Você está na página 1de 4

Felipe Violi Monteiro

A PESQUISA QUALITATIVA E A DIMENSÃO ÉTICO-POLÍTICA

É comum a concepção de que a comunidade acadêmica não se relaciona diretamente ao


poder político institucional, particularmente no que tange às políticas governamentais. Weber
(2015) deixa clara a distinção ao afirmar que toda pessoa que se entrega a política aspira ao
poder, opondo-se ao cientista que somente pela especialização pura pode, finalmente, tomar a
consciência de si mesmo e das relações objetivas que estabelece, expondo uma imponente
neutralidade no que faz.
Contudo, o diálogo entre um professor de arquitetura da Universidade de Londres e um
general aposentado das Forças Armadas Israelenses1, discutindo sobre Clifford Geertz, Gilles
Deleuze e Felix Guattari parece desarticular essa concepção comum. O general, ao expor como
as teorias francesas desempenharam um importante papel nas táticas militares realizadas em
2002, na Cisjordânia, coloca em xeque o caráter representacional do texto acadêmico e mostra
que, como nos afirmou Deleuze e Foucault (1980, p. 208) a “teoria” funciona como uma “caixa
de ferramentas” à ser utilizada para as lutas sociais que a produziu.
Neste sentido, com o presente ensaio, objetivo discutir a indissociabilidade entre as
dimensões ético-políticas da escrita acadêmica, especialmente no que tange à pesquisa
qualitativa. Para além das discussões sobre os regulamentos dos comitês de ética, mas
apoiando-me em Richardson e Pierre (2018) compreendo a linguagem como uma força criadora
de modos particulares da “realidade”.
Para tanto, oportuno retomar a fala do proeminente general:

‘Esse espaço que você olha, essa sala que você olha não passa de sua interpretação.
[...] A questão é como você interpreta o beco? […] Nós interpretamos o beco como
um lugar proibido de atravessar e a porta como um lugar proibido de passar, a janela
como um lugar proibido de olhar, porque uma arma nos espera no beco e uma
armadilha nos espera atrás das portas. Isso ocorre porque o inimigo interpreta o espaço
de maneira tradicional e clássica, e eu não quero obedecer a essa interpretação e cair
em suas armadilhas (WEIZMAN, 2006, p. 1, tradução livre).

Foi através da mudança na interpretação dos espaços materiais que as forças israelenses
decidiram “andar através das paredes”. Baseando-se na conceitualização de “espaços lisos” e
“espaços estriados” de Deleuze e Guattari (1997) utilizavam não só a teoria, mas imensas brocas
e explosivos para derrubar as paredes, criando territórios que se tornavam familiares aos que os

