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Leitura obrigatória: Capítulo 1 completo

PRAGMÁTICA
para o ensino superior

Tommaso Raso

1. Competências introdutórias

1.1. Objeto de estudo da disciplina

1.1.1. Pragmática e Semântica

Podemos dizer inicialmente que a Pragmática é o estudo do significado linguístico em


contexto, ou seja, visando a sua intenção comunicativa em uma determinada circunstância
concreta; portanto, se distingue da Semântica, entendida como o estudo do significado
com base nas relações entre os elementos linguísticos (o código, o sistema linguístico em
si). Antigamente se olhava para a Pragmática como uma área que se ocupava de alguns
poucos aspectos que não eram explicáveis através da composicionalidade e da
combinatoriedade dos signos linguísticos.

De fato, o significado de um enunciado pode ser analisado a partir do significado das


palavras e da observação de como elas se compõem para se chegar ao significado do
enunciado, utilizando as regras combinatórias da sintaxe. Trata-se de um princípio
fundamental para se explicar a produtividade da linguagem, ou seja, a capacidade que
temos de produzir e compreender um número potencialmente infinito de enunciados a
partir de um número finito de elementos linguísticos (os morfemas).

Mas a partir das observações dos filósofos da linguagem ordinária, tem-se observado que
o espaço que esse procedimento deixa por explicar é muito grande, e, como veremos, até
permite teorias que recusam a utilidade de se postular um significado proposicional do
código para alcançar o significado final, ou seja, aquilo que o falante quer comunicar e
que o ouvinte procura reconstruir utilizando diversas pistas.

1.1.2. A proposição, as condições de verdade a o significado convencional

Por proposição, entendemos aqui uma expressão que tem forma linguística sobre a qual
faz sentido se perguntar se é verdadeira ou falsa e que possa constituir a premissa ou a
conclusão de um raciocínio. As condições de verdade são as circunstâncias que devem
ocorrer em um dado mundo (real ou imaginário) para se poder dizer que uma asserção é
verdadeira ou que é falsa. Por exemplo, o enunciado Carlos comeu arroz com feijão será
verdadeiro se Carlos (que deve ser identificado com um indivíduo específico)
efetivamente comeu (em um tempo que também deve ser identificado) arroz com feijão.
Na lógica clássica, se distinguem apenas dois valores de verdade: o verdadeiro e o falso.
Esses são, portanto, os dois valores possíveis que podem ser atribuídos a uma proposição.
A proposição e a sentença são conceitos diferentes, mesmo se correlacionados. Apesar de
ter forma linguística, de modo que possa ser julgada, a proposição não deve ser entendida
como uma estrutura linguística específica e pode ser concebida em termos de estados
mentais, com um grau de abstração maior. Uma sentença como

(1) Eu acho que você deve admitir que ele tem razão quanto a este ponto

pode expressar infinitas proposições, dependendo do valor que atribuímos às expressões


eu, você, ele e este (veja-se o cap. 3).

Por outro lado, diferentes sentenças podem expressar a mesma proposição como nos
exemplos seguintes (veja-se 8.2.1):

(2a) O aluno saiu da sala.


(2b) Foi o aluno quem saiu da sala.
(2c) Acho que o aluno saiu da sala.
(2d) Será que o aluno saiu da sala?!
(2e) Informo que o aluno saiu da sala.

As cinco sentenças em (2) realizam a mesma proposição, ou seja, possuem o mesmo


conteúdo proposicional, que diz que um determinado agente (o aluno) realizou uma
determinada ação (aquela de sair) com relação a um determinado local (a sala). O que
muda em (2a-e) não é o conteúdo proposicional, mas diferentes maneiras de apresentá-lo
ou utilizá-lo, como mostraremos ao longo deste livro.

A expressão semântica deve ser melhor compreendida. Com essa palavra podemos fazer
referência a dois aspectos diferentes do significado: (i) as condições de verdade de uma
proposição e a contribuição que cada expressão fornece para estabelecer essas condições
de verdade; e (ii) o significado convencional de uma expressão linguística.

Esses dois aspectos podem ser separados. Em uma sentença como

(3) O pangaré parou de andar

a expressão pangaré fornece a mesma contribuição às condições de verdade da


proposição do que a expressão cavalo. Contudo, a expressão pangaré veicula também o
entendimento de que o falante considera o referente como um cavalo ordinário ou inútil.
Esse entendimento não é parte das condições de verdade da proposição, mas está colado,
convencionalmente, na própria forma da expressão pangaré. O mesmo referente pode ser
chamado de cavalo por um falante e de pangaré por outro falante (veja 2.3.3), sem que a
contribuição às condições de verdade mude, já que o referente é o mesmo. Não se diz
nada sobre o referente em si, mas apenas sobre o ponto de vista do falante com relação a
ele.

Se nós negamos (3) em


(3a) O pangaré não parou de andar

mudamos as condições de verdade da proposição, já que (3a) apresenta condições de


verdade opostas àquelas de (3). Contudo, tanto (3) quanto (3a) veiculam implicitamente
a informação de que antes o pangaré andava (veja 5 para esse tipo de informação
veiculada implicitamente e chamada pressuposição). Como é possível que duas
proposições com condições de verdade opostas veiculem uma mesma informação? Neste
caso, isso é possível porque à forma da expressão parar de está convencionalmente colada
a informação de que antes a ação que foi parada estava acontecendo. Essa informação não
faz parte das condições de verdade (tanto é que mudando essas condições a informação
se mantém), mas está colada na expressão parar de.

Tanto no caso de pangaré, quanto no caso de parar de, estamos lidando com um aspecto
do significado que não pode ser explicado em termos de contribuição às condições de
verdade, mas que deve ser considerado como convencionalizado, ou seja, colado em uma
determinada expressão, independentemente da sua contribuição às condições de verdade
da proposição. Em ambos os casos podemos falar de significado semântico, seja se
estivermos nos referindo à contribuição às condições de verdade por parte de uma
determinada expressão, seja se estivermos nos referindo ao que está convencionalmente
colado nessa expressão. Contudo, é importante distinguir estes dois sentidos diferentes
do conceito de semântica.

No entanto, frequentemente a proposição veiculada pelos elementos do código (através


da composicionalidade e da combinatoriedade) não é a mesma veiculada
comunicativamente. Isso significa ou que elementos advindos do contexto decidem sobre
a verdade ou falsidade da proposição expressa por uma sentença (ou sobre o tipo de
contribuição às condições de verdade dela que cada expressão fornece), ou, pelo menos,
que, depois de uma análise do significado nos termos do código, é necessário integrá-la
com elementos de natureza extralinguística para se chegar no que o falante quer realmente
dizer utilizando certas expressões. Um exemplo disso é o caso de (4) no início da seção
seguinte.

Veremos que há várias posições com relação à necessidade de um nível de análise


proposicional que cognitivamente anteceda o nível pragmático da compreensão do
significado final. Nas últimas décadas tem se insistido e argumentado muito sobre a
subdeterminação (insuficiência) do significado semântico, tanto em seu sentido de
significado convencional, quanto, principalmente, em seu sentido de contribuição às
condições de verdade. Isso quer dizer que o significado semântico das expressões
linguísticas subdetermina (ou seja, não dá conta de) a proposição expressa pelo
enunciado. A consequência disso é que o componente pragmático, ou seja, o componente
que interage com o que está fora do código linguístico, entraria em ação antes de se
interpretar a proposição inteira. A própria decisão sobre qual é a contribuição às
condições de verdade que cada palavra fornece seria devida a princípios de ordem
pragmática não explicáveis apenas com as propriedades do código.

Discutiremos isso em vários pontos deste livro, mas especialmente no cap. 6.


