre foi. Você é o
o homem pode promover novas formas de construtor da sua transformação e, por isso, ela
subjetividade, recusando-se ao assujeitamento pode passar despercebida, fazendo-o pensar
e à perda de memória imposta pela fugacidade que não se transformou. Mas você cresceu,
da informação; recusando a massificação que mudou de corpo, de vontades, de gostos, de
exclui e estigmatiza o diferente, a aceitação amigos, de atividades, afinou e desafinou,
social condicionada ao consumo, a enfim, tudo em sua vida muda e, com ela, suas
medicalização do sofrimento. Nesse sentido, vivências subjetivas, seu conteúdo psicológico,
retomamos a utopia que cada homem pode sua subjetividade. Isso acontece com todos nós.
participar na construção do seu destino e de
Bem, esperamos que você já tenha uma
sua coletividade.
noção do que seja subjetividade e possamos,
Por fim, podemos dizer que estudar a então, voltar a nossa discussão sobre o objeto
subjetividade, nos tempos atuais, é tentar da Psicologia.
compreender a produção de novos modos de
A Psicologia, como já dissemos
ser, isto é, as subjetividades emergentes, cuja
anteriormente, é um ramo das Ciências
fabricação é social e histórica. O estudo dessas
Humanas e a sua identidade, isto é, aquilo que
novas subjetividades vai desvendando as
a diferencia, pode ser obtida considerando-se
relações do cultural, do político, do econômico
que cada um desses ramos enfoca de maneira
e do histórico na produção do mais íntimo e do
particular o objeto homem, construindo
mais observável no homem — aquilo que o
conhecimentos distintos e específicos a
captura, submete-o ou mobiliza-o para pensar
respeito dele. Assim, com o estudo da
e agir sobre os efeitos das formas de submissão
subjetividade, a Psicologia contribui para a
da subjetividade (como dizia o filósofo francês
compreensão da totalidade da vida humana.
Michel Foucault).
É claro que a forma de se abordar a
O movimento e a transformação são os
subjetividade, e mesmo a forma de concebê-la,
elementos básicos de toda essa história. E
dependerá da concepção de homem adotada
aproveitamos para citar Guimarães Rosa, que
pelas diferentes escolas psicológicas. No
em Grande Sertão: Veredas, consegue expressar,
momento, pelo pouco desenvolvimento da
de modo muito adequado e rico, o que aqui vale
Psicologia, essas escolas acabam formulando
a pena registrar:
um conhecimento fragmentário de uma única
e mesma totalidade — o ser humano: o seu
“O importante e bonito do mundo é isso: que as mundo interno e as suas manifestações. A
pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram
terminadas, mas que elas vão sempre mudando.
superação do atual impasse levará a uma
Afinam e desafinam”. Psicologia que enquadre esse homem como ser
concreto e multideterminado. Esse é o papel de
uma ciência crítica, da compreensão, da
Convidamos você a refletir um pouco
comunicação e do encontro do homem com o
sobre esse pensamento de Guimarães Rosa. As
mundo em que vive, já que o homem que
pessoas não estão sempre iguais. Ainda não
compreende a História (o mundo externo)
foram terminadas. Na verdade, as pessoas
também compreende a si mesmo (sua
nunca serão terminadas, pois estarão sempre
subjetividade), e o homem que compreende a si
se modificando. Mas por quê? Como?
mesmo pode compreender o engendramento
Simplesmente porque a subjetividade — este
do mundo e criar novas rotas e utopias.

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Algumas correntes da Psicologia Estas não são práticas da Psicologia. São