1 Do original: Israeli Defence Forces (IDF)


produziam e estranhos aos moradores do local, afinal, imagine-se assistindo televisão enquanto
saem doze soldados da parede de sua sala (WEIZMAN, 2006).
Deleuze e Guattari (1997) não objetivaram desenvolver táticas militares através de suas
teorias, contudo, o trágico exemplo que ilustra a produção de uma realidade material e social
através da linguagem codificada no texto acadêmico, nos permite afirmar que toda escrita
teórica é indissociável de uma dimensão ético-política.
Neste sentido, por pesquisa ética, considero uma pesquisa relacional e colaborativa que
se alinha às múltiplas resistências minoritárias, implicando ao pesquisador assumir projetos
morais que decolonializem e recuperem práticas marginais, em distinção à ética da pesquisa
tradicional, que assume uma sequencia de métodos a fim de revelar uma verdade universal a
partir dos resultados obtidos (CANELLA, LINCOLN, 2018).
Canella e Lincoln (2018) argumentam que a dimensão ética deve assumir uma forma de
governamentalidade, que constitui a internalização de disciplinas e práticas no corpo,
sobretudo, pela orientação não fascista, isto é, pela maneira de distanciar-se do poder.
Foucault (2002) não entende o poder como um atributo ou característica específica de
uma pessoa ou instituição, mas como um efeito de discursos. Discurso este que pode ser
entendido como um conjunto de práticas, significados compartilhados, histórias que contribuem
com determinada construção de um fato.
Deste modo, tudo o que tomamos como fato é produto do discurso, não um fenômeno
independente do qual o discurso se ocupa. Assim, na medida em que o discurso regula e dá
forma às nossas possibilidades de viver, ele sustenta as práticas sociais por meio das quais o
poder opera, como exposto na transição de discursos que fizeram com que "loucos e
desajustados” não precisassem ser forçados ao encarceramento, mas operaram por meio de um
discurso que instituiu a internação em hospitais psiquiátricos e a submissão à figura do médico
como um modo justificado de cuidar. (FOUCAULT, 2002).
A partir das contribuições de Foucault (2002) e do que escritos pós-estruturalistas
costumam chamar de reflexividade, esta abordagem trata a própria ciência como um discurso,
o que produziu uma crítica expressiva contra a suposta neutralidade das ciências e abriu o
campo para inúmeras investigações que buscaram colocar em destaque o modo como a ciência
criou seus “objetos” de estudo, quais efeitos esta produziu e, principalmente, quais necessidades
atendeu. Neste sentido, a ética reflexiva deve orientar-se principalmente pelos projetos políticos
que a ciência busca atender.
Tal discussão incorre no segundo termo defendido neste ensaio, a dimensão política
como passível de análise tem uma origem paradoxal (DOSSE, 2018). Durante a década de 1970
e 1980 havia uma convicção de que tudo era político, portanto, se o político está em toda parte,
está, sobretudo, em lugar nenhum, esta primeira concepção de política se baseia,
principalmente, no já exposto conceito de poder, de Michel Foucault (2002). Contudo, Dosse
(2018) ressalta a importância de considerar o primeiro movimento que buscou introduzir a
dimensão política na ação teórica, com o conceito de práxis, a fim de resgatar uma autonomia
ao conceito. Portanto, se a política está por toda parte, como fazer política além do que se faz?
Dosse (2018) auxilia com o argumento de uma dualidade da política. Se por um lado,
pode ser considerada uma instância que pretende garantir o bem público, a felicidade comum,
portanto, encontrando na figura da política uma prática da própria humanidade. Por outro lado,
há a face da política como a alienação que ela implica, não como elemento exógeno, mas como
dinâmica interna da ação política, isso implica em desconsiderarmos o conceito de
“superestrutura” marxiana, para assumi-la como papel do próprio sujeito que opera a pesquisa.
Neste sentido, o fazer “política” na pesquisa qualitativa toma forma através das ações que
buscam “revelar” práticas minoritárias, guiadas por uma ética reflexiva crítica, ao mesmo tempo
que age para “alienar” práticas disciplinares hegemônicas no campo social.
No campo da pesquisa qualitativa, estas ações políticas ocorrem, principalmente, através
da linguagem, materializando no texto novos “modos de representação” (DELEUZE,
GUATTARI, 2010). Portanto, há na escrita acadêmica um sistema de relações de poder que
lutam ideologicamente pelo poder de semiotização da linguagem social dominante. Como
afirmam Deleuze e Foucault (1980) o papel do intelectual não é mais colocar-se à distância,
para expressar a verdade sufocada de uma coletividade sócio-histórica, antes, é lutar contra as
forças do poder que transformam a si mesmo em instrumento do poder discursivo hegemônico.
REFERÊNCIAS

CANELLA, G. S; LINCOLN, Y, S. Ethics, Research Regulations, and Critical Social Science.


In: DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. The sage handbook of qualitative research. 5ed. Los
Angeles: Sage, 2018.

DELEUZE, G; GUATTARI, F. O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de Janeiro:


Ed. 34, 2010.

DELEUZE, G; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 5. São Paulo: Ed.


34, 1997.

DELEUZE, G; FOUCAULT, M. Intellectuals and Power. In: FOUCAULT, M. Language,


Counter-Memory, Practice: Selected Essays and Interviews, Cornell University Press, Ithaca,
1980, p. 206.

DENZIN, N, K; LINCOLN, Y. S. Introduction: The Discipline and Practice of Qualitative


Research. In: DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. The sage handbook of qualitative research.
5ed. Los Angeles: Sage, 2018.

DOSSE, F. O império do sentido: A humanização das ciências humanas. São Paulo: Editora
Unesp, 2018.

FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. 36ª edição. Petrópolis: Vozes, 2002.

GLESNE, C. Research as solidarity. In: DENZIN, N. K. & GIARDINA, M. D. Ethical futures


in qualitative research: Decolonizing the politics of knowledge. Walnut Creek, CA: Left
Coast Press, 2007.

RICHARDSON, L; PIERRE, E. A. Writing: A method of Inquiry In: DENZIN, N. K.;


LINCOLN, Y. S. The sage handbook of qualitative research. 5ed. Los Angeles: Sage, 2018.

WEBER, M. Ciência e Política: Duas vocações. trad. Marco Antônio Casanova. São Paulo:
Martin Claret, 2015.

WEIZMAN, E. The Art of War. Frieze, New York, 06, May, 2006. Disponível em: <
https://frieze.com/article/art-war>. Acesso em: 06 de outubro de 2019.

Você também pode gostar