1.1.2. A linguagem como ação

No termo pragmática se reconhece a raiz grega pragma, que significa ação. Como todas
as correntes que nascem dentro do pragmatismo filosófico, a Pragmática estuda a ação
humana e, no caso da Pragmática linguística, a ação por meio da linguagem. O que nós
fazemos quando falamos ou, mais extensivamente, quando comunicamos? Essa é a
pergunta de base da Pragmática.

Nós de fato conseguimos decodificar se com o enunciado

(4) Vai tomar banho

o falante quer dar uma resposta, por exemplo à pergunta Para onde ele vai?, ou se está
dando uma ordem para alguém, ou se está expressando surpresa, pois todos sabem que
no lugar não tem água quente e o tempo está especialmente frio; ou ainda entendemos se
o falante está dirigindo ao interlocutor uma construção idiomática que caracteriza, neste
caso, um comentário irônico (ou irritado) sobre algo que o interlocutor falou ou fez.

Observe-se que é essa decisão que nos faz interpretar vai como presente do indicativo na
terceira pessoa com sujeito não expresso lexicalmente, ou como uma segunda pessoa do
imperativo; é essa decisão que nos faz entender o enunciado composicionalmente ou
idiomaticamente. Portanto, é só depois de ter tomado uma decisão de natureza acional,
que decidimos a semântica, a sintaxe e a morfologia. Nós somos inclusive capazes de
entender se a ação está sendo realizada com agressividade ou com humor e com tom
brincalhão, ou com atitudes diferentes. E isso é independente da sequência de palavras
pronunciadas.

Tudo isso significa que algo nos induz, a partir da mesma sequência sintático-semântica,
a gerar na nossa mente significados muito diferentes. O significado semântico pode ser o
mesmo, mas o significado pragmático não; pelo contrário, ele pode ser muito diferente
em cada realização concreta e até o oposto do significado semântico, como no caso da
ironia. Podemos dizer que a Semântica estuda o significado do código linguístico,
independentemente de como esse código é usado em um contexto específico, enquanto a
Pragmática, ao contrário, estuda como o código linguístico interage com a situação (ou
seja, o contexto extralinguístico), como o código interage com o contexto linguístico
(chamado também de cotexto), e ainda como interage com os conhecimentos que
compartilhamos com nossos interlocutores (chamados de common ground).

Essa interação gera o que é chamado significado do falante em contraposição ao


significado do código, ou seja, o significado do que é dito. O significado do falante
corresponde à ação comunicativa que um determinado falante veicula, em um contexto
específico, ao proferir uma sequência linguística. É o reconhecimento dessa ação que nos
permite chegar ao significado pragmático, que é o que importa na comunicação, pois
corresponde à intenção do falante.
Isso pressupõe que a linguagem seja uma capacidade de natureza acional, através da qual
podemos agir, podemos nos comportar para fazer coisas muito diferentes no mundo. Se
refletirmos bem, as ações não são algo alternativo à linguagem: temos ações
inerentemente não linguísticas, como correr ou mudar uma mesa de posição; ações de
natureza inerentemente linguística, como fazer uma pergunta, sugerir algo ou contar uma
história; e temos ações que podem ser realizadas linguisticamente ou sem o uso da
linguagem, como cumprimentar alguém ou oferecer algo.

Isso se falamos de linguagem no sentido técnico, e não em sentido metafórico, como


quando falamos de linguagem da arte, ou de linguagem da roupa. É verdade que podemos
comunicar com a nossa arte e a nossa roupa, mas a comunicação linguística no sentido
próprio é algo mais específico. As outras espécies também possuem a capacidade de
comunicar, de maneira mais ou menos complexa; mas somente a espécie humana possui
a linguagem no sentido técnico que estamos usando aqui, como código simbólico que
apresenta dupla articulação e outras características únicas, algumas das quais serão
exploradas neste livro. A dupla articulação, constituída pelo nível dos significados (os
morfemas) e pelo restrito número de elementos que servem para criar infinitos
significados (os fonemas), é uma propriedade que apenas as línguas naturais possuem.

Fundamental para definir a Pragmática é a relação da língua com o mundo em que ela é
usada. Emergem, portanto, como fatores decisivos o conceito de uso da língua, o conceito
de relação da língua com as pessoas, os lugares, o tempo, os objetivos com que ela é
usada, que podem ser reconduzidos ao conceito de intencionalidade.

Simplificando, podemos definir a Pragmática como o estudo de como a língua é usada


como forma de comportamento em um determinado contexto. É evidente, então, que o
âmbito de estudo da pragmática é muito grande, e é por isso que é difícil defini-lo.

O contexto pode se referir ao tipo de atividade realizada durante a interação (variação


diafásica). O tipo de ação, linguística e não linguística, que realizamos dependendo do
que estamos fazendo condiciona fortemente a pressão do contexto sobre o uso linguístico:
ensinar algo, brigar com alguém, jogar futebol ou nos engajar em outras tarefas. O tipo
de comportamento é induzido pela situação. O contexto pode também se referir ao tipo
de cultura, ao nível social ou às outras características pessoais dos falantes (variação
diastrática); ou ainda ao meio através do qual a comunicação acontece (variação
diamésica). Podemos comunicar face-a-face, por telefone, usando o computador, a
televisão, o rádio ou outros meios. Isso tem impacto nos vínculos contextuais.

Além disso, a Pragmática pode ser aplicada a todos os níveis descritivos da linguagem,
enquanto cada um dele colabora para a construção do significado no uso real. Nesse
sentido, a Pragmática se configura mais como uma perspectiva de estudos aplicada a
qualquer nível descritivo, do significado às escolhas morfossintáticas, informacionais e
fonético-fonológicas, principalmente (mas não só) no âmbito prosódico. A disciplina,
como vimos, estuda também os processos cognitivos e neurológicos que governam a
elaboração do significado comunicativo.
A pragmática linguística possui suas raízes na "filosofia da linguagem ordinária" ou
“filosofia da linguagem comum” (ordinary language philosophy), influenciada pelo
trabalho da segunda fase de Wittgenstein, em polêmica com a "filosofia da linguagem
ideal". Para entender melhor a diferença entre a maneira de olhar para a linguagem nessas
duas escolas, e para nos prepararmos a enfrentar os temas em discussão neste volume, é
útil entender primeiro diferentes formas de raciocínio.

1.2. Raciocínio lógico, raciocínio indutivo, raciocínio abdutivo e raciocínio por


default.

O raciocínio humano, ou seja, os procedimentos que utilizamos para argumentar, pode


ser de natureza lógico-dedutiva ou empírico-probabilística (que pode assumir diversas
formas). Se trata de procedimentos de natureza inferencial. Uma inferência é uma
sequência finita (pequena ou grande) de proposições que podem ser avaliadas como
verdadeiras ou falsas, e cuja última é a conclusão obtida a partir de todas as anteriores,
que são chamadas de premissas. O objetivo de uma inferência é adquirir um
conhecimento novo, que está expresso na conclusão, assumindo como dadas as
informações expressas nas premissas.

Uma maneira de explicar a diferença entre esses dois grandes tipos de raciocínio (o
lógico-dedutivo e o empírico-probabilístico) é dizer que o raciocínio lógico-dedutivo
parte do geral para chegar ao particular, enquanto o raciocínio empírico parte do particular
para chegar ao geral. Mas o que isso significa?

O raciocínio lógico-dedutivo é construído a partir de uma ou mais premissas que não são
obrigatoriamente fruto de observação e, portanto, não são necessariamente verdadeiras,
mas, por alguma razão, são consideradas válidas a priori, ou seja, são postuladas. Se
essas premissas são verdadeiras e o procedimento lógico é aplicado corretamente, então
as consequências do raciocínio são necessariamente verdadeiras. O raciocínio lógico,
partindo de premissas não demonstradas, mas aceitas, chega a conclusões cem por cento
válidas, mas que serão verdadeiras somente se as premissas forem verdadeiras (veja-se o
site@ no ponto 2 dos aprofundamentos ao cap. 1, para entender mais a fundo a estrutura
de um raciocínio lógico).

