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HISTÓRIA E DOCUMENTAÇÃO

– ABORDAGENS PRÁTICAS
AULA 5

Prof. Igor Tadeu Camilo Rocha


CONVERSA INICIAL

Um pesquisador/historiador comumente se verá diante de documentos


antigos, os quais podem impor dificuldades, tais como letras e caracteres
ilegíveis, vocábulos desconhecidos e diversos outros obstáculos para a sua
leitura. Diante disso, o objetivo desta aula será o de introduzir alguns
fundamentos da ciência que se dedica a transcrever esses documentos,
tornando suas informações acessíveis a pesquisadores da contemporaneidade.

TEMA 1 – PALEOGRAFIA: DEFINIÇÃO, FUNÇÕES E FUNDAMENTOS


BÁSICOS

Antes de tratarmos o assunto da Paleografia mais detidamente, é


importante que façamos uma reflexão sobre o que ela é, suas funções e, a partir
daí, como ela auxilia na pesquisa histórica. Existem algumas informações gerais
que são fundamentais de serem entendidas quando se decide por dedicar-se a
uma transcrição paleográfica.

1.1 O que é Paleografia?

Em linhas gerais, Paleografia define um campo de estudos bastante


amplo e complexo voltado ao reconhecimento e à transcrição dos registros
gráficos antigos. Segundo sua etnologia, paleografia vem da junção de duas
terminologias provindas do grego (palaios = antigo e graphien = escrita),
definindo-se assim a ciência que estuda a escrita antiga. Maria Cecília de
Andrade (2010, p. 10) explica que a Paleografia está identificada com a história
da escrita para o estudo da escrita antiga e seu desenvolvimento em suportes
materiais diversos ao longo da História.
No fazer historiográfico, a Paleografia se faz fundamental ao historiador,
inicialmente devido ao caráter propedêutico, ou seja, de tornar o
pesquisador/historiador que a domina capaz de acessar diretamente o
documento histórico sem alguma mediação, como no caso de uma transcrição
comentada por outro pesquisador (Andrade et al., 2014).
Assim, o conhecimento de técnicas de transcrição de documento e a
capacidade de se refletir sobre a história e a materialidade da escrita, tal como

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a historicidade de seus desenvolvimentos, proporcionam uma certa autonomia
ao pesquisador/historiador que detém essas habilidades e conhecimentos.
A Paleografia pode ser entendida parte como ciência, parte como arte
(Leal, 2016). Ela é ciência no sentido de possuir um aparato teórico e conceitual
que sistematiza as formas de transcrever documentos. Por essa via, a atividade
paleográfica é também uma reflexão sobre o desenvolvimento histórico da
escrita. Não se poderá compreender a escrita sem entender a sua função nas
mais variadas sociedades humanas, tampouco será possível alcançar tais
funções sem um mínimo de compreensão de sua materialidade. É diferente uma
escrita em um suporte duro, como a pedra, de outras em suporte mole, como o
papel. A circularidade de um escrito e seu acessos são distintos a depender de
seu tipo e da própria relação com a palavra escrita nas variadas sociedades,
entre outras características.
Ela é arte na medida em que a atividade paleográfica também traz em si
um corpus variado de técnicas compartilhadas por comunidades de
pesquisadores, acerca de como se transcrever um documento. Por esse
caminho, é importante frisar que, mesmo que entendamos a pesquisa histórica
como atividade mormente autoral e em grande parte solitária, a Paleografia é
mais bem conduzida no trabalho em equipe e no diálogo com outros
pesquisadores. Isso porque o conhecimento prático compartilhado tem grande
importância nessa atividade, que se vale fortemente de comparações,
aproximações, trocas e outras práticas cuja natureza colaborativa se sobrepõe
ao progresso individual.
A rigor, o uso da Paleografia pelo pesquisador/historiador será o de passar
a informação de uma mídia e de um suporte para outro, com caracteres mais
legíveis para si e para outros pesquisadores/historiadores. Ao paleógrafo cabe
produzir uma espécie de versão do documento escrito no passado que seja: 1)
o mais próximo possível do original; 2) de melhor legibilidade possível no
contexto que o pesquisador/historiador esteja fazendo a transcrição; e 3) o mais
adequado possível à sua pesquisa, quando for o caso.