consideram-na pertencente ao campo das outras formas de saber — de saber sobre o
Ciências do Comportamento e, outras, das humano — que não podem ser confundidas
Ciências Sociais. Acreditamos que o campo das com a Psicologia, pois:
Ciências Humanas é mais abrangente e
• não são construídas no campo da Ciência,
condizente com a nossa proposta, que vincula a
a partir do método e dos princípios
Psicologia à História, à Antropologia, à
científicos;
Economia etc.
• estão em oposição aos princípios da
Psicologia, que vê não só o homem como
ser autônomo, que se desenvolve e se
A Psicologia e o Misticismo
constitui a partir de sua relação com o
mundo social e cultural, mas também o
A Psicologia, como área da Ciência, vem
homem sem destino pronto, que constrói
se desenvolvendo na história desde 1875,
seu futuro ao agir sobre o mundo. As
quando Wilhelm Wundt (1832-1926) criou o
práticas místicas têm pressupostos
primeiro Laboratório de Experimentos em
opostos, pois nelas há a concepção de
Psicofisiologia, em Leipzig, na Alemanha. Esse
destino, da existência de forças que não
marco histórico significou o desligamento das
estão no campo do humano e do mundo
ideias psicológicas de ideias abstratas e
material.
espiritualistas, que defendiam a existência de
uma alma nos homens, a qual seria a sede da A Psicologia, ao relacionar-se com esses
vida psíquica. A partir daí, a história da saberes, deve ser capaz de enfrentá-los sem
Psicologia é de fortalecimento de seu vínculo preconceitos, reconhecendo que o homem
com os princípios e métodos científicos. A ideia construiu muitos “saberes” em busca de sua
de um homem autônomo, capaz de se felicidade. Mas é preciso demarcar nossos
responsabilizar pelo seu próprio campos. Esses saberes não estão no campo da
desenvolvimento e pela sua vida, também vai Psicologia, mas podem se tornar seu objeto de
se fortalecendo a partir desse momento. estudo.
Hoje, a Psicologia ainda não consegue É possível estudar as práticas
explicar muitas coisas sobre o homem, pois é adivinhatórias e descobrir o que elas têm de
uma área da Ciência relativamente nova (com eficiente, de acordo com os critérios científicos,
pouco mais de cem anos). Além disso, sabe-se e aprimorar tais aspectos para um uso eficiente
que a Ciência não esgotará o que há para se e racional. Nem sempre esses critérios
conhecer, pois a realidade está em permanente científicos têm sido observados e alguns
movimento e novas perguntas surgem a cada psicólogos acabam por usar tais práticas sem o
dia, o homem está em movimento e em devido cuidado e observação. Esses casos, seja
transformação, colocando também novas daquele que usa a prática mística como
perguntas para a Psicologia. A invenção dos acompanhamento psicológico, seja o do
computadores, por exemplo, trouxe e trará psicólogo que usa desse expediente sem
mudanças em nossas formas de pensamento, critério científico comprovado, são previstos
em nossa inteligência, e a Psicologia precisará pelo código de ética dos psicólogos e, por isso,
absorver essas transformações em seu quadro passíveis de punição. No primeiro caso, como
teórico. prática de charlatanismo e, no segundo, como
Alguns dos “desconhecimentos” da desempenho inadequado da profissão.
Psicologia têm levado os psicólogos a buscarem Entretanto, é preciso ponderar que esse
respostas em outros campos do saber humano. campo fronteiriço entre a Psicologia científica
Com isso, algumas práticas não-psicológicas e a especulação mística deve ser tratado com o
têm sido associadas às práticas psicológicas. O devido cuidado. Quando se trata de pessoa,
tarô, a astrologia, a quiromancia, a psicóloga ou não, que decididamente usa do
numerologia, entre outras práticas expediente das práticas místicas como forma
adivinhatórias e/ou místicas, têm sido de tirar proveito pecuniário ou de qualquer
associadas ao fazer e ao saber psicológico. outra ordem, prejudicando terceiros, temos um
caso de polícia e a punição é salutar. Mas muitas

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vezes não é possível caracterizar a atuação respostas para perguntas ainda não
daqueles que se utilizam dessas práticas de respondidas.
forma tão clara. Nestes casos, não podemos
tornar absoluto o conhecimento científico A Ciência, como uma das formas de saber
como o “conhecimento por excelência” e do homem, tem seu campo de atuação com
dogmatizá-lo a ponto de correr o risco de criar métodos e princípios próprios, mas, como
um tribunal semelhante ao da Santa forma de saber, não está pronta e nunca estará.
Inquisição. E preciso reconhecer que pessoas A Ciência é, na verdade, um processo
que acreditam em práticas adivinhatórias ou permanente de conhecimento do mundo, um
místicas têm o direito de consultar e de serem exercício de diálogo entre o pensamento
consultadas, e também temos de reconhecer, humano e a realidade, em todos os seus
nós cientistas, que não sabemos muita coisa aspectos. Nesse sentido, tudo o que ocorre com
sobre o psiquismo humano e que, muitas vezes, o homem é motivo de interesse para a Ciência,
novas descobertas seguem estranhos e que deve aplicar seus princípios e métodos para
insondáveis caminhos. O verdadeiro cientista construir respostas.
deve ter os olhos abertos para o novo.
Enfim, nosso alerta aqui vai em dois
sentidos:
• Não se deve misturar a Psicologia com
práticas adivinhatórias ou místicas que
estão baseadas em pressupostos diversos e
opostos ao da Psicologia.
• “Mente é como paraquedas: melhor
aberta.” É preciso estar aberto para o novo,
atento a novos conhecimentos que, tendo
sido estudados no âmbito da Ciência,
podem trazer novos saberes, ou seja, novas

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QUESTÕES

1. Qual a relação entre cotidiano e conhecimento científico? Dê um exemplo de uso cotidiano do


conhecimento científico (em qualquer área).
2. Explique o que é senso comum. Dê um exemplo desse tipo de conhecimento.
3. Explique o que você entendeu por visão de mundo.
4. Cite alguns exemplos de conhecimentos da Psicologia apropriados pelo senso comum.
5. Quais os domínios do conhecimento humano? O que cada um deles abrange?
6. Quais as diferenças entre senso comum e conhecimento científico?
7. Quais são os possíveis objetos de estudo da Psicologia?
8. Qual a matéria-prima da Psicologia?
9. O que é subjetividade? Por que a subjetividade não é inata?
10. Por que as práticas místicas não compõem o campo da Psicologia científica?

1ª Atividade – Individual
Deve ser enviado impreterivelmente até 23/04/2021, com Capa e Folha de Rosto, Espaço 1,5,
Fonte Times New Roman ou Arial, de acordo com as Normas Técnicas da ABNT (Capa e Folha de
Rosto) – Pesquisar na internet pelo modelo.
Critérios: Cada questão vale 1,00 (TOTAL 10,0)
Enviado fora da data marcada (- 1,0 ponto)
Enviado fora das normas da ABNT (- 1,0 ponto)

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