O raciocínio empírico-probabilístico parte da observação, ou seja, da experiência com


dados observáveis, e a partir disso extrai generalizações que têm maior ou menor
probabilidade de serem verdadeiras. Neste caso, as premissas são sempre fruto de
observação, e, portanto, em princípio, verdadeiras. Mas, como a nossa experiência é
limitada, e é sempre possível encontrar novos dados, as conclusões são de natureza
probabilística.

Exemplos de raciocínio lógico-dedutivo são os seguintes:

(5) Premissa 1: Sócrates é um homem


Premissa 2: Todos os homens são mortais
Consequência: Sócrates é mortal

(6) Premissa 1: Kino é um macaco


Premissa 2: Todos os macacos gostam de TV
Consequência: Kino gosta de TV

(7) Premissa 1: Todos os alunos da UFMG querem aprender.


Premissa 2: Estes alunos são da UFMG.
Consequência: Todos estes alunos querem aprender.

Observe-se que as premissas não são fruto de observação, mas são postuladas; se
aceitamos essas premissas, nós podemos colocar quantas outras premissas novas
quisermos sem conseguir tornar falsa a consequência. Outras premissas não teriam
nenhum efeito para modificar a conclusão. Isso significa que, se as premissas são
verdadeiras, a consequência (ou conclusão) é necessariamente verdadeira, pois não pode
ser destruída com novas premissas. Nos três exemplos acima o procedimento lógico é
igualmente apropriado, mas as premissas do primeiro caso parecem verdadeiras (tomando
como base o nosso conhecimento de mundo), e não temos dificuldade em aceitar como
verdadeira a conclusão; no segundo caso, ao contrário, pelo menos a segunda premissa
não parece verdadeira. A veracidade das premissas distingue uma conclusão verdadeira
de uma conclusão que é simplesmente válida, ou seja, que respeita o método lógico, mas
é baseada em uma ou mais premissas falsas. Nos exemplos acima, assim como será feito
nos exemplos dos outros tipos de raciocínio, estão presentes duas premissas; contudo um
raciocínio qualquer pode ser baseado em uma única premissa como em mais do que duas.

Um exemplo de raciocínio lógico na linguagem é o acarretamento. Por exemplo, se for


verdadeira a premissa

(8) João matou Pedro

então é necessariamente verdade que Pedro morreu. Seria uma contradição dizer

(9) *João matou Pedro, mas Pedro não morreu.

Uma contradição é um conjunto de afirmações que não podem ser verdadeiras ao mesmo
tempo em um mesmo mundo. O asterisco, presente em (9) e em outros exemplos do livro,
indica que o enunciado é não gramatical (pode indicar também que uma forma não é
atestada).

Uma característica do raciocínio lógico é que as condições de verdade da conclusão (ou


consequência) já estão presentes, implicitamente, nas premissas. Repetimos que as
condições de verdade são as circunstâncias que devem ocorrer em um dado mundo (real
ou imaginário) para poder dizer que uma asserção é verdadeira. As abordagens mais
formais fundam o conceito de significado sobre a capacidade de reconhecer quais
condições devem se verificar para que uma determinada proposição seja verdadeira. Para
elas, se sabemos reconhecer essas condições, podemos dizer que conhecemos o
significado de uma expressão linguística. No raciocínio lógico, o que a conclusão faz é
apenas tornar explícitas as condições de verdade que já estão implícitas nas premissas.
De fato, dizer (7) corresponde a dizer

(10) João causou a morte de Pedro.

Portanto, o fato de que Pedro morreu está já presente em (8). De fato, reconhecer o
significado de (8) significa saber que entre as condições para que (8) seja verdadeira deve
ser incluída a verdade de (10), e, em particular, deve ser incluída a verdade de que Pedro
morreu. Isso distingue o fenômeno do acarretamento lógico do fenômeno da
pressuposição. Um exemplo de pressuposição é

(11) João parou de fumar.

A partir desta afirmação pode-se inferir que João fumava. E essa conclusão parece
necessária. Contudo, qualquer coisa que João tenha parado de fazer (João parou de beber,
João parou de trabalhar, João parou de Xar – sendo X a base de um qualquer verbo.)
pressupõe que João antes fazia aquela coisa (bebia, trabalhava, Xava.). Isso mostra que a
pressuposição depende de uma forma linguística (seja uma estrutura morfossintática, seja
um elemento lexical), que, neste caso, é a expressão parou de, e não das condições de
verdade veiculadas pela(s) premissa(s).

Uma demonstração disso é que se nós negamos uma expressão como (7) com

(12) João não matou Pedro

ou seja, se mudamos as condições de verdade de (8), a conclusão é destruída. Se João


não matou Pedro, não temos nenhum elemento para concluir que Pedro morreu.
Naturalmente Pedro pode ter morrido por outras razões, mas isso não decorre da premissa
(12).

Ao contrário, se nós negamos (11) com

(12) João não parou de fumar

a inferência de que João fumava continua sendo pressuposta. Isso mostra que a
pressuposição está colada na forma linguística (neste caso parou de) e não depende das
condições de verdade. Se ela resiste à negação, quer dizer que resiste a condições de
verdade opostas. Não podemos dizer que as condições de verdade de João fumava, ou
João bebia ou João Xava, estão implícitas em João não parou de Xar.

Vejamos agora um exemplo de raciocínio indutivo, um tipo de raciocínio empírico-


probabilístico.

(13) Premissa 1: Observei 1.000 homens.


Premissa 2: Todos eles tinham 5 dedos em cada mão.
Consequência: Todos os homens têm 5 dedos em cada mão.

Nesse caso, as premissas são fruto de experiência, são concretamente observáveis e,


portanto, não são postuladas. Elas permanecem verdadeiras independentemente da
verdade da conclusão. Contudo, a consequência ou conclusão não será nunca necessária
(nem mesmo se a conclusão do exemplo for tirada a partir de um número muito maior de
dados observados), mas sempre mais ou menos provável. De fato (independentemente de
quantos são os homens observados) será sempre possível colocar uma nova premissa que
torne falsa a consequência, como

(14) Premissa 3: o homem 1001 tinha 6 dedos em cada mão.

Um outro exemplo de raciocínio indutivo pode ser construído mudando a ordem das
proposições que constituem o raciocínio lógico em (7):

(15) Premissa 1: Todos estes alunos querem aprender.


Premissa 2: Todos estes alunos são da UFMG.
Consequência: Todos os alunos da UFMG querem aprender.

A conclusão pode ser destruída acrescentando uma nova premissa:

(16) Premissa 3: aquele outro aluno também é da UFMG e não quer aprender.

Um outro tipo de raciocínio probabilístico, mas de natureza diferente daquele indutivo, é


o raciocínio abdutivo. Um exemplo é o seguinte diálogo entre A e B, que constitui as
premissas:

(17) A: Quem vai cozinhar hoje à noite? (ou, se preferirem a forma declarativa:
A pergunta para B quem vai cozinhar hoje à noite).
B: Eu estou cansada! (B responde que está cansada).
Conclusão: B não vai cozinhar hoje à noite.