1.2 Tipos de transcrição paleográfica

Veremos mais à frente as normas de transcrição paleográfica, importantes


na medida em que foram formuladas de maneira a estipular parâmetros
baseados nas reflexões teóricas e práticas da atividade paleográfica – reflexões
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capazes de normalizar o fazer paleográfico. Aqui importa ter em vista que o
pesquisador/historiador que for recorrer a uma transcrição ou fazer ele próprio a
sua encontrará alguns tipos específicos de transcrição: a diplomática, a
semidiplomática e a adaptada.
Uma transcrição diplomática visa manter ao máximo a fidelidade ao
manuscrito original. Dessa maneira, abreviaturas serão mantidas tal como estão
no original, assim como as que possuem letras sobrescritas (exemplo: X .er =
Xavier). O uso de editores de texto também deverá auxiliar para manter textos e
caracteres nas posições mais próximas possíveis do manuscrito original.
Já a transcrição semidiplomática fará algumas adaptações pontuais,
visando não se afastar das características do manuscrito original, mas, ao
mesmo tempo, proporcionar uma leitura mais fácil para aquele que transcreve e
seus interlocutores. Por exemplo, as abreviaturas, nesse caso, são
desenvolvidas segundo critérios que veremos nas normas técnicas mais à frente.
Por fim, uma transcrição adaptada fará modificações de maneira a
atualizar a escrita de determinado manuscrito no ato de sua transcrição, fazendo
mudanças de grafia (por exemplo, ao se encontrar a palavra caza no manuscrito,
muda-se para casa, conforme a norma contemporânea).
É fundamental ter em vista que não existe um método ou tipo ideal de
transcrição que deva ser seguido por todos os que forem transcrever
documentos antigos. Toda transcrição deve ter em vista sua finalidade antes de
tudo.

TEMA 2 – A HISTÓRIA DA ESCRITA

A Paleografia, como arte e ciência dedicada ao conhecimento e à


transcrição de documentos antigos para linguagens contemporâneas, precisa
estar sempre atenta à dimensão histórica da linguagem escrita, a qual, sem
dúvidas, é seu objeto. Aqui veremos algumas linhas mais gerais da história da
escrita – discussão baseada na obra de Steven R. Fisher (2009) sobre o tema.

2.1 A escrita como atividade humana e histórica

Não existe um consenso entre especialistas a respeito da origem da


escrita na História. O que explica Fisher (2009) é que ela se desenvolve em dois
eixos fundamentais: a necessidade de comunicação do pensamento humano,

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bem como de comunicá-lo, a si mesmo e a outros, distantes no tempo e no
espaço, compreendendo, sem sombra de dúvidas, um longo período histórico.
Quando falamos da escrita com a qual estamos habituados, usamos a
terminologia daquilo que Fisher (2009) define como uma “escrita completa”, a
qual, além de objetivar a comunicação, é constituída por marcações gráficas
feitas em superfície durável (seja material, como pedra, papel, papiro, peles,
entre outras, ou virtual, como editores de texto e mídias on-line) e utiliza sinais
previamente estabelecidos, convencionados e, portanto, que proporcionem uma
comunicação efetiva entre os que compartilham tais sinais.
Não obstante, Fisher (2009) lembra que não existe uma evolução linear
na escrita, no sentido de que uma mais rudimentar evolua para uma mais
complexa. Tampouco existe um processo natural e inexorável de mudanças na
escrita. Pelo contrário, toda mudança na escrita responde aos hábitos e às
demandas das sociedades humanas quanto a essas atividades, relativos a suas
necessidades, desenvolvimento tecnológico, entre outros fatores.
Por fim, outro pressuposto importante é que, quando se pensa no
desenvolvimento da linguagem escrita nas culturas humanas, deve-se eliminar
a imagem de que o surgimento de uma forma escrita substitui outro que lhe é
anterior. O que ocorre é muito mais dinâmico, no sentido de que muitas formas
de escrever sobrevivem de maneira coeva nos mais variados grupos humanos
e nos usos da escrita que um contexto pode comportar.
Cabe o questionamento aqui: por que um pesquisador/historiador que se
dedique à Paleografia, ou recorra a ela em suas pesquisas, deve ter atenção aos
pressupostos da história da escrita enunciados anteriormente? Resumindo
bastante a resposta, devemos ter em mente que a escrita é uma atividade
humana, com historicidade, à qual o pesquisador/historiador deve ter total
atenção quando for transcrever um documento.
Deve-se ter em vista, por exemplo, que muitas formas de escrita
coexistem no mesmo contexto, de acordo com os usos ou da própria difusão da
escrita. Um compromisso de irmandade do século XVIII, feito por motivações
religiosas e estética mais refinadas, tende a ter tipologias de letras e caracteres
mais legíveis a pessoas da atualidade do que de uma documentação cartorial do
mesmo período. O vocabulário usado também varia conforme o fato de um
documento ser oficial ou não, ter sido redigido por pessoas mais ou menos
eruditas ou circular em meios mais ou menos eruditos.

