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Artigos de Divulgação

LINGÜÍSTICA E GRAMÁTICA

Embora a lingüística seja uma ciência com mais de cento e cinqüenta anos de idade, ela é ainda pouco
conhecida, não só pelo público leigo, mas também por boa parte do meio acadêmico. Muitos
confundem a lingüística com a gramática, por acharem que ambas tratam do mesmo objeto: a língua.
Outros, adeptos da gramática tradicional, muito mais antiga que a lingüística, vêem nesta última uma
ameaça à “pureza da língua”, por ser, segundo eles, uma disciplina por demais permissiva e tolerante
com os “erros gramaticais dos falantes incultos”. Isso tudo demonstra que ainda hoje a lingüística vive
cercada por uma aura de desconhecimento e preconceito, fruto, sem dúvida, da ignorância geral sobre
o assunto. Por isso, é oportuno falarmos um pouco sobre lingüística e sobre gramática.

A gramática, tal qual a conhecemos hoje, foi criada no século IV a.C. pelos sábios gregos de
Alexandria, obrigados a trabalhar para o engrandecimento do império do general macedônio Alexandre,
o Grande, ao qual a própria Grécia estava sujeita. Saudosos dos tempos em que Atenas era uma
cidade livre e berço de grandes filósofos, poetas, escritores e artistas, os sábios de Alexandria
formularam a hipótese segundo a qual as línguas, assim como os impérios, conhecem três fases em
seu desenvolvimento: um período de formação, em que a língua, ainda pobre e rude, é falada por
pastores e camponeses, quando surgem os primeiros autores; um período em que a língua se encontra
em seu apogeu, revelando seus grandes autores, que, por isso mesmo, são chamados de clássicos; e
um período de decadência, em que a língua começa a se degenerar, e a produção literária cai
sensivelmente de qualidade. Em resumo, toda língua de cultura passaria por três estágios: arcaico,
clássico e tardio. Não por acaso, o período clássico da língua coincidiria com a fase de apogeu político
e econômico do Estado em que é falada. Essa concepção levou os sábios alexandrinos a elegerem o
grego do século V a.C., auge do poderio político e econômico de Atenas, como o modelo de língua a
ser seguido. Nessa perspectiva, a gramática foi definida como “a arte de escrever com correção e
elegância” e tinha um caráter eminentemente normativo, isto é, era um conjunto de regras a ser
seguidas por todos aqueles que pretendessem escrever bem. Essas regras eram estabelecidas tendo
por critério o uso que os grandes autores — isto é, os “clássicos” — fizeram da língua. No entanto, para
estabelecer essas regras, os gramáticos precisavam primeiro certificar­se de quais versões de um
mesmo texto clássico iriam utilizar. Como as obras clássicas estavam afastadas no tempo às vezes
vários séculos, era comum que houvesse diversas variantes de um mesmo texto, bem como muitas
passagens de uma determinada obra haviam se tornado obscuras, devido à mudança da língua com o
tempo. Para estabelecer a forma mais fidedigna e próxima ao original de uma obra antiga, bem como
para esclarecer o significado de suas passagens mais obscuras, é que os sábios de Alexandria criaram
também uma outra disciplina, chamada filologia. Só que, para estabelecer qual dentre as muitas
versões de uma obra era a mais confiável, os filólogos se valiam das regras da gramática, já que, por
definição, os grandes escritores escrevem bem e não cometem erros de gramática (!). Portanto, as
regras da gramática eram estabelecidas com base nos dados fornecidos pela filologia, e a
reconstituição das obras literárias feita pelos filólogos dependia das regras da gramática… Como se
pode ver, a gramática normativa e a filologia estabeleciam entre si um círculo vicioso interminável.

Com o passar do tempo, a gramática fixou­se como a disciplina que determina quais formas da língua
são corretas e quais não, sempre, é claro, do ponto de vista da linguagem tal qual é usada pelos
falantes eruditos. Assim, na França do século XVII, a gramática assumiu o status de lei, e um famoso
gramático da época chamado Vaugelas chegou a exercer uma verdadeira ditadura sobre os hábitos dos
falantes. Por isso mesmo, a língua literária era muito diferente daquela que as pessoas falavam no seu
dia­a­dia, e havia uma verdadeira obsessão pela imitação das formas e das construções latinas. O
resultado disso é que a língua literária, regida pela gramática normativa, era sensivelmente mais
complicada que a língua coloquial, e, na verdade, muitas simplificações gramaticais que caracterizam o
francês atual são oriundas da fala popular.

Como o século XVII representou para muitos países europeus, inclusive para Portugal, o momento da
consolidação definitiva da língua nacional, foi justamente nessa época que começaram a ser
publicadas as primeiras gramáticas das línguas nacionais (até então somente o grego e o latim eram
consideradas línguas dignas de terem suas regras codificadas e compiladas em livros). Se hoje a
gramática da língua portuguesa recomenda ou até impõe certas construções (como fá­lo­ei ou dir­lho­
ás, por exemplo) que o povo em geral absolutamente não usa, é em grande parte porque nossa
gramática ainda se baseia no uso lingüístico do século XVII. Por sua própria natureza, a gramática é
uma disciplina normativa, isto é, que impõe regras e determina como se deve ou não falar ou escrever.
Nesse sentido, ela não é uma ciência, pois não é sua função estudar e descrever a língua em si, tal
qual ela é falada, mas sim estabelecer, segundo critérios às vezes bastante arbitrários, como os
falantes cultos devem falar ou escrever.