No caso deste exemplo, que é corriqueiro na nossa comunicação do dia a dia, B poderia
acrescentar uma nova premissa, como

(18) Mas vou fazer um esforço.

e a conclusão anterior seria destruída. Portanto, a conclusão não é absolutamente


necessária, mas apenas probabilística, como demonstrado pelo fato de que uma nova
premissa pode torná-la falsa. Contudo, esse tipo de raciocínio é diferente do raciocínio
indutivo. Enquanto o raciocínio indutivo apresenta premissas com dados que levam na
direção de uma certa conclusão (a induzem) e que são coerentes entre elas (as premissas
levam informações da mesma natureza), o raciocínio abdutivo apresenta premissas
aparentemente não correlacionadas entre si a não ser que se estabeleça uma ponte através
da própria conclusão. Às vezes, como no exemplo mostrado, a ponte parece natural e
intuitiva; outras vezes ela pode ser muito menos óbvia. Um raciocínio abdutivo pode ser
construído utilizando-se novamente as proposições dos exemplos (7) e (15) e as
colocando em uma ordem ainda diferente:

(19) Premissa 1: Todos estes alunos querem aprender.


Premissa 2: Todos os alunos da UFMG querem aprender.
Consequência: Todos estes alunos são da UFMG.
De fato, não parece haver nenhuma relação entre a primeira e a segunda premissa. A
relação é estabelecida através da conclusão (que, naturalmente, pode ser ou não
verdadeira).

Um outro tipo de raciocínio de tipo empírico-probabilístico é o raciocínio por default.


Esse raciocínio parte de uma premissa de caráter geral, mas que admite exceções, e a
aplica a um caso particular. Um exemplo é

(20) Premissa 1: Os eslovacos normalmente não falam italiano.


Premissa 2: Marek é eslovaco.
Consequência: Marek não fala italiano.

Parece sensato concluir que há altas probabilidades que Marek não fale italiano. Mas se
depois descobrimos que Marek é Marek Hamsik, jogador de futebol que jogou por quinze
anos em dois times da Itália, não estaremos mais dispostos a reconhecer a verdade da
conclusão. Se trata de outro tipo de raciocínio frequentemente usado no nosso dia a dia.

Vimos, então, quatro tipos de raciocínio, cada um com propriedades diferentes:

1. O raciocínio lógico-dedutivo se caracteriza por (i) aceitação de premissas não


necessariamente observadas, mas postuladas. Se verdadeiras, elas levam a uma
conclusão necessariamente verdadeira (atenção: a conclusão é formalmente válida
mesmo se as premissas não são verdadeiras. Precisa-se distinguir entre a validade
formal do procedimento e a verdade das conclusões); (ii) explicitação na
conclusão das condições de verdade que já estão implícitas nas premissas. Isso
significa que a contribuição de novidade informativa é limitada; no caso da
conclusão Pedro morreu a partir da premissa João matou Pedro, vimos que matar
significa causar a morte de; essa paráfrase mostra como as condições de verdade
da conclusão já estão contidas na premissa; (iii) ser válido sempre,
independentemente do contexto, em virtude do ponto (ii). É importante não se
confundir o raciocínio lógico com a pressuposição. Veremos (cap. 5) como a
pressuposição, que no nível de sentença parece necessária, é, na realidade,
sensível ao contexto.
2. O raciocínio probabilístico indutivo se caracteriza por (i) fornecer conclusões
mais ou menos prováveis, mas baseadas em premissas observadas, fruto de
experiência concreta, e, portanto, em princípio, seguras; (ii) fornecer uma
contribuição informativa maior do que o raciocínio lógico, já que a conclusão não
está implícita nas premissas, mas que sempre pode ser revista a partir de novos
dados, ou seja de novas premissas. Contudo, as premissas “induzem” uma certa
conclusão; (iii) é sensível ao contexto (o que quer dizer que novas premissas
podem mudar a conclusão).
3. O raciocínio probabilístico abdutivo é ao mesmo tempo o mais arriscado e o mais
informativo. Por basear-se em premissas aparentemente não correlacionadas, mas
de natureza diferente, e por ter que estabelecer uma ponte entre elas, a abdução
pode facilmente não levar a conclusões corretas, mas pode representar um passo
extremamente criativo e novo, capaz de resolver problemas de maneira original e
com saltos cognitivos extremamente poderosos; também é sensível ao contexto.
Ele possui em comum com o raciocínio indutivo a capacidade de chegar a
conclusões que podem ir além do conteúdo lógico das premissas (por essa razão
suas inferências são não necessárias). Contudo a abdução possui, implícita ou
explicitamente, uma capacidade explanatória, enquanto a indução não possui essa
capacidade. Na indução existe apenas a força que deriva da observação da
frequência dos dados, o que é possível também em um raciocínio abdutivo.
4. O raciocínio probabilístico por default coloca uma consideração geral que é fruto
de experiência, ou, pelo menos, é considerada altamente provável, e aplica a
mesma consideração a um caso particular. O raciocínio em (20) poderia ser
parafraseado da seguinte maneira: depois de muita experiência se verificou que é
muito improvável que um eslovaco fale italiano, e como Marek é eslovaco e não
tenho informações que me digam que esse caso é diferente da maioria, eu parto
do princípio que Marek não fale italiano, apesar de saber que poucos casos
diferentes existem e que Marek poderia ser um deles. Nós fazemos esse tipo de
raciocínio todas as vezes em que precisamos tomar uma decisão com base no que
ocorre normalmente (ou seja, com maior frequência), sem ter informações
suficientes para avaliar a situação específica em que estamos agindo. Um
motorista de ônibus que vê uma pessoa parada no ponto pode resolver parar
porque normalmente isso indica que a pessoa está esperando o ônibus; mas nada
impede que a pessoa esteja no ponto por outras razões, por exemplo porque
resolveu marcar ali um encontro com alguém.

Observou-se como os primeiros três tipos de raciocínios podem ser realizados utilizando
as mesmas proposições, mas colocadas em ordens diferentes.

Os diferentes tipos de raciocínio geram conclusões explícitas a partir de processos


inferenciais, ou seja, a partir de algo implícito. Falamos assim (i) de inferências lógicas,
quando elas já estão implícitas nas premissas, (ii) de inferências indutivas, quando elas
são apenas prováveis e induzidas pelas premissas, e (iii) de inferências abdutivas, quando
elas são fruto de uma intuição que coloca em relação observações que aparentemente não
possuem relação entre si. No caso dos raciocínios por default a inferência consiste em
aplicar um conhecimento provável a um caso particular, em ausência de informações
específicas relativas a este caso particular. Como vimos, cada tipo de raciocínio possui
pontos de força e limites. Não há um raciocínio melhor, mas apenas um raciocínio mais
apropriado dependendo dos objetivos e das circunstâncias. Na maior parte dos casos
demos exemplos de raciocínios com duas premissas e uma conclusão, mas isso foi feito
apenas por conveniência didática. Às vezes a premissa é somente uma (como no caso de
João matou Pedro) e às vezes as premissas podem ser mais e até muito mais do que duas.

Observe-se agora a seguinte afirmação:

(21) A maior parte dos alunos foi à aula.

A partir dela nós podemos tirar duas conclusões, ou seja, podemos fazer duas inferências:
(22) Consequência 1: então, alguns alunos foram à aula.
(23) Consequência 2: então, alguns alunos faltaram à aula.

A inferência em (22) é lógica; ela é necessariamente verdadeira, porque se é verdade que


a maioria dos alunos foi à aula, então é necessariamente verdade que alguns alunos foram
à aula. A inferência em (23) é apenas probabilística, já que o fato de todos os alunos terem
ido à aula (ou seja, o fato de ninguém ter faltado) não torna falso o fato de a maioria ter
ido à aula, mas torna falso o fato de alguém ter faltado. De fato, é possível dizer, sem
gerar contradição

(24) A maioria dos alunos, se não todos, foi à aula.

Mas não é possível dizer que é verdade que a maioria foi à aula e ao mesmo tempo que
não é verdade que alguns alunos foram à aula.