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Além disso, a escrita é parte da história material de uma sociedade e, por
isso, é de se presumir que esse aspecto lhe confira variações. Uma escrita com
um cinzel em pedra possui menos curvas que uma feita com tinta e pena. No
contexto posterior ao maior uso do papel, a qualidade do papel e das tintas
usadas para a escrita variou de acordo com a finalidade da escrita ou dos
agentes dela, e assim ocorrem outras infinitas variedades. Todas são parte de
aspectos que dotam de historicidade a escrita.

2.2 Alguns tipos de escrita ao longo da história

No Brasil, a grande maioria dos pesquisadores/historiadores que recorrem


à Paleografia para ler seus documentos terá contato com a escrita humanística
(Figura 1) mais comum a partir do século XV. É nesse tipo de escrita que
teremos, por exemplo, a maior parte da documentação do período colonial.

Figura 1 – Escrita humanista

Fonte: Vicentino, 1522, p. 36.

Ela é caracterizada por letras mais arredondadas, largas e espaçadas em


relação a caligrafias anteriores. Possui menos ornamentações em detrimento da
legibilidade e foi, em grande medida, desenvolvida como oposta à escrita gótica

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(Figura 2). Este termo (escrita gótica) é bem genérico, referindo-se a um campo
vasto de formas de escrita desenvolvidas em mosteiros e conventos medievais.
Ela é caracterizada pelo uso quase exclusivo de letras minúsculas, escrita
corrida, muitas ligaduras e curvaturas.

Figura 2 – Escrita gótica

Fonte: Uppsala Universitet.

Uma de suas variantes é a escrita carolina (Figura 3) encontrada em


documentos dos séculos IX ao XIII. As letras são bem definidas, possuem
formatos também arredondados, havendo diferenciação clara de maiúsculas e
minúsculas. Com efeito, a escrita humanística é vista, grosso modo, como um
desenvolvimento da carolina.

Figura 3 – Escrita carolina

Fonte: Enciclopaedia Britanica.

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2.3 Sobrevivências de uma forma de escrita em outra

A depender do período, um paleógrafo ou pesquisador/historiador que


recorra à Paleografia irá se deparar com permanências de caracteres, por
exemplo, que remetem à escrita gótica, em um período em que predominava a
escrita humanística. Jorge Ferreira Paulo (2017) conduziu um estudo que
observou e analisou como se deu o processo de substituição, na documentação
burocrática da Câmara de Lisboa ao longo do século XVI, da escrita gótica pela
humanística. Ao invés de mudanças bruscas, o autor notou que a segunda se
tornou cânone ao longo de um processo histórico complexo. Quando a segunda
ia se impondo, os usos da alguns resquícios da primeira ainda eram vistos.
Não é incomum que essa característica da escrita imponha algumas
dificuldades ao pesquisador/historiador. Aqui, é fundamental frisar que se trata
de uma característica da própria língua enquanto algo não estanque, vivo, e que
perpassa dinâmicas das sociedades humanas. Essa é uma das dificuldades para
as quais experiência e reflexões teóricas nos estudos sobre a Paleografia
apontam algumas soluções mais comuns.

TEMA 3 – DIFICULDADES E TÉCNICAS DE LEITURA PALEOGRÁFICA

Existem algumas dificuldades um tanto quanto singulares que aparecem


nos documentos históricos. Contudo, a Paleografia é uma atividade que preza
pelo compartilhamento de saberes aliados à reflexão teórico-científica, e existem
algumas questões muito comuns com as quais nos deparamos ao analisar um
documento antigo.
Longe de querermos esgotar o assunto, buscamos apresentar algumas
dificuldades mais comuns e as soluções indicadas para contorná-las.