Por outro lado, a lingüística é uma ciência, surgida entre fins do século XVIII e princípios do XIX, cujo
objeto de estudo é a linguagem verbal, isto é, a língua. Enquanto ciência, a lingüística não se interessa
pelo que a língua deve ser, mas sim pelo que ela efetivamente é; ela, portanto, não estabelece juízos
de valor a respeito da língua, mas sim juízos de fato: sua postura é descritiva e não prescritiva. Devido
ao seu caráter científico, a lingüística não recomenda nem proíbe este ou aquele uso da língua. Dado
um fenômeno qualquer pertencente à esfera da linguagem, cabe à lingüística, num primeiro momento,
descrever tal fenômeno, e, num segundo momento, tentar explicá­lo, isto é, pesquisar as causas desse
fenômeno com base na observação, na experimentação e na aplicação do raciocínio lógico. Sua
abordagem deve ser neutra, objetiva e imparcial, como convém a toda ciência que se preze (embora os
espíritos mais esclarecidos saibam que neutralidade, objetividade e imparcialidade absolutas são metas
impossíveis de ser atingidas, seja pela ciência ou por qualquer outra atividade humana, mas essa é
uma questão extremamente complexa e vasta, que não discutirei aqui).

Por outro lado, sabemos que as sociedades ditas civilizadas são bastante complexas e heterogêneas,
isto é, dividem­se em inúmeros grupos sociais, cada um com sua cultura, seu modo de vida e sua
norma de linguagem próprios. Assim, para que haja intercomunicação entre esses grupos, é preciso
que haja um padrão de linguagem comum a todos eles, padrão que chamamos de norma culta. Essa
norma é a que se usa, por exemplo, nos meios de comunicação de massa (jornais, revistas, rádio, TV),
e é por isso que todas as pessoas, em todas as regiões do país, pertencentes aos mais diversos
grupos sociais, conseguem ler livros ou assistir televisão e entender o que estão lendo ou ouvindo.
Sem a norma culta, não haveria intercomunicação e, conseqüentemente, relacionamento social entre
os diversos grupos que compõem a sociedade, o que levaria à própria desintegração dessa sociedade.
Portanto, para que seja possível a interação lingüística entre esses grupos, é preciso que a norma culta
seja uniforme, isto é, seja a mesma para todos os grupos. Para tanto, ela precisa ser rigorosamente
controlada, regulamentada, normativizada. É justamente essa a tarefa da gramática: normativizar a
língua, exercer esse controle que garante a uniformidade da norma culta. É nesse sentido que se pode
dizer que a gramática, ao contrário da lingüística, é uma disciplina prescritiva. Entretanto, não há
necessariamente conflito entre a lingüística e a gramática, há antes interação entre as duas, pois um
fato lingüístico de uso generalizado pelos falantes de uma língua, e que, como tal, é objeto de estudo
da lingüística, acaba mais cedo ou mais tarde tendo seu uso prescrito pela gramática; por outro lado,
aquilo que a gramática impõe como de uso obrigatório passa a ser em geral aceito e utilizado pelos
falantes, tornando­se, pois, objeto da descrição lingüística. Assim, a lingüística e a gramática são na
verdade disciplinas distintas porém intimamente relacionadas, cada uma com seu papel plenamente
definido, e nenhuma das duas interfere no campo de ação da outra. Não há, portanto, razão alguma
para conflito, como pensam alguns.

Quanto à lingüística, ela não é essa disciplina permissiva que “defende os erros gramaticais”, como
diziam os gramáticos mais tradicionalistas. Nenhum lingüista, em sã consciência, propugnaria o uso de
palavras e expressões erradas — do ponto de vista da gramática normativa, bem entendido — na
imprensa ou em textos formais em geral. Mas a lingüística parte do princípio de que a norma culta,
embora seja importantíssima, não é o único padrão lingüístico existente, e na verdade a maior parte da
população se comunica a maior parte do tempo em outras normas que não a norma culta. (Pense, por
exemplo, que se você usar a norma culta, com todas as suas regras rígidas, para falar com o
pipoqueiro ou com o varredor de ruas, eles provavelmente não o entenderão, ou, no mínimo, pensarão
que você está querendo “botar banca” para cima deles.) Por isso, é preciso que exista uma ciência que
estude a “língua real” e não apenas a “língua oficial”, caso contrário, estaríamos nos recusando a
conhecer e a entender nossa própria realidade lingüística e social. Além disso, o chamado “erro”
gramatical é, na verdade, a prova da evolução da língua: foi graças aos “erros” gramaticais e de
pronúncia cometidos pelo povo romano ao longo dos séculos que o latim se transformou no que hoje é
o português, o espanhol, o francês, o italiano, etc. Assim, o estudo da linguagem popular nos ajuda a
compreender a própria evolução das línguas com o tempo.

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