Contudo, quando alguém nos diz que a maioria dos alunos foi à aula, nós nos sentimos
autorizados a concluir que alguém faltou. Podemos até perguntar diretamente: quem
faltou? Isso acontece porque a nossa comunicação se baseia amplamente em inferências
de natureza probabilística e experiencial, e não lógica, como veremos mais a fundo no
cap. 6. De fato, a experiência nos ensina que quem usa a expressão a maioria geralmente
o faz quando não tem os elementos para usar a expressão todos. Isso nos parece tão normal
que não pensamos que, ao ouvir que a maioria agiu de uma certa maneira, não podemos
deduzir logicamente que alguém não agiu daquela certa maneira. Em outras palavras: as
condições de verdade de (21) estão contidas tanto em (24) quanto em

(25) Todos os alunos foram à aula.

Por isso podemos dizer (24) sem gerar contradições. Mas as condições de verdade de (23)
não estão contidas em (21). Não podemos deduzir logicamente que se (21) for verdadeira,
então também (23) é verdadeira.

1.3. A filosofia da linguagem ideal e a filosofia da linguagem ordinária

A expressão "filosofia da linguagem ideal" se refere ao modo de conceber a análise da


linguagem dos fundadores da filosofia da linguagem contemporânea como Frege, Russell
e Wittgenstein em sua primeira fase de reflexão. Eles observam que as linguagens naturais
são geralmente ambíguas. O filósofo, portanto, deve individualizar uma linguagem
simbólica "ideal" que não gere ambiguidades. Por que as línguas naturais seriam
ambíguas e imperfeitas? Consideremos o exemplo seguinte:

(26) Todas as meninas odeiam um rapaz.

Esse enunciado é ambíguo, já que pode significar duas coisas:

(27a) Cada menina odeia um rapaz diferente.


(27b) Todas as meninas odeiam o mesmo rapaz.
Os filósofos da linguagem ideal observam que é preciso distinguir entre a forma
gramatical de um enunciado e a sua forma lógica. De fato, a forma gramatical mascara a
forma lógica. Para expressar a forma lógica é necessário utilizar uma linguagem lógica e
formalizar as proposições utilizando variáveis individuais, como "x, y, z" para indicar os
indivíduos genéricos, e símbolos como Ǝ, para indicar o quantificador existencial
(=existe), ∀ para indicar o quantificador universal (=para cada), Λ para a conjunção "e",
V para a disjunção "ou", → para indicar o condicional (ou implicação) "se...então", etc.
(veja-se o site@ no ponto 2 para maiores informações sobre a linguagem da lógica).

Assim, as duas interpretações do enunciado (26) seriam:

(28a) ∀ x [(Menina x → Ǝy (Rapaz y → Odeia x, y)]


(28b) Ǝy [Rapaz y → ∀ x (Menina x → Odeia x, y)]

Desse jeito a uma forma gramatical ambígua corresponderiam duas formas lógicas não
ambíguas.

Um outro exemplo toca o significado do verbo ser.

(29a) Cada filósofo é mortal.


(29b) Kant é um filósofo.
(29c) Kant é o autor da “Crítica da razão pura”.

Nos enunciados acima, o verbo ser tem significados diferentes: inclusão (os filósofos são
incluídos no grupo dos mortais), pertencimento (Kant pertence ao grupo dos filósofos) e
identidade (Kant e o autor da Crítica da razão pura são o mesmo indivíduo). Eles têm
três formas lógicas diferentes:

(30a) ∀x [(Filósofo x → Mortal x)


(30a) se lê: para cada x, se x é um filósofo então é mortal.

(30b) Filósofo k
onde k = Kant.

(30c) k=a
onde k = Kant e a = autor da “Crítica da razão pura”.

Então, somente através da explicitação da forma lógica seria possível dar conta do
significado dos enunciados de maneira não ambígua. Quem segue essa visão, como os
semanticistas referencialistas, acha que o estudo da linguagem deve ser o estudo da sua
forma lógica.

A “filosofia da linguagem ordinária” nasce em Cambridge, com a segunda fase do


trabalho de Wittgenstein (1889-1951) e se desenvolve em Oxford graças a filósofos como
J. L. Austin (1911-1960), H. P. Grice (1913-1988) e outros que se inspiram na ideia
wittgensteiniana do "significado como uso" e colocam no centro da própria observação a
linguagem assim como ela se manifesta na comunicação cotidiana. Em contraste com os
filósofos da linguagem ideal, eles defendem que a linguagem ordinária (a linguagem que
usamos comumente no dia a dia) representa um objeto de análise autônomo.
Contrariamente aos filósofos da linguagem ideal, que veem as línguas naturais como
códigos cheios de limites e problemas, não adequados para a comunicação científica, os
filósofos da linguagem ordinária consideram que as características próprias das línguas
naturais não constituem um limite. Ao contrário, elas constituiriam a base da sua riqueza,
da sua criatividade e da sua infinita potencialidade comunicativa e expressiva, como de
sua extrema flexibilidade com meios facilmente gerenciáveis.

Dessas duas visões descendem respectivamente o estudo tradicional do significado


semântico e o estudo do significado pragmático. Veja-se por exemplo o que acontece de
fato com um conector extremamente comum, como a conjunção e:

(31a) João colocou o calção e entrou na piscina.


(31b) João é bonito e inteligente.
(31c) João não estudou e foi reprovado.

Em (31a), interpretamos e como e depois (o significado mudaria se disséssemos João


entrou na piscina e colocou o calção); em (31b) e é interpretado apenas como adjunção
(mudar a ordem dos adjetivos não mudaria o significado semântico); e em (31c)
interpretamos a conjunção como e portanto (também nesse caso a inversão mudaria o
significado). Do ponto de vista lógico, a forma é sempre a mesma: p Λ q ou q Λ p. Em
lógica uma conjunção é verdadeira somente se são verdadeiros ambos os conjuntos ou
proposições, independentemente da ordem. Na linguagem do dia a dia nem sempre é
assim, e é por isso que a conjunção lógica parece não ser capaz de dar conta do significado
da linguagem natural. O mesmo com a disjunção ou ou com o conector "se...então":

(32a) O menor de idade pode sair do país se acompanhado pelo pai ou pela mãe.
(32b) O menu turístico prevê um prato principal, um acompanhamento e uma fruta ou
uma sobremesa.
(32c) A sua gravata está na primeira ou na segunda gaveta.

Em (32a), ou leva à interpretação de que o menor deve ser acompanhado por um dos pais
ou pelos dois (mas não podem faltar ambos); em (32b), ou leva à interpretação de que o
menu permite comer a fruta ou a sobremesa ou nenhum dos dois (mas não os dois juntos);
em (32c), ou leva à interpretação de que a gravata deve estar em uma (e apenas e
necessariamente uma) das duas gavetas.

O conector se... então do ponto de vista lógico significa que ambos os elementos são
verdadeiros. Portanto, do ponto de vista lógico, é perfeitamente correta uma sentença
como (33), que não parece ter um sentido comunicativo no nosso uso linguístico:

(33) se a Itália está na Europa então 2+2=4.


De fato, em lógica, um condicional é verdadeiro se for verdadeiro o antecedente e
verdadeiro o subsequente. Mas na linguagem natural a expressão "se...então" veicula uma
relação de consequencialidade.

A conclusão dos filósofos da linguagem ordinária é que, já que a lógica não é capaz de
dar conta da complexidade da linguagem natural, o estudo desta não pode ser feito apenas
através da lógica. Por isso, Austin defende que o método para a análise da linguagem
natural não deve ser a busca da verdade ou falsidade lógica das expressões linguísticas,
mas que seu objetivo deva ser buscar se o que falamos é ou não é apropriado para a
situação em que o falamos. Analogamente, Grice busca entender os mecanismos que nos
levam a interpretar um enunciado de maneira sensata e apropriada aos objetivos
comunicativos, e individualiza esses mecanismos em inferências que não possuem uma
natureza lógica.