3.1 Alfabetos e traçados das letras de difícil identificação

Como vimos, alfabetos, caracteres e formas de escrever antigas são


distintas das quais estamos habituados. Nesse sentido, encontra-se a função
central da Paleografia, que é decifrar escritas antigas, em caracteres de difícil
legibilidade, para mídias e caracteres mais legíveis ao contexto daquele que
transcreve.
Identificar o traçado das letras é um primeiro passo importante para se
transcrever um documento.
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Figura 4 – Traçados das letras a e b minúsculas

Fonte: Ackel, 2019, p. 7.

Na medida em que isso for feito com mais letras no documento, é indicado
que o pesquisador/historiador que vá fazer a transcrição consiga traçar a anotar
um alfabeto referente ao documento que esteja transcrevendo. Em outras
palavras, é preciso identificar qual traçado corresponde a qual letra, maiúscula
ou minúscula, anotando-se na forma de uma tabela ou similar (Figura 5). Isso é
importante sobretudo se levarmos em conta que uma mesma letra pode ser
grafada de várias maneiras diferentes no mesmo documento (Figura 6).

Figura 5 – Tabela com traçados de várias tipologias de letras de escrita


humanística

Fonte: Sousa, 2012, p. 1.

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Figura 6 – Quatro formas distintas de traçados do d minúsculo em documentos
da Idade Moderna

Fonte: Ackel, 2019, p. 8.

3.2 Abreviaturas pouco usuais na atualidade

Na documentação antiga, é comum que se encontrem abreviaturas com


uma considerável frequência. Podemos nos deparar com algumas ainda usuais,
como Dr. referindo-se a doutor. Contudo, na documentação antiga, existe um
número muito maior delas, e muitas vezes são pouco ou nada usuais na
contemporaneidade.
Uma das mais comuns é a abreviação de dito (d.o), usada para se evitar
repetições de nomes e termos ao longo dos documentos. Também abreviam-se
muitos nomes próprios (Antônio = Ant.o, Manuel = M.el, entre outros), de cidades
(L.xa para Lisboa, Rio de Janr.o para Rio de Janeiro, entre outras), de meses
(10.bro referindo-se ao mês de dezembro, por exemplo) e uma infinidade de
outras.
Diante delas, o pesquisador/historiador deverá, ao longo da transcrição,
habituar-se com as abreviaturas mais recorrentes no documento que estiver
transcrevendo e também nas tipologias documentais mais usuais à sua
pesquisa. Não obstante, poderá recorrer a materiais de suporte, como o
dicionário de abreviaturas de manuscritos em língua portuguesa dos séculos XVI
ao XIX, escrito e organizado por Maria Helena Ochi Flexor (2008), referência nos
estudos sobre abreviações.

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3.3 Arcaísmos e letras ramistas

Como dissemos, a escrita é dinâmica e muda ao longo da História. Dessa


maneira, é de se esperar que grafias e regras gramaticais antigas não sigam a
mesma padronização igual à que temos. É bastante recorrente e causa alguma
estranheza a iniciantes na paleografia, por exemplo, uma inversão (tendo, claro,
nosso uso atual de referência) do sufixo -ão em relação ao -am.
Por exemplo, não será incomum encontrarmos o nome João grafado
como Joam. Isso pode causar alguma confusão relacionada a tempos verbais
das frases. Por exemplo, é possível encontrar em documentos da Idade Moderna
um termo como observaram – que seria para nós o pretérito perfeito – com o
sentido no texto de observarão – que, por sua vez, seria para nós o futuro.
Existe uma diversidade enorme de possíveis arcaísmos. A orientação,
aqui, é se habituar com a leitura de textos da época do documento que estiver
sendo transcrito para se habituar com as recorrências. É importante lembrar que
muitos documentos que transcrevemos foram escritos antes de esforços para
normalização das gramáticas. Além disso, existem características próprias de
documentos conforme o meio em que ele circula (é comum que existam muitos
termos em latim na documentação eclesiástica e jurídica, por exemplo).
O nome exemplificado acima, João, também poderá ser visto escrito como
Ioam, substituindo o J pelo I. Trata-se do fenômeno das letras ramistas, que são
permanências de aspectos do alfabeto e grafias latinas nas línguas modernas
(Araújo, 2007). É comum que o fenômeno aconteça também com as letras U e
V ou I e Y relacionadas ao J. Também aparecem trocas entre B e V (Vahia/Bahia,
Vitarães/Bitarães etc.).

3.3 Algumas técnicas indicadas para lidar com dificuldades na transcrição

Primeiramente, devemos lembrar que as dificuldades acerca da leitura


paleográfica apresentadas acima foram linhas gerais de algumas que são mais
comuns para o pesquisador/historiador. Existem outras, assim como há estudos
que se aprofundam nas características das que foram apresentadas. Por
exemplo, não foi mencionado sobre o que fazer diante de perdas mecânicas ou
deterioração no documento, quando isso dificulta a leitura. Aqui, quando
possível, deve-se tentar identificar o que for possível nos trechos em que o

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documento ainda for legível, ou buscar os recursos adequados de tratamento de
imagem, quando for o caso e houver possibilidade.
Decerto, devemos ter em vista que existem alguns apontamentos a serem
feitos sobre métodos usados para contornar alguns dos problemas
mencionados. Uma primeira técnica recomendável é sempre recorrer a uma
comparação de parciais. A técnica consiste em comparar partes transcritas do
documento com outras ainda não, de maneira que a parte que o
pesquisador/historiador conseguiu transcrever auxilie na transcrição de outra
com a qual tenha mais dificuldade.
Para usar dessa técnica, é imprescindível que uma transcrição não seja
feita letra por letra ou palavra por palavra, embora, como dissemos
anteriormente, identificar esses traçados seja importante. É fundamental abordar
o documento no seu conjunto, em conjuntos de palavras e ajustando as escalas
(no caso, alternando a atenção mais minuciosa em um determinado trecho ou
palavra com outra ampliada em partes maiores do documento), não desistindo
na primeira dificuldade da transcrição, o que possibilita que um trecho transcrito
(e a identificação dos caracteres) sirva de suporte para a transcrição do outro.

TEMA 4 – RECURSOS E SUPORTE PARA A LEITURA PALEOGRÁFICA

Para se contornar as dificuldades apresentadas, é importante que o


pesquisador/historiador que esteja transcrevendo um documento lance mão de
alguns recursos que potencializarão a habilidade paleográfica e pouparão
trabalho. Vamos conhecer alguns.

4.1 Dicionários

Muitas vezes, um pesquisador/historiador consegue transcrever uma


palavra e não tem dúvida alguma sobre aquela transcrição em si. No entanto, o
termo transcrito é uma palavra estranha, com a qual não se tem familiaridade
alguma. Na prática, isso pode ocorrer porque, de fato, determinados termos
podem se perder no tempo, juntamente com os usos e significados que eles
tiveram à mesma época do documento.
Para resolver essa questão, é necessário recorrer a dicionários do período
em que o documento foi escrito. Uma forma de fazer isso, tratando-se de
documentos em língua portuguesa, é a consulta on-line aos dicionários da

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Biblioteca Brasiliana, da Universidade de São Paulo (São Paulo, [S. d.]). Nele, o
usuário pode fazer buscas por vários dicionários dos séculos XVIII e XIX, sendo
possível encontrar em um dicionário específico ou vários ao mesmo tempo.
Outro recurso é o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (DPLP,
2020), que faz buscas por todos os dicionários on-line de termos em língua
portuguesa, podendo indicar a recorrência de algum que o
pesquisador/historiador procure em algum outro documento.
Não obstante, alguns assuntos específicos pedem usos de dicionários
conforme suas especificidades. Dicionários de termos médicos, náuticos,
militares, entre outros, servem de suporte para transcrever alguns documentos
relacionados a esses assuntos. Também é importante ter em mãos algum
dicionário toponímico, ou seja, aquele referente a lugares, os quais, na medida
em que estão afastados historicamente de nós, podem ter mudado seus nomes
ou a grafia dos nomes. Existem vários também disponíveis on-line, de diversas
regiões.