Um último exemplo (mas muitos mais serão oferecidos ao longo do volume,


especialmente no cap. 6) pode deixar mais claro como a lógica não parece a maneira mais
apropriada para analisar os mecanismos que governam o uso linguístico.

Se alguém que tem cinco filhos diz

(34) Eu tenho três filhos

do ponto de vista lógico, ou seja, se nos baseamos apenas no código linguístico, essa
pessoa está afirmando algo de verdadeiro, pois se ela tem cinco filhos é automaticamente
verdade que tem três, já que três faz parte das condições de verdade de cinco. Mas na
comunicação real, nós, em ausência de um motivo em contrário, interpretamos o
enunciado no sentido de Eu tenho exatamente três filhos. Portanto, o que logicamente é
verdadeiro pode ser interpretado como uma mentira na comunicação normal (pelo menos
em muitos contextos).

Com esses exemplos, deve ter ficado claro que existe um significado do código e um
significado do falante. Isso quer dizer que é preciso distinguir entre o que é dito com uma
determinada sequência linguística e o que se pretende realmente significar com ela. Na
comunicação real, o significado do código interage sempre com o contexto, e essa
interação enriquece o sentido semântico ao ponto até de realizar um sentido comunicativo
oposto àquele que a sequência linguística teria no código. Como veremos, alguns autores
pós-griceanos chegam até a limitar fortemente o conceito de significado do código,
afirmando que nós não precisamos processar o significado semântico de uma proposição
antes de chegar ao significado do falante, mas processamos diretamente o significado do
falante. E se chega até a considerar subdeterminado, fora de contexto, o significado das
palavras. Por exemplo, o significado de uma palavra como rápido seria subdeterminado
tanto com relação a seu valor qualitativo (um carro que alcança uma velocidade muito
alta, um rio com muita correnteza, um ritmo com intervalos muito curtos entre elementos
fortes e fracos, uma pessoa com uma inteligência ágil, um atleta com reflexos
espetaculares, etc.), quanto do ponto de vista quantitativo (qual é o limiar que deve ser
alcançado para que algo possa ser definido como sendo rápido? Obviamente vai depender
de cada caso).

Uma outra possível definição de pragmática seria então: a disciplina que estuda os
mecanismos da competência comunicativa, entendendo como competência comunicativa
a habilidade por parte do falante em usar a língua de maneira apropriada em diferentes
contextos para atender a exigências comportamentais de vários tipos e a habilidade por
parte do ouvinte em compreender a intenção comunicativa que o falante quer transmitir.

1.4. Alguns instrumentos para distinguir os conceitos de código e de uso

1.4.1 Sentença e enunciado

É útil distinguir entre os termos sentença e enunciado. A sentença é uma unidade


gramatical, sintática e semântica, enquanto o enunciado é uma unidade comunicativa, e,
portanto, pragmática. Isso significa que a sentença é uma unidade estrutural do código,
independente de um contexto específico; ao contrário o enunciado pode ser definido como
a menor unidade comunicativa, que existe apenas no uso real e que veicula um ato de fala
(veja-se o cap; 8). Para a sentença, independentemente da definição, o núcleo verbal é um
elemento fundamental. Jackendoff e Chomsky definem a sentença como a projeção
máxima de um SV, ou seja, um verbo principal (que funciona como núcleo) mais todos
os elementos que dependem dele. Segundo as pesquisas de corpora de fala espontânea
em diversas línguas, os enunciados sem verbo são mais ou menos um terço; se a eles se
somam os enunciados com verbo sem função verbal ou em que o verbo não é o núcleo
(como sempre o é na sentença), chegamos a ultrapassar a metade (para mais informações
sobre a estrutura dos enunciados em corpora de fala em contexto natural, veja-se o site@
associado a este livro no ponto 4 da seção de aprofundamento ao cap. 8).

Um exemplo de enunciado sem função verbal é a resposta de B em

(35) A: Você nasceu no Brasil?


B: Nasci.

O verbo do enunciado de B, neste caso, funciona como uma afirmação. Em outras línguas,
como o italiano ou o alemão, não é gramatical significar sim (ou não) através da retomada
do verbo usado pelo interlocutor. Um enunciado em que o verbo é presente, mas não
constitui o núcleo é o exemplo de enunciado nominal como o segundo enunciado do
diálogo em

(36) A: Qual carro deseja ver?


B: Um carro que não gaste muita gasolina

em que o verbo do enunciado de B não constitui o núcleo do enunciado, mas depende de


um núcleo nominal (um carro); neste caso não podemos dizer que o enunciado é a
máxima projeção de um SV.
Uma característica do enunciado é que ele carrega sempre uma ilocução, ou seja, realiza
uma ação (aprofundaremos isso no cap. 8), enquanto a sentença não pode ser interpretada
acionalmente, por ser definida sem fazer referência a um contexto comunicativo concreto.
Ela é apenas uma estrutura abstrata do código que respeita determinadas propriedades
gramaticais.

A distinção entre sentença e enunciado nos permite notar que as mesmas sequências de
elementos do código podem, de fato, realizar significados acionais muito diferentes, ou
seja, devem ser tratadas como enunciados diferentes em cada proferimento concreto.
Além disso, nos diz que o enunciado não precisa ter a forma gramatical de uma sentença.
Até uma interjeição pode funcionar como enunciado, ou seja, como a menor unidade
comunicativa da linguagem. É o que acontece por exemplo quando nos damos conta de
algo que não estávamos entendendo e proferimos aahh!, pra significar “agora entendi!”.
Ou quando alguém nos pergunta se queremos algo e respondemos positivamente com
hum hum! ou negativamente com ahn ahn!, e em muitos outros casos. Mas observemos
agora como um simples SN pode constituir enunciados com significados diferentes:

(37) Um leão!

pode ser interpretado como Se prepare, está chegando um leão! em uma interação entre
dois caçadores na África, ou como Olha, tem um leão!, na interação entre duas crianças
em um jardim zoológico, ou ainda como Ele é realmente forte e guerreiro, em uma
interação entre dois espectadores de uma competição de luta, ou de outras maneiras ainda,
dependendo do contexto e de como o proferido concretamente.

(37) é por um lado um exemplo de uma sequência comunicativa constituída apenas por
um SN, e por outro lado um exemplo de como os mesmos elementos do código, na mesma
sequência, podem ser usados para realizar ações, e, portanto, significados comunicativos,
muito diferentes. Nas três interpretações apresentadas em (37) podemos dizer que os três
enunciados realizam respectivamente um aviso ou um alarme, uma expressão de
maravilha ou uma dêixis (a ação pela qual se dirige a atenção de alguém para algo), e uma
asserção, dessa vez utilizando leão com valor metafórico (veja 2.3.2).

Considerações desse tipo levaram alguns autores a concluir que as palavras não seriam as
portadoras de significados convencionalizados, mas poderiam se prestar a qualquer
significado, se colocadas no contexto apropriado. Somente os enunciados carregariam
realmente o significado. O código então seria um instrumento para potencializar um
aspecto prioritário da comunicação linguística, ou seja, mostrar melhor a própria intenção
comunicativa. É o reconhecimento da intencionalidade acional que governa a
comunicação. O código é um expediente para potencializar esse objetivo, e isso é possível
exatamente pela liberdade, flexibilidade e vagueza desse código (veja-se o cap. 6).

1.4.2 Modelo do código e modelo inferencial


Segundo uma tradição que vem de Aristóteles e que no século XX foi formalizada por
Shannon e Weaver (1949), a comunicação linguística consiste em um processo de
codificação e decodificação de mensagens, conhecido como modelo do código.

Um código pode ser descrito como um sistema de correspondências. Por exemplo, o


código Morse é um sistema de correspondências entre sinais sonoros e visuais (os pontos
e as linhas) de um lado e as letras do alfabeto do outro. As línguas naturais associariam
as palavras e os enunciados de um lado aos conceitos e às representações mentais de
outros.

Segundo esse modelo, quem fala (ou escreve, ou sinaliza na língua de sinais) codifica os
próprios pensamentos nas expressões da língua, e quem escuta (ou lê, ou vê os sinais)
decodifica essas expressões tendo assim acesso aos pensamentos do falante. Dessa
maneira os falantes transmitem as próprias representações mentais aos interlocutores.
Portanto a comunicação pode falhar somente se o processo de codificação ou
decodificação der errado (por alguma falha superficial do falante ou do ouvinte), se algum
tipo de ruído no canal impedir que a mensagem chegue íntegra ao destinatário
(dependendo do canal, o ruído pode ser um barulho externo, a falta de luz, uma
interposição física entre sinalizador e destinatário), ou, naturalmente, se os interlocutores
não compartilham o mesmo código (a mesma língua).

Shannon e Weaver propuseram um modelo inspirado nas telecomunicações (Figura 1).


Neste modelo um falante (fonte de informação) emite uma mensagem codificando as
próprias representações mentais em forma de ondas sonoras (no caso da comunicação
falada); a mensagem passa através do canal (normalmente o ar) e alcança o ouvido do
interlocutor que a decodifica no próprio cérebro. A mensagem, durante seu caminho ao
longo do canal, pode ser comprometida por um ruído (por exemplo um barulho externo
que mascare o sinal linguístico). Se isso não acontecer, e se o código for compartilhado,
a comunicação será bem sucedida.

Tudo isso significa que o sucesso da comunicação linguística, ruído à parte, depende
unicamente do conhecimento do significado convencional das expressões do código por
parte dos interlocutores. Esse modelo funciona perfeitamente dentro de um paradigma
cognitivista clássico (sobre os diversos modelos cognitivos veja-se o site@ no ponto 1).
O modelo do código, contudo, não consegue explicar os processos da comunicação
linguística. Imaginemos o enunciado

(38) Carlos e Maria casaram e tiveram três filhos.

Para decodificar este enunciado o destinatário deve completá-lo com diversas


informações:

a) Carlos e Maria casaram entre eles. Isso não é dito. Seria possível, por exemplo,
que Carlos tivesse se casado com Ana e Maria com Luís.
b) Eles tiveram os filhos juntos. Com base no código seria possível que cada um
deles tivesse tido três filhos com outros parceiros, ou parte com um e parte com
outros ou que um tivesse tido um filho e outro dois.
c) Os filhos são somente três. Em princípio eles poderiam ser mais, porque se Carlos
e Maria tiveram quatro filhos seria verdadeiro que tiveram três.
d) A ordem dos acontecimentos é aquela apresentada. Em princípio seria
logicamente possível que eles primeiro tivessem tido três filhos (o parte deles) e
depois se tivessem se casado.

Essas informações necessárias para um correto entendimento do enunciado não são


adquiridas através do código, mas através de processos inferenciais que se apoiam em
conhecimentos de mundo e na experiência que os falantes têm. Contextos diferentes
podem inclusive favorecer interpretações diferentes. Se sabemos que Carlos e Maria são
irmãos, provavelmente preferiremos uma interpretação segundo a qual eles se casaram e
tiveram filhos com outras pessoas.

O modelo inferencial se origina da reflexão do filósofo britânico Herbert Paul Grice. A


ele devemos a importante distinção entre o significado das expressões linguísticas (do
código) e o significado do falante, ou seja, o que um falante quer significar usando certas
expressões linguísticas. Segundo o modelo inferencial, o acesso aos pensamentos dos
falantes não depende só da decodificação das expressões linguísticas convencionalizadas,
mas disso e dos processos inferenciais gerados pela interação entre as expressões e
elementos contextuais. Assim, a comunicação linguística pode falhar pelo processo de
codificação e decodificação das expressões, mas também por erros no processo
inferencial. Neste caso, estamos falando de processos inferenciais de natureza
probabilística, e, portanto, sempre falíveis. Veremos ao longo do livro, e especialmente
no cap. 6, como o modelo inferencial parece muito mais adequado para a comunicação
humana. Para uma discussão, veja-se também os aprofundamentos dos pontos 1 e 2 ao
cap. 6 no site@.

1.4.3 O contexto

Pelo que foi dito até aqui, já deve ter ficado claro que a Pragmática atribui ao conceito de
contexto uma forte centralidade no estudo do significado. Contudo, é extremamente
difícil, se não impossível, definir o que é o contexto. Na nossa comunicação cotidiana,
nós recorremos constantemente ao contexto, implícita ou explicitamente, quase sempre
dando por óbvia a atribuição de um determinado significado ao que falamos ou
escutamos; normalmente, nem percebemos que o que foi dito poderia ter muitos
significados e que é a interação com o contexto que nos permite desambiguar as
expressões linguísticas com tanta facilidade que nem nos damos conta de suas possíveis
ambiguidades.

O contexto é sempre utilizado para compor o sentido comunicativo de expressões e ações


linguísticas, assim como de ações não linguísticas, e, segundo alguns, até das palavras
isoladas. A reflexão sobre o contexto é enorme e vem de disciplinas diferentes: filosofia,
direito, antropologia, psicologia, etnometodologia, linguística, etc. No site@ (ponto 3)
reportamos as reflexões de alguns autores a partir de disciplinas diferentes. Essas
reflexões mostram algumas tentativas de definição, cada uma das quais evidencia
aspectos importantes da noção de contexto, sem por isso alcançar uma definição
completamente satisfatória.

A língua possui muitos elementos que, evidentemente, não podem ser interpretados sem
recorrer ao contexto: os elementos dêiticos (ou seja, elementos, como eu, que podem ser
decodificados somente através do acesso ao contexto extralinguístico; veja-se o cap. 3),
as metáforas (ou, em geral, os significados figurados), as repetições dialógicas, em que
os mesmos elementos, repetidos por outro falante, podem assumir significados que
variam do acordo ao desacordo, e até as formas verbais. Note-se o caso de

(39) A: Chico aposentou.


B: Chico aposentou.

Em (39), a repetição, por parte de B, das mesmas palavras de A, dependendo de vários


fatores (contextuais e prosódicos), pode, entre outras possibilidades, significar

(39a) É verdade, Chico aposentou.


(39b) Você tem certeza que Chico aposentou?
(39c) Imagina uma absurdidade dessa. Chico não aposentou.
(40) A: Você não pode fazer isso amanhã?
B: Na verdade, eu ia pra biblioteca.

Em (40), ia, que morfologicamente é um passado, tem significado de futuro, adquirindo


um valor modal diferente que não é mais aquele do indicativo, de certeza, mas um valor
que está aberto, de alguma maneira, a uma negociação.

Contudo, o verdadeiro desafio de um pragmaticista é identificar os elementos do contexto


que realmente são pertinentes para guiar falante e interlocutor em uma determinada troca
comunicativa. É de pouca utilidade invocar o contexto sem buscar o que da própria noção
de contexto está realmente em jogo em uma interpretação específica, e com base em quais
mecanismos o contexto condiciona a interpretação.

1.4.4 O Common Ground

A noção de Common Ground (CG) é uma tentativa de formalizar o que é pertinente no


contexto durante uma interação entre dois ou mais falantes.