4.2 Programas editores de imagem

Como vimos anteriormente, cada vez mais existem arquivos que


disponibilizam seus acervos on-line. Consequentemente, o
pesquisador/historiados lida cada vez mais com documentação em mídias
digitais. Assim, o uso adequado de programas editores de imagem, dos vários
que existem no mercado (Adobe Photoshop, Pixlr, Photoscape, entre diversos
outros) crescem em importância para quem transcreve documentos. Isso porque
algumas dificuldades poderão ser contornadas com ajustes nas imagens dos
documentos, como alterações de contraste, brilho, foco etc.
Esse tipo de procedimento é ainda mais importante quando tratamos de
documentos cuja digitalização é de baixa qualidade, como é o caso de
documentos fotografados. Essa muitas vezes é a única forma de digitalização
disponível em alguns casos, devido, por exemplo, à falta de recursos de um
arquivo para disponibilizar o documento on-line. Por fim, é importante frisar que
os procedimentos a serem tomados quanto à pouca legibilidade ou dados em
documentos físicos, nos arquivos, precisam ser feitos por profissionais
especializados nessa área.

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TEMA 5 – NORMAS TÉCNICAS PARA A TRANSCRIÇÃO DE DOCUMENTOS

Existe um grupo de normas técnicas de transcrição paleográfica (Brasil,


1993) elaboradas por especialistas na área, visando criar regras que
universalizem as práticas de transcrição de documentos. Elas têm o objetivo de
resolver questões problemáticas da prática de transcrição, como veremos, mas
também a finalidade de possibilitar que um documento transcrito seja acessível
para o maior número possível de pesquisadores. Vejamos a seguir as principais
normas para a transcrição dos manuscritos.

5.1 Grafia

Quanto à grafia seguir-se-ão os seguintes critérios:

• Serão separadas as palavras grafadas unidas indevidamente e serão


unidas as sílabas ou letras grafadas separadamente, mas de forma
indevida. Excetuam-se as uniões dos pronomes proclíticos (madê,
selhedê), mesoclíticos e enclíticos às formas verbais de que dependem
(meteremselhe, procurase).
• As letras serão grafadas na forma usual, independentemente de seu valor
fonético.
• O S caudado duplo será transcrito como SS e o simples como S.
• O R e S maiúsculos, com som de RR e SS serão transcritos R e S
maiúsculos, respectivamente.
• As letras ramistas B, V, U, I e J serão mantidas como no manuscrito.
• Os números romanos serão reproduzidos de acordo com a forma da
época.
• Aos enganos, omissões, repetições e truncamentos, que comprometam a
• Compreensão do texto, recomenda-se o uso da palavra latina entre
colchetes e grifada.
• As abreviaturas não correntes deverão ser desenvolvidas com os
acréscimos em grifo.
• As abreviaturas ainda usuais na atualidade, ou de fácil reconhecimento,
poderão ser mantidas.

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• Os sinais especiais de origem latina e os símbolos e palavras
monogramáticas serão desdobrados, por exemplo, &rª = etc.; ihr =
christus.
• Os sinais de restos de taquigrafia e notas tironianas serão vertidos para a
forma que representam, grifados.
• O sinal de nasalização ou til, quando com valor de M ou N, será mantido.
• Quando a leitura paleográfica de uma palavra for duvidosa, colocar-se-á
uma interrogação entre colchetes depois dela: [?].
• A acentuação será conforme o original.
• A pontuação original será mantida.
• As maiúsculas e minúsculas serão mantidas.
• A ortografia será mantida na íntegra, não se efetuando nenhuma correção
gramatical.

5.2 Convenções

Para indicar acidentes no manuscrito original, como escrita ilegível ou


danificada, serão utilizadas as seguintes convenções:

• As palavras que se apresentam parcial ou totalmente ilegíveis, mas cujo


sentido textual permita a sua reconstituição, serão impressas entre
colchetes.
• As palavras ilegíveis para o transcritor serão indicadas com a palavra
ilegível entre colchetes e grifada: [ilegível].
• As linhas ou palavras danificadas por corrosão de tinta, umidade,
rasgaduras ou corroídas por insetos ou animais serão indicadas, por
exemplo, pela expressão corroído entre colchetes e grifada e com a
menção aproximada de seu número: [corroídas ± 6 linhas].
• Os elementos textuais interlineares ou marginais autógrafos que
completam o escrito serão inseridos no texto entre os sinais <...>.
• Quando não forem autógrafos, serão indicados em nota de rodapé.
• As notas marginais, não inseríveis no texto, serão mantidas em seu lugar
ou em sequência ao texto principal com a indicação: à margem direita ou
à margem esquerda.
• As notas de mão alheiam serão transcritas em rodapé.