A linguagem humana é, principalmente, uma forma de comportamento interativo. Nela,


um falante direciona um enunciado a um ou mais ouvintes com diversos propósitos
acionais, para obter diversos efeitos: manter a relação, informar, perguntar, chamar a
atenção, pedir desculpas, etc. Falante e ouvinte são conscientes do fato de que, em
princípio, o interlocutor é um ser inteligente. Por isso, o falante não precisa explicitar as
informações óbvias, seja porque elas estão disponíveis à percepção sensorial, seja porque
o ouvinte pode facilmente consegui-las usando o conhecimento que geralmente todos
construímos através de nossa experiência de mundo. Isso constitui o CG, ou
conhecimento compartilhado.

A nossa compreensão de um enunciado se baseia em uma suposição do CG. Por exemplo,


quando um falante aponta para algo e diz Você não acha bonito?, existe a suposição de
que o ouvinte entenda o português e possa perceber a entidade à qual o falante se refere.
Uma parte do CG é universal, como o conhecimento do sol (enquanto fonte de calor e de
luz) ou da chuva (enquanto fonte de água) ou as partes do corpo humano e algumas
diferenças fenotípicas óbvias entre homem e mulher. Outras partes do CG dependem de
fatores como a situação ambiental da interação, a idade, o tipo de contexto cultural dos
interlocutores, seu nível de instrução e outros fatores. O CG pode ser até muito restrito,
como quando dois colegas usam entre eles a expressão o cara de pau para referir-se a um
colega comum que apelidaram assim.

Normalmente, o falante pode acessar facilmente o CG com o ouvinte, e, com base nisso,
decidir o que é oportuno dizer, escolher suas palavras e como estruturar linguisticamente
a informação. Isso requer que o falante possa avaliar a capacidade do ouvinte de
compreender o enunciado o suficiente para entender a intenção comunicativa do próprio
falante. As suposições do falante são as avaliações que ele faz do que deve ser o CG entre
ele e o ouvinte com relação ao conteúdo do enunciado. Essas avaliações motivam
escolhas como a língua, o registro (se coloquial ou formal ou de algum setor específico,
como a linguagem médica ou jurídica), a apresentação de um referente como algo
conhecido ou não (veja-se o cap. 4), o que pode ficar pressuposto e o que deve se tornar
explícito (veja-se o cap. 5), as estratégias de organização das ações linguísticas (veja-se
os cap. 6 e 8), etc.

O CG permite, portanto, que o significado seja subespecificado semanticamente, de modo


que a compreensão linguística se torna um processo no qual o falante espera que o ouvinte
tenha a condição de inferir muitas informações que não é preciso (e muitas vezes não é
apropriado) explicitar. Naturalmente, o ouvinte também faz avaliações sobre o falante.
As avaliações recíprocas do falante e do ouvinte sobre o outro não são iguais, mas devem
se sobrepor o necessário para que eles julguem que a comunicação esteja sendo
suficientemente bem sucedida.

Ao longo da interação, o CG de cada um se enriquece com as informações já trocadas.


Em caso de troca entre um falante e diversos ouvintes, a situação se complica ainda mais,
pois é necessário avaliar o CG com diversos indivíduos. O CG é naturalmente muito
sensível às situações. Quanto mais estruturada for a situação, mais sensível se torna o CG.
Se, por exemplo, estamos no caixa de uma farmácia, será óbvio que queremos pagar o
que acabamos de comprar; isso constitui um CG tão forte que permite interpretar poucas
palavras com muita facilidade ou até que a interação se dê sem pronunciar nenhuma
palavra, pois o CG direciona simples gestos para uma interpretação que poderia ser muito
diferente em outro tipo de situação. Para um aprofundamento com base na update
semantics, veja-se a integração ao cap. 5 no site@.

1.4.5 Ambiguidade, vagueza e indeterminação

Exemplos de como o CG é fundamental para os objetivos comunicativos são os casos em


que, sem o recurso a ele, as incompreensões devidas a ocorrência de homonímia, de
polissemia, de ambiguidade ou a expressões vagas ou indeterminadas seriam inevitáveis.
Normalmente o contexto permite identificar o referente quando o mesmo significante tem
significados diferentes (por exemplo, manga da camisa e manga como fruta), mas, às
vezes, acontecem mal entendidos, como quando não conseguimos identificar a acepção
do significado de uma palavra em enunciados que possuem uma dupla leitura: em

(41) A partida do time foi impossibilitada pelo fechamento do aeroporto

podemos estar dizendo que o time não conseguiu viajar porque o aeroporto estava fechado
ou que o jogo não aconteceu porque o aeroporto estava fechado. Para resolver a
ambiguidade, precisamos buscar no contexto extralinguístico os instrumentos para decidir
a interpretação. Ao contrário, em

(42) A partida do time acabou depois da prorrogação


o cotexto (ou contexto linguístico) é suficiente para esclarecer como deve ser interpretada
a sequência a partida do time.

Em outros casos, a comunicação pode ser condicionada pela vagueza de praticamente


qualquer expressão linguística. A vagueza é uma propriedade importante das línguas
naturais. Por exemplo: qual é a fronteira entre xícara e caneca, ou como podemos
distinguir exatamente uma pessoa careca de uma que não o é? Quantos fios de cabelo
uma pessoa deve ter, e eles devem estar distribuídos de que maneira em sua cabeça para
que a pessoa não seja considerada careca? Mais uma vez, serão o contexto e o propósito
da interação que podem nos ajudar.

Outras vezes ainda, os mal-entendidos podem ser devidos ao fato de que as relações
expressas são indeterminadas. A indeterminação, contrariamente à vagueza, não se dá
devido ao fato que não podemos estabelecer claramente as fronteiras entre os significados
das palavras (como acontece em careca), mas sim quando a expressão em si é insuficiente
para decidir com precisão qual dos seus possíveis significados deve ser escolhido. Somos
tão acostumados a utilizar o contexto que não percebemos quantas vezes o código não
nos fornece elementos suficientes para interpretar um enunciado: a minha casa pode
significar a casa que eu possuo, a casa em que eu moro ou a casa que eu (como arquiteto)
projetei ou (como engenheiro) construí ou até a casa imaginária dos meus sonhos. Não se
trata, portanto, de um caso de vagueza, onde o que é incerto é a fronteira entre diversos
significados; não há dúvida de que minha expresse uma relação entre o falante e o
referente; mas a natureza desta referência é ainda não suficientemente determinada. Já
vimos como a conjunção e pode adquirir significados diferentes que devem ser precisados
com base em outras informações de ordem extralinguística. Como no caso de minha,
também no caso das conjunções e e da conjunção ou, não dizemos que as expressões têm
vários sentidos ou que são vagas, mas que são expressões indeterminadas, insuficientes
para determinar o tipo exato de relação que sinalizam. Os seus significados devem ser
precisados com base em elementos que estão fora do código.

Um ulterior exemplo de indeterminação é relativo a casos em que o problema não está no


significado, mas na referência, ou seja, a realidade extralinguística a que se refere:

(43) Pelé, cuja fama alcançou todos os continentes, se tornou um ícone brasileiro.
O campeão, ciente disso, procurou preservar a sua imagem o melhor
possível.

Nesse exemplo entendemos a que se referem cuja, campeão, disso e sua graças ao
contexto, pois, essas mesmas palavras poderiam significar outros referentes, seja porque
há outros campeões, seja principalmente porque as outras expressões não fornecem
elementos suficientes para identificar um referente sozinhas, ou seja, não possuem
significado intensional (o conjunto dos traços semânticos que descrevem o referente;
veja-se 2.3.1) suficiente.

Se os filósofos da linguagem ideal viam na ambiguidade, na vagueza e na indeterminação


defeitos que era preciso eliminar, para os filósofos da linguagem ordinária são
precisamente essas características que permitem a infinita flexibilidade da linguagem
humana, que, para funcionar adequadamente, deve recorrer constantemente a elementos
extralinguísticos, sejam eles perceptíveis no mundo, sejam eles inferíveis com base na
nossa experiência.

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