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5.3 Referências

Para as referências, seguem-se os seguintes critérios:

• Recomenda-se o uso de um sumário, antecedendo cada texto, composto


de datação e resumo do conteúdo.
• Será sempre indicada a notação ou cota do documento para fins de
localização no acervo da instituição.
• Sempre se indicará se o documento é original, apógrafo, 2ª via etc.

5.4 Apresentação gráfica

A apresentação gráfica segue o seguinte critério:

• A transcrição dos documentos poderá ser linha por linha ou de forma


corrida.
• Será respeitada a divisão paragráfica do original.
• As páginas serão numeradas de acordo com o documento original,
indicando sempre a mudança de cada uma, entre colchetes e no meio do
texto, incluindo-se o verso: [fl. 3], [fl. 3v].
• Se o original não for numerado caberá ao transcritor numerá-las. Os
números acrescentados serão impressos entre colchetes e em grifo: [fl.
4], [fl. 4v].
• As folhas em branco serão indicadas entre colchetes e em grifo: [fl. 13,
em branco].

NA PRÁTICA

A melhor maneira de fixar todos os fundamentos da paleografia é com a


prática. No caso, transcrevendo documentos. A página do Laboratório de
Estudos Filológicos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
(disponível em: <https://www.facebook.com/labefil/>) oferece um desafio
mensal, encontrado com a hashtag #oqueestáescritoaqui. A página posta um
trecho de um documento e desafia os usuários a transcreverem e,
posteriormente, compararem seus resultados com a transcrição disponibilizada.
Outra indicação é o acompanhamento das atividades da Oficina de
Paleografia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) (disponível em:

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<https://www.facebook.com/oficinadepaleografia>), que, além de atividades,
disponibiliza materiais de suporte.

FINALIZANDO

Vimos que existe uma necessidade considerável de se sistematizar


técnicas para se ler os documentos antigos. Sem elas, o acesso às informações
de documentos anteriores ao nosso contexto se tornaria ainda mais precário.
Para isso, existe a Paleografia, desenvolvida pelo compartilhamento de
experiências práticas e reflexões científicas em diversas áreas do conhecimento.

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REFERÊNCIAS

ACKEL, A. Estudo paleográfico de manuscrito do século XVII. Todas as Letras:


Revista de Língua e Literatura, v. 21, n. 3, p. 1-23, 2019.

ANDRADE, M. C. J. Paleografia documentação e metodologia histórica. São


Paulo: Humanitas, 2010.

ANDRADE, M. R. de et al. A Oficina de Paleografia – UFMG: a construção de


uma experiência discente. Cadernos de Paleografia, Belo Horizonte, n. 1, p.
21-38, 2014.

ARAÚJO, P. H. L. As letras ramistas em dois roteiros de viagem do século


XVIII. 2017. Dissertação (Mestrado em Letras) – Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Arquivo Nacional. Normas


técnicas para transcrição e edição de documentos manuscritos. Disponível
em: <HTTP://WWW.ARQUIVONACIONAL.GOV.BR/BR/>. Acesso em 17 jun.
2020.

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<https://www.britannica.com/art/Carolingian-minuscule>. Acesso em: 19 jul.
2020.

CODEX Argenteus. Frontispício. Uppsala University. Disponível em:


<https://ub.uu.se/about-the-library/exhibitions/codex-argenteus/>. Acesso em:
19 jul. 2020.

DICIONÁRIO Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em:


<https://dicionario.priberam.org/>. Acesso em: 19 jul. 2020.

FISHER, S. R. História da escrita. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

LEAL, J. E. F. Noções de paleografia e de diplomática. Santa Maria: Editora


UFSM, 2016.

PAULO, J. F. Da escrita gótica à humanística na documentação da Câmara de


Lisboa: Em torno da escrivaninha municipal quinhentista. Cadernos do Arquivo
Municipal, série 2, n. 8, p. 119-158, 2017.

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FLEXOR, M. H. O. Abreviaturas: manuscritos dos séculos XVI ao XIX. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 2008.

SÃO PAULO. Dicionários. São Paulo: Biblioteca Brasiliana e Guita José


Mindlin, [S. d.]. Disponível em: <https://www.bbm.usp.br/pt-br/dicionarios/>.
Acesso em: 19 jul. 2020.

SOUSA, M. C. P. de. Noções de Paleografia: Material de apoio. São Paulo:


USP, 2012.

VICENTINO, L. La operina da imparare di scrivere littera cancellarescha:


manual de caligrafia. Washington: Library of Congress,1522.

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